Sujeitos Processuais Penais - O Tribunal 2015

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  • 8/20/2019 Sujeitos Processuais Penais - O Tribunal 2015

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    JORGE DE FIGUEIREDO DIAS

    NUNO BRANDÃO 

    Sujeitos Processuais Penais:

    O Tribunal

    Texto de apoio ao estudo da unidadecurricular de Direito e Processo Penal doMestrado Forense da Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra

    (2015/2016)

    Coimbra

    2015

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    Este estudo toma por base o 1.º Capítulo (O Tribunal) da Parte II (Os Sujeitos

    Processuais) da obra  Direito Processual Penal  publicada pelo primeiro subscritor em1974, procedendo-se à sua revisão e atualização.

    O texto encontra-se disponível em https://apps.uc.pt/mypage/faculty/nbrandao/pt/003. 

    Coimbra, Novembro de 2015

    Jorge de Figueiredo Dias

     Nuno Brandão

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    ÍNDICE 

    Abreviaturas ................................................................................................................................ 6

    § 1. Função e características do juiz penal ................................................................................ 7 

    § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições ................................................. 12 I. A garantia da imparcialidade ........................................................................................... 12

    II. Impedimentos.................................................................................................................. 14

    III. Suspeições ..................................................................................................................... 26

    § 3. A competência do tribunal em matéria penal .................................................................. 32

    I. O princípio do “juiz natural” ............................................................................................ 32

    II. A competência penal e as suas espécies ......................................................................... 35

    III. Competência material .................................................................................................... 38

    IV. Competência funcional .................................................................................................. 48

    V. Competência territorial ................................................................................................... 50

    VI. Conexão de processos e competência por conexão ....................................................... 55

    VII. Verificação da incompetência ...................................................................................... 63

    VIII. Conflitos de competência ........................................................................................... 65

    Bibliografia ................................................................................................................................ 67

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    ABREVIATURAS 

    AcsTC –  Acórdãos do Tribunal Constitucional

    BMJ –  Boletim do Ministério da Justiça

    BVerfGE –  Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts

    CEDH –  Convenção Europeia dos Direitos Humanos

    CEP –  Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade

    CJ –  Coletânea de Jurisprudência

    CJ STJ –  Coletânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de JustiçaCRP –  Constituição da República Portuguesa

    CP –  Código Penal

    CPP –  Código de Processo Penal 

    CRP –  Constituição da República Portuguesa

    DAR –  Diário da Assembleia da República

    DL –  Decreto-Lei

    DR –  Diário da República

    GA –  Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 

    GG –  Grundgesetz (Lei Constitucional da República Federal da Alemanha)

    LOSJ –  Lei da Organização do Sistema Judiciário

     NJW –  Neue Juristische Wochenschrift

    RIDP –  Revue Internationale de Droit Pénal

    RSC –  Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé

    RLJ –  Revista de Legislação e Jurisprudência

    RPCC –  Revista Portuguesa de Ciência Criminal

    StPO –  Strafprozeβordnung (Código de Processo Penal alemão)

    SASTJ –  Sumários dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (www.stj.pt)

    STJ –  Supremo Tribunal de Justiça

    TEDH –  Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

    ZStW –  Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft

     Pertencem ao CPP os preceitos legais indicados em texto sem menção expressa do diploma a que se referem.

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    § 1. FUNÇÃO E CARACTERÍSTICAS DO JUIZ PENAL 

    1. De acordo com o n.º 1 do art. 202.º da Constituição, “os tribunais são os órgãos

    de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”.  No que

    toca ao processo penal quer-se por este modo significar serem os tribunais os únicos

    órgãos competentes para, como representantes da comunidade jurídica e do poder

    oficial do Estado em que aquela se constitui, decidirem os casos jurídico-penais que

     processualmente sejam levados à sua apreciação, aplicando o direito penal substantivo

    (arts. 27.º-2 e 202.º-2 da CRP). O domínio penal é mesmo o reduto por excelência do

    “monopólio da primeira palavra” como manifestação da reserva absoluta de jurisdição1.

    O princípio da jurisdicionalidade em matéria penal não se esgota, porém, aí, nas

    fases de julgamento e de recurso, e projeta-se ainda sobre as fases preliminares do

     processo, nelas impondo a intervenção do juiz (de instrução) sempre que possam estar

    diretamente em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas (art.

    32.º-4 da CRP)2.

    O resultado do exercício desta  função judicial é-nos dado por aquilo a quechamamos o direito judicial e que pode também designar-se (como é vulgar) por

     jurisprudência.  Não se afirma com isto, é claro, que quaisquer atos praticados pelos

     juízes no decurso de um processo constituam «jurisprudência»; eles referem-se e

    dirigem-se todos, porém, à consecução do fim do processo que, por sua vez, se

    corporiza em uma decisão jurisprudencial.

    2.  Por mais avesso que se seja à procura e descoberta, nos conceitos como nas

    instituições, de uma «essência eidética» que traduziria a sua característica mais

    específica e conatural, ou de uma sua «natureza» a-histórica e imutável no espaço, não

    será fácil negar que logo a própria realidade e as exigências da vida postulam que se

    1 Assim, logo o fundamental Acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 06-06-1967,  BVerfGE  2249.

    2  Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal,  Jornadas de Direito Processual Penal: o Novo Código de Processo Penal  1988 15 ss., Anabela Miranda R ODRIGUES, A jurisprudência

    constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal,  XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa  2009 47 ss., e Maria de Fátima MATA-MOUROS, Juiz das Liberdades 2011 38 ss.

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     pense a independência como a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto,

    da função judicial. Realidade e exigências da vida  –   acrescente-se  –   que só são

    confirmadas pelos dados jurídico-constitucionais próprios de um Estado-de-direito: porum lado, e diretamente, porque deste não poderá falar-se, «e a própria Ideia de Direito

    se verá subvertida, onde se não reconheça (e garanta) a autonomia e independência da

    função judicial»3; por outro lado porque, implicando aqueles dados o princípio da

    separação dos poderes, não poderia este realizar-se praticamente sem se encontrar

    assegurada a independência de um de tais poderes.

    Sendo por conseguinte os tribunais no seu conjunto –  e cada um dos juízes per se  –  

    órgãos de soberania e pertencendo  só a eles a função judicial, tem por força deconcluir-se que a independência material (objetiva)  dos tribunais  –   reforçada pela

    independência pessoal (subjetiva) dos juízes que os formam –  é condição irrenunciável

    de toda a verdadeira jurisprudência (arts. 203.º da Constituição e 4.º da LOSJ).

    Do ponto de vista da Doutrina do Estado, a raiz teorética da ideia da independência

     judicial deve buscar-se, como sugerimos, na doutrina da  separação dos poderes, de

    MONTESQUIEU; daí que tal ideia se tenha refletido nas legislações a partir dos

    movimentos liberais de reforma da 1.ª metade do séc. XIX, visando sobretudo impedir as

    ingerências do Executivo e do Monarca na administração da Justiça («Kabinettsjustiz»)

    que eram de regra nos tempos do absolutismo4. E assim é que, entre nós, o princípio se

     plasmou na Constituição de 1822 (art. 176.º), na Carta Constitucional (arts. 120.º, 121.º,

    122.º e 145.º § 11.º), na Constituição de 1838 (art. 127.º) e na de 1911 (arts. 57.º e 60.º).

    A independência dos tribunais, quando analisada em pormenor nos seus elementos

    essenciais, comporta um  significado plural que, de resto, não avulta apenas no plano

    estritamente jurídico mas possui  –   e de maneira fundamental  –   as mais sérias

    implicações e incidências políticas, económicas e sociais. Tomada no seu sentido mais

    compreensivo, a independência dos tribunais assume, segundo uma conotação já hoje

    corrente5, vários significados.

    3 Castanheira NEVES, O instituto dos «assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais,  RLJ  105 1972-1973 181. V. também Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 II 203.º

    4 “A luta, já velha de séculos, da afirmação da independência judicial perante a chamada «justiça de gabinete» pode hoje considerar-se praticamente terminada e decididamente ganha no nosso Estado democrático” (Jorge de

    Figueiredo DIAS, A «pretensão» a um juiz independente como expressão do relacionamento democrático entre ocidadão e a justiça, Sub Judice 14 1999 27.

    5 Cf. p. ex. HENKEL2 § 26 I 2 e G. FOSCHINI I 315 ss.

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    a)  Independência perante os restantes poderes do Estado (ou perante os restantes

    órgãos de soberania: Presidente da República, Assembleia da República e Governo), a

    chamada independência externa6. Aqui avulta, pois, o significado diretamente  político

    da independência, que vimos resultar do princípio-base, em qualquer Estado-de-direito,

    da «separação dos poderes»: aos tribunais há-de ser concedida, em tudo quanto respeita

    à função judicial e portanto, primacialmente, à decisão a encontrar para um caso

    concreto, plena liberdade que os ponha a coberto de quaisquer influências e pressões,

    diretas ou indiretas, do Parlamento, do Governo ou da Administração7.

     b)  Independência perante quaisquer grupos da vida pública (partidos políticos,

    lobbies, organizações não governamentais, grupos de interesses e de pressão, órgãos de

    comunicação social, etc.). Trata-se aqui do significado da independência judicial que,

     por força da evolução sofrida pelo próprio Estado perante a sociedade das últimas

    décadas, mais difícil se tornou, porventura, de preservar. Sobretudo nas democracias

     parlamentares, a influência de tais grupos no exercício da função judicial revela-se

    certamente muito mais perigosa do que a dos poderes do Estado e da própria burocracia

     judicial. Até porque, para que de tal influência possa por forma conveniente defender-se

    a magistratura judicial, não basta que lhe seja juridicamente assegurada a

    independência, antes importa criar todo um conjunto de condições de independência

     subjetiva aos próprios juízes, através do qual lhes seja concedida autonomia no campo

    social e económico.

    c)  Independência perante outros tribunais. Os tribunais e juízes são entre si

    independentes no sentido de que se não encontram ligados, nas suas decisões, por

    quaisquer correntes ou orientações jurisprudenciais que não «perfilhem». Encontra-se,

    naturalmente, ressalvado o “o dever de acatamento das decisões proferidas em via de

    recurso por tribunais superiores” (art. 4.º-1 da LOSJ). Fora deste específico domínio das

    relações de hierarquia funcional que dentro de um concreto e determinado processo se

    6 Rui MEDEIROS / Maria João FERNANDES, Constituição Portuguesa Anotada III 203.º/IV.7 Cf. Francisco Sá CARNEIRO, A Proposta de Lei sobre Organização Judiciária 1973 11.

