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Universidade Budista e Pali do Sri Lanka Revista de Estudos Budistas do Sri Lanka Vol. 11, 1988 SUÑÑATA EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE Mirko Frýba, tradução de Nuno Maltez, Abril de 2014 [dedicada a todos os Budas passados, presentes e futuros..., a toda a inteira Comunidade de Sencientes]

SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

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Tradução de maravilhosa explicação do que é Suññata e da ascensão meditativa Budista até Suññata.

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Universidade Budista e Pali do Sri Lanka

Revista de Estudos Budistas do Sri Lanka

Vol. 11, 1988

SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

Mirko Frýba, tradução de Nuno Maltez, Abril de 2014

[dedicada a todos os Budas passados, presentes e futuros..., a toda a

inteira Comunidade de Sencientes]

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Suññata significa a vacuidade de todos os fenómenos. Como tal, é uma parte

importante da doutrina de anatta ou não-eu, que é central e também única para os

ensinamentos Budistas, como transmitidos por todas as várias escolas.

O Budismo é um ensinamento prático, basicamente um método de treino da mente e

de cultivo da mente. As suas mais altas disciplinas de treino da mente (adhicitta-

sikkha) têm como objectivo a libertação de todas as formas de opressão e sofrimento.

Este objectivo é usualmente caracterizado como iluminação, despertar, e emancipação

pelo insight da vacuidade de tudo o que está sujeito ao sofrimento e insatisfação. A

emancipação final através da realização meditativa de Suññata é para ser alcançada

por cada indivíduo sábio na sua própria experiência (paccattam veditabbo viññuhi).

Tal verificação experiencial de suññata foi praticada pelo Buda histórico, e pelos seus

completamente realizados contemporâneos: Sariputta, Moggallana, Kassapa e

Ananda, e outros theras (Anciões), que usaram os métodos de treino da mente de

Buda para este propósito original. Com os séculos, a realização experiencial de suññata

foi reduzida a interpretações especulativas deste termo doutrinal, por filosofias

Budistas posteriores [a Buda]. No entanto, alguns dos antigos registos dos métodos

práticos que levam à experiência de suññata estão disponíveis na literatura, bem como

numa inquebrada tradição de prática de treino da mente.

Como psicólogo, focar-me-ei no suññata como ele é para ser experienciado

(veditabba), através dos métodos práticos do mais alto treino da mente. Sem

envolvimento em interpretações filológicas, estes métodos práticos devem ser

analisados do ponto de vista psicológico.

De forma a clarificar o contexto mais amplo do nosso tópico, ao menos os seguintes

factos históricos devem ser brevemente mencionados.

Tanto a prática como o estudo do ensinamento do Buda foram introduzidos da Índia

para o Sri Lanka no terceiro século a.C., durante o reino do Rei Asoka. As inscrições de

Asoka em pilares e os livros do Cânone Tipitaka Theravadin, escritos no Sri Lanka

durante o primeiro século a.C., são os mais antigos registos disponíveis; eles estão,

basicamente, incluídos no ensinamento de todas as escolas Budistas que se

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desenvolveram posteriormente. As tradições literárias do Mahayana, que são mais

recentes, cujos primeiros registos são mais poéticos e devocionais, nas suas escrituras

filosóficas posteriores também incluem as descrições de métodos práticos que são

essencialmente os mesmos do que os do Cânone Tipitaka. Assim, as mais altas

disciplinas do Vajrayana Tibetano referem-se aos métodos do Abhidharma como os

supremos, e o Zen Japonês tem como o seu mais credível manual de treino da mente a

magnum opus Chinesa, “Gedatsu Do Ron”, que é idêntica à Vimuttimagga do

Theravada. Toda a literatura comentarial posterior do Theravada, Zen e Vajrayana

pode ser útil para propósitos didácticos, mas tem pouca relevância na análise da

significação canónica de suññata que iremos explorar. Mais, a validade de quaisquer

materiais do Cânone Tipitaka – o Vinaya-Pitaka (Disciplina), o Sutta-Pitaka (Discursos),

e o Abhidhamma-Pitaka (Sistematização) – não é questionada por nenhuma escola de

Budismo, dado que as diferenças entre as escolas se devem exclusivamente a

desenvolvimentos posteriores. Uma panorâmica geral das três divisões do Cânone

Tipitaka mostra que os aspectos experienciais e práticos são melhor veiculados pelo

Sutta-Pitaka.

O material dos suttas relevante para a compreensão de suññata encontra-se no

Majjhima Nikaya (Suttas 43, 121, 122, 151), Samyutta Nikaya (IV, páginas 54 e

seguintes), e no Khuddaka Nikaya (Cula Niddesa II, Patisambhidamagga I, parágrafos

45, 91; II, parágrafos 36, 48, 177). Estes suttas referem suññata como uma experiência;

tratam o suññata nem como um conceito nem como um assunto de especulação

filosófica. O Sutta-Pitaka regista muitas diferentes abordagens ao treino da mente que

leva à emancipação final; aquelas que são especificamente importantes para que

ganhemos uma compreensão de suññata serão referidas. Através de uma explicação

do Cula-Suññata-Sutta (Majjhima 121), será conhecido como o Buda aplica ambas,

concentração (samatha) e insight (vipassana), como os meios para a libertação através

da experiência de suññata na meditação.

