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8/20/2019 Sujeitos Processuais Penais - O Tribunal 2015
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JORGE DE FIGUEIREDO DIAS
NUNO BRANDÃO
Sujeitos Processuais Penais:
O Tribunal
Texto de apoio ao estudo da unidadecurricular de Direito e Processo Penal doMestrado Forense da Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra
(2015/2016)
Coimbra
2015
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Este estudo toma por base o 1.º Capítulo (O Tribunal) da Parte II (Os Sujeitos
Processuais) da obra Direito Processual Penal publicada pelo primeiro subscritor em1974, procedendo-se à sua revisão e atualização.
O texto encontra-se disponível em https://apps.uc.pt/mypage/faculty/nbrandao/pt/003.
Coimbra, Novembro de 2015
Jorge de Figueiredo Dias
Nuno Brandão
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ÍNDICE
Abreviaturas ................................................................................................................................ 6
§ 1. Função e características do juiz penal ................................................................................ 7
§ 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições ................................................. 12 I. A garantia da imparcialidade ........................................................................................... 12
II. Impedimentos.................................................................................................................. 14
III. Suspeições ..................................................................................................................... 26
§ 3. A competência do tribunal em matéria penal .................................................................. 32
I. O princípio do “juiz natural” ............................................................................................ 32
II. A competência penal e as suas espécies ......................................................................... 35
III. Competência material .................................................................................................... 38
IV. Competência funcional .................................................................................................. 48
V. Competência territorial ................................................................................................... 50
VI. Conexão de processos e competência por conexão ....................................................... 55
VII. Verificação da incompetência ...................................................................................... 63
VIII. Conflitos de competência ........................................................................................... 65
Bibliografia ................................................................................................................................ 67
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ABREVIATURAS
AcsTC – Acórdãos do Tribunal Constitucional
BMJ – Boletim do Ministério da Justiça
BVerfGE – Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts
CEDH – Convenção Europeia dos Direitos Humanos
CEP – Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade
CJ – Coletânea de Jurisprudência
CJ STJ – Coletânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de JustiçaCRP – Constituição da República Portuguesa
CP – Código Penal
CPP – Código de Processo Penal
CRP – Constituição da República Portuguesa
DAR – Diário da Assembleia da República
DL – Decreto-Lei
DR – Diário da República
GA – Goltdammer’s Archiv für Strafrecht
GG – Grundgesetz (Lei Constitucional da República Federal da Alemanha)
LOSJ – Lei da Organização do Sistema Judiciário
NJW – Neue Juristische Wochenschrift
RIDP – Revue Internationale de Droit Pénal
RSC – Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé
RLJ – Revista de Legislação e Jurisprudência
RPCC – Revista Portuguesa de Ciência Criminal
StPO – Strafprozeβordnung (Código de Processo Penal alemão)
SASTJ – Sumários dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (www.stj.pt)
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
ZStW – Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft
Pertencem ao CPP os preceitos legais indicados em texto sem menção expressa do diploma a que se referem.
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§ 1. FUNÇÃO E CARACTERÍSTICAS DO JUIZ PENAL
1. De acordo com o n.º 1 do art. 202.º da Constituição, “os tribunais são os órgãos
de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”. No que
toca ao processo penal quer-se por este modo significar serem os tribunais os únicos
órgãos competentes para, como representantes da comunidade jurídica e do poder
oficial do Estado em que aquela se constitui, decidirem os casos jurídico-penais que
processualmente sejam levados à sua apreciação, aplicando o direito penal substantivo
(arts. 27.º-2 e 202.º-2 da CRP). O domínio penal é mesmo o reduto por excelência do
“monopólio da primeira palavra” como manifestação da reserva absoluta de jurisdição1.
O princípio da jurisdicionalidade em matéria penal não se esgota, porém, aí, nas
fases de julgamento e de recurso, e projeta-se ainda sobre as fases preliminares do
processo, nelas impondo a intervenção do juiz (de instrução) sempre que possam estar
diretamente em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas (art.
32.º-4 da CRP)2.
O resultado do exercício desta função judicial é-nos dado por aquilo a quechamamos o direito judicial e que pode também designar-se (como é vulgar) por
jurisprudência. Não se afirma com isto, é claro, que quaisquer atos praticados pelos
juízes no decurso de um processo constituam «jurisprudência»; eles referem-se e
dirigem-se todos, porém, à consecução do fim do processo que, por sua vez, se
corporiza em uma decisão jurisprudencial.
2. Por mais avesso que se seja à procura e descoberta, nos conceitos como nas
instituições, de uma «essência eidética» que traduziria a sua característica mais
específica e conatural, ou de uma sua «natureza» a-histórica e imutável no espaço, não
será fácil negar que logo a própria realidade e as exigências da vida postulam que se
1 Assim, logo o fundamental Acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 06-06-1967, BVerfGE 2249.
2 Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal: o Novo Código de Processo Penal 1988 15 ss., Anabela Miranda R ODRIGUES, A jurisprudência
constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa 2009 47 ss., e Maria de Fátima MATA-MOUROS, Juiz das Liberdades 2011 38 ss.
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pense a independência como a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto,
da função judicial. Realidade e exigências da vida – acrescente-se – que só são
confirmadas pelos dados jurídico-constitucionais próprios de um Estado-de-direito: porum lado, e diretamente, porque deste não poderá falar-se, «e a própria Ideia de Direito
se verá subvertida, onde se não reconheça (e garanta) a autonomia e independência da
função judicial»3; por outro lado porque, implicando aqueles dados o princípio da
separação dos poderes, não poderia este realizar-se praticamente sem se encontrar
assegurada a independência de um de tais poderes.
Sendo por conseguinte os tribunais no seu conjunto – e cada um dos juízes per se –
órgãos de soberania e pertencendo só a eles a função judicial, tem por força deconcluir-se que a independência material (objetiva) dos tribunais – reforçada pela
independência pessoal (subjetiva) dos juízes que os formam – é condição irrenunciável
de toda a verdadeira jurisprudência (arts. 203.º da Constituição e 4.º da LOSJ).
Do ponto de vista da Doutrina do Estado, a raiz teorética da ideia da independência
judicial deve buscar-se, como sugerimos, na doutrina da separação dos poderes, de
MONTESQUIEU; daí que tal ideia se tenha refletido nas legislações a partir dos
movimentos liberais de reforma da 1.ª metade do séc. XIX, visando sobretudo impedir as
ingerências do Executivo e do Monarca na administração da Justiça («Kabinettsjustiz»)
que eram de regra nos tempos do absolutismo4. E assim é que, entre nós, o princípio se
plasmou na Constituição de 1822 (art. 176.º), na Carta Constitucional (arts. 120.º, 121.º,
122.º e 145.º § 11.º), na Constituição de 1838 (art. 127.º) e na de 1911 (arts. 57.º e 60.º).
A independência dos tribunais, quando analisada em pormenor nos seus elementos
essenciais, comporta um significado plural que, de resto, não avulta apenas no plano
estritamente jurídico mas possui – e de maneira fundamental – as mais sérias
implicações e incidências políticas, económicas e sociais. Tomada no seu sentido mais
compreensivo, a independência dos tribunais assume, segundo uma conotação já hoje
corrente5, vários significados.
3 Castanheira NEVES, O instituto dos «assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, RLJ 105 1972-1973 181. V. também Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 II 203.º
4 “A luta, já velha de séculos, da afirmação da independência judicial perante a chamada «justiça de gabinete» pode hoje considerar-se praticamente terminada e decididamente ganha no nosso Estado democrático” (Jorge de
Figueiredo DIAS, A «pretensão» a um juiz independente como expressão do relacionamento democrático entre ocidadão e a justiça, Sub Judice 14 1999 27.
5 Cf. p. ex. HENKEL2 § 26 I 2 e G. FOSCHINI I 315 ss.
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a) Independência perante os restantes poderes do Estado (ou perante os restantes
órgãos de soberania: Presidente da República, Assembleia da República e Governo), a
chamada independência externa6. Aqui avulta, pois, o significado diretamente político
da independência, que vimos resultar do princípio-base, em qualquer Estado-de-direito,
da «separação dos poderes»: aos tribunais há-de ser concedida, em tudo quanto respeita
à função judicial e portanto, primacialmente, à decisão a encontrar para um caso
concreto, plena liberdade que os ponha a coberto de quaisquer influências e pressões,
diretas ou indiretas, do Parlamento, do Governo ou da Administração7.
b) Independência perante quaisquer grupos da vida pública (partidos políticos,
lobbies, organizações não governamentais, grupos de interesses e de pressão, órgãos de
comunicação social, etc.). Trata-se aqui do significado da independência judicial que,
por força da evolução sofrida pelo próprio Estado perante a sociedade das últimas
décadas, mais difícil se tornou, porventura, de preservar. Sobretudo nas democracias
parlamentares, a influência de tais grupos no exercício da função judicial revela-se
certamente muito mais perigosa do que a dos poderes do Estado e da própria burocracia
judicial. Até porque, para que de tal influência possa por forma conveniente defender-se
a magistratura judicial, não basta que lhe seja juridicamente assegurada a
independência, antes importa criar todo um conjunto de condições de independência
subjetiva aos próprios juízes, através do qual lhes seja concedida autonomia no campo
social e económico.
c) Independência perante outros tribunais. Os tribunais e juízes são entre si
independentes no sentido de que se não encontram ligados, nas suas decisões, por
quaisquer correntes ou orientações jurisprudenciais que não «perfilhem». Encontra-se,
naturalmente, ressalvado o “o dever de acatamento das decisões proferidas em via de
recurso por tribunais superiores” (art. 4.º-1 da LOSJ). Fora deste específico domínio das
relações de hierarquia funcional que dentro de um concreto e determinado processo se
6 Rui MEDEIROS / Maria João FERNANDES, Constituição Portuguesa Anotada III 203.º/IV.7 Cf. Francisco Sá CARNEIRO, A Proposta de Lei sobre Organização Judiciária 1973 11.
