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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
LUCAS AUGUSTO FINKLER SCHMIDT
DO HOMEM AO MITO, DO MITO AO HOMEM:
Análise comparativa da representação de Luiz Inácio Lula da
Silva nos filmes Lula - Filho do Brasil e Peões
Porto Alegre
2013
LUCAS AUGUSTO FINKLER SCHMIDT
DO HOMEM AO MITO, DO MITO AO HOMEM
Análise comparativa da representação de Luiz Inácio Lula da Silva
nos filmes Lula – Filho do Brasil e Peões
Trabalho de Conclusão de Curso de Publicidade e Propaganda com Ênfase em Marketing, apresentado à disciplina de TCC II.
ORIENTADOR: Profa. Dra. Flávia Seligman
Porto Alegre
2013
ATA DE AVALIAÇÃO DO TCC PELA BANCA EXAMINADORA
NOTA FINAL: ________________________
NOME DO ESTUDANTE:
_____________________________________________________
TÍTULO DO TCC:
___________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
NOTA ATRIBUÍDA AO TCC: _________ (______________________________)
Parecer da Banca Examinadora:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Data de Realização da Banca Examinadora: ________/_______ de 200______.
Professor(a) Orientador(a): ____________________________ Ass.: ____________________
Professor(a) Convidado(a): ____________________________ Ass.: ____________________
Professor(a) Convidado(a): ____________________________ Ass.: ____________________
RESUMO
O presente trabalho realiza uma análise fílmica da construção do personagem de Luís
Inácio Lula da Silva nos filmes Peões (2004) e Lula, Filho do Brasil (2010). Ambos filmes
retratam o líder político através de formas cinematográficas distintas, com objetivos
diferentes e desenvolvidos em contexto históricos próprios. Com as técnicas de análise
fílmica sócio-histórica de Vanoye e Goliot-Lété (1994), juntamente com os campos
semânticos de Bordwell (1995) foi possível detalhar os elementos presentes em cada filme
que influenciam na criação do personagem Lula. Através da escolha de temáticas que
permeiam ambos filmes, assim como suas estruturações narrativas baseadas na Jornada do
Heroi presente na obra de Vogler (1998), o trabalho mostra um panorama de representações
do Lula personagem e sua relação com o Lula da vida real.
Palavras-chave: Cinema. Política. Jornada do heroi. Personagem. Representação.
ABSTRACT
This paper makes a film analysis of the construction of the character Luís Inácio Lula
da Silva in the films Peões (2004) and Lula, Filho do Brasil (2010). Both movie pictures
portraits the political leader through distinctive cinematic forms, with different objectives,
developed in unique historical contexts. Using the techniques of social-historical film analysis
by Vanoye and Goliot-Lété (1994), alongside the semantic fields by Bordwell (1995), I was
possible to detail the elements that are present in each film that influences in the creation of
the character Lula. Through the choice of themes that permeate both films, as well as their
narrative structures based upon the Hero’s Journey present in the work of Vogler (1998), this
academic work shows a panorama of representations of the character Lula and his relation
with the real life Lula.
Keywords: Cinema. Politcs. Hero’s Journey. Character. Representation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
2 CINEMA 7
2.1 Os elementos fundamentais do cinema 7
2.2 Diferenças entre cinema de ficção e cinema de não-ficção 11
2.3 A narrativa no cinema de não ficção 13
2.4 A narrativa no cinema de ficção 16
3 TRAJETÓRIA DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA – DO SERTÃO AO
PLANALTO CENTRAL 22
4 LULA NO CINEMA BRASILEIRO 35
5 PEÕES E LULA – FILHO DO BRASIL 49
6 ESTRATÉGIA METODOLÓGICA 56
7 ANÁLISE DO PERSONAGEM LULA NOS FILMES PEÕES E FILHO DO BRASIL
61
7.1 Contexto de produção de Peões e Lula - Filho do Brasil 62
7.2 Campos Semânticos 65
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 101
1 INTRODUÇÃO
Depois de concorrer pela quarta vez consecutiva à presidência do Brasil, o candidato
do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, sai vitorioso das eleições do ano de
2002. Garantindo sua vitória com 61,3% dos votos válidos no segundo turno, passou para a
história brasileira como o primeiro presidente de origem operária a assumir a presidência do
país. Por mais impressionante que esse feito tenha sido, foi apenas mais um capítulo na vida
“novelística” do agora ex-presidente (DE GARANHUNS..., 2002).
Desde muitos anos antes da primeira campanha presidencial de 1989, Lula já era uma
figura conhecida no âmbito nacional. Líder sindical, Lula capitaneou inúmeras greves de
metalúrgicos no setor industrial automobilístico do ABC paulista, de 1978 até 1980. Em
época de ditadura militar, as greves foram encaradas como ilegais e subversivas, e dessa
forma os metalúrgicos sofreram inúmeras pressões e até intervenção federal nos sindicatos.
Lula foi preso juntamente de outros dirigentes sindicais por 30 dias. A polêmica da
intervenção federal na greve e a gravidade da paralização dos trabalhadores metalúrgicos, que
na época compunham um dos maiores setores da economia brasileira, chamou a atenção da
imprensa e da sociedade brasileira. Desde então, Lula já foi reconhecido como líder e
representante da massa trabalhadora que se organizava para fazer suas reinvindicações de
classe (ABC DE LUTAS, 2009).
Logo em seguida às greves, Lula e outros de seus pares nas lutas sindicais viram a
necessidade da classe trabalhadora se organizar politicamente para exigir mudanças e
melhoras para si e para o Brasil. Assim nasce o Partido dos Trabalhadores. Ele era uma
novidade no cenário político. Apesar de o Brasil possuir outros partidos de esquerda de
tradição, como o Partido Comunista Brasileiro, nenhum conseguiu se reformular após a
ditadura proibí-los e perseguí-los. O PT conseguiu agremiar muitas forças e movimentos da
sociedade civil, contemporâneos à época da formação do partido, em torno de sua plataforma
política. Dentre elas, juntamente aos trabalhadores sindicalizados se juntaram exilados e
presos políticos da ditadura militar e as comunidades de base da igreja católica progressista,
simpatizantes da Teologia da Libertação (SAIBA..., 2006).
Já eleito presidente, Lula tratou de governar para os pobres, mas sem esquecer dos
ricos e dos grupos de poder já estabelecidos no cenário brasileiro. Os anos do Lula no poder
são classificados pelo economista e cientista político André Singer (2012) como um
“reformismo lento”. Nesse processo, o Estado brasileiro verdadeiramente mudou seu foco de
1
atuação, priorizando novas iniciativas, obras de infra-estrutura, desenvolvimento de um
mercado interno mais forte e criação de inúmeros programas de assistência social. Os anos
Lula e o até então decênio do partido dos trabalhadores no poder causou um deslocamento da
economia neo-liberal para um modelo neo-desenvolvimentista, inspirado nas teorias
econômicas de John M. Keynes e outros. Ainda assim, nenhuma grande reforma ou mudança
legislativa foi implementada. A estrutura burocrática do Estado foi mantida intacta. E com
ela, as práticas políticas de corrupção, apadrinhamentos, descaso com contas públicas,
fisiologismo e abuso de poder também se mantiveram semelhantes. Apesar do crescente
desenvolvimento econômico interno, a desparidade entre grandes empresários e trabalhadores
autônomos manteve-se enorme. Da mesma forma, a industrialização interna ainda compete de
forma desleal com multinacionais.
Em 2005, foi descoberto um esquema de compra de apoio parlamentar com dinheiro
público desviado, supostamente capitaneado pelo então Ministro da Casa Civil do governo de
Lula, José Dirceu. Dirceu já tinha sido presidente do partido, inclusive na época da campanha
vitoriosa de 2002. Com o escândalo, muitos ministros e homens próximos de Lula pediram
renúncia ou foram formalmente afastados de seus cargos públicos, posteriormente
respondendo como réus em tribunais. O caso foi popularizado pela imprensa como o
escândalo do Mensalão (MENSALÃO..., 2012).
O saldo da publicidade que a corrupção petista ganhou na grande mídia foi curioso.
Apesar do desapontamento de muitos militantes antigos, constatou-se em pesquisas de
opinião que o Mensalão praticamente não abalou a confiança do eleitorado em Lula. A maior
parte dos eleitores seguiu avaliando o seu governo com um dos maiores índices de aprovação
na história brasileira. Dessa forma, a reeleição em 2006 transcorreu sem grandes dificuldades
para Lula (APROVAÇÃO..., 2006).
Ao longo de toda sua trajetória pessoal e política, Luiz Inácio Lula da Silva apareceu
para o público de diversas formas. Primeiramente ele surgiu na imprensa brasileira, quando da
notoriedade das greves metalúrgicas do ABC. Depois surgiu a figura do Lula político, visto
em palanques, debates, peças gráficas e audiovisuais para campanhas eleitorais. Dentre os
meios e formas como Lula já foi registrado e representado, um dos que mais possibilitam uma
radiografia desse homem-mito é o cinema.
De acordo com Marina Soler Jorge (2011) foram produzidos inúmeros documentários
registrando o movimento grevista de 1978-1980. Dentre eles se destacam Greve!, de João
Batista de Andrade, ABC da Greve, de Leon Hirzman, e Linha de Montagem, de Renato
Tapajós, e Braços Cruzados, Máquinas Paradas, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo. Ao
2
mesmo tempo que a preocupação principal desses filmes era registrar as greves e os
movimentos de massa que ocorriam, grande parte dos filmes acaba enfocando na figura de
Luiz Inácio.
Décadas depois, outros dois documentários dão destaque à Lula, já na situação de
político conhecido, na campanha bem sucedida de 2002. O primeiro é Peões, de Eduardo
Coutinho, que cria um painel de memórias do movimento dos grevistas do ABC ao entrevistar
os anônimos que participaram das greves. Indiretamente, neste filme também surge uma
figura de Lula, que é assunto dos depoimentos dos ex-grevistas. A partir do recorte de
opiniões e visões dos entrevistados sobre a época e o papel que Lula desempenhou no
movimento, temos um apanhado de informações que podem ser interpretadas de diferentes
formas, gerando assim diferentes imagens de Lula.
Junto deste projeto do filme Peões, foi desenvolvido paralelamente outro projeto de
documentário, que registraria a campanha presidencial de 2002. Trata-se do filme Entreatos,
de João Moreira Salles. Nele, Salles acompanhou os bastidores da campanha presidencial de
Lula com bastante liberdade, priorizando o futuro presidente em momentos íntimos ou nos
bastidores da campanha, longe dos holofotes que o público já estava acostumado a vê-lo.
Assim, desfolha-se um outro Lula. Não mais um líder messiânico dos operários, Lula parece
um homem comum aspirando ao poder executivo. O mito vivo é um homem de carne e osso,
com suas certezas, incertezas e vontades (ENTREATOS..., 2004).
Um ano antes da saída de Lula do Palácio do Planalto, em 2009, é lançado mais um
filme sobre o presidente. Dessa vez o formato é inédito: um longa-metragem de ficção
baseada em sua história de vida, desde a infância até a sua prisão nas greves de 1980 e a
morte de sua mãe. O epílogo do filme cruza o tempo e mostra Lula já em 2003, tomando
posse no Palácio do Planalto. O filme gerou polêmica, sendo acusado de ser mera peça de
propaganda para o governo Lula, ajudando a solidificar sua imagem de “homem maior que a
vida”, o que na visão da oposição aumentaria a chance de eleição de seu sucessor na
presidência (AZEVEDO, 2009).
O cinema tem como natureza servir como espelho de uma sociedade. O fato de Lula
ser personagem central de inúmeros filmes demonstra que ele por si só é um assunto relativo à
cultura e à sociedade brasileira.
Esse papel de espelhar uma sociedade pode ser feito de diferentes formas. Tanto na
forma de ficção como na forma de não-ficção, há recursos narrativos aplicados que fazem um
recorte específico da realidade, formando ideologias, representações e personagens. Dentre
esses recursos, a maneira como uma narrativa pode se desenvolver é através da teoria da
3
Jornada do Heroi. Este conceito surge com o antropólogo e especialista em mitologias Joseph
Campbell em seu livro O herói de mil faces (1949). Nesta obra, Campbell descreve como os
mitos e estórias humanas possuem um grande número de padrões em comum em suas
construções narrativas e de personagens. O grande aspecto em comum seria o personagem do
herói, que precisa empregar uma jornada em busca de uma fonte de conhecimento e poderes
que o farão mudar a si e a sua sociedade. Mais tarde esta obra influenciaria roteiristas no
cinema de Hollywood, consolidando assim um padrão de criação de estórias e personagens.
Neste contexto, os filmes que trazem Lula como protagonista reforçam o aspecto do ex-
retirante enquanto um herói nacional que realizou uma épica aventura, passando por muitos
percalços, até chegar à presidência do Brasil.
Com base em todo material audiovisual que ao longo dos anos documentaram e
trouxeram diferentes visões sobre o ex-presidente Lula, o presente trabalho se propõe a
analisar e comparar dois filmes diferentes que abordam o tema. Diante do exposto, busca-se
responder: de que forma Luiz Inácio Lula da Silva é representado nos filmes Lula – Filho
do Brasil e Peões?
Partindo deste questionamento, o presente trabalho tem como objetivo principal
analisar em ambos filmes como Lula é retratado e quais elementos simbólicos formam a
figura de Lula. Além disso, como objetivos específicos esse trabalho explorará outras
questões que permeiam as duas obras audiovisuais: a) Identificar recursos narrativos
utilizados em ambos filmes que influenciam na maneira de mostrar o personagem de Lula; b)
Testar a aplicação do conceito mítico e narrativo de jornada de herói na construção de Lula; c)
Demonstrar as diferenças e semelhanças na representação de Luiz Inácio Lula da Silva num
filme de ficção e de não ficção;
A temática foi escolhida, no âmbito pessoal do autor, pelo seu interesse no audiovisual
brasileiro e nas ideologias e formas ideológicas que ele adquire conforme a época ou a visão
de um autor que decidi realizar uma obra audiovisual. Para tanto, o autor do presente trabalho
julgou que utilizar como ponto de partida uma figura nacional de grande expressão e suas
representações no meio audiovisual seria adequado para aferir como um filme pode mudar a
percepção de um indivíduo acerca de uma temática específica.
Em termos acadêmicos, o trabalho é de interesse para quem quiser ampliar
conhecimentos no campo do audiovisual em geral, especialmente no que diz respeito aos
gêneros de cinema e alguns de seus recursos narrativos. Há uma dissertação de mestrado
realizado por Caroline da Silva (2009) através da Faculdade do Vale dos Sinos (Unisinos),
“Nos Entreatos, tal como peões: do Lula operário ao Lula presidente”, que analisa a figura de
4
Lula nos filmes documentários Peões (2004) e Entreatos (2004). Apesar da análise geral e da
temática semelhantes ao presente trabalho, esse projeto possui o diferencial de explorar não
apenas filmes do gênero documentário, mas sim contrapor um filme ficcional e um filme não
ficcional, de forma a mostrar suas diferentes estéticas e como elas podem afetar o resultado
final de um filme.
Esse estudo também é academicamente interessante por perpassar por inúmeros
momentos importantes da história nacional recente, já que muito da história do personagem a
ser analisado se confunde com a história e a política do Brasil. Além disso, o presente
trabalho pode ser utilizado para pesquisas que tentam traçar quais elementos impulsionam o
sucesso de um filme ou mesmo de uma peça audiovisual publicitária. O trabalho
proporcionará reflexões sobre a maneira como um público pode reagir a diferentes obras
audiovisuais que possuem a mesma temática, mas possuem intenções, enfoques e ferramentas
narrativas diferentes.
Para a sociedade como um todo, esse trabalho traz uma busca pelas identidades sociais
e culturais que um país consegue compor para si através do audiovisual e da forma como ele
retrata a realidade do país. Segundo Bill Nichols (2005), as artes sempre falam a respeito da
sociedade em que ela está inserida, sendo ela uma obra fantasiosa de ficção ou a não ficção,
que se parece mais próxima da realidade. Dessa forma, com esse presente trabalho é possível
aferir panoramas sobre o estado da cultura brasileira e sobre as visões que o brasileiro tem de
si mesmo e dos indivíduos diferentes que compoem seu povo e sua identidade cultural.
Com base nos objetivos perseguidos pelo presente trabalho, serão desenvolvidos três
capítulos teóricos para gerar uma maior compreensão sobre o tema. O primeiro capítulo
teórico que discorre sobre o cinema, diferenças entre o cinema de ficção e não-ficção e os
elementos característicos de cada uma dessas vertentes cinematográficas. Para tanto se
debruçou principalmente sobre as obras de Bill Nichols (Introdução ao documentário, 2005) e
Fernão Ramos (Mas afinal... o que é mesmo documentário?, 2008) para o campo do
documentário, e Christopher Vogler (A Jornada do Escritor, 1998) e Leandro Saraiva e
Newton Cannito (Manual de Roteiro ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e tv,
2004) para o campo da ficção. No segundo capítulo será apresentada uma biografia resumida
de Lula, que além de contextualizar a vida política do personagem também enfoca em
momentos relevantes que foram representados nos filmes que abordam a sua vida. A trajetória
de Lula foi pesquisada com base em alguns dos biógrafos e jornalistas que desenvolveram
livros sobre Lula como Denise Paraná (Lula – Filho do Brasil, 2009), José Pinto (O que sei de
Lula, 2011) e Richard Bourne (Lula do Brasil, 2009). Por fim, o terceiro capítulo teórico
5
discorre sobre a presença de Lula no cinema brasileiro, seja na ficção ou no documentário.
Assim, será possível verificar as diferentes formas e modos pelo qual Lula já foi apresentado
ao público. Para tanto se utilizará o livro de Marina Soler Jorge (Lula no Documentário
Brasileiro, 2011).
Após os capítulos teóricos, será desenvolvido um capítulo para explanar a
metodologia de pesquisa deste projeto. Os métodos de pesquisa do trabalho foram
delimitamos pela pesquisa qualitativa, por seu caráter mais abrangente, interpretativo e não
objetivo. Os tipos de pesquisa conduzidos no trabalho são as de cunho bibliográfico e
exploratório, pois ambas permitem um aprofundamento maior sobre o assunto a ser tratado,
aclaram conceitos e fazem ser possível realizar hipóteses através da busca de informações em
bibliografias, materiais publicados e obras audiovisuais. Para a coleta de dados e interpretação
dos mesmos, serão usados conceitos de análise fílmica socio-histórica de Francis Vanoye e
Anne Goliot-Lété de sua obra “Ensaio sobre a Análise Fílmica” (1994), e o conceito dos
campos semânticos de David Bordwell(1995) para assim poder destrinchar com precisão os
recursos empregados na construção narrativa dos dois filmes a serem analisados
Por fim, o trabalho se encerra com um capítulo destinado à análise das duas obras
audiovisuais centrais do trabalho, Lula – Filho do Brasil e Peões. Neste capítulo constarão
análises individuais de cada filme, para então realizar uma análise comparativa através da
eleição de elementos narrativos e de linguagem que possam servir de comparativo entre os
filmes.
6
2 CINEMA
Nesse capítulo se discorrerá sobre o cinema, tanto como forma de definí-lo enquanto
arte e expressão humana quanto para identificar as ferramentas e elementos do qual ele se
utiliza para tecer uma narrativa cinematográfica. Para tanto também foi necessário definir suas
principais correntes e gêneros, e como elas realizam uma representação própria da realidade
em que um filme é concebido.