No decorrer do explicar deste progresso metódico, são também utilizadas duas fontes

contemporâneas de dados empíricos, a saber, a experiência de meditação do autor e

as suas observações efectuadas durante duas décadas a ensinar métodos Budistas de

treino da mente. Baseando-se nestas fontes, algumas concepções erradas serão

expostas, de forma a demonstrar como a meditação pode ser distorcida por

interpretações especulativas que são incomensuráveis com a experiência emancipada

da realidade.

Examinemos, por conseguinte, algumas concepções erradas comuns do termo

suññata, que são causadas por vários tipos de incompreensão. Uma é a concepção de

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suññata como um estado vazio [blank] de consciência em que a apercepção

[awareness] de qualquer fenómeno está ausente. Tal estado vazio de consciência pode

surgir na meditação de um principiante, mas pode também ser uma experiência

deveras comum em prática prolongada de um meditante pouco dotado, que trata de

aquietar a sua mente através da diminuição da sua atenção e mindfulness. Outro tipo

de concepção errada deve-se ao que se pode chamar a “petrificação” do vazio

[emptiness] perceptual, por exemplo, a percepção do espaço vazio de um navio, uma

janela vazia, uma folha de papel em branco. Tal experiência do vazio torna-se

solidificada numa entidade e, através de compreensão errada, assume o estatuto

ontológico de uma “coisa”. Então, em vez de experienciar meditativamente qualquer

realidade, a pessoa pensa nessa coisa de um modo concentrado, e acredita que está a

meditar sobre suññata. Ainda, outro tipo de incompreensão é tomar suññata como

uma mera ideia ou conceito que não tem nem realidade ontológica nem uma

ancoragem experiencial. Um conceito como esse é depois tratado como um conteúdo

do pensamento, e como um pensamento puro é processado logicamente, dentro de

uma sistema de crenças filosóficas ou religiosas. Suññata é então mal concebido como

uma abstracção, ainda que seja concretizado através de sinais verbais, símbolos ou

visualizações meditativas (nimitta) que, subsequentemente, se tornam objectos da

consciência por si mesmos. A maioria das concepções erradas de suññata que aparece

com muita frequência na literatura moderna sobre este assunto é causada pelos três

tipos acima mencionados de incompreensão.

No entanto, alguma incompreensão pode também surgir devido a falha em discernir

os vários usos do termo suñña (adjectivo) e suññata (nome) nos textos originais. Por

um lado, estas palavras estão a ser usadas como termos técnicos exactamente

definidos, num sentido absolutamente canónico (paramattha-sacca); por outro, são

por vezes usadas como expressões convencionais (sammuti-sacca; Skt. samurti-sarya)

em parábolas, metáforas ilustrativas, passagens conversacionais, e descrições

clarificadoras que são por vezes mediadas em linguagem coloquial não técnica. Por

vezes é até o caso que experiências e processos de meditação são retratados em frases

coloquiais, especialmente na literatura pós-canónica mais tardia. Quando

coloquialmente usado, suññata aplica-se muito frequentemente a uma mudança de

situação ou a uma mudança de percepção, por exemplo, um quarto pode estar num

tempo cheio de pessoas e, no momento seguinte, vazio [void] de qualquer pessoa; ou,

há agora árvores, pedras, e colinas para serem vistas na janela, enquanto após uma

mudança na posição do espectador apenas o céu é visto através da janela vazia

[empty]. Estas são instâncias de vazio [void] e vacuidade [emptiness] que são

alterações da mente em referência aos conteúdos perceptuais; elas não têm nada a

ver com suññata como uma experiência da verdade fundamental no sentido

absolutamente canónico.

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No entanto, grasping intelectual de mudanças perceptuais ou, por outras palavras,

compreender as mudanças da consciência que são meramente baseadas em esvaziar

os conteúdos da percepção, pode também ser aplicado dialecticamente em instruções

para a meditação, tal como é de facto feito por Buda no seu discurso, o “Cula-Suññata-

Sutta”. Uma tal mudança de consciência pode também ser demonstrada na seguinte

situação (ver figura 1 [imaginar]): estas duas curvas sobre um fundo escuro podem ser

vistas como duas faces voltadas uma para a outra.

Figura 1

O espaço vazio entre as curvas é então preenchido com branco (ver figura 2): agora

pode ser visto um vaso branco de encontro a um fundo negro.

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Figura 2

Esta figura e fundo são certamente reconhecidos como familiares, dado que aparecem

em incontáveis livros de psicologia. No entanto, nós não estamos preocupados com as

leis da psicologia da percepção. Tentemos ultrapassar os condicionamentos forçados

devido ao nosso estudo da psicologia. Não escrutinem objectivamente as figuras. Não

se agarrem [cling] aos conteúdos perceptuais lá fora, enquanto ignoram as mudanças

experienciais subjectivas. Ao invés, sejam introspectivos: reparem como a atenção se

move, como a consciência se altera, como as mudanças são por dentro.

Ao contrário da ciência da psicologia, os métodos Budistas analisam as mudanças da

mente, do seu lado subjectivo, e desenvolvem a capacidade de mudar a mente de

acordo com a vontade. Para este treino e análise, há uma pré-condição a ser satisfeita:

a descoberta de fenómenos interiores até então desconhecidos, por meio da pura

atenção. Este método fundamental do treino Budista da mente é melhor descrito no

“O Coração da Meditação Budista”, de Nyanaponika Thera. Esta descoberta trabalha

através de reparar com mindful, que discerne a experiência sensorial [sense

experience], o sentir [feeling], o estado de consciência, e os conteúdos da consciência

como esses fenómenos mentais que vêm e vão sem quaisquer intervenções.