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    § 2. A TUTELA DA IMPARCIALIDADE: IMPEDIMENTOS E SUSPEIÇÕES 

    I. A garantia da imparcialidade

    Acabamos de ver como, através da característica da independência dos juízes, se

    asseguram os fundamentos de uma atuação livre dos tribunais perante pressões que se

    lhes dirijam do exterior. Isto não basta, porém, para que fique do mesmo passo

     preservada a objetividade de uma decisão judicial: é ainda necessário, ao lado e para

    além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a

    «imparcialidade» dos juízes,  já não em face de pressões exteriores, mas em virtude deespeciais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar . Como de todos

    os lados se acentua, a estrita e absoluta objetividade do juiz na realização da justiça no

    caso é condição irrenunciável para que ela possa constituir-se como expressão da ideia

    de Estado de direito, sendo para tal fundamental garantir a sua imparcialidade13.

    A exigência de imparcialidade implica, desde logo, que o juiz não seja parte no

    conflito ou tenha nele um interesse pessoal em virtude de uma ligação a alguma das

    “partes” nele envolvidas (nemo iudex in causa sua)14, mas vai muito mais longe,

     postulando uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em

    relação ao objeto da causa e a todos os demais sujeitos processuais. O princípio da

    imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem

    tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a

    responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se

     possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma

    totalmente desinteressada, neutral e isenta.

    São várias, na verdade, as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr

    em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no exercício da sua função;

    e o que aqui interessa, convém acentuar, não é tanto o facto de, a final, o juiz ter

    conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter

    conservado, não dar azo a qualquer dúvida,  por esta via reforçando a confiança da

    13  Desenvolvidamente e com amplas referências doutrinais e jurisprudenciais nacionais e estrangeiras, JoséMouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português 2005 66 ss.

    14 CHIAVARIO3 IV/19.1, e Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 88 ss.

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    comunidade nas decisões dos seus magistrados15. Por isso se usa sublinhar, invocando

    uma velha máxima inglesa, “not only must Justice be done; it must also be seen to be

    done”16

    .

     Na experiência portuguesa, há um largo consenso doutrinal17 e jurisprudencial18 no

    sentido de uma compreensão da garantia de imparcialidade como dimensão essencial da

    estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente imposta pelo art. 32.º-5 da

    CRP19 e da independência dos tribunais reconhecida pelo art. 203.º da CRP. E é natural

    que assim seja, pois tanto em relação à ideia do acusatório e do princípio da acusação

    que lhe é imanente como em relação à independência judicial, essas distintas, mas

    incindíveis projeções do princípio do Estado de direito comungam de um mesmodesígnio de uma realização da justiça pautada pela máxima objetividade e isenção e

    capaz de se impor aos seus destinatários diretos e à comunidade em geral sem quaisquer

    sombras de desconfiança, emergindo aí a imparcialidade como uma exigência

    irredutível.

    O estatuto constitucional  reconhecido à garantia de imparcialidade tem sido entre

    nós objeto de sucessivas e acesas controvérsias, em especial em torno da possibilidade

    de participação num dado processo de um juiz que nele já teve intervenção numa fase

     processual anterior. A lei ordinária tem sido censurada doutrinal e jurisprudencialmente

    ora por ficar aquém20, ora por ir além21 daquilo que é exigido constitucionalmente. O

    certo é que um entendimento maximalista em determinada época adotado pelo Tribunal

    15

      Neste sentido, entre nós, Cavaleiro de FERREIRA

      I 234, 237; e na doutrina alemã, por todos, R OXIN

    SCHÜNEMANN28 § 8/1. Cf. também V. MANZINI II 199 s.: “o judex suspectus deve, em vista de um qualquer motivosério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistência às causas internasque possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixõesou preocupações contrárias à reta administração da justiça”. 

    16 Lord Hewart, in: R v. Sussex Justices (ex parte McCarthy) 1924.17  Figueiredo DIAS  / Maria João A NTUNES, La notion européenne de tribunal indépendant et impartial. Une

    approche à partir du droit portugais de procédure pénale”  RSC   4/1990 737 ss., Mouraz LOPES,  A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual  78 s., Gomes CANOTILHO  / Vital MOREIRA4 I 522, e Marques da SILVA  / HenriqueSALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 731 s.

    18  Cf. os Acs. do TC 219/89, 114/95, 935/96, 528/97, 29/99, 357/99, 129/2007, 147/2011 e 444/2012; e anumerosa jurisprudência do STJ recenseada por Henriques GASPAR , CPP Comentado 133 ss. e 148 ss.

    19 Figueiredo DIAS, La protection des droits de l'homme dans la procedure penale portugaise,  BMJ 291 1979167 ss.

    20 Marques da SILVA,  Do Processo Penal Preliminar   1987 416, Mouraz LOPES,  A Tutela da Imparcialidade

     Endoprocessual 124 SS., e Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 522.21 Jorge de Figueiredo DIAS, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo

    Penal, RPCC  2/1998 207 ss.

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    Constitucional sobre a conformidade constitucional do regime legal22, nomeadamente,

    do art. 40.º do CPP, induziu o legislador ordinário a alargar progressivamente o leque

    dos impedimentos por participação anterior no processo. Contanto que tal alargamentonão vá acompanhado de uma pretensão de atribuição à garantia constitucional   de

    imparcialidade de um conteúdo mais lato do que aquele que efetivamente possui, à

     partida não há razão para debater o problema no plano da constitucionalidade. Pois,

    como se sabe, o legislador é livre de estabelecer um regime legal mais garantista do que

    aquele que a Constituição impõe. Questão é, porém, saber se, em face do conteúdo que

    adquiriu e das dificuldades acrescidas que coloca à organização do funcionamento dos

    tribunais, um tal alargamento se mostra equilibrado e defensável de um ponto de vista político-criminal.

    Para dar consistência efetiva à garantia de imparcialidade, além de estruturar o

     processo penal de acordo com o princípio da máxima acusatoriedade possível, o

    legislador ordinário estabeleceu um conjunto de impedimentos (arts. 39.º e 40.º) e

    suspeições (art. 43.º), fundados em razões de dúvida de diversa ordem sobre a

    imparcialidade da atuação do juiz e com regimes jurídicos distintos: umas vezes

    verifica-se a, pura e simples, impossibilidade de o juiz intervir em um certo processo penal, mediante previsão de circunstâncias que, sem mais e necessariamente, ditam o

    seu afastamento, as quais são portanto declaradas independentemente de qualquer

    objeção suscitada pelos participantes processuais à atuação do juiz no caso concreto;

    outras vezes é apenas concedida aos sujeitos processuais a possibilidade de afastarem a

    intervenção do juiz, nomeadamente, quando haja o risco de esta ser considerada

    suspeita, por existir motivo, grave e sério, adequado a gerar desconfiança sobre a sua

    imparcialidade. No primeiro caso estamos perante impedimentos, no segundo perante suspeições do juiz.

    II. Impedimentos

    1. Os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39.º e 40.º com base em

    três ordens de razões: a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante

    22  Como observa Maria João A NTUNES, Direito processual penal  –   «direito constitucional aplicado», Que Futuro Para o Direito Processual Penal? 2009 749, a jurisprudência posterior do TC, nomeadamente a mais recente,tem-se afastado desta posição maximalista.

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     processual; a intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade; e a

    necessidade de participar no processo como testemunha.

    Tem-se entendido entre nós que a indicação dos motivos de impedimento é

    taxativa23 , por constituírem eles exceções à regra da competência do juiz. Não revelará,

    no entanto, por exemplo, o art. 39.º do CPP lacunas que devam ser preenchidas por

    recurso às normas paralelas do CPC, designadamente, as do art. 115.º? Contra a ideia

     pode logo avançar-se o argumento formal de que o CPP regulou a matéria

    expressamente, não podendo pois falar-se aqui com propriedade de “lacunas”. Certo é,

    no entanto, que o art. 115.º do CPC é mais lato, em alguns dos seus comandos, do que o

    art. 39.º do CPP; e não pode duvidar-se, por outro lado, de que a necessidade deconfiança comunitária nos juízes se faz sentir com muito maior força em processo penal

    do que em processo civil. Como se verá infra, a regulação processual penal não cobre

    expressamente variados casos em que o risco de falta de parcialidade é tão gritante  –  v.

     g., a hipótese em que o juiz é o próprio ofendido  –   que seria chocante, e não raro

    inconstitucional24, conceber o catálogo dos impedimentos consignados no CPP como

    taxativamente esgotante. Parece, pois, que uma razão tão premente como a da boa

    administração da justiça penal e um leitura do regime legal conforme com o previsto noart. 32.º-5 da Constituição vivamente aconselham a que se integre, nesta parte, o CPP

     pela regulamentação contida no CPC e que se mostre em concreto aplicável; como

    aconselha ainda a que se interpretem o mais latamente possível os fundamentos

    referidos pelo art. 39.º do CPP25.

