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Super Poderosa

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Alguém ou alguma coisa está agindo em Santa Paz contra os bandidos, fazendo com que várias teorias sobre o assunto sejam levantadas. A imprensa liderada pelo repórter investigativo Marcelo Siqueira está no encalço da coisa e a um passo de descobrir a verdade. A delegada Meire, a única que sabe quem está agindo contra o crime em sua cidade, ainda custa a acreditar. Estaria louca, afinal deixara de acreditar em super-heróis quando ainda era criança. Os mistérios que envolvem essa super criatura e sua real intenção não só povoavam os pensamentos da delegada como de todos da cidade, inclusive dos leitores dessa história baseada em Hqs.

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Super Poderosa

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Quem é ela?

Parte 1

— A polícia ainda não tem explicações

plausíveis para dar á população sobre a

recente onda de captura de bandidos.

Comerciantes locais relatam que uma

pessoa, alguma coisa com velocidade

sobre-humana tem agido contra criminosos.

Francisco Plínio de Arruda, funcionário da

pizzaria Central relata sobre a ocorrência da

noite anterior: “Os bandidos estavam

prestes a levar o dinheiro do caixa quando

um vendaval entrou pela porta da frente!

Foi incrível!” Indagado se conseguiu

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identificar alguma coisa, respondeu que

não.

O jornal é jogado sobre a mesa.

— Fiz questão de guardar para você.

Li esse trecho da reportagem porque é o

mais interessante, já que o jornal todo está

repleto de reportagens desse tipo. Tem até

uma matéria na qual os cidadãos opinam

sobre o que você é, dá para acreditar? Você

gosta disso não é? — Meire acende o

cigarro.

Encostada na porta do gabinete da

delegada está a protagonista da

reportagem. Trata-se de uma jovem de

cabelos claros, olhos grandes, verdes. Os

lábios finos, o busto médio e as pernas

esguias. A barriga à mostra irrita a

delegada Meire. O corpo atlético da super-

heroína é impressionante. Super-heroína,

dá para acreditar? Meire ainda custa.

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— Gosto — responde ela, a voz é de

gente.

Veste mine-blusa branca com um raio

dourado no peito, luvas sem dedos

amarelas cobrem suas mãos. Traja calça

branca com raios laterais dourados e botas

brancas de asas amarelas nas extremidades

completam o uniforme.

— Eu devia contar pra eles que

conheço você — Meire apaga o cigarro que

acendeu há pouco — Preciso parar com

isso.

— Acho que nossa pareceria funciona

bem como está, Meire.

— É verdade. Mas eu ainda não

consigo aceitar que você exista — a

delegada aponta para a heroína. — Já

pensou no dinheiro que você poderia

ganhar?

— Eu quero ajudar as pessoas, só

isso. — ela desaparece seguida de um

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vendaval que derruba a papelada em cima

da mesa da delegada.

— Merda! Odeio quando ela faz isso.

Meire é alta, dos olhos verdes sem

maquiagem e cabelos curtos. Veste-se com

blazer negro e a arma da corporação

descansa no coldre embaixo do braço

esquerdo. A camisa é branca, os sapatos

escarpam, pretos. Acende outro cigarro e

relaxa em sua cadeira grande:

— Esse mundo está de cabeça para

baixo — diz a si própria.

O fato era que os crimes em Santa

Paz, cidade conhecida pela ironia do nome,

tinham diminuído bruscamente. Desde o

surgimento daquela menina com

superpoderes a cidade vivia dias nunca

antes possíveis. Santa Paz agora era santa

paz mesmo.

— Onde será que ela está agora? —

divaga sozinha a jovem delegada.

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O silêncio do ambiente faz a super-

heroína frear bruscamente. Ela não

identifica o local em que se encontra.

Saara? Talvez.

As estrelas brilham com toda

intensidade no céu, são muitas. A terra

árida sem vestígio humano é um convite à

paz; ao caminhar. Ela anda, não sente frio.

A mente divaga, ainda é mais rápida que o

corpo mágico. Vai longe, onde não pode

chegar por outro meio, vai para casa. Os

passos são lentos, ela sente falta de

caminhar, de ser normal. Esconde-se, tem

medo de ser descriminada. Faz o que faz

por ensinamento, deve muito à Clarice.

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Quem é ela?

Parte 2

Nove horas da manhã o celular de

Meire Teixeira, a delegada titular do 1°

distrito de Santa Paz, toca. É cedo, ela teve

uma noite terrível.

— Alô? — tenta não falar como

alguém que acaba de acordar.

— Temos um problema aqui na

delegacia, Dra. Meire. Uma advogada exige

falar com a senhora.

— Tá — Meire se levanta — Eu já vou.

Advogados sempre exigem tudo.

Acham-se mais gostosos do que os outros,

pensa Meire enquanto banha-se. Costuma

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chegar á delegacia onze horas, tudo está

tranquilo ultimamente.

Sua família reside na capital e ela por

conta da nomeação veio à Santa Paz.

Formara-se em Direito há dois anos, é

jovem, bonita, não tem intenção de se

casar.

Quando estaciona o seu carro de luxo

atrás do prédio antigo do 1º Distrito Policial,

faz o sinal da cruz. É costume de família,

antes de iniciar o trabalho pedir proteção.

Cumprimenta os policias que encontra

pelo caminho até sua sala. Fita a porta e

lembra-se da última vez que estivera ali; da

super-heroína encostada no batente. Era

loucura, admitia. Mercúria, dá pra

acreditar? Era esse o nome da garota

peculiar. Meire balança a cabeça como se o

gesto físico afastasse os pensamentos.

Senta-se e então a porta se abre:

— Doutora Meire?

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— Bom dia. Ia pedir para chamá-la,

mas a senhora se antecipou.

— Sou a Doutora Valéria, prazer — a

bonita senhora estende a mão cheia de

pulseiras e anéis — Vim falar pessoalmente

com a senhora sobre quem vem

estampando as primeiras páginas dos

nossos jornais.

— O que tem?

Valéria veste-se com blazer cinza e os

cabelos dourados bem penteados descem-

lhe pelos ombros. Olhos castanhos

contornados por maquiagem analisam a

delegada. Diz:

— Preciso saber quem é. Sei que a

Doutora tem uma “relação” com essa coisa.

— Não tenho nada a ver com essa

coisa — Meire gesticula negativamente —

Mas só por curiosidade, posso saber o

motivo?

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— Danos ao patrimônio de meus

clientes — a advogada joga um volume de

processo na mesa da delegada —

Dilapidação do patrimônio de vários donos

de lojas e bancos — ela acrescenta

exemplares do Jornal Cidade.

— Doutora, ela prendeu bandidos,

salvou vidas — esclarece Meire.

— Ela precisa assumir os prejuízos

causados aos donos de lojas que invade.

Veja este orçamento — Valéria abre o

processo — Vidraças, balcões, paredes,

tudo danificado.

— Não sei quem é ela, lamento —

Meire puxa o maço de cigarros.

— O repórter Marcelo Siqueira me

informou que a doutora tem “amizade” com

ela, ele, ou seja lá que tipo de coisa seja.

— Marcelo é um mentiroso!

Valéria se levanta:

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— Por enquanto, essa anomalia só

causou danos patrimoniais...

— Acha que ela vai matar pessoas?

Por favor, doutora.

Valéria responde com indagação:

— Se a senhora pudesse fazer algo

extraordinário, o que a impediria de oprimir

as pessoas?

Meire silencia, não tinha pensado

nisso. Valéria finaliza:

— Estou com vários processos contra

a coisa, mas todos estão parados. A Justiça

não tem como julgar um ser que não tem

características humanas e nem mesmo uma

identidade.

— Se eu soubesse de alguma coisa

diria, Doutora Valéria.

— Está bem — a elegante advogada

se vira.

Meire observa ela sair, ela é bonita.

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Quem é ela?

Parte 3

É tarde da noite, a delegacia está

vazia, tem se tornado rotina para Meire

alongar o expediente. Os policias de plantão

estão nas ruas e sua desculpa para estar ali

é o trabalho atrasado. Na verdade, o que

ela espera é a chegada da super-heroína. O

vendaval anuncia Mercúria:

— Tem uma maluca que quer ferrar

com você — Meire não tira os olhos do

computador — Ela não pode não é? Você

não é humana, é?

Mercúria aproxima-se com velocidade.

Os papéis de Meire se espalharam.

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— Você não sabe andar?

A heroína responde:

— Eu andei.

— Levantei para você alguns dados

dela — Meire recolhe as folhas que tinham

se espalhado com o vendaval — Dra.

Valéria Albuquerque, advogada conhecida

na cidade. Ficou uns anos sem dar as caras,

mas voltou a atuar recentemente.

Quando Mercúria observa a foto em

um documento, lágrimas ajuntam em seus

olhos. Ela procura afastá-la antes que Meire

perceba:

— Ela entrou na justiça contra você,

dá pra acreditar? Pleiteia a reparação dos

danos patrimoniais que você tem causado

na captura de bandidos. Acho que precisa

conversar com ela, mostrar que tem boas

intenções, sei lá.

Era difícil para fazer o que sugeria a

delegada. Mentiu:

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— Está bem. Vou pegar uns bandidos

agora e antes do final do meu turno passo

lá.

Meire assente e depois diz:

— Eu vou para casa. Procure não

arrumar muita confusão.

Enquanto avança em supervelocidade

pelas ruas da periferia de Santa Paz,

Mercúria tem a mente distante; em Valéria.

Para afastá-la dos pensamentos, uma

senhora está sendo assaltada em uma

esquina escura. Ela acelera o passo e com

um soco veloz derruba o primeiro bandido.

A velha cai e quando Mercúria tenta erguê-

la, o disparo de um flash a deixa confusa.

— Parô, parô! Não somos bandidos! —

a senhora fala como homem.

— Mas o quê?

A velha se levanta e retira a peruca,

revelando-se um homem. Ele tem os

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cabelos castanhos bem curtos, as

sobrancelhas grossas, os olhos castanhos e

um cavanhaque no queixo. É mais baixo

que a maioria dos homens como se feito

para o disfarce.

— Nem tente quebrar meu celular! —

ele lê os pensamentos da velocista — A

imagem estava programada para ser

enviada ao jornal assim que eu batesse.

Sabia que não teria mais de uma chance.

Nossa, você é real! — ele se excita.

— Eu posso descontar a minha raiva

na sua cara, o que me diz?

Ele se afasta:

— Você é gata, puxa. De outro

planeta?

— E você é enxerido demais.

— Prazer, sou Marcelo Siqueira — ele

estende a mão, mas Mercúria não o

cumprimenta — Isso é incrível! Eu coloquei

nas matérias que fiz sobre você, que

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tratava-se de um alienígena. Estou certo,

não é?

Mercúria desconversa:

— Posso pedir pra não publicar a foto?

Eu não quero publicidade...

— Pôxa, os cidadãos de Santa Paz

querem conhecer você! O mundo todo quer

saber dos seus poderes, da sua história!

— Não quero atrair atenção. Não sei

dos inimigos que podem usar essas

informações.

— Relaxa! Você é a única que tem

superpoderes por aqui Que mal pode haver?

Para contrariar o que diz Marcelo,

uma explosão consome o local onde os dois

conversam. Mercúria teve tempo de salvar

o repórter, mas o outro que participou da

manobra para obter a foto da heroína está

morto. Quando a fumaça dissipa, Mercúria

identifica a figura de uma mulher.

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Quem é ela?

Parte 4

Trata-se de uma moça de pele escura,

de cabelos negros, lisos, compridos demais

e olhos amarelos. Veste-se com colete de

couro e calça de couro agarrada às coxas.

Tem braceletes e caneleiras de ferro polido.

O abdômen musculoso está à mostra e na

mão direita, uma marreta.

Marcelo ainda está de mãos dadas

com Mercúria, ambos parecem não

acreditar no que estão vendo. A mulher

caminha na direção dos dois:

— Finalmente encontrei você — a voz

dela parece masculina.

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— Quem é você? — Mercúria recua

um passo.

— Eu é que pergunto: você sabe

quem é?

— Sou Mercúria, a protetora da

cidade!

A inimiga ri, é alta e forte.

— Então venha, Mercúria! Me mostre

o que sabe fazer! — ela levanta a marreta.

Mercúria corre para atacá-la, mas

antes de alcança-la sente um peso estranho

atingir seu corpo e depois, como se uma

flor desabrochasse em seu peito, sente dor.

O barulho de explosão se faz mais uma vez

e ela cai de costas no meio da avenida.

— Tão previsível, heroína, tão

previsível — ela ouve a voz da inimiga.

A ferida se regenera com velocidade,

permanecendo apenas o tecido danificado

do uniforme. Mercúria ganha fôlego e

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senta-se. Marcelo observa tudo com

espanto.

— A regeneração celular é um dom

útil não é? — a inimiga diz — É bom que

você também tenha desenvolvido esta

habilidade, posto que terei mais tempo para

te fazer sofrer.

— Como pôde matar aquela pessoa

inocente? — Mercúria se coloca em pé.

— O que pretende fazer? Correr? Não

é só isso que sabe fazer?

— Não.

Mercúria avança mais uma vez em

supervelocidade e desfere uma sequência

de chutes que aprendera com Clarice. A

inimiga recua dois passos.

— Isso foi bom. Mas tenho algo

melhor. — a adversária aponta a mão para

Mercúria e várias pequenas explosões

acontecem pelo corpo da heroína.

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Ela cai pela segunda vez. Mateus a

fita da calçada, por que não fugiu?

— Ninguém sobrevive às explosões de

Ardente. Esperava mais de você, já que é

da família.

— Família? — os ferimentos de

Mercúria se regeneram rapidamente e ela

teme por abusar do recurso.

— Pelo visto, não sabe nada sobre

seus poderes. — Ardente sorri com desdém.

— Não me importa! — A velocista já

está de pé.

Ardente sorri com malícia e depois

avança com sua marreta levantada.

Mercúria desvia com rapidez e aproveita a

distração de Ardente para lhe desferir um

soco veloz no rosto.

A vilã cai. Mercúria a pega pela perna

e a arrasta com velocidade, mas chamas

em sua mão fazem-na largar Ardente:

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— Quer bancar a heroína, não é? — a

vilã estende a mão — Seu amigo não tem o

poder de se regenerar das explosões. — Ela

se vira para Marcelo, que estava do outro

lado da rua.

Não! Mercúria dispara em

supervelocidade e tem tempo de ver o ar

faiscar na altura da cabeça do repórter.

Quando está correndo, tudo parece lento

demais e ela pode observar o ar se

transformando em explosão. O truque de

Ardente é mudar as moléculas atômicas das

coisas e transformá-las em bomba.

A heroína chega antes da explosão e

com o próprio corpo protege Marcelo. Ela

cai com as costas desfiguradas

Page 28: Super Poderosa

Quem é ela?

Parte final

Marcelo segura o corpo pesado de

Mercúria, ele não sabe o que fazer. Ardente

se aproxima para terminar o seu trabalho,

imagina o jovem. Para a surpresa do

repórter Mercúria desperta:

— Não é a mim que você quer? — ela

diz com a voz fraca.

Marcelo repara que o ferimento nas

costas da heroína já não se regenera.

Imagina que ela está no limite das suas

forças.

— Eu vou dar um jeito nisso! —

Mercúria diz ao se afastar do repórter.

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Avança em supervelocidade contra

Ardente, agarrando-a pela cintura e

empurrando-a para longe.

Atravessa a cidade, o estado, o país,

utilizando a inimiga como escudo para

atravessar paredes e árvores. Quando para,

Ardente está inconsciente.

Ela treme. As pernas não suportam o

peso do corpo. Os joelhos se dobram, os

músculos estão no limite. Mercúria sabe que

precisa de tempo para voltar. Ela está

ofegante, o cérebro continua pensando

rápido. Quem é Ardente? Por que deu a

entender que pertencem a mesma família?

Quem é ela própria?

Mercúria acorda algumas horas

depois. O corpo de Ardente não está mais

ali e ela se espanta. A vilã teve a chance de

liquidá-la e não o fez. O seu corpo

regenera-se o possível para voltar para casa

Page 30: Super Poderosa

e Mercúria sabe que não pode abusar dele.

O corpo realiza processos físicos com

supervelocidade, por isso ela precisa se

alimentar com frequência para manter as

funções fisiológicas normalizadas.

Ela corre de volta em ritmo menos

intenso. Chega em casa uma hora depois da

partida. O uniforme está um trapo. Ela o

retira e observa que está mais magra. Abre

a geladeira e pega a tigela de macarrão,

deve estar bom. Sem esquentar, começa a

devorar o alimento e imediatamente sente-

se melhor. Suspira aliviada.

Depois de devorar tudo que havia na

geladeira, a heroína está satisfeita e salva.

Descansa no velho sofá da sala. Fita o teto

forrado de madeira e percebe que caruncho

começa a destruí-lo. Lembra que tudo é

transitório, sente saudade de Clarice.

Recorda-se do seu nome, Verônica. Mora

em um sobrado no centro da cidade e

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trabalha como vendedora de revista e livros

usados no Sebo deixado por Clarice, no

andar debaixo. Desde o falecimento da

tutora, assumira o negócio. A vida havia

mudado com velocidade superior a que ela

podia atingir, era o que pensava.

O jornal que chegou cedo, junto com

a abertura do Sebo tem uma reportagem

especial de capa. Verônica fica surpresa,

era bombástico. O repórter Marcelo Siqueira

tinha publicado sua foto e feito uma matéria

reveladora.

A foto era de perto, detalhes do

uniforme, do cabelo estavam nítidos. A

dona do Sebo começa a ler e sente seu

estômago embrulhar. O repórter anuncia

que a super-heroína da cidade chamava-se

Mercúria e que, como a imagem

demonstrava, tinha aparência humana, mas

poderes sobrenaturais. O repórter elencou

dois: a supervelocidade e a regeneração

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instantânea. Por último relatou o embate

com a supervilã Ardente e o salvamento

heroico de sua vida pela heroína. Torcia

para que ela estivesse bem e lamentava a

morte da pessoa que estava trabalhando

com ele naquela noite.

— Oh, droga! — diz a moça ao fechar

o jornal.