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Como ponto de partida para a prática metódica de reparar, a mindfulness do inspirar e

expirar naturais é usalmente escolhida, mas podem tentar reparar nas quatro acima

mencionadas fundações da mindfulness (satipatthana) até agora: o que está a ser

sentido [felt] no corpo? É a presente experiência agradável ou desagradável? Está a

mente em paz, excitada, aborrecida, adversa, curiosa ou até gananciosa? O que são os

conteúdos da mente agora?

Em vez de apenas lerem, ouvirem, e pensarem sobre métodos Budistas a partir de

fontes em segunda mão, obtenham experiências em primeira mão dos mesmos e

comecem a compreendê-los tecnicamente.

Definitivamente, ocorreram alguns processos objectivamente detectáveis na nossa

fisiologia, agora que passámos por vários movimentos da mente. De facto, há

mudanças mensuráveis significativas durante a meditação. Os eventos de meditação e

de mudanças de personalidade efectuados pelo treino Budista da mente podem,

certamente, ser escrutinados sob a aplicação de métodos científicos. Porém, enquanto

a pesquisa científica nas áreas da psicologia transpessoal, educação, fisiologia, etc.,

pode ser bastante interessante e também útil, não pode nunca explicar

completamente o fenómeno do Budismo, nem pode substituir-se aos ensinamentos

Budistas tradicionais; ela pode complementá-los.

As teorias científicas extraem a sua verdade de fenómenos conspícuos, e são

extremamente criteriosas quanto aos seus resultados; a prática Budista promove o

caminho do meio, almejando a equanimidade e a paz. No entanto, há algumas

experiências extremas encontradas por meditadores experientes que podem ser muito

espectaculares, intensas e inusuais. Alguns meditadores avançados experimentam

graça suprema, livre de quaisquer mudanças emocionais, e vazia [void] de concepções

e imagens. Tais estados da mente são por vezes conectados com uma experiência

intensa de luz clara. Aquelas tradições Budistas que são filosoficamente inclinadas

tendem a interpretar esta luz clara como o suññata (lembrem-se da terceira das acima

mencionadas concepções erradas), porque estão preocupadas com especulações

conceptuais e perderam a abordagem técnica e directa dos processos de meditação.

Os escritores filosóficos e os intérpretes religiosos a quem falta o conhecimento

experiencial dos estágios progressivos da meditação, não são capazes de diagnosticar

as perversões da meditação nos seus estados mais altos. Na tradição original da prática

da meditação de insight estas experiências extremas são chamadas “imperfeições de

insight” (vipassana-upakkilesa).

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É a minha hipótese que as mudanças fisiologicamente mensuráveis são mais

pronunciadas em conexão com essas experiências extremas, que são subjectivamente

tão impressionantes quão arrebatadoras. Um meditador apropriadamente instruído

não se agarra [cling] a essas experiências e é eventualmente capaz de reconhecer por

ele mesmo que até a mais sublime efulgência de luz (obhusa) ligada com a aumentada

apercepção de paz e graça é apenas uma imperfeição (upakkilesa) que obstrui o

progresso real para a emancipação final (Upakkilesa-Sutta, M. 161). Esta experiência é

por vezes referida como pseudo-nirvana. A luz clara é definitivamente suñña, é vazio

[void] até no sentido absoluto (paramattha); no entanto, não é a verdadeira

experiência de suññata.

Mente aberta e sobriedade são as características primeiras do Budismo pristino. O

Ensinamento instrui-nos a aceitar de mente aberta qualquer realidade que seja

experienciada e a compreendê-la pelo que é, sobriamente, sem ficar muito

impressionado com a até mais espectacular ocorrência. A atitude Budista pode

também ser caracterizada como realismo empírico, na medida em que a verificação

experiencial de qualquer fenómeno dado tem uma maior validade cognitiva do que os

resultados do raciocínio e da mensuração de variáveis hipoteticamente construídas

que são características da ciência. A abordagem científica é indirecta e pode apenas

agarrar os aspectos exteriores dos fenómenos. Por isso, não devemos ser erradamente

conduzidos a acreditar que as experiências meditativas podem ser compreendidas

através de interpretações biológicas e psicológicas dos fenómenos produzidos no

organismo. O organismo biológico e fisiológico é não mais que um veículo de

experienciação. As tentativas do reducionismo científico podem ser comparadas com a

esperança ingénua de compreender um poema analisando as propriedades químicas e

físicas do livro, da cassete, ou do som, que são apenas veículos do significado do

poema. Isto tem de ser dito para ilustrar os limites da pesquisa psico-fisiológica sobre a

meditação. De um modo similar, da psicologia da percepção pode ser apenas esperada

uma compreensão limitada do processo meditativo. No entanto, a pesquisa sobre a

meditação levada a cabo na Universidade de Roma é muito interessante, e não

obstante as limitações inerentes, muito útil. Apesar de tudo, nenhum progresso

meditativo e nenhuma emancipação são possíveis a menos que compreendamos e

usemos apropriadamente o nosso veículo biológico e psicológico.

