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Sumário e organizadores do evento, acendem as velas em homenagem aos seis milhões de judeus mortos. Fico pensando o motivo das pessoas evitarem falar sobre essas mortes, mas falam

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0302 Revista 1933 | junho 2017

Sumário

Shalom - um pedido de paz de mulheres judias

Você sabe o que foi o Holocausto?

A vida na Europa

As reluzentes botas alemãs

Brasil, o país do futuro

E amanhã?

04

06

08

12

22

33

universidade Presbiteriana Mackenzie

esta revista é uma realização acadêmica para o trabalho de Conclusão de Curso do curso de jornalismo.

Textos: thais Bugelli santosFotografia: thais Bugelli santosOrientação: Ms. Prof.º hugo harrisApoio: união Brasileiro-israelita do Bem-estar social – unibesDiagramação: Bendita Filmes

1ª edição – junho de 2017

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04 Revista 1933 | junho 2017 05

Editorial

não sei explicar de onde veio minha admiração pela história dos judeus. Meu primeiro contato, assim como deve ter acontecido com muitos, foi durante meus es-tudos no colégio, apesar de já ter ouvido outras vezes antes sobre o holocausto, sem entender muito bem do que se tratava, quando uma professora tentava explicar a crianças dispersas e pouco interessadas sobre a histó-ria da ii Guerra Mundial. uma de minhas maiores amigas era uma menina judia que estudava na mesma escola que eu surgiu desse interesse. o fato é que eu nunca mais seria indiferente à história judaica.

sem dúvidas, fiquei bastante animada ao ver no meu e-mail o convite para o ato em homenagem às vítimas do holocausto. Recebi do diretor adminis-trativo da unibes, uma onG que entre seus diversos trabalhos sociais, ajuda os judeus vítimas do ódio nazista que se refugiaram no Brasil depois da guerra. Passei o resto do dia imaginando como essa cerimô-nia seria, as histórias que ouviria, as personalidades que encontraria e, talvez, dos contatos que faria contando a respeito do meu projeto.

no dia do evento, 29 de janeiro de 2017, contei cada minuto esperando pelo momento de sair de casa com destino à CiP, uma sinagoga localizada próxima à Rua da Consolação. ao chegar ao local do evento, uma fila se formava do lado de fora. Pessoas que não se viam há algum tempo se abraçavam e trocavam figurinhas sobre o tempo que estiveram longe. a fila começou a andar e minha curiosidade aumentava a cada passo.

ao contrário do que eu imaginava, a sinagoga era aberta e iluminada pela luz do sol, que ainda se fazia presente. Quando subo uma pequena série de de-graus, me deparo com um pequeno grupo de repór-teres. o entrevistado? nada menos que o Prefeito da cidade. Com isso, percebo que estava no mesmo lugar de outras autoridades governamentais.

Caminhei mais alguns metros, e dentro do corre-dor de vidro, que dava para o grande salão em que seria realizada a cerimônia, observo o público que foi prestar sua homenagem. Me surpreendi. esperava encontrar senhores com longas barbas, vestidos e ternos pretos, cachos grisalhos saindo de seus cha-péus, senhoras com perucas perfeitamente alinhadas, e suas saias longas acompanhadas de blusas de man-gas também compridas. o que, na verdade, vi foram senhores de camisas sociais vestindo calças jeans e um simples tênis ou sapato. e nada na cabeça, a não ser o tradicional quipá; senhoras sem perucas, ma-quiadas, vestidos curtos brigando com compridos, estampados ou lisos, se apressavam para garantir um lugar o mais próximo possível do altar.

o altar era sofisticado. na parede de mármore havia uma frase escrita em hebraico; ao lado direito um grande candelabro dourado com pontas ilumina-das por lâmpadas que se acenderam ao início da cerimônia, próximo de uma tecladista que acompa-nha os cantores; ao lado esquerdo, um candelabro menor que continha velas, que seriam acesas pelos sobreviventes.

as primeiras filas estavam reservadas para os so-breviventes que dividiam os flashes dos fotógrafos com os organizadores e apoiadores, ao lado das au-toridades. escolhi um lugar no fundo, quase na últi-ma fileira, que em poucos minutos estava repleta de espectadores. a lateral direita do salão era de vidro, o que permitia a entrada da luz do sol, dando um ar sereno ao local. Mas, aos poucos essas paredes invi-síveis ficaram cobertas por mais pessoas que chega-vam. televisores são posicionados nas laterais para que o público sentado ao fundo possa acompanhar a cerimônia, e ter uma visão melhor do altar.

após alguns minutos de atraso, a cerimônia se inicia. os cantores abrem com uma música no anti-

Shalom - um pedido de paz de mulheres judias

go idioma falado pela comunidade na época da guer-ra, o iídiche. o Rabino da Congregação israelita Paulista, Michel schlesinger, inicia um discurso em memória àqueles que já se foram. suas palavras foram doces, apesar do tema triste. o público se levanta e os hinos do Brasil e israel são cantados. enquanto isso, observo a nova geração que canta com lembran-ça e doçura o hino de israel que, apesar de curto, mostra como a comunidade, mesmo que não tenha uma maioria ortodoxa, preserva a raiz de uma religião tão antiga.

os discursos que seguem possuem a mesma men-sagem: jamais esquecer. jamais esquecer do que o povo judeu passou, para ter seu espaço respeitado perante o mundo. Mas, ao mesmo tempo em que o mundo aprendeu a tolerar a comunidade judaica, se esqueceu que a mensagem é universal. o mundo não admite e abomina quem faça piadas ou espalhe mensagens de intolerância aos judeus. Porém, fecha os olhos para o que acontece na síria. eis que tho-mas venetianer, um sobrevivente que se compro-mete a falar por aqueles que não possuem mais condições questiona: “Qual a diferença do que aconteceu conosco, com o que acontece na síria? De que forma o genocídio que acontece no oriente Médio, é diferente do que foi com o nosso povo? e as guerras que matam centenas de pessoas todos os dias na África?”.

Meu pensamento se perde no momento em que os sobreviventes, em companhia das autoridades de estado e organizadores do evento, acendem as velas em homenagem aos seis milhões de judeus mortos. Fico pensando o motivo das pessoas evitarem falar sobre essas mortes, mas falam com um pesar das mortes ocorridas na síria, compartilham vídeos, em redes sociais de crianças sujas de poeira dos escom-bros, mas ao verem fotos dos barracões repletos de escravos da segunda Guerra, viram a cara, ignoram. Por quê? Qual o critério para escolherem as tragédias que fizeram e fazem parte da história?

a humanidade acredita que o que foi feito contra o povo judeu deve ser esquecido, e nunca mais fala-do, em respeito às vítimas e aos seus descendentes. Contudo, esse esquecimento é o que está provocando mais guerras, mais propagação do ódio. o que é

feito para que esse pensamento mude? apenas um comentário sobre esse momento nas aulas de história. talvez aqui é que esteja o problema. em um artigo realizado pelo diretor do Museu do holocausto de Curitiba, ele reforça que a história do holocausto deve ser universalizada. o conhecimento sobre a shoáh deve ser ensinadoa e reforçado para todo o mundo, ser um debate aberto.

além disso, a ideia de que os sobreviventes não querem contar o que viram, não querem espalhar a mensagem de que o esquecimento só gera caos e guerra é parcialmente equivocada. É verdade que a sobreviventes que preferem guardar para si o que viram e que sofreram traumas tão terríveis que só de ouvirem fogos de artifício e latidos de cães de grande porte provocam a volta de lembranças negativas. Mas, existem também sobreviventes que querem, e contam suas histórias e pelo que passaram para hoje estarem vivos. Muitos tiveram sorte, outros nem tanto.

neste livro, você irá encontrar histórias de mulhe-res sobreviventes, de diferentes nacionalidades, que abrem suas vidas com a intenção de lembrar a hu-manidade que a matança deve cessar imediatamente. Que o amor precisa ser maior que o ódio.

Resta saber, caro leitor, que tipo de pessoa você vai ser. Do tipo que fecha os olhos, e seleciona a tragédia que deseja lamentar. ou do tipo que se desafia a conhecer o outro lado da história.

Thais Bugelli Santoseditora-chefe da Revista 1933

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06 Revista 1933 | junho 2017 07

antes da guerra havia cerca de 9 milhões de judeus vivendo na Europa. Na época, muitos es-tavam concentrados nas áreas urbanas, enquan-to outros viviam em aldeias conhecidas como shtetls no leste europeu, em países como Polônia e Hungria por terem uma cultura diferente das culturas nacionais, vivendo assim em isolamento. Era muito comum os judeus falarem em iídiche, dialeto que mistura elementos da língua alemã antiga e hebraica.

a vestimenta era como uma identidade. Quem os visse na rua rapidamente reconheceria que se tratava de uma família judia. os homens usavam quipás ou chapéus, as mulheres usavam perucas

ou lenços para cobrir o cabelo. Esses acessórios eram usados como forma de respeito à presen-ça de deus.

os judeus que viviam em outros países da Europa, como Bélgica, alemanha e França, se-guiam uma linha mais liberal da religião, e usavam roupas mais modernas, mas de acordo com os costumes da época.

a questão econômica variava muito. Existiam judeus ricos e pobres. os ricos tinham o privilégio de estudar em boas escolas e até iniciar a faculda-de. Já os pobres, em muitos casos, não podiam continuar os estudos, sendo obrigados a parar e iniciar algum trabalho para ajudar em casa.

magine-se acordar uma noite e precisar fugir, se esconder em um orfanato, ficar longe da família e perder amigos. viver sob o medo da persegui-ção, tremer de medo cada marcha ouvida da rua. Precisar começar a

vida em outro país, reconstruir tudo a partir do zero. as vidas de mais milhões de judeus europeus foram prejudicadas pelo ódio em massa. Muitos conseguiram fugir antes e se estabelecerem em países neutros. outros não tiveram tanta sorte, e o seu trágico fim é conhecido.

Partindo desse cenário, foi retratada as vidas de três mulheres judias, de diferentes nacionalidades que fugiram da perseguição nazista e conseguiram refazer suas vidas no Brasil, apesar das perdas no caminho.

surka nasceu polonesa, em 20 de janei-ro de 1926, mudou-se para a Bélgica com

Você sabe o que foi o holocauSto?

Sarah com o seu companheiro de anos.

a família, ainda criança, à procura de oportunidades de emprego. aos 6 anos conheceu este que seria seu companheiro para a vida toda, o piano. suas batidas

tortas no instrumento da vizinha, se tornaram suaves toques. hoje, suas mãos ainda dançam pelas teclas pretas e brancas.

Quando a escuridão chegou, perdeu o pai e o piano. Mas não se abalou. acredita que o destino de todos vem escrito, portanto, estava preparada para o que lhe espe-rava. Corajosa, enfrentou o perigo sem medo, e sobre-viveu. Quando tudo passou, foi construir sua vida com a família, e ao chegar em israel, surka deu lugar a sarah.

Marie Claire tem alma de jornalista. Mesmo não tendo cursado a faculdade, ela nasceu com a profissão. e se tivesse cursado, com certeza seria uma das me-lhores alunas. ao conversar com ela pela primeira vez, percebo que tem jeito para a coisa. É curiosa, amante de rádio novelas, e seus textos? Dignos de deixar qual-quer professor suspirando. além disso, Marie mostra que, apesar do tempo perdido com a guerra, soube recuperá-lo de maneira impressionante. Percebo isso quando tenta me ensinar uma de suas cinco línguas: húngaro, inglês, francês, alemão, e espanhol. Percebo que vou precisar de muitas aulas até conseguir falar um simples “bom dia” em húngaro.

nasceu sem entender por que precisava viver em um convento, sem entender o que era ser judia, e ainda longe da mãe. só quando morava no Brasil descobriu a religião. Da guerra herdou alguns traumas com ba-rulhos. tem pavor de bombinha de festa junina, fogos de artifícios e cachorros de grande porte. sábia, Marie diz que o sofrimento traz conhecimento, regenera a vida, e ajuda as pessoas se tornarem mais humanas.

Marie no seu lugar preferido em casa

rita com sua lembrança perdida

Rita sempre soube que o antissemitismo na Polônia era enorme, mas não esperava por nada daquilo. Mu-dou de cidade, precisou renegar seu Deus, e a viver em um quarto apertado quando os nazistas a alcançaram.

Mas a vida, de alguma forma, soube trocar a dor do passado, pela doce lembrança. um dia, ao visitar uma exposição em uma galeria,um quadro chamou sua atenção. em preto e branco, o desenho de uma meni-na segurando dois ursos de pelúcia parecia familiar. ao olhar o quadro, Rita se depara com ela mesma. o mistério de como uma foto do passado sobreviveu há tantos anos ainda não foi desvendado, mesmo assim, Rita agradece pelo artista, que mesmo sem saber, sou-be recuperar uma memória perdida.