    1.1 Por força do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 39.º, está impedido de

    intervir no processo, seja em que fase for, o juiz que com o arguido, o ofendido ou

     pessoa com a faculdade de se constituir assistente26  ou parte civil tenha algum dos

    seguintes laços ou relações: seja ou tenha sido seu cônjuge; tenha ou haja tido uma

    23 L. OSÓRIO II 233, e agora Pinto de ALBUQUERQUE4 39.º/1, Sousa MENDES, Lições de DPP  113, e Ac. do STJde 07-07-2010 (in: Henriques GASPAR , CPP Comentado 152)

    24 Cf. o Ac. do TC 135/88, julgando inconstitucional uma proibição legal (do CPP de 1929) de declaração deimpedimento do juiz em ações penais por virtude de ofensas que lhe tenham sido feitas na sua presença e no exercíciodas suas funções.

    25 Assim, na vigência do CPP de 1929, Figueiredo  DIAS, DPP  317 s., e na atualidade, Henriques GASPAR , CPPComentado 39.º/5.

    26 A menos que uma das pessoas enunciadas em texto se haja constituído assistente nos termos do art. 68.º-1, e),a mera faculdade de aquisição do estatuto de assistente ao abrigo dessa disposição não vale para efeitos do previstonas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 39.º

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    relação análoga à dos cônjuges; seja seu representante legal; seja, ele, ou o seu cônjuge

    ou equiparado, ascendente, descendente, parente até ao 3.º grau, tutor ou curador,

    adotante ou adotado. Embora o Código o não determine explicitamente, é óbvio que, àsemelhança do que se prevê no art. 115.º-1, a), do CPC, existe impedimento também em

    relação ao juiz que seja, ele próprio, ofendido ou pessoa com a faculdade de se

    constituir assistente ou parte civil.

    Encontram-se igualmente impedidos de exercer funções no mesmo processo, seja

    na mesma fase, seja em fases distintas,  juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou

    afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges (art. 39.º-3).

    Uma vez mais, cremos que, não obstante o silêncio do Código, se justifica mobilizar o previsto no art. 115.º-1, d), do CPC27, e considerar impedido o juiz que esteja na mesma

    situação em relação a um magistrado do Ministério Público, a um defensor ou a um

    advogado do assistente ou da parte civil que intervenha ou haja intervindo no processo.

     Na verdade, ninguém compreenderia e seria motivo para uma profunda desconfiança

    sobre a realização da justiça no caso que um juiz conhecesse de uma acusação deduzida

     pelo seu cônjuge ou que num mesmo julgamento pai e filho interviessem como juiz e

    defensor 28

    ; o que, por si só, é justificação para que aquele impedimento previsto na lei processual civil seja subsidiariamente estendido ao processo penal.

    1.2  A mobilidade dos juristas entre os vários ofícios do foro pode levar a que

    alguém que, num primeiro momento, haja intervindo no processo como representante

    do Ministério Público, defensor, advogado do assistente, do ofendido ou de uma parte

    civil, órgão de polícia criminal29 ou perito, venha mais tarde, já na qualidade de juiz

    27 Nesta direção, Henriques GASPAR , CPP Comentado 39.º/5. Contra, remetendo a questão exclusivamente parao âmbito do art. 43.º, Marques da SILVA I7 213, e Pinto de ALBUQUERQUE4 39.º/7.

    28  Assim, o Ac. do STJ 31-12-2012 (944/07.9TAOAZ-A.S1). Considerando, porém, existir não umimpedimento, mas uma mera suspeição (art. 43.º) no caso em que a uma juíza é confiado um processo em que um seufilho atua como advogado dos assistentes, Ac. do STJ de 13-02-2013 (1475/11.8TAMTS.P1-A.S1). No mesmosentido, o Ac. do STJ de 08-01-2015 (6099/13.2TDPRT.P1-A.S1).

    29 Diferentemente do que entendeu o STJ parecem-nos configurar situações de impedimento do juiz, e não demera suspeição, o caso em que o juiz haja tido uma prévia participação no processo como Diretor Nacional Adjuntoda Polícia Judiciária consubstanciada, além do mais, na transmissão de uma instrução aos respetivos investigadoresno sentido de elaborarem um mapa detalhado das investigações até aí realizadas (Ac. de 03-10-2012, in: HenriquesGASPAR , CPP Comentado 150), bem como ainda o caso em que o juiz integrou um órgão de polícia criminal, tendo aítomado conhecimento de vários aspetos da investigação e determinado a realização de medidas cujos resultados são

     postos em crise no âmbito do recurso que lhe cumpre apreciar (Ac. de 02-04-2008, in:  Henriques GASPAR , CPPComentado 159). É patente a afinidade destas situações com a do leading case do TEDH Piersack c. Bélgica (01-10-1982).

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     penal, a receber esse mesmo processo em mãos. A evidente conotação desse juiz com

    algum desses participantes ou sujeitos processuais diretamente envolvidos no processo,

    a possibilidade de ser conhecedor de informação sigilosa respeitante a algum deles (v. g., coberta pelo segredo profissional que obriga o advogado  –  art. 87.º do EOA) ou a

    circunstância de já ter manifestado uma posição sobre a responsabilidade penal do

    arguido, mediante, por exemplo, a dedução de uma acusação pública por si subscrita,

    são razões mais do que suficientes para que um tal juiz esteja impedido de exercer

    qualquer função nesse mesmo processo, tal como se prevê na alínea c) do n.º 1 do art.

    39.º

    Por identidade de razão, e mediante aplicação subsidiária da alínea c) do n.º 1 doart. 115.º do CPC, será também de considerar-se impedido o juiz que, em momento

     processual anterior, haja emitido, como jurisconsulto, parecer jurídico dirigido ao

     processo sobre questão que depois seja chamado a decidir como juiz da causa.

    1.3  Suscitada com mais frequência e foco de considerável litigância na prática

     judiciária é a questão da intervenção no processo, como juiz de julgamento ou de

    recurso, de um magistrado judicial que, como juiz, teve já antes participação nesse

    mesmo processo, numa fase processual anterior ou até inclusivamente na mesma fase

     processual. É esse tipo de impedimento por participação prévia no processo  que

    encontramos regulado no art. 40.º, que se estende agora por cinco alíneas.

     Na sua versão originária, o art. 40.º limitava-se a prescrever que “nenhum juiz pode

    intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou

    em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório

    tiver presidido”. À semelhança do que ainda hoje sucede num sistema processual como

    o alemão30, fora do seu alcance ficavam as hipóteses em que um juiz recebesse um

     processo para julgamento depois de nele ter intervindo nas fases do inquérito ou mesmo

    da instrução e nelas se tivesse limitado à prática de atos jurisdicionais isolados (v. g., a

    autorização de uma busca domiciliária ou de uma escuta telefónica; a aplicação da

     prisão preventiva; a constituição de um ofendido como assistente; etc.). Na base deste

    regime legal estava a ideia de que tal tipo de prévia participação no processo está longe

    30 R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 8/5.

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    de que as intervenções do juiz, pela sua  frequência, intensidade ou relevância  sejam

    aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre a imparcialidade

    do juiz. Tal levou então a concluir que a imparcialidade para a realização do julgamentoficaria irremediavelmente comprometida naqueles casos em que, durante o inquérito, o

     juiz tivesse uma intervenção reiterada no processo, consubstanciada, primeiro, numa

    aplicação da prisão preventiva e, depois, na sua manutenção. Conclusão tirada através

    do estabelecimento de um equivocado paralelismo com o caso Hauschildt c. Dinamarca 

    apreciado pelo TEDH34 e de uma desconsideração tanto da função do juiz de instrução

    na nossa estrutura acusatória, como da tutela concedida à garantia de imparcialidade

     pelo regime das suspeições

    35

    .O certo é que esta errónea jurisprudência constitucional começou por implicar uma

    alteração legal ao art. 40.º, de forma a nele abranger os casos em que, durante o

    inquérito ou a instrução, o juiz (de julgamento) tivesse aplicado e posteriormente

    mantido a prisão preventiva do arguido36. As perplexidades levantadas por esta bizarra

    formulação legal37 levaram, por sua vez, a nova intervenção legislativa, em 2007, tendo

    o preceito sido novamente modificado em 2013, agora noutras vertentes, tudo sempre

    no sentido do alargamento da catálogo dos impedimentos por participação em processo. No termo deste sobressaltado percurso legislativo deparamos com cinco distintas

    circunstâncias que ditam o impedimento do juiz para intervir em julgamento, recurso ou

     pedido de revisão relativos a processo em que tiver :

    a)  

    Apl icado medida de coação pr evista nos ar ti gos 200.º a 202.º

    Tendo o juiz aplicado as medidas de coação de proibição e imposição de condutas

    (art. 200.º), de obrigação de permanência na habitação (201.º) ou de prisão preventiva

    34 Apesar de o TEDH ter declarado que do seu ponto de vista “o mero facto de um juiz de julgamento ou de um juiz de recurso, num sistema como o dinamarquês, ter tomado decisões em momentos anteriores ao julgamento docaso, não pode por si só justificar receios quanto à sua imparcialidade” (50.), só tendo concluído por uma violação dagarantia do tribunal imparcial inscrita no art. 6.º da CEDH após uma análise das vicissitudes do processo queenvolveu o cidadão Hauschildt , ao estilo de um recurso de amparo; foi essa jurisprudência prenhe de particularismosque o TC invocou para se pronunciar, em sede de fiscalização abstraca da constitucionalidade, no sentido dainconstitucionalidade do art. 40.º da versão originária do CPP!