Page 33: Super Poderosa

Eu sou Mercúria

Parte 1

Mercúria avança veloz pelo bairro

nobre da cidade. Visa o apartamento do

repórter Marcelo Siqueira. Tem assuntos

importantes para tratar com ele. Antes que

o porteiro se dê conta, entra seguida do

vento e sobe as escadas até o vigésimo

andar. Toca a porta por várias vezes e

quando o repórter abre, entra rapidamente:

— Que história é essa de contar sobre

meus poderes e o meu nome?

Ele deixa cair a caixinha de yakisoba

que jantava.

Page 34: Super Poderosa

— Só estava fazendo meu trabalho —

argumenta. — Quer jantar? Você come né?

— Viu o que aconteceu na noite

passada, as pessoas que aquela maluca de

martelo matou. Ela virá atrás de você!

— Fique tranquila, eu sei me cuidar.

Vou pegar uma caixinha pra você. Moro

sozinho e só como essas coisas que

entregam.

— Eu não vou estar por perto o tempo

todo, Marcelo. — ela aponta para o

repórter.

— Me chamou pelo nome! Estamos

progredindo.

Mercúria suspira:

— Não adianta falar com você, não é?

Ele se levanta para buscar o yakisoba,

mas quando volta não há ninguém na sala.

Mercúria tem receio de ir à delegacia

e colocar a vida de Meire em risco. Ela sabe

que a qualquer momento pode ser atacada

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novamente por Ardente. Por falar na vilã,

tinha dúvidas que precisam ser esclarecidas

por ela, afinal era a primeira que encontrou

com poderes sobre-humanos.

O que lhe resta é patrulhar a cidade e

fazer o seu trabalho. Na periferia ela se

depara com crianças dormindo em um

galpão abandonado, era a primeira vez que

as via. São treze, ela conta. Todas

abandonadas pelos órgãos públicos,

pessoas e mídia. Pela primeira vez não sabe

como agir, era diferente o tipo de mal a ser

combatido. Na avenida acima, carros

luxuosos passam velozes sinalizando que a

vida transcorre sem que a presença dessas

crianças seja considerada. Ela permanece

estática e o vento da noite toca-lhe o rosto.

As crianças ao notarem a presença da

heroína deixam o galpão e suas camas de

papelão para avançarem:

— Tia, dá um real? — diz um.

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— Estamos com fome! — reclama

outro.

Mercúria observa que a maioria deles

portam garrafa plástica á mão ou

pendurada no pescoço e não entende o que

isso significa, apesar do cheiro estranho que

tais objetos exalam. Ela se afasta e os

excluídos avançam novamente.

— Eu não tenho dinheiro — ela

argumenta.

Mercúria é surpreendida quando uma

das crianças lhe puxa os cabelos com

violência e outra lhe arranca os brincos

dourados em forma de raio. O sangue

escorre pela orelha mutilada e as lágrimas

pelos olhos.

— Não é lamentável? — é Ardente,

observa Mercúria.

Ela caminha em direção das crianças.

A marreta vem presa à cintura.

— Isso é obra sua! — Mercúria grita.

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— Não. Isso é obra humana. É contra

isso que luto e contra o que você deveria

lutar. — ela afaga o cabelo de uma criança.

— Quem é você? Qual a sua relação

comigo?

— Já disse, somos parentes. — Uma

explosão e Ardente desaparece.

Aquilo intriga Mercúria. Parentes?

Tantas perguntas e ninguém para

respondê-las. Se tivesse um tempo com

Ardente. Ela se lembra das insinuações da

inimiga; das crianças de rua abandonadas

pelos humanos. Mercúria indaga a si mesma

se prender bandidos, evitar assassinatos e

crimes era tudo; se era suficiente.

No outro dia, pela manhã, ao abrir a

loja de revistas usadas ela observa o pacote

com exemplares do Jornal Cidade deixados

pelo entregador durante a madrugada. Uma

nova matéria sobre ela estava anunciada na

capa. Marcelo Siqueira usa a mesma

Page 38: Super Poderosa

fotografia da notícia anterior, mas o texto é

outro. Nele, o repórter diz que cidadãos de

Santa Paz devem ter muito orgulho por

poder contar com Mercúria para protegê-

los. Ele informa que a heroína faz toda a

diferença para quem salva, mesmo sendo

impossível salvar todo mundo; ela é um

exemplo, um convite para fazermos algo

também. No fim do artigo, ele diz que nos

esquecemos dos outros e estamos focados

nas nossas vidas, deduzindo que os outros

também estão. Mercúria vem numa época

perfeita para mudar o nosso pensamento.

Ele a agradece publicamente por ter lhe

salvado a vida.

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Eu sou Mercúria

Parte 2

O artigo mudou o pensamento de

Verônica a respeito de Marcelo. Era o que

pensava enquanto divagava e montava seu

visual. Agora, com a foto do repórter

estampando os jornais diariamente, ela

tinha de criar uma identidade secreta para

quando estivesse sendo uma pessoa

comum. Com a descoberta do repórter,

Verônica e Mercúria tinham de ser pessoas

completamente diferentes.

Seu cabelo dourado foi arrumado em

um penteado “rabo de cavalo” e óculos

falsos cobriram seus olhos verdes, de modo

Page 40: Super Poderosa

que a camisa xadrez larga pudesse

combinar. Calça jeans velha terminava em

tênis brancos, estava perfeito. Ela ri para o

espelho antes de descer para o trabalho.

Naquela manhã, a advogada Valéria

Albuquerque passa no Sebo para comprar o

jornal. Era a primeira vez e isso deixou

Verônica sem saber o que fazer. Ela tenta

agir com naturalidade:

— Em que posso ajudá-la?

— Quero um exemplar do Jornal

Cidade.

Verônica retira um exemplar da

gondola e entrega à doutora. Escuta a

reclamação:

— Eu sabia que Marcelo estava

envolvido com aquela “coisa”.

Verônica silencia. A advogada

continua:

— Com as informações que ele vem

colocando no jornal, vou identificá-la e fazê-

Page 41: Super Poderosa

la pagar pelos danos causados à cidade. Já

sabemos tratar-se de uma pessoa! — faz

uma pausa para depois perguntar — O que

pensa dela?

— Não sei. — Verônica fala baixo.

— Algum problema com você? —

Doutora Valéria estranha a palidez da

vendedora.

— Eu estou bem. Acho que Mercúria

ajuda as pessoas.

— Não me faça rir. Ela ajuda quem

quer.

— Tenta ajudar o máximo de pessoas

que pode.

— Tenho observado que muitos

crimes continuam acontecendo.

— Ela é rápida, mas não pode estar

em todos os lugares.

— Ela deve ter um motivo para salvar

quem salva.

Page 42: Super Poderosa

— Tenho certeza que a Mercúria sente

muito por todos aqueles que não pôde

salvar.

Valéria fita Verônica pela primeira

vez. Os olhos da vendedora lhe parecem

familiares; tristemente familiares...

— Onde estava Mercúria quando

minha menininha morreu? Deus, ela só

tinha treze anos.

— Ela não tinha como impedir o que

aconteceu Doutora Valéria...

Valéria chora copiosamente. Verônica

se aproxima e a abraça, Deus, como ela

desejou aquilo. Ambas se permitem gostar

do abraço; se reconhecem. Verônica diz:

— Eu lamento pelo que aconteceu

com sua filha. Eu perdi minha mãe

recentemente e sei como é doloroso... Mas,

aprendi com ela que não devemos colocar a

culpa nos outros pelas nossas faltas ou pelo

ruim que experimentamos.

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Valéria se afasta subitamente:

— Me desculpe. — ela pede,

recompondo-se.

Verônica sorri. Arruma o jornal da

advogada em uma sacola de papel e diz:

— Venha sempre comprar jornais

aqui.

Valéria sorri também, mas nada diz.

Ela se vai.

Meire está terminando um inquérito

quando um vendaval anuncia Mercúria,

mais cedo do que de costume. A heroína

está encostada no batente, na entrada da

sala da delegada:

— Quero que retire as crianças das

ruas.

— Boa noite! — Meire recolhe os

papéis. — Está famosa, agora que é

amiguinha do Marcelo Siqueira, não é?

Page 44: Super Poderosa

— É sério, Meire. Preciso de ajuda

para tirá-las das ruas.

Faz-se silêncio por um tempo.

— Não é tão simples assim — Meire

aponta para a super-heroína — Elas não

querem sair.

— Como não?

— Preferem viver como vivem a voltar

para casa ou para um orfanato. No seu

planeta isso não acontece?

— Onde estão os pais dessas

crianças?

— Mortos, presos, você escolhe.

— Temos que fazer alguma coisa.

Meire ajeita os óculos e fita Mercúria:

— Não acha melhor voltar a prender

os criminosos?

Page 45: Super Poderosa

Eu sou Mercúria

Parte 3

A porta do apartamento do repórter

Marcelo Siqueira se abre com velocidade,

ele tinha o costume de deixá-la

destrancada. Em pé, na sua sala uma

mulher de pernas fortes e de uniforme

agarrado se faz presente. Ele fica surpreso

e ela vai direto ao assunto:

— Meire não quer ajudar a tirar as

crianças das ruas.

Ele não diz nada, ainda fascinado.

— Quero sua ajuda. — ela continua.

— Já fiz matéria sobre as crianças de

rua — ele responde como se tivesse

Page 46: Super Poderosa

despertado de algum transe — São fugitivos

de orfanatos ou filhos de pais presos e

falecidos. O conselho tutelar já recolheu boa

parte, mas eles fogem e voltam para as

ruas. Puxa, você me procurou!

Mercúria aponta para Marcelo:

— Não se empolga. Achei que você

poderia fazer alguma coisa.

Ele sorri:

— Eu posso.

O resto da noite foi de muito trabalho.

Mercúria agarrou crianças uma a uma e as

levou para um orfanato indicado por

Marcelo Siqueira. O repórter tinha visitado o

estabelecimento meses atrás e constatado

as ótimas condições para o crescimento de

crianças abandonadas. Era longe, em outro

Estado, mas para a velocista era como

atravessar a rua.

Page 47: Super Poderosa

Antes de amanhecer todas as crianças

tinham sido levadas. No retorno a Santa

Paz, numa lanchonete que funcionava a

noite toda, Marcelo espera Mercúria.

— O Orfanato é ótimo! — ela se senta

com velocidade, derrubando a toalha e os

copos de plásticos vazios.

— Fiz uma matéria lá. Falei das

condições exemplares do orfanato e fiz um

apelo ao prefeito de Santa Paz para que

fizesse algo similar.

— Não sabia que você fazia este tipo

de trabalho.

Ele sorri:

— Tem muita coisa sobre mim que

você não sabe.

Ela devolve o sorriso:

— Aposto que eu tenho mais

segredos.

— Não vale! Agora apelou, você é

super! Tá com fome?

Page 48: Super Poderosa

Ela assente e Marcelo pede um

hambúrguer. Ela o interrompe e pede que o

funcionário prepare cinco.

— Tudo isso? — ele estranha.

— Eu tenho metabolismo celular

acelerado. Por isso, a recomposição de

tecido acontece com velocidade, mas a

minha queima de energia também é rápida.

— Não entendi nada do que você

disse.

— Para correr e me curar rápido de

machucados, preciso comer com frequência

e bastante.

— Agora entendi. — ele se ajeita na

cadeira — Posso falar isso no jornal né?

Mercúria responde:

— Só porque me ajudou com as

crianças.

Os hambúrgueres são colocados sobre

a mesa e Mercúria começa a comê-los com

rapidez.

Page 49: Super Poderosa

— Tem mais alguma coisa que

gostaria de informar às pessoas?

— Quem sabe numa outra

oportunidade. — ela diz enquanto mastiga.

Ao terminar de comer, sob a

admiração do repórter, diz:

— Boa noite e obrigada, Marcelo.

Antes da resposta do repórter,

Mercúria desaparece.

— De nada — ele dá de ombros para

ninguém.

Page 50: Super Poderosa

Eu sou Mercúria

Parte final

O jornal chegou cedo o que fez

Verônica deduzir que Marcelo não dormiu

depois da entrevista na lanchonete. A foto

de capa mostrava Mercúria de corpo inteiro

na frente do estabelecimento comercial da

noite anterior. A chamada para a matéria é

a seguinte: “Super-heroína de Santa Paz

recolhe todas as crianças de rua.” Ela abriu

na página que continha a matéria e leu

satisfeita. No fim da reportagem ainda

havia a informação de que Mercúria precisa

se alimentar muito e com frequência dado

Page 51: Super Poderosa

os poderes de velocidade que tem. Com ela

tudo é rápido, finaliza Marcelo.

A Doutora Valéria tem tempo de

pegar o sorriso nos lábios de Verônica

quando chega para adquirir um exemplar

do Jornal Cidade. Indiferente, cumprimenta

a vendedora de revistas e franze o cenho ao

ver a matéria de capa:

— Esse jornal só pode estar de

brincadeira.

A jornaleira respeita a opinião da

advogada, mantendo-se silente.

— Até amanhã. — Valéria diz mal-

humorada após pagar pelo exemplar que

levou consigo.

— Até. — Verônica por muito pouco

não completa a frase com a palavra que

aparece em sua mente toda vez que vê

Valéria. Entristece-se por alguns segundos

enquanto observa a silhueta da mulher

Page 52: Super Poderosa

elegante deixar o Sebo. Ela ainda usa o

mesmo perfume.

No centro, na cede do Jornal Cidade

que também é cede do Grupo Cidade de

Entretenimento, Marcelo Siqueira está

debruçado sobre sua mesa, na baia no final

da sala da redação. Exausto pela noite não

dormida cedida para ajudar a heroína da

cidade e depois preparar a matéria de capa

de hoje. O telefone do jornal não para de

tocar.

O repórter tinha se formado em

jornalismo recentemente e quando o

trabalho no único jornal da cidade

apareceu, não pensou duas vezes, afinal

oportunidade de trabalho em Santa Paz não

acontecia frequentemente. Nascido e

crescido na cidade só a deixou para concluir

os estudos. Homem audacioso ganhara

Page 53: Super Poderosa

destaque pelas matérias publicadas sobre

Mercúria.

Seu fascínio por ela era evidente.

Deste que tomou conhecimento de que algo

estava agindo na cidade contra o crime,

empenhou-se de todas as formas para

descobrir mais. Os frutos pelo seu interesse

foram o destaque no jornal e a felicidade do

chefe junta com a inveja dos outros

companheiros de trabalho.

— Marcelo, acorde! — era Janaina,

outra repórter do jornal.

— O que foi?

— O chefe quer falar contigo. É pra

você ir à sala dele.

— Está bem.

Ele se estica na cadeira. Levanta-se e

confere o rosto no espelho do corredor para

ver se está apresentável. Tirando as

olheiras tudo está em ordem. A porta do

gabinete do chefe está aberta, ele pede

Page 54: Super Poderosa

licença e entra. Humberto se levanta e vem

ao encontro do funcionário com um sorriso

no rosto. É um homem obeso de cabelos

grisalhos, penteados de forma a esconder

sua calvície. Veste-se terno cinza.

— Marcelo, como vai? Sente-se, por

favor.

O jovem repórter assente. O patrão

continua:

— Você é especial, Marcelo. Não sei

como faz, mas suas matérias sobre

Mercúria são sucesso. O jornal nunca

vendeu tanto.

— É o meu trabalho, senhor.

O chefe acende um charuto e oferece

outro ao funcionário que nega, não fuma.

— Quero lhe propor um novo

trabalho, escute.

Page 55: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte 1

Verônica dirige a velha caminhonete

de Clarice até o mercado, odeia fazer

compras. O carro funciona bem, foi útil tê-lo

recebido junto com todos os outros bens da

falecida. Ela estaciona, retira suas sacolas

de pano e dirige-se à entrada do grande

mercado. Tudo está tranquilo naquela

tarde. Nos corredores encontra a advogada

Valéria. Durante aquela semana haviam se

visto todos os dias, já que Valéria passou

no Sebo para comprar seu jornal todas as

manhãs.

Page 56: Super Poderosa

— Como vai? — cumprimenta a

advogada.

— Bem. Só vir fazer compras que não

me agrada, mas fazer o que...

— Eu gosto. — a advogada sorri.

Verônica retribui o sorriso.

— Acompanhe-me e lhe mostrarei

como pode ser gostoso realizar compras.

Verônica e Valéria andam juntas pelos

corredores conversando assuntos rotineiros

durante o período de compras. Dirigem-se

ao corredor de congelados e a advogada

acha incrível como se sente bem ao lado da

jovem vendedora de revistas.

O carrinho de Verônica está cheio, o

que causa curiosidade em Valéria:

— Disse-me que mora sozinha, não é

muita coisa para uma pessoa?

— Ah sim — Verônica tenta explicar.

— É que compro muito para evitar voltar

em breve ao supermercado.

Page 57: Super Poderosa

A advogada assente já se

aproximando dos caixas.

— Vamos? — ela diz.

— Sim, não vejo a hora.

Quando Valéria está passando suas

compras ouve o barulho de motocicletas e

observa elas se aproximarem da entrada

vidrada do estabelecimento. São três e

delas descem duplas armadas. Eles se

aproximam e anunciam o assalto.

Verônica está logo atrás de Valéria e

observa a ação dos bandidos, aflita. Os

funcionários do supermercado começam a

esvaziar os caixas enquanto os criminosos

apontam suas armas. Valéria está muito

perto de um deles.

— Por favor, deixe-nos ir. — ela

implora.

O bandido, cujo rosto é escondido por

capacete, aponta o revólver para Valéria.

Verônica não consegue esperar mais,

Page 58: Super Poderosa

agarra o inimigo e o lança contra a parede

em supervelocidade, retorna ao seu local de

origem sem que possam perceber o

ocorrido.

— Mas o quê? — indaga outro

criminoso ao notar o comparsa inconsciente

e distante. — Deve ser a vadia com

superpoderes! Vamos ver se ela consegue

nos impedir de fazer uma chacina aqui!

Ele parece ser o líder, porta uma

mine-metralhadora. Aponta para Valéria e a

aflição de Verônica aumenta. Ela jamais se

perdoaria se algo acontecesse à advogada.

— Apareça, Mercúria! Eu vou matar

essa mulher que você salvou se não der as

caras, vadia!

Sua prematura identidade secreta

estava por um fio, imagina Verônica. Vidas

são mais importantes, se conforta enquanto

caminha para frente com as mãos

levantadas. O bandido fita a jovem e diz:

Page 59: Super Poderosa

— O que foi?

Verônica se prepara para responder,

mas uma explosão se forma perto e o braço

do bandido é arrancado do seu ombro. Tiros

se fazem.