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§ 2. A TUTELA DA IMPARCIALIDADE: IMPEDIMENTOS E SUSPEIÇÕES
I. A garantia da imparcialidade
Acabamos de ver como, através da característica da independência dos juízes, se
asseguram os fundamentos de uma atuação livre dos tribunais perante pressões que se
lhes dirijam do exterior. Isto não basta, porém, para que fique do mesmo passo
preservada a objetividade de uma decisão judicial: é ainda necessário, ao lado e para
além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a
«imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude deespeciais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar . Como de todos
os lados se acentua, a estrita e absoluta objetividade do juiz na realização da justiça no
caso é condição irrenunciável para que ela possa constituir-se como expressão da ideia
de Estado de direito, sendo para tal fundamental garantir a sua imparcialidade13.
A exigência de imparcialidade implica, desde logo, que o juiz não seja parte no
conflito ou tenha nele um interesse pessoal em virtude de uma ligação a alguma das
“partes” nele envolvidas (nemo iudex in causa sua)14, mas vai muito mais longe,
postulando uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em
relação ao objeto da causa e a todos os demais sujeitos processuais. O princípio da
imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem
tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a
responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se
possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma
totalmente desinteressada, neutral e isenta.
São várias, na verdade, as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr
em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no exercício da sua função;
e o que aqui interessa, convém acentuar, não é tanto o facto de, a final, o juiz ter
conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter
conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da
13 Desenvolvidamente e com amplas referências doutrinais e jurisprudenciais nacionais e estrangeiras, JoséMouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português 2005 66 ss.
14 CHIAVARIO3 IV/19.1, e Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 88 ss.
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comunidade nas decisões dos seus magistrados15. Por isso se usa sublinhar, invocando
uma velha máxima inglesa, “not only must Justice be done; it must also be seen to be
done”16
.
Na experiência portuguesa, há um largo consenso doutrinal17 e jurisprudencial18 no
sentido de uma compreensão da garantia de imparcialidade como dimensão essencial da
estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente imposta pelo art. 32.º-5 da
CRP19 e da independência dos tribunais reconhecida pelo art. 203.º da CRP. E é natural
que assim seja, pois tanto em relação à ideia do acusatório e do princípio da acusação
que lhe é imanente como em relação à independência judicial, essas distintas, mas
incindíveis projeções do princípio do Estado de direito comungam de um mesmodesígnio de uma realização da justiça pautada pela máxima objetividade e isenção e
capaz de se impor aos seus destinatários diretos e à comunidade em geral sem quaisquer
sombras de desconfiança, emergindo aí a imparcialidade como uma exigência
irredutível.
O estatuto constitucional reconhecido à garantia de imparcialidade tem sido entre
nós objeto de sucessivas e acesas controvérsias, em especial em torno da possibilidade
de participação num dado processo de um juiz que nele já teve intervenção numa fase
processual anterior. A lei ordinária tem sido censurada doutrinal e jurisprudencialmente
ora por ficar aquém20, ora por ir além21 daquilo que é exigido constitucionalmente. O
certo é que um entendimento maximalista em determinada época adotado pelo Tribunal
15
Neste sentido, entre nós, Cavaleiro de FERREIRA
I 234, 237; e na doutrina alemã, por todos, R OXIN
/
SCHÜNEMANN28 § 8/1. Cf. também V. MANZINI II 199 s.: “o judex suspectus deve, em vista de um qualquer motivosério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistência às causas internasque possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixõesou preocupações contrárias à reta administração da justiça”.
16 Lord Hewart, in: R v. Sussex Justices (ex parte McCarthy) 1924.17 Figueiredo DIAS / Maria João A NTUNES, La notion européenne de tribunal indépendant et impartial. Une
approche à partir du droit portugais de procédure pénale” RSC 4/1990 737 ss., Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 78 s., Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 522, e Marques da SILVA / HenriqueSALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 731 s.
18 Cf. os Acs. do TC 219/89, 114/95, 935/96, 528/97, 29/99, 357/99, 129/2007, 147/2011 e 444/2012; e anumerosa jurisprudência do STJ recenseada por Henriques GASPAR , CPP Comentado 133 ss. e 148 ss.
19 Figueiredo DIAS, La protection des droits de l'homme dans la procedure penale portugaise, BMJ 291 1979167 ss.
20 Marques da SILVA, Do Processo Penal Preliminar 1987 416, Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade
Endoprocessual 124 SS., e Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 522.21 Jorge de Figueiredo DIAS, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo
Penal, RPCC 2/1998 207 ss.
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Constitucional sobre a conformidade constitucional do regime legal22, nomeadamente,
do art. 40.º do CPP, induziu o legislador ordinário a alargar progressivamente o leque
dos impedimentos por participação anterior no processo. Contanto que tal alargamentonão vá acompanhado de uma pretensão de atribuição à garantia constitucional de
imparcialidade de um conteúdo mais lato do que aquele que efetivamente possui, à
partida não há razão para debater o problema no plano da constitucionalidade. Pois,
como se sabe, o legislador é livre de estabelecer um regime legal mais garantista do que
aquele que a Constituição impõe. Questão é, porém, saber se, em face do conteúdo que
adquiriu e das dificuldades acrescidas que coloca à organização do funcionamento dos
tribunais, um tal alargamento se mostra equilibrado e defensável de um ponto de vista político-criminal.
Para dar consistência efetiva à garantia de imparcialidade, além de estruturar o
processo penal de acordo com o princípio da máxima acusatoriedade possível, o
legislador ordinário estabeleceu um conjunto de impedimentos (arts. 39.º e 40.º) e
suspeições (art. 43.º), fundados em razões de dúvida de diversa ordem sobre a
imparcialidade da atuação do juiz e com regimes jurídicos distintos: umas vezes
verifica-se a, pura e simples, impossibilidade de o juiz intervir em um certo processo penal, mediante previsão de circunstâncias que, sem mais e necessariamente, ditam o
seu afastamento, as quais são portanto declaradas independentemente de qualquer
objeção suscitada pelos participantes processuais à atuação do juiz no caso concreto;
outras vezes é apenas concedida aos sujeitos processuais a possibilidade de afastarem a
intervenção do juiz, nomeadamente, quando haja o risco de esta ser considerada
suspeita, por existir motivo, grave e sério, adequado a gerar desconfiança sobre a sua
imparcialidade. No primeiro caso estamos perante impedimentos, no segundo perante suspeições do juiz.
II. Impedimentos
1. Os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39.º e 40.º com base em
três ordens de razões: a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante
22 Como observa Maria João A NTUNES, Direito processual penal – «direito constitucional aplicado», Que Futuro Para o Direito Processual Penal? 2009 749, a jurisprudência posterior do TC, nomeadamente a mais recente,tem-se afastado desta posição maximalista.
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processual; a intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade; e a
necessidade de participar no processo como testemunha.
Tem-se entendido entre nós que a indicação dos motivos de impedimento é
taxativa23 , por constituírem eles exceções à regra da competência do juiz. Não revelará,
no entanto, por exemplo, o art. 39.º do CPP lacunas que devam ser preenchidas por
recurso às normas paralelas do CPC, designadamente, as do art. 115.º? Contra a ideia
pode logo avançar-se o argumento formal de que o CPP regulou a matéria
expressamente, não podendo pois falar-se aqui com propriedade de “lacunas”. Certo é,
no entanto, que o art. 115.º do CPC é mais lato, em alguns dos seus comandos, do que o
art. 39.º do CPP; e não pode duvidar-se, por outro lado, de que a necessidade deconfiança comunitária nos juízes se faz sentir com muito maior força em processo penal
do que em processo civil. Como se verá infra, a regulação processual penal não cobre
expressamente variados casos em que o risco de falta de parcialidade é tão gritante – v.
g., a hipótese em que o juiz é o próprio ofendido – que seria chocante, e não raro
inconstitucional24, conceber o catálogo dos impedimentos consignados no CPP como
taxativamente esgotante. Parece, pois, que uma razão tão premente como a da boa
administração da justiça penal e um leitura do regime legal conforme com o previsto noart. 32.º-5 da Constituição vivamente aconselham a que se integre, nesta parte, o CPP
pela regulamentação contida no CPC e que se mostre em concreto aplicável; como
aconselha ainda a que se interpretem o mais latamente possível os fundamentos
referidos pelo art. 39.º do CPP25.