2.1 OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO CINEMA
Jacques Aumont (2002) deixa claro que além de uma projeção de rápidos fotogramas
em sequência, o cinema pode ser primeiramente definido por sua imagem projetada na tela.
Essa imagem conta com duas características: é um plano, bidimensional, e um quadro,
delimitado pelas laterais do espaço projetado. Este quadro é um dos primeiros materiais sobre
o qual um cineasta se debruça no seu ofício. Mesmo o cinema sendo uma arte que causa uma
impressão de movimento – movimento de elementos captados ou um movimento da própria
câmera - ele trabalha também com imagens mais ou menos estáticas. Essas imagens possuem
um valor equivalente ao quadro para a pintura ou foto para a fotografia. Desta forma, se faz
necessária a preocupação com equilíbrio e expressividade na forma de compor um
determinado enquadramento.
Devido a essa característica de quadro limitado, Aumont (2002) revela que o espaço
delimitado pelo quadro pode ser chamado de campo. Dessa forma, o campo da imagem é um
espaço imaginário sobre o qual a câmera nos revela apenas um fragmento. Por sua vez, o
restante de um cenário que não é mostrado dentro do campo de um quadro também é um
cenário imaginário, que o público supõe existir, mesmo que nunca mostrado. Esse espaço é
chamado de fora-de-campo.
O espaço do campo captado por uma câmera pode ser chamado de plano ou
enquadramento quando pensado de uma maneira exclusivamente técnica, não levando em
conta o espaço fílmico imaginário que o público mentalmente forma ao assistir um filme.
Segundo Aumont (2002, p.39) “a noção muito difundida de plano abrange todo esse conjunto
de parâmetros: dimensões, quadro, ponto de vista, mas também movimento, duração, ritmo,
relação com outras imagens”. Ou seja, plano é quando se define qual o ponto de vista que uma
câmera tomará para registrar determinada situação. Para tanto, o plano que uma câmera
7
captará muda conforme o que será enquadrado dentro do plano, qual o movimento que a
câmera está realizando, que elementos ficarão em foco ou fora de foco.
Sobre os movimentos de câmera, Aumont (2002) separa-os em dois tipos principais:
travelling e panorâmica. Sobre o travelling, Aumont (2002, p.39) revela que se trata de “um
deslocamento do pé da câmera, durante o qual o eixo de tomada permanece paralelo a uma
mesma direção”. Ou seja, é um movimento de aproximação ou afastamento de todo corpo da
câmera, sem que sua lente captadora de imagens seja apontada para diversas direções. O
movimento de panorâmica é definido por Aumont (2002, p.39) como “um giro da câmera,
horizontalmente, verticalmente ou em qualquer outra direção, enquanto o pé permanece fixo”.
Assim, é possível compreender que se trata de um movimento em que a câmera em si é
apontada para várias direções em torno de seu próprio eixo, para cima, para baixo, para os
lados, sem precisar deslocar a sua posição em um ambiente.
Somado ao elemento visual fundamental do cinema, o plano ou quadro, há inúmeras
outras interferências que podem modificar o resultado final de um enquadramento. Como já
citado por Aumont (2002) o quadro é o objeto básico do cinema e tem seu eco nas
composições da pintura e fotografia. Como tal, o quadro cinematográfico também é dotado de
harmonia, equilíbrio, composição de elementos, perspectiva, iluminação. Dependendo da
maneira com que esses elementos são utilizadas na composição de um enquadramento, pode-
se alcançar resultados dramáticos diferentes, evocando percepções e reações emocionais e
racionais do público.
Além de aspectos ligados mais diretamente ao campo enquadrado por uma câmera, há
a iluminação e a composição de cenário e objetos. Determinados objetos podem evocar ideias
na mente do público, conforme o repertório de imagens que ele possui. Um cenário fechado e
com linhas simétricas pode passar ao público uma sensação de agonia. Assim como se esse
mesmo cenário está mal iluminado, a carga dramática da agonia de um determinado
enquadramento pode aumentar. Dessa forma, é importante perceber que esses elementos de
composição de enquadramento afetam diretamente na sua percepção e significado
(AUMONT, 2002).
O cinema é uma obra audiovisual, portanto composta por uma parte visual –
determinada em geral pelo que a câmera capta – e uma parte sonora – muita mais abstrata e
variável que a imagem. O som nem sempre foi presente e vinculado à imagem na história do
cinema, tendo em vista que sua execução simultânea em filmes só se deu a partir da década de
1930.
8
Com o surgimento do cinema sonoro que reproduzia a voz humana e ambiência sonora
em sincronia com as cenas que se desenrolam na narrativa de um filme, houve uma cisão
entre os cineastas em duas linhas de teoria e prática diferentes. Majoritariamente os cineastas
acabaram incorporando o som direto ao cinema, mas a prática demorou um certo tempo para
ser estabelecida e aceita pela classe artística.
A linha que acabou se sobrepondo foi a do cinema com aplicação do som direto. Nesta
forma de cinema os filmes possuem áudio captado diretamente ou reproduzido artificialmente
para ser sincronizado com tudo que acontece em cena. Dentro dos espectros de áudio que
podemos destacar como principais estão os diálogos, os efeitos sonoros e a ambiência. Foi
possível eliminar o uso de cartelas escritas da época do cinema mudo para representar o que
os personagens dos filmes estão dialogando com a captação direta de suas vozes, que são
reproduzidas em sincronia com seus movimentos labiais captados pela câmera. Os efeitos
sonoros são todo e qualquer som que está em cena devido a alguma ação específica que está
ocorrendo na cena. Por exemplo, um enquadramento em que um pé de cadeira está sendo
arrastado e é acompanhado do som do pé de cadeira em fricção com o chão. A ambiência é
uma camada de áudio de fundo, presente para adequar a cena ao local onde ela foi gravada.
Como um resquício do cinema mudo, que era acompanhado de orquestras e músicos ao vivo
nas salas de cinema, mesmo na transição para o cinema sonoro foi mantida a estética sonora
de musicar filmes, conforme a carga emotiva que uma cena pretende possuir.
Conceitualmente, é difícil definir o áudio para o cinema por se tratar de uma quase
abstração como é o próprio som. Segundo Aumont (2002, p.48) “nenhuma definição de
‘campo sonoro’ poderia calcar-se na do campo visual”. Devido a essa dificuldade, muitas
vezes o som foi mantido em segundo plano de discussões e definições de estudiosos e
profissionais cinematográficos. Já no campo ideológico, esta forma de cinema com captação
de áudio direto e sincronia correspondente com os acontecimentos captados diante das
câmeras pretende ser uma representação realista ao máximo. Com o som correspondente à
imagem, cria-se um cinema que tem correspondência com a realidade. Dessa forma, o cinema
deu um passo adiante rumo ao desejo humano de captura e representação da vida humana, ao
mesmo tempo que limita a capacidade imaginativa e poética de expressão cinematográfica.
A outra linha do cinema que se manteve distante do frisson causado pela estreia do
cinema sonoro admite que o cinema não é e nem deve ser uma representação fidedigna da
realidade. Considerando que a própria captação de movimentos naturais é uma ilusão causada
por fotogramas projetados em alta velocidade, uma linha de cineastas atuantes na era do
cinema mudo se colocou contra qualquer uso sonoro que tenha um viés naturalista. Ou seja,
9
nada do que se passa na tela deve ser acompanhado de um som correspondente aquilo que se
passa na tela. Ao contrário, sons só devem ser incorporados quando estão desvinculados da
cena, trabalhando muito a imagem e som não sincronizados e não correspondentes. Este não
atrelamento automático de imagem com o som possibilitou um viés mais poético e diverso
para o cinema, que agora ganhava não uma muleta acompanhante da imagem, mas sim um
novo elemento a ser explorado em busca de novas formas de expressividade. De maneira
nenhuma esta forma de lidar com o som se trata de um cinema de puro surrealismo e falta de
vinculação com a realidade. Tal qual uma montagem, a imagem e o som de um determinado
plano podem ter relação de sentido entre si e criar um terceiro significado maior, que é
diferente dos significados daquela imagem e daquele som independentes. É justamente
resultado da montagem de uma determinada imagem junta de um determinado som que se
pode obter esse significado final.
Conforme Aumont (2002, p.53) “um dos traços específicos mais evidentes do cinema
é ser uma arte da combinação e da organização”. Somando-se a totalidade da captação de um
filme, com imagem e som, é necessário um processo final que junta todos esses elementos e
cria sua real relação de significado. Trata-se da montagem. De maneira técnica, podemos
definir a montagem como a etapa final da produção de um filme, onde são organizados os
planos em sequência, além de adicionar ou sincronizar as cenas com efeitos sonoros, som
ambiente, diálogos e música composta. Conforme o tipo de filme que se pretende construir,
aqui são colocados os planos de acordo com a estória proposta e a narrativa construída
previamente para o filme. Mas o processo de montagem vai muito além de um arranjo técnico
dos elementos já captados. Nele ocorre um grande processo criativo, em que se lapida o
material do qual se dispõe para chegar a resultados muito diversos, rearranjando os elementos
entre si.
Além das operações de seleção e agrupamento, uma das características mais
importantes da montagem é a justaposição de elementos. Estes elementos, quando juntados ou
colocados em sequência acabam por criar um sentido maior do que o sentido de cada
elemento isoladamente.
Como nos informa Aumont (2002), está noção de justaposição já era teorizada desde o
cinema mudo, quando o campo de discussão teórica estava focado na imagem e sua unidade
narrativa, o plano. Cineastas teóricos como Sergei Eisenstein chamam de planos infletidos
aqueles planos que tentam criar uma relação de sentido entre si, através de sua justaposição
em sequência. Quando se coloca uma imagem seguida de outra, pode-se automaticamente
estabelecer uma relação de sentido entre ambas imagens. Esta relação é subjetiva à
10
experiência do público, mas é realizada com intenção e propósito de afetar o público de uma
determinada maneira. Como exemplo, pode-se citar a justaposição de dois planos: um plano
de um relógio e um plano de um homem correndo. Isoladamente, eles possuem um
significado em si mesmos, estão representando tão somente aquilo que foi captado pela
câmera. Quando justapostos na montagem cria-se uma relação entre os dois planos e um
terceiro sentido narrativo e ideológico desfolha-se: o público do filme está presenciando a
representação de um homem correndo porque está atrasado, correndo contra o tempo. Este
significado conjunto não é uma soma de cada plano ou elementos isoladamente, ele é um
terceiro significado que se sobrepõe aos significados isolados de cada elemento. Assim, a
montagem se tornou o elemento mais importante para o desenvolvimento do cinema como
arte e expressão, ao tornar a mera captura de um movimento ou som em uma obra com
significados, interpretações e ideias as quais se pode atribuir.
Em vista dos elementos citados que compõem a base do cinema, pode-se ainda
catalogar filmes diferentes conforme gêneros. Estas divisões são popularmente expressas
conforme o assunto e o tom emocional dos filmes ao invés da forma e dos recursos utilizados
na narrativa destes filmes. Como exemplo podemos citar as prateleiras de videolocadoras,
com sessões dedicadas à filmes considerados como dos gêneros drama, terror, suspense, etcs.
Como já visto anteriormente, no desenvolver da história do cinema pode-se falar em duas
vertentes principais: o cinema de ficção e o de não ficção. Dentre ambas vertentes há
subdivisões conforme a forma de suas narrativas, suas intenções e as ferramentas
cinematográficas que foram empregadas para se alcançar estes devidos resultados. Os
seguintes sub-capítulos tratarão de ampliar estas noções de tipos de cinema dentro das
vertentes ficção e não ficção e suas principais diferenças.
2.2 DIFERENÇAS ENTRE CINEMA DE FICÇÃO E CINEMA DE NÃO-FICÇÃO
O cinema é tipicamente dividido em tipos de filmes, com gêneros e sub-gêneros,
pertencentes a certos movimentos estéticos ou escolas de cinema. A variedade é imensa, mas
basicamente pode-se dividir o cinema em duas vertentes: o cinema de ficção e o cinema de
não ficção. Cada um conta com elementos característicos na sua conceituação inicial, nos
recursos empregados para construir sua narrativa e no resultado final da obra audiovisual. Não
obstante, ambos tipos de cinema não se tratam de formas puras e completamente divisíveis, já
11
que há filmes de ficção que usam de elementos narrativos da não-ficção, e vice-versa
(NICHOLS, 2005).
Vindo da vertente inicial dos filmes registro dos irmãos Lumière, o cinema de não-
ficção ou documentário foi considerado como o grande registro da realidade dentro do
cinema. Sobre sua forma de ser, Fernão Ramos (2008, p. 22) diz que “documentário é uma
narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que
haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo”. Dessa forma,
além da forma do próprio filme definir se ele se enquadra na ficção ou no documentário, essa
definição também depende da forma que o público aceita-o.
O ilusionismo e mágica que Méliès trouxe ao cinema fez desabrochar o veio de
cinema de ficção. Nesse campo ficcional, os filmes obedecem a uma narrativa clássica
estruturada. Ramos (2008, p. 25) contextualiza-o como:
[...]centrado em uma ação ficcional teleológica encarnada por entes que denominamos personagens. Tipicamente, a ação ficcional estruturam-se uma trama que articula através de reviravoltas e reconhecimentos. A estruturação das imagens em movimento, através de unidades que chamados planos, é basicamente motivada pela estrutura da trama.
Apesar da dificuldade para separar o cinema de ficção do cinema de não-ficção,
Ramos (2008) diz que o documentário possui algumas características bastante próprias, que
mesmo também utilizadas no cinema de ficção, são mais comuns aos documentários. Como
maiores exemplos pode-se citar o uso de entrevistas e depoimentos, imagens de arquivo, rara
utilização de atores dramáticos profissionais, cenas não encenadas, improvisação, roteiros
abertos, imagens não necessariamente plásticas e locução explicativa externa ao filme. Essas
ferramentas, quando utilizadas por um autor audiovisual com a intenção de fazer asserções
sobre o mundo, mostrando pontos de vista que lhe são de interesse, são o que mais
caracterizam um documentário frente a um filme de ficção.
De acordo com Luiz Carlos Merten (1980) toda forma de cinema cria uma ilusão, ora
menos realista ora mais realista, do mundo captado por algum ser humano. Tanto no caso da
ficção, com ações decididamente ensaiadas diante das câmeras, quanto nos documentários,
que trabalham com elementos já existentes na realidade para compor um registro com seus
pontos de vista sobre o mundo. O documentário pode também construir uma forma de
realidade através da edição de falas, imagens, sons, etcs. Hoje se sabe que o documentário é
mais uma forma de interpretar, ver e demonstrar o mundo de um autor de uma obra
audiovisual do que propriamente um registro da realidade pura do mundo.
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Da mesma forma, tanto a ficção quanto a não-ficção criam registros, documentos,
impressões, aferições sobre a realidade em que vive o contexto dos autores de um filme.
Assim, a ficção também é um registro documental válido, tanto quanto a não-ficção. Nicholls
(2005) separa os filmes em dois tipos: documentários de realização pessoal e documentários
de representação social. Os documentários de realização pessoal seriam o que chamamos de
ficção, que usa de fantasia, dramaticidade, ilusão, criação e expressão. Os documentários de
representação social então seriam a não-ficção, são construídos com material provindo do
meio social em que ele foi realizado, e com isso ele constrói o discurso que se deseja
apresentar em um filme.
À medida que o cinema foi evoluindo, ele foi evoluindo no seu conjunto. Dessa forma,
ficção e não-ficção caminharam juntos na invenção de novas técnicas e ideias de
representação audiovisual. Com essa evolução de mãos dadas, um tipo de cinema foi
naturalmente se retroalimentando do outro. Hoje é possível assistir a muitos filmes de ficção
que se assemelham aos documentários, assim como documentários que cada vez mais usam
de recursos da ficção para construir suas narrativas. Desta forma, será discutido no próximo
sub-capítulo as formas narrativas do cinema de não ficção e no sub-capítulo seguinte as
formas narrativas do cinema de ficção.
2.3 A NARRATIVA NO CINEMA DE NÃO-FICÇÃO
Para Nichols (2005), existem essencialmente seis formas de documentário, cada um
com certos elementos mais presentes que em outros. São eles: documentário expositivo,
documentário participativo, documentário observativo, documentário reflexivo, documentário
poético e documentário performático. Mesmo sendo possível fazer essa divisão entre tipos de
filmes de não ficção, não existem documentários com uma forma pura, pois cada filme
documental se apropria de ferramentas de vários tipos de documentários e até de elementos
formais do cinema de ficção.
O documentário poético faz uso de imagens e sons do mundo social para, através da
montagem e justaposição de elementos, realizar asserções sobre o contexto que o filme
propoe demonstrar. A narrativa é extremamente visual e sonora, apresentando o mundo
captado pela câmera de forma bastante pura, sem a interferência aparente do documentarista.
O uso de narração fora-do-quadro explicativa, entrevistas com pessoas ou mesmo de textos e
13
tipografia são escassos, o que torna o documentário poética bastante aberto para as
interpretações do público. A grande força narrativa desse modo de documentário está em sua
capacidade de relacionar imagens diferentes e juntá-las com a trilha sonora ambiente ou
musical, para assim criar efeitos sinestésicos e interpretações que extrapolam o julgamento
que se pode fazer dos planos individualmente.
Nos documentários expositivos os fragmentos do mundo histórico captados são
apresentados de uma maneira bastante direta e explicativa, sem grandes utilizações de
recursos artísticos estéticos. Os filmes dentro desta forma se utilizam muito de argumentos e
explicações calcados em dados científicos ou fatos. Para alcançar seus objetivos expositivos
de modo didático é comum a utilização de legendas e de narração onisciente, o tipo de voz
fora-do-quadro que tudo sabe sobre o assunto em questão e explica-o com aparente sapiência.
Devido à presença constante dessa fala argumentativa, as imagens e sons ficam relegadas a
segundo plano, sendo apenas uma espécie de prova documentada dos argumentos do narrador
do filme.
O documentário observativo foi uma das vertentes do chamado “cinema-direto”, que
foi surgindo pelo mundo ao longo das décadas de 50 e 60. O apelido de “direto” refere-se a
uma certa crueza desses filmes, que se aproximavam do seu campo de interesse sem grandes
interferências dos cineastas na captação dos sons e imagens. A proposta desse tipo de
documentário é captar o material apenas observando acontecimentos que se desenrolam
perante a câmera. Não existe uma narração expondo pontos de vista do cineasta, nem a adição
de efeitos visuais, sonoros, música ou texto na pós-produção. Não há a transmissão de ideias
nem através de entrevistas com personagens. Dessa forma, o documentário observativo se
caracteriza como um tipo de filme que tenta observar o mundo real e trazê-lo ao público com
o mínimo de interferência possível.
