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1 A contribuição da cultura indígena e africana na formação étnica e cultural dos habitantes da Serra do Machado no município de Itatira José Vandeir Torres Viana Contexto histórico, político e econômico O município de Itatira está localizado na microrregião sertões de Canindé, com área de 783,347 Km 2 , sua população atual é de aproximadamente 18 894 habitantes, segundo dados do IBGE 2010. Faz limites ao Norte e Leste com o município de Canindé, ao Sul faz limites com Madalena, a Oeste com o município de Santa Quitéria. Fica à 176 km da capital cearense. Uma parte do território do município de Itatira fica em cima da Serra do Machado, que antes era conhecida pelos indígenas como Serra da Samambaia, e a outra parte situa-se na depressão sertaneja. Nesta serra nascem três importantes bacias hidrográficas do Ceará, que são as bacias do Banabuiu, Curu e Acaraú. Seguindo os caminhos desses rios populações nativas e colonizadores portugueses povoaram essa região. Quando os colonizadores portugueses chegaram por esta região a Serra ganhou novos nomes. A parte que foi desbravada pelo coronel Jerônimo Machado Freire passou a ser chamada de Serra do Machado, e o lado que foi explorado por Antônio Ferreira Braga ficou conhecida com Serra do Braga. Com o passar do tempo a denominação Serra do Machado se sobrepôs as demais e hoje toda essa serra é conhecida por esse nome. Após o coronel Jerônimo Machado Freire ter desbravado essas serranias e ter iniciado o conflito indígena-colonizador, outros bandeirantes se aventuraram por ela e estabeleceram vários sítios. O primeiro deles foi o Sítio São Gonçalo de Antônio José de Sousa, depois o Sítio São Pedro fundado por Inácio Alves Guerra, o filho deste, Antônio Alves Guerra fundou o Sítio Belém onde foi construída a capela no ano de 1870 em homenagem a Menino Deus. Também são desse mesmo período os Sítios Jacu de Antônio de Paula Tavares e Olho D`água do coronel Antônio José Veloso.

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A contribuição da cultura indígena e africana na formação étnica e cultural dos habitantes da Serra do Machado no município de Itatira

José Vandeir Torres Viana

Contexto histórico, político e econômico

O município de Itatira está localizado na microrregião sertões de Canindé, com

área de 783,347 Km2, sua população atual é de aproximadamente 18 894

habitantes, segundo dados do IBGE 2010. Faz limites ao Norte e Leste com o

município de Canindé, ao Sul faz limites com Madalena, a Oeste com o

município de Santa Quitéria. Fica à 176 km da capital cearense.

Uma parte do território do município de Itatira fica em cima da Serra do

Machado, que antes era conhecida pelos indígenas como Serra da

Samambaia, e a outra parte situa-se na depressão sertaneja. Nesta serra

nascem três importantes bacias hidrográficas do Ceará, que são as bacias do

Banabuiu, Curu e Acaraú. Seguindo os caminhos desses rios populações

nativas e colonizadores portugueses povoaram essa região.

Quando os colonizadores portugueses chegaram por esta região a Serra

ganhou novos nomes. A parte que foi desbravada pelo coronel Jerônimo

Machado Freire passou a ser chamada de Serra do Machado, e o lado que foi

explorado por Antônio Ferreira Braga ficou conhecida com Serra do Braga.

Com o passar do tempo a denominação Serra do Machado se sobrepôs as

demais e hoje toda essa serra é conhecida por esse nome.

Após o coronel Jerônimo Machado Freire ter desbravado essas serranias e ter

iniciado o conflito indígena-colonizador, outros bandeirantes se aventuraram

por ela e estabeleceram vários sítios. O primeiro deles foi o Sítio São Gonçalo

de Antônio José de Sousa, depois o Sítio São Pedro fundado por Inácio Alves

Guerra, o filho deste, Antônio Alves Guerra fundou o Sítio Belém onde foi

construída a capela no ano de 1870 em homenagem a Menino Deus. Também

são desse mesmo período os Sítios Jacu de Antônio de Paula Tavares e Olho

D`água do coronel Antônio José Veloso.