1.1 Por força do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 39.º, está impedido de
intervir no processo, seja em que fase for, o juiz que com o arguido, o ofendido ou
pessoa com a faculdade de se constituir assistente26 ou parte civil tenha algum dos
seguintes laços ou relações: seja ou tenha sido seu cônjuge; tenha ou haja tido uma
23 L. OSÓRIO II 233, e agora Pinto de ALBUQUERQUE4 39.º/1, Sousa MENDES, Lições de DPP 113, e Ac. do STJde 07-07-2010 (in: Henriques GASPAR , CPP Comentado 152)
24 Cf. o Ac. do TC 135/88, julgando inconstitucional uma proibição legal (do CPP de 1929) de declaração deimpedimento do juiz em ações penais por virtude de ofensas que lhe tenham sido feitas na sua presença e no exercíciodas suas funções.
25 Assim, na vigência do CPP de 1929, Figueiredo DIAS, DPP 317 s., e na atualidade, Henriques GASPAR , CPPComentado 39.º/5.
26 A menos que uma das pessoas enunciadas em texto se haja constituído assistente nos termos do art. 68.º-1, e),a mera faculdade de aquisição do estatuto de assistente ao abrigo dessa disposição não vale para efeitos do previstonas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 39.º
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relação análoga à dos cônjuges; seja seu representante legal; seja, ele, ou o seu cônjuge
ou equiparado, ascendente, descendente, parente até ao 3.º grau, tutor ou curador,
adotante ou adotado. Embora o Código o não determine explicitamente, é óbvio que, àsemelhança do que se prevê no art. 115.º-1, a), do CPC, existe impedimento também em
relação ao juiz que seja, ele próprio, ofendido ou pessoa com a faculdade de se
constituir assistente ou parte civil.
Encontram-se igualmente impedidos de exercer funções no mesmo processo, seja
na mesma fase, seja em fases distintas, juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou
afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges (art. 39.º-3).
Uma vez mais, cremos que, não obstante o silêncio do Código, se justifica mobilizar o previsto no art. 115.º-1, d), do CPC27, e considerar impedido o juiz que esteja na mesma
situação em relação a um magistrado do Ministério Público, a um defensor ou a um
advogado do assistente ou da parte civil que intervenha ou haja intervindo no processo.
Na verdade, ninguém compreenderia e seria motivo para uma profunda desconfiança
sobre a realização da justiça no caso que um juiz conhecesse de uma acusação deduzida
pelo seu cônjuge ou que num mesmo julgamento pai e filho interviessem como juiz e
defensor 28
; o que, por si só, é justificação para que aquele impedimento previsto na lei processual civil seja subsidiariamente estendido ao processo penal.
1.2 A mobilidade dos juristas entre os vários ofícios do foro pode levar a que
alguém que, num primeiro momento, haja intervindo no processo como representante
do Ministério Público, defensor, advogado do assistente, do ofendido ou de uma parte
civil, órgão de polícia criminal29 ou perito, venha mais tarde, já na qualidade de juiz
27 Nesta direção, Henriques GASPAR , CPP Comentado 39.º/5. Contra, remetendo a questão exclusivamente parao âmbito do art. 43.º, Marques da SILVA I7 213, e Pinto de ALBUQUERQUE4 39.º/7.
28 Assim, o Ac. do STJ 31-12-2012 (944/07.9TAOAZ-A.S1). Considerando, porém, existir não umimpedimento, mas uma mera suspeição (art. 43.º) no caso em que a uma juíza é confiado um processo em que um seufilho atua como advogado dos assistentes, Ac. do STJ de 13-02-2013 (1475/11.8TAMTS.P1-A.S1). No mesmosentido, o Ac. do STJ de 08-01-2015 (6099/13.2TDPRT.P1-A.S1).
29 Diferentemente do que entendeu o STJ parecem-nos configurar situações de impedimento do juiz, e não demera suspeição, o caso em que o juiz haja tido uma prévia participação no processo como Diretor Nacional Adjuntoda Polícia Judiciária consubstanciada, além do mais, na transmissão de uma instrução aos respetivos investigadoresno sentido de elaborarem um mapa detalhado das investigações até aí realizadas (Ac. de 03-10-2012, in: HenriquesGASPAR , CPP Comentado 150), bem como ainda o caso em que o juiz integrou um órgão de polícia criminal, tendo aítomado conhecimento de vários aspetos da investigação e determinado a realização de medidas cujos resultados são
postos em crise no âmbito do recurso que lhe cumpre apreciar (Ac. de 02-04-2008, in: Henriques GASPAR , CPPComentado 159). É patente a afinidade destas situações com a do leading case do TEDH Piersack c. Bélgica (01-10-1982).
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penal, a receber esse mesmo processo em mãos. A evidente conotação desse juiz com
algum desses participantes ou sujeitos processuais diretamente envolvidos no processo,
a possibilidade de ser conhecedor de informação sigilosa respeitante a algum deles (v. g., coberta pelo segredo profissional que obriga o advogado – art. 87.º do EOA) ou a
circunstância de já ter manifestado uma posição sobre a responsabilidade penal do
arguido, mediante, por exemplo, a dedução de uma acusação pública por si subscrita,
são razões mais do que suficientes para que um tal juiz esteja impedido de exercer
qualquer função nesse mesmo processo, tal como se prevê na alínea c) do n.º 1 do art.
39.º
Por identidade de razão, e mediante aplicação subsidiária da alínea c) do n.º 1 doart. 115.º do CPC, será também de considerar-se impedido o juiz que, em momento
processual anterior, haja emitido, como jurisconsulto, parecer jurídico dirigido ao
processo sobre questão que depois seja chamado a decidir como juiz da causa.
1.3 Suscitada com mais frequência e foco de considerável litigância na prática
judiciária é a questão da intervenção no processo, como juiz de julgamento ou de
recurso, de um magistrado judicial que, como juiz, teve já antes participação nesse
mesmo processo, numa fase processual anterior ou até inclusivamente na mesma fase
processual. É esse tipo de impedimento por participação prévia no processo que
encontramos regulado no art. 40.º, que se estende agora por cinco alíneas.
Na sua versão originária, o art. 40.º limitava-se a prescrever que “nenhum juiz pode
intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou
em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório
tiver presidido”. À semelhança do que ainda hoje sucede num sistema processual como
o alemão30, fora do seu alcance ficavam as hipóteses em que um juiz recebesse um
processo para julgamento depois de nele ter intervindo nas fases do inquérito ou mesmo
da instrução e nelas se tivesse limitado à prática de atos jurisdicionais isolados (v. g., a
autorização de uma busca domiciliária ou de uma escuta telefónica; a aplicação da
prisão preventiva; a constituição de um ofendido como assistente; etc.). Na base deste
regime legal estava a ideia de que tal tipo de prévia participação no processo está longe
30 R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 8/5.
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de que as intervenções do juiz, pela sua frequência, intensidade ou relevância sejam
aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre a imparcialidade
do juiz. Tal levou então a concluir que a imparcialidade para a realização do julgamentoficaria irremediavelmente comprometida naqueles casos em que, durante o inquérito, o
juiz tivesse uma intervenção reiterada no processo, consubstanciada, primeiro, numa
aplicação da prisão preventiva e, depois, na sua manutenção. Conclusão tirada através
do estabelecimento de um equivocado paralelismo com o caso Hauschildt c. Dinamarca
apreciado pelo TEDH34 e de uma desconsideração tanto da função do juiz de instrução
na nossa estrutura acusatória, como da tutela concedida à garantia de imparcialidade
pelo regime das suspeições
35
.O certo é que esta errónea jurisprudência constitucional começou por implicar uma
alteração legal ao art. 40.º, de forma a nele abranger os casos em que, durante o
inquérito ou a instrução, o juiz (de julgamento) tivesse aplicado e posteriormente
mantido a prisão preventiva do arguido36. As perplexidades levantadas por esta bizarra
formulação legal37 levaram, por sua vez, a nova intervenção legislativa, em 2007, tendo
o preceito sido novamente modificado em 2013, agora noutras vertentes, tudo sempre
no sentido do alargamento da catálogo dos impedimentos por participação em processo. No termo deste sobressaltado percurso legislativo deparamos com cinco distintas
circunstâncias que ditam o impedimento do juiz para intervir em julgamento, recurso ou
pedido de revisão relativos a processo em que tiver :
a)
Apl icado medida de coação pr evista nos ar ti gos 200.º a 202.º
Tendo o juiz aplicado as medidas de coação de proibição e imposição de condutas
(art. 200.º), de obrigação de permanência na habitação (201.º) ou de prisão preventiva
34 Apesar de o TEDH ter declarado que do seu ponto de vista “o mero facto de um juiz de julgamento ou de um juiz de recurso, num sistema como o dinamarquês, ter tomado decisões em momentos anteriores ao julgamento docaso, não pode por si só justificar receios quanto à sua imparcialidade” (50.), só tendo concluído por uma violação dagarantia do tribunal imparcial inscrita no art. 6.º da CEDH após uma análise das vicissitudes do processo queenvolveu o cidadão Hauschildt , ao estilo de um recurso de amparo; foi essa jurisprudência prenhe de particularismosque o TC invocou para se pronunciar, em sede de fiscalização abstraca da constitucionalidade, no sentido dainconstitucionalidade do art. 40.º da versão originária do CPP!