O modo participativo de documentário se assemelha a algumas tradições do
documentário expositivo, por se tratar de filmes que buscam apresentar informações e
argumentos a cerca de um fato real. A grande diferença surge na maneira da exposição das
ideias dos autores de uma obra e no seu envolvimento direto e explícito com o material
captado. A narração onisciente fora-de-quadro dá lugar à entrevistas com pessoas comuns,
que se tornam atores sociais. Esses depoimentos são alternados com imagens e sons
diferentes. Ao passo que boa parte dos filmes, ficção ou não-ficção, tentam suprimir e
esconder o fato de um filme possuir uma equipe de profissionais por trás de sua realização, no
documentário participativo o documentarista e sua equipe de gravação fazem questão de
aparecer durante o filme e demonstram sua participação ativa na sua confecção. Por exemplo,
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em entrevistas as perguntas feitas pelo documentarista aos seus entrevistados podem constar
dentro do filme e a interação entre esses entrevistadores e entrevistados também poderão estar
na versão final do filme. Então, o documentário participativo tem o mesmo valor que um
filme com exposição de argumentos, porém ele explicita que o resultado final do filme
prescinde da interação do cineasta com o mundo real para assim resultar em um filme com
sua visão particular de mundo sobre a realidade.
O documentário reflexivo vai ainda mais além do modo participativo na questão de
conscientizar o espectador do filme de que o que ele assiste é uma representação da realidade
e não necessariamente a captação integral da realidade. Esse documentário suscita
questionamentos sobre a própria forma comum que os documentários tomam, como por
exemplo quando uma imagem qualquer captada é cortada para a imagem de uma sala de
edição em que está se trabalhando com aquela primeira imagem. Essa forma de o
documentário expor para o público o seu próprio modus operandi faz com que o público
reflita sobre o papel do filme que estão assistindo e como ele se trata de uma narrativa
construída com intenções dos cineastas. Essa mesma lógica desse tipo de documentário é
expandida para a maneira de tratar qualquer que seja seu assunto. O documentário reflexivo
convida o público a pensar sobre os padrões de representação de um determinado assunto para
assim ir além do convencimento argumentativo que busca angariar o seu público para um
ponto de vista específico, deixando à cargo do espectador refletir sobre o assunto do filme de
maneira mais aberta e assim deixar ele traçar suas próprias conclusões.
O documentário performático por excelência enfoca na subjetividade ao invés da
objetividade e empirismo científico. Ele se propoe também a mostrar o mundo de uma certa
maneira explicitando que se trata de uma versão da realidade, já que cada indivíduo tem uma
percepção diferenciada não somente de dados e fatos concretos da realidade assim como suas
percepções pessoais emotivas afetam a maneira de uma pessoa interpretar um elemento
qualquer do real. Nessa forma de documentário há ênfase em maneiras menos realistas de
captar a realidade, com licenças poéticas, estruturas narrativas não convencionais e
subjetividade. Nele a “sensibilidade do cineasta tenta estimular a nossa” (NICHOLS, 2005, p.
171), através de recursos como fotografias, números musicais, encenações, elementos
artísticos que sugiram estados mentais específicos, planos subjetivos, etcs, de forma a compor
um quadro social e também pessoal e emocional sobre a questão documentada.
15
2.4 A NARRATIVA NO CINEMA DE FICÇÃO
O cinema de ficção se estabeleu por excelência como uma forma de cinema narrativo.
Isso quer dizer que sua principal pretensão é narrar uma estória, com personagens que
interagem entre si e entram em conflito com eventos que alteram suas vidas, fazendo os
personagens embarcarem em uma jornada para resolverem, ou não, esse conflito. Segundo
Christopher Vogler (1998) esta estrutura básica de narração de uma estória possui tradição
milenar nas mais variadas formas de arte, expressão, religiões e mitos ao longo da
humanidade. O cinema é mais uma maneira de expressar esse desejo inerente à cultura
humana.
O primeiro estudioso a fazer paralelos entre as estórias contadas em diferentes grupos
humanos ao longo do tempo foi Joseph Campbell. Como antropólogo, Campbell conseguiu
verificar as semelhanças e coincidências existentes entre todo tipo de estória, percebendo que
quase todas estórias pareciam derivar de alguns poucos mitos originais. Tanto cenários,
personagens e eventos presentes nas mitologias antigas são muito semelhantes,
desempenhando as mesmas funções sociais para cada sociedade distinta.
Dentre esses padrões culturais das mitologias, um dos mais presentes é o mito do
heroi. Sobre essa descoberta Vogler (1998, p. 48) diz que “em seu estudo sobre os mitos
mundiais do heroi, Campbell descobriu que todos eles, basicamente, são a mesma história,
contada e recontada infinitas vezes, em infinitas variações”. Dessa forma, identificou-se que
boa parte das estórias presentes nos roteiros de cinema também descrevem sempre o mesmo
mito, chamado de “jornada do heroi”.
Vogler (1998) sugere que todo roteiro de ficção cinematográfica possui basicamente a
mesma estrutura. Há sempre inúmeras personagens povoando a estória de um filme de ficção,
dentre elas a mais importante seria o heroi. O heroi não necessariamente é o protagonista do
filme. Na realidade o que define o heroi é o fato de ele ser o personagem que mais se modifica
profundamente ao longo da estória, seja caindo em desgraça, seja alcançando a glória
prometida.
Outro personagem essencial à jornada do heroi é a figura do Mentor. Este é uma
espécie de mestre do Heroi, um guia sábio que indica quais caminhos o Heroi deve percorrer
em sua jornada. Esta sabedoria muitas vezes é fruto de que o Mentor é um Heroi que já
cumpriu sua própria jornada e portanto pode dar conselho e avisos ao heroi graças a sua
experiência prática. O Mentor pode em dado momento de uma estória ser modificado ou
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substituído, conforme o próprio Heroi se comporta em relação a sua jornada. Porém, o mais
importante aspecto do Mentor é o que ele representa para o Heroi: ele é a Jornada vitoriosa a
ser percorrida. Sua experiência pregressa e o estímulo que o Mentor oferece ao Heroi são uma
representação da jornada, já que o Mentor parece saber de tudo que vai acontecer e nesta sua
experiência e conhecimento ele carrega as recompensas conquistadas em uma jornada bem
sucedida. O Heroi bebe desta fonte inspiradora para aceitar a sua própria Jornada e poder
prosseguir (VOGLER, 1998).
Vogler (1998) separa a narrativa ficcional em várias etapas, cada uma com um
significado e importância para o desenvolvimento da estória em geral. Há três atos principais
cisando a jornada do heroi. Cada ato é dividido um do outro por pontos de virada, geralmente
um clímax de eventos em um certo momento da estória.
No primeiro ato o heroi se encontra em seu mundo comum. O mundo comum pode ser
positivo ou negativo para ele. A semelhança entre as estórias é que tanto o mundo comum
como o heroi estão em um estado de inércia. Após as personagens serem devidamente
desenvolvidas, ocorre um evento que drásticamente modifica esse mundo comum e estimula o
heroi a embarcar na sua jornada, que busca de alguma forma reestabelecer essa ordem de
mundo anterior ou o estado inicial do heroi.
Durante o segundo ato, o heroi emprega efetivamente sua jornada atrás de seus
objetivos. Neste período da narrativa, ele enfrenta diversos percalços, acontecimentos ou
enfrentamentos com outros personagens. Há outros elementos em comum, como por exemplo
a presença do Mentor, que durante este segundo ato pode ser revelar um verdadeiro mentor e
aliado ou um traidor convertido em inimigo. No clímax de eventos do fim deste segundo ato,
o heroi assegura se vai cumprir a jornada de forma exitosa ou não.
No terceiro ato, o heroi finalmente está mudado por completo em relação ao seu
estado inicial. Os personagens se encaminham para a etapa de “volta para o lar”, quando
conseguem restabeler o seu mundo comum, trazendo consigo os méritos das batalhas
vencidas, seja ele algo material ou imaterial, como o conhecimento e amadurecimento
pessoal. O heroi pode também ter empreendido uma jornada negativa, que lhe mudou
inesperadamente para o pior. Nesse caso o heroi volta ao ponto de partida, uma “estaca zero”
decepcionante (VOGLER, 1998).
Para além dos três grandes atos que constituem uma jornada do herói, Vogler (1998)
nos introduz também aos sub-capítulos que compõem cada ato. Essas etapas intermediárias
são relativas aos encontros do herói de uma jornada com demais personagens ou frente a
eventos que moldam os caminhos de uma determinada jornada do herói. Dessa forma, são
17
momentos decisivos que fazem o herói avançar ou retroceder em sua missão. As etapas
intermediárias da jornada do herói se constituem em doze momentos diferentes.
A primeira etapa da jornada do herói é chamada Mundo Comum. Nela, o público
ouvinte de uma estória a ser contada ou de um filme a ser visto é apresentado ao mundo
cotidiano do herói. Em vista de que quase toda estória lida com um personagem que é retirado
de seu ambiente natural e levado para uma aventura em que esse personagem precisa se
adaptar ao novo ambiente para empreender sua jornada, é necessário que primeiramente se
demonstre como é o mundo natural do herói. Dessa forma, é possível criar um contraste entre
o ambiente amigável do herói e o desconforto do ambiente da jornada a ser empreendida, com
todos seus desafios e perigos a serem enfrentados.
Com o Mundo Comum devidamente apresentado ao espectador, surge a etapa que
deflagra toda a jornada do herói: o Chamado à Aventura. Neste período, o herói é defrontado
com um problema a ser resolvido. Esse problema pode ser de diversas ordens e pode se
materializar de diversas formas possíveis. Geralmente, o chamado é trazido por alguma
informação de algum outro personagem ou é um evento forte o suficiente para afetar o Mundo
Comum do herói. Quando defrontado com esse desafio a ser resolvido, o herói não se permite
mais o conforto de sua vida cotidiana, de seu Mundo Comum.
Logo após o Chamado à Aventura, temos a etapa da Recusa do Chamado. Apesar da
mensagem para impulsionar a jornada do herói ser suficientemente forte para tirar o herói de
sua zona de conforto, ela é necessariamente temível e perigosa. Para demonstrar a caráter de
desafio e dificuldade da execução da jornada a ser feita, a primeira reação do herói é negar a
jornada. É um momento em que um roteiro de cinema lida com emoções como medo e receio,
principalmente o temor de um mundo desconhecido. Durante esse momento de reflexão, o
herói medita sobre os pros e contras de empreender a jornada. Muitas vezes o herói necessita
de um estímulo extra, um conselho de outros personagens ou outro evento forte o suficiente a
ponto de estimular o herói a entrar na jornada.
A quarta etapa da jornada é o Encontro com o Mentor. O Mentor, juntamente do
próprio herói, é uma das figuras mais presentes e importantes de uma jornada do herói. Consta
em quase todo tipo de estória humana. Essa etapa vem logo em seguida da Recusa do
Chamado, pois esta etapa materializa a aceitação de herói de empreender uma jornada. Após
um herói meditar sobre se deve ou não aceitar uma jornada, ele é aconselhado por outro
personagem, o Mentor. O Mentor é muito ligado à figura de um mestre, um velho sábio.
Muitas vezes é um herói que já participou de uma jornada, portanto está em condições de
ajudar um herói em sua futura jornada. A função do Mentor é justamente preparar o herói a
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lidar com este mundo desconhecido que se apresenta a sua frente. Assim, através de
conselhos, treinamento ou mesmo de um objeto material, ele faz com que o herói se sinta
preparado para aceitar a jornada.
Após os conselhos do Mentor, o herói adentra na etapa de Travessia do Primeiro
Limiar. Esse trecho da jornada do herói separa o primeiro ato do segundo ato da estória.
Alguns autores como Syd Field (1995) marcam essa separação de atos em um roteiro de
cinema através de um evento importante chamado Ponto de Virada. Nesta travessia, o herói
definitivamente aceita a jornada e todas possíveis consequências que ela possa lhe trazer. É
onde realmente se inicia a aventura, o ponto de partida da jornada rumo ao Mundo Especial,
desconhecido e diferente do Mundo Comum ao qual o herói está habituado.
Passado o Primeiro Limiar, o herói é devidamente apresentado ao Mundo Especial na
etapa de Testes, Aliados e Inimigos. Primeiramente o herói passa por testes que o fazem
compreender as regras do ambiente novo que ele adentrou. Em meio a esses desafios é que se
apresentam e se firmam personagens que simpatizam com o herói e o ajudarão na sua jornada,
assim como inimigos que seguirão desafiando-o ao longo da jornada. Os testes desta etapa
farão com que aspectos psicológicos da personalidade de todos personagens venham à tona, já
que estão frente a uma situação de tensão e pressão.
Mais à frente existe a etapa da Aproximação da Caverna Oculta. Neste período o herói
- e seus aliados que o acompanham na jornada, se os mesmos existem – chega à fronteira do
lugar que guarda os objetivos da jornada. A entrada deste lugar, ou caverna, é
necessariamente uma antecipação de perigo, um ambiente calmo que prepara o tormento
futuro que será encarado pelo herói dentro deste lugar. É durante esta fase de preparação que
o herói se questiona novamente sobre seus motivos para empreender a jornada. Ao se sentir
suficientemente preparado, ele reafirma seus compromissos com seus objetivos e aceita à
jornada novamente.
Dentro do local que guarda os objetivos da jornada - a caverna -, o herói enfrentará
vários perigos. Perigos relativos a sua vida e a de seus companheiros. Em um determinado
desafio, ele passará pela sua maior provação até o momento, que pode envolver sua quase
morte. Esta é a etapa de Provação. Dependendo da estória, essa provação de vida ou morte
pode ser apenas metafórica, mas possui a mesma relevância. O herói será quase dizimado,
mas contra todas expectativas, ele sobreviverá. O fator que leva o herói a sobreviver à
Provação tem relação com a força de seus ideais, aquilo que o move na sua jornada.
Após passar por sua grande provação, o herói ganha a Recompensa que o fez
empreender a jornada. Neste momento da estória, o herói resolveu o problema principal com
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o qual tinha que lidar. Muitas vezes ele obtém uma recompensa física, como um pote de ouro,
uma arma especial, etcs. Outras vezes a recompensa é imaterial, ligada à valores e ideias.
Nesses casos, o conhecimento é o grande bem obtido pelo herói. Nesta etapa ocorre o segundo
ponto de virada, de acordo com Syd Field (1995), levando a estória ao seu terceiro e último
ato.
Adquirido o objetivo final da jornada, cabe ao herói fazer o Caminho de Volta. Apesar
de vencida a maior batalha, o herói precisa evitar as forças repressivas que ainda o rondam.
Essas forças podem ser também de natureza física ou mental. Se a grande Recompensa do
herói foi ter adquirido conhecimento, ele ainda precisa enfrentar o seu lado que não absorveu
esse conhecimento por completo. Além do mais, a jornada do herói só se torna válida na
medida em que ele consegue retornar ao seu Mundo Comum e ser reconhecido como um
herói vitorioso lá, levando suas conquistas para toda sua comunidade.
Ao decidir voltar para seu Mundo Comum, o herói precisa passar por um teste final.
Esta última provação também tem um caráter de situação de vida ou morte. O herói enfrenta
um acontecimento extremo, para sair ainda mais forte e purificado, comprovando os valores
da sua jornada. Esta é a sua fase de Ressurreição. Após “voltar dos mortos”, o herói está
definitivamente pronto para seu retorno ao lar.
De volta ao Mundo Comum, o herói encerra a sua jornada com o Retorno com Elixir.
O Elixir é outra metáfora, é o bem maior – físico ou não – que a jornada lhe proporcionou e
que deve ser testemunhado por seu povo. Com essa conquista em mãos e tendo internamente
se modificado através das experiências pelas quais passou, o herói encerra a sua jornada.
Mesmo que todo filme de ficção esteja dentro do padrão da jornada do heroi, é
possível verificar que há mais de uma forma básica de jornada. Dentre todas variações
possíveis, segundo Saraiva e Cannito (2004) pode-se dividir os filmes de ficção em quatro
narrativas primordiais: o melodrama, a tragédia, a comédia e a farsa. Esses conceitos não são
presos somente ao cinema de ficção, já que remetem à análise cultural feita por Aristóteles,
em seu livro “Poética”, ainda na Grécia Antiga.
A comédia é uma jornada do heroi típica. O mundo comum dos personagens é abalado
pela chegada de uma entidade ou evento inesperado, que deverá ser remediado ao longo dos
atos da jornada. Ao fim, o heroi é vitorioso, tendo completa sua jornada mudando à si e seu
mundo de maneira positiva.
O melodrama se caracteriza por ter um heroi que é apartado seu estado inicial positivo
por um bloco de inimigos que formam um mundo cruel e dissimulado. Saraiva e Cannito
(2004, p. 85) dizem que o início do melodrama é uma “situação através da qual o espectador
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possa compartilhar a sensação de solidão e desamparo do protagonista”. Boa parte do
desenrolar da estória melodramática está amparada em situações complicadas seguidas de
situações complicadas, de uma maneira quase capitular e sequencial. Após o heroi sofrer das
formas mais variadas, ele alcança seus objetivos e volta ao lar vitorioso, graças a sua
capacidade de se manter íntegro e respeitar o código de ética que desenvolveu ao longo da
jornada.
Na tragédia, o heroi está fadado a fracassar em sua jornada. Apesar de ser guiado pela
melhor das intenções ao se lançar em busca de seus objetivos, geralmente ele se torna algo ou
parte de algo com o qual ele não desejaria, mas cegamente caminhou rumo a esse destino.
Desenrola-se uma situação dramática sem solução, que acaba destruindo por dentro o heroi
que queria resolver a questão. Apesar de todo negativismo que a tragédia propoe, o heroi não
é um personagem fraco ou vítima de acontecimentos externos que se abatem sobre ele apesar
de suas qualidades. Os acontecimentos se abatem sobre ele justamente por ele ser ativo e por
ter decidido desafiar o ordem normal de seu mundo, apesar de todas indicações contrárias.
Na farsa o heroi se depara contra forças separadas que surgem uma após a outra, de
forma capitular. É um equivalente da estrutura do melodrama. Assim como no melodrama, o
heroi pode sofrer inúmeras provações, mas a intenção dramática não é a de comover o
espectador e criar empatia pelas agruras pelas quais o heroi passa. A maneira da farsa
conseguir causar humor e riso de situações penosas é o seu princípio de irrealidade ou
caricaturização. O princípio da falta de realidade pode fazer o público rir do heroi, dos
personagens ou de si mesmo, dependendo das formas que a farsa abordar suas questões
centrais. Apesar de os eventos da jornada do heroi possuírem respaldo no nosso mundo, eles
serão sempre exagerados ou simplificados ao ponto de afastar o espectador de sua densidade
emotiva, deixando à tona a real falta de lógica e o surrealismo das situações esdrúxulas dessa
jornada do heroi.
Tendo em vista as principais formas de expressão do cinema de ficção e de ficção, será
possível embasar esta monografia para ser realizada a análise fílmica das obras audiovisuais
Lula, Filho do Brasil (2010) e Peões (2004). Porém, para fazer a análise propriamente dita, no
capítulo seguinte será exposta a trajetória de vida de Luiz Inácio, baseada na documentação
oficial presente em biografias publicadas. Desta forma, será possível contrapor os fatos de sua
vida com a maneira com que eles são retratados no cinema.