Voltemos agora às experiências levadas a cabo quando seguíamos a mudança

perceptual entre a figura e o fundo nas imagens. Estás corporalmente presente agora

mesmo. Tens estado a ver. Houve um certo estado de mente em que a tua consciência

[awareness] foi visual, enquanto percepcionavas as duas caras na figura 1, e houve

outro estado de mente enquanto percepcionavas este inter-espaço como um vaso, na

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figura 2. Houve ainda outro estado de mente quando julgaste a mudança de percepção

como agradável, e ainda outro quando te tornaste ganancioso pela percepção

agradável. Podes até ter tido um insight de conhecimento da originação dependente

destes estados de mente, julgado todos como insatisfatórios, e virado a tua mente

para longe de tudo isso. Aí, podes ter experimentado um momento de emancipação.

Podes agora sentir que todos estes pensamentos e objectos da mente não são

satisfatórios [fulfilling] de todo, e subitamente estás a esvaziar a tua mente...

Estamos agora a aproximar-nos da noção canónica de suññata, as nossas mentes estão

a ser afinadas para compreendermos o “Pequeno Discurso sobre a Vacuidade

[Voidness]”, o Cula-Sunnata-Sutta, de Buda.

Só agora, sem explicações teóricas ou descrições doutrinais como é encontrado em

livros sobre o Budismo, fomos perante algum importante trabalho preparatório que

nos ajudará a seguir o discurso de Buda como instrução prática. Aquilo a que foram

expostos durante a meditação guiada sobre figura-fundo – todo o trabalho

preparatório – foi uma aplicação de meios eficazes (upaya-kosalla). Meios eficazes é

uma técnica de ensino que tem em conta o presente estado de mente dos

meditadores, o seu background, e a situação concreta de aqui-e-agora. Buda usa meios

eficazes, similarmente, no início do seu discurso sobre suññata. O discurso tem lugar

no palácio da Mãe de Migara. Convidando Buda a falar sobre suññata toma a forma

desta questão (transl. Nanamoli Thera):

“... Eu ouvi e aprendi isto a partir dos próprios lábios d’O Abençoado: ‘Agora eu habito

muito na habitação vazia.’ Venerável senhor, foi isto bem ouvido por mim?”

Esta questão refere-se a um evento passado que é reconhecido por Buda na sua

resposta; no entanto, ele depois traz a mente do questionador para a presente

situação:

“Certamente que, Ananda, isso foi bem ouvido por ti... Tal como anteriormente,

também agora, eu habito muito na habitação vazia.”

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No palácio não há objectos visuais de figuras para serem esvaziados [voided], mas

deveria lá estar um ajuntamento de pessoas e elefantes ornamentados com prata, etc.

Antes de elaborar passo a passo até suññata, Buda usa como meios eficazes uma

referência a esta situação concreta no palácio:

“Ananda, tal como o Palácio da Mãe de Migara é vazio de elefantes, vazio de ouro e

prata, vazio de ajuntamentos de homens e mulheres, e há apenas este... único estado

de não-vacuidade dependente da presença da comunidade de bhikkus, também, sem

dar atenção à percepção...”

Então, Buda procede, e dá instruções de meditação que são, ao mesmo tempo,

detalhadas definições operacionais de suññata. Ele descreve as operações de

mudanças de mente que levam à realização experiencial do “Mais Alto Suññata”. Isto é

obviamente instrução para a meditação concentrativa (samatha), começando com

seclusão exterior na floresta, e procedendo para a seclusão interior (viveka), que leva à

unificação da mente (cittakaggata). Em samatha, a mente está sendo afundada em

estados [realms] cada vez mais sublimes, em que as suas funções analíticas usadas

para vipassana (meditação de insight) cessam de operar. O objectivo de samatha é

atingir o êxtase pacífico de jnana, que é vazio dos distúrbios causados pela proliferação

de mente. Buda descreve muito precisamente no Cula-Suññata-Sutta – esta passagem

em particular vai ser extensivamente analisada depois – o mecanismo de esvaziar e

unificar que traz a mente a obtenções cada vez mais altas de jnana. Como cada estado

mais alto de jnana é vazio de alguns aspectos inerentes ao anterior, o sempre mais alto

suññata é então usado como o critério para o progresso meditativo na concentração

de samatha. No entanto, a Mais Alta Vacuidade (anuttara-suññata) é alcançada apenas

evitando que a mente concentrada tenha o insight de vipassana quando permite ao

meditador realizar experiencialmente a natureza condicionada das bases sensoriais

(ayatana), da qual depende todo o experimentar (vedana), mesmo aquele do objecto

da meditação (nimitta) na mais alta concentração de samatha.

O discurso de Buda é dirigido a ouvintes que estão familiarizados com certos aspectos

do seu ensinamento, em particular com a doutrina de anatta. Então, para que haja

melhor compreensão, temos também de agarrar [grasp], nem que rudemente, o

princípio de anatta e alguns outros termos técnicos, antes de nos voltarmos para

extensivas citações do Cula-Suññata-Suta. Como termo doutrinal no Cânone

Theravada, suññata refere-se apenas à doutrina annata. Na prática de meditação,

suññata e annata são inseparáveis: “A contemplação do não-eu e a contemplação da

vacuidade são uma em significado e apenas a letra é diferente”, afirma Budaghosa

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(“Visuddhimagga”, Cp. XX, p. 628). Na experiência iluminada da realidade, annata é o

sábio conhecimento (vijja) de que não há eu; vijja é conhecimento que é vazio de

ignorância (avijja) – que separa a realidade em eu e não-eu, meu e não-meu. Pessoas

não iluminadas identificam várias partes da realidade com o eu, agarrando-se [clinging]