35 Neste sentido crítico, Figueiredo DIAS, RPCC 2/1998 207 ss., e Maria João A NTUNES, O segredo de justiça eo direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias 1264s.41.
36 Art. 1.º da Lei 59/98, mais tarde complementado pelo art. 134º da Lei 3/99 – cf. Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 111 ss.
37 Figueiredo DIAS, RPCC 2/1998 206 s.
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(202.º) fica necessariamente impedido de conhecer da causa em julgamento, recurso ou
pedido de revisão.
Recordando-se a “história” do preceito, é patente a intenção de circunscrever o seu
funcionamento aos casos de aplicação de uma daquelas medidas de coação, nele não
estando portanto abrangidas as hipóteses em que o juiz se haja limitado a manter uma
dessas medidas após a sua aplicação por um outro magistrado38. O denominador comum
das medidas especificadas pela alínea a) do art. 40.º, não partilhado pelas demais
medidas de coação (arts. 196.º a 199.º), é a exigência legal da verificação de fortes
indícios da prática do crime imputado para que possa haver lugar à sua aplicação. Terá
considerado o legislador que um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz queas aplica um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios
da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente
capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido
da condenação.
Para além de esta premissa de que o legislador arranca nos parecer destituída de
sentido, continuamos a confrontar-nos com um quadro teleologicamente contraditório e
racionalmente insustentável39. Custa a entender que a ratio legis se considere ausente
em caso de manutenção, e não de aplicação, de alguma das medidas de coação
constantes dos arts. 200.º a 202.º; ou, por exemplo, na hipótese de aplicação de uma
caução não por inexistência de fortes indícios do crime imputado, mas porque o juiz
concluiu que nenhuma daquelas medidas seria concretamente necessária para responder
às exigências de natureza cautelar postas pelo caso. É ainda incompreensível a ausência
de uma delimitação – como a introduzida pelo art. 134.º da Lei 3/99, mas
inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP – de tal aplicação às fases doinquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica
aberta a porta ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela
primeira vez, aplica ao arguido uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200.º a
202.º (v. g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da
acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele
38 Assim, a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X, que deu o mote à revisão de 2007 do CPP, e Rui
PEREIRA, Entre o «garantismo» e o «securitarismo», Que Futuro Para o Direito Processual Penal? 2009 251. Pelanão inconstitucionalidade desta solução, Ac. do TC 29/99.
39 Figueiredo DIAS, RPCC 2/1998 208 s.
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exercidas sobre testemunhas do processo já na pendência da audiência de discussão e
julgamento)40.
b) Presidido a debate instru tór io
Por definição, o juiz de instrução que preside ao debate instrutório é aquele que tem
a seu cargo a prolação da decisão instrutória, com a qual se encerra a fase da instrução.
Via de regra, competir-lhe-á proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia do
arguido, aí conhecendo do objeto do processo e manifestando a sua posição sobre a
probabilidade da condenação do arguido caso seja submetido a julgamento.
Compreende-se, por isso, que a partir daí deixe de poder ser encarado como estando
habilitado a intervir em condições de plena neutralidade e isenção nas fases
subsequentes do processo, onde se joga diretamente a questão da condenação do
arguido41.
c) Participado em julgamento anterior
A redação atual da alínea c) do art. 40.º parece ter pretendido substituir o segmento
inicial da versão originária do preceito – “Nenhum juiz pode inter vir em recurso ou
pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver
participado” – , através do qual, por razões óbvias, se visava impedir que, em recurso,
um tribunal ad quem integrasse um juiz que houvesse composto o tribunal a quo. Essa
preocupação elementar mantém-se acautelada na versão vigente do preceito, da qual se
depreende que não pode intervir no recurso o juiz que proferiu a decisão recorrida. Mas
é agora patente – até pelo paralelismo que pode traçar-se em relação à alínea d) e pelo
que se prevê no art. 426.º-A42 – que a alínea c) procura cobrir um espectro mais amplo
de participações anteriores no processo, nomeadamente, a intervenção em julgamento
de um juiz que haja participado em julgamento anterior . Fá-lo, todavia, através de uma
formulação com um significado literal tão lato que se transforma em fonte de
40 Não restringindo, porém, o alcance do impedimento, e propondo assim um funcionamento da alínea a) do art.
40.º na sua literalidade, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/4.41 Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA, CRP 4 I 522.42 Cf. a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X.
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inarredáveis dúvidas e dificuldades, propiciando o aparecimento de posições
jurisprudenciais totalmente desencontradas, como, sem surpresa, tem sucedido.
A reedição de um julgamento pode ser fruto de um sem número de vicissitudes.
Casos haverá em que a intervenção anterior do juiz não é sequer idónea a suscitar
dúvidas sobre a sua capacidade para decidir de forma isenta no novo julgamento (v. g.,
na pendência de uma audiência de julgamento, o juiz declara prescrito o procedimento
criminal, vindo essa sua decisão a ser posteriormente revogada pela Relação, que impõe
um conhecimento do mérito da causa43).
Como também será de admitir que um juiz possa ser confrontado com a
contingência de voltar a intervir no julgamento de uma causa em que inclusivamente já
tomou posição expressa sobre o objeto do processo. Será assim sempre que, em recurso,
um tribunal superior determine o reenvio do processo à 1.ª instância, com fundamento
em vício processual relativo à audiência ou à sentença. E todavia, em algumas dessas
situações parece-nos impensável, porque materialmente injustificado e incompatível
com a lógica da sanação dos vícios processuais, considerar impedido(s) o(s) juiz(es) que
integrou(aram) o tribunal recorrido (v. g., em caso de anulação da sentença por vício de
fundamentação, por omissão de pronúncia, para que seja dado cumprimento ao previsto
no art. 358.º-1, etc.44; ou de nulidade do julgamento em virtude de insuficiência para a
decisão da matéria de facto provada45 ou de omissão de diligências essenciais para a
descoberta da verdade, que impliquem uma específica produção de prova em 1.ª
instância46, com subsequente elaboração de nova sentença).
Deste modo, numa compreensão teleológica da norma que atenda à ratio de
salvaguarda da imparcialidade47 que lhe deve estar subjacente e a compatibilize com a
necessidade de garantir a harmonia dos atos do processo entre si correlacionados,
parece-nos que deve ela ser interpretada restritivamente no sentido de apenas levar ao
impedimento do juiz de 1.ª instância que depois de, em sentença, ter conhecido do
43 Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/13.44 Henriques GASPAR , CPP Comentado 40.º/4, e Ac. do TRC de 04-12-2013 (878/07.7TACBR-B.C1)45 Contra, Ac. do TRP de 26-11-2008 (0845184).46 Ac. do TC 167/2007.47 Lapidar, o Ac. do TC 147/2011, concluindo não existir inconstitucionalidade na possibilidade de o juiz que
tenha participado em acórdão que conheceu do mérito do recurso, mas declarado nulo por inobservância de regra
processual, não ficar impedido de intervir na audiência destinada a julgar o mérito desse recurso. Nesta linha, ainda, oTEDH, v. g., no caso Thomann c. Suíça (10-06-1996) – para mais referências, GUINCHARD / BUISSON4 418., eR ENUCCI4 302.
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mérito da causa seja confrontado com um cenário de repetição integral da audiência de
discussão e julgamento48. Nada que, em todo o caso, deixe desprotegida a garantia de
imparcialidade, que sempre contará com a tutela oferecida pelo regime das suspeições(art. 43.º), aliás, muito mais adequado à abordagem casuística que este específico
domínio aconselha49.
d) Profer ido ou parti cipado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido,
a f inal , do obj eto do processo, de decisão instr utóri a ou de decisão a que se refere a
alínea a), ou proferido ou par ti cipado em decisão de pedido de revisão anterior
À semelhança do que se prevê na alínea c), esta alínea d) começa por dirigir-se
àquelas situações em que um juiz de um tribunal superior deva decidir, em recurso,
questão relativa a um processo com que já teve contacto em recurso anterior , tenha este
recurso incidido i) sobre o mérito do decidido, a final, na 1.ª ou na 2.ª instância, quanto
ao objeto da causa, ii) sobre a decisão instrutória ou iii) sobre a aplicação de uma das
medidas de coação previstas nos arts. 200.º a 202.º do CPP. Dirige-se ainda, em
segundo lugar, aos casos em que um juiz tenha intervindo num recurso de revisão
anterior (art. 449.º e ss.).
Pela sua afinidade com a regulação das alíneas a) e c), voltam a suscitar-se aqui as
perplexidades e as dificuldades a que estas dão azo, devendo quanto a esta alínea d)
adotar-se, mutatis mutandis, uma abordagem restritiva paralela àquela que
preconizámos para tais alíneas. Assim, por exemplo, não há razão para que devam
considerar-se impedidos os juízes da Relação que, conhecendo do objeto do processo,
começaram por confirmar a condenação proferida pela 1.ª instância e depois se vêem de
novo confrontados com a causa, na sequência de anulação do seu acórdão pelo STJ com
fundamento em omissão de pronúncia ou de vício de fundamentação50.