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3 TRAJETÓRIA DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA – DO SERTÃO AO
PLANALTO CENTRAL
Para o devido desenvolvimento do trabalho que se segue é pertinente o uso de material
acadêmico e teórico prévio para o embasamento competente do projeto e a busca posterior por
seus objetivos. Este capítulo abrangerá a história da trajetória pessoal e política de Luiz Inácio
Lula da Silva, de forma a poder primeiramente informar ao leitor do trabalho quem é o
personagem principal dos filmes Peões (2004) e Lula, Filho do Brasil (2010), que serão
analisados nos capítulos futuros. Para tanto se utilizou ao longo deste capítulo os materias
bibliográficos de José Nêumanne Pinto (2011), Denise Paraná (2009) e Richard Bourne
(2009)
Luiz Inácio da Silva é natural do sítio Vargem Comprido, Garanhuns, na região de
Caetés, interior do estado de Pernambuco. Nasceu no dia 27 de outubro de 1945, filho de
Eurídice Ferreira de Melo e Aristides Inácio da Silva. Veio ao mundo já sendo irmão de mais
seis filhos. A mãe Eurídice já havia perdido outros dois filhos para as condições adversas e
miseráveis do sertão. Apesar da casa cheia, na tarde em que Lula nasceu, seu pai estava a
milhares de quilômetros de distância, morando no litoral paulista com sua outra família
(PINTO, 2011).
A região onde Lula nasceu é a parte seca do sertão nordestino, a mais de 240 km da
capital do estado, Recife. Segundo Bourne (2009, p. 20), “quando Lula nasceu, essa era uma
região inóspita.” Não existia luz elétrica, nem água potável encanada. Era comum as famílias
espremerem-se em casas de dois cômodos, construídos pelos próprios membros da família de
maneira tosca. A casa da família de Eurídice, mais popularmente conhecida como Dona
Lindu, foi construída pelo pai de Lula e pelo seu tio, com simples telhado de palha e chão
batido de terra, tendo só o quarto principal um chão cimentado.
Segundo Pinto (2011, p. 42) “no semi-árido nordestino, o ciclo das secas transformou
o êxodo em rotina”. Dessa forma, Aristides deixou a mulher e os sete filhos quase à própria
sorte, fugindo da seca para arranjar emprego próximo a São Paulo e constituir lá a sua
segunda família, às escondidas de Dona Lindu. A outra mulher de Aristides era a tia de Lula,
conhecida como Mocinha. Aristides mantinha contato com a família do sertão através de
cartas que o filho mais velho escrevia, visto que Aristides era analfabeto. Junto dessas cartas,
o pai de Lula às vezes enviava algum dinheiro que tinha acumulado trabalhando como
estivador no porto de Santos.
22
Esses primeiros anos de vida de Lula foram alguns dos mais difíceis em matéria de
sobrevivência. Naquela época, as taxas de mortalidade infantil eram exorbitantes. Seja pela
falta de higiene, de água potável e de comida disponível, muitas crianças recém-nascidas no
sertão nordestino morriam no primeiro ano de vida. A falta de seu pai para o trabalho manual
da roça sertaneja dificultou ainda mais a parca utilização da terra e a caça de animais para as
refeições, o que exigiu de Dona Lindu um esforço homérico para que nenhum de seus filhos
morresse de desnutrição e doenças (PARANÁ, 2009).
A escassez de recursos para a subsistência se refletia na pobreza do cotidiano da
família de Lula. Por exemplo, o único móvel da casa era a cama de palha do casal. Todos os
filhos dormiam na sala-cozinha, em redes afixadas nas frágeis paredes. As refeições eram
feitas sentadas no chão de terra da casa, em potes de barro. Os filhos mais velhos tinham
colheres para comer. Lula não teve tanta sorte. “O café da manhã constava de feijão-de-corda
com farinha de mandioca, alimento por excelência do nordestino pobre”, sinaliza Pinto (2011,
p. 46). A água era retirada de poços cavados em leitos de rios secos. Com sorte, ainda se
encontravam reservas subterrâneas que eram retiradas e postas em jarros de barro, para depois
serem transportadas por vários quilômetros até a casa da família Silva.
Foi apenas com cinco anos de idade que Lula foi conhecer o pai. Aristides prestou
uma visita à primeira família em 1950. Veio junto dos filhos da outra família, que usavam
roupas novas e melhores que as dos filhos de Dona Lindu. Tinham também um luxo de
destaque: todos calçavam sapatos. O adereço era bastante incomum para a região. Anos mais
tarde, ficou célebre uma foto de infância de Lula, em que ele está usando sapatos que lhe
foram emprestados só para que a fotografia fosse tirada (PARANÁ, 2009).
Numa das raras visitas feitas por Aristides, ele levou consigo para Santos o seu filho
mais velho, Jaime, para que pudesse ajudar a trabalhar na cidade. Aristides, que não sabia
nem ler nem escrever, sempre pedia para o seu filho mais velho escrever as cartas para a
família no sertão. Certa feita, Jaime aproveitou a limitação do pai para enganá-lo, escrevendo
não o que o pai lhe ditava, mas sim o que ele realmente queria escrever para a família. Jaime
julgou que por mais pobre que ele, Aristides e a sua outra família ainda fossem, a vida urbana
dava mais oportunidades que o agreste nordestino. Além disso, Jaime tinha muita saudade do
resto da família. Foi assim que Jaime escreveu na carta para a sua mãe vender a pequena
propriedade e todos poucos pertences que possuíam, e assim vir para junto do resto da família.
Como o pai não sabia ler, nem soube o que o filho tinha planejado.
Depois de vender todas parcas posses materiais e de passar treze dias de viagem em
um caminhão “pau de arara”, Dona Lindu e seus agora oito filhos completaram seu êxodo
23
rural. Ao desembarcar na casinha de Aristides e de sua outra prole, foram recebidos apenas
com perplexidade pelo pai. Segundo Pinto (2011, p. 50), “o estivador não manifestou o
mínimo entusiasmo por recebê-la, mas resmungou uma queixa irritada porque o clã havia
deixado Lobo, seu cão de estimação”. Foi dessa forma que começou e que se seguiriam os
próximos três anos da relação de Lula com seu pai ausente.
O cotidiano entre as famílias era tenso. Aristides não se mostrou mais presente do que
a família poderia esperar. Entre os filhos de Mocinha, irmã de Lindu, Aristides mantinha um
tratamento mais normal de pais e filhos. Esses ganhavam presentes e eram atendidos pelo pai,
apesar de serem os que ganhavam mais seguidamente os castigos físicos. Para os filhos de
Lindu, sobravam a antipatia e a falta de cuidado. Aristides preferia dar pão aos cachorros do
que ao seus filhos. Além disso, era alcoólatra e distribuía surras com frequência em alguns
dos filhos de Lindu também (PARANÁ, 2009).
Foi devido a um episódio de violência doméstica que Dona Lindu decidiu sair da casa
de Aristides, levando consigo sua prole. Segundo Pinto (2011), certa feita Aristides mandou
Ziza, filho mais velho, junto de Lula para que fossem verificar se sua canoa ainda estava
ancorada no local que ele a tinha deixado. Por conta de uma tempestade repentina, Ziza e Lula
decidiram voltar para casa no meio do caminho. Os dois mentiram, dizendo que a canoa
estava ancorada no lugar de costume. Quando Aristides foi verificar mais tarde, a canoa tinha
sido roubada. Enfurecido, ele voltou para casa surrando Ziza. Em seguida, avançou para cima
de Lula, que foi defendido pela mãe. Ela apanhou no lugar e decidiu ir embora de vez. Mesmo
sob ameaça de morte pelo marido, saiu para ir morar em um casebre de madeira podre na
zona litorânea de Santos.
Mais uma vez a subsistência da família era a questão principal na vida de Dona Lindu
e dos seus filhos. Analfabeta, Lindu fez questão de colocar os filhos para estudarem na escola
pública, contrariando as vontades do pai analfabeto. Segundo o pai de Lula, “tem esse negócio
de escola não, menino homem tem que trabalhar” (ARISTIDES APUD PINTO, 2011, p. 53).
De acordo com Paraná (2009), Lula e os irmãos Ziza e Maria Baixinha tiveram um
bom empenho no colégio, ganhando até prêmios para incentivar a leitura. Talvez o maior
reconhecimento desse empenho de Lula tenha se manifestado quando uma professora sua
propôs que Dona Lindu lhe entregasse o filho para criá-lo, porque assim ele teria algum
futuro. A mãe, irredutível, disse que filho não se entrega na mão dos outros.
Um dos irmãos de Lula, Vavá, mantinha um emprego no Mercado Municipal de
Santos. Certo dia, junto de Lula, Vavá encontrou um pacote envolto em jornais no mercado.
Tal foi a surpresa e alegria dos dois quando abriram o pacote: dentro haviam Cr$ 5.885,00,
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que na época valia a quantia de 35 salários mínimos. A sorte imensa dos dois irmãos trouxe
mais uma mudança para a família Silva. Após pagar os alugueis atrasados do barraco,
compraram passagem para a região do ABC paulista, na Vila Carioca (PINTO, 2011).
Em Vila Carioca, a família Silva novamente se encontrava em situação precária de
vida. Moravam em uma casa minúscula, em que as crianças dormiam no chão da cozinha. A
água vinha de apenas uma torneira. O banheiro era compartilhado pelos clientes do buteco,
que fazia parte do mesmo imóvel. O próprio Lula (APUD PINTO, 2011, p. 61) relembra que
“a gente tinha um fogão a querosene, que cada vez que acendia, quase incendiava tudo.” Não
havia móveis nem cadeiras.
Cada membro da família se virava para conseguir juntar um punhado de dinheiro.
Lula, como muitas crianças, começou na vida do trabalho infantil na cidade como engraxate.
Foi dessa forma que conseguiu seus primeiros trocados sobressalentes, que lhe rendiam
lanchinhos, garrafas de Tubaína e de vez em quando um ingresso para ir no cinema. Durante
essa fase da infância, Lula se apaixonou pelos filmes de aventura que passavam nos matinês
da cidade e dizia que quando crescesse iria ser ator (PINTO, 2011).
Em seguida, Lula trabalhou em um negócio de lavagem de roupas, de um vizinho. Seu
primeiro emprego formal foi de telefonista, no Armazéns Gerais Colúmbia. Curiosamente,
Lula era muito tímido, não conseguindo passar mensagens corretamente ou manter diálogos
claros com os interlocutores que lhe falavam ao telefone.
Quando Lula tinha 14 anos, a fábrica de parafusos Marte abriu vagas para a
contratação de menores que quisessem fazer o curso de torneiro mecânico do SENAI (Serviço
Nacional de Indústria). Lula se apresentou para o teste de admissão, levado orgulhosamente
por Dona Lindu. Segundo Pinto (2011, p. 65), o sonho da mãe de Lula “era ver o filho de
macacão sujo de graxa”, como mecânico. Admitido para o trabalho, Lula seguiria os
próximos quatro anos na fábrica Marte, dos quais passava seis meses do ano no curso do
SENAI e seis meses trabalhando na fábrica.
Completado o curso do SENAI e recebido o diploma, Lula foi falar com o patrão, de
quem era próximo por jogar peladas de futebol junto de seus filhos. Lula disse ao chefe que
estava ganhando pouco para quem já estava formado, e ainda por cima sua força de trabalho
estava rendendo mais do que a dos empregados mais velhos que recebiam o dobro que ele. O
patrão disse que ele não ganharia mais, já que foi investido dinheiro para Lula cursar o
SENAI. Lula resolveu se demitir e procurar um emprego melhor (PARANÁ, 2009).
Já nos anos 60, Lula presenciaria de forma prática as consequências de uma greve de
trabalhadores. Na época, Lula chegou a acompanhar alguns piqueteiros, trabalhadores em
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greve que ficavam nas portas de fábricas para se assegurar que nenhum trabalhador romperia
com a paralização. Esses trabalhadores que não respeitavam a greve da maioria eram
chamados de “fura-greves”. Os piqueteiros muitas vezes eram violentos, apedrejando as
janelas das fábricas e empresas. Certa vez em uma fábrica de meias, Lula testemunhou vários
piqueteiros invadindo o pátio da fábrica para parar os “fura-greves”. Alguém de dentro da
fábrica resolveu atirar contra os piqueteiros invasores, acertando um deles na barriga. Os
grevistas desarmaram o atirador e o atiraram janela abaixo, matando-o. Lula assistiu a tudo,
espantado (PINTO 2011).
Em 1964, Lula conseguiu um emprego na Fábrica Independência, um pequeno
negócio que contratava torneiros mecânicos. Trabalhando no turno da noite, era possível tirar
sonecas enquanto o patrão estivesse fora. Em uma dessas madrugadas, enquanto alguns
colegas dormiam, uma máquina se desregulou e um de seus parafusos quebrou-se. Lula
torneou outro parafuso, para substituí-lo. Quando foi colocá-lo na máquina, ainda sonolento,
Lula soltou o braço da máquina, esmagando com força a sua mão esquerda. Mesmo
severamente machucado e sangrando, teve que esperar até de manhã para ir a um pronto-
socorro. O médico que o atendeu resolveu amputar o dedo mínimo da mão esquerda. De todo
esse evento, Lula conseguiu apenas uma indenização da Fábrica Independência, da qual saiu
logo em seguida para conseguir salário melhor em uma fornecedora de componentes para
automóveis (PARANÁ, 2009).
Em 1966, Lula conseguiu o primeiro emprego em uma grande indústria do ABC
paulista, a Aço Villares. Lá o trabalho era duro e incessante. As máquinas eram operadas de
dia e de noite, cada turno com um trabalhador. Ali, Lula começou a observar uma competição
entre os operadores da máquina de um turno e de outro em que “fica cada um querendo fazer
mais do que o outro” (LULA APUD PINTO, 2011, p. 83). Entretanto, essa disputa por
eficiência não se revertia em um salário maior, era apenas movida pelo medo da perda do
emprego. Novamente foi na prática e observação que Lula aprendeu de forma simples o que
era a exploração do operário pelo patrão.
Os anos seguintes de trabalho na Villares transcorreram de forma normal. Lula não
estava envolvido com o movimento sindical existente. Quem o introduziu ao meio foi seu
irmão Ziza, o Frei Chico. Frei Chico já era simpatizante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e mais ligado à política. Lula não se importava muito de ser um “alienado”, como seu
irmão lhe chamava, preferindo por exemplo ver novela na televisão (PARANÁ, 2009).
Em 1969, Frei Chico trabalhava em uma empresa de carrocerias de caminhão. Ele
queria disputar uma vaga em uma chapa para a direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São
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Bernardo do Campo e Diadema. Os planos de Frei Chico foram podados, em vista de que já
havia um colega da mesma empresa na chapa, impossibilitando sua candidatura. Como Lula
trabalhava na Villares, Frei Chico resolver colocar o irmão no seu lugar. Lula não tinha a
mínima vontade, mas atendeu ao pedido do irmão para ir assistir com os próprios olhos como
era uma assembleia sindical. Acabou tomando gosto pelos enfrentamentos retóricos e
ideológicos entre os participantes do sindicato (PINTO, 2011).
Dias depois, Lula compareceu em um almoço que definiria os membros da chapa
sindical. Entre os presentes estava Paulo Vidal Neto, que já fazia parte da chapa atual como
primeiro-secretário e agora queria disputar uma chapa como candidato à presidência do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Os presentes tentavam
convencer Lula de que valia a pena fazer parte do sindicato. À contragosto da sua noiva
Lourdes, Lula aceitou fazer parte da chapa. Lourdes achava que Lula seria perseguido na vida
sindical e ameaçou desmarcar o casamento se ele realmente fosse concorrer. No fim, ela
aceitou e a chapa de Lula e Paulo Vidal foi vencedora (PINTO, 2011).
Paulo Vidal foi o grande iniciador da vida sindical de Lula. Diferentemente das
correntes sindicais vigentes, Paulo Vidal tinha uma proposta autêntica e prática de
sindicalismo. Não queria seguir nem a linha sindicalista “pelega”, como era dito de sindicatos
que eram ligados diretamente ao governo que estivesse vigente, nem a linha “ideológica” ou
“comuna”, como era o sindicalismo que recebia a influência de militantes pró-soviéticos do
PCB. Paulo Vidal tinha como objetivo tratar de conseguir melhorias de direitos para os
metalúrgicos, negociando junto com os patrões ou agindo contra os mesmos se necessário.
Acerca do estilo sindical de Paulo Vidal, Pinto (2011, p. 91) nos revela que ele “foi o
verdadeiro criador da estratégia de negociação em separado com os sindicatos, o pai do
sindicalismo autêntico do ABC nos anos de 1970, o criador (involuntário) de Lula”.
No primeiro mandato da chapa de Paulo Vidal na presidência do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema foi proposta a criação de um
departamento que ficasse encarregado especialmente do atendimento previdenciário dos
associados do sindicato. Lula encabeçou esse departamento, o que lhe deu os primeiros
contatos com o universo jurídico e organizacional trabalhista. Ao mesmo tempo, Lula já pode
ver a realidade da vida sindical de então, que apesar dos belos discursos nas assembleias
“essas belas palavras eram negadas na prática por uma politicagem de futricas, pichações e
interesses meramente pessoais” (Pinto, 2011, p. 92). Esse contraste entre discurso e prática
quase levou Lula a desistência de concorrer uma segunda vez na chapa de Paulo Vidal para a
presidência do sindicato, mas Vidal conseguiu convencê-lo a permanecer.
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No segundo mandato da chapa de Paulo Vidal no sindicato, Lula assumiu como
secretário-geral. Desta vez, Vidal conseguiu colocar mais em prática suas ideias de
sindicalismo autêntico. Em 1974 foi feito o 1º Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo
do Campo e Diadema, um passo importante para redefinir as práticas sindicalistas da época.
As negociações seriam realizadas diretamente com os empregadores, ao invés de perpassar
primeiro pela Justiça do Trabalho e pelo Ministério do Trabalho, que monopolizavam as
relações trabalhistas da época e eram atrelados às políticas do Estado brasileiro. Osmar
Mendonça (APUD PINTO, 2011, p. 95), também líder sindical da época, diz que “esta talvez
tenha sido a maior contribuição de Paulo Vidal para a história e lutas futuras da entidade e dos
trabalhadores do ABC”.
Em 1975, Paulo Vidal teve que se afastar formalmente da direção do sindicato porque
a empresa onde era empregado se realocou para uma região fora de São Bernardo e Diadema.
Dessa forma ele tentou organizar um sucessor para ocupar seu lugar e ainda manter sua
influência. Lula acabou sendo o escolhido e apesar de inicialmente contrariado, aceitou ser o
presidente do sindicato de 1975 até 1978. Paulo Vidal nunca abandonou o sindicato por
completo, por exigência do próprio Lula. Paulo achava que Lula seria fácil de controlar e
manipular, já que ainda era tímido nos palcos dos sindicatos. Com o tempo, Lula foi
adquirindo força própria no sindicato, afastando Vidal das decisões (PARANÁ, 2009).
Em 1975, Lula foi eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e
Diadema com 92% dos votos dos seus membros. Já era um cargo de poder considerável: sob
sua guarda estavam quase 100.000 trabalhadores associados. Na presidência do sindicato,
seguiu promovendo as mudanças que Paulo Vidal havia iniciado anteriormente,
transformando o sindicato em uma ferramenta de negociação de direitos para os trabalhadores
ao invés de um simples centro sucateado de benefícios médicos e dentários, como era comum
até os anos 70 no Brasil (PINTO, 2011).