Com ela, descobri que o polonês também não seria fácil aprender. Depois de anos, ter a língua materna viva é manter as raízes de sua origem forte. Rita passou para os filhos o que sabia, mas apenas a filha eliana ainda pratica com a mãe uma cultura quase esquecida. Quando sua família já estava formada, decidiu que era a hora de colocar sua história no papel, e fazer disso uma mensagem à sociedade: jamais esquecer.

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mudança para a Bélgica veio pela procura de emprego. junto à sarah, vieram seus pais, idel isek e Bajla Bergman, o tio com a esposa, e um amigo da família. era 1929, o pai de sarah trabalhava em uma fábrica da

cidade de seraing, uma cidade na Bélgica, localizada no distrito de Liége, a 101 km de Bruxelas. a mãe costurava roupas, e o tio saia pela cidade vendendo-as em uma bicicleta.

sua família não possuía posses, era simples. em sua casa morava sarah, sua mãe, e seu pai. Às vezes, seu primo, henry Bergman, filho do seu tio estilista, ficava em sua casa, depois que seus pais abriram uma lojinha. sarah e ele eram bastante próximos, e ti-nham apenas seis anos de diferença e lembra com felicidade dele.

Gostava muito da gente. Como nossos pais trabalha-vam muito, foi praticamen-te criado em casa. Às vezes, eu o levava para a escola comigo. além disso, minha mãe e ele tinham um cari-nho muito grande um pelo outro. – diz, sorrindo

a casa não era muito grande, um sobrado gemi-nado. entrava-se pela sala, onde tinha a escada para os quartos. Da janela da sala podia-se ver as outras ca-sas. Quando pergunto so-

a vida na Europa

A

idel isek, o pai de Sarah.Fonte: arquivo pessoal

as primeiras leis antissemitas começaram apa-recer em 1933, os nazistas estavam determinados a restringir a vida dos judeus ao máximo que pudessem. os decretos iniciais atingiram os ju-deus alemães, depois as cidades dominadas pelo regime criaram suas próprias leis. assim, era mais fácil ter controle dos cidadãos judeus.

Primeiro, cortaram os judeus que possuíam cargos públicos. a lei para restauração do Ser-viço Público e Profissional, de 1933, dizia que aqueles cidadãos que tinham cargos públicos que não fossem “politicamente confiáveis”, deveriam ser mandados embora. depois, os judeus foram restringidos a estudar nas escolas e universidades públicas, apenas 1,5% de alunos “não arianos” poderiam frequentar as aulas.

Com as leis de Nuremberg, em 1935, não impor-tava que fosse só judeu, e sim quem tivesse os quatro avós judeus também. Para ser judeu de fato, é necessário que nasça de mãe judia. Nesse decre-to também os judeus foram eliminados da atividade econômica de suas cidades, como maneira de “aria-nizar” os comércios foram extintos quase 70%.

todas essas leis e restrições foram pensadas para que os governantes alemães tivessem controles de seus cidadãos judeus. de forma que os impedindo de frequentar espaços públicos como teatros, cafés e cinemas, os mantinham em pequenos espaços, como pré-guetos. assim, seria mais fácil na hora do transporte para os guetos e campos de concentração.

as leis foram criadas antes do início da guerra, que começou apenas em 1939.

bre sua vida de criança, sarah lembra de quando esta-va na sala com o seu pai e sua mãe vinha trazendo uma panela de sopa, que caiu sobre ela. Ficou seis meses de cama, aos cuidados de uma enfermeira que deveria trocar seus curativos. Por ser filha única, sarah era muito mimada pelos pais.

na escola, sarah não participava das aulas de reli-gião, saía da sala e ficava esperando para retornar. Frequentava a sinagoga com seus pais somente em feriados importantes como a Páscoa, o ano novo e o Dia do Perdão. apesar de não serem ortodoxos, a mãe era bastante religiosa, no Dia do Perdão (Yom Kipur), sarah brigava com Bajla para que o jejum fosse até o meio-dia. segundo a religião judaica deve-se ficar em jejum o dia inteiro, não podendo ingerir qualquer tipo de alimento, inclusive água; não é permitido lavar o corpo, apenas as mãos e rosto an-tes das orações matinais; é proibido o uso de vestu-ário com couro, e deve-se orar o dia todo para que seus pecados sejam esquecidos.

Foi nessa época que conheceu seu companheiro pelo resto da vida, o piano. ouvia sua vizinha tocar todas as tardes, e se encantou com o som. Frequentava a casa ao lado, mas a mãe de sua vizinha ficava nervosa só de ver sarah bater no piano. um dia, a vizinha a levou até a professora, sem que a mãe de sarah soubesse.

a vizinha disse à professora “olha, acho que essa me-nina quer estudar, ela não sai do piano da minha casa”. ainda completou que falaria com os meus pais, com a certeza que eles me deixariam estudar. Chegamos em casa, e ela começou a conversar com eles, e meus pais não tinham muito dinheiro, e pensavam como iriam comprar um piano. – conta sarah lembrando do momento.

aos 6 anos, sarah começou a estudar na casa da professora Gealle, mas como sua habilidade para mú-sica apareceu desde cedo , a professora insistiu que fosse comprado o piano, já que a aluna estava ficando avançada e precisava de mais tempo para praticar. Com muito sacrifício, idel e Balja compraram o tão sonhado instrumento para a filha. sarah tivera aulas particulares até os 11 anos, quando a professora lhe disse que já estava muito avançada, e estava na hora de entrar no conservatório.

Me lembro de quando entrei no conservatório. era bastante rigoroso com horário, e aprendizado. todo final de ano, havia um exame, era uma sala especial, e

professores de outras cidades vinham para te avaliar. Por sorte, nunca tive problemas nos exames.

sua rotina era bastante puxada, acordava às 7:00 para ir à escola, que ficava perto de casa. a aula come-çava às 8:00 e terminava ao meio-dia, voltava para a casa para almoçar, e depois de uma hora, retornava à escola, onde estudava até às 16:00 horas. Duas vezes por semana, corria para casa, trocava de mochila, e pegava o bonde correndo até a cidade de Liège, para as aulas no conservatório, que duravam das 17:00 e iam até às 20:00. naquela época, havia um conservatório por ci-dade, e por ser oferecido pelo estado, as vagas eram bastante concorridas.

- Lá tínhamos aulas de teoria sofisticada, leitura de compassos, e notas. Às vezes, a esposa de um amigo da família, um alfaiate, ia me buscar no conservatório. acabava dormindo na casa deles, e no dia seguinte, saía correndo para não perder a hora da escola.

sarah também participava de um grupo de escotei-ros judaico, aos 12 anos. acampava com a organização judia da região. Ficava 15 dias no acampamento, onde os alojamentos eram separados por sexo, e as meninas ficavam responsáveis pela ajuda na cozinha.

Porém, com a ascensão do nazismo pela europa, as leis antissemitas chegaram, e com elas, a chance de sarah crescer na carreira musical acabou. no co-

Sarah voltando do conservatório em liège.Fonte: arquivo pessoal

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10 Revista 1933 | junho 2017 11

meço, ainda não tinha certeza do que lhe aconteceria, usava a estrela de Davi no peito, como qualquer outro judeu. Mas, em seu caminho, sarah encontrou pessoas que lhe mostraram que não importava se era judia ou não. no conservatório, os professores pediam para que ela tirasse a estrela: ali, ela era apenas uma das melhores estudantes de piano, sem importar a sua religião.

Maurycy David hinter, apelidado de edmund, e Mina, também possuía um apelido diferente, nusia, namoraram durante sete anos. noi-varam, e foram morar em Cracóvia, onde henrieta Roza hinter nasceu, em 28 de maio de 1930. Confor-me foi crescendo, sua mãe percebeu que outras crian-ças tinham uma certa dificuldade em chamar henrie-ta, e dividindo o nome da filha, surgiu o apelido de Rita, que hoje leva como seu nome público.

De maneira indireta, sempre foi ligada à arte. aos 3 anos fazia aulas de ginástica rítmica, depois cursou balé e piano. Às vezes, seu pai a levava para ver filmes de animação no cinema da cidade, um de seus pas-seios favoritos.

após a separação dos pais, em 1938, Maurycy foi para varsóvia, e Rita mudou-se com a mãe para a cidade de Katowice para a casa dos avós maternos. Foi muito mimada pela família de sua mãe, e tinha seu tempo disputado entre familiares, que queriam agradar a menina com doces, passeios ao parque e cinema.

antes de sair para a escola, toma-va pela manhã um copo de nata do leite fervido. Para o lanche, um sanduíche de ovo. Frequentava a escola pública, onde ela, com 7 anos, era uma das duas únicas crianças judias. e assim como sarah, eram obrigados a sair da sala no momento em que o padre chegava para ministrar a aula de religião.

- era uma pena, porque eu queria ouvir o que ele tinha a dizer. Mas não sei, talvez por eles pensarem que os judeus mataram Cristo. o que era muito desa-gradável porque quando voltávamos para a sala, nossos colegas nos olhavam como se fôssemos traidores.

Como ela mesma dizia, havia muito antissemitismo na Polônia.

Quando me mostra uma foto da sua classe em 1939, Rita confessa que adorava estudar, e sempre foi boa aluna. o que é perceptível quando percebo que ela estava sentada na primeira carteira. no colégio, sua matéria favorita era polonês. a solidão que sentia em casa, desaparecia na escola. tinha muitas amigas, mas com o antissemitismo crescendo, as amizades foram se afastando. as amigas que ficaram, eram também judias, e frequentavam a aula de religião judaica, le-cionada por um professor judeu, duas vezes na sema-na, em polonês.

- a senhora ainda fala polonês?- Claro, ainda falo e escrevo. Mas é terrível, meu

filho fala que precisa tirar a dentadura. – me olha rindo. – apesar de manter a língua viva, não tenho com quem praticar, falava apenas com a minha mãe.

Durante nossa conversa, percebi que mexia nas unhas das mãos, e olhava para baixo. sentava no imenso sofá que fazia curva na sala. Rita tinha uma postura retraída.

Mas essa postura desaparece quando lembra de suas brincadeiras favoritas na infância. Depois do almoço, gostava de pegar o patinete de metal azul, passava na padaria para pegar um doce com recheio de queijo, e se dirigia até um parquinho, onde passava a tarde comendo e brincando.

sobre a sua rotina familiar, sua mãe Mina, traba-lhava fiscalizando a entrada das pessoas nos cinemas, e por estar sempre entrando e saindo de casa, Rita foi praticamente criada por seus avós. aos domingos, seu pai a buscava para passarem o dia juntos. iam a uma confeitaria, passeavam pela cidade. apesar de morar

na cidade de varsóvia, não deixava de pegar o trem, enfrentar uma viagem de 5 horas, para estar sempre presente. Quando ficavam em casa, Maurycy tratava de colocar um disco na vitrola e partia para a dança com a “sua namoradinha” como chamava carinhosa-mente Rita.

Quando casou-se novamente, seu pai pediu a tute-la de Rita para Mina, para que pudesse passar mais tempo coma filha, e lhe apresentar a nova esposa. Porém, sua mãe recusou e disse que sempre que qui-sesse ficar com a menina, não haveria problema. Mas separá-las era uma condição impossível, o que é mais que comprovado com o andar da história.

Rita não tinha irmãos, nem primos. e lamenta por isso, para ela, na época, era muito difícil não ter uma companhia dentro de casa da mesma idade, e ser rodea-da de adultos. Lembra que quando tinha festas, convida-va sua amiga, e juntas dançavam. Porém, com a proxi-midade da sua família, Mina reencontrou um primo por quem tinha um carinho especial, que era recíproco.

Quando crianças, a família não aceitava o possível casamento dos dois. então quando cresceu, o primo Filip casou com uma mulher romena, e tiveram uma filha chamada Kora. um ano após o falecimento de sua esposa, Filip e Mina decidiram se casar. Rita lem-bra que, assim como sua prima, não gostava da ideia de ver sua mãe casada novamente. afinal, tinha espe-ranças que seus pais voltassem.

Me lembro bem, estava voltando da escola, quando cheguei em casa percebi que estava acontecendo uma festa. era para celebrar a união de meu padrasto com

a minha mãe. Fiquei tão brava que não queria descer para a sala, mas a governanta me arrumou, e desci com a cara fechada. Mas com o tempo, acabei cedendo.

nesse tempo, então a senhora teve uma irmã? Que era na verdade uma prima, já que minha mãe

casou-se com um primo. Foi bom. – nesse momento, Rita me abre um sorriso, e seus olhos recordam da época em que a solidão deixou de existir. – Mas se bem que ela tinha 7 anos a mais do eu, mas não importava.