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Até meados do século XX, o povoado que deu origem a sede do município de

Itatira, era chamado de Belém do Machado. Com o decreto lei de número 1 114

de 30 de dezembro de 1943 este nome foi substituído por Itatira. Segundo

publicações oficiais Ita significa pedra ou terra e tira espigões ou alta, a

redundância mais próxima da realidade geográfica desse município é que este

topônimo venha significar terra alta, fazendo referência à região serrana1.

Por muito tempo a região que hoje compreende a Serra do Machado pertenceu

ao território do município de Canindé. Por outro lado a Região onde hoje fica os

Distritos de Cachoeira, Bandeira, Morro Branco e Lagoa do Mato ficavam

dentro do território de Quixeramobim. Por vezes essas duas partes juntas

passaram, por lei, a fazer parte só de Quixeramobim, em outro momento só de

Canindé2.

Com o crescimento de Belém do Machado e de Lagoa do Mato esta região

começa a ganhar importância econômica e política. Pessoas influentes

politicamente desses dois povoados começaram a buscar a emancipação

política desta região. Com o apoio de alguns políticos de Quixeramobim e a

contra gosto de outros políticos quixeramobienses conseguiram tornar Itatira

um município no dia 22 de novembro de 19513.

Formada pelo tripé europeu, índio, africano a população de Itatira e a de muitos

municípios brasileiros traz a marca da miscigenação. Esta por sua vez, se

formou no conflito étnico-racial onde uma raça dita superior “branca” impôs sua

religião, suas leis, regras, filosofia de vida e dominou nativos e negros africanos

sob égide da escravidão.

Como bem frisa Michel de Certeau4 “a tática é arte do fraco” diante do domínio

português, indígenas e africanos escravizados, usaram esta arte para

preservar suas culturas, cultuar suas divindades e resistir à crueldade do

sistema escravocrata. É dessa maneira que vamos encontrar resquícios da

cultura africana e indígena presente nas práticas cotidianas de nossa gente.

A isso esse trabalho se propõe evidenciar os aspectos da cultura indígena e

africana presente no cotidiano de nosso povo. Para isso resgata toda a

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trajetória histórica desses povos pontuando sua participação no crescimento

econômico, cultural, político e social do município de Itatira.

As pinturas rupestres e as machadinhas de pedra polida

Muito antes dos colonizadores europeus povoarem a Serra do Machado o

homem pré-histórico tratou de registrar sua passagem nesta região através das

pinturas rupestres. Essas pinturas são encontradas na parte oeste da Serra do

Machado, distante pouco mais de 5 km da sede deste município. São várias

pinturas zoomórficas e grafismos puros dispostos aleatoriamente na parte

frontal de uma rocha. Elas ficam bem próximas a um olho d’água, isso sugere

que esse local tenha sido utilizado como habitação dos povos nativos, mesmo

que temporária, ou talvez lugar de culto perto da aldeia do grupo.

Historicamente as machadinhas de pedra polida não estão relacionadas a

nenhum povo em especial, elas aparecem praticamente em todo o mundo com

formas e feições variadas. A confecção desse instrumento está ligada ao

Paleolítico, período da Pré-história. Mas há referências historiográficas de que

quando os colonizadores europeus chegaram ao Brasil, no século XVI

encontraram tribos indígenas se utilizando de tais machadinhas de pedra. Elas

tinham formas e tamanhos variados, além de serem usadas para diversos fins.

Algumas machadinhas eram chamadas de batedores, usados para quebrar

coquinhos, sementes e ossos para o aproveitamento do tutano. Outras eram

usadas em combates ou na derrubada de árvores. Em algumas tribos

indígenas só o chefe podia conduzir consigo uma machadinha5.

Em muitas residências em cima da Serra do Machado e nos Distritos do

município de Itatira há pessoas que guardam pedaços de pedra polida nas

estantes de suas casas ou utilizam como peso para papel. Poucos sabem do

significado histórico desse pedaço de rocha. Alguns chamam de corisco á

essas machadinhas. Essa foi uma história que se criou para explicar a origem

dessas pedras polidas. Dizia a lenda que o corisco se formava quando um raio

atingia o chão, e que quem encontrasse tal pedra teria um atraso na vida

motivo pelo qual as pessoas que encontravam essas pedras atiravam-na o

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mais longe que pudesse. Já as pessoas que não tiveram conhecimento dessa

lenda levavam para suas casas e guardavam com maior cuidado.