Ainda em 1975, Lula pela primeira vez colocou os pés pra fora do país, indo para o
Japão em um congresso da Toyota. Mal pode aproveitar a viagem, pois recebeu um
telefonema alarmante: Frei Chico, seu irmão mais velho, estava desaparecido. Frei Chico era
nessa época presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano e mantinha uma
militância clandestina atrelada ao Partido Comunista do Brasil, que agia às escondidas durante
a ditadura militar. Lula voltou do Japão e junto do advogado do sindicato foram nas
delegacias de polícia procurar Frei Chico. Depois de certo tempo e insistência, descobriram
que ele estava preso no DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de
Operações de Defesa Interna) de São Paulo. Após ser torturado por mais de uma semana, sem
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ter nenhuma informação de relevante para o regime militar, o irmão de Lula foi solto
(PARANÁ, 2009).
Ainda na sua primeira gestão como líder sindical, Lula liderou protestos dos
trabalhadores por melhores condições de trabalho, em que além de criticar os empresários das
fábricas já criticava as políticas trabalhistas do governo em geral. Em 1977 foi organizada a
primeira grande campanha de reposição salarial dos metalúrgicos. Em 1978, Lula se
candidatou para a reeleição na liderança do sindicato. Conseguiu falcilmente a vitória, agora
com 98% dos votos. A sua capacidade de orador estava cada vez melhor e impressionava
mais os seus liderados. Com isso, seus discursos foram se tornando mais ásperos e
reivindicatórios (PINTO, 2011).
Em 1978, no feriado do dia do trabalhador, 1º de maio, o sindicato de Lula realizou
outro ato de protesto contra as condições em que vivia a classe trabalhadora. Nesse momento,
não se falava abertamente na possibilidade de realizar greves como forma de reinvindicação,
já que as mesmas eram proibidas pelo regime militar. Apesar disso, doze dias depois do ato
do sindicato os trabalhadores da automotiva Scania resolveram espontaneamente parar de
trabalhar. A semente estava plantada, e seguiu germinando dia após dia, com novas greves
sendo deflagradas em diferentes fábricas. Era um fenômeno completamente novo. Lula e sua
dirigência sindical tinham tanta experiência em greves como qualquer um dos metalúrgicos
(PARANÁ, 2009).
As greves de 1978 foram bem conduzidas pelo sindicato, alcançando alguns benefícios
para a classe. Um dos maiores deles talvez tenha sido involuntário: a mídia brasileira se
interessou pelo fenômeno que ocorria no ABC paulista e pelo líder sindical. As greves saim
das páginas policias para entrarem na seção de política e economia dos grandes jornais e
revistas, e Lula começou a se tornar uma figura nacional (PINTO, 2011).
No ano de 1979 o movimento sindical conseguiu um feito ainda maior que no ano
anterior: deflagrou uma greve geral dos metalúrgicos. Foi realizada assembleia no estádio da
Vila Euclides. A quantidade de trabalhadores foi muito além do esperado o que nos primeiros
dias exigiu muita improvisação da organização, com um palco feito de mesas de bar e as
palavras de Lula sendo transmitidas sem microfone, de boca em boca pelos próprios
metalúrgicos. A greve geral durou 15 dias. Lula e sua liderança sindical perceberam que a
situação das negociações não estavam andando, tendo o sindicato sob intervenção
governamental e tropas de choque forçando o encerramento das assembleias no estádio de
Vila Euclides. A situação piorou quando 20.000 metalúrgicos se reuniram para uma
manifestação em frente à prefeitura de São Bernardo. Foram recebidos por tropas de choque
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federais com mil soldados. A situação quase levou a uma tragédia, não fossem o apoio de
líderes do então Movimento Democrático Brasileiro, de membros da Igreja Católica
progressista e do próprio prefeito de São Bernardo, Tito Costa, para apaziguar o confronto.
Foi a partir desse momento que Lula e a classe trabalhadora entravam em contato com as
comunidades de base da Igreja Católica, ligadas à Teologia da Libertação (PINTO, 2011).
Após 15 dias de greve geral, Lula pediu que os metalúrgicos realizassem uma trégua
de 45 dias de trabalho, para que as negociações com as patronais pudessem ser retomadas
com mais calma. No fim, foi conquistado um acordo positivo com a indústria automobilística,
apesar de Lula receber críticas por ter supostamente traído a sua classe. Para acalmar as
críticas, Lula realizou uma assembleia do sindicato convocando uma nova eleição para a
diretoria. Lula e sua diretoria foram aplaudidos pela imensa maioria dos metalúrgicos e assim
foram mantidos no posto.
No ano seguinte de 1980 foi deflagrada a maior greve dos metalúrgicos até então. A
paralização geral foi levada ao longo de 41 dias e sofreu diversas intervenções federais. Logo
de cara, os órgãos governamentais declararam a greve ilegal, o que permitiu a prisão de todos
dirigentes sindicais da chapa de Lula. O governo achava que prender a direção sindical no
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) impediria o prolongamento da greve.
Estavam redondamente enganados, pois os trabalhadores estavam suficientemente
organizados para continuar a greve nas comissões de fábricas, piquetes, grupos de bairro e nas
eucaristias. Lula e a liderança do sindicato ficaram presos por um mês, enquanto a greve
seguia e sua mãe, Dona Lindu, padecia de câncer no útero. A mãe de Lula morreu quando ele
ainda estava preso. O DOPS permitiu à Lula ir ao enterro da mãe, em que foi ovacionado
pelos presentes, sendo logo em seguida levado devolta à cela. Sem conseguirem algum acordo
razoável, a greve acabou com poucos ganhos reais para os metalúrgicos. Depois de acabada a
greve, o governo decidiu soltar os líderes sindicais junto de Lula. (PINTO, 2011)
Apesar da derrota na questão grevista, a greve de 1980 chamou ainda mais atenção
para o papel de Lula como um líder. Além disso, o envolvimento ainda maior das
comunidades de base da igreja católica, com destaque para a atuação de Frei Beto, estreitou as
relações de setores da classe trabalhadora explorada com os religiosos. Essas forças, junto de
membros da esquerda anistiada pelo governo em 1979, da classe artística e de membros de
movimentos sociais faria parte da sopa primordial que formaria o Partido dos Trabalhadores.
Nas palavras do próprio Lula (APUD PINTO, 2011, p. 169) “o ganho político que nós
tivemos resultou na criação do PT, da CUT e na chegada daquele líder do sindicato à
presidência da República”.
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Apesar de a ideia de organizar um partido de trabalhadores já tivesse sido discutida
desde início de 1979 em um dos Congressos dos Metalúrgicos, foi oficialmente no início de
1980 que foi lançada a pedra fundamental para a fundação do PT. Foi no Colégio Sion, sob o
abrigo dos católicos. Logo em seguida, os futuros petistas foram atrás de apoio no sindicato
dos jornalistas. Em outubro do mesmo ano, o PT já contava com vários membros e suficiente
presença em diversos estados para poder ser oficializado perante as exigências das leis
eleitorais (PINTO, 2011).
Ainda na época da fundação do PT, Lula passou a apoiar o então membro do PMDB e
sociólogo Fernando Henrique Cardoso a uma vaga ao Senado. Assim, começou a entrar em
contato com a vida política. Com o PT fundado e a possibilidade de eleições diretas para
todos cargos políticos exceto presidente da república, em 1982 Lula se candidatou à
governador do estado de São Paulo. Ficou em quarto lugar na votação.
Em 1986, Lula conseguiria seu primeiro posto político como deputado federal. Desta
vez foi uma vitória importante. Além do PT eleger mais outros 16 deputados, Lula foi o mais
votado no país para a Câmara dos Deputados. Durante esses anos conturbados as casas
legislativas do Brasil ficaram encarregadas de redigir a nova Constituição. A bancada petista
em boa parte rechaçou a nova carta de 1988, muito em razão de terem sido afastados do
projeto, que ficou encabeçado pelos membros do recém formado PSDB (Partido Social
Democrata Brasileiro) Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Mário Covas (PINTO,
2011).
Em 1989, o povo brasileiro finalmente voltaria a exercer por voto direto a escolha para
presidente da República. Naquela eleição havia a enorme quantidade de 20 candidatos ao
executivo. Além do próprio Lula, dentre os candidatos com maior destaque estava o líder da
esquerda no exílio Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista. Brizola era uma
figura conhecida brasileira, com destaque por ter sido o único brasileiro a ter governado dois
estados diferentes, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro por duas vezes. Apesar de ambos
pertenceram à esquerda brasileira, Brizola e Lula nunca se entenderam bem. Brizola sempre
reclamou de ter sido mal recebido por Lula no ABC paulista.Lula via com desconfiança a
aproximação de um político que não era oriundo do meio em que ele e os metalúrgicos eram,
tal qual as aproximações do PCB nos sindicatos nos anos 60 e 70 (PINTO, 2011).
Dentre os inúmeros aventureiros na disputa eleitoral que eram desconhecidos do
público brasileiro estava o governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello. Contando com
apoio de um amigo dentro do instituto de pesquisas Vox Populi, Collor conseguiu
informações privilegiadas sobre os maiores anseios do brasileiro: estabilidade econômica e
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vontade de novidade, o que não queria dizer mudança radical. Collor habilmente soube
traduzir em discursos, debates e propagandas televisivas essas vontades do eleitorado. Por ser
um rosto novo, desvinculado da dita “velha política”, acabou conquistando muita atenção. Em
vista desse contexto, meios de comunicação como a revista Veja e a emissora Rede Globo
passaram a apoiar a sua candidatura, mesmo que a preferência deles fosse inicialmente por
Mário Covas do PSDB (PINTO, 2011).
No primeiro turno da campanha de 1989, Collor saiu na frente com 28,52% dos votos.
Lula quase empatou com Brizola, saindo um pouco a frente com 16,08% do eleitorado.
Mesmo com inúmeras trocas de acusações nada amigáveis durante o primeiro turno, Brizola
declarou apoio ao líder sindical. Apesar do otimismo dessa união para o segundo turno, Lula e
o PT tinha muitas pedras no sapato para administrar. Além da inexperiência na administração
pública, Lula era a cara do radicalismo no Brasil, apresentando projetos de calote na dívida
externa e reforma agrária que mais afastavam votos, não importando a classe social.
Pinto(2011) ainda diz que, em última instância, pode-se atribuir a derrota nessa eleição ao
isolamento político do PT, que em nenhum momento cogitou fazer um governo de coalizão se
juntando com políticos tradicionais do PMDB ou PSDB.
No decorrer dos anos seguintes à derrota eleitoral, com Collor posto e retirado da
cadeira de presidente pelo povo brasileiro, Lula permaneceu alheio aos governos de Itamar
Franco e Fernando Henrique. Ao invés de procurar alianças com outras forças políticas, a
estratégia adotada era reforçar a força do próprio PT e a figura de Lula como homem do povo.
Nesses períodos começaram as Caravanas da Cidadania. Inicialmente, Pinto (2011, p. 219)
nos diz que “Lula teve a ideia genial de refazer o trajeto do menino retirante, partindo de
Caetés, no agreste pernambucano, para chegar a Vicente de Carvalho, no litoral paulista”.
Como a Coluna Prestes, os petistas percorreram o interior do interior do Brasil. Eram
carreatas e comícios de cidade pequena em cidade pequena, para assim se aproximar da base
do eleitorado e entender melhor o que o público esperava de um governante.
No governo substituto de Itamar Franco, vice do derrubado Collor, Fernando Henrique
do PSDB entrou como Ministro das Relações Exteriores e acabou no Ministério da Fazenda.
Mesmo desconfortável em um primeiro momento, foi ali que juntamente de economistas
como Pérsio Arruda, Pedro Malan e Gustavo Franco que o Plano Real foi tecido. Lula,
aconselhado pelos palpites do economista petista Aloízio Mercadante, passou a defenestrar o
plano, dizendo que seria outro tapa-buraco mal feito como o Plano Cruzado da era Sarney. A
prática traiu a teoria, deixando Lula com uma imagem negativa e Fernando Henrique como o
“pai do Real”, aquele que acabou com a hiperinflação. Basicamente “foram a moeda forte, a
32
estabilidade econômica e a paz social por ela produzida” (PINTO, 2011, p. 221) que
passariam a eleger Fernando Henrique para mais duas gestões presidenciais.
Na campanha de 1994, Lula tentou se candidatar em uma chapa puro sangue, com
Mercadante do PT como vice-presidente. O sucesso do Plano Real elegeu Fernando Henrique
já no primeiro turno. Lula manteve-se isolado do poder, criticando o governo do tucano
sempre que possível. Em meio ao seu mandato, FHC aproveitou a popularidade e encaminhou
projeto de lei que permitisse a reeleição presidencial, mediante diminuição do mandato
presidencial de 5 anos para 4 anos. Aprovada a emenda, FHC acabaria sendo reeleito contra
mais uma candidatura de Lula. Pinto (2011, p. 222) nos mostra que foi nessa eleição que “o
PT fez sua primeira concessão ao seu projeto de isolacionismo político” oferecendo a cadeira
de vice-presidente para Leonel Brizola. Esse processo de abertura política petista se mostraria
vitorioso no futuro.
Para a eleição de 2002, a abertura política de Lula foi ainda maior. Dessa vez o PT
inovou na escolha do vice-presidente: o milionário industrial têxtil José de Alencar. A filiação
de Alencar era outro indicativo de mudança política, já que o mesmo era do Partido Liberal,
conservador e aberto à iniciativa privada e ao capital global, em contraste com as ideias de ex-
guerrilheiros de esquerda que figuram nos quadros do PT. Na questão religiosa também foi
uma novidade, em vista da base eleitoral evangélica de José de Alencar, diferente dos cristãos
democratas e teólogos da libertação da base católica do PT. Por fim, José de Alencar tinha sua
base em Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do país e sempre palco de disputas
acirradas (PINTO, 2011).
Para finalizar a “conversão” da candidatura de Lula, foi elaborado um documento
chamado Carta ao Povo Brasileiro. Nele, o então candidato rechaça projetos antigos de suas
candidaturas, como o rompimento com a economia aberta global, o calote na dívida externa, a
expropriação de terras para a reforma agrária e a estatização de setores estratégicos da
economia. Essa guinada completa acabou por atrair outras forças políticas, como o PTB e o
PMDB que apoiou os governos FHC. O próprio ex-presidente José Sarney, muito criticado
por Lula durante todo seu governo, aproximou-se do ex-sindicalista depois de se indispor com
membros da cúpula do PSDB por conta de investigações da Polícia Federal contra sua filha,
Roseana Sarney.
Na campanha, Lula mudou completamente de tom e figura. Seu estilo foi mais
apaziguador de ânimos e menos calcado na crítica dura aos oponentes e governos passados.
Os eleitores brasileiros não eram mais “companheiros” do chão da fábrica. Agora Lula se
dirigia ao eleitorado como “meus amigos e minhas amigas”. Ao invés de ataques ao passado,
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sorrisos vislumbrando o futuro brilhante do país. A equipe de marqueteiros políticos,
capitaneados por Duda Mendonça, foi uma das principais responsáveis por essa mudança de
tom na comunicação da campanha, que ficou conhecida como “Lulinha, paz e amor” (PINTO,
2011).
A tão cobiçada chegada ao Palácio do Planalto finalmente se concretizaria nessa
eleição de 2002. Além de todas mudanças e de suas competências como comunicador de
massas, Lula se beneficiou dos desgastes do PSDB e de FHC, que em seu segundo mandato
não conseguiu enfrentar problemas como crises econômicas internacionais e apagões
elétricos. Quase ganhando em primeiro turno, com 46% dos votos, José Serra foi derrotado no
segundo turno com facilidade.
A vitória de Lula foi mais uma prova de sua maior característica como sindicalista
autêntico que foi: um hábil negociador. Pinto (2011, p. 224) conclui que Lula “já era muito
maior que o PT, este é que não sabia”. Lula, à revelia e contragosto de alguns de membros de
seu partido, conseguiu fazer o que sempre soube fazer na sua experiência sindical, costurando
apoios inusitados que permitiram a chegada do primeiro operário brasileiro ao poder máximo
da República. A popularidade recorde de seus dois governos confirmariam que em termos de
comunicação e de “jogo de cintura” político, as estratégias de Lula na obtenção e manutenção
do poder se mostraram as mais eficientes de toda história da república brasileira até hoje.
Parte deste poder de comunicação do ex-presidente pode ser averiguado no uso de um dos
mais importantes e influentes meios de comunicação da humanidade: o cinema.
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4 LULA NO CINEMA
A fim de verificar como a biografia de Lula já foi aplicada no meio audiovisual, é
necessário percorrer e verificar as aparições de Lula no cinema brasileiro até hoje. O capítulo
a seguir se debruçará sobre o livro de Marina Soler Jorge, Lula no Documentário (2011), para
fazer suas aferições.
Assim como sua trajetória pessoal, a vida de Lula começa a aparecer no cinema a
partir do momento em que ele começa a ser uma figura de proeminência nacional, justamente
no período das greves de 1979 e 1980, na região do ABC paulista, nas cidade de Santo André,
São Bernardo e São Caetano, berço da indústria metalúrgica e consequentemente dos
movimentos operários. É graças a este evento que acabam sendo produzidos três filmes
documentários, que marcam as primeiras aparições de Lula no cinema.
Na época das greves do ABC paulista Lula era presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Em 1979 Lula já fazia parte da vida
sindical de sua categoria por mais de dez anos. Em boa parte deste tempo Lula já
desempenhava papel de liderança operária. Graças a esse papel, acabou se tornando referência
para os trabalhadores mais do que qualquer um de seus companheiros de chapa sindical,
fazendo com que ele fosse reconhecido pelos próprios metalúrgicos como seu líder e porta-
voz. Portanto, não é de surpreender o fato de que ele logo desempenha papel de protagonista
nas suas primeiras aparições no cinema, mesmo quando o principal assunto sendo
desenvolvido não seja ele, mas o movimento grevista.
Durante estes anos de 1979 e 1980 foi deflagrada uma paralisação geral dos
metalúrgicos do ABC, em campanha para melhorar seus salários e condições de trabalho.
Mesmo em fins de ditadura, com a sinalização de abertura política do recém-empossado
presidente General João Batista Figueiredo, o clima de tensão era enorme. A repressão e
perseguição policial eram de praxe nas manifestações de rua ou nos piquetes nas frentes das
fábricas. O Ministério do Trabalho interviu, impedindo espaços públicos de serem usados
para as assembleias dos metalúrgicos, além de afastar e prender os líderes sindicais.
Três filmes documentários tentam relatar o acontecido durante o período das greves
dos metalúrgicos, cada um a sua maneira e com ferramentas cinematográficos que moldam a
visão dos autores dos filmes sobre os acontecimentos e acabam por passar para o público uma
percepção específica sobre as greves e sobre o líder do movimento, Luiz Inácio Lula da Silva
(JORGE, 2011).
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Primeiramente podemos relatar o média metragem Greve!, de João Batista de
Andrade, filmado em 1979. Ao longo de seus 36 minutos de duração, o documentário se
utiliza de entrevistas e narração para contextualizar o movimento grevista e para dar voz para
os metalúrgicos que participam ativamente da greve. Segundo Bernardet (apud Jorge, 2011,
p. 123) trata-se de um filme que possui “a intenção, não de fornecer uma análise sociológica
ou política do fenômeno, ou pelo menos se limitar a isso, mas de se inserir na ação”. Greve! é
um filme do imediato, que capta o desenrolar de fatos no ABC paulista conforme eles
acontecem, quase como um telejornalismo que relata um fato bombástico, mas não sabe nem
mede as consequências ou causas do tal fato. Assim, o média-metragem foca em eventos
chamativos da greve de 1979 e contrapõe entrevistas com trabalhadores da greve com
entrevistas daqueles que ou não participam da greve ou não a apoiam ou fazem parte do
instrumento estatal repressor à greve.