Rita se lembra da prima-irmã: cabelo longo prendi-dos em tranças. ela, cabelo curto. a irmã no décimo ano, ela no terceiro. era bom ter uma companhia para poder conversar

na sua casa, a senhora teve uma educação ortodoxa?não, liberal. Mas meus avós tinham uma vida bas-

tante religiosa, frequentávamos a sinagoga nas festas judaicas, mas eu tinha permissão de acompanhar a minha babá ou empregada até a igreja. Meu avô só me pedia para eu não me ajoelhar. na hora que elas se ajoelham, eu deveria ficar em pé, não ficar sentada. era a única restrição, o resto, tudo bem.

hoje, o judaísmo moderno possui três vertentes: ortodoxos, reformistas, conservadores. suas diferenças estão nos modos em que seus seguidores cultuam a religião. os ortodoxos são os únicos que seguem os preceitos antigos estabelecidos na torá, como a dieta, as orações, e descansos aos sábados. É fácil os reco-nhecer devido a vestimenta preta, acompanhada do chapéu e enormes barbas.

os reformistas são os que mais se opõem à linha ortodoxa. são críticos ao livro sagrado, e apenas se-guem algumas regras, porém, não são adeptos à dieta e ao descanso sabático. a linha conservadora vem em contradição ao judaísmo reformista. essa linha baseia-se sobre os três pilares judaicos: a Lei judaica, a liber-tação nacional, e a língua hebraica. em contraste aos ortodoxos, os conservadores aceitam a socialização com os não judeus.

e a senhora gostava de ir à igreja?sim, eu adorava a minha babá, e onde ela ia, eu ia.

e a igreja é diferente da sinagoga, está cheio de qua-dros. e eu gostava de observá-los.

Quando não passava as férias com o seu pai, Rita ia para a fazenda do seu padrasto, a Fazenda Brzuska. Lembra que os durantes os dias de sol brincava no riacho com Kora e as outras crianças. Estrela de davi costurada pela rita

Sarah com sua turma do conservatório na Bélgica.Fonte: arquivo pessoal

E assim como Sarah, eram obrigados a sair da

sala no momento em que o padre chegava para

ministrar a aula de religião

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12 Revista 1933 | junho 2017 13

arah lembra-se com clareza daquela noite. era ainda de madrugada quando acordou, em 10 de maio de 1940, com a casa toda iluminada. sonolenta, acreditava que es-tava na hora de ir para escola, quando seus

pais lhe disseram que os alemães tinham entrado na Bélgica e era hora de fugir.

Fizeram apenas uma mala de mão e foram embora. na estação de trem de seraing, lembra que estava lo-tada de pessoas com a mesma intenção que ela, fugir. ao chegarem na França, foram para um campo de refugiados que ficava Midi da França, na parte não ocupada do país. essa região refere-se ao sul, em Mar-

selha. sarah lembra perfeitamente de ver as monta-nhas, que são conhecidas hoje como Pirenéus, que fazem divisa com a espanha.

Me lembro de olhar as montanhas e seus picos re-pletos de neve.

Lá viveram por 9 meses, entretanto, sarah, já com 14 anos, adoeceu, e a família achou que estava na hora de voltar para casa. na primeira tentativa, idel pagou um coiote para atravessarem a fronteira da França para Bélgica pela floresta. Porém, foram pegos pelos guardas nazistas, que os levaram para passar a noite em um quartel e, no dia seguinte, foram enviados para o campo de refugiados novamente.

botaS alEmãS

S

as reluzentes

os campos de concentração nazistas foram apenas uma parte do plano de extermínio dos nazistas. Em 1935, eles foram usados como cam-pos de trabalhos forçados para inimigos políticos do terceiro reich. os primeiros habitantes eram prisioneiros poloneses.

o transporte de pessoas começou em 1941. No mesmo ano, tropas nazistas invadiram uma peque-na cidade na Ucrânia. ali, fuzilaram todos os cida-dãos judeus e deixaram os corpos em valas. Com esse método de extermínio, perceberam que per-diam muito tempo, e os tiros chamavam atenção.

ainda em 1941, a ideia de morte por inalação foi usada no campo de Chelmno, na Polônia. os pri-meiros judeus trazidos nos trens de carga, eram mortos em salas fechadas, em que havia apenas um cano onde saía a fumaça produzida por um furgão que ficava do lado de fora. aqui, mais cin-co outros campos de concentração foram criados

ao longo do território nazista. o campo mais co-nhecido era auschwitz. Sua dimensão, na verdade, era formada por outros campos satélites como auschwitz-Birkenau, auschwitz-Birkenau ii.

Com a excelência desse método, os espaços foram criados, e as câmaras de gás construídas. Quanto maiores, mais vítimas eram feitas. Estima-se que cerca de seis milhões de judeus foram mortos pelos alemães seguindo o plano conhe-cido como “Solução Final”.

os judeus que conseguiam fugir atravessavam a fronteira para Suíça e outros países neutros. Muitos foram escondidos no Vaticano, como o rabino de roma. instituições religiosas como conventos e mosteiros escondiam boa parte dos refugiados. alguns padres católicos faziam regis-tros de certidões de batismo falsas para que ju-deus pudessem passar pela polícia alemã e fugir para zonas seguras.

Mas o pai de sarah não desistiu e pagou outra pes-soa para passarem pela fronteira. Dessa vez, tiveram sucesso e conseguiram chegar em casa. sarah lembra que era quase 23:00 quando chegaram em casa.

tudo estava igual. a casa estava preservada, e os vizinhos tomaram conta do gato que tínhamos. a primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi deitar na minha cama. Depois tomei um banho, comi alguma coisa, e dormi. estava muito cansada.

Com o tempo, a vida da família voltou ao normal. sarah voltou às suas aulas, idel voltou a fábrica, e a mãe continuou a costurar para o irmão. Contudo, era uma questão de tempo até que a tranquilidade aca-basse. Com as leis antissemitas bem mais restritivas que antes, sarah não pode mais frequentar o conser-vatório com o perigo de ser pega na rua. então, a professora Madame Dupont disse a sarah que podia continuar as aulas em sua casa. Mas depois de um tempo, a professora pró-nazista disse que era melhor sarah não vir mais, pois não era mais seguro.

um dia, guardas alemães bateram na porta. avi-saram que estavam recrutando mão de obra para trabalhar em uma fábrica de munição na França durante três meses. Caso o pai de sarah fosse, nada aconteceria com a família. e o foi o que ele fez. idel, com 40 anos na época, foi trabalhar para os nazistas, mas passaram-se os três meses, e ele não voltou.

agora sarah e Bajla deviam cuidar de si mesmas. sarah teve a ideia de trabalhar em uma fábrica de ar-mas com a mãe, assim, elas estariam seguras, e não seriam enviadas para algum campo.

Minha mãe achou que estava louca, indo trabalhar para eles. É como se eu estivesse me entregando para a morte. Mas disse a ela que era uma maneira de es-tarmos seguras por um tempo, trabalhando para eles, não mexeriam conosco.

Depois de muito relutar, Bajla permitiu que fossem feitas as inscrições para trabalharem na fábrica. na mesma semana que começariam a trabalhar, à noite, dois soldados nazistas bateram em sua porta dizendo

Fonte: United States Holocaust Memorial Museum

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Carta do governo Belga comprovando morte de idel no campo de Buchenwuld. Fonte: arquivo pessoal

que deveriam os acompanhar imediatamente. sarah e Bajla começaram a fazer, outra vez, uma pequena mala de mão. a mãe de sarah foi até o quintal, e jogou para o quintal do vizinho uma pequena bolsa com dinheiro. Porém, um dos homens viu o momento que a bolsa foi lançada.

o que você fez? – Perguntou o alemão rispidamente.apenas devolvi o dinheiro que estava devendo ao

vizinho. não queria ir embora com dívidas, senhor.neste momento, o soldado levantou o fuzil até a

cabeça de Bajla. antes que pudesse matá-la ali mesmo, o outro alemão apareceu e disse que não era neces-sário matá-la naquele momento. a lembrança que sarah tem dos nazistas eram de pessoas altas, que andavam de fuzis por todos os lados e tinham cara de alemães.

os homens fecharam a casa, e as levaram para um quartel da cidade. Chegando lá, o local estava lotado com os judeus da região.

tinha muita gente, encontrei minhas amigas de

o pão era tão ruim, úmido e duro, não era cozido, que era possível grudá-lo na parede. – Diz sobre a comida, que na época era racionada.

na casa da frente era possível ver que havia pessoas morando lá, mas sarah nunca soube quem eram. Po-diam ser pessoas contra o regime do hitler, ou até mesmo pró-nazistas. Quem sabe?

Pouco tempo depois que chegaram ao esconderijo, chegou um homem com um rosto conhecido. era abram Kutas, um amigo de idel que o encontrou no trem, a caminho do campo de concentração na França. abram contou que decidiu pular do trem, mas, como sarah recorda, idel era um homem medroso e portanto, decidiu ficar. antes, abram estava na França quando soube que sua mulher e filha foram levadas pelos nazis-tas para o quartel, onde sarah lembra de vê-las, antes de embarcarem no trem para nunca mais voltar.

sarah não aguentava ficar parada. Decidiu, então, ajudar a Resistência. Às vezes ia até à floresta, onde estavam escondidos os resistentes, para deixar recados. Por ser um pouco afastada do esconderijo, sarah an-dava escondida pelos caminho até o local para não ser pega pelos alemães.

Quando um dos rapazes chegava na casa para ditar o trabalho que precisava ser feito, ele trazia recados, papéis, orientações, e eu era encarregada de levá-las para os outros “soldados” da Resis-tência que viviam na floresta. a força deles era muito grande, havia muita gente contra os alemães.

enquanto sarah enfrentava o perigo, Bajla ajudava nas tarefas domésticas, e abraham ajudava o senhorzinho no que fosse preciso.

À noite, o casal de idosos dor-miam em um quarto separado, no andar de cima. sarah e sua mãe também dormiam em um quarto para elas, e os outros habitantes do esconderijo, incluindo abram, dormiam na sala.

Muitas vezes tive pesadelos, minha mãe precisava me sacudir para que eu acordasse e parasse de gritar. ela tinha medo que meus gritos fossem ouvidos pelos nazistas, e nosso esconderijo descoberto. – Do lado de fora era possível ouvi-los marchando.

Próximo ao fim da guerra, ouvia-se foguetes, bom-bas e explosões. os americanos entraram na Bélgica.

Foram quatro anos escondidas, até o fim da guerra. sarah já estava com 17 anos, e assim que saíram, não sabiam para aonde ir e o que fazer. Com o pouco di-nheiro que abram havia guardado, puderam alugar uma casinha. Depois, Bajla e abram casaram-se, e foram morar em israel.

Quando a guerra estourou, um casal de amigos ca-tólicos do tio de sarah se ofereceu para cuidar de suas mercadorias, para que pudessem fugir para a suíça. e, ao fim do combate, seus tios voltaram para a Bélgica e abriram uma nova loja, onde enriqueceram muito, já que as mercadorias agora estavam supervalorizadas. Quando soube que seus parentes estavam se preparan-do para ir à israel, o irmão de Bajla tratou de mandar fazer algumas joias para sarah. Presentes que, futura-mente, ajudaram a família em momentos difíceis.

Marie nasceu no despertar das bombas e do amor. em 1939 a segunda Guerra Mundial eclodiu, e Marie deu seu primeiro choro para o mundo. na ca-pital francesa, os alemães chegaram em 1940, avisando que ali uma nova era começava. a perseguição aos judeus se intensificou, aumentando a onda de terror.

Com cinco anos, já sofria o medo da perseguição. Mas antes da guerra, Marie ia à escola na Rue des Écoles, que ficava próxima à sua casa, um prédio na

Rue des Fossés saint-Bernard; no-mes que só foram possíveis de lembrar graças a tecnologia de mapas temos hoje. Depois de assis-tir a saga de um jovem que procura por sua família em outro país usan-do mapas via satélites, Marie se sentiu inspirada, e começou a sua saga em achar seu próprio passado.

o prédio de fachada dava entra-da para um pequeno conjunto de

edifícios que dividiam o mesmo jardim. eram cons-truções médias, com apenas quatro andares cada. havia um vizinho com quem a menina de cabelos negros conversava pela janela, Bernard. Marie passava metade do dia na escola, enquanto sua mãe trabalhava como costureira.

as primeiras lembranças de Marie da guerra foram quando, logo no começo, as sirenes anunciavam os bombardeios e a família corria para se esconder em uma estação de metrô.

Minha mãe disse “joga-se no chão”, e se jogou

também. Nisso ela disse para que eu não abrisse

meus olhos, só quando ela dissesse. Mas criança é

criança, né? E eu abri. Era um negócio tão melecado

escola com suas famílias. os alemães foram chamando nossos nomes. Cada um ia para um lado. Passamos a noite ali mesmo, amontoados. no dia seguinte, um general alemão disse “bom, as pessoas que tem a car-ta para trabalhar de um lado, as outras do outro lado”. eu e minha mãe fomos liberadas para voltar para casa, enquanto minhas amigas não tiveram a mesma sorte, e não voltaram mais.

Quando chegaram em casa, perceberam que esta-vam trancadas para fora. sarah voltou ao quartel para pegar a chave e puderam entrar em casa novamente. Pouco tempo depois de idel ter partido, em 1941, os alemães começaram a busca por novas vítimas. Bajla voltou correndo para casa. os alemães estavam perto, e pegando os judeus que restaram na região. as duas fizeram uma pequena mala e foram embora, deixando a casa para trás. Quando estavam na esquina, podiam ver os guardas entrando na casa para pegá-las, sem sucesso.