A arte rupestre e as machadinhas de pedra polida são os sinais da presença do

homem pré-histórico na região onde hoje está localizado o município de Itatira.

Portanto a ligação dos itatirenses com os povos nativos já vem desde a pré-

história.

Os povos indígenas da Serra do Machado

Segundo a tradição oral os índios Kanindé e Jenipapo foram os primeiros

habitantes da Serra do Machado. Segundo esses relatos o Serrote Jacu,

situado no interior desta serra era morada desses grupos indígenas6. As louças

com características indígenas como potes, telhas, jarras e os fusos de barro

encontrados por populares no quintal de casa, nas roças ou mesmo próximo

das estradas derrubam por terra toda e qualquer dúvida da presença de índios

por essa região.

A lenda do “Buraco da princesa” é mais uma prova da presença indígena na

Serra do Machado. Reza a lenda que uma princesa vivia num buraco, que

segundo populares era uma enorme gruta, quem quisesse desencantá-la teria

que entrar na gruta, correndo o risco de não mais voltar. Deveria levar consigo

alguns objetos que para serem arremessados em direção ao fundo do buraco.

Toda vez que o objeto era arremessado a princesa aparecia pegava o objeto e

se dirigia mais para o fundo da gruta, o herói deveria seguir seus passos

sempre arremessando um objeto todas as vezes que não visse mais a

princesa, quem conseguisse ir até o final desencantava a princesa e casaria

com ela.

Segundo populares essa gruta existiu de fato. Contam que ela tinha três salas

com espaço amplo. Outros afirmam que quando eram meninos costumavam

brincar de esconde-esconde nas salas da gruta. Alguns amigos se reuniam

pegavam os instrumentos musicais e iam tocar e dançar no interior da gruta.

Depois que foi feito a pavimentação das ruas da cidade de Itatira a gruta foi

soterrado, mas muitos ainda contam as histórias daquele lugar cheio de

mistério.

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Os Kanindé e Jenipapo fazem parte do grupo tapuia. Este termo se refere aos

índios que viviam no sertão ou nas serras do Nordeste ao contrário de seus

inimigos, os índios tupi, que viviam próximo ao litoral. Além dos Kanindé e

Jenipapo também eram Tapuias os Anassés, Guanassés, Rerius, Paiacus,

Icós, Calabaços, Quixelôs, Cariris, Jucás dentre outros7.

Renomados pesquisadores da história das tribos indígenas do Ceará afirmam

que os Kanindé e os Jenipapo eram parentes próximos e falavam a mesma

língua. Em muitas ocasiões aparecem juntas na luta contra os invasores

portugueses, em outros momentos aldeados na mesma missão.

Os Jenipapos foram chamados assim devido ao costume de untarem o corpo

com a tinta do jenipapo, planta típica do sertão. Os Kanindé, segundo alguns

historiadores, fazem parte de um ramo dos Tararius, grupo tapuia que

pertencia aos Cariris. Para estes pesquisadores os Jenipapos também teriam

esta mesma origem8.

Para outros estudiosos das nações indígenas, a origem histórica da etnia

Kanindé remonta ao chefe Kanindé, principal da tribo dos Janduins, que liderou

a resistência de seu povo no século XVII, obrigando o então rei de Portugal a

assinar com ele tratado de paz, firmado em 1692, mas descumprido da parte

dos portugueses. Seus descendentes passaram a ser conhecidos como

Kanindé, alusão ao chefe e a ancestralidade9.

Os povos tapuias do sertão cearense viviam pelas cabeceiras do rio Curu e

pelas margens dos rios Quixeramobim e Banabuiu, defendendo suas terras dos

invasores portugueses e lutando contra nações inimigas. Nestas lutas contra os

invasores portugueses eles atacavam as vilas e fazendas, furtavam gados dos

fazendeiros que ocupavam suas terras, tocavam fogo nessas propriedades

espalhando o medo e o terror pela região. Um exemplo disso foi o assalto a vila

de Aquiraz, por volta de 1726, que causou a morte de muitos colonos e

moradores10.