Page 60: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte 2

A fumaça se dissipa e revela Ardente

de marreta em punho e com os cabelos

organizados em uma longa trança. Os olhos

amarelos confiantes fitam Verônica como se

soubessem da verdade. Algumas pessoas

estão mortas, dado o susto causado pela

entrada da vilã nos bandidos. Ela não se

importa:

— Corja, roubam uns aos outros!

— Pra trás! — fala outro bandido.

— O que vai fazer? Matar este que

tens rendido? Não me importa, te matarei

depois.

Page 61: Super Poderosa

— Não! — diz Verônica.

Ardente se vira para a jovem:

— Ora, o que temos aqui? Uma

defensora do que não tem defesa?

Valéria tenta impedir Verônica de se

aproximar da vilã:

— Ela é louca! Fique quieta!

— Eu não sou louca — responde

Ardente. — Não roubo, não mato e nem

ameaço os meus, diferente do que está

acontecendo aqui.

— Acha que vai resolver com

violência?

— Acho. Os mais fortes impõem e os

mais fracos se sujeitam.

Ouve-se mais um tiro. Uma pessoa

tentou fugir e um bandido acerta-lhe nas

costas.

— Impeça-os! — lágrimas se ajuntam

nos olhos de Verônica.

Page 62: Super Poderosa

— Impedi-los de se matarem,

matando-os? Há remédio?

Lá fora várias viaturas chegam. A

polícia cerca o local, mas os policiais não se

atrevem a entrar, podem causar a morte de

mais reféns é o pensamento da delegada

Meira ao organizar o seu pessoal.

Não há tempo a perder, ainda com os

olhos cheio de lágrimas Verônica se volta

para Valéria. Nada diz, mas o olhar parece

dizer o que há muito está preso à garganta.

A advogada sente um aperto nos braços e

tudo se torna velocidade, mal dá para

respirar. Quando volta a si está na calçada

de casa.

Menos de um minuto, Mercúria

adentra pelo supermercado e golpeia com a

força de sua velocidade o rosto de Ardente,

arremessando-a contra as prateleiras do

mercado. Ela desarma os quatro bandidos e

Page 63: Super Poderosa

os imobiliza. As pessoas estão apavoradas,

três delas mortas.

— Teve tempo de trocar de roupa,

irmã? — Ardente se levanta com a mão no

queixo.

Mercúria aponta para a inimiga:

— Você poderia ter impedido tudo

isso!

— Não entendo seu apego a esta reles

espécie. Não somos iguais e eles, aceite.

—Primeiro, eu me acho humana e

segundo que papo é esse de irmã?

— Você não é humana, não mais.

Somos Divas e nossas habilidades vêm dos

Deuses-banidos! Aquele que lhe dá poder é

meio irmão daquele que escolheu a mim.

Mercúria está confusa:

— Divas? E quem são esses Deuses-

banidos? — pergunta.

— São aqueles que habitavam o

planeta antes dos homens. O meu deus é

Page 64: Super Poderosa

Hefesto e o seu, Hermes. O meu possui a

habilidade de manipular as chamas e como

você já deve ter percebido, o seu a

velocidade.

— Clarice não disse nada.

— Não sei quem é esta pessoa que

menciona, mas suponho que tenha omitido

a informação de propósito para que você se

desviasse da sua verdadeira missão.

— Missão?

Ardente sorri.

— Acha que ganhou poderes sem um

propósito para utilizá-los? Você é a mão de

seu Deus-banido para exterminar a

humanidade.

— Eu nuca farei isso!

— Quando compreender a verdade,

no seu tempo, tudo mudará. — Chamas

aparecem na mão direita da vilã.

Ela arremessa uma esfera flamejante

contra Mercúria que desvia com facilidade.

Page 65: Super Poderosa

— Somos as escolhidas dos deuses

para purificar o planeta e prepará-lo para o

retorno deles. — ela diz ao avançar contra

Mercúria.

Os golpes de marreta são esquivados

pela velocista e seus contra-ataques

também não surtem efeito. O corpo da

inimiga é resistente.

Ardente sorri ofegante. Vira-se para

as pessoas que não deixaram o

supermercado por conta do embate das

duas supercriaturas.

—Eu os matarei, Mercúria. Continuarei

a dizimar humanos em prol de um amanhã

melhor. — ela diz.

— Não! — grita Mercúria.

— Já disse da nossa missão. Quer me

ajude ou não, realizarei o que me foi

predestinado.

Ardente ergue a mão e uma explosão

atinge um homem que tentava escapar.

Page 66: Super Poderosa

— Pare! — Mercúria avança e agarra

Ardente pelo braço.

Arrasta a Diva até o fim do corredor e

a arremessa contra a parede.

Page 67: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte 3

O estrondo atrai a atenção de Marcelo

Siqueira, o repórter que acaba de chegar ao

local, informado do que acontecia. Dentro

do furgão além dele, encontra-se o

motorista Carlos e o cinegrafista Fausto.

Meire está a frente conversando com

policiais.

Marcelo desce e aproxima-se da

delegada. Ela é quem fala primeiro:

— Sua garota está lá dentro. Parece

que tem outra... — acende um cigarro.

— Ela não é minha garota. O que está

acontecendo?

Page 68: Super Poderosa

— Um assalto. Pelo menos estava. Os

que saíram me informaram que Mercúria já

rendeu todos os bandidos, mas há outra

mulher com superpoderes que está lutando

com ela. Sabe alguma coisa dessa outra?

— Não. Santa Paz tem se tornado um

lugar peculiar.

— Nem me fale — Meire expele a

fumaça pelos lábios.

— Vou chamar o meu cinegrafista e

vou entrar ao vivo. — ele informa.

— Vai lá. Como se não bastasse as

matérias para o Jornal Cidade agora para a

TV Paz? Você está fazendo disso um

espetáculo.

— O meu patrão é dono da TV e do

Jornal. Pediu para eu cobrir Mercúria já que

tenho conseguido boas matérias para o

jornal.

Page 69: Super Poderosa

A explosão estilhaça os vidros da

adega do supermercado. Mercúria está

caída, ferida. Ardente caminha mancando

na direção da heroína, arrastando sua

marreta.

— Luta comigo que sou sua irmã em

defesa desses insignificantes?

— Defendo a vida — o corpo de

Mercúria está se regenerando enquanto é

banhado por vinho e outras bebidas

alcóolicas.

— Pois tirarei a sua — a vilã eleva a

marreta para o golpe fatal.

Mercúria se esquiva com agilidade e

uma cratera é aberta no local que ocupava.

Os olhos de Ardente demonstram sua

irritação:

— Se você ficasse parada... Não

importa, quero ver se esquivar do ar em

explosão. — Ela lança a mão para

manipular as moléculas do ar.

Page 70: Super Poderosa

A mente de Mercúria identifica logo o

que acontecerá, afinal aquele ataque já

tinha sido usado várias vezes por Ardente.

Avança o mais rápido possível e empurra a

vilã antes que as explosões se façam. Como

o chão estava liso por conta do líquido das

garrafas quebradas, ambas escorregam e

caem. A marreta se desprende da mão da

inimiga pela primeira vez.

Ardente tenta recuperar a arma, mas

Mercúria lhe impede segurando-a pelas

pernas:

— Solte-me! — é a primeira vez que

Ardente está sem o costumeiro semblante

de confiança.

Ela consegue soltar uma das pernas e

desfere um chute contra o rosto de

Mercúria. As mãos da heroína se afrouxam

e a inimiga se coloca de joelhos. Observa

que Mercúria também está de joelhos e

sangue pinga do seu rosto.

Page 71: Super Poderosa

— Está no seu limite, não é? — ela se

levanta e desfere um poderoso chute nas

costelas de Mercúria.

O barulho de ossos se partindo é

música para Ardente que acaba se

esquecendo de recuperar sua marreta. Ela

continua o espancamento.

O metabolismo acelerado de Mercúria

já não dá conta de regenerá-la. Sente dor

que nunca imaginou sentir um dia, mas se

mantém consciente.

Ardente para, ofegante e Mercúria

tem a oportunidade de atacá-la com uma

rasteira. A vilã cai, Mercúria manca até ela

e lhe desfere socos. A velocidade dos

ataques é comum, já que não possui

energia para acelerá-los.

— Pare! — diz Ardente. — Ambas

morreremos se continuarmos com essa luta

— a voz da inimiga soa feminina, o que a

faz levar as mãos aos lábios. — Oh, não!

Page 72: Super Poderosa

Ela tenta se soltar, mas Mercúrua

está sobre ela.

— Como fui tola! Por Hefesto!

— O que está dizendo? — a heroína

está confusa.

Os policias invadem o supermercado

numa operação montada pela delegada.

Portam armas de calibre pesado, já que não

sabem como ferir esses seres poderosos.

Ardente abre os braços, Mercúria

continua sobre ela. A pele da inimiga se

torna clara, os olhos castanhos. O tamanho

diminui.

— Que está acontecendo com você?

— indaga Mercúria.

— Estou sendo expulsa do meu

hospedeiro. — é o que diz a vilã.

Mercúria abaixa o punho que

mantivera levantado desde o pedido de

Ardente para cessar os ataques. A inimiga

aproveita-se da guarda baixa da oponente

Page 73: Super Poderosa

para cravar-lhe no peito um estilhaço médio

de vidraça.

Os policiais se aproximam, mas

Mercúria não tem tempo de vê-los em ação.

A consciência e a vida lhe fogem.

Page 74: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte 4

Meire sempre fora considerada uma

mulher forte. Na academia de polícia se

destacava pela resistência física e pela

determinação, o que causava certa inveja

em seus companheiros. Diziam que ela era

um homem no corpo de mulher. Até mesmo

seu psicológico sempre fora equilibrado,

mas isso vinha mudando de um tempo para

cá, desde que conheceu Mercúria.

Se tinha mesmo as qualidade que

invejavam seus companheiros de academia,

precisaria delas agora que entrava no

Page 75: Super Poderosa

supermercado palco da batalha de Mercúria

e Ardente.

Em um dos corredores destruído

depara-se com o corpo inerte de quem

conhecia escorrendo rubro, debruçado

sobre outra mulher.

— Tirem Mercúria de cima da mulher.

— foi sua primeira ordem aos policiais.

De arma em punho ela acompanha o

procedimento. A mulher desconhecida

banhada pelo sangue de Mercúria pede

socorro.

Os policiais afastam a heroína da

menina que pede ajuda.

Meire se aproxima e diz:

— O que houve aqui?

— Eu não sei. Deus, eu não sei o que

estou fazendo.

— Parece que você é a responsável

pelo que aconteceu aqui. Inclusive pelo

ferimento de Mercúria.

Page 76: Super Poderosa

A jovem fita o corpo da heroína ao

lado e depois suas mãos ensanguentadas.

Está nua, observa confusa.

— Não é possível — ela tapa o rosto

com as mãos.

Meire não tem tempo para descobrir a

verdade. Ordena:

— Algemem-na.

Ardente é algemada sem resistência

pelos policiais. Meire volta-se para Mercúria

e por um momento não sabe o que fazer.

Saca o celular e disca para Emergência.

— Levem essa mulher daqui. — ela

diz aos seus homens, referindo-se a menina

que fora Ardente.

— Eu não sou criminosa! — Ela se

debate e chora enquanto é levada.

Marcelo não estava no ar quando os

homens de Meire deixam o local do crime

com a jovem bandida algemada coberta por

Page 77: Super Poderosa

uma toalha branca. A marreta e a armadura

de Ardente eram carregadas por dois

policiais que vinham logo atrás.

Em sua última chamada para o

plantão de notícias da TV Paz, o repórter

havia anunciado que o roubo ao

supermercado do Centro da cidade havia

terminado em tragédia, que a heroína de

Santa Paz estava gravemente ferida.

Agora poderia ter mais informações,

pensou ao pedir para Fausto ligar a câmera

e segui-lo. Quando ganhou os corredores do

supermercado destruído, pediu para Fausto

filmar cada detalhe. Entretendo, assim que

notou Mercúria pediu que a gravação fosse

interrompida.

Aproximou com velocidade,

preocupado. Meire estava conversando com

policiais ali perto:

— Que está fazendo aqui, Marcelo?

Page 78: Super Poderosa

— Deus, ela tá fria. — ele está de

joelhos.

— Já chamei a ambulância — diz a

delegada.

— Não dá pra esperar, Meira. — ele

agarra o corpo de Mercúria.

— Marcelo, espere! — ela sai atrás do

repórter.

Ambos cruzam a saída do mercado

sob olhares curiosos. Marcelo abre a porta

do furgão da TV e deixa Mercúria no banco

traseiro. Meire entra pela porta do

passageiro e segue com Marcelo para o

hospital.

— Achei que ela fosse invulnerável —

a delegada comenta.

— Se lesse minhas matérias já

saberia que não.

— Vire aqui — ela sugere ao mesmo

tempo em que ignora o comentário do

repórter — podemos pegar um atalho.

Page 79: Super Poderosa

Chegam ao hospital rapidamente.

Meire desce do furgão da TV Paz e corre até

a recepção. Marcelo abre a porta lateral e

agarra Mercúria.

— Aguente firme.

Page 80: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte 5

Mercúria se levanta subitamente. Está

num leito de hospital. As mãos estão

trêmulas.

— Oh, puxa, que bom que acordou! —

é Marcelo que se levanta da poltrona ao

lado da cama.

— Marcelo? Onde estão minhas

roupas?

— No lixo. Foi uma confusão danada.

— Confusão?

— Ah sim. Trouxemos você toda

quebrada e com um ferimento de vidro no

peito. Parecia morta, inclusive. Os médicos

não sabiam o que fazer. Uns queriam te

Page 81: Super Poderosa

operar, outros queria te abrir só pra ver o

que tinha dentro. Daí eu, com a ajuda de

Meire, entrei na sala e impedi que fizessem

qualquer coisa. Disse que só deveriam te

dar “comida”. Soro, pela sua condição

naquela oportunidade. Parece que

funcionou.

Mercúria ainda está confusa:

— Ardente, onde está?

— Então, descobri com um

sobrevivendo do supermercado que é esse

o nome da outra Super Poderosa que lutava

com você. Meire me informou que prendeu

uma menina de treze anos quando entrou

no mercado. Segundo a delegada, ela é

Ardente.

Seria coincidência? Verônica tinha

exatos treze anos quando se transformou

em Mercúria. Se a inimiga tinha voltado a

idade de antes algo similar poderia ocorrer

com ela? Poderia recuperar a vida perdida?

Page 82: Super Poderosa

— Ardente estava se transformando

quando me acertou pra valer. Disse algo

sobre hospedeiro, se me lembro bem. — A

heroína leva as mãos ao rosto. — Preciso

conversar com essa menina. Será que eu

também sou hospedeira?

— Ei ei, primeiro você tem que se

recuperar totalmente. Ainda está fraca.

Quanto a saber se você é hospedeira, eu

nem faço ideia do que seja isso.

— Nem eu. Por isso é importante falar

com essa menina.

— Eu posso ajudar você de alguma

forma? — Marcelo coloca a mão no ombro

de Mercúria.

— Você já fez isso — ela sorri. — Eu

não tenho como agradecer pelo que fez por

mim aqui.

Ele sorri e se afasta:

— É só me conceder entrevistas. Vou

mandar entregar comida. Muita comida.

Page 83: Super Poderosa

Os papeis estão sobre a mesa da

delegada Meire; o cigarro nos seus lábios. A

sua prisioneira peculiar, a menina que ferira

Mercúria, estava sob sua custódia em uma

sala particular improvisada. Ela é menor de

idade e não pode, segundo as leis do país,

ser mandada para a cadeia comum. O

correto é instalá-la em uma Casa de

Custódia para adolescentes.

— Estou começando a odiar esse

pessoal com poderes. — ela diz para si

mesma.

Nos três dias que sucederam o

acontecimento do supermercado, Meire

havia ouvido alguns presentes a adiantado

o Inquérito Policial. Tinha solicitado a

soltura da adolescente que fora Ardente e

que agora atendia por Mariana Marques da

Silva. O argumento da delegada era de que

não havia sido Mariana a autora dos crimes.

Page 84: Super Poderosa

Segundo Meire, ela não havia agido por

vontade própria, o que a eximia de

responsabilidade. A decisão cabia ao jovem

Promotor Cícero Alves com quem a

delegada não tinha afinidade.

Um vendaval se faz, mas Meire

segura os papéis com as mãos antes que se

espalhem:

— Peguei você! — ela diz, referindo-

se sobre a manobra de impedir os papéis de

se espalharem.

— Não estou abusando dos poderes

depois do que aconteceu no mercado. Não

sei quando vou precisar deles para não

morrer.

— Estou feliz que tenha sobrevivido.

— Obrigada por ter me salvado —

Mercúria abraça Meire.

A delegada a afasta rapidamente, sem

jeito. Tosse e depois diz:

Page 85: Super Poderosa

— Tem uma coleção do modelito? O

de antes estava um trapo.

— Isso não é importante. Quero falar

com Ardente.

— Ela está diferente agora. Colhi

depoimentos que relataram que você estava

lutando com uma mulher de pele escura,

forte. Venha ver pro sim mesma, ela está

na sala de arquivos aqui da delegacia.

Page 86: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte 6

As duas caminham em silêncio, o

abraço ainda surte efeito em Meire. Ela abre

a porta e uma menina normal é avistada

sentada em um colchão improvisado.

— Você é a mulher que estava em

cima de mim quando fui presa! — a garota

aponta para a heroína. Me tire daqui, por

favor!

— Você foi quem quase me matou.

— Por isso devo estar presa. Mas não

fui eu quem te causou mal ou se causei não

estava consciente.

Page 87: Super Poderosa

— O que você quer dizer com “não

estava consciente”? — Mercúria se ajoelha.

— A marreta.

— A marreta? — a delegada

questiona.

A menina olha para Meire. Depois

volta-se para Mercúria.

— Sim. Eu não sei explicar direito o

que aconteceu. Quando toquei aquela

marreta algo estranho aconteceu.

— Não se lembra dos poderes que

tinha? Do que fez? — indaga Mercúria.

— Não. Estou presa e longe de casa

sem saber o motivo.

— Conte-nos mais sobre essa

marreta.

— Ninguém acreditaria. Eu moro em

um sítio e num dia chuvoso, quando

retornava da escola, algo caiu do céu. Ao

me aproximar por curiosidade percebi que

Page 88: Super Poderosa

era uma marreta! Alguma força me instigou

a tocá-la.