Mais tarde sarah soube, pela Resistência Belga, que a sua casa foi esvaziada, e seu piano retirado pela ja-nela. andaram durante horas até encontrarem uma lanchonete. já era noite, e decidiram parar para comer e pensar no que fariam.

sem saber onde ir à noite, era um desespero. – Re-corda sarah.

Pediram um lanche acompanhado de um café, e Bajla percebeu que estavam sendo vigiadas.

tem um homem olhando para nós. – Dizia assustada. nessa hora não tive medo. se tivesse que ser pega,

seria. afinal, era o meu destino.Mas o homem que aparentava ter 40 anos, alto,

loiro, forte e que trajava roupas esporte fino, não fazia parte dos nazistas, e sim da Resistência Belga. ao se aproximar, o homem lhe disse para ficarem tranquilas que ele iria ajudá-las.

ele nos levou para a sua casa, e lá passamos à noite. no dia seguinte, ele nos levou para um esconderijo, onde chegamos a pé.

o local era a casa dos fundo de uma grande. era governada por um casal de idosos belgas. a senhora era alta e magra, com cabelos brancos, já seu marido era um pouco mais baixo e magro. ambos aparenta-vam ter 80 anos. sustentavam a casa com a aposenta-doria que ganhavam, além da ajuda da Resistência, que trazia dinheiro e ticket refeição para que pudessem comprar comida.

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o metrô era o lugar onde todo mundo se escondia, porque os túneis são mais baixos que aqui, quando as sirenes tocavam. e nós saímos, e os aviões vinham por todos os lados. Minha mãe disse “joga-se no chão”, e se jogou também. nisso ela disse para que eu não abrisse meus olhos, só quando ela dissesse. Mas criança é criança, né? e eu abri. era um negócio tão melecado.

Posteriormente, um oficial ale-mão bateu em sua porta procurando pelo seu pai. Bela Deustch era engenheiro da aeronáutica em uma cidade próxima da França, e não estava em casa quan-do foram buscá-lo. Mas prometeram voltar no dia seguinte. no momento que partiram, nelli stern jun-tou tudo que podia em uma mochila: roupas, choco-lates e uma faca de cozinha tão grande, que lembrava uma peixeira.

nelli colocou Marie em um convento nos arredores de Paris. sentia que a filha estaria mais segura perto

de outras crianças, dessa maneira poderia se dedicar ao seu trabalho com a Resistência Francesa, e manter seu novo trabalho como empregada doméstica. o trabalho entre os resistentes é conhecido pelas condu-tas de sabotagem em quartéis alemãs durante a ocu-pação; além de tentar derrubar o governo imposto de vichy. nessa altura, seu pai já tinha sido levado para a campo de concentração de Dachau, sem nunca vol-tar, falecendo em 1943.

Quando o meu pai estava no trem a caminho do campo, jogou um bilhete pela janela, que mais tarde foi entregue para a minha mãe. nesse bilhete estava escrito “sou feliz porque apenas eu estou nesse trem, e não vocês. amo vocês.” só isso.

o campo ficava localizado próximo de Munique, na alemanha. Foi construído em 1933 em uma antiga fá-brica de pólvora, sendo denominado o primeiro campo para presos políticos; mas, depois foi aberto para receber todos os inimigos do terceiro Reich. Com os avanços implementados pelos generais, o campo ganhou um crematório em 1942, o que intensificou as mortes.

assim como todos os outros, Dachau estava a mer-cê de todo tipo de doença, falta de comida e experi-mentos médicas. ao final da guerra, Dachau tinha cerca de 67.665 prisioneiros, sendo 22.100 judeus. Foram libertados por tropas norte-americanas em 29 de abril de 1945.

Foi por meio dos trabalhos clandestinos que nelli conheceu arthur Blatt, um homem que trabalhava no mercado negro levando armas para israel. o encontro aconteceu durante algum tipo de reunião entre os

resistentes e, logo, arthur e nelli se uniram, e Marie ganhou um segun-do pai.

a vida no convento se baseava em estudar e se esconder dos ale-mães. Lugares de base católica eram

ótimos esconderijos já que os nazistas não faziam batidas, segundo Marie.

um dia houve um bombardeio próximo ao conven-to, eu estava em um andar superior em uma sacada de vidro. e a bomba caiu do lado da sacada, e com o impacto, a sacada rachou, o vidro caiu e minha perna direita entrou em um pedaço de vidro. Me lembro de estar sendo levada para um lugar subterrâneo, para nos esconder dos bombardeios, e como não tinha como fazer pontos, fui somente amparada com bandage.

Mas criança sara rápido, apesar do corte ter sido mui-to profundo.

a marca da guerra permanece no seu corpo. Marie tem flashes sobre o ano que passou no convento: lem-bra-se do dormitório grande com diversas camas lado a lado, e à noite, quando a madre superiora vinha apa-gar a luz. Quando sua perna sarou, Marie viu que outras crianças brincavam com os corrimãos das rampas e escadarias. era divertido ter tantas crianças por perto, de certa forma, ajudava a esquecer a guerra, mesmo que no intervalo das bombas. elas apoiavam a barriga e desciam até o final. ao tentar fazer igual, Marie deu uma cambalhota e caiu. Precisou ficar mais alguns dias de repouso devido às novas fraturas que ganhou.

acordou no hospital, engessada da cintura aos pés, além de ferros no joelho. Mas dessa vez, teve sua mãe para confortá-la. Foram apenas duas ou três vezes que nelli e Marie puderam se encontrar, sempre no con-vento. Quando a guerra acabou, Marie deu seus primeiros passos. De novo.

Devido às inúmeras rupturas, Marie precisou aprender a andar novamente. nelli a levava para passear no parque em um carrinho de bebê. Recorda-se da zombaria que ouvia das crianças, que a viam sendo levada pela sua mãe. Porém, esse período não foi de tanto mal. Foi nesse momento que o amor aos livros iniciou.

o desemprego na França era muito grande. Com o país destruído, alimentos como frutas eram artigos de luxo. o tio de Marie morava em Paris também, ele e a irmã saíram da casa dos pais na hungria para tentar a sorte em outro país, e também para se libertarem da doutrina ortodoxa em que viviam. Como era especialista em casacos de peles, Paris parecia o lugar cer-to para começar uma carreira. Com sete anos, já estava de volta à sua casa, que se manteve igual. aos poucos, a presença de arthur foi se fazendo contínua, depois que ele voltou de israel.

Minha mãe perguntou se eu gostava daquele ho-mem, arthur, e eu disse que sim. eu queria ele como pai. Quero bem para ele como pai. então eles se ca-saram na Bélgica.

não se sabe ao certo quando Marie saiu da França, mas ela supõe que tenha sido em 1950 quando nelli e arthur se casaram e seguiram para a alemanha.

Quando a guerra começou, Rita, com 9 anos, passava as férias na fazenda de seu padrasto. enquan-to deitada na grama com sua prima Kora, e brincan-do de visualizar figuras nas nuvens, os aviões alemães começaram a passar em voo baixo, observando-os.

Dias depois, souberam que os russos estavam inva-dindo a Polônia e enviando para a sibéria os donos de fazenda para trabalhos forçados. Foi quando seu pa-drasto decidiu recolher tudo que podia e partir. Mas antes de partirem, Piwko pediu ajuda a um emprega-do de confiança para enterrarem todos os objetos de valor como pratarias, cristais e casacos de pele.

nós nunca tínhamos visto avião lá. eles os olhavam, e nós os olhavam. Meu padrasto mandou carregar uma grande carroça com nata, mel; tudo que poderíamos levar, e fomos embora para a cidade de stanislavóv, ficar na casa de primos do meu padrasto.

a família viajou durante oito dias e oito noites, durante os dias, escondiam as carroças e deixavam os cavalos soltos para não serem alvos de bombar-deios, à noite seguiam viagem até chegar em um pequeno vilarejo, onde puderam finalmente descan-sar. enviaram uma mensagem para o primo de Piwko, que vivia em stanislavóv, para saber que es-tavam perto. Dias depois, Munio enviou uma escolta armada de quatro judeus civis para buscarem seus familiares. ao chegarem ao moinho de Munio, foram surpreendidos pelos russos que confiscaram seus cavalos, lhes deixandos as carroças.

no começo da guerra, a união soviética e a alema-nha eram aliadas. e em 1939, as duas nações invadiram

a Polônia, com o objetivo de repartir o país. a cidade de stanislavóv, na época, era dominada pelos russos. alemães e seguidores de stalin assi-naram um acordo de não-agressão. os soviéticos ficaram com o lado

leste, os alemães com o lado ocidental do país.os russos estavam recrutando donos de fazendas

para trabalhar na sibéria. Filip, mudou de profissão e se autointitulava funcionário da sua própria fazenda.

na nova cidade, Rita frequentava uma escola nova, mas novos hábitos foram incluídos. era obrigada a usar lenços vermelhos para dizer que faziam parte da era comunista. na parede, a foto de jesus foi substi-tuída por stalin; na hora de rezar, cada um deveria rezar para o seu Deus.

“Sou feliz porque apenas eu estou nesse trem, e não

vocês. Amo vocês.”

Foi nesse momento que o amor aos

livros iniciou.

Béla deustch no trabalho, pai da Marie.Fonte: arquivo pessoal

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- eu rezava para o meu em silêncio, e não vinha nada. e depois, quando tínhamos que rezar para o Pai stalin, abriam-se as portas, e entravam cestas enormes recheadas com chocolates, pão de mel, bo-lachas champanhe, o que você quisesse. ai, tínhamos que responder em coro “Deus existe? não, Deus não existe. Quem é nosso Deus? Pai stalin.”

- o que a senhora achava disso?- Declamava, como se diz? um verso, você come-

mora e fala. Lógico que não concordava com isso.Porém, tivera bons momentos na escola. Foi nessa

época que Rita foi selecionada para ter aulas de balé. Quando viram que não ficariam pouco tempo em stanislavóv, Mina encontrou uma casinha, onde uma senhora alugava um quarto, cozinha e um banheiro, que ficava fora da casa. nessa casa moraram Rita, sua mãe, seu padrasto e a Kora.

Contudo, nossa sobrevivente lembra-se que a vida ao lado dos russos também não era maravilhosa. Rita detalhou momentos em que viveu perto de pessoas com uma cultura completamente diferente.

- Minha mãe começou a vender algumas roupas pessoais para as senhoras russas, e vimos que elas as usavam para irem ao teatro. usavam as camisolas com casaquinhos de couro em cima e eram felizes.

Rita também recorda de situações que para ela são totalmente fora da civilização descrevendo momentos que presenciou dentro da sua casa.

Conforme os dias foram passan-do, Rita adoecia com medo de nun-ca mais ver sua mãe. Munik fez de tudo para deixar a filha o mais confortável possível, sabendo que a ligação entre as duas era muito forte. seu pai foi convocado para trabalhar no pátio da Gestapo como engraxate, e acreditou que estariam a salvos da deportação com esse trabalho ar-ranjado. Porém, não demorou muito para o caminhão que os levaria para o gueto da cidade chegasse.

a dor de nunca mais ver Mina aumentava a cada momento, mas no momento que subia no caminhão, ouviram alguém chamar pelo nome de edmund hitner. o homem, que se identificou como sr. urban, dizia ter sido contratado pela mãe de Rita para buscá-la. edmund, então, se abaixou e perguntou à Rita o que ela gostaria de fazer. Rita preferiu ficar com a sua mãe, e foi retirada rapidamente da fila que se formava para embarcar no caminhão.

no dia seguinte, urban e Rita seguiram viagem de trem. a cada hora, Rita ficava mais ansiosa com o reencontro com a sua mãe. ao desembarcarem em

stanislavóv, a pequena menina não se aguentava de tanta emoção, es-tava tão feliz que perguntou ao seu segurança se podia pular de alegria, já que viajaram sem nenhum risco de bombardeio no caminho.

urban friamente respondeu que a menina deveria se comportar, pois poderia tropeçar e quebrar a cabeça. Rita se recompôs, e caminhou ao lado do homem pago por sua mãe.

os soviéticos partiram em retirada e convidaram a família judia para ir embora. Rita recorda que eles deixaram alguns vagões de trem para que eles pudes-sem viajar.

- Mas não queríamos ir, por acharmos que ao che-gar em Moscou, seríamos levados para a sibéria. além de serem bastante primitivos. não pensavam que a terra do Bethoveen era uma coisa mais cultural, mas infelizmente... então ficamos, e esperando as reluzen-tes botas alemãs. Desgraça! já na primeira semana, já avisaram quais eram as ruas proibidas para cachorros e judeus. Quais eram os compartimentos do bonde para judeus e cachorros, e em ônibus também. então, vimos em que pedestal nos colocaram.

Rita entendia pouco sobre o que acontecia, mas via com atenção as mudanças que a vida de sua família sofreu. Mina, por exemplo, colocou para fora todas as peles e cristais que sobraram.

