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8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012, Gramado, RS Área Temática: AT09 - Política, Direito e Judiciário Supremo em Números: a dimensão política da pesquisa quantitativa sobre a atividade judicial Alexandre Araújo Costa (UnB) Kelton de Oliveira Gomes (UnB)

Supremo em Números: a dimensão política da pesquisa quantitativa … · "Supremo em Números", iniciativa da Escola de Direito da FGV-Rio que realiza pesquisas quantitativas sobre

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8º Encontro da ABCP

01 a 04/08/2012, Gramado, RS

Área Temática: AT09 - Política, Direito e Judiciário

Supremo em Números: a dimensão política da pesquisa quantitativa

sobre a atividade judicial

Alexandre Araújo Costa (UnB)

Kelton de Oliveira Gomes (UnB)

Supremo em Números: a dimensão política da pesquisa quantitativa

sobre a atividade judicial

Alexandre Araújo Costa1

Kelton de Oliveira Gomes2

Resumo

Propõe-se uma análise dos resultados apresentados pelo projeto

"Supremo em Números", iniciativa da Escola de Direito da FGV-Rio que realiza

pesquisas quantitativas sobre a atuação do STF. Argumenta-se que os

resultados apresentados no primeiro relatório apresentam uma série de

inconsistências metodológicas que enfraquecem suas conclusões,

especialmente no tocante à definição das funções institucionais do tribunal, à

categorização dos processos judiciais a ele submetidos e à interpretação dos

dados sobre recursos extraordinários e agravos de instrumento. Sustenta-se

que essas deficiências decorrem do fato de que o relatório parte de

pressupostos político-valorativos não explicitados, mantendo compromisso

velado com o projeto de transformação institucional do STF em um tribunal

constitucional voltado ao controle concentrado e abstrato de

constitucionalidade.

Palavras-chave: Supremo em números, Supremo Tribunal Federal,

Pesquisa quantitativa, controle concentrado de constitucionalidade,

germanização.

Introdução

“A verdadeira história do estabelecimento do poder judicial

pode estar nas sombras, em detalhadas interações entre

1 Professor Adjunto do Instituto de Ciência Política da UnB. Mestre e Doutor em Direito

pela UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Política e Direito”, da Universidade de Brasília (UnB). 2 Bacharel em Direito, integrante do Grupo de Pesquisa “Política e Direito”, da

Universidade de Brasília (UnB).

tribunais e outros atores políticos.” (GINSBURG, 2003, p. 105,

tradução livre).

A Fundação Getúlio Vargas (FGV) apresentou um relatório chamado

Supremo em Números em maio de 2011, com o objetivo expresso de

“fundamentar quantitativa e estatisticamente discussões sobre a natureza, a

função e o impacto da atuação do STF na democracia brasileira” (FUNDAÇÃO

GETÚLIO VARGAS, 2011, p. 11). Esse relatório consolida uma pesquisa de

viés quantitativo, que busca fazer inferências “a partir de padrões identificáveis

em um grande número de decisões judiciais”, resultando de uma colaboração

entre a Escola de Direito e a Escola de Matemática Aplicada.

Trata-se de uma pesquisa que levanta informações relevantes para

a compreensão da atividade atual da Corte e do papel que ela exerce na

democracia brasileira.

No que toca ao levantamento dos padrões de ajuizamento e

julgamento de certas classes específicas, como os recursos extraordinários e

os habeas corpus, o texto faz um levantamento expressivo e uma interpretação

consistente dos dados. Porém, no que toca à análise global dos processos e

das funções do Supremo, o relatório mostra uma série de deficiências

metodológicas que o enfraquecem, na medida em que são apresentadas várias

conclusões que não se assentam nos números levantados, mas em certos

pressupostos político-valorativos que não são devidamente expostos no

relatório. Em especial, são inconsistentes várias das conclusões políticas

inferidas a partir da leitura dos números.

A descrição quantitativa das atividades do STF, como qualquer

pesquisa de viés empírico, somente é capaz de descrever certos fatos e

evidenciar algumas regularidades. Já a avaliação do sentido político dos

números envolve julgamentos acerca do modelo adequado de Corte, das

funções que o Supremo deve desempenhar e das melhores formas de realizar

o controle de constitucionalidade. Essas avaliações políticas não são retiradas

dos números, mas de critérios políticos que condicionam a interpretação dos

dados estatísticos, possibilitando inserir esses dados em um discurso político

sobre engenharia judiciária.

Que Supremo desejamos? Essa resposta não está nos números. O

que os números podem fazer é mostrar o quanto estamos próximos ou

distantes do modelo de Tribunal que supomos adequado. O presente trabalho

pretende mostrar, em primeiro lugar, que a pesquisa apresentada pela FGV

não parte de um marco teórico indefinido, na medida em que não esclarece

inicialmente como ela própria enxerga o STF e qual é o modelo de Corte que

ela toma como parâmetro para fazer as suas apreciações sobre os fatos que

são evidenciados pela estatística.