48 Ainda mais restritivo, o Ac. do TRP de 09-05-2013 (125/09.7GCPRG.P1): “Deve ser feita pelo mesmotribunal a repetição do julgamento ordenada na sequência da verificação de nulidade decorrente da deficientedocumentação da prova oral produzida em audiência”. Não divisando qualquer inconstitucionalidade nestainterpretação, já antes o Ac. do TC 399/2003. Repudiando, porém, uma abordagem restritiva, apesar de crítico do
regime legal, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/12.49 GUINCHARD / BUISSON4 418., com amplas menções à jurisprudência francesa e do TEDH.50 Ac. do STJ de 27-06-2012 (127/10.0JABRG).
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e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória
ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta
Introduzida na revisão de 2007 do CPP, esta última alínea do art. 40.º estabelece o
impedimento do juiz em três hipóteses que podem colocar-se no encerramento do
inquérito e que reclamam uma intervenção judicial. Embora o arquivamento em caso de
dispensa de pena e a suspensão provisória do processo possam ser decretados também
na fase da instrução (arts. 280.º-2 e 307.º-1, respetivamente), a sua eventual aplicação
terá aí lugar na decisão instrutória, pelo juiz que presidiu ao debate instrutório, cujo
impedimento decorre já diretamente da alínea b). A alínea e) tem assim em vista
intervenções prévias do juiz no âmbito da fase do inquérito, especificamente daquelasque se traduzam i) na recusa do arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280.º-
1), ii) na recusa da suspensão provisória do processo (art. 281.º-1) ou iii) na recusa da
forma sumaríssima do processo por discordância em relação à sanção proposta pelo
Ministério Público (art. 395.º-1, c)).
É de supor que o legislador de 2007 foi motivado pelo receio – a nosso ver, nem
sempre fundado, em especial quando em causa esteja o arquivamento em caso de
dispensa de pena e a suspensão provisória do processo, atenta a natureza da decisão
judicial que aí deve ser tomada51 – de que qualquer uma daquelas três intervenções
implica por si só uma desconfiança tal sobre a capacidade do juiz respetivo para julgar a
causa de modo imparcial que se justifica afastá-lo das fases do julgamento e do recurso
que possam seguir-se. Mas se assim for, ficam por perceber as razões que terão levado o
legislador a não englobar no impedimento situações afins porventura mais suscetíveis
de gerar um tal temor do que as previstas legalmente. Estamos a pensar, nomeadamente,
nos casos em que, no fim do inquérito, o juiz dá a sua concordância à suspensão provisória do processo, sendo depois esta revogada e o processo remetido para
julgamento nos termos do art. 282.º-4; ou em que, em processo sumaríssimo, o juiz dá o
seu acordo à condenação, mediante aplicação da sanção proposta pelo Ministério
Público (art. 396.º-1), havendo, porém, depois, oposição do arguido, com reenvio dos
autos para outra forma processual (art. 398.º-1)52. Não que entendamos que nestas
51 Numa linha crítica, também Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/17; e em direção contrária, Mouraz LOPES, A
Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 162 ss.52 Pedro Soares de ALBERGARIA, Os processos especiais na revisão de 2007 do Código de Processo Penal,
RPCC 4/2008 503.
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hipóteses exista sempre necessariamente uma suspeição de tal modo forte que se
justifique a sua previsão como impedimento53. O que repudiamos é a falta de lógica
interna da solução adotada pelo legislador.
1.4 Independentemente da fase em que o processo se encontre, está impedido o juiz
que nele tenha sido ouvido como testemunha ou deva vir a sê-lo (art. 39.º-1, d)). Em
princípio, tal acontece quando o próprio juiz possui conhecimento direto de factos que
constituam objeto da prova a realizar no processo (arts. 124.º-1 e 128.º-1), o que pode
comprometer irremediavelmente a sua capacidade para conhecer da causa sem um juízo
prévio sobre o sentido da decisão a tomar, assim ficando imediatamente em risco a
garantia de imparcialidade. Com o impedimento, dá-se ainda satisfação, de forma
mediata, à finalidade de descoberta da verdade material, já que sem o afastamento do
juiz poderia frustrar-se a produção de prova ( sc., o depoimento testemunhal do juiz)
com relevo para um cabal esclarecimento da causa.
Trata-se, não obstante, de um impedimento particularmente vulnerável a
instrumentalizações pelos vários sujeitos processuais, que, na ausência de um
mecanismo de salvaguarda, poderiam usar do expediente da indicação como testemunha
de um juiz indesejado para assim conseguir o seu afastamento do processo. A fim de
obstar a tal manobra fraudulenta, prevê o n.º 2 do art. 39.º que se o juiz tiver sido
oferecido como testemunha, declara, sob compromisso de honra, por despacho nos
autos, se tem conhecimento de factos que possam influir na decisão da causa – em caso
afirmativo, verifica-se o impedimento; em caso negativo deixa de ser testemunha.
2. Os impedimentos devem ser, a todo o tempo e logo que conhecidos,
oficiosamente declarados pelo juiz (iudex inhabilis), por despacho nos autos (art. 41.º-
1). Quando o não sejam, deve o Ministério Público requerer a sua declaração, podendo
53 Assim também, quanto ao processo sumaríssimo, o Ac. do TC 444/2012, em termos, porém, por demais
discutíveis quanto à natureza da decisão judicial de aceitação ou rejeição do requerimento para condenação em processo sumaríssimo (Nuno BRANDÃO, Acordos sobre a sentença penal: problemas e vias de solução, Julgar 25 2015 177 s.). Aí pugnando, no entanto, pela inconstitucionalidade, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/18.
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também requerê-la o arguido, o assistente e as partes civis logo que sejam admitidos a
intervir no processo, em qualquer estado deste54.
Sendo o impedimento reconhecido, oficiosamente ou a requerimento, é irrecorrível
o despacho que o declarar (art. 42.º-1, I)55. Não o sendo, pode ser interposto recurso
para o tribunal imediatamente superior (art. 42.º-1, II), o qual tem efeito suspensivo do
processo, podendo no entanto praticar-se os atos urgentes cuja demora possa trazer
prejuízo irreparável (art. 42.º-3). Vindo o impedimento a ser afirmado, logo pelo juiz
impedido ou em recurso, são nulos os atos por aquele praticados, salvo se não puderem
ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da
decisão do processo (art. 41.º-3), devendo o processo ser imediatamente remetido ao juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-lo (art. 46.º).
III. Suspeições
1. A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada não apenas pela
categoria dos impedimentos, como ainda também, complementarmente, pelo instituto
das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (arts. 43.º a 45.º).A recusa é uma suspeição oposta à intervenção do juiz pelo Ministério Público, pelo
arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43.º-3). Não estando o juiz autorizado
a recusar-se a si próprio, declarando-se voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante,
conferida a possibilidade de suscitar perante outro tribunal a suspeição que admite que
possa recair sobre si, para assim ser dispensado de intervir no processo – uma suspeição
que a lei qualifica como escusa (art. 43.º-4).
54 A letra do n.º 2 do art. 41.º – em especial o seu segmento “logo que” – e o receio da utilização desleal edilatória da figura dos impedimentos vêm sendo indevidamente invocados por alguma doutrina (Pinto de ALBUQUERQUE4 42.º/1) e jurisprudência (Ac. do STJ de 28-09-2011, 5/05.5TELSB, na esteira daquele A.) parasustentar a imposição de um prazo perentório de 10 dias para a apresentação do requerimento de declaração doimpedimento pelo arguido, assistente ou partes civis, contado desde o momento da sua admissão à intervenção no processo ou do conhecimento do facto determinante do impedimento. Estando em causa circunstância em princípiotão comprometedora da imparcialidade do juiz que justifica a sua qualificação legal como impedimento, não secompreende a imposição de tal constrangimento temporal. Pois se ele realmente se verifica, pode e deve ser a todo o
tempo declarado pelo próprio juiz impedido, mesmo oficiosamente; e caso não se verifique, bastará ao juiz visadonão o reconhecer.
55 Diversamente, Pinto de ALBUQUERQUE4 42.º/1.
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uma ótica objetiva. Na primeira vertente, deve averiguar-se se o juiz tem algo contra o
arguido ou expressa uma predisposição no sentido da sua condenação (“ personal bias”),
devendo a sua imparcialidade pessoal ser presumida até prova em contrário59
. Aindaque não haja motivo para censurar o juiz quanto à sua imparcialidade, importa ainda, em
todo o caso, averiguar se há “alguma razão legítima que faça temer uma falta de
imparcialidade”60.
Na interpretação e aplicação da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência
nacional tem, com razão, adotado um crivo particularmente exigente e apertado, que,
além do mais, atende à “quebra simbólica na confiança que decorre da dúvida sobre a
consistência do valor”61 da imparcialidade. Estando em causa o princípio do juiz naturale a eficiência do funcionamento do sistema processual penal, não é qualquer dúvida que
possa eventualmente ser oposta em relação às condições do juiz para exercer a sua
função de modo isento e imparcial que, sem mais, deve ditar o seu afastamento. Como
prevê o n.º 1 do art. 43.º, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e
grave. Numa análise casuística da nossa experiência jurisprudencial nesta matéria é
possível identificar várias constelações de suspeições que recorrentemente são
submetidas à apreciação dos nossos tribunais superiores.
a) Muito frequente é a suscitação da recusa e sobretudo da escusa com fundamento
no relacionamento do juiz com outros sujeitos ou participantes processuais ou seus
familiares.