a estas e, consequentemente, sofrendo devido à frustração de tais identificações

ilusórias. A visão iluminada da realidade, que é caracterizada por annata, penetra

todas as coisas que possam ser convencionalmente (sammuti) concebidas como

identidades e vê-as em ultimidade (paramattha) como um inter-jogo de condições,

como uma interacção de diferentes aspectos, como uma mudança de contexto, como

uma dinâmica evolução de tornar-se e cessar – tudo isto é originado em profunda

interdependência e vazio de qualquer núcleo persistente. A visão iluminada da

realidade é vazia (suñña) de quaisquer agarramentos identificacionais [identity

clingings] gerados por conceitos convencionais. Não há, mais, perceptos ilusórios de

identidades estáveis; o que quer que exista é claramente visto como vazio de eu

(suññam attena) e como dependentemente originado (paticcasamuppannam).

Annata significa que não há eu, nenhum núcleo, nenhuma imutável identidade a ser

encontrada seja no que for. Um tal eu (atta) é uma pura construção mental que tem

uma justificação no sistema de linguagem. No entanto, tal constructo mental é

enganador, na medida em que porquanto é tomado como real, produz falsos

pensamentos e crenças erradas, divorciados da realidade e sustentados apenas por

conceitos. A meditação Budista usa principalmente três abordagens como meios para

ultrapassar a ilusão do eu: primeiro e mais importante surge a análise mindful

(satipatthana) de componentes de coisas e eventos aparentemente compacto;

segundo, há a visão limpa ou insight (vipassana) que o que quer que exista surge

dependentemente de condições impermanentes e que tem de se dissolver e passar;

terceiro, há as experiências directas da nossa impotência para dominar (avsavattana)

os fenómenos que passam.

A realização penetrante de suññata e annata não é apenas um remédio para a

frustração de crenças erradas, é também uma profilaxia e emancipação de qualquer

sofrimento que surgiria devido à possibilidade de identificação própria no futuro. A

ilusão do eu pode surgir em qualquer pessoa que esteja exposta a situações de vida

difíceis, a menos que a sabedoria iluminada de annata tenha sido cultivada e

firmemente estabelecida. A identificação emocional com o que quer que

percepcionemos como suporte essencial (upadhi) da nossa vida não ocorre

necessariamente a um nível consciente, que permita uma formulação explícita do

ponto-de-vista-do-eu (attanuditthi) como uma crença racional. Esta ilusão do eu leva a

que nos identifiquemos com o nosso corpo, os nossos hábitos, os nossos galões, a

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nossa conta bancária, as nossas preferências, etc., numa experiência pré-racional do

concebido “Eu sou” (asmi-mana; mana é um produto da percepção que

tendenciosamente concebe: mannati).

Para seres ignorantes escravizados pela ilusão do eu, a luta para manter uma

identidade própria é verdadeira. Aqueles erradamente acreditando em identidades

não podem percepcionar a realidade como ela é; eles podem apenas reagir aos

conceitos que expressam para representar as identidades das coisas e do eu. Eles são

vítimas da ignorância (avijja), dado que não conseguem ver a realidade como ela é. Isto

tem consequências patológicas em vários níveis psicológicos e sociais, que crescem a

partir de perspectivas erradas e preconceitos. Quando os nossos processos de auto-

habituação perceptual atribuem a uma pessoa a identidade de, digamos, “o psicótico”,

“o polícia”, “o ladrão”, “o professor”, continuamos a tratar essa pessoa particular

como um psicótico, um polícia, etc. Não nos preocupamos mais com o seu

comportamento efectivo em ocasiões posteriores – quer o polícia aja psicoticamente,

quer o professor roube -, porque a nossa percepção e reacção são guiadas pela crença

num eu idêntico daquela pessoa. A experiência de instituições clínicas e correctivas

ilustra quão grande obstáculo é a crença em si mesmo [self-belief] para o progresso de

cura e melhoramento.

Podemos também julgar erradamente a nossa própria pessoa como um eu imutável ou

como uma assembleia de identidades que concebemos como componentes do nosso

eu. Então, podemos negar todas as mudanças efectivas e tornar-nos alienados do fluxo

de sentimentos, do surgir e passar de percepções, das constantes alterações de

consciência. Patologicamente, podemos proclamar o pensamento conceptual como

sendo a única realidade e suprimir completamente a verdade de anatta nos níveis

psicológico e fisiológico. Enquanto ignoramos a experiência directa da mente e do

corpo sempre em mudança, podemos especular acerca dos processos celulares,

sinapses neurais, e movimentos químicos aos níveis molecular e atómico – e

permanecer apenas no domínio dos conceitos. Isto não seria sábio experiencialmente,

pois o conhecimento directo de anatta, como já sabemos, é vazio de identidades

conceptuais.

A excursão, acima, sobre anatta, não deve deixar-vos com a impressão de que os

ensinamentos Budistas originais deixam de parte os conceitos de todo; ou que

repudiam a análise teorética. A análise teorética, filosófica e conceptual é, no entanto,

aplicada apenas na medida em que conduz ao progresso na cultura emancipatória da

mente. O Buda ele mesmo alcançou uma exaustiva análise sobre o uso errado dos

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conceitos que leva a uma adição de perspectivas. Como o escrutínio deste tema nos

levaria para longe do nosso tópico, quero referir-me aqui à tradução e explicação

compreensiva do discurso de Buda “Uma Teia de Perspectivas”, de Bhikkhu Bodhi.