Devido ao ataque dos índios à Vila de Aquiraz as tropas do governo acossaram

os índios Kanindé e Jenipapo que fugiram para outras regiões fora do alcance

das armas dos brancos. Muitos deles se refugiaram em igrejas da região e

pediram proteção aos padres missionários que nada puderam fazer11.

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Os que conseguiram fugir espalharam-se pelo sertão e um desses grupos

vieram se refugiar em uma das nascentes do Rio Banabuiu, na Serra do

Machado. Esses tapuias não acreditavam mais ser possível viver em paz

depois de tantos conflitos e tantas mortes e preferiram se embrenhar pelo

sertão procurando um lugar mais isolado para viver em paz. Chegaram à Serra

do Machado na primeira metade do século XVIII e possivelmente só foram

desalojados no início do século XIX, com a chegada dos colonizadores

portugueses.

Em busca de terras férteis para plantar e criar seus gados e fugindo da

escassez de água no sertão os colonos portugueses que viviam nas

proximidades da Serra do Machado, nos sertões do Acaraú, de Canindé ou de

Quixeramobim, subiram a serra. Os índios Jenipapo e Kanindé acostumados a

lutar contra os colonos portugueses pegaram nas armas mais uma vez para

defender suas terras. A luta foi mortífera, mas as armas dos portugueses eram

superiores às dos nativos que não tendo outra alternativa fugiram.

Muitos dos sobreviventes indígenas da guerra contra os colonizadores foram

pegos “a dente de cachorro” e possivelmente foram escravizados por estes.

Populares utilizam tal expressão se referindo a parentes distantes que só se

renderam quando não havia mais possibilidade de escapar e que os

colonizadores utilizaram inclusive cães para capturá-los.

Os sobreviventes que conseguiram fugir se juntaram aos seus parentes na

Serra da Gameleira no sertão de Canindé, outros foram mais longe e se

estabeleceram no Maciço de Baturité, no Sítio Fernandes no município de

Aratuba. Nessas duas comunidades vivem famílias que assumiram

recentemente sua identidade de índio Kanindé.

No município de Itatira não existe nenhum grupo de pessoas que se assumam

como descendentes da etnia Kanindé ou Jenipapo. Mas a herança indígena

está evidente nos traços fisionômicos e nas manifestações culturais da

população desse município.

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A escravidão na Serra do Machado A Serra do Machado se insere no contexto do povoamento dos sertões de fora,

feito por bandeiras pernambucanas e baianas. Estes povoadores seguiam os

cursos dos rios e estabeleciam-se às suas margens. Muito deles, por falta de

terras no sertão, subiam as serras e lá se estabeleciam. Em cima da Serra

supracitada a produção de café, cana-de-açúcar e algodão além da criação de

gado foram a base da economia dessa região no início de sua ocupação. A lida

com o gado geralmente era feita por índios ou descendentes destes, já

trabalho nas lavouras eram realizado por escravos mestiços, acaboclados,

pretos ou africanos.

Os africanos eram poucos e geralmente eram provenientes de Angola ou do

Congo12, a maioria dos escravos eram descendentes de africanos comprados

nas fazendas ou engenhos de Pernambuco, da Bahia ou do Rio Grande do

Norte. Um exemplo da presença de escravos africanos nesta região está no

inventário do capitão José dos Santos Lessa que pediu uma sesmaria na

ribeira do Rio Barrigas, extremando ao Norte com a Serra do Machado, consta

em seu inventário, de 1834, que tinha sete (7) escravos, um deles era Pedro,

negro, de Nação Angola, de idade mais ou menos 35 (tinta e cinco) anos,

avaliado por 250$000 (duzentos e cinqüenta mil réis).13. O inventário de Antônio de Paula Tavares, morador do Sítio Jacu, no interior da

Serra do Machado demonstra que a maioria dos escravos que vieram para

essa região eram descendentes de africanos:

“Na declaração de bens, o procurador afirma que o Sr. Antônio de Paula

Tavares deixou para sua esposa a Sra. Victorina Maria de Paula, cinco

escravos: Uma escrava por nome Benedita de 38 anos, preta, custando

800$000; outro escravo de nome Luiz, criolo, com 12 (doze) anos,

valendo 800$000; outra escrava de nome Bernardina, acaboclada, com

50 anos de idade, esta escrava prende uma ação de liberdade que se

acha em grau de apelação ainda mal decidida, por isso só valendo

500$000; um quarto escravo também de nome Luiz, cabra, com 44 anos

de idade, custa 800$000; mais um escravo de nome Benedito, de 12

(doze) anos, acaboclado, este escravinho prende uma ação de liberdade

ainda mal decidida, valendo 400$00014”.

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A partir desses dados pode se dizer que estes escravos formavam

praticamente uma ou duas famílias. A escrava de 38 anos de nome Benedita,

poderia ser a mãe de Benedito de 12 anos, pois ambos prendiam uma ação de

liberdade e tinham nomes semelhantes. Bernardina de 50 anos poderia ser a

mulher de Luiz de 44 anos e serem os pais de Luiz de 12 anos. Pode-se

afirmar também que esses escravos eram descendentes de africanos dado a

nomenclatura referente a sua raça acaboclado (a), cabra, preto (a), criolo (a)

isso mostra a miscigenação que ocorreu nesta região entre negros, índios e

brancos.

Esses escravos geralmente não eram utilizados na lida com o gado mais eram

indispensáveis em muitas outras obrigações como, por exemplo, no cultivo do

café, legumes e algodão. Eram poucos, por ter um custo elevado e ser um

investimento bastante arriscado dado à facilidade de fuga ou o não

aproveitamento da força de trabalho devido às incertezas no estabelecimento

da fazenda e da produtividade numa região tão castigada pelas secas.

Por ocasião do povoamento da Serra do Machado o Brasil sofria pressão da

Inglaterra para acabar o Tráfico de escravos africanos, isso intensificou o

tráfico interprovincial trazendo para o Ceará e consequentemente para esta

região muitos escravos das províncias de Pernambuco, Bahia e Rio Grande do

Norte, isso porque foram dessas províncias de onde vieram a maioria dos

bandeirantes que povoaram essa região.

Sinais da cultura afro e indígena em Itatira A pesquisa sobre a contribuição dos índios e escravos africanos ou

descendentes destes na formação étnica e cultural da população que habita o

município de Itatira ainda está no seu início, mas já é possível destacar alguns

elementos.

Visitando as comunidades em cima da Serra do Machado e próximas a ela no

sertão pode-se perceber pelos traços fisionômicos a descendência africana ou

indígena dessa população. O que salta aos olhos não é só o fato de serem

negros ou terem características nativas, mas a peculiaridade dos seus

costumes, hábitos alimentares, as festas regrada a muita cachaça, confusões,

a paixão pelo batuque do pandeiro, do triângulo, da sanfona e do zabumba.

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O primeiro elemento é notável em várias comunidades deste município desde

os nomes dos lugares que geralmente são de plantas ou de animais nativos

como Maniçoba, Oiticica, Tatajuba, Juá, Pitombeira, Trapiazeiro, Jacu, Piaba,

Curimatã, Macaco, Raposa, Quati, nomes referentes as fontes de água ou

riachos como Olho D`Água, Barriga, Cachoeira, Cavalo além dos alimentos de

origem indígena como a farinha de mandioca, a macaxeira, o cuscuz de milho,

frutas silvestres, animais de caça, mel de abelha e tantos outros. O costume

dos chás com plantas medicinais, as crenças de que o espírito do morto pode

voltar, que alguns animais invertebrados trazem sorte ou simbolizam fartura

tudo isso nos liga diretamente a cultura indígena.

Além de tudo isso que já foi mostrado temos os relatos de populares que dão

conta da lenda do “Buraco da Princesa” que possui fortes conotações

indígenas. Muitas pessoas contam que a bisavó era descendente de índio, não

sabe dizer a qual grupo étnico pertencia mas lembram que o pai ou a mãe

falou. Outros falam da história de pessoas que foram pegas a dente de

cachorro pelos colonizadores.