Mercúria se levanta, surpresa:

— Deve avisar aos homens que

levaram a marreta para que fiquem longe

do objeto, Meire.

— Farei isso! Pelo que pude constatar

é a arma que faz quem a empunha se

transformar em Ardente.

Passos apressados pelos corredores

da delegacia e vozes interrompem o

interrogatório. Meire abre a porta e escuta

uma mulher dizer:

— Mariana está mesmo aí? Deus, é

mesmo ela! Tão longe! Quanto tempo!

A mulher, que vem seguida de um

homem e duas crianças, entra na sala e se

depara com a filha perdida. Mercúria

observa a felicidade da mãe ao reencontrar

a filha e lágrimas ajuntam nos seus olhos.

Um dia seria ela? Toda a família, ali naquela

Page 89: Super Poderosa

prisão improvisada, reunida novamente.

Feliz.

— Que aconteceu, Mariana?

Pensávamos que estava, sequestrada,

morta. — a mãe em pranto apalpava a filha

adolescente.

Meire fita Mercúria e observa que

aquela cena mexe com a super-heroína.

Imagina o quanto Mariana e Mercúria têm

em comum.

Meire está fumando no corredor da

delegacia. A porta da sala de arquivos se

abre e dela sai Mercúria.

— Ela não é mais Ardente. Não há

motivo para mantê-la presa. — diz a

heroína.

— Eu também entendo assim e vou

pedir para Promotor de Justiça soltá-la. O

problema é que vão querer um responsável

pelo incidente no supermercado. A

imprensa, a promotoria. Essa questão de

Page 90: Super Poderosa

sobrenatural complica as coisas e o Cícero é

um pé no saco.

— Não entendo dessas coisas, Meire.

Sei que ela é inocente.

— Eu não posso soltá-la. Há leis que

me impedem. Tem todo um processo...

— Você não, mas eu sim.

Meire apaga cigarro e volta-se para

Mercúria.

— É. Você pode — ela joga o cigarro

no lixo — Mas não deve. Notei que a

menina mexe com você de alguma forma.

Já não acho que você seja alienígena.

Tenho pra mim que alguma coisa caiu e te

deixou Super Poderosa.

Page 91: Super Poderosa

Ela é Ardente

Parte final

São sete horas da manhã quando

Meire retorna à delegacia. Policiais a

esperam na sacada do prédio com

semblante de preocupação. Meire deduz o

motivo.

— O que está acontecendo? — ela

pergunta para Antônio, o investigador de

sua confiança.

— Meire o Promotor está aí e está

uma fera.

— Ele sempre está. — ela segue o seu

caminho até sua sala.

Page 92: Super Poderosa

Nela, em pé com um livro de Meire

nas mãos está Cícero, o Promotor de Justiça

de Santa Paz.

— Bom dia, doutora — ele diz sem

tirar os olhos do livro.

— Bom dia, doutor. O que o fez

madrugar?

— Não seja sínica.

Faz-se silêncio.

— Ela tem superpoderes, doutor. —

Meire senta em sua cadeira. — Eu disse a

ela que não deveria fazer, mas ela é cabeça

dura.

— Todos na cidade sabem da sua

relação com essa coisa.

— Meça suas próximas palavras — ela

aponta para o promotor.

Ele suspira. Fecha o livro e o coloca

na estante. Ela continua:

— Interroguei a menina ontem. Hoje

eu prepararia novo pedido de soltura.

Page 93: Super Poderosa

— Não importa. Eu vou indiciar

Mercúria como cúmplice das mortes

ocorridas no supermercado. Não é por outro

motivo que ela libertou a outra criatura.

— Só para o seu governo, doutor, a

outra criatura é uma criança! Ela não matou

ninguém! Era uma força desconhecida que a

possuía quando empunhava a maldita

marreta.

— Ora, Meire, tenha santa paciência!

Força desconhecida? Isso virou o que?

Como você pode ter certeza que essa

criança não pode voltar a ser a criatura que

dizimou as pessoas no supermercado?

— Eu confio em Mercúria.

— Mas eu não. Por isso você está fora

do caso; por amizade íntima com uma das

criminosas. Um novo delegado está

chegando para assumir esse caso.

Page 94: Super Poderosa

— Ah, você não pode fazer isso! Estou

nessa cidade há muito mais tempo que

você, seu playboy de merda!

— Eu já fiz. Uma pena que eu não

possa transferi-la para outra cidade. Pelo

menos, os casos envolvendo sua amiga

aberração não serão mais de sua

responsabilidade. — Cícero deixa a sala e

fecha a porta.

Os palavrões ditos por Meire são

abafados pela porta fechada.

Page 95: Super Poderosa

Origem Revelada

Parte 1

A porta velha da loja de revistas

usadas se abre. Verônica está com duas

sacolas na mão esquerda. Traz pão,

presunto e leite. Do lado de dentro do

balcão está Mariana.

— Então essa é sua verdadeira vida?

— ela diz.

— Bem, é o mais próximo que consigo

chegar de uma vida normal.

— Não tem medo? Revelou sua

identidade para mim, me trouxe para a sua

casa. Eu quase matei você.

Page 96: Super Poderosa

— Aqui você está segura. Pelo menos

por enquanto. Eu não posso te levar para

casa porque eles irão te procurar. Nem

revelar aos seus pais que você está bem,

pelo menos por enquanto.

— Por que me trouxe aqui? Me

libertou?

— Porque preciso entender o que é

você. O que sou eu — Verônica coloca as

sacolas em cima do balcão.

— Eu juro que não quis machucar

ninguém.

— Eu acredito em você.

— Por que se importa em me ajudar?

Não que eu esteja reclamando, mas é que

você se complicará com a polícia por causa

disso.

— Eu me vejo de alguma forma em

você. Daria tudo para desligar os meus

poderes, como aconteceu contigo. Ter a

chance de retomar a vida que eu tinha.

Page 97: Super Poderosa

Quanto à polícia, explicarei tudo em breve.

Meire entenderá.

— Então você também ganhou

poderes por tocar algo que não devia?

O passado se fez como resposta.

Havia feito muito calor naquela tarde.

Uma tempestade tinha se formado nos céus

de Santa Paz. As árvores balançavam com

violência, os ventos levantavam poeira e

lixo. Ninguém mais transitava pelas ruas.

Verônica estava voltando do dentista

com sua bicicleta cor-de-rosa e empregava

toda sua força para pedalar e evitar que a

chuva forte lhe alcançasse. Ela escutava os

trovões e um medo súbito invadiu-lhe,

estranhamente. Empregou mais força, mas

o vento insistia em lhe atrapalhar.

Poeira continuava a se levantar das

ruas sujas e trovões rachavam os céus, mas

não chovia ainda. Todo mundo tinha

Page 98: Super Poderosa

desaparecido dando espaço à escuridão que

obrigou os postes a se acenderem. A

menina teve a ideia de cortar caminho pelo

Parque da Lagoa, pois aquele local público

de muitas árvores era imenso e cortava

parte da cidade. Se ela transpassasse por

ele, como já havia feito por diversas vezes,

ganharia tempo.

Verônica entrou pelo portal de ferro

enferrujado e aproveitou a descida antes de

ganhar as dependências de uma estrada de

terra. Sentiu seu corpo ser atingido pelas

primeiras gotas de chuva e ficou

imaginando como sairia dali quando o som

de um trovão se fez em seus ouvidos. Ela

sentiu um arrepio e suas pupilas se

tornaram pequenas, ao mesmo tempo em

que a luz invadia todo aquele ambiente.

KRABOOOOOOON

Page 99: Super Poderosa

Houve o barulho de árvore caindo.

Depois, tudo ficou calmo e silente. Nada de

chuva ou raios, nada de dor, nada.

Verônica abriu os olhos devagar.

Estava entardecendo, silencioso. A garota

olhou para o seu braço agora desnudo e

viu-o maior. Assustada olhou sua mão e

notou que a mesma estava grande! Era

uma mão adulta! Sentou-se e viu que

estava nua! Sua roupa se encontrava toda

rasgada devido ao seu súbito crescimento!

Ela agora tinha grandes seios e um corpo

esbelto, adulto! Músculos!

— Ai, droga! — disse ela ao se

levantar espantada. — O que aconteceu?

Preciso sair daqui...

Quando a garota forçou suas pernas

para se movimentar sentiu que elas tinham

força descomunal. Acabou correndo ao

invés de andar e desajeitada caiu vários

quilômetros à frente, já fora da cidade. Com

Page 100: Super Poderosa

a velocidade assombrosa que havia

adquirido em tão pouco tempo, os

ferimentos abertos pela queda foram

severos:

— Ai! — Verônica fez uma careta ao

fitar seu ombro em carne viva e ver seu

sangue escorrer pelo machucado.

Mas, para sua surpresa, os tecidos

rompidos foram sendo reconstituídos com

velocidade. Em alguns segundos, por todo

seu corpo, não havia mais nenhuma

escoriação:

— Que estranho... o que aconteceu

comigo? Estou sentindo fome... — Olhou

para as mãos e viu que estavam tremulas.

Page 101: Super Poderosa

Origem Revelada

Parte final

— Então foi assim — são as primeiras

palavras de Mariana depois de ouvir o relato

de Verônica.

Ela coloca o copo vazio sobre o

balcão. Verônica assente. Depois diz:

— Fiquei apavorada. Também tinha

treze anos quando o raio me atingiu.

— O que aconteceu com a gente é

estranho, impossível.

— Ardente tem opinião diferente. No

nosso último encontro ela disse que éramos

Divas. Pelo que compreendi, somos

representantes de seres fantásticos que

Page 102: Super Poderosa

viveram no mundo antes dos homens. Ela

os chamou de Deuses-banidos.

— Que confuso.

Verônica coloca café em seu copo.

Depois diz:

— Nem me fale. Precisamos descobrir

mais.

— Sim. Posso te perguntar uma coisa?

Como você veio parar nesta loja de revistas

usadas?

Verônica estava caída em posição

fetal, nua, magra. Vários tombos

aconteceram na sua tentativa de andar.

Esperava a morte sem entender o que

estava acontecendo, quando o barulho do

motor velho de camionete lhe trouxe

esperança. Os seus olhos se abriram ao

mesmo tempo em que o barulho da porta

sendo fechada se fez em seus ouvidos. Os

passos aconteceram lentos.

Page 103: Super Poderosa

— Deus, o que aconteceu com você?

Foi a primeira vez que ouviu a voz

rouca de Clarice. Ela era uma senhora de

cabelos prateados, presos no penteado

“rabo de cavalo”. Os óculos vinham na

ponta do nariz fino e os olhos já embaçados

pela idade, eram castanhos. Vestia-se com

saia longa, camisa clara e blusa xadrez.

— Eu não sei — respondeu Verônica

com dificuldade.

— Eu vou cuidar de você.

— Clarice era a dona deste lugar. —

Verônica está no presente. — Trouxe-me

para cá, cuidou de mim.

— O que aconteceu com ela?

— Faleceu, dormindo. Ainda não me

acostumei com sua ausência. Tenho a

impressão de que ela aparecerá das

escadas com o sorriso nos lábios como fazia

todos os dias.

Page 104: Super Poderosa

— Sinto muito.

— Ela era uma ótima pessoa.

Ensinou-me a controlar os meus passos, a

ter calma. Fez-me estudar ruas, caminhos e

países para que eu pudesse correr por

todos os lugares.

— Ela foi sua mentora.

Verônica assente.

— Fez-me continuar os estudos na

escola de educação para adultos durante as

noites. Durante os dias eu trabalhava aqui

na loja de revistas.

— Quando virou Mercúria?

— No mês anterior ao falecimento de

Clarice ela apareceu em casa com uma

caixa grande contendo vários uniformes de

Mercúria. Disse que eu não seria vista, mas

para o caso de ser, estaria preparada;

pronta para ser um símbolo para as

pessoas. Que o mundo precisava de alguém

Page 105: Super Poderosa

que lhe desse o exemplo e que eu poderia

ser essa pessoa.

— Puxa.

— Mas ela não estava certa. Ardente

me disse que sou predestinada a dizimar a

humanidade e não a salvar o mundo.

— É uma barra e tanto ficar sozinha e

ainda não saber o que você deve fazer com

seus poderes. — fala Mariana.

Verônica sorri.

— Sinto muito a perda de Clarice.

Sinto falta da minha família de verdade; da

minha mãe.

Mariana recolhe os copos e dá nó na

sacola de pães.

— Acho que podemos escolher o que

queremos ser.

Page 106: Super Poderosa

Arte

Ardente

Page 107: Super Poderosa
Page 108: Super Poderosa

Arte

Mercúria

Page 109: Super Poderosa
Page 110: Super Poderosa
Page 111: Super Poderosa

Inimiga n° 1

Parte 1

Santa Paz não é uma grande cidade,

mas também não é pequena. Tem a fama

de ser violenta. Litorânea, com cerca de

quase um milhão de habitantes, sobrevive

do turismo e do polo industrial dominado

pelas empresas de pescados. Na periferia,

nos morros, como em qualquer centro

populacional, funciona a indústria do tráfico

de drogas.

Fernando conhece a triste realidade

da cidade, mas tem esperança de que a

super-heroína Mercúria salve-a. É um dia

comum do seu trabalho como Policial

Page 112: Super Poderosa

Militar, conseguido às duras penas de muito

estudo. Ali, na camionete da corporação

junto dos outros três companheiros ele

também se sente herói. O patrulhamento é

de rotina, eles não ousam subir nos morros,

ainda mais naqueles tempos.

Uma moto de grande cilindrada

aproxima-se veloz e se posiciona

paralelamente à viatura em movimento. Os

ocupantes da motocicleta estão armados.

Os policiais sacam suas armas de calibre

modesto e não conseguem se defenderem

dos tiros de submetralhadora que alvejam

todo o veículo. O carro desgovernado sobe

a calçada e bate em um poste. Há o silêncio

do fim de vidas.

Mercúria passa pelo local

rapidamente e o veículo batido lhe chama

atenção. Retorna. Uma moto está parada

perto e dois homens de capacete com

armas em punho se aproximam do carro.

Page 113: Super Poderosa

Avança e desfere dois poderosos socos

contra a dupla de bandidos, usando da força

proporcionada pela sua velocidade. Ela

escuta alguém chorando. Volta-se para o

veículo e ao abrir a porta vê Fernando ainda

em estado de choque. Os outros três

policiais estão mortos.

— Que aconteceu? — pergunta ao

policial.

— Cê chegou tarde. Os caras já

chegaram atirando.

Um dos bandidos está consciente e

rasteja pela calçada. Mercúria o agarra pela

jaqueta e o conduz até a árvore com

velocidade. O impacto das costas do vilão

com o tronco o faz urrar de dor:

— Por que fizeram isso? — ela indaga.

— Porque nos mandaram fazer — a

voz do assassino sai abafada pelo capacete

que ele usa — Nós vamos continuar

matando até conseguirmos pegar você.

Page 114: Super Poderosa

Mercúria desfere um soco contra a

viseira do capacete do vilão, impedindo-o

de continuar falando.

Mauro está tenso. É sua primeira

noite na delegacia, na sua nova sala, no seu

novo cargo. Recentemente aprovado no

concurso público para delegado de polícia

mesmo sem estar preparado para o exame,

tinha sido escalado para ocupar o cargo de

segundo delegado de Santa Paz. O contato

com a primeira delegada não tinha sido dos

melhores. Por alguma razão, ela não gostou

dele. Julgou ser pelo motivo que estava ali;

pela troca que tinha feito com Cícero, o

promotor. “Te dou o cargo e você me dá

Mercúria.”

Havia estudado o caso, os

documentos, os relatórios e os processos.

Custava acreditar ainda. Os policiais

Page 115: Super Poderosa

estavam posicionados. Dez deviam bastar.

Sua arma estava no coldre.

É jovem, por volta dos vinte seis anos

e veste terno completo, cinza. Careca, tem

cavanhaque em volta dos lábios. Os anos de

academia lhe deram um corpo robusto.

O vendaval anunciou a chegada de

Mercúria. A cadeira estava virada para a

janela, atrás da mesa.

— Meire, já sabe que estão matando

policiais? O último bandido que peguei disse

que é por minha causa, sabe de alguma

coisa?

A cadeira se vira. Um revólver é

apontado para o rosto da heroína.

— Você está presa — fala Mauro.

— Onde está Meire?

— De folga.

— Você, quem é?

— O delegado. Seu delegado,

precisamente.

Page 116: Super Poderosa

— Preciso vê-la.

— Você está presa, já disse.

— Eu digo que não.

Mauro dispara. Estranhamente

Mercúria vê o movimento do gatilho em

câmera lenta. Ouve a explosão e visualiza a

bala deixar o cano da arma. A distância é

curta, ela se desloca com agilidade e o tiro

atinge o batente da porta. A heroína está

surpresa, nunca havia tido a experiência de

ver as coisas em velocidade reduzida.

A porta da sala se abre e muitos

policiais entram com rifles nas mãos.

Page 117: Super Poderosa

Inimiga n° 1

Parte 2

O sorriso nos lábios do novo delegado

é de confiança. Mercúria seria capaz de

desviar de um fuzilamento?

— Como vai ser, criatura? — ele diz.

— Meu nome é Mercúria — a heroína

avança em direção ao delegado e o

empurra pela janela atrás de sua cadeira.

Os tiros acontecem, os vidros se

estilhaçam e Mercúria ganha a calçada com

Mauro de escudo.

Ela o fita nos olhos. Percebe que a

confiança se foi daquele rosto. Sorri ainda

extasiada pela habilidade que acabara de

Page 118: Super Poderosa

descobrir; a de ver os movimentos alheios

desacelerados.

— Delegado, preocupe-se com as

mortes dos policiais — desaparece em

supervelocidade.

Mercúria precisava ver Meire, mas não

sabia onde a delegada residia. Sempre

usara a delegacia para encontrá-la. Novo

delegado; era só o que faltava! Avançou

com rapidez até a residência de Marcelo

Siqueira.

O vento agita as cortinas de cetim. As

luzes do quarto se acendem e o homem se

vira devagar. Era tarde para uma visita.

— Olá, Marcelo — é Mercúria

encostada no batente da porta do quarto.

— Oi — ele se senta — Que horas

são?

— Eu não sei. Preciso de sua ajuda.