    35 Neste sentido crítico, Figueiredo DIAS, RPCC  2/1998 207 ss., e Maria João A NTUNES, O segredo de justiça eo direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção,  Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias  1264s.41.

    36 Art. 1.º da Lei 59/98, mais tarde complementado pelo art. 134º da Lei 3/99  –  cf. Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 111 ss.

    37 Figueiredo DIAS, RPCC  2/1998 206 s.

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    (202.º) fica necessariamente impedido de conhecer da causa em julgamento, recurso ou

     pedido de revisão.

    Recordando-se a “história” do preceito, é patente a intenção de circunscrever o seu

    funcionamento aos casos de aplicação de uma daquelas medidas de coação, nele não

    estando portanto abrangidas as hipóteses em que o juiz se haja limitado a manter  uma

    dessas medidas após a sua aplicação por um outro magistrado38. O denominador comum

    das medidas especificadas pela alínea a)  do art. 40.º, não partilhado pelas demais

    medidas de coação (arts. 196.º a 199.º), é a exigência legal da verificação de  fortes

    indícios da prática do crime imputado para que possa haver lugar à sua aplicação. Terá

    considerado o legislador que um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz queas aplica um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios

    da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente

    capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido

    da condenação.

    Para além de esta premissa de que o legislador arranca nos parecer destituída de

    sentido, continuamos a confrontar-nos com um quadro teleologicamente contraditório e

    racionalmente insustentável39. Custa a entender que a ratio legis  se considere ausente

    em caso de manutenção, e não de aplicação, de alguma das medidas de coação

    constantes dos arts. 200.º a 202.º; ou, por exemplo, na hipótese de aplicação de uma

    caução não por inexistência de fortes indícios do crime imputado, mas porque o juiz

    concluiu que nenhuma daquelas medidas seria concretamente necessária para responder

    às exigências de natureza cautelar postas pelo caso. É ainda incompreensível a ausência

    de uma delimitação  –   como a introduzida pelo art. 134.º da Lei 3/99, mas

    inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP  –  de tal aplicação às fases doinquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica

    aberta a porta ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela

     primeira vez, aplica ao arguido uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200.º a

    202.º (v. g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da

    acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele

    38 Assim, a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X, que deu o mote à revisão de 2007 do CPP, e Rui

    PEREIRA, Entre o «garantismo» e o «securitarismo», Que Futuro Para o Direito Processual Penal? 2009 251. Pelanão inconstitucionalidade desta solução, Ac. do TC 29/99.

    39 Figueiredo DIAS, RPCC  2/1998 208 s.

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    exercidas sobre testemunhas do processo já na pendência da audiência de discussão e

     julgamento)40.

    b) Presidido a debate instru tór io

    Por definição, o juiz de instrução que preside ao debate instrutório é aquele que tem

    a seu cargo a prolação da decisão instrutória, com a qual se encerra a fase da instrução.

    Via de regra, competir-lhe-á proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia do

    arguido, aí conhecendo do objeto do processo e manifestando a sua posição sobre a

     probabilidade da condenação do arguido caso seja submetido a julgamento.

    Compreende-se, por isso, que a partir daí deixe de poder ser encarado como estando

    habilitado a intervir em condições de plena neutralidade e isenção nas fases

    subsequentes do processo, onde se joga diretamente a questão da condenação do

    arguido41.

    c) Participado em julgamento anterior

    A redação atual da alínea c) do art. 40.º parece ter pretendido substituir o segmento

    inicial da versão originária do preceito  –   “Nenhum juiz pode inter vir em recurso ou

     pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver

     participado” – , através do qual, por razões óbvias, se visava impedir que, em recurso,

    um tribunal ad quem integrasse um juiz que houvesse composto o tribunal a quo. Essa

     preocupação elementar mantém-se acautelada na versão vigente do preceito, da qual se

    depreende que não pode intervir no recurso o juiz que proferiu a decisão recorrida. Mas

    é agora patente –  até pelo paralelismo que pode traçar-se em relação à alínea d) e pelo

    que se prevê no art. 426.º-A42  –  que a alínea c) procura cobrir um espectro mais amplo

    de participações anteriores no processo, nomeadamente, a intervenção em julgamento

    de um juiz que haja participado em  julgamento anterior . Fá-lo, todavia, através de uma

    formulação com um significado literal tão lato que se transforma em fonte de

    40 Não restringindo, porém, o alcance do impedimento, e propondo assim um funcionamento da alínea a) do art.

    40.º na sua literalidade, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/4.41 Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA, CRP 4 I 522.42 Cf. a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X.

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    inarredáveis dúvidas e dificuldades, propiciando o aparecimento de posições

     jurisprudenciais totalmente desencontradas, como, sem surpresa, tem sucedido.

    A reedição de um julgamento pode ser fruto de um sem número de vicissitudes.

    Casos haverá em que a intervenção anterior do juiz não é sequer idónea a suscitar

    dúvidas sobre a sua capacidade para decidir de forma isenta no novo julgamento (v. g.,

    na pendência de uma audiência de julgamento, o juiz declara prescrito o procedimento

    criminal, vindo essa sua decisão a ser posteriormente revogada pela Relação, que impõe

    um conhecimento do mérito da causa43).

    Como também será de admitir que um juiz possa ser confrontado com a

    contingência de voltar a intervir no julgamento de uma causa em que inclusivamente já

    tomou posição expressa sobre o objeto do processo. Será assim sempre que, em recurso,

    um tribunal superior determine o reenvio do processo à 1.ª instância, com fundamento

    em vício processual relativo à audiência ou à sentença. E todavia, em algumas dessas

    situações parece-nos impensável, porque materialmente injustificado e incompatível

    com a lógica da sanação dos vícios processuais, considerar impedido(s) o(s) juiz(es) que

    integrou(aram) o tribunal recorrido (v. g., em caso de anulação da sentença por vício de

    fundamentação, por omissão de pronúncia, para que seja dado cumprimento ao previsto

    no art. 358.º-1, etc.44; ou de nulidade do julgamento em virtude de insuficiência para a

    decisão da matéria de facto provada45 ou de omissão de diligências essenciais para a

    descoberta da verdade, que impliquem uma específica produção  de prova em 1.ª

    instância46, com subsequente elaboração de nova sentença).

    Deste modo, numa compreensão teleológica da norma que atenda à ratio  de

    salvaguarda da imparcialidade47 que lhe deve estar subjacente e a compatibilize com a

    necessidade de garantir a harmonia dos atos do processo entre si correlacionados,

     parece-nos que deve ela ser interpretada restritivamente no sentido de apenas levar ao

    impedimento do juiz de 1.ª instância que depois de, em sentença, ter conhecido do

    43 Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/13.44 Henriques GASPAR , CPP Comentado 40.º/4, e Ac. do TRC de 04-12-2013 (878/07.7TACBR-B.C1)45 Contra, Ac. do TRP de 26-11-2008 (0845184).46 Ac. do TC 167/2007.47 Lapidar, o Ac. do TC 147/2011, concluindo não existir inconstitucionalidade na possibilidade de o juiz que

    tenha participado em acórdão que conheceu do mérito do recurso, mas declarado nulo por inobservância de regra

     processual, não ficar impedido de intervir na audiência destinada a julgar o mérito desse recurso. Nesta linha, ainda, oTEDH, v. g., no caso Thomann c. Suíça  (10-06-1996)  –   para mais referências, GUINCHARD /  BUISSON4  418., eR ENUCCI4 302.

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    mérito da causa seja confrontado com um cenário de repetição integral  da audiência de

    discussão e julgamento48. Nada que, em todo o caso, deixe desprotegida a garantia de

    imparcialidade, que sempre contará com a tutela oferecida pelo regime das suspeições(art. 43.º), aliás, muito mais adequado à abordagem casuística que este específico

    domínio aconselha49.

    d) Profer ido ou parti cipado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido,

    a f inal , do obj eto do processo, de decisão instr utóri a ou de decisão a que se refere a

    alínea a), ou proferido ou par ti cipado em decisão de pedido de revisão anterior

    À semelhança do que se prevê na alínea c), esta alínea d)  começa por dirigir-se

    àquelas situações em que um juiz de um tribunal superior deva decidir, em recurso,

    questão relativa a um processo com que já teve contacto em recurso anterior , tenha este

    recurso incidido i) sobre o mérito do decidido, a final, na 1.ª ou na 2.ª instância, quanto

    ao objeto da causa, ii) sobre a decisão instrutória ou iii)  sobre a aplicação de uma das

    medidas de coação previstas nos arts. 200.º a 202.º do CPP. Dirige-se ainda, em

    segundo lugar, aos casos em que um juiz tenha intervindo num recurso de revisão

    anterior (art. 449.º e ss.).

    Pela sua afinidade com a regulação das alíneas a) e c), voltam a suscitar-se aqui as

     perplexidades e as dificuldades a que estas dão azo, devendo quanto a esta alínea d) 

    adotar-se, mutatis mutandis, uma abordagem restritiva paralela àquela que

     preconizámos para tais alíneas. Assim, por exemplo, não há razão para que devam

    considerar-se impedidos os juízes da Relação que, conhecendo do objeto do processo,

    começaram por confirmar a condenação proferida pela 1.ª instância e depois se vêem de

    novo confrontados com a causa, na sequência de anulação do seu acórdão pelo STJ com

    fundamento em omissão de pronúncia ou de vício de fundamentação50.