A existência de uma amizade entre o juiz e o arguido ou o assistente é, via de regra,
considerada razão adequada a gerar desconfiança sobre a sua isenção62. Já o mesmo não
sucederá, como é evidente, naqueles casos em que o interveniente é um familiar
próximo de um amigo do juiz63. Ainda que o juiz não tenha um relação de amizade com
um sujeito processual, se com ele manteve contactos a propósito do processo e lhe
59 Esta presunção – afirmada pelo TEDH logo no caso Piersack c. Bélgica (30.) e depois reiterada, v. g., nosarestos dos casos De Cubber c. Bélgica (25.) e Hauschildt c. Dinamarca (47.) – implica que é ao arguido que cumpredemonstrar, através de elementos concretos, a falta de imparcialidade pessoal do juiz.
60 Piersack c. Bélgica (30.), seguido e desenvolvido em Hauschildt c. Dinamarca (48. ss.).61 Henriques GASPAR , CPP Comentado 43.º/2.62 Acs. do STJ de 18-01-2007 (07P163), 05-07-2007 (07P2565), 07-05-2008 (08P1526) e 29-04-2015
(4914/12.7TDLSB.G1-B.S1). Cf., todavia, o Ac. do STJ de 15-11-2012 (947/12.1TABRG-A.S1).63 Ac. do STJ de 23-09-2009 (532/09.5YFLSB).
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prestou aconselhamento isso será, em princípio, suficiente para que não permaneça
nesse processo64.
Situações de inimizade ou de litigiosidade que envolvam o juiz e um advogado65 do
processo ou algum outro sujeito processual também não serão, em geral, motivo para
implicar o afastamento daquele66, sendo este, em todo o caso, um campo onde se impõe
uma particular cautela na avaliação das atitudes e comportamentos do próprio juiz na
contenda67. Certo é que um comportamento unilateral hostil ou de desrespeito de algum
sujeito para com o juiz não é justificação para afirmar a suspeição deste, já que se assim
não fosse a participação do juiz no processo acabaria sempre por ficar nas mãos dos
demais sujeitos processuais68.
b) A suspeição pode assentar em atos praticados pelo juiz no processo que lhe está
confiado, em declarações que sobre ele produza ou ainda em processos que com aquele
guardem algum tipo de conexão.
Podem reconduzir-se a suspeições desta ordem tanto intervenções judiciais
objetivamente insuscetíveis de qualquer reparo, como comportamentos merecedores decensura que o juiz tenha para com algum dos sujeitos processuais. É seguro, em todo o
caso, que a simples discordância jurídica, mesmo que reiterada, de um sujeito
processual em relação a atos ou decisões do juiz não é idónea a determinar a suspeição
deste69.
A intervenção do juiz em fases anteriores do processo que não seja motivo para
implicar o seu impedimento nos termos do art. 40.º pode constituir fundamento para a
afirmação da suspeição (art. 43.º-2). Ponto é que se tenha tratado de uma atuação que possa gerar uma dúvida ponderosa e objetivamente fundada sobre a capacidade do juiz
para decidir de modo isento ou sem uma pré-compreensão sobre a imputação que é
dirigida ao arguido. A questão colocar-se-á com maior acuidade naqueles casos em que
64 Acs. do STJ de 20-10-2010 (140/10.8YFLSB) e de 05-12-2012 (1454/12.8PAALM-A.L1-A.S1).65 Ac. do TC 227/97 e Ac. do STJ de 15-09-2010 (133/10.5YFLSB).66 Ac. do STJ de 28-06-2006 (06P1937). Vd. ainda o Ac. do TRP de 17-03-2010 (2/07.6GAAMT).67 Cf. novamente o Ac. do STJ de 15-09-2010 (133/10.5YFLSB) e ainda o Ac. do STJ de 07-04-2010
(1257/09.TDLSB.L1-A.S1).68 Ac. do TRL de 30-05-2001 (0096383).69 Acs. do STJ de 13-06-2001 (3914/01) e de 27-07-2006 (06P2554) e ainda, embora num processo não penal, o
Ac. do TC 64/2010.
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possa recear-se que determinadas decisões tomadas pelo juiz numa fase anterior do
processo revelem, pelo seu concreto conteúdo, uma dúvida séria sobre a existência de
uma predisposição sobre o sentido da decisão que deverá proferir no encerramento dafase processual em que intervém. Uma ponderação que não tem de cingir-se às fases do
julgamento e do recurso, sendo também admissível na instrução, relativamente a um
juiz de instrução que receba o processo nessa fase processual depois de ter atuado como
juiz de instrução no inquérito70.
Isto que vale para situações em que a competência seja deferida a um juiz que teve
uma participação em fase anterior do processo, vale no essencial também, e ainda por
força do n.º 2 do art. 43.º, para aqueles casos em o juiz interveio noutro processo, penalou não71, que tenha tido por objeto a mesma factualidade72 ou uma factualidade
diretamente relacionada com a do seu (novo) processo, em especial se se tratar de
processos que admitiriam o estabelecimento de uma conexão processual (cf. art. 24.º-
1)73. Poderá ser este ainda o caso de o novo processo respeitar a factos ( v. g., uma
falsidade de testemunho) ocorridos num processo dirigido pelo juiz em questão74.
A conduta do juiz no decurso dos atos processuais que conduz pode gerar
suspeição se revelar uma perda da equidistância que deve caracterizar o exercício da
função judicial.
De tal não se poderá falar se o juiz, em cumprimento do seu poder-dever de
investigação do feito submetido à sua apreciação (art. 340.º-1), toma a iniciativa de
promover diligências probatórias que aparentem ser vantajosas para os interesses de
algum dos sujeitos processuais. Também não haverá motivo para suspeição se, no
decurso de uma tomada de declarações em julgamento, o juiz verbaliza dúvidas sobre a
congruência ou a fidedignidade do relato que é apresentado pelo depoente75, sem
prejuízo, naturalmente, da contenção e sobriedade que deve colocar nessas observações.
70 Admitindo esta possibilidade, mas negando a recusa no caso submetido à sua apreciação, o Ac. do TRC de16-01-2008 (18/06.0PELRA).
71 Ac. do TRE de 06-03-2012 (17/12.2YEVR).72 Acs. do TRL de 30-03-2006 (1941/2006-9) e 07-07-2009 (2110/03.3TALSB-5).73 Cf. infra, § 3., VI.74 Acs. do TRP de 23-05-2007 (0712825), de 09-07-2008 (0843611), de 15-12-2010 (1130/09.9TAVNG-A.P1)
e de 23-02-2011 (5136/10.7TAVNG-A.P1). Por uma consideração restritiva destes casos, o Ac. do TRE de 20-12-2011 (0712825).
75 Ac. do TRG de 20-03-2006 (458/06-2).
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Se, no entanto, o juiz vai mais longe e dá antecipadamente mostras de uma
inclinação para decidir o pleito em determinado sentido tal será justificação para
considerar comprometida a sua imparcialidade76
. Suspeição que poderá ser afirmadanão apenas quando tal ocorra no âmbito de um ato processual, mas igualmente quando
suceda à margem do processo, por exemplo, e sem prejuízo da concomitante existência
de infração ao dever de reserva (art. 12.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, Lei
21/85), pronunciando-se publicamente sobre o caso num órgão de comunicação social77.
A demonstração de que na direção dos atos processuais o juiz concede um tratamento
injustificada e arbitrariamente diferenciado a um sujeito processual, privilegiando-o ou
prejudicando-o em relação aos demais, implica também a sua suspeição.
2. O requerimento de recusa e o pedido de escusa devem ser apresentados, dentro
dos prazos definidos no art. 44.º, perante o tribunal imediatamente superior àquele que é
integrado pelo juiz em causa ou perante a secção criminal do STJ, tratando-se de juiz a
ele pertencente (art. 45.º-1). Tratando-se de uma recusa, é ouvido o juiz visado (44.º-3)
e deve o incidente ser decidido no prazo máximo de 30 dias sobre a sua apresentação
(44.º-5), sendo tal decisão irrecorrível (44.º-6). No caso de ser declarada a suspeição, o
juiz recusado ou escusado remete de imediato o processo ao juiz que deva substituí-lo
(art. 46.º).
76 Para vários exemplos, Pinto de ALBUQUERQUE4 43.º/14 e R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 8/8.77 Acs. do TEDH Buscemi c. Itália (16-09-1999) 68 e Lavents c. Letónia (28-11-2002) 117 ss.
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§ 3. A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM MATÉRIA PENAL
I. O princípio do “juiz natural”
1. O princípio da legalidade em matéria penal não vincula apenas à legalidade
incriminatória e sancionatória (sem recurso à analogia) e à anterioridade da lei, mas
alcança toda a chamada “matéria penal”, ou seja, também as normas aplicáveis à
fixação concreta de um facto definido como criminoso e à determinação da sanção
cominada; em suma, abrange também a legalidade da “repressão penal” e, portanto, do
processo para aplicação de uma pena78.