Isso não seria uma deficiência séria caso o relatório fosse

meramente descritivo, limitando-se a revelar algumas singularidades e

regularidades na atuação contemporânea do Supremo. Porém, como a

pesquisa é muito mais ambiciosa do que isso, resultando em uma

categorização das decisões que chega até mesmo a identificar a convivência

não muito harmônica de três “personas” dentro da mesma instituição, é

fundamental que os critérios de avaliação política sejam esclarecidos de

antemão.

O relatório em debate possui um engajamento, que, embora não

seja expresso, pode ser devidamente identificado em várias passagens do

texto, reveladoras de que a pesquisa está comprometida com a construção de

um modelo que desvaloriza o controle difuso e busca simultaneamente reduzir

o trabalho demasiado dos ministros do STF, além de ampliar os poderes

políticos da Corte. Esse projeto é apresentado como a transformação do STF

em uma “verdadeira” Corte Constitucional, centrada no controle concentrado e

com alto grau de ativismo.

Esta visão é plenamente compatível com manifestações dos últimos

presidentes da Corte (Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes), o que indica

que existe uma convergência de visões políticas entre o relatório e a cúpula do

poder judiciário3. Tal identidade é corroborada pelo fato de que a divulgação da

pesquisa foi feita em evento do próprio STF, no contexto do lançamento da

3 Em especial, existe uma convergência com as posições que têm sido defendidas pelo

prof. Gilmar Ferreira Mendes desde a época em que ele protagonizou, enquanto Subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República, o processo que culminou na Emenda Constitucional n. 3/1993, que apontam para a necessidade de decisões com efeito vinculante tomadas em um processo de controle mais abstrato e concentrado (cf. CARVALHO, 2011, p. 214 e ss.)

PEC dos recursos cujo principal defensor é o atual presidente da Corte4. E

essa ligação se torna especialmente clara quando o relatório chega a afirmar

que o Supremo deve escolher o que é fundamental que ele julgue, pois apenas

assim ele seria senhor do seu destino, argumento que evidencia, mais que

qualquer outro, o comprometimento com um modelo que garanta o

protagonismo político do STF.

A adoção apenas implícita desse posicionamento político faz com

que o relatório se apresente como um discurso técnico, que conclui pela

necessidade de fazer reformas que implementem o modelo de Corte que

estava no próprio pressuposto dos pesquisadores. Esse argumento incide em

uma petição de princípios, que termina por apresentar como conclusões

apenas o que já estava implícito nas premissas. E, mais grave, tende a conferir

uma densidade técnica e acadêmica a uma argumentação político-ideológica

que não se torna transparente ao longo do relatório.

Esses pressupostos ideológicos implícitos geram distorções

especialmente em 3 pontos: a definição das pessoas, a categorização dos

processos e a interpretação dos dados relativos aos recursos extraordinários.

As três “Cortes”

O relatório indica que o “Supremo não se comporta como um só

tribunal, mas sim como três cortes distintas fundidas na mesma instituição, um

tribunal com três personas” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2011, p. 14),

que apresentam padrões distintos de atuação. Essas personas foram

denominadas:

1. Corte Constitucional, relacionada ao exercício do controle

concentrado de constitucionalidade,

2. Corte Recursal, relativa ao julgamento de recursos, e

4 A TV Justiça realizou reportagem sobre esse lançamento em programa que pode ser

assistido no seguinte endereço: http://goo.gl/McE9D.

3. Corte Ordinária, referente ao julgamento de processos de

competência originária.

Caso se tratasse apenas da identificação de três temáticas diversas,

essa distinção não faria sentido, na medida em que ela apenas refletiria as

múltiplas funções do STF que, como qualquer tribunal do país, julga processos

originários, aprecia recursos e realiza controle de constitucionalidade.

Identificar essas três funções como pessoas seria um equívoco metodológico,

tanto que o próprio relatório indica que essa distinção somente faz sentido na

medida em que “todo o comportamento do Supremo se altera em padrões

associados a três grupos de espécies processuais” (FUNDAÇÃO GETÚLIO

VARGAS, 2011, p. 16) aos três grupos de espécies processuais acima

referidas, mudando especialmente:

(a) a quantidade de processos e suas variações ao longo do tempo;

(b) o tribunal de origem;

(c) a movimentação do processo dentro do Supremo até seu

arquivamento; e

(d) a natureza das partes.

Todavia, essa lista de indicadores não subsidia adequadamente a

distinção das personas, dado que apenas o item c se refere ao padrão de

comportamento do STF. Os outros itens apenas indicam fatores extrínsecos,

cuja diferença não pode ser creditada a um padrão de comportamento distinto

do STF, mas cuja diversidade deriva do fato de que as espécies de processos

julgadas por cada “Corte” são diferentes tanto em termos quantitativos, em

termos de origem e das partes que os integram. Ademais, como os

julgamentos desses processos seguem ritos muito distintos, cada um deles

tenha peculiaridades nos padrões de movimentação processual que tampouco

podem ser creditados a uma múltipla personalidade do STF.

Nessa medida, a interpretação dos dados do relatório em termos de

três Cortes, com padrões de julgamentos diversos, não se mostra consistente

com os parâmetros utilizados para fazer esse reconhecimento. Utilizando esses

elementos, o máximo que a pesquisa poderia evidenciar é que existem

peculiaridades nos padrões de julgamento de processos que são

heterogêneos.