- Mamãe não tinha casacos de pele. ela pegou uma blusa de gola, e escondeu um cristal e todas as joias que teve colocou no forro do casaco. Graças à Deus.

- isso foi o que a salvou?- salvou, e ainda pagou as três certidões de nasci-

mento falsas para gente sair do gueto.Quando ela conta que chegou a ir para um gueto,

me lembro dos livros que li sobre a vida nos guetos. a comida era escassa, podre, e não era suficiente para todos que viviam lá.

- Como a senhora ficou sabendo que iria para o gueto?

- os alemães avisaram que iríamos morar com os nossos. os caminhões vinham pontualmente, e só podíamos levar aquilo que conseguimos carregar. Cada um de nós, mamãe, eu, minha irmã e meu padrasto levamos uma mala de mão, e fomos des-pejados em uma praça onde havia três mesinhas

Além de serem bastante primitivos. Não pensavam que a terra do Bethoveen

era uma coisa mais cultural, mas infelizmente...

documento católico falso usado por rita

- Quando os russos entraram em casa e viam que não tinha vodka, bebiam água de colônia – enquanto relata, Rita abre um pequeno vidro imaginário, e bebe o líqui-do imitando os que os indesejáveis inquilinos faziam.

além disso, ela conta que uma vez, ao entrarem no banheiro questionaram o motivo pelo qual havia uma banheira dentro de casa, quando não havia nenhuma criança. Mas na verdade, era um bidê. outra ocasião, foi quando eles entraram na casa de um amigo da família, avistaram um tapete persa, e por acharem que era grande demais, simplesmente o cortaram ao meio, e saíram cada um com um peda-ço embaixo do braço.

- Realmente eles têm uma cultura totalmente dife-re... – antes que eu pudesse concluir a frase, Rita se adianta em dizer que era impossível a convivência.

- não sei como é agora, mas naquele tempo, não dava.

Quando Rita mencionou sobre a entrada livre dos russos em sua casa, questionei como isso era possível. ela me explicou que eles tinham direito a ter um quarto.

- Quem tinha mais que um, deveria ceder o quarto para abrigar os soldados. Mas não por muitos anos. em casa, cedemos o quarto de hóspedes.

- era sempre o mesmo, ou trocava?- era sempre o mesmo, mas ficava três, quatro me-

ses, depois ele era transferido, entrava outro. não era uma coisa premeditada.

Para fugir da deportação, Kora e Rita ingressaram em grupos comunistas para jovens.

ovacionaram a fala de todos os oradores para não serem le-

vadas para interrogatório pela polícia secreta russa, a KGB.

em 1941, o pai de Rita, Maurycy, havia se casado novamente, e foi buscá-la para irem até a

cidade de Lvov, onde co-nheceria seu irmão de sete

meses, oscar. Rita deveria ficar com seu pai durante duas

semanas, porém, os russos se retiraram da Polônia, e o perigo de ser pega pelos nazistas era muito maior.

Se eu fosse...Havia arames no gueto No muro bem alto de fatoE eis que por uma fresta Saiu de repente um gatoEspreguiçou-se o felino E com um bocejo profundoatravessou o muro do gueto Para o outro lado do mundoo sentinela viu o gato Pois de perto o portão vigiavaMas não se ouviu grito Nem tiro nem granadao bichano alcançou o beco À procura do ratoÓ d’us misericodioso Por que não me fizeste um gato?

rita Braun, 1992Fonte: arquivo pessoal

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com os Gestapos e com os ucranianos. os ucrania-nos eram a segunda polícia dos alemães. além de falarem um pouco polonês, eles sabiam reconhecer um polonês melhor que os nazistas.

- Como eles sabiam diferenciar?- eles diziam que nós éramos judeus porque andá-

vamos rápidos e tínhamos o olhar assustado. tanto que na época, mamãe fez uma bandagem que deixava apenas um olho para fora, assim não chamava atenção com o meu olhar assustado e andar rápido.

Rita descreve que na época ser judeu era um crime. - os homens que diziam não ser judeus, mesmo

mostrando documentos, eram obrigados abrir as calças. se era circuncidado, acabou. Meu padrasto apanhou por achar que poderia enganar os guardas. Levou tanto soco do lado esquerdo, que quando veio ao Brasil, morreu com derrame do mesmo lado.

Quando peço para me explicar melhor como foi levado para o gueto, Rita lembra que só os homens precisavam ficar nas filas. seus tios, que também estavam morando em stanislavóv, já estavam na fila, os dois irmãos de sua mãe receberam a letra a, o padrasto que tinha 45 anos, e já era considerado idoso, e tinha reumatismo recebeu a letra C. nesse momento, ele foi levado para perto de um caminhão, onde tinha guardas ucranianos que o levariam para trabalhos forçados.

- Mas meu tio arrancou a letra a, colocou no bolso, entrou em uma outra fila e recebeu outro a. Correu junto do cunhado, meu padrasto, e disse “Que isso? você se enganou, esta não é tua letra”. arrancou a letra C no chão, e colocou a nova letra o peito, e o tirou de lá.

Peço para Rita me descrever o gueto, e ela responde que era parecido com o Bom Retiro. a diferença é que aqui no Brasil é permitido entrar e sair. sua memória traz a visão dos muros com cercas elétricas, com guar-das nas entradas e saídas; sua dimensão era como um bairro. Possuía ratos, pulgas e insetos por toda parte.

- tínhamos escolas, mas eu não frequentava porque era onde as crianças eram abrigadas, e depois enviadas para os campos. Mamãe não me deixou ir. nossas acomodações eram um quarto para a família, e um banheiro simultâneo.

Tínhamos escolas, mas eu não frequentava porque

era onde as crianças eram abrigadas, e depois

enviadas para os campos

“Mamãe não voltar em uma hora, você vai no

orfanato, diga que você é órfã e seja freira, o que

eles quiserem”

para a cidade de Boryslav. Depois de passarem dias escondidos no sótão do seu irmão, Mina encontrou um apartamento de dois quartos onde passaram a morar. Filip permanecia escondido. Quando precisa-va tossir, elas tossiam junto. Falava-se baixo para que as casas vizinhas não ouvissem a voz masculina que ali vivia. Passava o dia todo lá, e só a noite podia sair para dormir.

Deixávamos um banquinho e um balde atrás do armário para ele fazer suas necessidades, e a noite, esvaziávamos em uma fossa nos fundos.

Mina começou a trabalhar com o seu irmão como secretária, mas mantinham um teatro. era como se não se conhecessem, travavam-se mutuamente como senhor e senhora. e Rita passava o dia limpando a casa.

Com o fim da guerra, a família voltou para Katowi-ce. encontraram a antiga casa ocupada por um amigo de um dos tios de Rita. alugaram um pequeno apar-tamento e esperavam pelos papéis que lhe dariam entrada para o Brasil. Durante os dias que passaram na cidade, Rita ia sempre olhar as longas listas, na esperança de achar o sobrenome de algum familiar que tivesse sobrevivido. Mas as buscas foram em vão, e a vida foi seguindo seu curso.

Rita voltou à escola, e completou o ginásio. se inscreveu para as aulas de vôlei e ginástica no perío-

do da tarde. Mina atravessava a antiga fronteira entre Polônia e alemanha, e comprava roupas de mulheres alemãs, e as revendia em Katowice; e Filip permanecia em casa.

Durante o tempo que passaram em Katowice, Rita precisou inter-

pretar o papel de católica. naquela época, para re-ceber a comunhão era necessário se confessar. en-tão, ia à igreja aos domingos com a sua mãe, e se confessava. inventava pecados, o padre lhe dava alguns pais nossos e ave marias, e ficava tudo bem.

Porém, como não tinha consulado na cidade, foram à Paris. solicitaram o visto também com os papéis de conversão, porque Getúlio vargas, então presidente do Brasil, não permitia a entrada de judeus, como bem lembramos.

Mamãe tinha documentos de conversão, apresentou, e as portas se abriram. - suspirou com tristeza.

parecia mais gordo com a sua presença ali. Mas não importou. Conseguiram sair e foram morar em uma outra cidade na Polônia.

Foram diretamente para a casa de um alemão que abrigou Kora, onde passaram a noite. antes de segui-rem para a cidade de stryj, onde ficariam meses até se mudarem para Boryslav, Mina e Rita decidiram pegar um trem a Cracóvia na esperança de acharem um lugar para alugar. Quando chegaram à velha cidade, encontraram amigos que lhe ofereceram um abrigo temporário. Porém, a proximidade entre eles e os alemães era muito grande, então foram até uma pensão onde passaram alguns dias.

Depois de um longo dia procurando um local para morar, Mina e Rita estavam prestes a repousar, quan-do chegaram à pensão policiais alemães com a intenção de recrutar novos prisioneiros para os campos de trabalhos forçados na Polônia. Quando chegou a vez de Mina, os oficiais desconfiaram de seus documentos, e pediram para que fossem buscá-los no dia seguinte na Gestapo.

Quando chegamos ao quartel, minha mãe me colocou sentada sobre nossa mala na escadaria da igreja e disse “Mamãe não voltar em uma hora, você vai no orfanato, diga que você é órfã e seja freira, o que eles quiserem”. Falei que tudo bem, mas não ia. Me lembro eu sentada na mala olhando de longe e pensando que se ela não voltasse, eu iria puxan-do a mala até lá.

e ela voltou?sim. - Rita faz uma pausa e lem-

bra com saudades da mãe. sabe, filha única, e ela só para mim. era uma heroína. Corajosa e destemida.

Quando Mina retornou, foram em direção da es-tação de trem. Lá pegaram a locomotiva que ia até stryj, onde passaram a noite em um convento. no dia seguinte, foram em busca de uma casa para mo-rar e esperar até que Filip fosse encontrá-las. acha-ram em uma das vilas da cidade uma casa que havia um armário enorme, o lugar ideal para esconder o padrasto, já que ele possuía feições semitas, e elas não. Quando passavam soldados alemães, Filip corria para atrás do armário.

após seis meses, decidiram se juntar a um dos irmãos de Mina, tio edmund, e pegaram um trem

Rita e toda sua família ficaram no gueto de stanis-lavóv. Mina tinha permissão para sair do gueto, pois trabalhava na segregação de roupas, que, segundo os alemães, eram os pertences de judeus que não puderam carregar. Porém, Rita recorda de a mãe contar que nas roupas haviam marcas de tiros e manchas de sangue. Piwko trabalhava em uma padaria, e Kora também conseguiu um emprego fora do gueto, como gover-nanta. Foi nessa época que Rita aprendeu o dialeto iídiche com judeus húngaros.

o que você fazia no gueto?jogava queimada com as outras crianças, ou qual-

quer brincadeira que precisássemos apenas de papel e caneta. Mas na maior parte do tempo ficava em casa esperando minha família voltar.

suas condições de vida nos guetos eram as mais precárias possíveis. Faltava comida e a que recebiam ou estavam podres demais para ingerir, ou a porção era escassa; às vezes recebiam restos de comida dos soldados alemães que viviam ao redor. além disso, eram obrigados a viver na companhia de ratos, pio-lhos e pulgas. Devido à isso, muitas doenças se pro-liferavam, e sem os cuidados certos, muitos acabavam morrendo. Diariamente, Rita via corpos sendo car-regados em carrinhos de mão para fora dos guetos.

os que não morriam, eram enviados em remessas para campos de concentração. Du-rante o tempo que passaram no gueto, Rita passou por vários apuros. Precisou se esconder diversas vezes para não ser levada para os campos de extermínio, viu parte da sua fa-mília ser deportada.

entre 1942 e 1943, o gueto come-çou a ser esvaziado Mina pensou em uma maneira de fugir, então usou as joais que restavam, e como traba-lhava fora do campus, conseguiu falar com um padre católico para a compra de certidões de nascimento que afirmavam que Mina e sua família não eram judeus. Foram necessários dias até que ficassem prontos.

os documentos arranjados eram de falecidos pa-dres. Com eles em mão, Rita Ringel se tornou eva Rysiek, Mina Ringel e Filip Ringel, Maria Rysiek e Filip Rysiek. Quando saíram, Piwko usava um sobre-tudo que Mina havia trazido do trabalho; Rita estava embaixo agarrada na barriga. Lembra até que ele

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braSil, o país do futuro

começo da vida em israel não foi fácil. Chegar em um país novo depois de anos longe isolada do mundo, é como nascer de novo. Mas aos poucos a vida foi ganhando um rumo. Parece até

mesmo coisa de filme, imigrantes chegam a um país diferente, e lá começam a procurar lugares que possam encontrar semelhantes. Foi mais ou menos assim que sarah conheceu seu futuro marido, simon Lewin.

seus pais foram pegos pelos nazistas. antes de chegaram a israel, simon e seu irmão conseguiram fugir da perseguição atravessando as montanhas dos Pirineus. Pegaram um navio até chegar em israel. anos depois, seu irmão mudou-se para Canadá, ode reside até hoje.