Daí que desde há muito se tenha considerado, com inteira razão, como puro
corolário daquela exigência de legalidade a afirmação do princípio do “juiz natural” ou
do “juiz legal”79 , através do qual se procura sancionar, de forma expressa, o direito
fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como
competente mediante aplicação de critérios objetivos legalmente determinados e não ad
hoc criado ou tido como competente. O que por ele se pretende fundamentalmente
proibir é, assim, a criação post factum de um juiz para uma determinada causa, ou a
possibilidade de se determinar de forma arbitrária ou discricionária o juiz competente.
Princípio que encontra expressão no art. 32.º-9 da CRP: “Nenhuma causa pode ser
subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”80. A tanto vincula
a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à ordenação da administração da
justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da
comunidade naquela administração81.
Retomando uma experiência já feita pela Inglaterra, desde a Magna Carta de 1215 à Petition of Rights de 1628, e pelos EUA com as primeiras Cartas Constitucionais de 1776, a França, saída daRevolução, logo em 1790 incluía de forma inequívoca, na lei da nova organização judiciária, o direitofundamental do cidadão a ser julgado por juízes que oferecessem as mais sólidas garantias: “A ordem
78 Assim, logo Figueiredo Dias, DPP 94 ss.; e agora, de novo, Figueiredo DIAS / Nuno BRANDÃO,Irrecorribilidade para o STJ: redução teleológica permitida ou analogia proibida?, RPCC 4/2010 634 ss., com aconcordância do TC (Ac. 324/2013, 4.).
79 A primeira designação é a corrente nos direitos francês e italiano, a segunda no alemão.80 Cf. Figueiredo DIAS, Sobre o princípio jurídico-constitucional do «juiz-natural», RLJ 111 1978 83 ss., e
Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 525.81 Aspetos salientados pelo Ac. do TC 614/2003.
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constitucional das jurisdições – dizia a lei – não poderá ser subvertida nem os imputados poderão sersubtraídos aos seus juízes naturais...”82.
Desde então o princípio aparece quase sempre incluído nas Constituições próprias dos Estados de
Direito. Na Sardenha, logo o Statuto de Carlos Alberto (1848) afirmava no seu art. 71.º: “Ninguém podeser subtraído aos seus juízes naturais. Não poderão, por isso, ser criados tribunais ou comissõesextraordinárias”. Por seu lado a atual Constituição italiana, no mesmo art. 25.º em que consagra o
princípio da legalidade, e o coloca portanto entre os direitos fundamentais do cidadão, prescreve:“Ninguém poderá ser afastado do juiz natural pré constituído por lei”. Idêntica norma se encontra na leifundamental da Alemanha Federal, onde estatui o art. 101.º-1: “Não pode ser instituída uma jurisdição deexceção. Ninguém deve ser subtraído ao seu juiz legal”.
A ideia do “juiz natural” esteve igualmente presente, durante mais de 100 anos, na tradição jurídico-constitucional portuguesa do princípio da legalidade. Logo o art. 9.º, 2.ª parte, da Constituição de1822 se devia compreender, na verdade, como sugerindo o princípio do juiz natural 83. Ele aparece porém,com toda a clareza, no art. 145.º da Carta de 1826: o § 10.º dispõe que “ninguém será sentenciado senão
pela Autoridade competente, por virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita”; e consequentementedetermina o § 11.º que “será mantida a independência do Poder Judicial. Nenhuma Autoridade poderáavocar as causas pendentes, sustá-las ou fazer reviver os processos findos”. E se a expressão do princípiose amortece no art. 18.º da Constituição de 183884, surge de novo a plena luz no art. 3.º-21 daConstituição de 1911: “Ninguém será sentenciado senão pela Autoridade competente, por virtude de leianterior e na forma por ela prescrita”. Inexplicavelmente, o princípio do juiz natural não aparecia inscritona Constituição de 1933, numa quebra da nossa tradição de todo em todo injustificável85. A tradição foiretomada com a atual Constituição, que, como referimos, prevê que “nenhuma causa pode ser subtraídaao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior ” (art. 32.º-9), deste modo concedendoautónomo e direto relevo ao princípio do juiz natural.
2. O princípio do juiz natural impõe, antes de mais, que a definição do juiz
competente resulte da lei. No plano da fonte, com efeito, só a lei pode instituir o juiz e
fixar-lhe a competência. Neste sentido, em concretização do princípio, estipula o art.
10.º que “a competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada
pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização
judiciária”.
Esta dimensão, dita positiva86, do princípio do juiz legal abrange não só as regras
legais propriamente ditas com relevo para a determinação da competência, como
também ainda eventuais regulamentos, regimentos, etc., complementares, emanados
pelo próprio sistema judiciário de que a mesma esteja dependente. Todas essas
82 Cf. depois a Constituição de 1791, cap. V, art. 4.º; a Carta de 1830, art. 52; a Constituição de 1848, art. 4.º; aConstituição de 1852, arts. 1 e 56.
83 Era o seguinte o seu texto: “A lei é igual para todos. Não se devem porta nto tolerar privilégios do foro nascausas… crimes. Esta disposição não compreende as causas que pela sua natureza pertencerem a juízes particulares,na conformidade das leis”.
84 Cujo texto rezava: “Ninguém será julgado senão pela autoridade competente, ne m punido senão por lei
anterior”. 85 Cf. Figueiredo DIAS, DPP 325 ss.86 Ac. do TC 614/2003 11.
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prescrições devem possuir natureza geral e abstrata, de modo a evitar a manipulação da
fixação da competência relativamente a certos casos ou pessoas. Um receio que,
tradicionalmente, era sentido sobretudo em relação ao poder executivo87
, mas que é hojeacompanhado por preocupações voltadas para o interior do próprio poder judiciário88.
A esta vinculação a uma ordem taxativa de competência legalmente determinada
encontra-se associada, numa dimensão negativa, um conjunto de proibições de variada
ordem, fundadas essencialmente na proscrição da arbitrariedade ou mesmo da
discricionariedade no ato de fixação da competência89. Designadamente, a proibição de
jurisdições de exceção, isto é, jurisdições ad hoc criadas para decidir um caso concreto
ou um determinado grupo de casos, com quebra das regras gerais de competência; bemcomo a proibição terminante do desaforamento de qualquer causa criminal e da sua
suspensão discricionária por qualquer autoridade; e ainda inclusive, segundo o art.
209.º-4 da CRP, a proibição da existência de tribunais com competência exclusiva para
o julgamento de certas categorias de crimes90.
Dilucidado o sentido material do princípio do juiz legal, importa ainda precisar o
seu alcance temporal e os juízes penais a que se dirige.
3. Devendo a competência ser definida de modo geral e abstrato, questão é saber
quando o deve ser. Estando o princípio do juiz natural diretamente ligado ao princípio
da legalidade criminal, poderia porventura pensar-se que o ponto de referência temporal
deveria ser, em observância da proibição de retroatividade inerente ao nullum crimen
sine lege, o momento da prática do facto91. Uma ideia que poderia ainda ser sugerida
pelo teor literal do art. 32.º-9 da CRP, na parte em que faz referência à fixação da
competência por “lei anterior”. Não deve ser esta, porém, a amplitude temporal a
87 Figueiredo DIAS, RLJ 111 1976 83 s.88 Assim, a jurisprudência constitucional alemã citada pelo Ac. do TC 614/2003 (9.); e Henriques GASPAR , CPP
Comentado 10.º/3.89 Como veremos infra (III., 3.3), é a existência de um critério objetivo e suficientemente determinado de
deferição (concreta) de competência, assim afastando a possibilidade de fixação arbitrária ou discricionária dacompetência do juiz de julgamento pelo Ministério Público, que põe o art. 16.º-3 a salvo de inconstitucionalidade porviolação do princípio do juiz natural.
90 Integrando também o art. 209.º-4 da CRP na compreensão do princípio do juiz legal, Marques da S ILVA /Henrique SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 738. Em sentido oposto, pela generalidade da doutrina
alemã, em função do disposto no art. 101.º-2 da GG (“Tribunais para matérias especiais só podem ser estabelecidosmediante previsão legal”), VOLK / E NGLÄNDER 8 § 5 3.
91 Nesta conclusão, Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA I4 525.
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conceder ao princípio do juiz legal. Do que nele se trata, como vimos, é de prevenir que
as regras gerais de competência sejam desvirtuadas por intervenções arbitrárias ad hoc
que desviem o processo do juiz a quem deveria ser distribuído. Uma teleologia que nãoresulta comprometida pela possibilidade de a competência vir a ser regulada por normas
posteriores à prática do facto; obstando apenas a tal, mas também sempre, que a
atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é, de
exceção), ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa
penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o
direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial92. De outro modo,
aliás, em face das inultrapassáveis dificuldades que um princípio do juiz natural levadoàquele extremo levantaria, cairiam por terra quaisquer pretensões de reforma da
organização judiciária, com o inerente risco de fossilização do sistema processual.
4. Destinatários do princípio do juiz natural são todos os juízes penais, em todas as
fases processuais93. Embora o texto do art. 32.º-9 da CRP possa abrir a porta a um
entendimento restritivo que circunscreva o funcionamento do princípio às fases do
julgamento e do recurso94, as razões que justificam a sua existência, maxime a
necessidade de garantir a independência e a isenção do juiz e a confiança da
comunidade na realização da justiça penal, valem por inteiro nas fases preliminares do
inquérito e da instrução. Também nestas é reservada ao juiz de instrução a prática de
atos materialmente jurisdicionais, atenta a sua imediata relevância para a esfera dos
direitos de liberdade das pessoas atingidas, pelo que não se compreenderia que a
competência do juiz (de instrução) escapasse aí aos ditames do princípio do juiz legal.