Se os diferentes padrões de julgamento dos processos decorrem de

suas características próprias e não de uma diferença de perspectiva adotada

pelo Tribunal, a distinção em personas parece menos esclarecedora que uma

simples diferença de funções exercidas por uma mesma pessoa, pois enquanto

as funções múltiplas podem ser compatíveis, as personalidades múltiplas

sugerem que há nesse sistema uma espécie de desvio a ser corrigido.

Por outro lado, categorizar as funções do STF a partir dos

mencionados “padrões de comportamento” é um propósito que, por si só, não

faz sentido, na medida em que a complexidade do seu desenho institucional é

de conhecimento geral. Não há duvida de que, a partir da promulgação da

Constituição Federal de 1988, o STF passou a acumular as funções de tribunal

constitucional e de órgão de cúpula do poder judiciário (tribunal de última

instância), em sentido próximo ao proposto no relatório da FGV.

É possível apontar pelo menos outras duas funções do STF,

igualmente evidentes à comunidade jurídica. Primeiramente, funciona como

foro especializado para julgamento de certos agentes políticos e como tribunal

de pequenas causa políticas, tendo de “[...] apreciar originariamente atos

secundários do parlamento ou do executivo, muitas vezes diretamente ligados

à governância interna destes dois poderes.” (VIEIRA, 2008, p. 448). Sabe-se

também que, sob a vigência da Constituição Cidadã, o STF iniciou, também,

um processo de crescente ampliação do seu papel político na democracia

brasileira, coroado pela edição das Emendas Constitucionais nº 3/93 e 45/05 e

das Leis nº 9.868/995 e 9.882/996. Essa ascensão institucional é apontada

como principal fundamento para o avançado estágio de “judicialização das

relações sociais” no Brasil (BARROSO, 2010).

Em outras palavras, inferir a existência de três cortes a partir das

características processuais citadas no relatório da FGV é um procedimento que

se mostra, em princípio, inconsistente, do ponto de vista lógico, e inócuo, do

ponto de vista prático. Entretanto, essa inferência desempenha um papel

5 Regula o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e da

Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). 6 Regula o processo e julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF).

fundamental na argumentação do Supremo em Números: funciona como

metáfora para sustentar o diagnóstico de que o STF padece de um certo desvio

de personalidade, uma vez que a maior parte do seu trabalho não é

“constitucional”, mas sim “recursal”. Nesse sentido, na medida em que se

rejeita a existência de um liame lógico entre os padrões de comportamento

processual aduzidos pela FGV e a diversidade de funções desenvolvidas pelo

STF, resta saber qual o objetivo desse argumento, a começar pela identificação

dos processos que constituem as personas institucionais do STF tal como

descritas no relatório sob análise.

Tipos de Ações

Ao analisar as classes processuais existentes no STF, o relatório

identificou a existência de 52 classes. Inicialmente, cabe esclarecer que essas

classes não são tipos distintos de ações, no sentido técnico-processual do

termo, pois envolvem uma série de incidentes processuais que ocorrem dentro

de outros processos judiciais. Assim, a afirmação de que são “52 tipos de

processos distintos para se chegar ao Supremo” (FUNDAÇÃO GETÚLIO

VARGAS, 2011, p. 18) não é muito precisa, na medida em que várias das

classes listadas são apenas incidentes dentro de outros processos, como é o

caso das várias exceções. Portanto, seria mais preciso afirmar que essa lista

indica a variedade de atividades que o STF realiza do que tratar cada um

desses elementos como portas de entrada.

Essa ressalva indica que não se sustenta a conclusão de que “a

mera e complexa escolha da porta de entrada já aponta a ênfase no direito

processual no processo decisório judicial, aumentando a carga de trabalho do

próprio Supremo, provavelmente desviando-o para questões processuais em

detrimento da decisão judicial substantiva demandada” (FUNDAÇÃO GETÚLIO

VARGAS, 2011, p. 20). Essas múltiplas classes raramente geram para os

demandantes a chance de escolher uma porta mais adequada à defesa dos

seus direitos, pois quase todas elas somente são aplicáveis em situações que

não se confundem. Seria mais adequado ver nessa multiplicidade um reflexo

da tendência processual do civil law, talvez radicalizada no Brasil, de multiplicar

as classificações processuais e regular minuciosamente cada uma delas.

Eliminar essas classes somente significaria uma simplificação do

processo caso elas fossem englobadas por classes mais amplas. Extingui-las,

apenas para simplificar a atuação do STF, seria fechar as portas do Judiciário

para as demandas que, no modelo atual, somente podem ser propostas

mediante ações específicas. Trata-se, com efeito, de uma característica

estrutural do direito processual brasileiro, que não pode ser modificada com

base apenas na realidade do Supremo.