— Bebe café? — ele calça seus

chinelos.

Page 119: Super Poderosa

Na cozinha, enquanto o repórter

prepara o café, a heroína aguarda na

cadeira próxima á mesa. O cômodo é

agradável, bem organizado.

— Sei que você tem acesso a muitas

informações — ela começa — Preciso saber

o endereço da delegada Meire.

— Engraçado — ele faz uma pausa.

— O que disse?

— Acho engraçado que não saiba o

endereço da delegada Meire. O meu você

achou com facilidade quando publiquei a

matéria que te revelava.

— É só ligar para o jornal e pedir o

seu endereço, detetive.

— Por que não liga para a delegacia é

faz o mesmo?

— Primeiro que eu não estou bem

vista na delegacia e mesmo que eu tentasse

me passar por uma pessoa normal não me

forneceriam o endereço da delegada.

Page 120: Super Poderosa

— Então está admitindo que você se

passa por pessoa normal? Tem uma

identidade secreta!

— Eu não estou admitindo nada,

Marcelo. Às vezes acho você um cara legal,

outras vezes você parece só ter interesse

nas matérias que faz de mim.

Há o silêncio constrangedor.

— Do jeito que você começou a falar

pensei que ia me pedir para acessar dados

ultrassecretos. O endereço da delegada é

fácil — Marcelo retoma a conversa como se

sua especulação sobre Mercúria não tivesse

acontecido.

— Tenho que falar com ela sobre os

ataques aos policiais.

— Tem um colega no jornal cobrindo

isso. Posso pegar com ele algumas

informações.

— Ajudaria muito.

Page 121: Super Poderosa

— Vem cá, você não leu os jornais

nos últimos dias? Aliás, reparei que ficou

sumida por um tempo. Meu faro de

jornalista diz que o sumiço teve a ver com a

garota que você tirou da delegacia.

A heroína desvia o rosto.

— Não vou dizer nada.

— Pois deveria. Sabia que a Meire

pagou o pato pela sua atitude? É por causa

do que aconteceu que ela está de gancho

da delegacia e ainda colocaram um novo

delegado.

Mercúria se levanta.

— Eu não queria prejudicá-la.

— Pronto. O café está coado. Prefere

com açúcar ou adoçante? — Marcelo sorri.

Mercúria ainda estranha os modos do

repórter. Ele muda de assunto e de humor

com velocidade.

Page 122: Super Poderosa

Depois do café, Marcelo vai até a sala

para pegar o laptop. Coloca o aparelho

sobre a mesa e diz:

— Vou conseguir o que me pediu.

— Obrigada.

— Não vai ser de graça — ele diz sem

tirar os olhos da tela do computador portátil

— Quero uma entrevista para a televisão.

— Eu não vou fazer isso — Mercúria

se zanga.

— É a sua chance de explicar o que

aconteceu com Ardente e livrar a barra da

Meire. A polícia está contra você, os

bandidos estão se organizando contra você.

Tem que mudar essa situação.

Page 123: Super Poderosa

Inimiga n° 1

Parte 3

O dia está amanhecendo quando

Mercúria se encontra em frente ao portão

da residência de Meire. A noite tinha sido

longa, mas o mais difícil viria agora. O

portão está sem cadeado, ela entra. Coloca

a mão na maçaneta, a porta está

destrancada.

As luzes da sala estão acesas, a TV

ligada e Meire dormindo no sofá. Uma

garrafa de vodca está vazia ao pé do móvel.

A delegada ronca, vestida de moletom

cinza, folgado.

— Meire.

Page 124: Super Poderosa

Ela desperta assustada e saca a arma

que esconde debaixo da almofada.

— Você? — diz.

— Preciso de sua ajuda.

Meire se senta. A mão vai á cabeça.

— Precisa? Você não é boa o

suficiente? Não está acima da lei?

— Ei, achei que estava fazendo o

certo! — Mercúria se senta.

— Você ferrou com tudo. Peguei cinco

dias de gancho e um novo delegado foi

nomeado para Santa Paz.

— Eu já o encontrei.

— Você está sendo procurada por

homicídio! O Cícero do Ministério Público e a

maluca da doutora Valéria juntaram provas

de que você é comparsa de Ardente.

— Mas eu não sou, você sabe! Viu que

lutei com ela para salvar as pessoas do

supermercado. Viu que Mariana não é

Ardente.

Page 125: Super Poderosa

— Eu vi você soltando uma

prisioneira. Eles vão ficar no seu pé. Vão

pegar você.

— Não vão. Temos que nos preocupar

com os policiais que estão morrendo.

— Então é isso.

Mercúria desliga a TV pelo controle-

remoto.

— Não é só isso. Eu vim pedir

desculpas. Agi mal. Não era minha intenção

arrumar problema para você.

— Mas arrumou.

— Erro, como qualquer pessoa.

— Só que não pode. Tem poderes e

será cobrada por conta deles. As pessoas

terão inveja, culparão você.

— Se eu pudesse me desfazer dos

poderes, eu faria sem hesitar.

Meire esbarra com seu ombro no

ombro de Mercúria.

Page 126: Super Poderosa

— Você é super e não deve desistir

das pessoas. Vamos lá — Meire se levanta

— Vou te passar tudo que tenho e sei sobre

as mortes dos policiais.

Verônica está sentada, cercada de

livros velhos. Os cabelos presos em um

coque, de camiseta regata e short, para que

não passe muito calor enquanto analisa os

documentos fornecidos por Meire. Os óculos

falsos estavam sobre uma pilha de livros, a

loja fechada, era feriado.

A campainha toca, ela observa a

silhueta pelo vitral da porta. Levanta-se e

abre a porta para atender, achando tratar-

se de um cliente desavisado, mas

surpreende-se:

— Doutora Valéria!

— Desculpe vir cedo e no feriado, mas

estava próxima e resolvi saber como você

Page 127: Super Poderosa

está depois daquele incidente no

supermercado.

— Entre! — Verônica abre totalmente

a porta — Não repare na bagunça nem na

minha roupa. Estou organizando um lote de

livros que chegou.

— Puxa, nunca tinha reparado que era

musculosa — diz a advogada ao fitar a

amiga em traje curto.

— Como trabalho sentada, faço

musculação para manter a forma — mente

Verônica, sem muito jeito para aquilo.

Valéria entra e observa lugar. A

quietude, os muitos livros.

— Você não se sente sozinha aqui? —

indaga.

— Às vezes. Mas o trabalho me

distrai. Durante o dia recebo a visita de

amigos, clientes.

Page 128: Super Poderosa

— E sua família? Uma vez você me

disse que tinha perdido a mãe

recentemente.

— Sim. Minha mãe se chamava

Clarice e o Sebo era dela.

— E o resto da sua família? Pai,

irmão?

— Eu não conheço o meu pai. Irmãos

também não tive, não que eu conheça.

— Eu também fui mãe sem marido,

como a sua mãe. Não tive nenhum filho

além da que perdi. Minha menina também

se chamava Verônica. Nossas histórias têm

pontos semelhantes.

A vendedora de livros usados esbarra

numa pilha de revistas e a derruba. Valéria

abaixa-se para ajudá-la a arrumar os

exemplares.

A advogada continua:

— Frequentei igrejas, cartomantes

para que alguém me desse uma luz, uma

Page 129: Super Poderosa

mensagem da minha menininha. Sofro

tanto a falta dela.

As lágrimas se juntam nos olhos

verdes de Verônica. Ela se esforça para

contê-las.

— Eu não sei o que dizer, Valéria.

Tenho certeza que sua filha, em qualquer

lugar que esteja, deve também sentir a sua

falta. Mais ainda, ela deve querer que você

fique bem; que retome sua carreira; que

siga em frente.

— Não é fácil, minha amiga. Não é...

— Eu imagino que não — Verônica

abraça Valéria — Saiba que pode contar

comigo sempre.

— Eu não vim aqui para isso, me

desculpe — Valéria se justifica — Queria

saber se estava bem depois do incidente no

supermercado.

Page 130: Super Poderosa

Minha morte

Parte 1

Meire tinha a investigação adiantada.

Segundo os documentos analisados e a

convicção de Verônica, o chefe do tráfico de

Santa Paz organizou um plano para oprimir

os cidadãos da cidade, mostrando-lhes a

fragilidade da polícia. Plantaria o sentimento

de insegurança, cuja ideia era provar que

mesmo com a atuação de Mercúria, os

moradores de Santa Paz não estavam

seguros. Os policiais eram os primeiros a

serem mortos; depois as figuras públicas e

por último, a própria Mercúria. De acordo

com os levantamentos de Meire, a

Page 131: Super Poderosa

organização criminosa de Santa Paz tinha

angariado recursos para implantar essa

política de caos. Verônica não iria permitir.

Não era justo que os policiais de Santa Paz

pagassem por sua ação. Tinha de subir o

Morro do Ouro, como se chamava o

complexo de favelas de Santa Paz, para

resolver aquela situação de uma vez por

todas. Seria nesta noite, seria agora.

Trocou-se para a ação.

O pensamento de Mercúria ao correr

pelas ruas da cidade estava estático em

Valéria. Era estranho tê-la como amiga e ao

mesmo tempo como inimiga. Estava claro

que a advogada não gostava de Mercúria,

apesar de ter afeição pela vendedora de

livros usados. Sua dedução foi que

necessitava conversar com Valéria vestida

de Mercúria, como Meire lhe sugerira

tempos atrás.

Page 132: Super Poderosa

O morro é avistado. A rua íngreme,

mal iluminada e tortuosa. Ela nunca tinha

estado ali. O seu plano é simples: entrar,

localizar o chefe e pegá-lo. Empreende

velocidade e avança.

Em supervelocidade sua presença

não pode ser identificada por olhos comuns,

o que lhe dá vantagem. Identifica um grupo

de homens armados em uma quadra

poliesportiva. Mantém a velocidade e

derruba um por vez, deixando apenas um.

Então para.

— Onde está o seu chefe? — ela

pergunta.

— Eu vou te encher de bala! — O

bandido aponta a metralhadora para

Mercúria.

— Acho que não — ela mostra-lhe o

pente de balas.

— Mas como?

Page 133: Super Poderosa

— Tirei enquanto atacava os seus

comparsas.

Ele sorri.

— Mas aqui você não está no seu

território.

Mercúria ouve o som de disparo.

Instintivamente se vira para o local de onde

provém o disparo. Do alto, de cima de um

barraco, há um homem armado com rifle. A

bala avança desacelerada e ela consegue

desviar-se.

— Mas que merda!

A heroína avança com velocidade e

empurra o homem contra a grade da

quadra.

— Fale-me!

Ele não se intimida. A rajada de

metralhadora anuncia os disparos que

atingem Mercúria nas costas, fazendo-a

soltar quem interrogava. Ela se ajoelha, os

ferimentos se fecham e os projéteis são

Page 134: Super Poderosa

expelidos do seu corpo. Ela se vira e

identifica cinco homens. Desarma-os e para

depois atacá-los com socos e chutes

velozes.

Ela avança mais uma vez contra quem

almeja interrogar e o empurra com

velocidade.

— Onde estávamos?

— Você queria saber sobre o meu

chefe. Só que eu não tenho — ele se

levanta.

A quadra está cercada de bandidos

armados, Mercúria observa.

— Eu sou o chefe, Armandinho, muito

prazer! — ele faz uma reverência.

Então durante todo o tempo esteve

diante do chefe do tráfico do Morro do

Ouro? Aquele homem magro, alto, de

braços longos e preenchidos por tatuagens

era quem tinha organizado o plano de

matar policiais? Os olhos negros dele

Page 135: Super Poderosa

sempre passaram confiança. A cabeça

raspada, o brinco reluzente e o sorriso

conferiam-lhe uma imagem comum. Era

jovem.

— Eu vou pegá-lo!

— Não vai. Eu te peguei primeiro. Leio

as matérias que fazem sobre você. Sei que

pode se regenerar com rapidez, mas que

tem um limite para o seu poder. Hoje

vamos testar esse limite. Fuzilem a vadia!

Muitos disparos acontecem pela grade

da quadra, não há para onde fugir nem

como desviar. Ao ser alvejada, Mercúria

sente muita dor, é terrível. Não há tempo

para sua regeneração e ela se dá conta do

erro que cometeu, agindo sem pensar. Por

falar em pensar, seu cérebro já não

funciona corretamente, ela cai em cima do

seu próprio sangue. Os tiros cessam.

Page 136: Super Poderosa

— Mas já? — Armandinho se aproxima

— Vamos esquartejar o corpo para

pendurar os pedaços pela cidade.

Page 137: Super Poderosa

Minha morte

Parte 2

A regeneração de Mercúria lhe

devolve resquício da capacidade de

raciocinar. O coração ainda bate. Os olhos

se abrem, ela sente o gosto de sangue.

Precisa fugir. Precisa ter forças para uma

última corrida.

A entrada da quadra está

desprotegida. Os bandidos chegam perto

para ver o esquartejamento. Um homem se

aproxima com o machado em punho. Ele o

levanta para o golpe na cabeça. Todos

observam. Quando o machado desce,

Page 138: Super Poderosa

atinge o chão. Um vendaval passa pelos

bandidos e Mercúria desaparece.

Ela não sabe para onde está indo. Os

ferimentos no seu corpo são muitos, assim

como a dor. O joelho se desloca e ela cai

em um beco escuro ainda nos domínios do

morro, está fraca. Escuta o barulho de uma

motocicleta e sente a luz do farol lhe

iluminar, é o fim. A consciência lhe foge

mais uma vez.

Cinco horas da manhã o telefone

celular do repórter Marcelo Siqueira toca.

Sonolento, ele alcança o aparelho sob o

criado-mudo e atende. A notícia muda o seu

semblante imediatamente. Ele não acredita

no que o seu chefe lhe diz.

— Não é possível — ele argumenta.

— A polícia confirmou, Marcelo. Não é

possível reconhecer o rosto, mas polícia tem

Page 139: Super Poderosa

certeza que é ela — Diz Janaína, sua colega

de trabalho — Eu estou no IML.

— Estou indo já para aí — São suas

palavras pouco antes de desligar o telefone.

O trajeto até o Instituto Médico Legal

de Santa Paz é feito com rapidez, tinha que

ver com os próprios olhos. Estaciona

próximo a entrada do prédio, as escadas

estão cheias de repórteres e cinegrafistas.

Viaturas estão com giroflex ligados. Meire

está sentada na sala de espera com um

cigarro nos lábios. Janaina entrevista o

delegado Mauro poucos metros dali.

— Ela foi imprudente — Meire balança

a cabeça gesticulando negativamente.

— Não é verdade. Não pode ser. Ela é

super. Nada pode matá-la.

— Acho que ser incinerado vivo é

demais até para ela.

— Eu tenho que ver o corpo.

Page 140: Super Poderosa

— Vamos, eu te mostro. Jogaram o

corpo dela na entrada da delegacia. Foram

os traficantes do Mouro do Ouro.

Quando Marcelo entra na sala onde

repousa o corpo de Mercúria, depois de

passar por várias pessoas, ele não a

reconhece. Em cima da mesa de aço há um

corpo carbonizado, cujos brincos em forma

de raio reluzem em dourado.

— Os brincos são os que ela usava,

não é? — diz Meire.

— Sim, mas não se pode atestar com

certeza só por eles. É preciso fazer exames

no corpo.

O delegado Mauro, a advogada Valéria

e a repórter entram na sala.

— Se tivéssemos conhecimento de

algum parente dela, se ela fosse normal,

talvez o DNA — diz Mauro.

Page 141: Super Poderosa

— Podemos fazer exames neste corpo

e provar que não é o de Mercúria. Eu tenho

certeza que não é ela.

— Se você estiver certo, vamos ver

Mercúria por aí. Se ela não aparecer é

porque você não está — sorri Mauro.

Valéria se mantém fria. Aproxima-se

do corpo e fita o rosto irreconhecível de

Mercúria. Ela deve ter tido uma morte

horrível. Queria que fosse presa, não

assassinada.

Janaína bate fotos.

— Você não está suspensa, doutora

Meire? — provoca o delegado.

— Não — Meire se aproxima de

Mauro.

— Não?

— Já é quase manhã o que nos leva

ao dia seguinte, o dia que volto ao trabalho

normalmente — Meire aponta o relógio de

pulso prateado ao delegado.

Page 142: Super Poderosa

— Ah, claro.

— Logo mais nos vemos na delegacia,

doutor Mauro — ela se vira e acena —

Agora vamos, Marcelo. Você deve ter uma

matéria para escrever ainda hoje.

Page 143: Super Poderosa

Minha morte

Parte final

Feijão? O cheiro invade as narinas de

Verônica e lhe devolve a consciência. Está

em uma cama simples de um quarto

pequeno, cujas paredes não são rebocadas.

O piso frio, o guarda-roupa tem as gavetas

caídas. Ela se senta, traja vestido, os

ferimentos desapareceram.

— O vestido é da minha mãe — Um

homem negro e forte entra — Eu sou

Thiago.

Verônica não diz nada.

Uma senhora de pele escura, mirrada,

de lenço na cabeça e de vestido florido

Page 144: Super Poderosa

aparece ao lado do homem forte. Ela sorri e

diz:

— Não se preocupe, está segura aqui.

— Acho que ela está assustada, mãe.

— Converse com a menina, filho. Eu

vou ver o fogão — a senhora se afasta.

Thiago se aproxima e se senta na

beirada da cama. Ele é careca, alto e

musculoso. Tem os olhos castanhos e os

lábios sempre dispostos em um sorriso.

Veste-se com camiseta vermelha e

bermuda jeans. Possui brinco na orelha

esquerda e uma tatuagem com o dizer

“paz” no antebraço esquerdo.

— Sou enfermeiro e te achei caída

quando voltava do trabalho. Trouxe você

para minha casa e dei-lhe soro. Sei do seu

dom de regeneração.

— Obrigada — ela finalmente diz.

Page 145: Super Poderosa

— Minha mãe está preparando o

almoço. Acho que você deve estar com

fome.

Ela assente.

— Os caras daqui querem pegar você.

Não foi uma boa ideia ter vindo assim,

sozinha, de repente. Eles são muitos. Tá

todo mundo fulo com você; por causa dos

seus poderes e sua interferência nos

crimes.

— Eu só quero ajudar as pessoas,

mas elas parecem que não querem ser

ajudadas.