Casaram em 1949. a família foi morar em um bair-ro afastado em tel aviv, por ser mais barato. a rua

O

Sarah em sua primeira casa em israel.Fonte: arquivo pessoal

Getúlio Vargas subiu ao poder, pela segunda vez, em 1937, implantando uma ditadura militar. Porém, ele já preparava o país para políticas dis-criminatórias. Entre seus planos, estava o de se aproximar dos governos nazifascistas, pelos quais tinha bastante admiração. a essa altura, Hitler já dominava a alemanha e determinava as leis que segregariam os judeus.

Com uma política restritiva, os judeus foram proibidos de entrar, tendo que chegar ao país clandestinamente. aqueles que conseguiam, paga-vam por “cartas de chamadas”, os que um dia foram médicos, intelectuais, jornalistas, entravam no Brasil com certidões católicas falsas e com

profissões adulteradas para agricultores. além disso, podiam depositar uma quantia de 500 con-tos de réis para conseguirem um visto.

Entidades judaicas tentavam trazer seus pa-rentes, e irmãos de religião por meio dade cotas de imigração: apenas uma certa quantidade por nacionalidade. Essas mesmas instituições foram obrigadas a parar de ensinar sua cultura: não era permitido falar outra língua a não ser o portu-guês, e qualquer tipo de produção impressa era vetada.

a cidade de São Paulo foi a maior colônia de simpatizantes fora da alemanha. Cerca de 785 filia-dos faziam parte do Partido Nacional Socialista.

ainda era de areia, as casinhas eram simples. Por saber falar bem hebraico, simon trabalhava em um banco em tel aviv. ao se lembrar do marido, sarah comen-ta que simon era muito inteligente.

em 1952, sarah deu à luz ao primeiro filho do casal, Daniel. a vida em israel foi ganhando forma, puderam se mudar para um outro bairro mais pró-ximo da cidade grande; aqui sarah decidiu que era a hora de encontrar seu companheiro: o piano lhe fazia falta e, logo, tratou de comprar e voltar a praticar. era um apartamento pequeno, mas o suficiente. Ba-jla e abram também se mudaram para um próximo ao casal, assim a família estava sempre próxima.

Dani já tinha um pouco mais de um ano quando começou a frequentar a escolinha de frente ao prédio. em 1955, chegou Gabriel, que ficava com a avó en-quanto sarah lecionava piano e aprendia hebraico com seus alunos.

- eu morava no térreo, e na frente do prédio tinha um jardinzinho. eu colocava o Gabi em um berço. eu dava aula, e ficava olhando-o brincar pela janela. ele era muito bonzinho. e quando ele via minha mãe, abria os braços para pega-lo no colo.

Foram nove anos vivendo em israel, até que simon decidiu levar a família para morar no Canadá, para ficar perto do seu irmão que havia partido antes. arrumaram as malas, e de navio, de israel foram até o porto de Marselha, na França. o calor de israel desapa-receu ao chegarem na França, e sa-rah precisou comprar casacos para os meninos que tremiam de frio. Ficaram alguns dias, até que pude-ram pegar o navio que os trazia até o Brasil, onde pegariam outro navio até o destino final

sarah lembra que a viagem foi muito difícil. ao passar pela ilha de Gibraltar, o navio balançava muito, o que fez a maior parte da tripulação passar mal. em dezembro de 1956, a pele clara de sarah fazia contras-te ao clima tropical daqui; os casacos de inverno du-plicavam o calor que sentiam.

- Desembarcamos em santos. e eu não conhecia nada do Brasil, só conhecia o Rio de janeiro por cau-sa da Carmem Miranda que via no cinema. Mas eu não sabia que existia são Paulo, foi no navio que nos

falaram que era melhor vir para são Paulo, que tinha mais possibilidade para trabalho. e viemos para cá.

Pegaram o trem que subia a serra até a são Paulo. eram 23:00 quando saíram da estação de trem da Luz, exaustos, com muitas malas, e sem saber falar portu-guês tentaram chamar um táxi que os levassem até o bairro do Bom Retiro, que souberam que era um bair-ro onde viviam muitos judeus. e que à noite, em uma

praça próxima à josé Paulino, eles se reuniam e ficavam conversando.

Conseguiram pegar um carro, e falaram ao motorista “Bom Re-tiro”. sarah lembra que o rapaz lançou um olhar estranho a eles, mas como eram imigrantes recém-chegados não tinham ideia da proximidade que era. o motorista

foi honesto, e cinco minutos depois avisou que já ha-viam chegado ao Bom Retiro. Desceram na praça e, como esperavam, avistaram os judeus conversando. em iídiche, perguntaram onde poderiam passar à noite e um dos senhores os levou até uma pensão na Rua dos italianos que alugava quartos.

- alugamos um quarto para passar à noite, só que entramos no quarto cansados, e deitamos para poder dormir. Mas ninguém dormiu de tanta pulga que tinha na cama. Meu deus! e o Dani que era muito branqui-nho, ao contrário do Gabi que era mais moreninho,

Família lewin: Simon, Sarah, daniel e Gabriel.Fonte: arquivo pessoal

Desembarcamos em Santos. E eu não conhecia

nada do Brasil, só conhecia o Rio de Janeiro

por causa da Carmem Miranda que via no cinema

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sarah se recuperou rápido, mas as crianças também sofreram. Foram seis meses de tratamento para curar as alergias de pulgas que deixaram feridas no corpo do pequeno Dani, e depois Gabi tivera uma infecção de garganta, e precisou ser operado no hospital do Centro de são Paulo.

as mudanças repentinas não agra-davam a sarah, que não gostava de morar no cortiço. então, Com o pouco de dinheiro que ainda tinham, alugaram um apartamento pequeno na Rua josé Paulino, que tinha tam-bém um quarto extra, que alugaram

para um senhor. sarah ficou sabendo que havia uma escolinha judaica no bairro, e como tinham acabado de chegar no Brasil, não pagariam nada para deixar as crianças lá. Dani já tinha quatro anos quando foi es-tudar nessa escola, e o Gabi ficou com a mãe porque ainda era muito pequeno, tinha apenas um ano e meio.

Rosa, a dona do restaurante, sabia como era ser uma família de imigrantes em um país totalmente desco-nhecido e ajudava como podia, sabia das dificuldades que os judeus vinham enfrentando depois da Guerra. Levou sarah até uma loja de confecção, e disse que lá conseguiria um emprego, mesmo falando poucas pa-lavras em português. os donos da loja, que também

Sarah voltando a tocar.

ficava sentado porque não conseguia dormir, e acabou pegando uma alergia a pulgas e ficou com feridas pelo corpo inteiro.

no dia seguinte, alugaram na mesma rua, um quar-to em uma outra pensão com um quintal para lavar roupa e, do lado de dentro, quartos e uma cozinha. Próximo, havia um pequeno restaurante judeu, em que os donos também vieram de israel, por lá que faziam suas refeições porque não podiam cozinhar no lugar que moravam. Pegaram amizade com o casal, e a filha deles pegou amizade com os meninos.

nessa época, o Bom Retiro era predominantemen-te habitado por famílias judaicas. Depois de um tempo, saíram da Rua dos italianos, e alugaram um aparta-mento em um cortiço. a dona do restaurante, Rosa, emprestou-lhes um tipo de fogão portátil para que a família pudesse ter suas refeições em casa.

- o banheiro era lá fora. Me lembro que um dia o Dani foi no banheiro, e a gente ouviu gritos. Para sair do banheiro, ele quis abrir a porta, e o dedo ficou preso. ele gritava, meu marido foi lá, precisou tirar a porta.

Durante o dia, faltava água. então era necessário lavar a roupa à noite. Por isso, sarah acabou pegando friagem nos calcanhares; com a dores que sentia, ela mal podia se levantar, e simon precisava ajudar. Foi ao médico, e explicando sua situação às lágrimas, sarah temia que algo ruim lhe acontecesse. Recém-chegada, e com duas crianças pequenas, e sua mãe longe, o medo a rodeava o tempo todo. Mas o médico a tran-quilizou, e passou um remédio que a curaria logo. Homenagem recebida pela ordem dos Músicos de SP

eram judeus, lhe entregaram uma mala com roupas, e a mandaram vender de porta em porta nos bairros próximos.

- o trabalho era: você batia na porta e mostrava as roupas e ganha-va uma porcentagem do que vendia. eu nunca tinha vendido nada na minha vida, mas decidi tentar para não ficar parado, não é?

na primeira vez, sarah foi acom-panhada para que pudesse aprender. Levaram-na até o bairro Planalto Paulista, próximo àavenida Rubem Berta, e explicaram como deveria ser feito o trabalho, as vendas eram feitas a prazo. o com-prador dava uma entrada, e continuava pagando aos poucos. aprendeu a pegar ônibus para trabalhar, e aos poucos começou a ir sozinha. simon nesse tempo fi-cava cuidando do Gabi enquanto sarah trabalhava.

sarah ri ao lembrar os primeiros dias de trabalho. ainda sem jeito, mostrava a quem abria a porta que estava lá vendendo roupas. Com o tempo foi conquis-tando uma boa clientela. um dia, bateu em uma casa bonita de uma família italiana, em poucos segundos de conversa, colocaram a pequena vendedora para dentro de casa, serviram café, bateram papo e, no final, sarah saiu com muitas peças vendidas.

ao ver que o trabalho ia bem, sarah sugeriu a simon que alugassem uma casa no Planalto Paulista, deixar de viver de comissão, e começar a vender as mercado-rias por conta própria.

era uma casinha bonita, tinha um quintal. uma varanda com vidro. era uma casinha gostosa. vivemos dois anos lá.

Mas ao contrário que via na Bélgica, sarah percebeu que não podia confiar tanto nas palavras das pessoas e acabou tendo prejuízo. um ano depois da chegada de sarah ao Brasil, seus pais desembarcaram nas terras tropicais. o que foi um alívio para ela, já que a mãe podia ficar com as crianças, que estavam em uma es-cola apenas meio período, o resto do dia, Bajla toma-va conta, para que simon pudesse procurar emprego.

todo dia eu me lembro dela. eu era filha única, e ela me ajudou com tudo. ela não deixava me desani-mar, me levantava.

Conseguiram se recuperar, graças a uma ajuda de abram, que ainda tinha um dinheiro guardado que recebeu de seu trabalho como metalúrgico em israel. Passados dois anos, os proprietários da casa decidiram vendê-la, e os inquilinos alugaram uma outra casa na mesma rua, um pouco mais para frente.

após três anos de sua chegada, abram decidiu se internar para poder operar, e tratar de um problema de varizes que sofria. Foi para o hospital são Paulo. operou, e estava prestes a receber alta quando houve complicações por causa da trombose. era meia noite quando a vizinha de sarah tocava a campainha na porta: havia recebido uma ligação do hospital. abram havia falecido. Como era possível? a notícia devastou a família.

abram foi enterrado no Cemitério israelita da vila Mariana, e, apesar da dor que sentia, sarah precisava trabalhar, e decidiu que era a hora de ter de volta seu antigo amigo. Com a ajuda de Rosa, colocou um anún-cio no jornal em português de aulas de piano em francês. não demorou muito para que a primeira aluna aparecesse. uma vez por semana, sarah ia até à Praça oswaldo Cruz ensinar helena a tocar piano e, em troca, aprendia português com ela.

sem conseguir mais ficar sem o piano, sarah não demorou a alugar na loja, hoje conhecida como Casa amadeus, na Praça da sé, próxima à Rua Direita. e assim começou a fazer propaganda de suas aulas pelo bairro. o número de alunos aumentou, princi-palmente crianças vinham aprender com ela. simon também ia bem em seu trabalho, como vendedor da

Família no sobrado na rua Miruna. Fonte: arquivo pessoal

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enciclopédia Britânica. nessa mesma época, o primo de sarah, henry, acabara de se formar em farmácia, e agora viviam em Bruxelas com os pais.

Minha mãe recebeu uma carta do meu tio, ele iria mandar uma passagem para ela para ir até Bélgica, porque minha mãe tinha direito de receber uma inde-nização do meu pai, da fábrica que trabalhara.

Bajla ficou seis meses em Bruxelas a fim de receber esse dinheiro. Quando retornou ao Brasil, deixou claro que o dinheiro seria usado para dar entrada em um lugar deles, para que eles pudessem morar. Coin-cidência ou não, ficaram sabendo que próximo à Rua Miruna, havia uma rua particular com dezessete so-brados para morar. no andar de baixo, ficava a sala, uma cozinha grande com um quintal, e um quarto com banheiro para Bajla, e em cima mais dois quartos, um para as crianças e outro para o casal.

não demorou muito para que a mudança fosse feita, e mesmo assim, os alunos continuaram a vir para a aulas. Começava cedo, às 8:00 da manhã, para-va apenas para almoçar, e seguia até às 18:00.

tinha uma professora na mesma rua, na Miruna, que dava aula de piano. eu não sei, eu nem conhecia ela. eu não sei se os alunos dela passaram para mim, eu comecei a ter um pouco mais de alunos lá. Fiquei um pouco mais conhecida, e um dia estava dando aula, a campainha tocou. era o fiscal da ordem dos Músicos dizendo que eu não podia dar aulas sem ser registrada. eu disse que não sabia, ela me dedou, e mandou o fiscal na minha casa.

sarah recebeu uma multa, e o endereço da ordem dos Músicos onde deveria prestar um exame para comprovar se era apta para dar aulas. em 1966, sarah se registrou após passar no teste. hoje, ela é a afiliada mais antiga da ordem.