Uma análise detalhada do tema Anatta e Nibanna, por Nynaponika Thera exemplifica

os usos da teoria e da filosofia de um modo relevante para a prática emancipatória

Budista.

A experiência de anatta e de suññata dentro do contexto do treino emancipatório da

mente não exclui o uso de conceitos ou designações para as realidades últimas

(paramattha-dhamma) vistas durante essa mesma experiência. Porém, qualquer

conceito veiculado por um símbolo verbal ou visual não é mais do que um sinal

(nimitta) que representa um objecto da mente. Sinais, como tal, não são realidades

últimas; ao passo que as realidades últimas são designadas por uma lakkhana

(característica) e não por uma nimitta. O sinal pode ser um objecto de meditação

samatha, enquanto vipassana usa as realidades últimas como seus objectos e é por

isso caracterizada por animitta (por exemplo em “Papanca Sudani” IV, 153 f).

Como parte do treino-mente, aprendemos a estruturar a experiência meditativa em

termos de discernir as realidades últimas das bases sensórias (ayatana), tal como

objecto visual e o órgão sensório visual, som e a sua base acústica, odor e o sentido

olfactivo, sabor e o sentido gustatório, objecto táctil e sensação corpórea de toque, e

as duas bases de ideação que são representadas pelo órgão-mente e pelo objecto-

mente (percepto, ideia, etc.). Todas estas bases são directa e introspectivamente

observáveis. A sua existência é evidente para qualquer pessoa que tenha equipamento

sensório normal. Portanto, nenhuma questão epistemológica relativa à validade da

intersubjectividade das realidades últimas, como as bases sensórias, seria realmente

com sentido para qualquer pessoa normal. No entanto, é necessário algum treino para

sustentar a concentração em qualquer um desses ayatanas – tivemos uma experiência

em primeira mão para suportar esta afirmação, dado que experimentámos, com a

figura e o fundo, dentro do campo do “objecto visual”. Então foi ainda mais difícil

concentrarmo-nos por algum tempo na sua contraparte subjectiva, o ayatana “sentido

visual” [visual sense]. Só uma mente bem treinada em meditação satipatthana pode

sustentar a atenção sobre qualquer destas doze bases sensórias [sense bases] para

experimentar directamente que elas são impermanentes e vazias de qualquer eu.

A análise meditativa dos fenómenos, no Budismo, é contrabalançada por métodos de

síntese que revelam as relações entre as coisas e as suas características gerais

(lakkhana), tal como a impermanência, a condicionalidade, vacuidade, etc. Mais, esta

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abordagem sintética unifica a multitude de fenómenos, e abre a coerência do mundo a

uma visão holística. O mundo pode ser transcendido apenas por alguém que

experiencie a sua unidade e totalidade (manasikaroti ekattam), tal como o Cula-

Suññata-Sutta mostra. Deve ser enfatizado aqui que todos os conceitos doutrinais do

Cânone Pali – assim, também os sintéticos – são experiencialmente ancorados nas

realidades últimas; isto significa que eles se referem sempre a um fundo específico

experiencial (yathabhuta). Em constraste com a ciência ocidental, o pensamento

Budista não usa variáveis hipotéticas, constructos especulativos, ou assunções a priori.

Para o Budismo, a totalidade [wholeness] do mundo não é nem um produto do

pensamento teorético, nem uma crença deduzida de algum dogma. Tal ancoragem

experiencial mantém-se verdadeira também para a vacuidade do mundo, pelo que

Buda afirma:

“Vazio é o mundo porque é vazio de um eu e de qualquer coisa pertencente a um eu.”

Semelhantes afirmações aparecem em diversos lugares no Samyutta Nikaya e no

Khuddaka Nikaya, seguidas de elaborações de análises, referentes aos vários estados

das realidades últimas, designadas por conceitos como dhatu (elementos da

experiência), khanda (grupos de materialidade, percepção, sentimento [feeling],

formação e consciência), ayatana e por aí adiante. No Cula-Niddesa do Khudaka

Nikaya, é explicado como o objecto visual e a base sensória do olho se encontram e

surge a consciência-visual. O som e a base sensória do ouvido, etc., são também

analisados. Então, a atenção está guiada para a origem dependente de todos os

fenómenos. Similarmente, dependente das bases sensórias (ayatana) surge o contacto

sensório (phassa); dependendo do contacto, o sentir (vedana) [feeling] surge; e assim

por diante. Estas observações são qualificadas pela afirmação: “Vazia é a consciência-

ocular, etc.”, no que diz respeito a todos os fenómenos até às mais altas experiências

de meditação. A Originação Dependente (paticca-samuppada) torna-se visível e

suññata é experimentado em relação a todos estes fenómenos: “... eles são vazios de

eu, vazios de permanência, eles são sem núcleo, sem um núcleo de permanência, um

núcleo de felicidade, ou núcleo de eu.”

No Salayatama Samyutta (S. IV, S 4) Buda especifica esta vacuidade para todas as

outras e interiores seis bases sensórias (ayatana), bem como para o contacto (phassa)

e para o que quer que de agradável, desagradável, ou neutro experiencial (vedana),

surja, dependente destas condições.

Page 15: SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

O olho é vazio de eu e tudo pertencente ao eu, a forma é vazia..., a consciência visual é

vazia..., a mente é vazia..., os estados mentais são vazios..., a consciência é vazia..., o

contacto é vazio..., o que quer que de agradável, desagradável, ou neutro

experienciemos que surge dependente deles é vazio de eu e de tudo pertencente ao

eu. É por isso, Ananda, que é dito: “Vazio é o mundo.”