    48  Ainda mais restritivo, o Ac. do TRP de 09-05-2013 (125/09.7GCPRG.P1): “Deve ser feita pelo mesmotribunal a repetição do julgamento ordenada na sequência da verificação de nulidade decorrente da deficientedocumentação da prova oral produzida em audiência”. Não divisando qualquer inconstitucionalidade nestainterpretação, já antes o Ac. do TC 399/2003. Repudiando, porém, uma abordagem restritiva, apesar de crítico do

    regime legal, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/12.49 GUINCHARD / BUISSON4 418., com amplas menções à jurisprudência francesa e do TEDH.50 Ac. do STJ de 27-06-2012 (127/10.0JABRG).

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    e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória

    ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta

    Introduzida na revisão de 2007 do CPP, esta última alínea do art. 40.º estabelece o

    impedimento do juiz em três hipóteses que podem colocar-se no encerramento do

    inquérito e que reclamam uma intervenção judicial. Embora o arquivamento em caso de

    dispensa de pena e a suspensão provisória do processo possam ser decretados também

    na fase da instrução (arts. 280.º-2 e 307.º-1, respetivamente), a sua eventual aplicação

    terá aí lugar na decisão instrutória, pelo juiz que presidiu ao debate instrutório, cujo

    impedimento decorre já diretamente da alínea b). A alínea e)  tem assim em vista

    intervenções prévias do juiz no âmbito da fase do inquérito, especificamente daquelasque se traduzam i) na recusa do arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280.º-

    1), ii) na recusa da suspensão provisória do processo (art. 281.º-1) ou iii) na recusa da

    forma sumaríssima do processo por discordância em relação à sanção proposta pelo

    Ministério Público (art. 395.º-1, c)).

    É de supor que o legislador de 2007 foi motivado pelo receio  –   a nosso ver, nem

    sempre fundado, em especial quando em causa esteja o arquivamento em caso de

    dispensa de pena e a suspensão provisória do processo, atenta a natureza da decisão

     judicial que aí deve ser tomada51  –   de que qualquer uma daquelas três intervenções

    implica por si só uma desconfiança tal sobre a capacidade do juiz respetivo para julgar a

    causa de modo imparcial que se justifica afastá-lo das fases do julgamento e do recurso

    que possam seguir-se. Mas se assim for, ficam por perceber as razões que terão levado o

    legislador a não englobar no impedimento situações afins porventura mais suscetíveis

    de gerar um tal temor do que as previstas legalmente. Estamos a pensar, nomeadamente,

    nos casos em que, no fim do inquérito, o juiz dá a sua concordância à suspensão provisória do processo, sendo depois esta revogada e o processo remetido para

     julgamento nos termos do art. 282.º-4; ou em que, em processo sumaríssimo, o juiz dá o

    seu acordo à condenação, mediante aplicação da sanção proposta pelo Ministério

    Público (art. 396.º-1), havendo, porém, depois, oposição do arguido, com reenvio dos

    autos para outra forma processual (art. 398.º-1)52. Não que entendamos que nestas

    51  Numa linha crítica, também Pinto de   ALBUQUERQUE4  40.º/17; e em direção contrária, Mouraz LOPES,  A

    Tutela da Imparcialidade Endoprocessual  162 ss.52  Pedro Soares de ALBERGARIA, Os processos especiais na revisão de 2007 do Código de Processo Penal,

     RPCC  4/2008 503.

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    hipóteses exista sempre necessariamente uma suspeição de tal modo forte que se

     justifique a sua previsão como impedimento53. O que repudiamos é a falta de lógica

    interna da solução adotada pelo legislador.

    1.4 Independentemente da fase em que o processo se encontre, está impedido o juiz

    que nele tenha sido ouvido como testemunha ou deva vir a sê-lo (art. 39.º-1, d)). Em

     princípio, tal acontece quando o próprio juiz possui conhecimento direto de factos que

    constituam objeto da prova a realizar no processo (arts. 124.º-1 e 128.º-1), o que pode

    comprometer irremediavelmente a sua capacidade para conhecer da causa sem um juízo

     prévio sobre o sentido da decisão a tomar, assim ficando imediatamente em risco a

    garantia de imparcialidade. Com o impedimento, dá-se ainda satisfação, de forma

    mediata, à finalidade de descoberta da verdade material, já que sem o afastamento do

     juiz poderia frustrar-se a produção de prova ( sc., o depoimento testemunhal do juiz)

    com relevo para um cabal esclarecimento da causa.

    Trata-se, não obstante, de um impedimento particularmente vulnerável a

    instrumentalizações pelos vários sujeitos processuais, que, na ausência de um

    mecanismo de salvaguarda, poderiam usar do expediente da indicação como testemunha

    de um juiz indesejado para assim conseguir o seu afastamento do processo. A fim de

    obstar a tal manobra fraudulenta, prevê o n.º 2 do art. 39.º que se o juiz tiver sido

    oferecido como testemunha, declara, sob compromisso de honra, por despacho nos

    autos, se tem conhecimento de factos que possam influir na decisão da causa  –  em caso

    afirmativo, verifica-se o impedimento; em caso negativo deixa de ser testemunha.

    2.  Os impedimentos devem ser, a todo o tempo e logo que conhecidos,

    oficiosamente declarados pelo juiz (iudex inhabilis),  por despacho nos autos (art. 41.º-

    1). Quando o não sejam, deve o Ministério Público requerer a sua declaração, podendo

    53  Assim também, quanto ao processo sumaríssimo, o Ac. do TC 444/2012, em termos, porém, por demais

    discutíveis quanto à natureza da decisão judicial de aceitação ou rejeição do requerimento para condenação em processo sumaríssimo (Nuno BRANDÃO, Acordos sobre a sentença penal: problemas e vias de solução,  Julgar   25 2015 177 s.). Aí pugnando, no entanto, pela inconstitucionalidade, Pinto de  ALBUQUERQUE4 40.º/18.

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    também requerê-la o arguido, o assistente e as partes civis logo que sejam admitidos a

    intervir no processo, em qualquer estado deste54.

    Sendo o impedimento reconhecido, oficiosamente ou a requerimento, é irrecorrível

    o despacho que o declarar (art. 42.º-1, I)55. Não o sendo, pode ser interposto recurso

     para o tribunal imediatamente superior (art. 42.º-1, II), o qual tem efeito suspensivo do

     processo, podendo no entanto praticar-se os atos urgentes cuja demora possa trazer

     prejuízo irreparável (art. 42.º-3). Vindo o impedimento a ser afirmado, logo pelo juiz

    impedido ou em recurso, são nulos os atos por aquele praticados, salvo se não puderem

    ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da

    decisão do processo (art. 41.º-3), devendo o processo ser imediatamente remetido ao juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-lo (art. 46.º).

    III. Suspeições

    1. A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada não apenas pela

    categoria dos impedimentos, como ainda também, complementarmente, pelo instituto

    das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (arts. 43.º a 45.º).A recusa é uma suspeição oposta à intervenção do juiz pelo Ministério Público, pelo

    arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43.º-3). Não estando o juiz autorizado

    a recusar-se a si próprio, declarando-se voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante,

    conferida a possibilidade de suscitar perante outro tribunal a suspeição que admite que

     possa recair sobre si, para assim ser dispensado de intervir no processo –  uma suspeição

    que a lei qualifica como escusa (art. 43.º-4).

    54 A letra do n.º 2 do art. 41.º  –  em especial o seu segmento “logo que” –  e o receio da utilização desleal edilatória da figura dos impedimentos vêm sendo indevidamente invocados por alguma doutrina (Pinto de  ALBUQUERQUE4  42.º/1) e jurisprudência (Ac. do STJ de 28-09-2011, 5/05.5TELSB, na esteira daquele A.) parasustentar a imposição de um prazo perentório de 10 dias para a apresentação do requerimento de declaração doimpedimento pelo arguido, assistente ou partes civis, contado desde o momento da sua admissão à intervenção no processo ou do conhecimento do facto determinante do impedimento. Estando em causa circunstância em princípiotão comprometedora da imparcialidade do juiz que justifica a sua qualificação legal como impedimento, não secompreende a imposição de tal constrangimento temporal. Pois se ele realmente se verifica, pode e deve ser a todo o

    tempo declarado pelo próprio juiz impedido, mesmo oficiosamente; e caso não se verifique, bastará ao juiz visadonão o reconhecer.

    55 Diversamente, Pinto de ALBUQUERQUE4 42.º/1.

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    uma ótica objetiva. Na primeira vertente, deve averiguar-se se o juiz tem algo contra o

    arguido ou expressa uma predisposição no sentido da sua condenação (“ personal bias”),

    devendo a sua imparcialidade pessoal ser presumida até prova em contrário59

    . Aindaque não haja motivo para censurar o juiz quanto à sua imparcialidade, importa ainda, em

    todo o caso, averiguar se há “alguma razão legítima que faça temer uma falta de

    imparcialidade”60.

     Na interpretação e aplicação da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência

    nacional tem, com razão, adotado um crivo particularmente exigente e apertado, que,

    além do mais, atende à “quebra simbólica na confiança que decorre da dúvida sobre a

    consistência do valor”61 da imparcialidade. Estando em causa o princípio do juiz naturale a eficiência do funcionamento do sistema processual penal, não é qualquer dúvida que

     possa eventualmente ser oposta em relação às condições do juiz para exercer a sua

    função de modo isento e imparcial que, sem mais, deve ditar o seu afastamento. Como

     prevê o n.º 1 do art. 43.º, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e

    grave. Numa análise casuística da nossa experiência jurisprudencial nesta matéria é

     possível identificar várias constelações de suspeições que recorrentemente são

    submetidas à apreciação dos nossos tribunais superiores.

    a) Muito frequente é a suscitação da recusa e sobretudo da escusa com fundamento

    no relacionamento do juiz com outros sujeitos ou participantes processuais ou seus

     familiares.