Além disso, nada no relatório garante que a simplificação processual

acarretará uma transferência de ênfase da atuação do STF de questões de

direito processual para questões de direito material. É mais verossímil imaginar

(mesmo assim, com reservas) que a simplificação dos meios de acesso ao STF

represente uma ampliação na seletividade da Corte na definição dos processos

que deseja julgar, seguindo uma tendência que já é visível nos dias de hoje,

através da criação de instrumentos normativos como a repercussão geral, as

súmulas vinculantes e a vedação à análise de ofensas ao texto constitucional

meramente reflexas.

De todo modo, é preciso avaliar a distinção que o relatório faz entre

três tipos de processos, cada um ligado a uma das “personas”: processos

constitucionais, recursais e ordinários.

O relatório considera como processos constitucionais apenas

aqueles ligados ao controle concentrado de constitucionalidade (ação direta de

inconstitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ação

declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito

fundamental), além dos mandados de injunção (que têm adquirido caráter

objetivo7) e das propostas de súmula vinculante, que não são uma ação, mas

um procedimento interno de edição de súmulas.

Nessa divisão, causa espanto o fato de que os recursos

extraordinários, que são a forma típica do exercício do controle difuso de

7 Recentemente, o STF, afastando-se de sua orientação inicial no sentido de que o

mdandado de injunção se limita à declaração da existência da inércia do Legislativo para a edição de norma regulamentadora, passou a aceitar, ainda que com reservas, a possibilidade de uma regulação provisória pelo próprio Judiciário.

constitucionalidade, não foram considerados processos constitucionais. Como

o caráter constitucional desses processos é reconhecido na própria definição

constante do relatório, é de se estranhar que eles tenham sido alinhados com

os agravos de instrumento como uma espécie de competência recursal. O

motivo real dessa distinção se mostra apenas em uma nota de rodapé, que

indica que o tratamento diferenciado dessas classes se dá em função de elas

representarem a ampla maioria dos processos do STF, cerca de 90%, o que

permite que a “persona” que os julga seja considerada um Supremo recursal de

massa (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2011, p. 19, nota 8).

Já os processos ordinários foram definidos por exclusão,

englobando todas as classes que não se enquadram nas duas primeiras

classificações. Assim, foram abarcadas por essa categoria tanto os processos

de competência originária que não configuram controle concentrado como

todos os recursos que não são de natureza constitucional.

A inconsistência dessa tripartição é evidente. Em primeiro lugar, as

denominações são totalmente desvinculadas dos critérios e do sentido típico

desses rótulos na linguagem técnica processual. Porém, o mais importante é

que os parâmetros de categorização utilizam-se de distinções categoriais que

não se coadunam. Não existe, em especial, nenhuma oposição conceitual

entre as categorias recursal e constitucional, dado que recursal se opõe a

ordinário e constitucional se opõe a não-constitucional. Nada impede que haja

um recurso desvinculado de matéria constitucional e tampouco justifica que

somente se considere como constitucionais os processos de competência

originária.

Se chamarmos de “constitucionais” os processos que lidam com

pedidos que envolvam controle de constitucionalidade, teremos de englobar

nessa categoria tanto o controle direto quanto o difuso. Se chamarmos de

“ordinários” os processos que não têm natureza constitucional, veremos que

essas competências foram atribuídas ao STF por conta de ele ser o órgão de

cúpula do Judiciário Federal e não por se tratar de uma corte para julgar

matérias constitucionais: extradições, habeas corpus, exceções de

incompetência, todas essas classes se referem à posição do Supremo e não a

uma função constitucional. Esse critério dúplice permitiria uma construção mais

adequada de parâmetros de interpretação e, inclusive, indicaria a necessidade

de algumas mudanças, pois há processos, notadamente a Reclamação, que

são decorrências diretas da competência constitucional da Corte e foram

classificadas como processos ordinários.

A essa altura, fica claro que a distinção entre processos

“constitucionais”, “recursais” e “ordinários” presente no relatório da FGV não se

baseia, primordialmente, na natureza das ações judiciais em si. A rigor, essa

distinção tenta situar a realidade institucional do STF na discussão sobre o

papel dos tribunais de cúpula nos dois principais tipos de controle de

constitucionalidade conhecidos, a saber: o modelo concentrado e o modelo

difuso.

No modelo concentrado, o controle de constitucionalidade é

atribuído a um órgão jurisdicional superior, a corte constitucional. Tal sistema

guarda relação direta com as cortes constitucionais de origem europeia,

tipicamente associadas à obra de Hans Kelsen e à criação do Tribunal

Constitucional Austríaco, com lastro na Constituição da Áustria de 1920

(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 1.057).

Já no modelo difuso, de origem norte-americana, qualquer órgão do

poder judiciário tem poder para decidir sobre a adequação de uma norma ao

texto constitucional, em qualquer caso submetido à apreciação da justiça, no

qual o Corte Constitucional. Nesse modelo, o tribunal de cúpula (nos Estados

Unidos, a Suprema Corte) atua como última instância recursal.

Nesse contexto, as obscuras categorias que pautam a tripartição

proposta pelo Supremo em Números, ao mesmo tempo em que se apresentam

comprometidas com a construção artificial de uma “persona recursal” que

precisa ser destituída de status constitucional, demonstram clara valorização

do controle concentrado, o único que mereceu a classificação como

propriamente “constitucional” - a despeito do controle difuso ser um dos

elementos da divisão de poderes definida pela Constituição Federal de 1988,

destinando-se à guarda da Constituição tanto quanto as ações de controle

abstrato e concentrado.