— Ah não! Você é fantástica. É uma

inspiração pra gente aqui do morro que não

tá envolvido com o tráfico. Sabe, um

exemplo.

— Eu vim por causa dos policiais

mortos.

— Eu sei. Eles também. Por isso tudo

estava preparado. Você teve sorte...

Page 146: Super Poderosa

Mercúria se cala. Sorte? Queriam

esquartejá-la!

— Não imaginava que seria tão

horrível. Que eram tão cruéis.

— Crueldade é comum por aqui. Tanto

que a gente passa a não se importar.

Bastou ligar pra minha mãe e não foi difícil

arrumar um corpo carbonizado para colocar

os seus brincos. Pobre mulher que morreu

queimada viva.

— Como é? — se surpreende

Verônica.

Thiago volta para cozinha próxima e

observa a mãe mexer a panela de sopa com

uma colher de madeira. Diz:

— Com a ajuda da minha velhinha e

alguns amigos armei para que os traficantes

pensem que você está morta. É a única

forma de mantê-la viva. Tínhamos um

corpo carbonizado e tínhamos pessoas

querendo a sua morte. Unimos as duas

Page 147: Super Poderosa

coisas. Eles não vão perceber que aquela

não é você. Soube que já deixaram o corpo

na delegacia para intimidar a polícia e as

pessoas.

Verônica se levanta. Vai até a cadeira

da cozinha e senta-se.

— Então estou morta.

— Sim. Vai ser bom assim. Você

poderá andar livremente pela favela e pegar

o Armandinho de surpresa.

— Armandinho — ela se lembra do

encontro com o bandido —, ele é o chefe

daqui.

— Isso mesmo. Eu tenho um plano

para pegá-lo. Vamos almoçar e te explico.

O enfermeiro que lhe havia salvado a

vida lhe cativa de alguma forma. Ela

observa enquanto escuta o plano. Ele tem

facilidade para sorrir e um cérebro aguçado.

É sincero, fala bem e se entusiasma com

facilidade.

Page 148: Super Poderosa

— Será que dará certo?

— Acho que podemos tentar — ele

está lavando os pratos

Thiago conta que é de origem

humilde. Sua família nunca havia deixado o

morro, apesar de ele ter um salário

razoável como enfermeiro. Disse que ali era

o seu lugar, lá estava sua gente e quem

mais precisava de ajuda. Era membro da

Associação de Bairro do Morro do Ouro e

angariava donativos para distribuir aos mais

carentes. Comprometia parte da sua renda

com projetos sociais e preferia manter a

discrição. A mãe temia pela sua vida, se o

trabalho começasse a interferir nos

negócios dos traficantes. Ele sabia conviver

com a realidade da favela e era visto como

um maluco altruísta que representava

pouco perigo.

Page 149: Super Poderosa

O plano

Parte 1

Ao lado de Thiago, Verônica caminha

pela rua íngreme. A casa do enfermeiro era

pequena e localizada no fim da rua não

asfaltada. Os meninos que soltam pipa

observam-na e ela a eles. Na verdade, todo

o lugar, agora à mostra pela luz do sol.

Tantas pessoas em situação precária

enquanto poucos gozam de tanto. Ela não

conseguia entender. Antes do acidente com

o raio que a fez crescer, julgava ser pela

sua condição infantil. Quando fosse adulta

saberia os motivos de existirem pessoas

que não possuem o que comer enquanto há

Page 150: Super Poderosa

outras que gastam fortunas com coisas

supérfluas. Agora adulta, continuava na

mesma: era simplesmente incompreensível.

— No que está pensando? — diz o

amigo.

— Nada — ela abaixa a cabeça.

— No seu planeta também existem

favelas?

Ela levanta o rosto, surpresa.

— Eu sou deste planeta! Gostaria que

todas as pessoas tivessem condições

mínimas de moradia, saúde e dignidade. Sei

que há como! Vejo tantos prédios, tanta

comida!

— A culpa não é dos prédios nem dos

alimentos. Aqui, a gente tem o Armandinho

e por todos os lugares deve ter alguém que

faça a vez dele.

Verônica para de caminhar.

— O que ele faz com as pessoas aqui

do Morro?

Page 151: Super Poderosa

— Bem, ele gerencia a vida de todo

mundo aqui. Os comerciantes pagam

“impostos” para ele; as famílias quando

precisam de algo vão pedir para ele, essas

coisas. Ele tem muita grana...

— Vinda do tráfico — conclui a

heroína.

— É. Tem gente que não concorda

com o que ele faz, mas não podem desafiá-

lo. Que nem hoje, ele mandou dizer que

ninguém sai e ninguém entra no Morro por

causa do que aconteceu com você.

Ela volta a caminhar com os olhos

agora voltados para o chão. Era difícil de

acreditar que mesmo com os poderes que

tinha, pudesse se sentir tão impotente

diante de uma situação.

A loja de revistas usadas abriu

normalmente naquela manhã. Os periódicos

que eram vendidos diariamente estavam

Page 152: Super Poderosa

repletos de matérias sobre a morte de

Mercúria. Tanto os do dia anterior quanto os

de hoje. Verônica procurou não lê-las, mas

a de Marcelo Siqueira chamou-lhe atenção.

Dizia ele em seu texto:

“Santa Paz perde sua mágica. Na

manhã de hoje o corpo da super-heroína

Mercúria foi jogado por traficantes na

sacada da delegacia. Segundo informações

obtidas no Morro do Ouro, Mercúria havia

estado na favela na noite anterior para

capturar o chefe do tráfico de Santa Paz.

Vitima de uma armadilha armada pelos

homens do tráfico ela foi alvejada

incessantemente até o limite dos seus

poderes regenerativos. Após o

“fuzilamento” Mercúria ainda teve forças

para sua última corrida que terminou em

um beco escuro, onde foi pega pelos

traficantes e incinerada viva. Este repórter

não costuma deixas nos seus textos suas

Page 153: Super Poderosa

impressões pessoais, mas a ocasião é

especial e ele se vê obrigado registrar sua

decepção com os moradores de Santa Paz.

Eles não souberam dar valor a uma criatura

esplêndida que dedicava a vida para salvar

vidas alheias. Como é comum ao ser

humano, os cidadãos de Santa Paz

abominaram o ser por sua diferença e não

lhe viram com a dignidade que merecia.

Agora não há mais preocupação, o diferente

foi extirpado da nossa convivência.

Atribuem a autoria do assassinato de

Mercúria aos traficantes quando ela deveria

ser atribuída a cada um de nós.”

Ela dobra o jornal, perturbada. Não

sabia o que pensar de Marcelo, se era

verdadeiro em suas palavras ou se as usava

para promoção pessoal. De qualquer modo

era um golpe duro, pareceu-lhe sincero.

Page 154: Super Poderosa

— Nossa, você tem a coleção da

Queda do Morcego quase completa! — era

Thiago que remexia em suas estantes.

Tinha trazido o seu salvador para a

vida que lhe sobrara, mesmo sem pensar

sobre o assunto. Colocar o novo plano em

prática era o mais importante.

— Ela virá logo. Compra jornais toda

manhã.

— Certo.

— Lembre-se: chamo-me Verônica,

sua prima. Sou só vendedora de livros

usados.

— Fica tranquila. A sua identidade

secreta está segura comigo.

A doutora Valéria entra na loja,

elegante, com os óculos escuros nos olhos.

Ignora Thiago e agarra o jornal do dia da

gôndola e vai direto ao balcão.

— Por que não abriu ontem? — ela

saca a carteira.

Page 155: Super Poderosa

— Tive um problema familiar.

— Um problema lá em casa — Thiago

se aproxima — Eu sou primo dela.

— Primo?

— Sim — Verônica devolve o troco à

Valéria — ele mora no Morro do Ouro.

— Achei que fosse sozinha.

— A mãe dele é prima da minha.

Desde que perdi minha mãe, faço às vezes

dela em visitá-los de vez em quando.

— Compreendo — diz Valéria.

Verônica continua.

— Eu estava lá espalharam a notícia

de que tinham pegado Mercúria. Ninguém

podia sair do morro.

— Não devia visitar aquele lugar. É

perigoso! Eu não gostava de Mercúria, mas

foi terrível vê-la morta.

— Meus primos precisam de ajuda,

doutora Valéria. Na verdade, todas as

Page 156: Super Poderosa

pessoas do morro. Ninguém aguenta mais o

domínio do Armandinho.

— O que eu posso fazer, menina?

— Estive pensando, você é advogada,

poderia pedir para as autoridades invadirem

o morro e libertar a população.

— Mais que isso — Thiago saca da

mochila uma pasta de elástico — Há um

processo contra o Armandinho e a prisão já

foi decretada. O engraçado é que todo

mundo finge que não sabe que ele está no

morro. A polícia nunca tentou cumprir a

ordem.

Valéria analisa os documentos. São

fotos, mapa, publicações e petições de

processo.

— Não há pessoal suficiente para

enfrentar a indústria do tráfico e cumprir a

Ordem Judicial. Além disso, tem os policiais

corruptos que recebem para proteger os

bandidos.

Page 157: Super Poderosa

— Temos que fazer alguma coisa —

diz Verônica.

— Isso é peixe grande, garota. Não é

prudente mexer com esse pessoal.

— Mercúria morreu tentando ajudar!

Temos que usá-la como exemplo.

Valéria a observa por alguns

segundos. Retira os óculos de sol e suspira.

— Eu não prometo nada. Vou levantar

algumas informações e voltamos a nos

falar.

— Obrigada! — Verônica a abraça.

O Promotor Cícero analisa os

documentos fornecidos pela doutora Valéria

naquela tarde. O mandado de prisão tinha

sido expedido há quase um ano, por

homicídio. Ele nunca tinha sido encontrado.

O promotor leva a mão á testa, o cotovelo

está sobre os documentos. Suspira. Saca o

celular e disca um número.

Page 158: Super Poderosa

O plano

Parte 2

Marcelo Siqueira está editando seu

texto para a matéria do dia seguinte. O

telefone toca. A recepcionista do jornal lhe

informa que há duas pessoas que gostariam

de vê-lo, tinham algo importante para dizer

á imprensa. Ele autoriza a subida dos

visitantes.

Eles se aproximam, a porta da nova

sala de Marcelo está aberta. É uma jovem

de vestes largas e um rapaz musculoso.

— Pois não?

O forte estende a mão.

Page 159: Super Poderosa

— Sou Thiago, é um prazer conhecê-

lo. Esta é minha prima, Verônica.

— Marcelo Siqueira — ele

cumprimenta Thiago e Verônica.

Detém-se alguns segundos nos olhos

da vendedora de livros usados.

Thiago chama sua atenção.

— É sobre o Morro do Ouro.

— O que tem de lá?

— Sou morador há muitos anos. Sei

do que aconteceu com Mercúria e tenho

informações sobre o pessoal que fez o que

fez com ela.

— Continue.

No outro dia, pela manhã, o jornal

está nas mãos de Verônica. O sorriso nos

seus lábios. A matéria de capa era a de

Marcelo; a entrevista que havia realizado

com um morador do Morro do Ouro. Nela,

além dos detalhes sobre o tráfico de drogas,

Page 160: Super Poderosa

havia a informação de que Armandinho era

procurado pela polícia, mas estava agindo

livremente no morro. A identidade do

entrevistado foi mantida em sigilo para

segurança de Thiago.

Para Cícero, o Promotor de Justiça, o

efeito do jornal foi totalmente contrário. Foi

o suficiente para estragar o seu dia. Mal

havia terminado de ler a matéria quando o

telefone tocou em seu gabinete. Eram

ordens que deveriam ser cumpridas o mais

rápido possível. Imediatamente ligou para

Meire:

— Doutora Meire, prepare os seus

homens. Reforços do Estado estão

chegando e quero a senhora no comando da

Operação Morro do Ouro.

— Achei que fosse pedir para o seu

afilhado! — Meire se referia ao delegado

Mauro.

Page 161: Super Poderosa

— Não enche, Meire! Faça o que tem

de fazer. Se quiser levar o Mauro, é por sua

conta e risco.

— Acha que vou perder a chance de

ensinar alguma coisa para o novato?

A ligação foi interrompida.

O jornal é dobrado com cuidado.

Depois é jogado no lixo. Armandinho

afasta-se da mesa de vidro e junta as mãos

num gesto apreensivo. Ele já tinha sido

informado sobre o assunto, mas agora daí a

se tronar público era demais. Precisava de

um plano. Mulheres estavam espalhadas

pelo carpete de sua sala, inconscientes. Ele

suspeitava de quem havia dado com as

línguas nos dentes, o faria pagar.

Ele saca o celular e faz contato com

os seus homens. Pede para que chequem a

casa de quem julga tê-lo traído. É preciso

Page 162: Super Poderosa

também obter informações do seu homem

infiltrado no jornal de Santa Paz.

Duas horas depois, uma das meninas

desperta com sorriso faceiro enquanto

Armandinho prepara mais uma carreira de

cocaína. O seu celular toca.

— Chefe? Ele foi visto com uma

garota estranha caminhando aqui na favela.

Ela não é daqui.

— Tragam quem estiver na casa dele.

Page 163: Super Poderosa

O plano

Parte 3

Dona Cidinha já tinha passado por

muita coisa nessa vida, mas nada como

aquilo.

— Deus do céu, não foi meu filho! Ele

tá trabalhando! — sua voz sai embargada

pelo choro, pelo sangue.

— Dona Cidinha, a senhora é gente

boa. Lembra que eu comprava figurinhas lá

no sue bar? — Armandinho batia o

cassetete na palma da mão esquerda — Eu

não quero machucar a senhora. Só preciso

saber onde tá o enfermeiro. Já sei que ele

Page 164: Super Poderosa

não tá no hospital e que foi visto com uma

mina estranha aí.

Cidinha se debate. As cordas estavam

apertadas em seus punhos, nas costas. O

quarto cheira mijo de rato, não há janelas.

Jornais estão de baixo de seus joelhos

dobrados.

— Eu mesmo quis fazer isso. Não ia

achar legal que meus homens relassem a

mão na senhora.

A mãe de Thiago abaixa a cabeça.

Gesticula negativamente.

— Eu não sei de nada.

— A senhora não está colaborando,

tia Cidinha! — ele deu com o cassetete na

bochecha da prisioneira.

Dentes e sangue atingem o chão.

Armandinho se afasta. O celular toca.

— Chefe, já levantei a informação de

que o tal repórter da matéria recebeu a

visita de um homem forte e uma mulher

Page 165: Super Poderosa

ontem de manhã. Nosso informante do

jornal disse que a garota é a dona de um

Sebo no centro da cidade.

— Bem, visite essa garota e conte que

estou com a mãe do cara que abriu o bico

pro jornal. Que o sujeito tem até a meia

noite de hoje para vir até mim.

— Ok.

— Não se esqueça de deixar na

menina o nosso recado.

Armandinho sorriu ao guardar o

telefone no bolso. Fitou Cidinha que se

encontrava de joelhos e disse:

— O enfermeiro vai receber o meu

recado.

Verônica está baixando as portas da

loja, já é tarde. Thiago tinha permanecido

na companhia da amiga desde que

começara a colocar o plano de prender

Armandinho em prática, afinal era perigoso

Page 166: Super Poderosa

retornar para casa devido aos

acontecimentos recentes. Não demoraria

muito agora, era o que pensava enquanto

observava a amiga trancar a porta.

— Essas fechaduras estão velhas. Dá

um trabalho fechá-las! — comenta a

vendedora de revistas velha enquanto se

ergue com o molho de chaves estre os

dedos.

Quando ela se vira para retornar ao

balcão as portas de lata são arrancadas pela

traseira de um Comodoro preto. O barulho

é alto e o carro veloz avança para dentro da

loja carregando consigo a porta arrancada e

o corpo de Verônica.

Poeira, som de lata caindo e o ruído

do radiador do carro quente são os sons

presentes. Thiago está assustado, as portas

do carro se abrem. São cinco homens

armados e mascarados.

Page 167: Super Poderosa

—Olha só quem a gente achou! — diz

o que saiu pela porta do motorista.

Thiago está apavorado. Está sob a

mira de uma metralhadora, as mãos já

estão para o alto.

— Vamos, entra no carro! O chefe

quer você!

Ele deixa o balcão e caminha em

direção dos bandidos. Todos estão mirando

o enfermeiro, quando algo os atinge com

velocidade surpreendente. Os cinco homens

de Armandinho estão no chão retorcendo de

dor. O borrão vermelho que havia

derrubado todos os inimigos ganha a forma

de Verônica.

— O que querem aqui? — ela se

ajoelha sobre o peito de um dos homens e

agarra o colarinho de sua camisa.

— O chefe! Ele quis que viéssemos

para dar um recado para você! Avisar que

estamos com a mãe do enfermeiro. É para

Page 168: Super Poderosa

ele ir à favela até a meia-noite de hoje ou a

mãe dele vai morrer! Quando chegamos

percebemos que ele estava aqui! Só

queríamos levá-lo!

Ela afrouxa os dedos da gola do

bandido. Havia conhecido a mãe de Thiago

que agora estava à mercê de Armandinho.

O que ele estaria fazendo com ela? A

crueldade era uma das primeiras

características que Verônica havia

reconhecido no bandido quando o encarou.

— Ligue para a polícia! — ela se virou

para o atônito Thiago. — Eu vou salvar a

sua mãe.

Page 169: Super Poderosa

O plano

Parte 4

Thiago pareceu ter despertado de um

transe. O braço direito estava estendido, a

mão aberta.

— Espera! — grita.

Verônica se assusta. Volta-se para o

amigo. Ele está ofegante.

— Você precisa de um plano! Não

pode repetir o erro que cometeu da outra

vez que esteve lá.

Ela se aproxima em supervelocidade.

— Não há tempo! Sua mãe corre

perigo!

Thiago suspira. Abaixa a cabeça

tentando recuperar a serenidade.

Page 170: Super Poderosa

— Eu sei — ele diz baixo —, mas não

poderemos ajudá-la se não fizermos as

coisas direito.

Verônica olha para o amigo com

desconfiança. Não entende os dizeres dele.

— Eu não posso ficar esperando

enquanto alguém corre perigo.

Ele segura sua mão e a puxa para si.

Os corpos se esbarram e os lábios se

encontram.

— Confie em mim, por favor — Thiago

diz para a heroína que ainda está surpresa

com o que acabara de acontecer.