    A existência de uma amizade entre o juiz e o arguido ou o assistente é, via de regra,

    considerada razão adequada a gerar desconfiança sobre a sua isenção62. Já o mesmo não

    sucederá, como é evidente, naqueles casos em que o interveniente é um familiar

     próximo de um amigo do juiz63. Ainda que o juiz não tenha um relação de amizade com

    um sujeito processual, se com ele manteve contactos a propósito do processo e lhe

    59 Esta presunção  –  afirmada pelo TEDH logo no caso  Piersack c. Bélgica (30.) e depois reiterada, v. g., nosarestos dos casos De Cubber c. Bélgica (25.) e Hauschildt c. Dinamarca (47.) –  implica que é ao arguido que cumpredemonstrar, através de elementos concretos, a falta de imparcialidade pessoal do juiz.

    60  Piersack c. Bélgica (30.), seguido e desenvolvido em Hauschildt c. Dinamarca (48. ss.).61 Henriques GASPAR , CPP Comentado 43.º/2.62  Acs. do STJ de 18-01-2007 (07P163), 05-07-2007 (07P2565), 07-05-2008 (08P1526) e 29-04-2015

    (4914/12.7TDLSB.G1-B.S1). Cf., todavia, o Ac. do STJ de 15-11-2012 (947/12.1TABRG-A.S1).63 Ac. do STJ de 23-09-2009 (532/09.5YFLSB).

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     prestou aconselhamento isso será, em princípio, suficiente para que não permaneça

    nesse processo64.

    Situações de inimizade ou de litigiosidade que envolvam o juiz e um advogado65 do

     processo ou algum outro sujeito processual também não serão, em geral, motivo para

    implicar o afastamento daquele66, sendo este, em todo o caso, um campo onde se impõe

    uma particular cautela na avaliação das atitudes e comportamentos do próprio juiz na

    contenda67. Certo é que um comportamento unilateral  hostil ou de desrespeito de algum

    sujeito para com o juiz não é justificação para afirmar a suspeição deste, já que se assim

    não fosse a participação do juiz no processo acabaria sempre por ficar nas mãos dos

    demais sujeitos processuais68.

     b) A suspeição pode assentar em atos praticados pelo juiz no processo que lhe está

    confiado, em declarações que sobre ele produza ou ainda em processos que com aquele

     guardem algum tipo de conexão.

    Podem reconduzir-se a suspeições desta ordem tanto intervenções judiciais

    objetivamente insuscetíveis de qualquer reparo, como comportamentos merecedores decensura que o juiz tenha para com algum dos sujeitos processuais. É seguro, em todo o

    caso, que a simples discordância jurídica, mesmo que reiterada, de um sujeito

     processual em relação a atos ou decisões do juiz não é idónea a determinar a suspeição

    deste69.

    A intervenção do juiz em fases anteriores do processo que não seja motivo para

    implicar o seu impedimento nos termos do art. 40.º pode constituir fundamento para a

    afirmação da suspeição (art. 43.º-2). Ponto é que se tenha tratado de uma atuação que possa gerar uma dúvida ponderosa e objetivamente fundada sobre a capacidade do juiz

     para decidir de modo isento ou sem uma pré-compreensão sobre a imputação que é

    dirigida ao arguido. A questão colocar-se-á com maior acuidade naqueles casos em que

    64 Acs. do STJ de 20-10-2010 (140/10.8YFLSB) e de 05-12-2012 (1454/12.8PAALM-A.L1-A.S1).65 Ac. do TC 227/97 e Ac. do STJ de 15-09-2010 (133/10.5YFLSB).66 Ac. do STJ de 28-06-2006 (06P1937). Vd. ainda o Ac. do TRP de 17-03-2010 (2/07.6GAAMT).67  Cf. novamente o Ac. do STJ de 15-09-2010 (133/10.5YFLSB) e ainda o Ac. do STJ de 07-04-2010

    (1257/09.TDLSB.L1-A.S1).68 Ac. do TRL de 30-05-2001 (0096383).69 Acs. do STJ de 13-06-2001 (3914/01) e de 27-07-2006 (06P2554) e ainda, embora num processo não penal, o

    Ac. do TC 64/2010.

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     possa recear-se que determinadas decisões tomadas pelo juiz numa fase anterior do

     processo revelem, pelo seu concreto conteúdo, uma dúvida séria sobre a existência de

    uma predisposição sobre o sentido da decisão que deverá proferir no encerramento dafase processual em que intervém. Uma ponderação que não tem de cingir-se às fases do

     julgamento e do recurso, sendo também admissível na instrução, relativamente a um

     juiz de instrução que receba o processo nessa fase processual depois de ter atuado como

     juiz de instrução no inquérito70.

    Isto que vale para situações em que a competência seja deferida a um juiz que teve

    uma participação em fase anterior do processo, vale no essencial também, e ainda por

    força do n.º 2 do art. 43.º, para aqueles casos em o juiz interveio noutro processo, penalou não71, que tenha tido por objeto a mesma factualidade72  ou uma factualidade

    diretamente relacionada com a do seu (novo) processo, em especial se se tratar de

     processos que admitiriam o estabelecimento de uma conexão processual (cf. art. 24.º-

    1)73. Poderá ser este ainda o caso de o novo processo respeitar a factos ( v. g., uma

    falsidade de testemunho) ocorridos num processo dirigido pelo juiz em questão74.

    A conduta do juiz no decurso dos atos processuais  que conduz pode gerar

    suspeição se revelar uma perda da equidistância que deve caracterizar o exercício da

    função judicial.

    De tal não se poderá falar se o juiz, em cumprimento do seu poder-dever de

    investigação do feito submetido à sua apreciação (art. 340.º-1), toma a iniciativa de

     promover diligências probatórias que aparentem ser vantajosas para os interesses de

    algum dos sujeitos processuais. Também não haverá motivo para suspeição se, no

    decurso de uma tomada de declarações em julgamento, o juiz verbaliza dúvidas sobre a

    congruência ou a fidedignidade do relato que é apresentado pelo depoente75, sem

     prejuízo, naturalmente, da contenção e sobriedade que deve colocar nessas observações.

    70 Admitindo esta possibilidade, mas negando a recusa no caso submetido à sua apreciação, o Ac. do TRC de16-01-2008 (18/06.0PELRA).

    71 Ac. do TRE de 06-03-2012 (17/12.2YEVR).72 Acs. do TRL de 30-03-2006 (1941/2006-9) e 07-07-2009 (2110/03.3TALSB-5).73 Cf. infra, § 3., VI.74 Acs. do TRP de 23-05-2007 (0712825), de 09-07-2008 (0843611), de 15-12-2010 (1130/09.9TAVNG-A.P1)

    e de 23-02-2011 (5136/10.7TAVNG-A.P1). Por uma consideração restritiva destes casos, o Ac. do TRE de 20-12-2011 (0712825).

    75 Ac. do TRG de 20-03-2006 (458/06-2).

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    Se, no entanto, o juiz vai mais longe e dá antecipadamente mostras de uma

    inclinação  para decidir o pleito em determinado sentido tal será justificação para

    considerar comprometida a sua imparcialidade76

    . Suspeição que poderá ser afirmadanão apenas quando tal ocorra no âmbito de um ato processual, mas igualmente quando

    suceda à margem do processo, por exemplo, e sem prejuízo da concomitante existência

    de infração ao dever de reserva (art. 12.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, Lei

    21/85), pronunciando-se publicamente sobre o caso num órgão de comunicação social77.

    A demonstração de que na direção dos atos processuais o juiz concede um tratamento

    injustificada e arbitrariamente diferenciado a um sujeito processual, privilegiando-o ou

     prejudicando-o em relação aos demais, implica também a sua suspeição.

    2. O requerimento de recusa e o pedido de escusa devem ser apresentados, dentro

    dos prazos definidos no art. 44.º, perante o tribunal imediatamente superior àquele que é

    integrado pelo juiz em causa ou perante a secção criminal do STJ, tratando-se de juiz a

    ele pertencente (art. 45.º-1). Tratando-se de uma recusa, é ouvido o juiz visado (44.º-3)

    e deve o incidente ser decidido no prazo máximo de 30 dias sobre a sua apresentação

    (44.º-5), sendo tal decisão irrecorrível (44.º-6). No caso de ser declarada a suspeição, o

     juiz recusado ou escusado remete de imediato o processo ao juiz que deva substituí-lo

    (art. 46.º).

    76 Para vários exemplos, Pinto de ALBUQUERQUE4 43.º/14 e R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 8/8.77 Acs. do TEDH Buscemi c. Itália (16-09-1999) 68 e Lavents c. Letónia (28-11-2002) 117 ss.

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    § 3. A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM MATÉRIA PENAL 

    I. O princípio do “juiz natural” 

    1.  O  princípio da legalidade em matéria penal não vincula apenas à legalidade

    incriminatória e sancionatória (sem recurso à analogia) e à anterioridade da lei, mas

    alcança toda a chamada “matéria penal”, ou seja, também as normas aplicáveis à

    fixação concreta de um facto definido como criminoso e à determinação da sanção

    cominada; em suma, abrange também a legalidade da “repressão penal” e, portanto, do

     processo para aplicação de uma pena78.