A metáfora das três Cortes, por mais artificial que seja, sugere, de

certa forma, que o STF, para não se desviar de sua “vocação constitucional”,

deve minimizar (ou até mesmo eliminar) sua “persona recursal”, deixando de

funcionar como tribunal recursal de última instância. Por conseguinte, ao definir

o recurso extraordinário e seu respectivo agravo como vias processuais

meramente recursais, a pesquisa termina por converter o controle difuso de

constitucionalidade em obstáculo para a ascensão institucional do STF. Essa

conclusão, no mínimo equivocada, ganha ainda mais força retórica quando

cruzada com os dados quantitativos trazidos pelo Supremo em Números.

Análise dos dados quantitativos

Um dos dados mais impressionantes do relatório da FGV-Rio – e

não por acaso o primeiro a ser apresentado – é a tabela que indica a

composição percentual do total de processos submetidos a apreciação do STF,

separados por “persona”:

a) Constitucional: 6.199 processos (0,51%)

b) Ordinária: 95.306 processos (7,80%)

c) Recursal: 1.120.597 processos (91,69%)

Ocorre que, ao interpretar esses dados, o relatório faz afirmações

que se distanciam demasiadamente da mera análise documental e se

aproximam perigosamente da defesa retórica de um determinado tipo de

tribunal.

A pesquisa defende que o Supremo não é uma corte constitucional

no sentido “original” em que esse tipo de instituição foi pensada. Em números

absolutos, está muito mais próximo de uma “corte recursal suprema”. Não é

uma corte que escolhe o que julga fundamental julgar. É antes uma corte

escolhida pela parte. Não constrói seu destino. Seu destino lhe é construído,

através de cada recurso que lhe chega por deliberação de terceiros.

Esse é um parágrafo repleto de equívocos. Em primeiro lugar, ele

trata as cortes constitucionais europeias, que representam um sistema puro de

controle concentrado de constitucionalidade, como cortes constitucionais no

sentido original. Essa classificação é indevida, uma vez que presume ser um

problema o fato de o STF não se adequar inteiramente ao modelo europeu. A

rigor, foi a Suprema Corte norte-americana que serviu de matriz a partir da qual

nosso controle de constitucionalidade foi inicialmente pensado. Tal tribunal é,

de fato, uma “corte recursal suprema”, qualificação que nada tem de ruim ou

precária, sobretudo por se tratar do modelo de jurisdição constitucional mais

duradouro de que se tem notícia.

Porém, o salto argumentativo mais inconsistente é a conclusão de

que uma corte recursal é ruim porque ela não escolhe o que julga fundamental

julgar. Essa é uma afirmação evidentemente modulada para agradar aos

ouvidos dos ministros do STF, que são as únicas pessoas suscetíveis a essa

argumentação. Um dos princípios típicos da atividade judiciária é que os juízes

devem julgar apenas o que lhes é solicitado (o princípio da inércia) e que eles

devem apreciar todos os pedidos que lhes são feitos (o princípio da

universalidade da jurisdição). Embora todo sistema contenha regras de

seletividade sobre os pedidos que serão apreciados, não tem qualquer base a

afirmação de que uma corte de matriz recursal “não constrói o seu destino”

porque os recursos chegam por deliberação alheia. Ela não se justifica

historicamente, pois sistemas recursais têm critérios de seletividade, tanto na

experiência internacional (como o writ of certiorari da Suprema Corte norte-

americana) como na brasileira (com a exigência de repercussão geral). Ela

também não se justifica politicamente, pois seria absurdo que as Cortes

escolhessem, por critérios próprios, o que deveria ser solicitado a elas julgar –

como já dito, o princípio da inércia judicial continua sendo uma das grandes

garantias no sentido de que o poder judiciário atue de maneira compatível com

uma democracia.

De fato, as informações contidas na referida tabela não permitem as

conclusões retiradas. Ela mostra apenas que a competência constitucional do

STF envolve 90% dos processos existentes na Corte, o que confere a ela um

caráter constitucional preponderante. A conclusão sugerida parte da absurda

oposição entre constitucional e recursal, que não se sustenta teoricamente e

que aparentemente reflete apenas o engajamento político da pesquisa

realizada pela FGV Rio no projeto de direcionar a força de trabalho do STF

para o controle concentrado de constitucionalidade.

Equívoco semelhante ocorre na avaliação dos números acerca da

evolução da quantidade de processos ao longo do tempo. Essa análise parte

do pressuposto implícito de que as diferentes Cortes deveriam ter montantes

equilibrados de processos. Apenas essa premissa, que não é expressamente

articulada, permite as inferências posteriores de que uma alteração nas

quantidades de processos ligadas a cada uma das personas deve ser

entendida como um problema. Todavia, estamos aqui frente a um argumento

circular: o relatório define artificialmente a existência de três cortes e depois

postula que elas devem ter quantidades equilibradas de processos. A divisão

das Cortes é feita de tal modo que 90% dos processos sejam atribuídos a uma

pretensa persona recursal, o que deveria possibilitar um argumento de que

existe uma inflação dessa persona.