Com a rotina pesada de aulas, sarah mal tinha tem-po para olhar as crianças, que ficavam sob a supervisão da avó. havia muitos terrenos baldios próximos à casa, os meninos, ao chegarem da escola, deixavam o dever de lado, e iam jogar bola. Mas a farra acabou quando simon os colocou para trabalhar. Dani traba-lhava como office boy em um banco durante o dia, e estudava à noite. Quando chegou a vez do Gabi, sarah sugeriu que o filho fosse fazer um curso de computa-ção, que ficou sabendo por uma aluna, eliana, que teria que parar as aulas de piano.

Quando ela começou as aulas, era surda e muda. não entendia nada do que ela falava, ao invés de ficar uma hora com ela, ficava duas. um dia, ela chegou chorando porque teria que parar as aulas por causa do curso de computação, que naquela época se chamava perfuração, que iria fazer. Per-guntei o que era, e ela me explicou do que se trata-va, e falei para Gabi ver este curso para não traba-lhar como office boy.

simon era muito inteligente, e devido às diferente línguas que falava, ganhou espaço na editora que ven-dia os livros. já havia conseguido escrever para o pequeno jornal que a empresa tinha, e agora conseguiu trabalhar lá dentro. e, assim, a vida seguiu seu curso, sarah trabalhando naquilo que amava, ensinando piano, e simon crescia no seu emprego.

Foram treze anos morando no sobrado, até que compraram um apartamento na Rua Fagundes Dias, próximo ao local que mora hoje. nessa altura, simon já estava desempregado, por causa da doença; come-çou a ter problemas na bexiga, um tipo de carne es-ponjosa crescia neste local, o que fazia ele sofrer fortes dores, e precisou operar três vezes. Mas a sua condição se agravou, e simon acabou falecendo em 1978, aos 60 anos.

De agora em diante, sarah deveria guiar a famí-lia ao lado de sua mãe. os meninos viraram ho-

Sarah e Bajla com a pequena Gabriela. Fonte: arquivo pessoal

mens, Daniel cursava a faculdade de administração, e namorava neide, que futuramente seria sua es-posa. Gabriel seguiu carreira na área de computa-ção, fez outros cursos de programação e cursou faculdade de análise de sistema e administração ao mesmo tempo.

Dani começou a trabalhar no hospital do servidor, ele e neide já estavam noivos, e alugaram uma casinha, em uma travessa da avenida santa Catarina, e então se casaram aos 22 anos. Logo, vieram os netos Rafael, Michel e Raquel. as mudanças continuaram. sarah mudou-se mais uma vez entre a morte do marido, e a partida de sua mãe.

Gabi fornecia dava consultorias para algumas em-presas, e foi trabalhar em Minas Gerais em uma fábri-ca. Lá, encontrou sua esposa, vilma, e tiveram a Ga-briela. Mudaram para são Paulo, e quando Gabi dava assistência a uma fábrica em são josé dos Campos, foi convidado para ficar definitivo, onde reside até hoje. não demorou muito para chegarem os bisnetos: Da-niel, filho do Rafael; nicole e Mateus, filhos do Michel.

Bajla era uma pessoa bastante ativa e, segundo sarah, dificilmente ficava doente. Porém, quando elas já moravam na Rua alcatraz, na metade do ano de

1984, Bajla apresentava sintomas de gripe, e quando sarah chamou um médico para olhar sua mãe. Com seu estado piorando, uma noite sarah a colocou no carro e levou até o hospital Modelo, e precisou ficar internada.

o estado de saúde foi se agravando, e depois de muitas idas e vindas ao hospital, Bajla acabou falecen-do em 28 de dezembro de 1984, aos 80 anos.

sarah aprendeu a viver sozinha, sua independência a fortaleceu, e hoje, na companhia do seu velho ami-go, o piano, passa os dias tocando composições de grandes músicos.

o motivo de partirem para a alemanha foi um emprego que nelli conseguiu como professora de corte e costura em uma escola profissional. Marie foi para o colégio de freiras novamente. Lá, foi batizada. a família viveu entre 2 a 3 anos. Foi graças a um en-contro com amigos americanos de arthur que foi possível a vinda da família ao Brasil.

e por qual motivo escolheram o país como destino?Porque aqui era visto como o país do futuro. e não

havia escombros, ruínas da guerra. Como França e alemanha estão destruídas, meus pais quiseram vir

para o novo mundo. além disso, meu pai tinha um amigo que dizia que no Brasil é o país das maravilhas, o dinheiro cai das árvores.

Chegaram em 1954, meses antes de Getúlio vargas cometer suicídio. Marie Clarie tinha entre 14 e 15 anos quando colocou os pés no país que dali em diante seria sua nova casa. Desembarcou no porto de santos no navio Bretagne, e, lo-go, chegaram em são Paulo. a pensão que foram morar ficava próximo à vila Mariana, uma casa com muitos quartos, e uma boa comida. Comia-se muito bem.

Lá, nelli começou a costurar para fora, uma forma de ajudar a vida da família. Como era muito nova, e sem entender o que acontecia, Marie lembra que depois de um tempo conseguiram alugar uma casa na Rua vergueiro,

Marie com o grupo de escoteiros na alemanha, 1952. Fonte: arquivo pessoal

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onde sua mãe montou uma oficina de costura, e seu pai uma criação de galinhas nos fundos.

a casa ficava exatamente no começo da Rua Do-mingos de Morais com avenida Professor noé azevedo, onde ficava o antigo Colégio ipiranga. nessa época, Marie já dava seus primeiros traços no papel, escrevendo sobre seu cotidiano. os animais que seu pai criava no porão foram suas primeiras personagens, que hoje são apenas mais um de mui-tos trabalhos “jornalísticos” que ela exerce, apenas com uma conversa, Marie consegue transformar algo banal em beleza.

as galinhas ali criadas eram vendidas para consumo, todas possuíam autorização do instituto Biológico. Depois de uma série de doenças que levaram a criação à morte, arthur desistiu.

e como foi aprender a língua?olha, criança aprende muito rápido. só quem já

conhece dois, ou três idiomas sabe. no começo eu não queria falar muito, mas depois eu peguei tão fácil, que minha mãe brigava comigo porque eu não queria mais falar francês em casa.

Marie começa a contar suas impressões do Brasil. ela lembra que adorava ir à feira com a mãe aos do-mingos. Ficava encantada com a abundância de frutas.

na França não tinha nada, e aqui tinha tanta coisa. tinha banana, eu comia banana que nem um macaqui-nho no começo. Minha mãe levava só banana, e mais banana. Me marcou enormemente. Domingo era um dia sagrado para mim, fazia faxina em casa, e depois íamos à feira. eu adorava ir, tinha tanta coisa linda!

e o que vocês conservaram dos costumes?

Bom, minha mãe, como uma francesa naturalizada, mas de origem húngara, ela fazias comidas típicas da húngria. ela fazia pratos como repolho recheados, páprica, pimentão recheados, nhoques e tortas de maçãs.

Marie também conta que a alimentação foi uma das tradições que a mãe mais conservou. imagine, chegar em um país totalmente diferente, com uma comida com ingredientes nunca ouviu falar como arroz e feijão. Marie demorou muito até entender que essa era a comida típica do país.

a família recém-chegada tinha vizinhos libaneses, o que era uma festa para Marie, porque todo dia tinha um lanche da tarde. segundo Marie, quem vem da europa, e passou por todas aquelas dificuldades, sabe o que é ter uma mesa farta.

tinha tanta coisa gostosa como geleias, pães doces, gelatinas e queijos, todo dia às quatro da tarde.

seus estudos foram no Colégio ipiranga, o que para ela era uma farra. Principalmente no feriado de 7 de se-tembro, quando todas as crianças ganhavam sorvetes. Marie e sua família viveram por anos na casa na região da vila Mariana. Foram morar em Pinheiros, na Rua arthur de azevedo, nelli abriu um salão de modista, e logo ganhou uma clientela fixa - uma de suas clientes mais assídua foi a atriz tônia Carrero.

Com a mudança, Marie foi estudar no Liceu Pasteur, uma escola franco-brasileira, ainda na vila Mariana. Foi nessa época que Marie começou a ter uma vida mais

Marie com o seu violão na casa na rua Martinho Prado.Fonte: arquivo pessoal

judaica. era como se estivesse conhe-cendo a religião pela primeira vez.

as mudanças foram tantas. Meu espírito de criança e adolescente não teve tempo de se adaptar a todas essas adaptações e digerir essas situ-ações todas. então, nunca tive tempo de pensar em uma vida judaica.

seus pais eram recém imigrantes que lutavam para conseguir o di-nheiro do dia a dia. o padrasto de Marie também veio de uma família bastante religiosa e, de vez em quando, Marie ouvia seus pais conversando sobre algum rabino ou sinagoga. todas essas mudanças nunca deixaram ela decidir o que queria. apesar de ter sido batizada, nunca teve contato com a religião católi-ca, e muito menos judaica. Foi no Brasil que ela come-çou a entender melhor.

Mudaram para a vila Clementina, depois que sua casa foi assaltada. Lá, Marie começou a frequentar um grupo de jovens do Bom Retiro, e começou a ter mais contato com a religião judaica. Foi com eles que ela des-cobriu as suas raízes. em casa, a religião também ficou mais forte, arthur começou a frequentar a sinagoga nas grandes festas, e quase sempre Marie o acompanhava.

Dois anos depois, foram morar no Centro de são Paulo, na Rua Martinho Prado, em frente à sina-goga Beithel, aqui conheceu pessoas da Congregação israelita Paulista, a CiP. Frequentou as festas dos judeus da Rua augusta, a hebraica, e as festas de ano novo, Yom Kippur, e de Rosh há shaná, que é o início do ano novo judaico. Para Marie, a religiosidade aflorou aqui.

Marie fez os estudos até onde pode no Liceu, por-que naquela época havia um problema de reconhe-cimento da parte francesa pelo brasileiro. Marie, para continuar, os estudos teria que ir para a França, prestar um exame, voltar para o Brasil, continuar os estudos em uma faculdade, e depois prestar um exa-me de reconhecimento de matérias prestadas. Marie cursou um ano de faculdade na França, mas devido a problemas financeiros, precisou voltar.

em 1959, aos 20 anos, Marie decidiu ir para israel, achava que lá seria seu lugar. Ficou no Kibutz, uma pequena comunidade israelense que é sustentada por trabalhos agrícolas. trabalhou nos campos de algodão, e aprendeu a língua hebraica. Depois de um ano, não

conseguiu se adaptar a vida de quar-tos e refeitórios coletivos. então, hospedou-se na casa de um tio muito religioso, em haifa. viveu mais quatro meses, e depois voltou ao Brasil.

Quando voltou mudou-se com os seu pais para a Bela vista. Devido às diversas línguas que Marie apren-deu ao longo da vida, pode ser re-presentantes das empresas que tra-balhou, o que lhe deu o direito de viajar muito. Casou-se em 1966, e três anos depois nasceu o amor da sua vida, Daniel.

Mãe e filho possuíam uma rela-ção de amor puro. Dani era seu companheiro, seu melhor amigo. ele era toda a família que precisava. Com ele, sentada em sua poltrona na sala, hoje na vila santa Catarina, devorou todos os filmes da franquia

Passeio na Hebraica com Nelli e arthur.Fonte: arquivo pessoal

Passeio na Hebraica dani, Nelli e arthur.Fonte: arquivo pessoal

Meu espírito de criança e adolescente não teve

tempo de se adaptar a todas essas adaptações e

digerir essas situações todas. Então, nunca tive

tempo de pensar em uma vida judaica

A gente  se divertia muito.Em 1957 eu morava num sobrado, na rua

artur de azevedo em Pinheiros. Uma rua muito tranquila, estreita. Não havia movimen-to; só um carro estacionado, o do meu pai. Há poucos metros de lá, estava um pequeno rio e uma ponte de cinco metros de comprimen-to que fazia a alegria de algumas pessoas que, nos dias quentes, ficavam pescando. Mas nunca vi peixes!

Marie ClaireFonte: blog pessoal – palavreando.blog

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30 Revista 1933 | junho 2017 31

do espião 007, e admirou todas as produções do cine-ma hollywoodiano.

Daniel era tradutor, e assim como a mãe, falava muitas línguas. teve uma educação judaica, e sabia da importância da história de sua mãe. Quando se foi, Marie não pensou que seria tão cedo, precisou de um tempo para entender porque ele havia partido. sofreu, brigou, chorou. Mas também entendeu que o tempo da dor precisava acabar, e encontrou na unibes, o antigo Centro de Cultura judaica, uma forma de viver sem seu grande amor.

em 1998, voltou para a alemanha e para a França. Percorreu lugares por quais passou durante a infância, e por intermédio de uma amiga secretária alemã, conseguiu encontrar o convento que frequentou, e se emocionou ao encontrar a freia johanna, que se lembrou dela.