    Daí que desde há muito se tenha considerado, com inteira razão, como puro

    corolário daquela exigência de legalidade a afirmação do princípio do “juiz natural” ou

    do “juiz legal”79 ,  através do qual se procura sancionar, de forma expressa, o direito

     fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como

    competente mediante aplicação de critérios objetivos legalmente determinados e não ad

    hoc  criado ou tido como competente. O que por ele se pretende fundamentalmente

     proibir é, assim, a criação  post factum de um juiz para uma determinada causa, ou a

     possibilidade de se determinar de forma arbitrária ou discricionária o juiz competente. 

     Princípio que encontra expressão no art. 32.º-9 da CRP: “Nenhuma causa pode ser

     subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”80. A tanto vincula

    a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à ordenação da administração da

     justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da

    comunidade naquela administração81.

    Retomando uma experiência já feita pela Inglaterra, desde a Magna Carta de 1215 à  Petition of Rights  de 1628, e pelos EUA com as primeiras Cartas Constitucionais de 1776, a França, saída daRevolução, logo em 1790 incluía de forma inequívoca, na lei da nova organização judiciária, o direitofundamental do cidadão a ser julgado por juízes que oferecessem as mais sólidas garantias: “A ordem

    78  Assim, logo Figueiredo Dias,  DPP   94 ss.; e agora, de novo, Figueiredo DIAS  / Nuno BRANDÃO,Irrecorribilidade para o STJ: redução teleológica permitida ou analogia proibida?,  RPCC   4/2010 634 ss., com aconcordância do TC (Ac. 324/2013, 4.).

    79 A primeira designação é a corrente nos direitos francês e italiano, a segunda no alemão.80  Cf. Figueiredo DIAS, Sobre o princípio jurídico-constitucional do «juiz-natural»,  RLJ   111 1978 83 ss., e

    Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 525.81 Aspetos salientados pelo Ac. do TC 614/2003.

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    constitucional das jurisdições  –   dizia a lei  –   não poderá ser subvertida nem os imputados poderão sersubtraídos aos seus juízes naturais...”82.

    Desde então o princípio aparece quase sempre incluído nas Constituições próprias dos Estados de

    Direito. Na Sardenha, logo o Statuto de Carlos Alberto (1848) afirmava no seu art. 71.º: “Ninguém podeser subtraído aos seus juízes naturais. Não poderão, por isso, ser criados tribunais ou comissõesextraordinárias”. Por seu lado a atual Constituição italiana, no mesmo art. 25.º em que consagra o

     princípio da legalidade, e o coloca portanto entre os direitos fundamentais do cidadão, prescreve:“Ninguém poderá ser afastado do juiz natural pré constituído por lei”. Idêntica norma se encontra na leifundamental da Alemanha Federal, onde estatui o art. 101.º-1: “Não pode ser instituída uma jurisdição deexceção. Ninguém deve ser subtraído ao seu juiz legal”. 

    A ideia do “juiz natural” esteve igualmente presente, durante mais de 100 anos, na tradição jurídico-constitucional portuguesa do princípio da legalidade. Logo o art. 9.º, 2.ª parte, da Constituição de1822 se devia compreender, na verdade, como sugerindo o princípio do juiz natural 83. Ele aparece porém,com toda a clareza, no art. 145.º da Carta de 1826: o § 10.º dispõe que “ninguém será sentenciado senão

     pela Autoridade competente, por virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita”; e consequentementedetermina o § 11.º que “será mantida a independência do Poder Judicial. Nenhuma Autoridade poderáavocar as causas pendentes, sustá-las ou fazer reviver os processos findos”. E se a expressão do princípiose amortece no art. 18.º da Constituição de 183884, surge de novo a plena luz no art. 3.º-21 daConstituição de 1911: “Ninguém será sentenciado senão pela Autoridade competente, por virtude de leianterior e na forma por ela prescrita”. Inexplicavelmente, o princípio do juiz natural não aparecia inscritona Constituição de 1933, numa quebra da nossa tradição de todo em todo injustificável85. A tradição foiretomada com a atual Constituição, que, como referimos, prevê que “nenhuma causa pode ser subtraídaao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior ” (art. 32.º-9), deste modo concedendoautónomo e direto relevo ao princípio do juiz natural.

    2.  O princípio do juiz natural impõe, antes de mais, que a definição do juiz

    competente resulte da lei. No plano da fonte, com efeito, só a lei  pode instituir o juiz e

    fixar-lhe a competência. Neste sentido, em concretização do princípio, estipula o art.

    10.º que “a competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada

     pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização

     judiciária”.

    Esta dimensão, dita  positiva86, do princípio do juiz legal abrange não só as regras

    legais propriamente ditas com relevo para a determinação da competência, como

    também ainda eventuais regulamentos, regimentos, etc., complementares, emanados

     pelo próprio sistema judiciário de que a mesma esteja dependente. Todas essas

    82 Cf. depois a Constituição de 1791, cap. V, art. 4.º; a Carta de 1830, art. 52; a Constituição de 1848, art. 4.º; aConstituição de 1852, arts. 1 e 56.

    83 Era o seguinte o seu texto: “A lei é igual para todos. Não se devem porta nto tolerar privilégios do foro nascausas… crimes. Esta disposição não compreende as causas que pela sua natureza pertencerem a juízes particulares,na conformidade das leis”. 

    84  Cujo texto rezava: “Ninguém será julgado senão pela autoridade competente, ne m punido senão por lei

    anterior”. 85 Cf. Figueiredo DIAS, DPP  325 ss.86 Ac. do TC 614/2003 11.

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     prescrições devem possuir natureza geral e abstrata, de modo a evitar a manipulação da

    fixação da competência relativamente a certos casos ou pessoas. Um receio que,

    tradicionalmente, era sentido sobretudo em relação ao poder executivo87

    , mas que é hojeacompanhado por preocupações voltadas para o interior do próprio poder judiciário88.

    A esta vinculação a uma ordem taxativa de competência  legalmente determinada

    encontra-se associada, numa dimensão negativa, um conjunto de proibições de variada

    ordem, fundadas essencialmente na proscrição da arbitrariedade ou mesmo da

    discricionariedade no ato de fixação da competência89. Designadamente, a proibição de

     jurisdições de exceção, isto é, jurisdições ad hoc criadas para decidir um caso concreto

    ou um determinado grupo de casos, com quebra das regras gerais de competência; bemcomo a proibição terminante do desaforamento de qualquer causa criminal e da sua

    suspensão discricionária  por qualquer autoridade; e ainda inclusive, segundo o art.

    209.º-4 da CRP, a proibição da existência de tribunais com competência exclusiva para

    o julgamento de certas categorias de crimes90.

    Dilucidado o sentido material do princípio do juiz legal, importa ainda precisar o

    seu alcance temporal e os juízes penais a que se dirige.

    3. Devendo a competência ser definida de modo geral e abstrato, questão é saber

    quando o deve ser. Estando o princípio do juiz natural diretamente ligado ao princípio

    da legalidade criminal, poderia porventura pensar-se que o ponto de referência temporal

    deveria ser, em observância da proibição de retroatividade inerente ao nullum crimen

     sine lege, o momento da prática do facto91. Uma ideia que poderia ainda ser sugerida

     pelo teor literal do art. 32.º-9 da CRP, na parte em que faz referência à fixação da

    competência por “lei anterior”. Não deve ser esta, porém, a amplitude temporal a

    87 Figueiredo DIAS, RLJ  111 1976 83 s.88 Assim, a jurisprudência constitucional alemã citada pelo Ac. do TC 614/2003 (9.); e Henriques GASPAR , CPP

    Comentado 10.º/3.89  Como veremos infra (III., 3.3), é a existência de um critério objetivo  e suficientemente determinado de

    deferição (concreta) de competência, assim afastando a possibilidade de fixação arbitrária ou discricionária dacompetência do juiz de julgamento pelo Ministério Público, que põe o art. 16.º-3 a salvo de inconstitucionalidade porviolação do princípio do juiz natural.

    90  Integrando também o art. 209.º-4 da CRP na compreensão do princípio do juiz legal, Marques da S ILVA  /Henrique SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada  I2  738. Em sentido oposto, pela generalidade da doutrina

    alemã, em função do disposto no art. 101.º-2 da GG (“Tribunais para matérias especiais só podem ser estabelecidosmediante previsão legal”), VOLK / E NGLÄNDER 8 § 5 3.

    91 Nesta conclusão, Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA I4 525.

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    conceder ao princípio do juiz legal. Do que nele se trata, como vimos, é de prevenir que

    as regras gerais de competência sejam desvirtuadas por intervenções arbitrárias ad hoc 

    que desviem o processo do juiz a quem deveria ser distribuído. Uma teleologia que nãoresulta comprometida pela possibilidade de a competência vir a ser regulada por normas

     posteriores à prática do facto; obstando apenas a tal, mas também sempre, que a

    atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc  (isto é, de

    exceção), ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa

     penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o

    direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial92. De outro modo,

    aliás, em face das inultrapassáveis dificuldades que um princípio do juiz natural levadoàquele extremo levantaria, cairiam por terra quaisquer pretensões de reforma da

    organização judiciária, com o inerente risco de fossilização do sistema processual.