A anatomia dessa linha argumentativa deixa claro, novamente, que a

opção pela tripartição de personas é um elemento retórico no sentido de

contribuir para a construção de uma compreensão social de que o STF sofre de

um distúrbio de personalidade, tanto porque contém mais personas do que

deveria quanto porque essas personas encontram-se desequilibradas. Todavia,

trata-se de um argumento vazio, pois nem existe a múltipla personalidade nem

ocorre desequilíbrio quantitativo. Ocorre apenas que o STF tem funções de

controle concentrado e difuso e que, evidentemente, o número de processos

relativos ao controle difuso é muito maior do que o existente no controle

concentrado.

O resultado de todas essas inconsistências pode ser visto na

repercussão do relatório da FGV. O jornal O Globo, por exemplo, publicou

matéria aduzindo que “só 3% dos julgamentos feitos pelo Supremo são de

temas constitucionais” (PEREIRA, 2011), o que é uma interpretação

equivocada do sentido da pesquisa (mas que mesmo assim foi divulgada no

sítio eletrônico do Supremo em Números). Em matéria semelhante divulgada

pela revista Isto É Dinheiro, entendeu-se que a pesquisa realizada pela FGV

concluiu que, “absorvido pela indústria dos recursos judiciais, o Supremo

Tribunal Federal (STF) mitigou seu papel de Corte Constitucional para virar

uma espécie de tribunal da 'palavra final' para processos corriqueiros

provenientes de todo o Brasil.” (AGÊNCIA ESTADO, 2011). Esse o tom está

presente em uma série de outras publicações da época8.

8 Estadão: “Supremo atolado: 92% dos processos são recursos”

(http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,supremo-atolado-92-dos-processos-sao-

Não há dúvidas de que o número de recursos que ingressam no

Tribunal é muito maior do que qualquer possibilidade humana de julgamento

adequado. Só em 2011, foram recebidos 63.427 processos para julgamento no

Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2011, p. 40), que deverão ser apreciados

por apenas onze ministros, mesmo que cada um deles conte com vários

assessores. Ocorre que o relatório não avalia o número de recursos como uma

característica do sistema judicial brasileiro, que tem causas complexas e

variadas, desde a legislação processual ao modus operandi da advocacia

pública, responsável pela maior parte dos recursos (BRASIL, 2011c). Ele trata

essa quantidade exagerada como um problema a ser contornado por meio de

elementos que confiram preponderância às causas de controle abstrato (que se

contam em centenas por ano) e não as de controle difuso (que se contam em

dezenas de milhares).

É nesse sentido que o relatório em discussão foi utilizado para

subsidiar a chamada “PEC dos Recursos”, capitaneada pelo então presidente

do STF, Ministro Cezar Peluso, cujo objetivo é limitar o número de recursos

extraordinários mediante a possibilidade de execução definitiva (e não

provisória) das decisões tomadas pelos tribunais de segundo grau (BRASIL,

2011a). Entre os argumentos que tem sido apresentados contra essa proposta

está o fato de que ela restringe o direito de defesa das pessoas, na medida em

que lhes nega o direito de acessar o grau extraordinário. Devemos reconhecer

que, muitas vezes, esse argumento encobre apenas o interesse dos

advogados de manter seus campos de trabalho inalterados. Porém, ao mesmo

tempo existe a questão de que o controle difuso somente permite a chegada de

processos ao STF por via recursal, de modo que um fechamento exagerado do

acesso termina por restringir as possibilidades de um controle efetivo de

constitucionalidade.

Para enfrentar essa questão, o relatório busca mostrar que as

causas que chegam por via recursal já foram analisadas por várias instâncias

judiciais, o que serve como justificativa para a criação de elementos de

recursos,714997,0.htm); Globo News: “Pesquisa da FGV mostra que 92% dos casos que tramitam no STF são recursos” (http://www.youtube.com/watch?v=H7IlpkPCRBg); Folha de São Paulo: “Supremo modifica poucas decisões de tribunais inferiores” (http://www1.folha.uol.com.br/poder/911186-supremo-modifica-poucas-decisoes-de-tribunais-inferiores.shtml).

seletividade ou de impedimento no que toca aos recursos extraordinários.

Embora esse seja um tema relevante, o que causa espécie é o modo como o

relatório aborda a questão, dentro de uma análise acerca dos padrões de

julgamento dos três grupos de processos categorizados pela pesquisa. Essa

análise mostra que o número médio de andamentos em cada um desses

grupos é:

1. Constitucional 31,92

2. Ordinário 21,73

3. Recursal 10,28

O relatório interpreta essa diferença como uma espécie de índice de

complexidade: quanto mais complexo o processo, mais andamentos são

necessários, consumindo de forma mais intensa os recursos financeiros e

humanos do STF. Além disso, indicam que essa disparidade tem como razões

“(i) necessidade de baixa rápida dos recursos, para evitar a sobrecarga do

Supremo diante da incessante quantidade de processos recursais que lhe

chegam e (ii) tratamento em massa dos recursos em razão de sua grande

repetitividade” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2011, p. 25). Curiosamente,

não entrou nessas considerações o fato de que julgar um recurso implica

menos atos processuais que julgar uma ação originária: as partes não

precisam ser citadas, os réus (às vezes múltiplos) precisam ter chances de

resposta, e todo o processo ocorre dentro STF. Um recurso extraordinário, ao

alcançar o Supremo, já teve toda a sua parte fática devidamente esclarecida,

trata-se apenas de recebê-lo e julgá-lo. Não há nada mais relevante a ser feito

e, portanto, o número de andamentos necessários para a sua apreciação será

menor. Isso nada tem a ver, contudo, com a complexidade da decisão judicial

necessária para julgá-lo, dado que a complexidade jurídica e fática de um

processo não depende de ser ele originário ou recursal.

Além disso, várias conclusões apresentadas apenas revelam dados

que são da estrutura dos processos. Os recursos extraordinários tratam de

processos que já foram julgados anteriormente, normalmente pela primeira e

pela segunda instâncias. Isso era um dado mais do que esperado, pois trata-se

da forma típica de funcionamento do sistema. O que causa espanto é a

conclusão que o relatório retira dessa confirmação do esperado:

Dessa forma, independentemente dos processos originados no

STJ e dos processos com falhas ou ausência de informação no

preenchimento do tribunal de origem (“Rancharia” e “Juiz de

Direito”), podemos assegurar que, no mínimo, 86% dos casos

julgados no STF representam um triplo grau de jurisdição, que

não é previsto nem no texto constitucional, nem na

interpretação constitucional que considera obrigatório o duplo

grau de jurisdição (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2011, p.

35-36).

De fato, os recursos extraordinários são processos tipicamente

julgados em triplo grau, pois envolvem uma questão constitucional levada ao

STF. Essa não é uma distorção do sistema, mas a própria realização do

sistema difuso de controle de constitucionalidade, que opera mediante

recursos. Embora não exista o direito a um triplo grau de jurisdição, nem

mesmo a um duplo, a possibilidade de levar casos de controle difuso ao STF é

o mecanismo existente para que as questões cheguem até ele, de forma a

permitir uma uniformização de entendimento.

Conclusão

Apesar das críticas perfilhadas no presente trabalho, é de bom

alvitre repetir que a proposta que move o projeto Supremo em Números é, sem

dúvida, positiva. De fato, continua pertinente a observação feita por Marcos

Faro de Castro, há quase quinze anos atrás, no sentido de que “no Brasil,

muito pouco ainda é conhecido a respeito do impacto político do funcionamento

das cortes judiciais” (CASTRO, 1997). Embora já contemos, hoje, com uma

quantidade significativa de informações sobre a atuação do STF,

especialmente nos relatórios elaborados pelo próprio Supremo e pelo Conselho

Nacional de Justiça (CNJ), o número de trabalhos acadêmicos sobre esses

dados ainda é reduzido. Desse modo, qualquer análise que contribua para um

melhor esclarecimento do papel desempenhado pelo Poder Judiciário na

democracia brasileira é bem vinda.

Entretanto, é forçoso reconhecer que o relatório divulgado mostra-se

pouco isento ideologicamente, comprometido que está com a tese de que seria

conveniente transformar o STF em uma corte constitucional de feição europeia,

onde o controle de constitucionalidade seja feito preponderantemente pela via

concentrada. Recorrendo à conhecida distinção entre teorias positivas e

normativas, pode-se dizer que, a despeito de se propor como visão

estritamente positiva da atuação do Supremo Tribunal Federal, mediante a

reunião de dados quantitativos acerca do modo que a Corte emprega sua força

de trabalho, verifica-se que a análise conduzida pela FGV se encontra

permeada por uma série de elementos normativos: a pesquisa não se limita a

desenvolver uma teoria sobre como o STF atua e por que ele atua dessa

forma; mais que isso, o I Relatório Supremo em Números prescreve, de modo

relativamente sutil, o que o STF deve fazer para encontrar-se com sua vocação

institucional "verdadeira".

É ainda mais importante reconhecer que o projeto político veiculado

pelo relatório parece ser o mesmo projeto idealizado pelos próprios Ministros

do STF.

Como observa Tom Ginsburg (2003, p. 65), os tribunais estão longe

de ser jogadores passivos no jogo do judicial review e, em que pese seja

factível que os agentes políticos configurem o sistema judicial de acordo com

seus próprios interesses, há evidências substanciais de que os tribunais

passam a se comportar estrategicamente assim que se estabelecem, tanto em

sua atuação nos casos individuais quanto na definição de sua posição como

instituição dentro do sistema constitucional.