Outro indício da presença de índios nessa região são as louças de barro como

fusos, panelas, potes, telhas, jarras encontradas enterradas em muitos locais

da Serra do Machado ou no sertão, elas geralmente estão quebradas e isso

comprova outra história de populares que segundo eles ouviram falar que os

índios quando deixaram a Serra saíram quebrando tudo o que tinham

construído. Esse costume de quebrar, incendiar, destruir seus feitos, soterrar

fontes de água antes de fugir da perseguição do colonizador era prática comum

nas tribos indígenas, pois era uma estratégia de luta.

Um exemplo desse fato foi o grupo indígena que habitava o Pico do Jacu na

Serra do Machado e quando foram perseguidos pelos colonizadores aterraram

uma fonte de água que lá existe conhecida como olho d`água da onça. Essa

fonte só foi descoberta muito tempo depois porque alguns descendentes

indígenas que não conseguiram escapar na fuga relataram que existia esse

olho D’Água, mesmo assim o local onde ele está aberto hoje não é mesmo de

antes.

O segundo elemento está presente em todas as comunidades desse município

em umas menos e em outras mais. É o caso da comunidade Santana

localizada na parte Norte da Serra do Machado em que a maioria de sua

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população são negras ou com aspectos indígenas. Nesta comunidade o

proprietário mais antigo abrigou muitos negros que após o fim da escravidão

saíram de suas antigas fazendas ou sítios em busca de um rancho e de

melhorias de vida.

No sítio Jacu, onde Antônio de Paula Tavares deu conta em seu inventário de

1870 de possuir 5 escravos, existem resquícios da cultura africana. A principal

delas foi o costume de jogar cacete e faca. Tanto os negros quanto os brancos

eram mestres nesta arte. Na cultura africana o cacete fazia parte do maculelê

que segundo José, citando Balbino do Carmo Cabral, é uma dança/luta com

música própria que sempre é um desafio a luta ou um lamento às vítimas de

um massacre, é feita com pedaços de madeira logo após é substituída por

facão15.

É no sítio Jacu que encontramos um pilão de 12 bocas sendo 6 de cada lado

do tronco de madeira que mede aproximadamente quatro metros. A mão-do-

pilão mede quase dois metros e era utilizado por escravos no trato do café, na

falta da bolandeira que moía o café movida por bois os escravos de seu

Antônio de Paula Tavares pilavam manualmente o café.

Os escravos de Antônio de Paula Tavares depois do fim da escravidão

continuaram vivendo no Sítio onde constituíram família e hoje seus

descendentes continuam morando por lá ou em sítios vizinhos.

Ao pé da Serra do Machado, ao sudoeste, há uma comunidade denominada

Laranjeira. Populares afirmam que no passado aquele lugar foi um quilombo.

Nenhum estudo antropológico foi feito nesta comunidade, mas quem passa por

lá logo percebe que é uma comunidade negra. Os homens têm traços

fisionômicos de africanos são altos, lábios grossos e cabelos pixains. As

mulheres têm traços afro-indígenas baixa estatura, pele negra e cabelos lisos.

As pessoas mais velhas desta comunidade afirmam que lá já existiu terreiro de

macumba, mas não sabem dizer se atualmente existe alguém que seja adepto

de alguma religião de matriz africana.

Um fato que chama atenção nesta comunidade é a baixa escolaridade da

maioria de seus habitantes. A maioria dos adultos são analfabetos, a maior

parte dos jovens não concluíram o Ensino Médio. E as crianças e adolescentes

que hoje estão estudando têm muita infrequência, notas baixas e muito deles já

desistiram antes de concluir o Ensino Fundamental.

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Em todos os lugares desse município há a presença de afro-descendentes.

Alguns são descendentes de escravos que viviam nas fazendas, sítios e

logradouros desse município, outros são filhos de negros livres que moravam

em outra microrregião ou estado e que com o fim da escravidão saíram a

procura de trabalho fora da região onde seus parentes foram escravos. E por

ser uma área com bastante fazendas e sítios e de localização privilegiada

Itatira foi receptora de muitas levas de pessoas a procura de trabalho, sendo a

maioria delas formada por ex-escravos ou descendentes destes a procura de

serviços e de um lugar para criar seus filhos.