    4. Destinatários do princípio do juiz natural são todos os juízes penais, em todas as

     fases processuais93. Embora o texto do art. 32.º-9 da CRP possa abrir a porta a um

    entendimento restritivo que circunscreva o funcionamento do princípio às fases do

     julgamento e do recurso94, as razões que justificam a sua existência, maxime  a

    necessidade de garantir a independência e a isenção do juiz e a confiança da

    comunidade na realização da justiça penal, valem por inteiro nas fases preliminares do

    inquérito e da instrução. Também nestas é reservada ao juiz de instrução a prática de

    atos materialmente jurisdicionais, atenta a sua imediata relevância para a esfera dos

    direitos de liberdade das pessoas atingidas, pelo que não se compreenderia que a

    competência do juiz (de instrução) escapasse aí aos ditames do princípio do juiz legal.

    II. A competência penal e as suas espécies

    1.  Dissemos que o princípio do “juiz natural” visa, entre outras finalidades,

    estabelecer uma organização fixa dos tribunais, cujo conhecimento detalhado pertence

    não tanto propriamente ao direito processual penal, quanto ao direito judiciário. Essa

    92 Nestes exatos termos, Figueiredo DIAS, RLJ  111 1976 86, Pinto de ALBUQUERQUE4 4.º/12, Marques da SILVA / Henrique SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 739; e o TC, v. g., nos Acs. 393/89 e 614/2003.

    93 Por isso, Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 525 falam num “princípio dos juízes legais”. Vd. ainda osAcs. do TC 614/2003 (12.) e 482/2014 (32.); e na doutrina Figueiredo DIAS, RLJ  111 1976 833.

    94 Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais… 18. 

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    organização não será aqui, pois, objeto de análise expressa, nem no que toca ao sistema

    constituído –  que se encontra essencialmente na LOSJ que nos rege  – , nem aos difíceis

     problemas de política legislativa que suscita95

    .

    Simplesmente, uma tal organização fixa dos tribunais não é ainda condição bastante

     para dar à administração da justiça  –   hoc sensu, à jurisdição96   –   a ordenação

    indispensável que permita determinar, relativamente a um caso concreto, qual o tribunal

    a que, segundo a sua espécie, deve ser entregue e qual, dentre os tribunais da mesma

    espécie, deve concretamente ser chamado a decidi-lo. A falta de uma tal ordenação

    conduziria fatalmente à confusão na divisão da jurisdição, a inconvenientes conflitos

    entre os tribunais e, consequentemente, a prejuízos irreparáveis tanto para os arguidoscomo, em geral, para a administração da justiça penal.

    Torna-se, deste ponto de vista, absolutamente necessário que a referida organização

     judicial vá até ao ponto de regulamentar o âmbito de atuação de cada tribunal , de modo

    a que cada caso penal concreto seja apenas deferido a um único tribunal 97: é nisto que

    se traduz a determinação da competência em processo penal.

    Cabe só anotar ainda que também esta determinação da competência vem a revelar-

    se como um postulado do princípio do “juiz natural”. Daí que a ordenação r espetiva

    deva ser alcançada por via geral e abstrata  –   e portanto legal  – , de modo a que o

    Ministério Público possa saber qual o tribunal a que deve dirigir-se e este saiba quais os

    casos que é chamado a resolver; tudo em ordem a excluir por completo a possibilidade

    de a acusação escolher o tribunal que lhe pareça mais favorável à decisão que dele

    espere (o denominado forum shopping ).

    2. A determinação em concreto do tribunal competente para o conhecimento e a

    decisão de um caso penal não é questão que possa ser respondida uno actu, antes

    implica a resposta a três perguntas estruturalmente diferentes98:

    95 Para uma perspetiva geral, António Vieira CURA, Curso de Organização Judiciária2 2014.96  Cf. Eduardo CORREIA,  Processo Criminal 276, Cavaleiro de FERREIRA  I 176 s., e Pedro CAEIRO,

     Fundamento, Conteúdo e Limites da Jurisdição Penal do Estado 2010.97 O que não prejudicará, é claro, a possibilidade de o mesmo “caso” (à luz do direito substantivo) dever ser

     sucessivamente apreciado por mais do que um tribunal, quer atendendo aos diversos graus de instância, quer à própria

    especialização de certos temas dentro do mesmo “caso” (v. g., o tribunal do facto e o tribunal de execução das penas).98 Cf. por todos G. BELLAVISTA, Competenza penale , NssDI  III 1957 68 e G. GUARNERI, Competenza penale ,

     EdD VIII 1961 100.

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    a)  Qual o tribunal que, segundo a sua espécie (v. g., instância central de

    competência especializada criminal; secção criminal ou secção de pequena

    criminalidade de instância local; tribunal do júri, tribunal coletivo ou tribunal singular;Tribunal da Relação; Supremo Tribunal de Justiça; etc.), deve conhecer de um caso

     penal de certa natureza (v. g., homicídio doloso, crime contra a autoridade pública,

    crime de discriminação racial ou de tortura, etc.)? Trata-se aqui do problema da

    determinação da competência material.

    b) Qual o tribunal que, entre os da mesma espécie materialmente competente para o

    caso, deve, segundo a sua localização no território, ser chamado para conhecer e decidir

    concretamente de um certo facto? É o problema da determinação da competênciaterritorial.

    c) A determinação da competência relativa aos dois índices apontados  –  material e

    territorial  –   é feita pela lei tendo em atenção o processamento do caso em  primeira

    instância. Há pois que responder ainda a uma terceira questão, qual é a de determinar o

    tribunal (ou tribunais) competente(s) para o desenvolvimento do processo ou de

    singulares atos processuais  fora da atividade cognitiva de primeira instância

    (competência hierárquica), ou  –   dentro da mesma instância  –   para certas fases da

     prossecução processual. E pois que a determinação desta espécie de competência se

    relaciona assim, primariamente, com a função jurisdicional a desempenhar pelos

    tribunais segundo a sua categoria, costuma a doutrina abrangê-la no designativo comum

    de competência funcional.

    As considerações que se seguem não visam fornecer uma panorâmica exaustiva de toda a repartiçãoda competência em processo penal99, mas apenas dos  princípios fundamentais da sua ordenação. E sãovárias –  e de vária ordem  –  as razões que justificam esta orientação: Em primeiro lugar, uma exposição

    sistemática esgotante da matéria levaria a uma extensão dificilmente suportável, demais sendo certo queteria de haver-se com temas específicos de organização judiciária que mal poderiam ser compreendidossem um seu expresso tratamento; razão têm pois aqueles autores que pretendem remeter grandes zonas do

     problema da competência processual (penal e civil) para as exposições sistemáticas de direito e deorganização judiciária. Em segundo lugar, a exposição detalhada da matéria reverte muitas vezes  –  sobretudo num direito processual penal como o português  –  a temas cujo tratamento exaustivo (ou pelomenos mais pormenorizado) melhor caberá noutro lugar, maxime  naquele em que se estudem asdiferentes formas de processo comum e especial: assim, v. g., o estudo in extenso da competência materialobrigaria a antecipar grande parte da matéria respeitante às formas de processo, enquanto o dacompetência funcional –  pois que, como dissemos, se põe também relativamente ao desenvolvimento desingulares atos processuais –  só pode verdadeiramente fazer-se a propósito da consideração de cada um

    99 Que pode encontrar-se, por exemplo, em Pinto de ALBUQUERQUE4 art. 10.º ss.

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    daqueles atos100 e importaria, de todo o modo, a antecipação de uma boa parte da matéria respeitante aosrecursos em processo penal.

    III. Competência material

    1.  De acordo com o que deixámos dito, designa-se por competência material

    “aquela parcela de jurisdição que é distribuída às diferentes espécies de tribunais, tendo

    em atenção a natureza das causas a resolver; de maneira que às particularidades

    decisivas na matéria ou na natureza dos assuntos a tratar correspondam órgãos

     jurisdicionais com uma organização e um formalismo que lhes sejam adequados”101.

    Trata-se pois aqui fundamentalmente de repartir as causas penais pelas diferentes

    espécies de tribunais penais de 1.ª instância102. 

    2. Para resolução deste problema oferecem-se ao legislador vários métodos ou vias

    de procedimento, que poderão ser usados alternativa ou cumulativamente:

    a) O chamado pela doutrina103 método de determinação abstrata da competência,

    através do qual se faz decorrer a competência material imediatamente ouincondicionalmente da lei. O legislador, utilizando este método, poderá alcançar a

    finalidade proposta ainda por duas vias diferentes: ou dá a cada tribunal competência

     para o conhecimento e decisão de certos tipos de crime (v. g., os crimes dolosos ou

    agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa ao

    tribunal coletivo, art. 14.º-2, a); os crimes contra a autoridade pública ao tribunal

    singular, art. 16.º-2, a); etc.); ou, não curando do singular tipo de crime, dá a cada

    tribunal competência para o conhecimento e decisão de crimes a que corresponda, emabstrato, uma pena até um certo máximo (v. g., os crimes puníveis com pena de prisão

    até 5 anos serão da competência do tribunal singular, os crimes com penas superiores

    serão da competência do tribunal coletivo).

    100 Assim também HENKEL2 § 27 III 1 in fine.101 Eduardo CORREIA, Processo Criminal  276 s.102  Circunscrevendo igualmente esta categoria aos tribunais de 1.ª instância, R OXIN /  SCHÜNEMANN28  § 6 2.

    Alargando-a, pelo contrário, a todas as fases processuais e assim imbricando-a com a competência funcional,Marques da SILVA I7 170 ss.

    103  Sobretudo germânica: cf. BOCKELMANN, Strafprozessuale Zuständigkeitsordnung und der gesetzlicheRichter, GA 1957 357 ss., HENKEL2 § 27 III 2, OEHLER , Der gesetzliche Richter und die Zuständigkeit in Strafsachen, ZStW  64 1952 292 ss., e R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 6/3.

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    Quando o legislador aponte para esta segunda via de determinação abstrata da

    competência e