Sob esse aspecto, é sintomática a fala do ex-Ministro do STF Carlos

Velloso sobre as mudanças pelas quais a Corte vem passando nos últimos

anos:

Grandes temas são analisados e discutidos pelo Supremo

Tribunal, hoje, muito mais em razão da compreensão no

neoconstitucionalismo do que em razão da existência das

mencionadas leis. O certo é que o Supremo Tribunal é, hoje,

muito mais aberto, no controle concentrado, às

postulações da sociedade. É de justiça mencionar,

entretanto, que esse movimento que é devido, sobretudo, à

Constituição de 1988, que alguns sustentam ser, no Brasil, o

marco histórico do neoconstitucionalismo, começou nos anos

1990. Foi em 1993 ou 1994 que o Supremo Tribunal decidiu

pela inconstitucionalidade de uma emenda constitucional –

dispositivos da EC 3, de 1993. Mas a tendência cresceu e

muito, nos anos 2000, e isto se deve muito ao ministro

Gilmar Mendes, que tem trazido para o Supremo princípios

e regras do controle concentrado praticado pelos tribunais

constitucionais europeus, principalmente pelo Tribunal

Constitucional alemão. Na verdade, ocorre, no momento,

como que uma germanização da jurisdição constitucional

brasileira, o que é muito bom, sobretudo para a sociedade.

Torço para que essa tendência continue. (BRASIL, 2009,

grifou-se).

Essa fala deixa claro que, diversamente do quanto asseverado no

relatório da FGV, o STF está longe de ser um tribunal que não escolhe o seu

destino. Ao contrário, a Corte vem agindo de forma estratégica há bastante

tempo, buscando concretizar o projeto político que parece mais conveniente

aos seus Ministros. Por exemplo, os institutos da repercussão geral e da

súmula vinculante, responsáveis por uma grande redução da ênfase do tribunal

na apreciação de processos versando controle difuso de constitucionalidade

(BRASIL, 2010, p. 34), foram criados e regulamentados através de acordos

políticos celebrados com participação ativa do STF9. O STF também tem agido

estimulando a exploração das ferramentas de controle concentrado de

constitucionalidade e das ações de sua competência originária (como bem

retratado no relatório aqui debatido), além de estar se encaminhando para uma

9 Em 2004 e 2009, as cúpulas dos três poderes celebraram os chamados Pactos

Republicanos, que deram origem a uma série de medidas legislativas que vem transformando significativamente o modo de funcionamento do Judiciário brasileiro e, em especial, do Supremo Tribunal Federal. Foram esses acordos que viabilizaram a regulamentação, entre outras coisas, da repercussão geral e da súmula vinculante.

reinterpretação da finalidade do controle difuso de constitucionalidade, através

da chamada “abstrativização” da via difusa (DIDIER JÚNIOR, 2006)10.

Essas manobras são apenas alguns exemplos de como a ação

política do STF tem se direcionado no sentido de uma clara mitigação da

ênfase do tribunal na tarefa de atuar como corte recursal de ultima instância, tal

como previsto originalmente na Constituição Federal de 1988, tendência que

vem se confirmando sob a forma de uma mudança bastante significativa no

quadro de demandas submetidas à apreciação do STF (BRASIL, 2010, p. 35).

A vinculação da pesquisa a esse projeto político-ideológico não seria

um problema se esse engajamento tivesse sido manifestado no trabalho,

constituindo o seu marco teórico. Porém, na medida em que a pesquisa busca

adotar uma perspectiva empírica, e não dogmática, trata-se de uma deficiência

grave essa falta de transparência com relação aos parâmetros políticos que

guiam as análises dos dados.

Essa omissão se torna ainda mais grave na medida em que existem

sérias razões para se questionar o potencial democratizante da concentração

do controle de constitucionalidade. Recente pesquisa mostrou que as ações

diretas de inconstitucionalidade, em que pese frequentemente caracterizadas

como espaço privilegiado de discussão das “grandes questões constitucionais

do país” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 1151), têm sido pouco

efetivas na defesa de direitos e garantias fundamentais e demasiadamente

focadas em questões formais, quase sempre ligadas “[...] à garantia das

competências da União e da aplicação aos estados do desenho institucional

definido pela Constituição de 1988 para o nível federal” (COSTA et al., 2010, p.

42).

Dessa forma, o movimento de transformação institucional abraçado

pela pesquisa da FGV deve ser encarado com cautela, tanto do ponto de vista

acadêmico, pelo seu caráter velado, quanto do ponto de vista da sua

confirmação prática, uma vez que seu valor é devido mais a um senso comum

10

Mesmo na via difusa, o STF vem se valendo de tal via processual mais para fixar uma tese jurídica abstrata sobre determinado tema do que para fornecer uma solução para a controvérsia entre as partes litigantes. “A análise incidental da constitucionalidade, por sua vez, passa a ser feita em tese, embora por qualquer órgão judicial. É o que acontece quando se instaura o incidente de inconstitucionalidade perante os tribunais de segunda instância, em que a análise da questão constitucional tem sido feita em tese vinculando o tribunal a adotar o mesmo posicionamento em outras oportunidades” (MONTEIRO, 2009).

teórico dos juristas11 do que a uma análise séria sobre o funcionamento dos

mecanismos de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil. Seu

aparecimento deve servir, também, para mostrar que o STF como um agente

político que, distante da figura passiva idealizada por Montesquieu, sabe

identificar o valor do saber acadêmico para alimentar suas pretensões

institucionais na democracia brasileira.

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11

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