Meire está preparada para a grande

operação. Já havia vestido o colete por cima

da sua camisa branca. Traja sua habitual

calça social cinza e sapatos. Checa os

pentes de munição. Mauro está pronto ao

seu lado, apreensivo. Traja capacete, colete

e farda negra completa. Luvas cobrem suas

Page 171: Super Poderosa

mãos e o rifle vem preso por uma tira de

couro em seu ombro direito. Os homens do

Estado já estavam a postos. Todos estão na

entrada do Distrito Policial.

— Hoje você vai aprender algumas

coisas — fala Meire.

— Eu não preciso aprender nada. Só

aceitei participar deste circo porque o

Cícero disse que era para eu acompanhar

você — é a resposta de Mauro.

Os carros estão estacionados na

frente da delegacia. A primeira equipe há

pouco foi enviada ao Morro do Ouro.

— Vamos! — Meire se vira para entrar

em seu veículo.

O rádio da viatura informa:

— Solicitando viatura para o centro da

cidade. Possível roubo em andamento na

Rua dos Sabiás, na loja de revistas usadas.

Page 172: Super Poderosa

— Vinte e cinco, para o centro! —

grita a delegada ainda em pé ao lado da

porta do motorista.

A viatura de número vinte e cinco sai

cantando pneus.

Marcelo Siqueira pilota a vam do

jornal. Ao seu lado está Fausto o

cinegrafista. Carlos havia sito demitido

semana passada por conta da redução de

funcionários que o Grupo Cidade de

Entretenimento tinha realizado. O canal de

TV passava por crise causada pelo

afastamento de patrocinadores. Isso se deu

por causa da morte da atração principal da

televisão: a garota com poderes

extraordinários. Ele gesticula

negativamente, sorrindo. Dirige para o

Morro do Ouro para cobrir a operação

policial que tem o objetivo de pacificar a

favela e prender o chefe do tráfico.

Page 173: Super Poderosa

— Tudo bem, Marcelo? — fala Fausto.

— Só estava pensando no Carlos.

Marcelo ainda tinha dificuldade em

aceitar que não veria mais Mercúria. Em

sua mente, os encontros que tivera com a

heroína eram revividos com frequência.

Agora que ela estava morta, custava a

acreditar que um dia havia existido. Teria

espaço em nosso mundo, um ser com

habilidade extraordinária? Não é este o

sonho do ser humano? Sempre querer ser

mais; ser o que não é e amaldiçoar aquele

que é o que ele gostaria de ser. Tudo

estava certo agora, absolutamente tudo.

O uniforme está sobre a cama. O raio

dourado no peito da blusa, os raios

dourados na lateral da calça branca. As

asas nas botas estão visíveis sob o assoalho

do cômodo. Quando vestida com ele, ela

deixava de ser quem era e tornava-se um

Page 174: Super Poderosa

ser alheio às características das pessoas. Na

verdade, sempre fora diferente e

continuava sendo mesmo agora, sem roupa

alguma. Quem era estava em si mesma,

não na roupa. Ser como Thiago que não

precisava de roupa especial para ajudar as

pessoas seria o ideal, mas não aceitariam.

Ao se lembrar do novo amigo Verônica teve

vontade de sorrir. Ele já havia saído para

resgatar a mãe como o verdadeiro herói

que era. Havia deixado sua princesa com

um beijo. Que coisa mais infantil!

Condizente com a idade que tinha quando

tornou-se Mercúria, pensou.

— Concentre-se no plano, Verônica.

No plano... — ela avança para se trocar.

Page 175: Super Poderosa

O plano

Parte 5

Thiago desliga a moto na entrada

abandonada da favela. Aquela passagem há

muito havia sido abandonada pelos

moradores, embora fosse conhecida das

crianças que cresceram no local. O

enfermeiro costumava brincar ali na

infância. Na entrada principal, policiais

impedem a passagem de civis.

Sabia para onde Armandinho levaria

sua mãe. Ele não costumava variar o lugar

de tortura. O ponto em seu ouvido direito

era a conexão que tinha com quem lhe

salvaria e pegaria o bandido. O plano tinha

Page 176: Super Poderosa

mudado, afinal, inicialmente, era para a

polícia invadir o lugar distraindo os homens

de Armandinho para que Mercúria com as

informações privilegiadas que ele havia

fornecido invadisse o lugar e pegasse o

bandido de surpresa. Agora era outro

plano...

Ele segue pela ruela desativada, cheia

de mato. A caminhada é longa até o velho

galpão de arroz. Contam no Morro do Ouro

que antigamente aquele lugar era usado

para estocar o arroz que o fazendeiro dono

daquelas terras produzia. Ele se reviraria no

túmulo se soubesse para quê Armandinho

usa o lugar.

O galpão está aberto. Ele é afastado

dos barracos, ótimo para uma fuga pela

mata. Thiago entra pela porta principal. Os

passos são firmes.

Quando transpassa pelo portal arcado

do galpão, porém, os passos perdem a

Page 177: Super Poderosa

firmeza. Os olhos se abrem excessivamente

e o pavor invade o seu semblante. A mãe

está de joelhos, o vestido branco sujo e

manchado de sangue. Armandinho está de

braços cruzados atrás dela, onipotente. Os

homens de confiança, ao redor. Thiago

corre, mas as armas apontadas forçam-no a

parar e a render-se com o gesto de levantar

as mãos.

— Chegou o nosso convidado! — sorri

Armandinho.

— Seu desgraçado! O que fez com

minha mãe?

— A tia não quis colaborar e por isso

apanhou um pouco.

— Eu já estou aqui. Solte-a!

— Claro. Soltem a tia, moçada.

Os capangas desamarram os pés e

pulsos da Dona Cidinha. Ela não se move,

está fraca, ferida. Thiago ameaça se

Page 178: Super Poderosa

aproximar, mas os homens gesticulam

negativamente com a ponta das armas.

— Porra, Armandinho! Ajude-a ou

deixe-me ajudá-la.

— Nada disso, enfermeiro. A coisa tá

pegando lá fora é uma questão de tempo

até que cheguem aqui. Eu preciso me safar,

saca? Como você foi quem me ferrou, vai

ser também quem me salvará.

— Explique-se!

O bandido se aproxima ainda com o

maldito sorriso nos lábios.

— Pegue isso! — ele joga um colete

laranja para Thiago. — Coloque!

As armas foram engatilhadas. Thiago

obedeceu e Armandinho continua:

— Isso tem c4 suficiente para fazer

um buraco no mundo.

— Tem jeito mais interessante de me

matar, maldito!

Page 179: Super Poderosa

— E quem disse que vou te matar? Na

verdade você vai morrer se quiser. Eu

almocei um sensor de proximidade que

descarrega um pulso elétrico que acionará a

bomba que você está carregando. Ah, e só

lembrando que os engates do colete têm

sensores. Em outras palavras, você não

pode tirá-lo sem que tudo vá pelos ares e

nem se afastar de mim, não é o máximo? —

Armandinho passou o braço por cima do

ombro de Thiago.

Page 180: Super Poderosa

O plano

Parte 6

O bandido respira com dificuldade.

O saco preto é retirado. De joelhos, com as

mãos para trás, algemadas, ele não sabe

até quando pode aguentar. Ele observa o

salto alto, perto.

— Vamos, onde ele está? — a dona do

salto diz, ele não a conhece. — Quer voltar

para o saco?

— Eu não sei, senhora! Juro que não.

— Coloquem-no de novo no saco —

ordena Meire.

A delegada há algumas horas se

encontrava no Morro do Ouro junto de sua

Page 181: Super Poderosa

equipe. Neste tempo, prendeu alguns

comparsas do líder do tráfico e executou

outros. Alguns policiais também tinham

perdido a vida e ela já estava no seu limite.

A favela estava quase totalmente

pacificada, mas nada de Armandinho.

O saco é novamente colocado na

cabeça do homem e segurado com firmeza

por policiais fortes. Ele se debate, parece

uma eternidade. Mauro que a tudo observa,

não consegue esconder sua indignação.

— Solte-o! Vai matá-lo! — Mauro se

aproxima.

Meire dá a ordem para que retirem o

saco. O homem tomba. Ela se ajoelha e dá

alguns tapas no rosto dele. A consciência

volta.

— Então? Onde ele está?

— No... galpão... no galpão antigo. É

tudo que sei.

Page 182: Super Poderosa

— Levem-no! — ela ordena aos

homens. — Venha, Mauro, vamos pegar o

nosso peixe!

Marcelo Siqueira não teve permissão

para subir o morro. Cobria a invasão da

entrada da favela e dava boletins dos

acontecimentos de tempo em tempo. As

filmagens, no entanto, eram ininterruptas e

narradas pelo apresentador sensacionalista

do horário.

— O traficante conhecido como

Quadradinho, acaba se passar por nós,

escoltado por policiais. É mais um traficante

do Morro do Ouro que deixa as ruas. —

Marcelo anuncia ao vivo.

— E o Armandinho, Marcelo? —

pergunta o João Luiz, o apresentador do

programa.

Page 183: Super Poderosa

O áudio demora alguns segundos para

chegar ao fone de Marcelo e ele assente ao

entender a pergunta. Responde:

— Ainda não foi encontrado, João.

— A polícia está de brincadeira, não

é?

A câmera desvia do repórter e a

conversa continua entre José Luiz e o seu

público lá no estúdio da emissora. Marcelo

suspira e abaixa o microfone.

Meire, Mauro e alguns policiais estão

diante do velho galpão de arroz. Tudo

quieto. A delegada e seus homens se

posicionam estrategicamente. Invadem o

local pela entrada lateral. Ao invés de

surpreenderem os bandidos são eles os

surpresos.

— Estávamos esperando por vocês! —

é Armandinho que diz.

Page 184: Super Poderosa

— Renda-se! — Meire levanta o

revolver.

— Não é interessante? Eu estou com

um refém peculiar. O cara que me caguetou

na TV! O legal é que ele tem um bonito

colete de C4.

Meire repara em Thiago; no seu colete

laranja. Há cinco comparsas juntos de

Armandinho e o refém. No chão, uma

senhora desacordada. Ela abaixa a arma.

— Tem mais, delegada! Eu não posso

ficar afastado do cara, porque engoli um

sensor de proximidade. Se você me separar

dele, kabum!

Meire sorri.

— E eu que pensei que bandido era

esperto. Imaginei que encontraria um

bando de comparsas armados e que

trocaríamos tiros. Você já teria fugido pela

mata! Ficou só pra me desafiar com este

seu joguinho de bomba?

Page 185: Super Poderosa

— Ah, mas fugir é coisa de arregão.

Eu vou sair daqui de cabeça erguida e com

a sua permissão, autoridade!

Ela acendeu um cigarro. Os homens

de Armadinho estão sob a mira dos seus

policiais.

— Eu posso não estar nem aí para o

refém, o que me diz? Eu posso meter uma

bala no meio da sua cara!

— Você enlouqueceu? — Mauro que

até então observava tudo em silêncio se

zanga.

Armandinho gargalha.

— Eu gostei de você, chefia! — ele

junta o corpo de Thiago mais próximo ao

seu, fazendo-o de escudo. — Manda ver!

Thiago não está preocupado com sua

segurança. O seu problema é explodir e

matar as outras pessoas que estão

próximas. Sua mãe! Sabia que Mercúria já

vinha, a sua escuta denunciou tudo o que

Page 186: Super Poderosa

havia acontecido até então. Ela tentaria

algo, não era este o plano. Não havia mais

plano. Não aquele...

Page 187: Super Poderosa

O plano

Parte final

A franja da testa suada de Meire

balança suavemente. Antes dos olhos, uma

brisa perfumada passa pela delegada e

denuncia alguém que deveria estar morto.

Um borrão que distorce o espaço avança

contra os homens de Armandinho. A coisa

ataca e em menos de um minuto estão

todos inconscientes, menos Armandinho e o

seu refém. Os olhos ainda não identificam a

mágica criatura, até que ela para e ganha,

finalmente os contornos humanos de um

fantasma. Ela ergue as mãos em sinal de

rendição.

— Leve-me como sua refém!

Page 188: Super Poderosa

O bandido ainda tem os olhos

apavorados. A criatura é imortal? Ele

aponta para Mercúria, com fúria:

— Sua vaca! Cê tá morta! — ele atira.

O disparo acerta o abdômen de

Mercúria, fazendo-a recuar um passo. O seu

corpo mágico expele a bala e se regenera

imediatamente.

Meire ainda não acredita no que vê.

Mercúria tinha mesmo o poder de voltar dos

mortos? Mauro aproveitou a distração

causada pela heroína para socorrer a

mulher caída.

— Eu te levo daqui! — ela continua —

Contanto que desarme a bomba que está

presa ao Thiago.

— Acha que sou otário?

— Acho que você não tem muitas

opções.

Armandinho dá uma gargalhada.

Depois diz:

Page 189: Super Poderosa

— Ai é que tá, eu sou um cara muito

bom em improvisar. Eu vou matar o cara e

depois me render. Cê vai ficar puta comigo!

Cê não mata né? Essas paradas de

princípios...

Armandinho engatilha a arma que

está encostada na cabeça de Thiago.

Mercúria avança em velocidade e arrasta os

dois para longe dali; para a mata.

Meire ainda não acredita no que

acabou de acontecer. Mauro é quem a tira

dos devaneios ao dizer:

— Vamos, Meire! Eles não devem

estar longe! Temos que ajudá-la.

Armandinho e Thiago tentam se

levantar, desnorteados. A heroína avança

na direção do bandido e lhe desfere alguns

chutes, impedindo-o de se levantar.

Armandinho tosse e ri.

Page 190: Super Poderosa

— Ah, sua galinha! Isso dói! Mas é

divertido! Muito divertido! Me bate mais!

— Você é doente! — ela lhe desfere

um soco. — Está acabado.

— Não. — ele tosse. Tenho uma

surpresa para o final.

O bandido saca um pingente que

estava preso ao seu pescoço.

— Está vendo isso? Se isso se afastar

do meu amigo enfermeiro, tudo explode!

— Mentira! Ouvi você dizendo que

engoliu o sensor de proximidade! Que só

explodiria se você e Thiago ficassem

distantes!

— E você acreditou? — ele arrebenta

a corrente e o lança.

Mercúria corre instintivamente na

direção do pingente e escuta Thiago pelo

ponto que está na sua orelha.

Page 191: Super Poderosa

— Não dá pra acreditar nele!

Precisamos de um plano nosso! Eu já bolei

um.

A mente de Mercúria não é tão rápida

quanto o seu corpo. Quando ela volta a si,

já com o pingente na mão, tem tempo de

ver Armandinho se emaranhando pela

mata. Quando se desloca com a maior

velocidade que pode alcançar para impedir

a iminente explosão, já deduzindo que ela

ocorreria pelo afastamento do bandido do

seu refém e não pelo pingente, surpreende-

se ao ver Thiago agarrar Armandinho e

rolar com ele pelo chão.

— Afaste-se! — ele diz ao puxar os

engates do colete que está em seu corpo.

— Não! — Mercúria vai ao encontro

aos dois, mas não há tempo.

O estrondo horrendo, o calor e o fogo

formam a parede intransponível. A explosão

lhe arremessa para longe e desfigura parte

Page 192: Super Poderosa

do seu corpo que já começa a se

reconstituir. O mesmo não se pode dizer da

sua alma. Ali, deitada, ela chora a perda da

pessoa que tinha lhe salvado a vida e lhe

roubado o primeiro beijo.

Meire e Mauro chegam logo. A fumaça

negra ainda serpenteia o céu. Ali, próximo

está Mercúria, sentada com as mãos no

rosto.

— O que aconteceu? — a delegada se

aproxima e diz hesitante.

— Eu não pude salvá-lo. — ela desaba

em novo pranto e Meire a abraça.

Page 193: Super Poderosa

A entrevista

Parte 1

Num camarim da emissora de TV de

Santa Paz, uma mulher triste se encontra

sentada de frente ao espelho. Ainda doía

em Verônica lembrar-se do passado

recente. Da morte de Thiago. Fazia um mês

que tudo tinha acontecido. Prometera a

Marcelo Siqueira que daria uma entrevista

sobre o fato. Os brincos, raios dourados,

balançavam enquanto a maquiadora

caprichava no penteado. O decote, em

forma de raio, lhe parecia ousado pelo

espelho. Quem teve a ideia de vesti-la

assim?

Page 194: Super Poderosa

O Morro do Ouro estava pacificado. A

equipe de Meire havia prendido os

traficantes menores, ao passo que Thiago

tinha dado cabo de Armandinho. Mercúria

subia toda noite para conferir como

estavam as coisas; dava suporte à mãe do

amigo morto e também à Associação de

Bairro dirigida por ele. Com a sua imagem

atrelada à associação, os investidores foram

atraídos e as crianças da favela passaram a

receber apoio em vários sentidos. Tudo ia

bem por lá e ela se tornou mais pública do

quer gostaria.

— Entramos em cinco minutos — um

funcionário da TV informou pela porta

entreaberta.

A maquiadora termina o trabalho.

Sorri para o reflexo da heroína. Mercúria se

levanta. Traja um elegante vestido negro,

comprido, com um decote em forma de raio

e vincado na coxa esquerda. O cabelo

Page 195: Super Poderosa

arrumado em um elegante coque deixa

visível o seu pescoço alvo. A maquiagem

forte realça os seus grandes olhos verdes. O

batom claro, as maçãs do rosto sutilmente

rosadas.

— Vamos lá — ela diz para si mesma

refletida.

O salão é amplo, a cadeira

confortável, apesar do incômodo vestido.

Estaria mostrando o que não devia? Ajeita-

se, puxa aqui, arruma ali. Ao seu lado, com

a metade do corpo escondida pela mesa

prateada e luminosa está Marcelo Siqueira.

As palmas cessam. As lentes das câmeras

focalizam-na. Ela desvia o olhar, afasta a

franja clara dos olhos.

— Muito bem — começa o

entrevistador —, recebemos hoje no

programa Gente da Gente, Mercúria, a

Page 196: Super Poderosa

heroína de Santa Paz. Boa noite, Mercúria.

Tudo bem com você?

— Boa noite, Marcelo. Tudo bem

comigo e com você?

— Estou ótimo. Puxa, é uma honra te

entrevistar. Há muito sonho com este

momento. Vamos começar com a

curiosidade do público. Quem é Mercúria de

verdade?

A heroína suspira. Se ajeira mais uma

vez na cadeira.

— Bom, eu não sei quem eu sou.