Esta é, obviamente, a chave-mestra de Buda para o mais alto insight (maha vipassana)

sem instruções prévias avançadas quanto à concentração (samatha). O Salayutana

Samyutta começa com detalhadas instruções vipassana para reparar na

impermanência (anicca), insatisfatoriedade (dukkha), e não eu (anatta) de todos os

fenómenos. Estas instruções são sistematicamente aplicadas a vários conjuntos [sets]

de realidades últimas, e elaboradas para que o meditador seja guiado até ao mais alto

objectivo. Como o nome deste Samyutta sugere, a mindfulness dirigida para as bases

sensoriais joga o papel central. Esta instrução para a mindfulness que desvela a

vacuidade (suññata) e a Originação Dependente, quando dirigida para as bases

sensoriais, é também o culminar da instrução de Buda dada no Cula-Suññata-Sutta.

Há técnicas específicas de meditação de insight (vipassana) – explicadas no já

mencionado “O Coração da Meditação Budista”, por Nyanaponika Thera -, para o

escrutínio dos fenómenos etiquetados como ayatana, khanda, dhatu, etc., que são as

realidades últimas (paramatha dhamma) directamente perceptíveis para a mente

esvaziada de conceitos e segura pela meditação samatha (meditação concentrativa).

Esta análise meditativa das aparentemente sólidas identidades é um escrutínio

experiencial, que devolve o compacto (ghana-vinibbhoga) aos seus elementos, em

ordem a tornar visível a ausência de qualquer eu. Para realizar isto, o meditador tem

de passar por mudanças de percepção, tal como experiencialmente discernir as

realidades últimas e as suas representações mentais (nama-rupa-pariccheda); trazer a

sua estrutura condicional (paccaya-pariggaha) à visão; então, compreendê-los como

sofrimento de modo a libertar-se do desejo (appanihita) por elas; afinado para a

corrente da realidade sempre em mudança (anicca), o que destrói a sua apenas

Page 16: SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

aparente estabilidade, suportada por sinais, e abre a experiência para os [...]

(animitta). Estas mudanças de percepção que levam finalmente à experiência de

suññata são tratadas em detalhe no “Progresso do Insight”, de Mahasi Sayadaw.

A abordagem analítica da meditação de insight vipassana desvela, então, as

aparentemente compactas identidades e expõe-nas como vazias de eu. Perspectivas

erradas estão ausentes, a mente está vazia. E esta mesma vacuidade torna possível a

experiência total da realidade como ela é. Apesar de não ser necessário atingir jhana

por concentração ou nimitta para tudo isto, claro que a mente tem de estar bem

balançada em parafernália desenvolvida através de métodos de samatha. Então a

purificada e não distraída mente acompanha a totalidade dinâmica da realidade e

torna-se cheia de alegria intensa (piti). Só uma mente alegre, pacificada, e

concentrada, pode atingir a libertação completa e a iluminação. O caminho de

encontro à emancipação leva-nos por três diferentes “portais para a libertação”

(vimokkha-mukha): o primeiro é a realização do não-desejo (appanihita); o segundo é

a realização do sem-sinal (animitta); o terceiro portal para a libertação é a realizada da

vacuidade (suññata) – (“Patisambhidamagga” II. 48).

Há muitas formas de descrever as mudanças na experiência que ocorrem quando a

ignorância (avijja) é substituída pela felicidade (avijja), é dissipada por esta, e o

sofrimento (dukkha) é substituído pela felicidade (sukkha) da emancipação. No

Upanisa-Sutta do Samyutta Nikaya, Buda expõe como a originação dependente do

sofrimento se torna transformada na originação dependente da alegria e felicidade

emancipatórios. Uma tradução deste sutta, juntamente com uma explicação lúcida das

várias sequências da Originação Dependente é o “Surgimento Transcendental

Dependente”, de Bhikkhu Bodhi.

O Budismo presta muita atenção aos estados felizes da mente, e a alegria, em

particular, é importante como um factor indispensável de absorção meditativa

(jhananga). Piti, a alegria meditativa, é instrumental para todas as obtenções mais

altas. A significância dos vários tipos de alegria na meditação está bem sumariada por

L.S. Cousins em “Jhana Budista: a sua Natureza e Obtenção de acordo com fontes Pali”.

Aqui, deve apenas ser acrescentado que a palavra “piti” é traduzida por alguns como

“zelo”, o que implica interesse alegre no objecto de meditação e, consequentemente,

intensificação do processo de meditação, trazendo à tona uma compostura pacífica da

mente. Um aumento similar de interesse e intensificação causado pela alegria do

sucesso pode ter sido experienciado enquanto experimentávamos a imagem gestalt de

figura e fundo (ver figuras 1 e 2). No entanto, o ponto desse jogo experimental era a

Page 17: SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

viragem do nosso interesse e atenção para as mudanças no objecto de percepção para

o processo das mudanças na mente.