O filme acompanha mais de perto os metalúrgicos que participam das greves. O
espectador é convidado a ouvir esses sujeitos grevistas, à época uma parcela praticamente
invisível e muda nos meios de comunicação do Brasil. Esse caráter de ineditismo da voz do
trabalhador explorado é um dos pontos mais fortes do filme. Os próprios metalúrgicos
utilizam a presença das câmeras como um púlpito de denúncias, falando de sua condição de
exploração e trabalho duro, além da repressão policial e estatal contra o movimento grevista.
Junto de tais denúncias, temos a comprovação da fala dos trabalhadores com imagens de
policias batendo em pessoas na rua, prendendo grevistas, utilizando bombas de gás para
dispersar multidões, acompanhados de cães e montados como cavalaria perseguindo
manifestantes (JORGE, 2011).
Em seu primeiro segmento, o filme contextualiza a situação de pobreza e exploração
dos metalúrgicos de maneira básica, demonstrando ao espectador que a greve por melhores
salários é minimamente justa. Tão logo se instaura a greve, o documentário enfatiza a
presença policial nas ruas do ABC, a intervenção no sindicato por parte do Ministério do
Trabalho, o afastamento de Lula e da diretoria do sindicato dos metalúrgicos e a proibição de
utilizar o estádio de Vila Euclides como local de assembleia. Após relatar estes fatos, a
narração onisciente sentencia: “O ABC se torna uma praça de guerra”. São utilizados
novamente inúmeros planos mostrando a repressão policial às manifestações de rua, levando
ao espectador a percepção de que o radicalismo do movimento grevista aumentou somente
como resposta às pressões estatais.
Lula surge no filme neste momento de intervenção federal no sindicato. Ele é uma
figura um tanto quanto distante, nunca é entrevistado nem biografado por algum relato ou
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pelo narrador do filme. O autor do filme, João Batista de Andrade, não faz questão de
informar ao público quem é esse sujeito quase messiânico. Não é relatada nenhuma biografia
ou perfil de Lula, sabemos dele através da palavra de outros metalúrgicos, através de imagens
das assembleias lotadas e através das falas que ele profere em rádios ou nestes eventos
públicos.
O filme prefere dar voz ao metalúrgico comum, o anônimo que de forma madura, e
numa escala até então inédita no país, resolveu exigir seus direitos com uma paralisação
massiva de sua categoria. Não obstante, Lula aparece como o exemplo em quem o
metalúrgico em geral deve mirar e se inspirar, já que ele conseguiu convencer a sua categoria
e sindicato a levar adiante uma greve geral. Ao longo do filme os metalúrgicos citam que Lula
deu o exemplo para a sua categoria, ensinou que a união entre os trabalhadores superará
qualquer adversidade e assim eles conseguirão ter seus direitos atendidos. É por isso que ele é
um líder que é ouvido pelos metalúrgicos.
Greve! como um todo é um filme bastante passional, e esse aspecto ele também leva
para a interpretação que se pode tirar do papel de Lula no movimento grevista. Apesar de
falas de metalúrgicos enfatizando que mesmo com a diretoria do sindicato afastada ou mesmo
que prendam Lula o movimento continuará, há várias cenas que contrapõem e discordam
dessas falas mais otimistas de certos operários. Em uma cena de uma assembleia lotada, já
após a intervenção federal no sindicato e o afastamento da diretoria, é possível presenciar que
os trabalhadores em geral sentem falta da figura do presidente do sindicato conduzindo as
falas. Em muitos momentos os metalúrgicos clamam por Lula, mesmo em meio à fala de
outros líderes sindicais. Acompanhado destas cenas temos uma narração corrobando com essa
visão de que os metalúrgicos ainda não alcançaram um grau de autonomia e organização em
relação a suas lideranças. A visão do filme sobre as lideranças do movimento é expressa na
narração onisciente, que sentencia que os grevistas padecem de má organização e podem levar
a greve ao fracasso. Novamente quem acaba se sobrepondo é a imagem de Lula, o inegável e
necessário líder daquelas massas.
Apesar de o filme nunca debater sobre Lula, suas origens, suas motivações, seu real
papel na organização da greve, suas qualidades ou feitos que o tornam apto para ser a
liderança do movimento metalúrgico, ele aparece como alguém indispensável para o
movimento naquele momento histórico. O final do filme é bastante explícito nesta posição,
mostrando que devido à persistência da greve, o governo recuou na intervenção do sindicato,
garantindo a volta de Lula e sua diretoria. O que se segue para demonstrar isso é uma cena de
uma assembleia no estádio de Vila Euclides, em que Lula é carregado nos ombros pelos
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companheiros metalúrgicos até chegar ao palanque em que declararia a volta da diretoria do
sindicato. Contrariamente ao retorno triunfal, Lula sugere que a greve dê uma trégua de 45
dias enquanto se retomam as negociações com os empresários e com os órgãos
governamentais. Apesar do suposto retrocesso no radicalismo do movimento, Greve! se
encerra com esta cena forte, de um líder que retorna ao seu posto merecido, é escutado por
todos e tem a aprovação de todos, mesmo com uma mensagem pouco acalentadora. Jorge (p.
137, 2011) reafirma este caráter de imagem positiva e messiânica de Lula, que mesmo
mantido à distância, o filme “ao final, também toma para si a admiração que essa classe sente
por seu líder, uma admiração que é vista aqui não apenas como uma necessidade de
organização do movimento, mas também algo da ordem emocional”.
Assim como Greve!, o filme ABC da Greve, de Leon Hirszman, também foi filmado
ao longo do ano de 1979. Comparado ao documentário anterior, ele trata os acontecimentos
do período com maior imparcialidade e explorando as complexidades e contradições dos
personagens que compunham o movimento das greves. Quanto à representação de Lula e da
massa trabalhadora dos metalúrgicos “Leon Hirszman prefere sugerir a variada gama de
pensamentos e posições dentro da classe trabalhadora do que teorizar sobre elas” (Jorge, p.
140, 2011). Esta heterogeneidade entre os grevistas e os acontecimentos postos em prática por
eles se demonstra em vários aspectos: na repressão policial, na intervenção governamental no
sindicato, na postura de Lula nas assembleias, na volta da diretoria do sindicato depois da
intervenção, nas aprovações dos acordos coletivos nas assembleias, etcs.
Primeiramente, o filme trata de dar um panorama sobre a vida dos metalúrgicos e sua
batalha cotidiana, ao invés de um enfoque completamente voltado para as lutas que se
desenrolavam com as greves. Através de várias entrevistas com trabalhadores, Leon Hirszman
mostra como são as condições de trabalho, carga horária, material de proteção, salários
congelados e baixos, que não pagam por boas condições de vida e nem bens de consumo. Há
também espaço para o espectador compreender as diversas origens dos metalúrgicos, as
motivações para a profissão, a busca por emprego fixo, a luta por uma vida mais digna. Com
esta exploração maior da situação vivida por diferentes metalúrgicos individualmente,
permanece a impressão de que os metalúrgicos, seja grevistas ou não, são uma massa enorme
de pessoas muita diferentes, mas com condições sociais semelhantes.
Se em Greve! a câmera sempre se manteve à distância das forças policias, registrando
a repressão aos grevistas, com cenas de brutalidade, enfatizando a diferença entre os dois
grupos, em ABC da Greve surge o diálogo. Há várias cenas de negociação direta entre chefes
da polícia e grevistas, combinando como fica a situação dos piquetes na frente das portas das
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fábricas. Inúmeras vezes a polícia sinaliza que não agirá a não ser que seja necessário conter
um enfrentamento. Por sua vez os metalúrgicos se comprometem a mobilizar os
companheiros para atuarem longe da porta das fábricas.
Outro aspecto de pluralidade presente em ABC da Greve é que Lula é um líder
importante para o movimento, porém trata-se de um entre vários dos líderes sindicais do
movimento organizado dos metalúrgicos. Há inúmeras líderes que se pronunciam nas
assembleias. Mesmo que todos sejam da mesma diretoria do sindicato e concordem em geral
com as mesmas causas e táticas, a presença de outras vozes e porta-vozes dos metalúrgicos
faz parecer que a liderança de Lula é uma construção coletiva. Mesmo com imagens de Lula
desde o início do filme, é apenas mais adiante no filme que o narrador se empenhará em
explicar quem é este homem. Após uma breve biografia, que não é realizada para os outros
líderes sindicais, segue-se acompanhando os eventos e as manifestações de Lula, junto de
outros membros da diretoria do sindicato. Apesar de Lula despontar como presidente do
sindicato, uma liderança carismática com as massas, não lhe é conferido uma relação de
respeito maior do que aos outros líderes do sindicato.
A dirigência sindical inúmeras vezes ao longo do filme faz pedidos de calma, controle
e pensamento estratégico para a massa metalúrgica. Além de enfatizar as diferenças de
comportamento dos grevistas, este fato explicita ainda outro aspecto: as lideranças das greves
não possuiam um controle absoluto sobre o que estava acontecendo no ABC. Um exemplo
recorrente neste documentário são nos momentos de assembleia em que os líderes sindicais
pedem que os metalúrgicos não façam piquetes nas portas das fábricas para impedir que os
trabalhadores que não aderiram à greve entrem nas fábricas. Ao invés disso, eles recomendam
que os grevistas empenhem-se nos bairros e nas paradas de ônibus para convencer os ditos
“fura-greves” a não irem trabalhar. Ao mostrar os líderes sindicais fazendo esses apelos aos
seus liderados, o filme passa um aspecto de que as opiniões e estratégias de Lula e da sua
dirigência sindical não são unânimes na massa metalúrgica, enfraquecendo assim a sua força
como líderes absolutos.
Ao final do filme percebe-se que assim como os metalúrgicos são dotados de
diferentes comportamentos e linhas de pensamento, diferentes são as suas percepções sobre
Lula. Durante as assembleias em que são acordadas a volta ao trabalho por um período
temporário, é visível o descontentamento de parte dos metalúrgicos. De modo geral a imagem
do líder sindical é positiva, mas vemos que Lula é mais humano e menos messiânico,
precisando se esforçar mais para conquistar a empatia e os votos de confiança de seus
liderados.
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O último documentário do período das greves do ABC paulista é o filme Linha de
Montagem, de Renato Tapajós, lançado em 1981. Diferente da forma com que Greve! e ABC
da Greve tentam contextualizar o movimento grevista analizando-o com uma narração externa
às cenas, Linha de Montagem intercala cenas dos acontecimentos das greves com entrevistas
com os líderes do sindicato de São Bernardo do Campo e Diadema. Cada entrevistado conta
como os fatos ocorreram na sua visão, analisando em retrospecto ações que foram tomadas e
justificando outras ações que ocorreram ou não deram certo ou poderiam ter sido diferentes.
Além destas análises reflexivas póstumas aos eventos, as entrevistas servem muito para
explicar a organização do sindicato e dos trabalhadores como um todo.
Assim como em ABC da Greve, este filme confere representatividade para várias
lideranças do sindicato além de Lula. O filme também tenta demonstrar que apesar de Lula
ser a cara do movimento grevista, ele é mais um em meio há vários outros que coletivamente
conseguiram organizar as greves. Assim, Lula aparece novamente como alguém importante,
mas longe de ser o responsável exclusivo pelos acontecimentos do ABC.
Um dos primeiros aspectos diferenciais deste documentário é que ele faz um processo
de dar voz aos metalúrgicos e destina sua mensagem aos próprios metalúrgicos. Enquanto
Greve! e ABC da Greve são visivelmente realizados para um público externo às greves,
tentando analisar o ocorrido e explicá-lo para um leigo no assunto e para um público muito
diferente dos metalúrgicos, Linha de Montagem se propõe a ser um registro dos metalúrgicos
para eles mesmos. É uma forma de recuperar uma memória coletiva do movimento,
lembranças extraídas dos metalúrgicos para a posteridade de sua própria classe. Além de os
eventos das greves serem analizados pelos próprios participantes, por vezes temos a
impressão de que o filme tenta dar um passo-a-passo da organização da greve, para que não se
percam as estratégias e táticas, que podem vir a ser empregadas em um futuro próximo.
Este aspecto do filme ser dirigido ao público metalúrgico se dá muito em função da
forma como o projeto do filme foi idealizado. O diretor do filme Renato Tapajós já vinha
trabalhando junto ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo de Diadema na
realização de outros vídeos relativos às condições de trabalho dos metalúrgicos. Desta forma,
podemos observar que há uma relação mais próxima do cineasta com sua temática e seus
entrevistados. Linha de Montagem foi financiado pelo fundo de verbas do próprio sindicato,
portanto trata-se de um filme “oficial”, de certa forma um vídeo institucional, que os
metalúrigicos queriam produzir dando a visão deles mesmos para o movimento grevista.
O formato das entrevistas no filme, analisando eventos ocorridos no passado, também
serve para que os líderes sindicais de certa forma justifiquem decisões que podem não ter sido
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as melhores, mas eram as decisões que a situação extrema daqueles momentos acabou
exigindo. É uma forma também de eles corrigirem erros ou recuperar a confiança de certos
companheiros que se sentiram contrariados com certas decisões da dirigência do sindicato.
As formas de organização dos metalúrgicos é um dos pontos de maior destaque neste
filme. Para além do papel das lideranças do sindicato, tenta-se enfatizar que foi necessário
desenvolver formas de o movimento andar com as próprias pernas, no caso de ausência e
prisão dos líderes sindicais. Assim, são mostradas formas de auto-organização dos
metalúrgicos, buscando autonomia em relação às lideranças. Este aspecto é enfatizado pelas
falas dos sindicalistas entrevistados, que tentam conscientemente reduzir sua importância para
o movimento. Isso reflete na caracterização de Lula no filme, que é posto como um líder
substituível, mesmo que muito importante.
Um dos elementos de auto-organização que os metalúrgicos criaram foi o fundo de
greve. Este acaba sendo um dos temas centrais de Linha de Montagem. Quando os líderes do
sindicato percebem que podem sofrer intervenção federal e temem pela esfacelação do
movimento, percebem que precisam criar mecanismos que mantenham os metalúrgicos
mobilizados e com recursos financeiros para custear ações, transporte, panfletagens,
impressão de jornais, infra-estrutura para assembleias massivas, etcs. Assim eles sugerem que
através da organização própria dos trabalhadores, realizando eventos culturais, esportivos,
buscando aliados externos ao movimento, eles conseguiriam manter uma situação de greve
mesmo sem seus líderes sindicais. Desta forma, os entrevistados do filme passam a ideia de
que neste sentido os metalúrgicos foram vitoriosos, na medida em que foram se
conscientizando, politizando e organizando de maneira autônoma.
Lula é retratado como o indivíduo que cumpriu um determinado papel importante nos
acontecimentos, mas somente porque a classe inteira estava mobilizada e consciente de suas
ações, aceitando de livre e espontânea vontade a tarefa de lutar por seus direitos. Da mesma
forma como Lula é um dentre vários entrevistados da dirigência sindical, a sua importância
para o desenrolar dos fatos é relativizada e diminuída. No lugar disto, sobressai que o mais
importante são os metalúrigicos como um todo, sem a necessidade de um líder único e
perfeito.
O filme encerra com as análises finais dos líderes sindicais e apontam para um futuro
dos metalúrgicos e da classe trabalhadora brasileira como um todo. Retomando o aspecto da
autonomia e tomada de consciência dos metalúrgicos em exigir direitos e se organizar para
tanto, os entrevistados apontam para um “otimismo a longo prazo, e a de que a vitória final
dos trabalhadores depende de um crescente processo de experiência e aprendizagem” (Jorge,
41
p. 178, 2011). Com esta mensagem, Lula encerra o filme dizendo que o próximo passo de
organização dos trabalhadores explorados é influenciar a esfera política institucional, através
da conscientização de que é necessário a criação de um partido que represente a massa
trabalhadora. Antevendo a criação do Partido dos Trabalhadores, que seria criado futuramente
pelos próprios líderes sindicais do ABC junto de muitos outros, Lula reafirma seu caráter de
porta-voz dos trabalhadores.
Muitos anos mais tarde, com o PT encabeçado por Lula já disputando as eleições
presidenciais pela quarta vez, serão desenvolvidos dois filmes documentários: Peões(2004),
de Eduardo Coutinho, e Entreatos(2004), de João Moreira Salles. Ambos filmes nasceram e
foram rodados ao mesmo tempo. Inicialmente a produtora de Salles, Video Filmes, planejava
documentar as duas campanhas presidenciais de maior destaque, a de Lula e seu rival do
PSDB, José Serra. Devido à problemas orçamentários e dificuldade de convencer partidos
rivais a abrirem os bastidores de suas campanhas para equipes de filmagem de uma mesma
produtora, o projeto acabou se desenvolvendo diferentemente. Ao fim manteve-se a cobertura
dos bastidores da campanha de Lula, que se tornaria o filme Entreatos, e Eduardo Coutinho
focou em buscar os anônimos participantes das greves do ABC paulista, criando outro painel
sobre a figura de Lula no filme Peões.
Peões (2004) trata-se de um documentário do tipo participativo. A sua forma é uma
marca de seu autor, o cineasta Eduardo Coutinho. Coutinho, inicialmente um entusiasta do
cinema novo brasileiro, com influências do neo-realismo italiano, desenvolveu uma trajetória
no cinema documental que se caracteriza principalmente por dois fatores: a entrevista e a
interação. Os filmes de Coutinho procuram realizar uma colcha de retalhos entre falas de
diversas pessoas, que ao final despontam como um quadro maior que caracteriza algum
determinado assunto. As entrevistas realizadas sempre deixam à mostra as falas de Coutinho
como entrevistador, e assim se concebem diálogos de uma maneira única, que depende
necessariamente da interação do entrevistador com seus entrevistados. Não foi diferente em
Peões, que procura criar um painel dos grevistas do ABC através de suas histórias e memórias
expressas em seus diálogos com Coutinho.
O filme Peões se inicia com a equipe de Eduardo Coutinho empregando a trajetória
inversa de boa parte dos grevistas migrantes do nordeste brasileiro. Às vésperas das eleições
que colocariam Lula pela primeira vez como presidente da república, o filme busca
depoimentos de ex-metalúrgicos que participaram nas greves do ABC paulista em 1979 e
1980. Para iniciar o processo, a equipe de filmagem começa as gravações no interior do
Ceará, colhendo depoimentos de metalúrgicos, boa parte já aposentados, que empreenderam o
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jornada de ir embora de suas terras natais em busca de oportunidades de trabalho na região
sudeste.
O filme foca nos grevistas anônimos, aqueles que compunham a massa trabalhadora
que empreenderam suas lutas e não ficaram famosos. Ao longo do filme, Coutinho
contextualiza certos momentos das greves do ABC paulista com cenas dos documentários que
registraram o ocorrido, como em Greve!, ABC da Greve e Linha de Montagem. Junto disso,
ele busca pessoas que estão nestas imagens captadas, muitas vezes mostrando para o próprio
entrevistado alguma imagem dele naquela época. Dessa forma, Coutinho sempre procura
traçar um paralelo entre passado e presente vivenciado pelos entrevistados. Juntamente com o
contexto das eleições de Lula, o filme também acaba sinalizando para um futuro próximo e
incerto, em que os entrevistados depositam esperanças na eleição do ex-líder operário.