Acho que, como todo mundo, também

busco descobrir quem sou. Tento ajudar as

pessoas com a habilidade que tenho.

— Certo, mas quem te deu esta

habilidade? Nasceu com ela?

— Não nasci com ela. Como a ganhei,

é uma longa e inacreditável história que

prefiro não contar.

A plateia murmura desapontamento.

Page 197: Super Poderosa

— O que posso fazer, pessoal?

Segredos de super-herói — Marcelo observa

o seu público.

Ele retoma a entrevista com um novo

questionamento:

— Mais pessoas podem ter habilidades

incríveis? Há um tempo apareceu outra

mulher com superpoderes.

— Ardente era o nome dela. Estou

investigando se existem mais pessoas como

nós.

— Temos informações de que ela foi

libertada da cadeia por você com a

anuência da delegada Meire. O que tem a

dizer sobre isso?

— Eu agi sozinha. Agi errado e

lamento. Havia outras maneiras de resolver

aquilo, mas optei por invadir a delegacia e

libertar quem eu achava que não deveria

ficar preso. Aproveito a oportunidade para

Page 198: Super Poderosa

pedir desculpa à Polícia de Santa Paz e à

população.

— Onde está Ardente agora?

— Ardente não existe mais.

— Poderia nos explicar melhor?

— Não sei se consigo, porque também

não entendo. O que sei é que no lugar dela

ficou uma menina que precisa de ajuda.

Há o silêncio constrangedor. Marcelo

retoma a entrevista,

— Tudo bem — sorri. — E o episódio

do Morro do Ouro, o que tem a dizer sobre

ele?

— Foi assustador, é o que eu posso

dizer. Conferir a realidade degradante de

tantas pessoas; saber que os governantes

não se importam com elas; com aquelas

crianças. Pessoas fadadas à marginalidade;

sem opção, sem futuro. É triste ter certeza

de que há uma ordem nas coisas, embora

injusta. A favela é uma prisão social, um

Page 199: Super Poderosa

limite para aqueles que lá residem. Sair de

lá exige esforço sobre-humano. Tudo

colabora para que as coisas continuem

como estão. Fui atacada, quase perdi a

vida; perdi uma pessoa querida, morri um

pouco com tudo aquilo.

Marcelo pigarreia. Retoma a sua

pauta de perguntas.

— E hoje, como está lá?

— O polícia de Santa Paz fez um

ótimo trabalho no local. O crime quase que

deixou de acontecer. A Associação de Bairro

está oferecendo ajuda às pessoas, depois

que várias empresas se compadeceram do

que acontece ali.

— Eles querem é ver a marca deles

atrelada à sua imagem! Sabemos que você

apoia pessoalmente os projetos da

Associação de Bairro do Morro do Ouro.

— Isso não importa desde que

ajudem.

Page 200: Super Poderosa

— Para finalizar: Mercúria está triste?

Pensou em desistir? Valeu a pena ter

reaparecido?

— Eu perdi um amigo querido e isso

me deixou triste. Confesso que pensei sim

em desistir porque a injustiça é tão grande

e eu sou tão pequena. Mas, depois do que

aconteceu pude perceber que não importa o

nosso tamanho, desde que estejamos

fazendo o certo. Porque nossas atitudes

podem ser exemplo para as demais

pessoas. O meu amigo falecido me ensinou

com suas atitudes. Ele fez mudança em

mim; quero que o mesmo aconteça com

aqueles que me observam combater o

crime. Valeu a pena tudo o que aconteceu.

Eu sou Mercúria e não há como fugir disso.

Page 201: Super Poderosa

A entrevista

Parte 2

A Doutora Valéria desliga a TV. A sala

está escura. Movimenta-se no sofá e o

barulho do corpo em atrito com o couro lhe

chega aos ouvidos. Acabara de assistir à

entrevista de Mercúria. Não sabe precisar se

é bom ou ruim ter a heroína de volta; tinha

se acostumado com a ideia de sua morte.

Por outro lado, as palavras dela poderiam

mesmo incentivar pessoas a trilhar por

caminhos diferentes. Ela mesma começava

a pensar a respeito.

Valéria sentia muito a perda da filha.

Sempre ocupada com os processos e

Page 202: Super Poderosa

audiências, não aproveitou o pouco tempo

que teve com a pequena Verônica. Se

soubesse que seriam poucos; que o sorriso

da menina seria raro; que uma fatalidade

lhe tiraria a vida. Deus, como doía o

remorso. Passou a culpar tudo e todos pelo

acontecido. Moveu processo contra a

Prefeitura de Santa Paz, alegando que o

Parque onde o raio atingiu sua filha não

tinha para-raios; culpou a polícia por não

ter zelado pela segurança da menina;

culpou Mercúria por não ter aparecido na

cidade anos antes. Por fim, atribuiu maior

culpa ao pai da menina que nunca quisera

saber dela, abandonando-a assim que

soube da sua existência. Ele era um músico

de passagem e seguiu viagem. Se ele

estivesse com ela, teria ido levar a filha ao

dentista ao invés de deixá-la ir de bicicleta.

Quando visitou a loja de revistas

usadas da mulher que tinha o nome de sua

Page 203: Super Poderosa

filha e induzida a ajudá-la a resolver o

problema do Morro do Ouro, sentiu que

estava fazendo algo de bom. O tal Thiago, o

enfermeiro da favela, parecia ser uma boa

pessoa. Lamentou a notícia que leu sobre a

sua morte. Pobre Verônica. Certamente

sentia a perda do primo.

Sentou-se no sofá com a mão nos

lábios. Espere! Mercúria tinha dito na

entrevista que perdeu um amigo querido no

episódio da favela. A vendedora de livros

velhos alegava ser prima de alguém que

perdeu a vida no mesmo episódio. Ambas

se referiam à mesma pessoa! A estatura

batia; a cor do cabelo, a voz! Estava ficando

louca ou acabara de descobrir a identidade

secreta da super-heroína de Santa Paz?

Não, não podia ser. Primo e amigo

são termos diferentes. Verônica era

desengonçada; usava roupas largas e

precisava de óculos. Mercúria era esguia,

Page 204: Super Poderosa

forte e enxergava perfeitamente. Não

gostava desta última, mas tinha carinho

pela primeira. Não podiam ser a mesma

pessoa. Alguém com poderes sobre-

humanos não se fantasiaria de gente

comum! Aquilo só acontecia em histórias

em quadrinhos. Na realidade, alguém assim

ostentaria sua diferença! Mercúria fazia

isso, usando aquele uniforme alegórico e

insinuante. Era loucura, tinha se

convencido...

Uma batida na porta tira a advogada

dos pensamentos. A esta hora? Quem

seria? Levanta-se, puxa a camisola. Vai até

a porta e observa pelo olho mágico. Não

podia ser! Abre um pouco o portal de

madeira.

— Vá embora. Não temos nada para

conversar.

Page 205: Super Poderosa

Do lado de fora está Mercúria, ainda

com o vestido da entrevista, mas com os

pés descalços. O cabelo, bagunçado.

— É uma tortura correr com isso! —

ela diz. — Eu não podia adiar nossa

conversa nem mais um minuto.

— Está perdendo o seu tempo! —

Valéria tenta fechar a porta, mas Mercúria a

impede.

A velocista termina de abrir a porta e

olha nos olhos da advogada. Diz:

— Queria que soubesse que eu

lamento todos os dias por não ter chegado

a tempo de salvar a sua menina. A morte

dela é o motivo de eu ter me tornado quem

sou. Acredite, eu sei muito mais da

pequena Verônica do que pode imaginar...

Há o silêncio. A advogada desiste de

fechar a porta. Responde:

Page 206: Super Poderosa

— Ela era uma criança! Um raio, um

desgraçado de um raio! Essa merda que

você ostenta como símbolo!

— Faço isso para não me esquecer

daquele dia.

— Esquecer? Quem você pensa que é?

Ninguém te viu naquele dia! Ninguém

sequer imaginava que existia uma

aberração entre nós! Você se escondia

muito bem! — Lágrimas se formam nos

olhos de Valéria.

— Eu vou te dizer quem eu penso que

sou! — Mercúria aponta para o peito de

Valéria — Alguém que tenta fazer alguma

coisa ao invés de ficar jogando a culpa nos

outros! Alguém que sofre pra caramba

quando se depara com a morte, mas que

segue em frente, porque é isso que se deve

fazer! Quer saber? Eu estava lá, aquele dia!

E Deus, como quis impedir aquilo! Mas não

Page 207: Super Poderosa

pude, droga! — é a vez dos olhos de

Mercúria se encherem de lágrimas.

Valéria se vira. Não quer que Mercúria

a veja chorar.

— Por que é tão difícil? Tão difícil

seguir em frente. Não tem um dia que não

me lembro da minha filha; de como ela

estaria hoje. Se ela me vê, seja lá onde ela

está. Como me arrependo de ter passado

pouco tempo com ela.

— Eu não sou sua inimiga, Doutora

Valéria. Nem a culpada pela perda da sua

filha. Sei que a senhora não é uma má

pessoa; ajudou no caso do Morro do Ouro.

A advogada afasta as lágrimas dos

olhos. Vira-se para Mercúria.

— Sim. Foi um pedido de uma amiga.

Mercúria desvia os olhos. Fala:

— Tenho certeza que esta amiga tem

muito orgulho da senhora.

Page 208: Super Poderosa

Valéria se afasta; não quer ser amiga

de Mercúria. Ataca com palavras e com o

dedo em riste:

— Você tinha o dever de salvar minha

pequena! Tem os poderes! Eu jamais vou

perdoá-la!

Mercúria revida com os braços

ruzados.

— Nossa conversa terminou, Doutora

Valéria. Obrigada pela ajuda — um

vendaval antecede o desaparecimento de

Mercúria.

Valéria ajoelha-se e chora

copiosamente.

Mercúria abre a porta do seu pequeno

quarto no segundo andar do casarão do seu

Sebo. Ela está chorando. Começa a se

despir, ali pode admitir: sente muita falta

da mãe que continua lhe odiando. Como

queria estar nos braços dela e aplacar a dor

Page 209: Super Poderosa

da perda de Thiago. Ela o amava. Doía

demais...

Estava sozinha.

Page 210: Super Poderosa

O presente do passado

Parte 1

Verônica sai da instituição bancária. O

pensamento ainda está na conversa que

tivera com Valéria na noite anterior. Do

outo lado da rua, nota alguém familiar. Tem

vontade de sorrir ao se lembrar dos

momentos que passou ao lado daquele

menino; daquele amigo que tinha crescido

um pouco e parecia triste. Tem vontade de

sair correndo e dizer a ele que estava viva.

Imagina que importa para ele saber. Não

havia se encontrado com ele desde o

acidente com o raio.

Victor está sozinho, cabisbaixo. Ela o

observa até o ponto em que ele para a fim

Page 211: Super Poderosa

de conversar com um homem estranho. As

lembranças se fazem.

Naquela fatídica manhã, na Rua

Camélia, os pássaros cantavam

despreocupados e o sol ainda tímido dava

sinais de vida. As casas estavam com as

janelas fechadas já que os mais

trabalhadores tinham saído e os

vagabundos ainda dormiam. Entre este

ultimo grupo de pessoas, havia uma que

não deveria estar em casa ou pelo menos

deveria já estar pronta para ir à escola.

Verônica Albuquerque, pré-adolescente de

12 anos de idade e de família tradicional

daquela pequena cidade.

Os passos apressados de Inezita, mais

amiga do que empregada da família, se

fizeram escadaria acima. Visavam a direção

do quarto da menina:

— Vê — que era o apelido carinhoso

que Inezita usava para chamar a pequena

Page 212: Super Poderosa

patroa — está atrasadíssima! Ai, meu Deus!

— Ela batia levemente na porta rosa do

quarto da menina.

Verônica abriu um dos olhos

esverdeados que tinha. Virou-se e se

espreguiçou. Colocou-se sentada e afastou

os cabelos emaranhados do rosto pouco

antes de fitar o relógio:

— Ai, merda! — disse assustada. —

Tenho prova hoje! Droga droga! — Se

levantou depressa.

Abriu a porta ainda colocando o

uniforme escolar.

— Zita! Eu não vou tomar café! Não

dá tempo — ela desceu as escadas ainda se

vestindo. — Ai, droga!

— Srta. Verônica — A voz mansa da

professora Patrícia de matemática se fez

quando Verônica abria a porta da sua sala.

— Chegou tão cedo... — ironizou.

Page 213: Super Poderosa

— Desculpe, senhora! — a menina

abaixou a cabeça.

— Sente-se que vou dar a sua prova.

Os outros alunos já estavam fazendo

a avaliação quando Verônica recebeu a

dela. Ao fitar os exercícios, a menina coçou

a cabeça e fez uma careta:

— Que difícil! Ei, Vic! — ela chamou o

amigo em voz baixa! – Me ajude! Não sei

nada!

Victor Arantes era o melhor amigo de

Verônica. Conhecia a menina desde o

primário e ainda eram vizinhos desde

sempre. O garoto conhecia todos os gostos

da menina; todas as suas qualidades e

defeitos. Sabia, então, que Verônica era

lerdinha.

— Vê, eu não posso te passar os

exercícios! Dona Patrícia vai nos pegar!

— Rápido! Troque de prova comigo!

Page 214: Super Poderosa

O amigo ainda que com receio fez o

que a menina lhe pediu. Mas como previra,

a professora Patrícia pegou ambos

realizando a manobra:

— Que bonito, senhores! – ela bateu

palmas. — Eu terei que dar zero para

ambos! — Agarrou as duas provas trocadas.

— Agora quero que deixem a sala!

— Droga! — Vic reclamou. — Eu

nunca tirei um zero na vida.

— Não esquenta! Eu tirei um monte

deles!

Verônica e Victor conversavam

enquanto deixavam a escola já findo o

período das aulas.

— Não fique triste, Vic — ela abraçou

o melhor amigo. — Vamos ao Sebo novo

que abriu no centro! Lá a gente relaxa

comprando quadrinhos!

Victor sorriu. Se havia algo que

o menino gostava mais do que estudar era

Page 215: Super Poderosa

ler histórias em quadrinhos. Ele próprio

tinha ensinado Verônica a apreciar esse tipo

de diversão.

— Demorô! Vamos lá então! — ele

acelerou o passo.

Page 216: Super Poderosa

O presente do passado

Parte 2

O Sebo novo era localizado numa rua

estreita que desembocava na avenida

central da cidade. O prédio era um casarão

antigo de dois andares e que necessitava de

uma boa pintura. A tinta azul estava

descascando em várias partes e o telhado

precisava de reparos.

Os dois amigos adentraram pela porta

de madeira velha e viram que havia várias

revistas espalhadas pelo assoalho velho e

algumas estantes preenchidas com livros.

No fundo da grande sala, havia um pequeno

Page 217: Super Poderosa

balcão e uma senhora parecia limpar o

móvel. Os dois se aproximaram:

— Bom dia, senhora! — disse Vic. —

Podemos olhar os quadrinhos?

A velha sorriu, levantou os olhos por

de trás das lentes dos óculos e observou o

casal.

— Oh! Claro que podem! — falou ao

olhar nos olhos de Victor. — Não repare na

bagunça, mas é que acabei de me instalar

aqui!

— Não se preocupe, tia — Verônica

sorriu.

Vic se afastou do balcão ao notar

uma pilha de revistas do Batman.

— Vê, vou dar uma olhada naquelas

revistas!

— Vai lá! Já já vou também! Senhora,

mora sozinha?

— Chamo-me Clarice e sou sozinha. E

você, como se chama?

Page 218: Super Poderosa

— Meu nome é Verônica! Meus

amigos e minha família me chamam de Vê!

Clarice retirou seus óculos e observou

atentamente Verônica.

— Você é jovem...

— Sim! Estou na sexta série! Tenho

12 anos!

A voz de Vic se fez para atrapalhar

aquela conversa:

— Vê, olhe o que eu achei! O

quadrinho que você tanto queria! — ele

folhava uma revista.

— Ai que bom! — a garota deixou a

companhia de Clarice para ir junto do

amigo.

Mais tarde Verônica e o amigo

estavam à mesa esperando pelo almoço que

Inezita serviria. Naquela oportunidade

Valéria, advogada e mãe de Verônica estava

ali para o almoço. Ela era uma mulher

bonita, nem parecia mãe. Tinha os cabelos

Page 219: Super Poderosa

dourados e bem lisos; seus olhos eram

castanhos e sua pele bem clara. Trajava um

lindo vestido, esmeralda, muito elegante.

Não tinha muito tempo para ser mãe e

cuidar da filha.

— Então você tirou zero novamente,

mocinha? — dizia a mãe enquanto se servia

de arroz. — Filha, vou precisar contratar um

professor particular para você!

— Nada, mãe! Eu só não levo jeito

para estudar — ela cruzou os braços.

— Eu acho uma boa ideia, Doutora

Valéria! — Vic opinou ao passo que Verônica

fez uma careta para o amigo.

— Me chame apenas de Valéria, está

bem?

Verônica mudou de assunto:

— Mãe, fomos ao Sebo novo, hoje.

— É mesmo? E o que viu de bom lá?

— Meu quadrinho preferido! Mas a

dona da loja é uma velha esquisita...

Page 220: Super Poderosa

— Querida, não julgue as pessoas.

Preciso comer rapidinho agora, pois tenho

audiência logo mais! — a mãe de Verônica

procurou se ater apenas à refeição.

Aquilo fazia tanto tempo que tinha

acontecido. Nunca mais vira o amigo desde

aquele dia, pois naquela mesma tarde,

aconteceu o acidente com o raio. Algumas

vezes pensou em procurá-lo, mas não

soube como. Victor tinha se mudado. Agora

o reencontrava, mas havia algo estranho.

Verônica se aproxima discreta. Ajeita

os óculos falsos. Não é possível! O antigo

amigo está comprando droga?

Page 221: Super Poderosa

Termina a 2ª temporada de

“Super Poderosa”! Com o núcleo

“Presente do Passado” fechamos as

aventuras de Mercúria

provisoriamente.

Para mais informações acesse o

blog do autor:

http://paullawblog.blogspot.com.

br/

Próxima postagem em breve.

Obrigado a todos que estão

apoiando e comentando “Super

Poderosa”. Gostaria de informar que

este é um projeto despretensioso e que

muito me satisfaz. Há tantas ideias...

mesmo que não sejam lá originais.

Abraço.

O autor.