Estes afro-descendentes que chegaram em nossa região, juntando-se aos que

já se encontravam por aqui mais os indígenas que sobreviveram ao colonizador

formaram uma população mestiça e trabalhadora. Não é por acaso que com 3

anos de emancipação política Itatira já despontava entre os 5 maiores

produtores de algodão do Ceará16. Isso se deveu principalmente ao espírito

guerreiro de nossa gente. Os cabras, criolos, pretos, acaboclados em minoria

os brancos cantarolando enquanto trabalham, revivendo os costumes dos

escravos nas lavouras de café e cana-de-açúcar, derrubam a mata, plantam,

capinam e colhem o algodão, carregam as trouxas de algodão na cabeça da

roça até a fazenda de lá o produto era levado para ser vendido em

Quixeramobim.

O vigor dos itatirenses para o trabalho vem de sua origem afro-indígena esses

povos conquistaram seu espaço na sociedade através do trabalho, da arte, da

música, danças, crenças, culinária e tantos outros fatores que ajudaram a

preservar a cultura afro e indígena em nosso município.

Ainda não foi possível identificar se houve ou não alguma irmandade do

Rosário dos homens pretos como as de Sobral e da Lapa17, mas já foi possível

perceber em muitas famílias do sertão itatirense a devoção a nossa Senhora e

o costume, típico das irmandades, de rezarem o terço, as novenas, cantar

ladainhas e fazer leilões.

Esta pesquisa tem muito a contribuir para o resgate da cultura afro-indígena no

município de Itatira. Pois geralmente o que se ver são folclorizações sobre as

culturas e os costumes desses povos. O dia do índio nada mais é do que uma

forma de folclorizar os costumes, as vestimentas e os rituais indígenas. O dia

da consciência negra se presta ao mesmo papel. O que é lamentável, pois

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numa região tão rica em sinais da cultura indígena e africana o mínimo que se

poderia fazer era dar visibilidade e resgatar os valores culturais desses povos,

não há necessidade de se estereotipar tais culturas, pois quem olhar vai

perceber que somos descendentes de índios e de negros africanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 Enciclopédia Municípios do Ceará, 1959. 2 Idem. 3 Idem. 4CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas . A invenção do cotidiano:

Estratégias e táticas. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. P.101.

5RYDÉN, Stig, Machados –âncoras brasileiros (1) Revista Trimensal do

Instituto do Ceará. Fortaleza. p. 87-97, 1966.

6Do Santuário da São Francisco. Dados históricos sobre a Serra do Machado.

Revista Trimensal do Instituto do Ceará. Fortaleza. p. 221-224. 7STUART, Carlos Pereira. As tribos indígenas do Ceará. Revista Trimensal do

Instituto do Ceará. Fortaleza. p. 39-54, 1926. 8 Idem. 9 Idem. 10 Idem. 11 Idem. 12 FERREIRA SOBRINHO. José Hilario. O Ceará no tráfico interprovincial –

1850- 1881. Dissertação de mestrado, UFC – 2005.

13 INVENTÁRIO de Joaquim dos Santos Lessa – Arquivo Público Estadual do

Ceará – Cx. Documentos do Cartório de Quixeramobim – Inventários de

1834. 14 INVENTÁRIO de Antônio de Paula Tavares, 1870 – Fórum da Comarca de

Canindé, arquivo de documentos antigos.

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13 15 CABRAL. Balbino do Carmo. Raízes culturais: aspectos das culturas e

manifestações populares do Brasil. Rio de Janeiro. S: ed., 1992.

16LIMA, Antônio Cláudio Ferreira. A construção do Ceará: temas de histórias

econômicas. Fortaleza: Instituto Albanisa Sarasate, 2008. 161p. Coleção

Anuário do Ceará.

17 SOUSA. Raimundo Nonato Rodrigues de. Rosário dos Pretos: Irmandade e

Festa, 1854-1884. Dissertação para Mestrado. p. 64.