O que desponta ao longo do filme é um sentimento de orgulho do passado, seja na luta
pela sobrevivência, seja na luta por direitos dos metalúrgicos. O empreendimento de saírem
de suas terras locais, acuados pela seca, falta de terras e de emprego, e se lançarem ao
desconhecido é tido como uma atitude corajosa. Atitude que rendeu frutos, já que apesar de
toda exploração no trabalho metalúrgico, boa parte dos migrantes conseguiu melhorar seu
padrão de vida e voltar para suas terras natais. Assim, os ex-metalúrgicos, tal qual Lula, são
mostrados como vencedores.
Além da luta mais básica pela sobrevivência, emprego e melhora de vida, outro fator
emerge como saldo positivo das migrações dos nordestinos para o ABC: a consciência
política. Como muitos entrevistados atestam, se tivessem permanecido em seus locais de
origem, provavelmente não teriam contato com a militância e reinvindicação por direitos do
trabalhador. Foi através do sindicato que muitos conseguiram o estudo que nunca tiveram na
vida de trabalho precoce e nas parcas escolas públicas. Seja através de leituras sobre
sindicalismo, socialismo, história do Brasil e de outros países, foi só no contexto de uma
maior organização e união dos trabalhadores metalúrgicos que foi possível que eles mesmos
buscassem uma maior consciência sobre a sua condição de explorado na sociedade e assim se
espelhassem em outras lutas de outros lugares do mundo ao longo da história. Essa
característica reforça a importância do sindicato dos metalúrgicos e o papel de Lula como
liderança, na medida em que esses fatores afetaram o desenvolvimento intelectual dos
trabalhadores. Lula aparece em Peões como um líder nato, um guia, até mesmo como um
“segundo pai”, como diz um dos entrevistados, levando consciência para os metalúrgicos
ainda alienados.
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Apesar do filme só mostrar Lula em imagens de arquivo e tratar da pessoa dele através
de falas dos entrevistados, é um filme que fala sobre Lula a todo momento. Mesmo quando
em nenhum momento um entrevistado aborda diretamente algum assunto sobre Lula, ao
prestar informações sobre a migração nordestina, sobre a vida dura nas fábricas e sobre as
lutas das greves, os ex-metalúrgicos estão mostrando como vivenciaram uma história que em
muitas partes foi a mesma história vivenciada por Lula. Assim, o filme desenvolve uma
imagem de Lula criada espontaneamente em terceira pessoa, formada pelas falas de seus ex-
companheiros de classe e de luta.
Gravado juntamente de Peões, Entreatos (2004) trata-se de um documentário no
formato observativo. Com algumas exceções, o filme se atém a captar os bastidores, diálogos,
reuniões e viagens do candidato Lula sem interagir com as pessoas filmadas. As cenas se
desenrolam na frente da câmera como que fossemos um espião desvendando os mistérios
sigilosos de uma campanha política. Entretanto, o clima do filme não foca tanto na
organização da campanha, ressaltando mais o caráter pessoal e humano das pessoas
envolvidas no processo eleitoral.
Um aspecto do filme, explicitado na narração em off logo no seu início, é que Salles
montou o filme privilegiando os momentos mais íntimos da campanha. Ou seja, os bastidores
e acontecimentos casuais aos quais o eleitor em geral jamais tem acesso. Assim, o filme já
estabelece uma proximidade mais íntima com os personagens que pretende observar. Esse
modo observativo não é mantido ao longo de todo filme, pois há breves momentos de
interação entre a equipe de filmagem e seus objetos de observação, além de uma entrevista
explícita com um personagem. Porém, o filme mantém um estilo predominantemente
observativo e parece acompanhar seus personagens de uma forma que os mesmos aparentam
não se importar com a câmera.
Neste filme, Lula é o astro principal. Todo o documentário é centrado em seu
personagem e nos seus afazeres durante a campanha. Mesmo nas raras cenas em que foi
gravado outros personagens sem a presença de Lula, o assunto sempre é relativo ao candidato.
Desta forma, Entreatos é um filme muito personalista, a todo momento mostrando outra
faceta do seu personagem principal e com cada nova cena acabando por agregar mais
conteúdo para formar sua imagem final.
Mesmo com o filme focando nas cenas íntimas da campanha, o espectador sempre é
lembrado que está diante de uma figura popular, uma celebridade. O aspecto de Lula como
astro surge em cenas como em que manifestantes cercam seu carro querendo lhe estender a
mão, em que fotógrafos motorizados o perseguem em alta velocidade tal qual papparazis da
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Lady Diana ou quando eleitores esperam o resultado da eleição e comemoram o aniversário
de Lula no térreo do prédio onde Lula possui um apartamento. Outros momentos que
reforçam esse caráter de celebridade em si são cenas do filme que são extremamente
simplórias, em que não há nada de extraordinário ou interessante ocorrendo, apenas Lula,
assessores, políticos e publicitários fazendo atividades cotidianas. O fato de Lula ser ele
mesmo diante das câmeras por si só já despertaria o interessa das pessoas em sua imagem,
fazendo com que estas cenas cotidianas fossem mantidas na montagem do filme e assim
aumentando o aspecto de Lula ser uma celebridade não importa o que faça.
Inicialmente o público é iniciado nos bastidores de uma campanha política e às tarefas
diárias que rondam este trabalho eleitoral. No início Lula parece inseguro, sempre sob a
tutelagem de seus assessores, aliados políticos e publicitários da campanha, em especial do
marqueteiro político Duda Mendonça. Quase se cria a impressão de Lula ser apenas a fachada
da campanha, uma marionete que serve como rosto carismático para conquistar votos. Porém,
com o passar do tempo e com o aumento de familiaridade de Lula com a equipe de gravação,
sua interação e encenação para a câmera passam maior sensação de força e competência
própria, ao mesmo tempo em que mantém uma completa naturalidade.
Diferentemente dos filmes que retratam as greves do ABC no seu momento de
acontecimento ou em retrospecto como no caso de Linha de Montagem e mais recentemente
no filme Peões, há raríssimas cenas em que a vida de metalúrgico na fábrica é ressaltada
como uma qualidade ou como um exemplo de lutas para se ter orgulho. O Lula de Entreatos é
muito mais velho, engordou e aparece sempre engravatado. Quando Lula se refere à vida na
fábrica, tem boas recordações dos amigos, mas abomina toda forma de trabalho braçal e a
exploração cotidiana. Suas más lembranças não aparecem injustificadas, já que Lula explica a
dureza da vida metalúrgica para os assessores de campanha a sua volta, que assim como boa
parte do público do filme, não aparenta terem sido peões de fábrica como ele já foi.
A posição de Lula em relação a seu passado pode muito bem ser sincera, mas não
pode ser descontextualizada do momento eleitoral em que o documentário foi gravado. Lula
concorria pela quarta vez à presidência, desta vez para realmente ganhar a qualquer custo.
Para tanto, mudou muitas estratégias de campanha em relação a suas outras campanhas, como
a diferença de seu discurso radical para um discurso mais atenuado e positivo, o
comprometimento em manter relações de mercado e do comércio internacional, a ampliação
de alianças políticas, etcs. Neste contexto, como o próprio marqueteiro Duda Mendonça
explica no filme, há uma boa parte da população que ainda nutre medo da imagem grevista e
“tumultuadora” do Lula do passado. Assim, é mais do que lógico que Lula, consciente de que
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precisa mudar a imagem que o eleitorado tem dele, passe a falar do seu passado sindicalista
com mais cuidado e menos empolgação. Desta forma, Lula aproveita as câmeras de Salles
para demonstrar para o público que ele realmente mudou.
Um dos aspectos mais interessantes deste filme é que mesmo respeitando em grande
parte as ferramentas empregadas nos documentários observativos, o filme é abarrotado de
entrevistas sem entrevistas. Mesmo sem que haja um interlocutor para lhe fazer perguntas,
Lula muitas vezes se utiliza da câmera que o registra como uma forma de palanque eleitoral.
Há vários momentos que Lula aparenta querer explicar um certo ponto de vista seu ou decisão
eleitoral de seu partido. Lula então passa a discursar para o público do documentário, mesmo
que aparentemente ele esteja apenas conversando com seus assessores. Essas falas de Lula
podem muito bem serem calculadas para parecerem naturais, mas se tornam estranhas no
contexto em que são utilizadas, já que seus assessores não precisam ser convencidos de
nenhuma estratégia eleitoral, visto que já estão em plena campanha. Esta atitude de Lula
demonstra um pleno poder dele mesmo para com sua imagem pública e com a maneira como
ele pretende aparecer para o público.
Ao observar o tratamento que é dado à imagem de Lula em Entreatos, pode-se
concluir que ela é extremamente positiva, mesmo quando o documentário mantém na
montagem algum momento de maior irritação ou insegurança do candidato. O que sobressai é
a figura de um homem simpático, que não impõe sua vontade sobre a dos outros, é confiante
em si sem ser arrogante e acima de tudo é uma figura humanizada pelos seus pequenos atos de
simplicidade e de solidariedade. Mesmo quando Lula demonstra irritação, é um aspecto que
enfatiza o quanto ele também é um ser humano normal com diversos defeitos. É perceptível
que Lula desenvolve uma relação de cumplicidade com a câmera, ao desabafar certos pontos
de vista, criando assim ainda mais empatia com o público. Dessa forma, desponta um Lula
que mesmo tendo consciência da câmera e do público, podendo assim estar medindo cada
palavra e ato que faz, aparenta muita naturalidade, competência e humanidade.
O último filme produzido que caracteriza Lula é Lula - Filho do Brasil(2010), de
Fábio Barreto, que reconta de maneira ficcional a trajetória do ex-presidente desde a fuga da
miséria no interior de Pernambuco até sua chegada ao Planalto Central no carro presidencial.
O filme possui uma narrativa corriqueira, com momentos dramáticos típicos de filmes
biográficos ou mesmo de telenovelas brasileiras. O público acompanha de forma cronológica
momentos que marcaram a formação de Lula, principalmente na pobreza e dificuldade da
infância e juventude até o envolvimento com o sindicalismo e as pressões que surgiram com
este envolvimento.
46
O Lula de Filho do Brasil passa por todas provações típicas de estórias e narrativas.
Ele é um sujeito aparentemente comum, tal qual milhões de outros migrantes e pobres
brasileiros. Lutando pela sobrevivência em condições adversas, ele despontará como alguém
que apesar de semelhante a muitos outros, possui características únicas que o farão passar por
todos desafios que lhe são impostos. De certa forma, Lula é um herói predestinado à luta e à
vitória, herói que estava apenas esperando o chamado de uma jornada para que então suas
capacidades “sobre humanas” surgissem.
Tal como é o caso de muitas cinebiografias, Filho do Brasil comete vários erros
históricos. Muitas cenas juntam artificialmente fatos que ocorreram em momentos diferentes
da história de Lula. Isso pode ter ocorrido durante a roteirização filme como uma forma de
reduzir tempo de produção do filme ou como aglutinação de fatos para aumentar a carga
dramática de cada cena. Há vários pontos que podem ser levantados, como a extroversão de
Lula desde a infância no filme, característica que entra em contradição com biografias do ex-
presidente que revelam que o mesmo era tímido e não conseguia certos empregos por conta
disto (PINTO, 2011).
Para além dos detalhes de Lula que não podem ser comprovados com exatidão devido
à falta de registros sobre certos fatos de sua vida, é justamente no período das grandes greves
do ABC paulista que o filme torna-se confuso e pouco esclarecedor para o público leigo no
assunto. O filme não faz questão de pontuar datas precisas sobre as greves de 1979 e 1980. Ao
invés disso, condensou ambos momentos em um fato único, fazendo parecer que foi em uma
única greve que Lula foi afastado do sindicato junto com sua diretoria, voltou, foi preso pelo
DOPS, perdeu sua mãe, etcs. Não há contextualização das negociações entre os metalúrgicos
e seus patrões, nunca são mencionados os ganhos e perdas das greves, tampouco o fato de os
metalúrgicos terem cedido para fazer as negociações voltarem. Com essa mistura de eventos e
omissão de certos fatos importantes que permearam as greves, o filme passa a ideia de que foi
um movimento contínuo, organizado e vitorioso.
A imagem de Lula concebida no filme é ancorada em um personagem que se espelha
no homem real. Há cenas-chave que moldam esse personagem para o público, pois estão
carregadas de significado, principalmente pelo conteúdo de certos diálogos e atitudes tomadas
por certos personagens. Há momentos e cenas pensadas explicitamente para elencar uma ou
outra qualidade do ex-líder sindical, seja em um âmbito mais pessoal e humano, seja em um
âmbito mais político e de liderança.
Ao final, o Lula que é representado de diferentes maneiras em cada filme em
específico é um espelho para seus liderados, tanto como personagem de ficção de filme
47
quanto como registrado de forma documentária. É o operário que “deu certo”. Na luta e
trabalho duro alcançou a qualidade de vida, prestígio e poder que boa parte de seus ex-
companheiros e outros excluídos almejam possuir um dia. A imagem que o personagem Lula
passa ao público é a da esperança de prosperar. É a imagem do homem que se faz por si
mesmo com a ajuda de outros, basta lutar para realizar seus sonhos. Esta imagem e mensagem
são típicas dos mitos e dos heróis de cada cultura, que são alçados ao nível de extraordinário,
como um exemplo para que as pessoas se identifiquem e se projetem.
48
5 PEÕES E LULA – FILHO DO BRASIL
Sinopse Peões
Peões se inicia em Várzea Alegre, interior do estado de Ceará. Os créditos do filme
informam ao público que a gravação data de outubro de 2002, ou seja, na época do segundo
turno da eleição presidencial brasileira. Luiz Inácio Lula da Silva está concorrendo ao cargo
pela quarta vez. O projeto do filme foi desenvolvido por Eduardo Coutinho juntamente com o
documentarista João Moreira Salles. Inicialmente, cada cineasta pretendia acompanhar as
duas campanhas presidenciais do segundo turno daquelas eleições, presumivelmente as
campanhas de Lula e do candidato do Partido Social Democrata Brasileiro, José Serra. Após
esse projeto ser cancelado, João Moreira Salles seguiu encarregado de registar a campanha de
Lula, resultando no filme Entreatos. Eduardo Coutinho por sua vez se empenhou em registrar
entrevistas com os participantes das greves dos metalúrgicos da região do ABC paulista (a
saber, as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, polo
brasileiro da indústria automotiva), nos anos de 1979 e 1980. Este projeto resultou no filme
Peões.
No início do filme, a câmera registra o percurso de van que a equipe de gravação está
fazendo até a primeira entrevista da cidade. Logo em seguida o diretor do filme, Eduardo
Coutinho, aparece em frente ao portão de uma casa, perguntando se esta é a casa de Dona
Socorro. Uma mulher surge e diz que é a mulher que eles procuram.
Na entrevista de Socorro descobrimos que ela é natural de Várzea Alegre e se mudou
para o interior de São Paulo em busca de trabalho. Na região do ABC paulista ela se tornou
metalúrgica e se envolveu com o sindicato de sua categoria. Durante as greves de 1979 e 1980
ela não participou, mas se emocionava ao escutar no rádio o desenrolar dos fatos. Socorro
acha que estas greves foram fundamentais, já que naquela época lutar pelos seus direitos era
proibido. Ela ainda destaca o quão difícil foi ao mesmo tempo manter a vida sindical, o
casamento e a criação dos filhos.
Eduardo Coutinho realiza ainda mais cinco entrevistas na região. A história de todos ex-
metalúrgicos é muito semelhante. A pobreza e a seca nordestina dificultava qualquer
oportunidade de emprego, forçando muitos nordestinos a buscar emprego no setor
automobilístico que se desenvolvia fortemente nos arredores da capital do estado de São
49
Paulo. Todos atestam que a vida era muito difícil, forçou-os a se acostumar com outro clima e
ambiente, o trabalho era duro e sempre com riscos de acidentes. Apesar das dificuldades,
todos acham que foi um empreendimento que valeu a pena, seja pelo aspecto econômico ou
pelo aspecto político. Muitos conseguiram acumular dinheiro e usufruir de aposentadoria e
algum conforto material e maior qualidade de vida. No campo político, por conta do
envolvimento com o sindicato dos metalúrgicos e com greves reivindicatórias, muitos dos
entrevistados dizem que aprenderam o que era política e militância, desenvolvendo assim
senso crítico próprio e capacidade de decisão.
Após este trecho inicial em Várzea Alegre, o filme recapitula os eventos mais marcantes
do período das maiores greves do ABC paulista. Para tanto, se utiliza de letreiros com
informações entrecortadas por imagens de arquivo vindas de outros documentários, como no
caso do filme Linha de Montagem e Greve. Nestas imagens vemos os metalúrgicos em
assembleias e passeatas. Muitas das cenas destacam o papel de Lula como líder e porta-voz
dos momentos decisivos das greves de 1979 e 1980.
Após o panorama histórico, Eduardo Coutinho aparece junto dos ex-grevistas em São
Bernardo do Campo. Ele explica para os participantes do filme que a equipe de gravação está
à procura das pessoas que aparecem em fotos e vídeos da época das greves de 1979 e 1980.
Preferencialmente a equipe busca os anônimos, pessoas que não ficaram conhecidas na mídia
ou política pelo envolvimento com as greves. A seguir, Eduardo Coutinho exibe trechos de
documentários da época das greves. Os ex-metalúrgicos apontam vários rostos de conhecidos
e indicam para a equipe de gravação onde podem encontrá-los.
Após esta pesquisa, há mais um bloco de entrevistados. Todos contam suas histórias de
vida e envolvimento com o movimento grevista. Outro ponto em comum nas falas de todos é
o sentimento de orgulho do passado. Orgulho pelo trabalho difícil que executavam
cotidianamente e orgulho pelas lutas de reivindicações de direitos. Alguns destacam como
realizar uma greve nas condições políticas da época foi algo extremamente complicado e
importante para o processo de abertura política do país.
À medida que mais entrevistados dão suas opiniões sobre a luta grevista, também
surgem suas percepções sobre Lula. A maior parte deles conviveu com o ex-presidente do
sindicato durante aqueles anos que precederam a greve e mais além, portanto concedem sua
visão pessoal e política sobre Lula. Alguns destacam a capacidade de negociação e
adaptabilidade de Lula frente às situações diferentes. Outros lembram que ele é muito
inteligente. Outros ainda relembram traços afetivos de Lula, que seria honesto, corajoso e
cheio de compaixão pelos seus companheiros.
50
O papel de liderança de Lula também é recordado, com ex-grevistas considerando-o até
como um segundo pai, alguém que sabia convencer e fazer ver quais as melhores decisões
estratégicas a se tomar e alguém que conseguiu liderar e segurar um movimento massivo tão
grande e que poderia ter consequências perigosas. Estas falas são corroboradas por imagens
de arquivo de Lula em grandes assembleias, seja em momentos de decisão seja em momentos
emotivos.