Com 79 anos, a francesa tem uma agenda lotada du-rante a semana. Às segundas pratica dança folclórica, às terças o coral, de quarta tem aulas de teatro e às quintas feiras assiste uma palestra com convidados diferentes. Mas às sextas não vai ao antigo Centro.

também participa da virada da Maturidade, even-to que uma vez ao ano, tem o objetivo de trazer ativi-dades para os idosos, valorizando suas histórias. o evento é aberto a qualquer pessoa, de qualquer idade, o que ajuda na troca de experiências. Marie participa das atividades que exercitam a memória.

hoje, Marie não é uma pessoa religiosa. Quando era mais nova, precisou ser tornar católica. apesar de ser judia, ela mistura todas as religiões e acredita que Deus está em todos os lugares. ainda frequenta algumas festas importantes de cultura judaica, mas ainda comemora o natal, para ela, essa festa é a união de todas as religiões.

nos finais de semana, quando não está entretida com suas séries de televisão, como Breaking Bad, True Blood, Sense 8, Arrow e Games of Thrones, está alimen-tando seu blog, onde compartilha seus pensamentos e transforma seus dias em contos com emoção.

antes de viajarem para o Brasil, Mina achou que deveriam aprender a língua do país que a partir de agora, seria sua casa. então, ela as matriculou no instituto Ber-litz de Paris, onde cada sala de aula lecionava um idioma diferente. Porém, foram ensinadas por um professor português. Lembra que as primeiras frases que aprendeu foram “faz favor, dar-me licença”. e nesse momento, o sotaque polonês ganha um chiado português.

Foi durante essas aulas que Rita conheceu seu pri-meiro noivo. os dois faziam parte da aliança France-sa. Como no começo não estava interessada no rapaz, Rita mudava de sala, mas ele insistia e ia atrás. Depois de tanta insistência, ela finalmente cedeu e iniciaram o namoro. Contudo, com a viagem ao Brasil se apro-ximando, o rapaz prometeu que escreveria para ela sempre, e viria visitá-la.

Chegaram em 1947 no navio Formose. Passaram pelo Rio de janeiro, e desceram em santos, onde o irmão de sua mãe, Filip, os esperava, que sobreviveu porque estava no Brasil anos antes, e não conseguiu voltar porque as fronteiras estavam fechadas.

- Graças a Deus. – saúda Rita, ao lembrar que seus outros tios não tiveram a mesma sorte.

Quando chegaram aqui, Mina queria mostrar ao irmão que sabiam falar português, e as frases aprendi-das foneticamente foram colocadas em prática. o tio de Rita perguntou o que Mina estava dizendo, e ela, orgulhosa, dizia estar falando português.

- Mas isso é português de Portugal! – respondeu.Depois da cômica confusão, foram para a casa de

Filip no bairro de Pinheiros. Lá, moraram por três meses, até alugarem uma casa da Rua Basílio da Cunha, próximo ao Cemitério israelita, na vila Ma-riana. o sobrado era espaçoso. Conseguiram sublocar um do quartos para um vendedor de sabonetes, já que o aluguel era alto. uma sala era de bagagem, onde fi-cavam as malas e caixotes que haviam trazido da viagem. Possuía um quintal.

rita realizando o sonho de ser escoteira depois da Guerra

Piwko começou uma pequena produção de choco-lates na garagem, porém, como não tinha conhecimen-to do clima do Brasil, e muito menos sobre conservan-tes, os bombons apodreceram, e tudo precisou ser jogado fora.

Mina inscreveu, novamente, Rita em um curso para que agora aprendesse a língua corretamente. Foi aprender português na universidade Mackenzie, em um curso por correspondência, pois era o mais curto, com duração de 2 anos. Mas lembra das dificuldades que passou.

- imagina, você é obrigada a mudar de país. vai para a Polônia, você se sente totalmente deslocada, você se sente surda e muda. sem raízes.

tento mudar o tom da nossa conversa, e começou a perguntar sobre sua adaptação no Brasil.

- o que você achou de mais estranho?- as quitandas. as frutas abertas para qualquer um

pegar. Me lembro que foi a primeira vez que vi caqui, e achei que fosse tomate.

em 1948, Piwko faleceu aos 54 anos, foi enterrado no Cemitério israelita, na vila Mariana. Rita precisou abandonar o curso, e foi atrás de trabalho, conseguiu um emprego em uma loja de roupas na Rua Direita, a Monalisa e Lingerie City.

- Às vezes, quando o movimento estava devagar, eu vestia uma das blusas da loja e saía andado pela rua. as moças me perguntavam onde havia comprado a roupa, e logo dizia onde elas po-diam encontrar. Foi assim que conquistei a confiança do dono, o senhor me colocou como gerente. eu era gerente aos 18 anos.

Rita retomou os estudos com uma professora par-ticular. uma moça judia e polonesa dava aulas de português como sustento.

ela me dizia que estava namorando um rapaz, que “sei que quando envelhecer vai ser gordo, barrigudo, mas eu gosto dele. se chama Maurício.”

Rysia fez aniversário, e convidou Rita para festa. o até então namorado de sua professora a chamou para dançar. enquanto dançavam, o galanteador dançarino pediu para que Rita o ensinasse a falar frases como “eu te amo” e “você é linda”. Rita o ensinava, mas em um dado momento, percebeu que ele não estava ensaian-do para dizer para a suposta namorada.

na hora eu não gostei. e como eu acredita que eles namoravam, eu fiquei com medo de minha amiga achar que eu estava tentando roubá-lo. Lembro de ver a mãe dela me olhando, e abanando o leque bravamen-te. - naquele dia, iria dormir na casa dela, fiquei com tanto medo de dormir na rua.

Rita pediu para que ele parasse com os elogios, pois ela precisava dormir na casa de sua professora, já que sua mãe não a deixava voltar sozinha à noite para casa. Maurício negou o relacionamento dele com Ry-sia, mas Rita foi firme e disse que não estava interes-sada no rapaz.

no dia seguinte, Maurício convidou todos que es-tavam na festa para um café à tarde na casa dele. Rita lembra que ninguém foi buscá-la naquele dia, e soube mais tarde que quando disseram que ela não iria, Maurício mandou todos embora porque sem Rita, não teria festa. Mais tarde, ele foi até a casa da jovem Rita, e pediu a mão dela em namoro para seus pais.

se apaixonou. - solta um suspiro, acompanhado de um sorriso quando lembra do antigo amor.

e a senhora?nem tanto, porque na época, eu tinha aquele noivo

em Paris.Quando o namoro começou, Rita ensinava Maurício

a dançar bolero, tango, valsa; e ele a ensinou samba. o namoro deu certo, foram três anos, até que um dia Maurício pe-diu a mão de Rita em casamento para sua mãe.

ele conseguiu substituir todos que eu perdi. Mas me lembro de quando me pediu em casamento disse que me amava, mas não po-

deria viver com a minha mãe. então disse a ele que estava livre, pois não me separaria dela. não quis se separar de mim, e casou. e se deram muito bem.

o casamento foi realizado no templo Beth-el, em 1951. Mina falou com o Rabino Pinkus para realizar a cerimônia. apesar de não terem muito dinheiro, queria que a filha tivesse um casamento judaico. o rabino disse que não haveria problema, colocaria os noivos como os últimos do dia, para que pudessem aproveitar a decoração das outras celebrações.

ela, tinha 21 anos. ele, formava-se na segunda faculdade. Maurício a. Braun era engenheiro forma-do pela escola Politécnica de são Paulo, e estava

As quitandas. As frutas abertas para qualquer um

pegar. Me lembro que foi a primeira vez que vi caqui, e achei que fosse tomate

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32 Revista 1933 | junho 2017 33

conquistando o segundo diploma, mas agora em Direito.

eu casei de branco com um veuzi-nho. ele de chapéu, porque naquela época não se usava quipá.

Foi uma cerimônia simples, dife-rentes dos casamentos ortodoxos. os casamentos judaicos tradicio-nais são cheios de rituais. os noivos devem se banhar como um ato de purificação espiritual; no dia do casamento, devem permanecer de jejum até o fim da cerimônia, em que sob o chupá, pálio nupcial. em um certo momento, o noivo traja o kitel branco, representando a sua mortalidade, e que Deus está ape-nas em sua mente.

a noiva usa um vestido de tom claro, significando pureza. o noivo deve se responsabilizar em alimentar, e se preocupar em nunca faltar roupas para a sua fa-mília. o casamento é visto como uma união legal e moral, além de física e emocional.

Passaram a lua de mel em santos, e Rita se recorda que no quarto dia sua cunhada apareceu.

ela ainda disse que tinha convidado minha mãe para nos encontrar, mas ela se recusou a ir. Lógico que não! era minha viagem de núpcias - ri ao lembrar da cena.

Maurício mudou-se para a casa de sua esposa. Come-çou a carreira dividindo um escritório com outros três profissionais. Depois alugou um outro escritório no edifício Marrocos, localizado na Rua Conselheiro Cris-piniano, Centro da Cidade de são Paulo, dividia com o irmão Bernardo, que era advogado. Rita continuou com o trabalho na Rua Direita, e Mina ficava em casa.

Logo após o casamento, Maurício recebeu uma proposta de emprego. Foi indicado para trabalhar como engenheiro da Polícia técnica de são Paulo. enquanto me contava sobre sua vida de casada, Rita se lembrou de um episódio interessante.

no bairro da aclimação, tem um Cemitério israelita. e nós soubemos - porque fazíamos parte de uma ir-mandade judaica - que pichadores marcavam os muros com a suástica. então o meu marido se prontificou com um colega a ficar na torre da igreja próxima. Ficaram lá a noite, e quando viram que estavam pichados, eles desciam e pintavam por cima. era tarefa deles.

um ano se passou, e Rita descobriu que estava grá-vida do seu primeiro filho. Porém, como a vida do casal não era farta, Rita tinha receio que algo faltasse para a criança. Mas a felicidades de ter uma criança foi maior que qualquer medo. nasceu eliana, em 1952. os pri-meiros dias de mãe de primeira vagem foram difíceis, Rita consultava o médico a cada movimento da filha.

Dois anos depois, Rita deu à luz ao segundo filho, edmundo. nome em homenagem ao irmão de Mina, e seu pai, vítimas da guerra. Como filha única, não queria que sua filha tivesse a solidão que passou. ape-sar de ser uma família liberal, Rita achou importante que os filhos aprendessem sobre a cultura. enviou os dois para estudarem em uma escola judaica. Para ela é importante que saibam sobre o judaísmo e a história que carrega. em casa, acende as velas do shabat, e possui um pequeno candelabro de metal em uma das estantes que decoram sua sala de estar.

os filhos casaram, e a família cresceu. eliana tem dois filhos: Cláudia e eduardo. edmundo tem allan. Com a família formada, Maurício se aposentou, e como hobby produzia peças de xadrez em metal. viu os netos crescerem, e se tornarem adultos. viajaram para lugares como argentina e israel. Para Polônia, voltou apenas uma vez acompanhando a viagem de jovens que foram estudar sobre o holocausto.

hoje Rita vive sozinha, Maurício faleceu em 2014, vítima de câncer, e Mina de causas naturais pouco tempo depois.

E amanhã?no livro “os bebês de auschwitz” da jorna-lista inglesa Wendy holden, a personagem hanka acreditava que conseguiria sobreviver

aos campos de concentração. Fã do filme “e o vento levou”, hanka repetia para si a frase que lhe dava forças para continuar: “e por pior que seja a noite, amanhã é outro dia”. Com esse auto incentivo, hanka conseguiu sobreviver ao frio, a fome e conseguiu dar à luz ao seu filho.De alguma forma, nossas sobreviventes encontraram forças para continuar e esperar que o dia de amanhã fosse realmente melhor. Mas o que elas guardam des-se período para elas? o que hoje representa a história que carregam em suas vidas? aqui, elas deixam uma mensagem sobre o que significou ser judia naquela época de terror e, hoje, com o passar dos anos, o que essa identidade significa para elas.

Sarah“Para mim, foi um pesadelo. Pesadelo que não consigo esquecer, porque mesmo que eu não quero pensar, ficou tudo marcado;

você vê que eu não consigo esquecer nada. tudo que eu passei ficou gravado.”

Marie Claire“ser judia naquela época era medo, ser exclu-ída e não ter o que comer. hoje é orgulho. existe israel, e todo judeu tem que saber que tem uma raiz, uma cidadania.”

Rita“na época da guerra era

lástima, porque eu não pedi para ser judia. hoje por não ser

religiosa, não representa nada.”

N

rita recordando as lembranças ao ver as fotografias da família

Fonte: arquivo pessoal

Fonte: arquivo pessoal

Fonte: arquivo pessoal

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