Mudanças dos níveis experienciais acompanhadas de graus mais altos de alegria e

quietude são características do progresso da meditação suññata. No seu clímax, a

compreensão experiencial de suññata, anatta, e Paticca-Samuppada (surgimento

dependente das realidades últimas), é intimamente inter-conexa. Eles são também

altamente recompensantes motivacionalmente, através do enlace de alegria, quietude

e paz, como os meditadores avançados atestam. No Cula-Suññata-Sutta, Buda

descreve o progresso para níveis mais altos através da técnica de esvaziar a mente

pelas seguintes mudanças experienciais:

1. O meditador apercebe-se de tudo o que pertence ao seu presente contexto,

2. então, havendo retirado a sua atenção de tudo isso (tam sabbam

amanasikaritva),

3. ele baseia a sua experiência numa percepção (sannam paticca) do objecto da

meditação apenas,

4. em ordem a experienciar a sua totalidade e unidade (manais-karoti ekartam).

Isto é possível porque esvaziou a mente de todos os conteúdos pertencentes

ao nível anterior de experiência.

5. O que quer que pertença à totalidade do objecto de meditação no nível

anterior é experienciado como um distúrbio (daratha) para o próximo nível de

meditação. A sua ausência é então notada com satisfação.

Ao longo do discurso, estes cinco passos são repetidamente aplicados à medida que

Buda guia o ouvinte por sempre mais altas experiências de suññata, baseadas na

percepção das mais altas obtenções da meditação samatha. No entanto, a mais alta

experiência de suññata pertence à visão da Originação Dependente as realidades

últimas, o que é do domínio da meditação vipassana. O Cula-Suññata-Sutta é

obviamente dirigido àqueles familiares com as técnicas de concentração e insight.

Agora que tomámos contacto com as pré-condições para realizar suññata, concluamos

com a descrição da mais alta vacuidade (paramanutturam suññatam), dada por Buda

no Cula-Suññata-Sutta (trad. Napamoli Thera):

Page 18: SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

Novamente, Ananda, sem prestar atenção à percepção de base consistindo em espaço

infinito, sem prestar atenção à percepção de base consistindo em infinita consciência,

um bhikkhu presta atenção ao estado único dependente da percepção de base,

consistindo em nada [nothingness].

A sua mente entra na percepção de base consistindo em nada [nothingness] e ele

adquire confiança, quietude, e decisão. Ele compreende, então: “Distúrbios que

estariam presentes dependentes da percepção de base do espaço infinito (e)... a base

da infinita consciência não estão presentes aqui...”

Ele compreende: “Este campo de percepção é vazio [void] da base do espaço infinito

(e)... da base da infinita consciência. Há apenas esta não-vacuidade [non-voidness],

quer dizer, o estado único dependente da base consistindo de nada [nothingness].”

Agora, também isto foi para ele uma iluminação sobre a vacuidade [voidness] que

concorda com o que é, sem perversão de significado, e que é pura.

Novamente, Ananda, sem prestar atenção à percepção da base consistindo de nada

[nothingness] sem prestar atenção à base consistindo nem em percepção nem em

não-percepção, um bhikkhu presta atenção ao estado único dependente da

concentração sem-sinal da mente.

A sua mente entra na concentração sem sinal da mente e adquire confiança, quietude,

e decisão. Ele compreende, então: “Os distúrbios que estariam presentes dependentes

da percepção da base consistindo de nada [nothingness] (e)... a base da nem

percepção nem não-percepção não estão presentes aqui, e apenas esta medida de

distúrbio está presente, quer dizer, isso que tem a vida como sua condição,

dependente deste corpo com as suas seis bases.”

Então ele vê isso como vazio do que não está lá, mas do que lá permanece, ele

compreende: “Aquilo sendo, isto é.”

Page 19: SUÑÑATA – EXPERIÊNCIA DA VACUIDADE NO TREINO BUDISTA DA MENTE

Agora, isto também tem sido para ele iluminante sobre a vacuidade [voidness] que

concorda com o que é, sem perversão de sentido, e que é pura.”

Novamente, Ananda, sem prestar atenção à percepção da base consistindo em nadad

[nothingness], sem prestar atenção à base consistindo nem de percepção nem de não-

percepção, um bhikku presta atenção a esse estado único dependente da

concentração sem-sinal da mente.

A sua mente entra na concentração sem-sinal da mente, e adquire confiança,

quietude, e decisão. Ele compreende, então: “Esta concentração sem-sinal da mente é

condicionada e mentalmente produzida.”

Ele compreende: “ O que quer que seja condicionado e mentalmente produzido é

impermanente e sujeito à cessação.” Quando ele sabe e vê assim, a sua mente é

liberta da mácula do desejo sensual, da mácula de tornar-se, da mácula da ignorância.

Quando liberto, vem o conhecimento: “Isso está liberto.”

Ele compreende assim: “Os distúrbios que estariam presentes dependentes da mácula

do desejo sensual,... a mácula do tornar-se... a mácula da ignorância, não estão

presentes aqui, e apenas esta medida de distúrbio está presente, quer dizer, que com

a vida como sua condição, dependente deste corpo com as suas seis bases.”

Ele compreende: “Este campo de percepção é vazio da mácula do desejo sensual,...

vazio da mácula do tornar-se,... vazio da mácula da ignorância. Está presente apenas

esta não-vacuidade [non-voidness], quer dizer, que com a vida como sua condição,

dependente do corpo com as suas seis bases.”

Então ele vê isso como vazio [void] do que não está lá, mas do que lá permanece, ele

compreende: “Aquilo sendo, isto é.”

Agora, isto foi para ele uma iluminação sobre a vacuidade [voidness] que concorda

com o que actualmente é, sem perversão de sentido, que é pura e inultrapassável por

alguma outra.

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