II. A competência penal e as suas espécies
1. Dissemos que o princípio do “juiz natural” visa, entre outras finalidades,
estabelecer uma organização fixa dos tribunais, cujo conhecimento detalhado pertence
não tanto propriamente ao direito processual penal, quanto ao direito judiciário. Essa
92 Nestes exatos termos, Figueiredo DIAS, RLJ 111 1976 86, Pinto de ALBUQUERQUE4 4.º/12, Marques da SILVA / Henrique SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 739; e o TC, v. g., nos Acs. 393/89 e 614/2003.
93 Por isso, Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 525 falam num “princípio dos juízes legais”. Vd. ainda osAcs. do TC 614/2003 (12.) e 482/2014 (32.); e na doutrina Figueiredo DIAS, RLJ 111 1976 833.
94 Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais… 18.
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organização não será aqui, pois, objeto de análise expressa, nem no que toca ao sistema
constituído – que se encontra essencialmente na LOSJ que nos rege – , nem aos difíceis
problemas de política legislativa que suscita95
.
Simplesmente, uma tal organização fixa dos tribunais não é ainda condição bastante
para dar à administração da justiça – hoc sensu, à jurisdição96 – a ordenação
indispensável que permita determinar, relativamente a um caso concreto, qual o tribunal
a que, segundo a sua espécie, deve ser entregue e qual, dentre os tribunais da mesma
espécie, deve concretamente ser chamado a decidi-lo. A falta de uma tal ordenação
conduziria fatalmente à confusão na divisão da jurisdição, a inconvenientes conflitos
entre os tribunais e, consequentemente, a prejuízos irreparáveis tanto para os arguidoscomo, em geral, para a administração da justiça penal.
Torna-se, deste ponto de vista, absolutamente necessário que a referida organização
judicial vá até ao ponto de regulamentar o âmbito de atuação de cada tribunal , de modo
a que cada caso penal concreto seja apenas deferido a um único tribunal 97: é nisto que
se traduz a determinação da competência em processo penal.
Cabe só anotar ainda que também esta determinação da competência vem a revelar-
se como um postulado do princípio do “juiz natural”. Daí que a ordenação r espetiva
deva ser alcançada por via geral e abstrata – e portanto legal – , de modo a que o
Ministério Público possa saber qual o tribunal a que deve dirigir-se e este saiba quais os
casos que é chamado a resolver; tudo em ordem a excluir por completo a possibilidade
de a acusação escolher o tribunal que lhe pareça mais favorável à decisão que dele
espere (o denominado forum shopping ).
2. A determinação em concreto do tribunal competente para o conhecimento e a
decisão de um caso penal não é questão que possa ser respondida uno actu, antes
implica a resposta a três perguntas estruturalmente diferentes98:
95 Para uma perspetiva geral, António Vieira CURA, Curso de Organização Judiciária2 2014.96 Cf. Eduardo CORREIA, Processo Criminal 276, Cavaleiro de FERREIRA I 176 s., e Pedro CAEIRO,
Fundamento, Conteúdo e Limites da Jurisdição Penal do Estado 2010.97 O que não prejudicará, é claro, a possibilidade de o mesmo “caso” (à luz do direito substantivo) dever ser
sucessivamente apreciado por mais do que um tribunal, quer atendendo aos diversos graus de instância, quer à própria
especialização de certos temas dentro do mesmo “caso” (v. g., o tribunal do facto e o tribunal de execução das penas).98 Cf. por todos G. BELLAVISTA, Competenza penale , NssDI III 1957 68 e G. GUARNERI, Competenza penale ,
EdD VIII 1961 100.
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a) Qual o tribunal que, segundo a sua espécie (v. g., instância central de
competência especializada criminal; secção criminal ou secção de pequena
criminalidade de instância local; tribunal do júri, tribunal coletivo ou tribunal singular;Tribunal da Relação; Supremo Tribunal de Justiça; etc.), deve conhecer de um caso
penal de certa natureza (v. g., homicídio doloso, crime contra a autoridade pública,
crime de discriminação racial ou de tortura, etc.)? Trata-se aqui do problema da
determinação da competência material.
b) Qual o tribunal que, entre os da mesma espécie materialmente competente para o
caso, deve, segundo a sua localização no território, ser chamado para conhecer e decidir
concretamente de um certo facto? É o problema da determinação da competênciaterritorial.
c) A determinação da competência relativa aos dois índices apontados – material e
territorial – é feita pela lei tendo em atenção o processamento do caso em primeira
instância. Há pois que responder ainda a uma terceira questão, qual é a de determinar o
tribunal (ou tribunais) competente(s) para o desenvolvimento do processo ou de
singulares atos processuais fora da atividade cognitiva de primeira instância
(competência hierárquica), ou – dentro da mesma instância – para certas fases da
prossecução processual. E pois que a determinação desta espécie de competência se
relaciona assim, primariamente, com a função jurisdicional a desempenhar pelos
tribunais segundo a sua categoria, costuma a doutrina abrangê-la no designativo comum
de competência funcional.
As considerações que se seguem não visam fornecer uma panorâmica exaustiva de toda a repartiçãoda competência em processo penal99, mas apenas dos princípios fundamentais da sua ordenação. E sãovárias – e de vária ordem – as razões que justificam esta orientação: Em primeiro lugar, uma exposição
sistemática esgotante da matéria levaria a uma extensão dificilmente suportável, demais sendo certo queteria de haver-se com temas específicos de organização judiciária que mal poderiam ser compreendidossem um seu expresso tratamento; razão têm pois aqueles autores que pretendem remeter grandes zonas do
problema da competência processual (penal e civil) para as exposições sistemáticas de direito e deorganização judiciária. Em segundo lugar, a exposição detalhada da matéria reverte muitas vezes – sobretudo num direito processual penal como o português – a temas cujo tratamento exaustivo (ou pelomenos mais pormenorizado) melhor caberá noutro lugar, maxime naquele em que se estudem asdiferentes formas de processo comum e especial: assim, v. g., o estudo in extenso da competência materialobrigaria a antecipar grande parte da matéria respeitante às formas de processo, enquanto o dacompetência funcional – pois que, como dissemos, se põe também relativamente ao desenvolvimento desingulares atos processuais – só pode verdadeiramente fazer-se a propósito da consideração de cada um
99 Que pode encontrar-se, por exemplo, em Pinto de ALBUQUERQUE4 art. 10.º ss.
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daqueles atos100 e importaria, de todo o modo, a antecipação de uma boa parte da matéria respeitante aosrecursos em processo penal.
III. Competência material
1. De acordo com o que deixámos dito, designa-se por competência material
“aquela parcela de jurisdição que é distribuída às diferentes espécies de tribunais, tendo
em atenção a natureza das causas a resolver; de maneira que às particularidades
decisivas na matéria ou na natureza dos assuntos a tratar correspondam órgãos
jurisdicionais com uma organização e um formalismo que lhes sejam adequados”101.
Trata-se pois aqui fundamentalmente de repartir as causas penais pelas diferentes
espécies de tribunais penais de 1.ª instância102.
2. Para resolução deste problema oferecem-se ao legislador vários métodos ou vias
de procedimento, que poderão ser usados alternativa ou cumulativamente:
a) O chamado pela doutrina103 método de determinação abstrata da competência,
através do qual se faz decorrer a competência material imediatamente ouincondicionalmente da lei. O legislador, utilizando este método, poderá alcançar a
finalidade proposta ainda por duas vias diferentes: ou dá a cada tribunal competência
para o conhecimento e decisão de certos tipos de crime (v. g., os crimes dolosos ou
agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa ao
tribunal coletivo, art. 14.º-2, a); os crimes contra a autoridade pública ao tribunal
singular, art. 16.º-2, a); etc.); ou, não curando do singular tipo de crime, dá a cada
tribunal competência para o conhecimento e decisão de crimes a que corresponda, emabstrato, uma pena até um certo máximo (v. g., os crimes puníveis com pena de prisão
até 5 anos serão da competência do tribunal singular, os crimes com penas superiores
serão da competência do tribunal coletivo).
100 Assim também HENKEL2 § 27 III 1 in fine.101 Eduardo CORREIA, Processo Criminal 276 s.102 Circunscrevendo igualmente esta categoria aos tribunais de 1.ª instância, R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 6 2.
Alargando-a, pelo contrário, a todas as fases processuais e assim imbricando-a com a competência funcional,Marques da SILVA I7 170 ss.
103 Sobretudo germânica: cf. BOCKELMANN, Strafprozessuale Zuständigkeitsordnung und der gesetzlicheRichter, GA 1957 357 ss., HENKEL2 § 27 III 2, OEHLER , Der gesetzliche Richter und die Zuständigkeit in Strafsachen, ZStW 64 1952 292 ss., e R OXIN / SCHÜNEMANN28 § 6/3.
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Quando o legislador aponte para esta segunda via de determinação abstrata da
competência e