Ao final do filme, no dia da eleição presidencial, Coutinho grava a última entrevista com
um dos peões. Este em especial é metalúrgico até hoje, mas não é contratado fixo. Coutinho
pergunta em quem o sujeito votou. O entrevistado responde que votou nos candidatos do
Partido dos Trabalhadores e reafirma que Lula na época das greves foi um heroi. Ele encerra
sua fala sobre Lula contando da época em que Lula foi preso na greve de 1980 e foi solto por
algumas horas para ir ao enterro de sua mãe. O metalúrgico lembra que a época do trabalho e
greve na fábrica foi muito difícil, mas foi muito bom e tem saudades. O entrevistado
questiona Coutinho se ele já foi peão, que responde que não. O filme se encerra aí, com um
letreiro que informa que Lula saiu vitorioso daquela eleição.
Sinopse Lula - Filho do Brasil
O filme Lula – Filho do Brasil é uma produção de ficção lançada no ano de 2009. A
direção ficou a cargo de Fábio Barreto, com produção de seu pai Luís Carlos Barreto, um
nome muito conhecido no cinema nacional. Trata-se de uma cinebiografia baseada no livro
homônimo de Denise Paraná. A produção e o lançamento do filme ocorreram ainda durante o
mandato de Lula como presidente. No ano seguinte ocorreriam as eleições presidenciais em
que Lula teria de deixar um sucessor em seu lugar, visto que ele já estava em seu segundo
mandato presidencial e a Constituição Brasileira estabelece duas eleições consecutivas para o
poder Executivo como limite.
Neste contexto, é perceptível que o filme era uma peça chave para influenciar na
maneira na qual o eleitorado percebe quem é Lula. Como o filme é baseado em uma biografia
oficial de Lula, mesmo antes da conclusão da obra surgiram acusações por parte da imprensa
de que o filme poderia ser mera peça de propaganda para elevar a popularidade de Lula e
assim assegurar a eleição de seu sucessor.
51
Já prevendo que poderia haver críticas à produção pelo seu contexto político e eleitoral,
o produtor Luís Carlos Barreto captou os recursos somente na iniciativa privada ao invés de
utilizar recursos públicos, uma medida tomada para afastar polêmicas caso o filme fosse pago
pelos recursos do estado, e seus contribuintes, para ser utilizado pelo governo em benefício
próprio. Não obstante, o filme foi patrocinado inteiramente pela iniciativa.
Estas polêmicas se seguiram até o lançamento do filme, que também enfrentou
represália de críticas artísticas quanto à qualidade do filme em si. Estes elementos podem ter
sido decisivos para o resultado de bilheteria do filme nas salas de cinema, abaixo do esperado
(LULA..., 2010).
Apesar do suposto fracasso frente à bilheteria esperada, o filme ainda conseguiu boa
exibição nas salas de cinema e em outros meios. Algum tempo depois quando Lula – Filho do
Brasil foi exibido na Rede Globo, alcançou ibope muito alto, comparável ao de capítulos das
suas telenovelas (LULA..., 2013).
Inicialmente Lula – Filho do Brasil mostra a família Da Silva no sertão de Pernambuco.
Aristides, pai de Lula, está saindo de casa para ir trabalhar no Estado de São Paulo, longe da
seca, da falta de recursos e de emprego. Junto dele vão o filho mais velho, Jaime, e uma
amante de Aristides, mas esta última a família não vê. A mãe de Lula, Eurídice, mais
conhecida e chamada por todos como Lindu, fica na casa precária com os outros filhos. Ela
estava grávida de Lula.
Tempos depois, Lula nasce. É o caçula de todos irmãos. Os anos passam rápido, e Lula
questiona a mãe sobre o paradeiro do pai. Ela desconversa.
Em Santos, litoral paulista, Aristides e Jaime trabalham como estivadores no porto.
Aristides, sendo analfabeto, pede a Jaime para escrever uma carta para Lindu. Jaime não
escreve o que Aristides quer. Ao invés disso, escreve na carta que Lindu deve vender tudo e
viajar com toda família para Santos. Aristides não suspeita de nada. Ao chegarem, após dias
de viagem no “pau de arara” da caçamba de caminhão, pegam Aristides de surpresa, que não
gosta nem um pouco da presença da família do sertão. Lindu e os filhos ainda descobrem que
Aristides tem outra mulher, já com filhos de Aristides. Lula encontra o pai pela primeira vez.
Todos na família trabalham da maneira que podem. Lula vende laranjas na rua e
frequenta a escola, escondido do pai. Uma professora de Lula se afeiçoa à ele e acha-o muito
inteligente. Esta professora vai até a casa de Lula para conversar com Lindu. Ela se oferece
para criar Lula, para lhe dar um futuro melhor com melhores condições econômicas. Lindu
recusa-se, dizendo que Lula já é alguém na vida e que ela que cria seus filhos. No mesmo
momento Aristides chega em casa, alcoolizado, e fica irado ao saber que Lula está estudando
52
em escola, pois para ele lugar de homem é no trabalho. Aristides ameaça bater em Lula e em
Lindu, mas Lula defende a mãe e o pai recua. Logo em seguida, Lindu toma a decisão de sair
da casa e levar seus filhos consigo.
Passam-se os anos e Lula adolescente segue fazendo “bicos” de emprego para conseguir
dinheiro extra, como entregador de roupas lavadas, etc. Lula tem uma amiga, Lurdes, com a
qual promete um dia ir junto ao cinema.
Lindu matricula Lula em curso de metalurgia do Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial, o Senai. Lula é aprovado para entrar no curso. Em uma fábrica, durante um dos
treinamentos dos jovens entrantes, Lula percebe um tonel de óleo para máquinas. Para
impressionar a mãe, que sempre quis ver o filho com o macacão sujo pelo trabalho de
metalúrgico, Lula coloca as mãos no tonel de óleo e suja seu próprio macacão. Ao chegar em
casa, a mãe se enche de orgulho. Em seguida, Lula se forma no curso do Senai.
Lula já empregado no ramo metalúrgico chega um dia à fábrica e é avisado que os
trabalhadores estão em greve. Ao voltar para casa, no meio do caminho Lula encontra o irmão
Ziza em um caminhão cheio de grevistas. Ziza o chama para vir junto e Lula aceita. Quando o
caminhão desembarca todos grevistas na porta de uma das fábricas em greve, eles começam
um tumulto e tentam derrubar o portão principal. Ao entrarem, os grevistas depredam o local,
quebrando janelas e revirando toneis. Um empresário do local aparece armado e atira contra
um dos manifestantes, atingindo-o. Os manifestantes enraivecidos o imobilizam e o jogam de
cima de uma escadaria, matando-o. Lula fica em choque e foge junto com Ziza. Longe do
local, Lula critica as depredações, a violência desnecessária e diz que essas práticas erradas
devem ser do partido de Ziza, o Partido Comunista Brasileiro.
Ocorre o golpe militar de 1964. Ocorrem demissões em massa nas fábricas, diminuição
do valor real do salário frente à inflação e o desemprego aumenta, parte da política econômica
do regime de favorecimento ao grande capital industrial. Durante este período, Lula precisa
buscar vários empregos para manter seu sustento. Em um de seus empregos, Lula presta
serviço em um torno mecânico. Ele está cansado e ao se distrair uma parte da máquina cai
com todo peso sobre sua mão. O ferimento sangra bastante. Ao amanhecer Lula chega em
casa, com a mão enfaixada e sem o seu dedo mínimo da mão esquerda, que teve de ser
amputado.
Lula é aceito em outra fábrica. Ao mesmo tempo, Lula começa a namorar Lurdes.
Próximo a promulgação do Ato Institucional nº5, Ziza convence Lula a ir à uma assembleia
do sindicato dos metalúrgicos. Ziza precisa encontrar alguém para ficar em seu lugar. Após
53
conversa com o presidente atual do sindicato, Feitosa, Lula é convencido de entrar na chapa
sindical.
Lurdes, apesar do medo de ter um marido sindicalista, aceita o casamento com Lula.
Lula começa a trabalhar com Feitosa no sindicato. Ele fica responsável pelo fundo de garantia
do sindicato, que distribui recursos para os trabalhadores que sofreram acidentes de trabalho
ou familiares de trabalhadores que morreram.
Lurdes anuncia para Lula que está grávida. Meses mais tarde, Lurdes é levada ao
pronto-socorro sentindo dores no ventre. Quando Lula chega, descobre que o filho que
esperavam nasceu morto e Lurdes morreu no parto.
Triste com a morte da esposa e filho, Lula se dedica como nunca ao sindicato. Ele chega
inclusive a enfrentar as políticas de Feitosa, que cada vez mais demonstra ser mentiroso e
aproveitador. Ao mesmo tempo, trabalhando no fundo de pensão do sindicato, Lula conhece
Marisa Letícia, uma jovem viúva que perdeu o marido. Os dois passam a se entender por
conta da situação parecida e começam namoro. Tempos depois, os dois se casam.
O tempo passa para o ano de 1975. Lula discursa intensamente em palanque do
sindicato. A ascensão dentro da entidade transcorre junto com o tempo. Em dado momento,
Lula já é presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema.
Ao comemorar o cargo, Lula recebe a notícia de que seu irmão sumiu. A sua família descobre
que Ziza foi preso pelo DOPS, acusado de subversão. Lula busca-o na cadeia, enfrentando
perguntas e humilhações psicológicas de oficial militar em uma sala de interrogatório. Ao fim
eles liberam Ziza, que visivelmente foi torturado.
Os anos passam novamente. Agora é o ano de 1977. Lula segue presidente do sindicato
e convoca greve na fábrica da Aço Villares SA. Esta empresa nacional foi fundada em 1945
em São Bernardo e sempre operou no ramo de industrialização de metais, criando
ferramentas, chapas de metal, peças para carros e eletrodomésticos. Logo após o anúncio da
greve, Lula recebe a notícia de que seu pai morreu. Ele não consegue esboçar muita tristeza,
já que não via o pai há muito tempo, e ainda reflete sobre como uma parte de sua
personalidade deve ter sido influenciada negativamente pelo convívio com Aristides.
Mais tempo se passa, para o ano de 1979. Lula lidera greve geral dos metalúrgicos do
ABC. Devido ao enorme número de trabalhadores sindicalizados em greve, os metalúrgicos
passam a fazer as suas assembleias no estádio de Vila Euclides, arena de futebol em São
Bernardo do Campo com capacidade para até dezesseis mil pessoas. Em uma destas
assembleias, todos trabalhadores clamam seu nome em coro. Lula decreta greve e diz para
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ninguém cair em provocações com a polícia. Apesar disso, nos dias seguintes ocorrem
intensos conflitos de rua, com prisão e violência bruta das forças policiais.
Dona Lindu está em cama de hospital, doente e fraca. Ao mesmo tempo, segue a greve.
Lula julga que é melhor os metalúrgicos voltarem temporariamente ao trabalho, para melhorar
organização e exigir recebimento de salário pelos dias parados. Lula é chamado de traidor por
sugerir esta ideia. Mais tarde, em assembleia improvisada dentro de igreja, Lula se coloca a
disposição para ser retirado do sindicato, se julgarem que ele não cumpriu seu papel como
deveria. Todos gritam por seu nome, exigindo sua permanência. Lula chora de emoção.
Ocorrem manifestações no feriado do Dia do Trabalhador, em apoio à greve dos
metalúrgicos. Em meio a esse contexto, a diretoria do sindicato dos metalúrgicos é afastada e
Lula e seus companheiros de gestão são presos pelo DOPS. Enquanto Lula está na prisão,
Lindu falece no hospital. O governo concede à Lula o direito de ir ao enterro da mãe. Lula se
despede de Lindu e prontamente é levado pelos agentes do governo. Em reação, os presentes
dizem que se não soltarem o Lula, ninguém volta ao trabalho. Lula segue sendo afastado do
cemitério, ao som das pessoas gritando por seu nome. A imagem escurece e o som de palavras
de ordem se mistura a mais sons de manifestação. Ao retornar o vídeo, vemos Lula e Marisa
em carro presidencial, no ano de 2003, na posse de sua primeira presidência. Os letreiros
finais do filme mostram que com a eleição de Lula o povo brasileiro mostrou que “nosso
esperança é maior do que o medo” e que Lula manteve-se fiel aos ensinamentos da mãe, que o
ensinou a “teimar” na vida contra todas adversidades.
55
6 ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
No presente capítulo apresenta-se a vertente de pesquisa, assim como o tipo de
pesquisa utilizado, as unidades de pesquisa investigadas, o método de análise empregado na
investigação do presente trabalho. Utilizando material bibliográfico sobre metodologia de
pesquisa e sempre tendo em mente os objetivos traçados para se alcançar e responder a
situação-problema proposta foram escolhidas as técnicas de pesquisa que melhor se
encaixavam com o tipo de análise que se propôs com a pesquisa deste trabalho.
Para realizar a análise dos dois filmes que trabalham o personagem Lula , decidiu-
se pela utilização de uma metodologia de pesquisa qualitativa. Naresh (2005) nos revela que a
pesquisa qualitativa é uma metodologia de pesquisa não estruturada, que se baseia na
utilização de pequenas amostras para propiciar ao pesquisador percepções e maior
compreensão do contexto do problema analisado. De acordo com Malhotra (2001), a pesquisa
qualitativa faz uso de descrições, interpretações e comparações para observar um fenômeno
específico, a procura de elementos que possam caracterizá-lo e assim representá-lo como tal.
De acordo com Roesch (2006), a pesquisa qualitativa é apropriada para a fase de uma
pesquisa quando se faz necessário criar proposições para a elaboração de planos, metas e
intervenções em um plano de pesquisa.
O tipo de pesquisa adotado, seguindo a linha qualitativa, foi a exploratória.
Segundo Marconi e Lakatos (1999), a pesquisa exploratória se caracteriza por realizar
investigações empíricas, com o objetivo de propor problemas e questões a serem resolvidas.
Dessa forma, a pesquisa exploratória possui algumas finalidades principais. Ela possibilita ao
pesquisador tomar maior conhecimento sobre um determinado tema, fato ou fenômeno a ser
pesquisado mais a fundo posteriormente. Ela também esclarece conceitos acerca dessas
temáticas pesquisadas, permitindo sua averiguação, confirmação e possível modificação. Por
fim, a pesquisa exploratória permite ao pesquisador formular hipóteses a respeito de um
estudo de caso específico.
De acordo com Malhotra (2001), a pesquisa exploratória concede ao pesquisador
um maior conhecimento sobre um tema ou problema a ser analisado. Partindo do ponto de
que, como nos diz Gil (1999), é necessário se apropriar de e conhecer todas ferramentas e
elementos presentes na situação-problema de uma pesquisa, esse tipo de pesquisa foi
escolhido para o presente trabalho para se traçar hipóteses de como as obras audiovisuais
analisadas dialogam com o público e entre si.
56
A pesquisa exploratória é apropriada para as primeiras fases de investigação sobre
um determinado problema, principalmente no caso de a temática ser pouco conhecida ou
explorada pelo pesquisador em questão. Para Mattar (2005), a pesquisa exploratória tem como
principal objetivo munir o pesquisador com um arcabouço teórico maior sobre o tema da
situação-problema a ser pesquisada. Ela é uma forma de pesquisa recomendada mesmo para
pesquisadores já familiarizados com o assunto de sua pesquisa, já que uma mesma temática
pode ser explorada das mais diversas formas e sob as mais variadas visões, interpretações e
versões. Através da pesquisa exploratória, um pesquisador poderá entrar em contato com um
maior número de leituras da temática em que ele irá se aprofundar.
A pesquisa exploratória é de utilidade quando se pretende formular um problema
ou definir esse problema em questão de forma mais elucidada. Segundo Malhotra (2001) essa
pesquisa ajuda a desenvolver outras hipóteses de um mesmo problema, sugere cursos de ação
para a pesquisa, explorando o problema para prover compreensão e entendimento sobre o
mesmo. Para Marconi e Lakatos (1999), vários procedimentos de coleta de dados podem ser
empregados através da pesquisa exploratória, sem a necessidade do emprego de técnicas
probabilísticas ou quantificáveis. A realização de entrevistas, a observação participante, a
análise de conteúdo, entre outros, são coletas de dados abrangidas pela pesquisa exploratória.
A flexibilidade e versatilidade das técnicas empregadas na pesquisa exploratória
são, segundo Malhotra (2001), algumas das maiores características da pesquisa exploratória.
Muitas vezes, mesmo respeitando os critérios dos métodos de coleta de dados e análise de
dados empregados, ela é uma pesquisa que não se utiliza de grandes protocolos e
procedimentos mais formais, raramente possuindo questionários rigidamente estruturados,
grandes amostragens como objeto de observação e planos de amostragem por probabilística.
Como bem revela Lima (2004), para proporcionar ao pesquisador um contato
mais profundo e direto com o seu tema de estudo, a pesquisa bibliográfica é a mais
recomendada para atingir esse objetivo. Segundo Marconi e Lakatos (1999), a pesquisa
bibliográfica, também chamada de pesquisa de fontes secundárias, abrange toda bibliografia
já publicada referente ao tema de estudo. Nesse tipo de pesquisa, procura-se fonte de
informação em diversos tipos de materiais documentais, desde publicações monográficas a
artigos científicos, através de fotografias, conferências, material impresso, obra audiovisual e
etc. Para melhor analisar as formas de representação do personagem Luiz Inácio Lula da Silva
documentada no cinema brasileiro, essa forma de coletas de dados foi a que melhor abarcou o
perfil da pesquisa desenvolvida.
57
A pesquisa bibliográfica não é realizada apenas de forma a repetir material já
publicado arranjado de outra maneira ou ordem. Para Manzo (1971) ela proporciona que o
pesquisador desenvolve conclusões novas através do estudo comparativo dos materias já
públicos sobre o mesmo. A respeito da pesquisa bibliográfica Mattar diz (2005, p.86) que
“uma das formas mais rápidas de amadurecer ou aprofundar um problema de pesquisa é
através do conhecimento dos trabalhos já feitos por outros, via levantamentos bibliográficos”.
Assim, é natural que se procure informação e o conhecimento prévio contido em publicações,
jornais, revistas, órgãos governamentais, sindicatos, organizações, entre outros.
Para a presente pesquisa monográfica foram analisados como unidades de estudo
dois filmes que possuem como protagonista o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os
filmes em questão são Lula – Filho do Brasil, de Bruno Barreto, e Peões, de Eduardo
Coutinho.
Analisando comparativamente esses dois filmes que abordam Lula como
personagem, foi possível estabelecer tipos de abordagem diferentes para o tema e
representações diversas para Lula, conforme os autores dos filmes, o método de produção
envolvido na produção deles e o contexto histórico em que cada filme foi realizado.
Em um primeiro momento se analisou cada longa-metragem em separado,
fragmentando sua trama, forma narrativa e elementos empregados em cenas importantes de
cada filme para representar o personagem Lula. Esses elementos que ajudam a construir a
narrativa de cada filme foram analisados se utilizando de publicações e fontes bibliográficas
sobre cinema em geral, em textos sobre esses filmes em específico ou em materias
elucidativos que abordam o tema. Analisando como as ferramentas cinematográficas foram
empregadas em cada filme e em suas cenas, foi possível interpretar como cada filme constrói
o personagem de Lula e qual visão cada filme tenta passar para o espectador sobre o
protagonista.
Por fim, pode-se traçar conclusões comparativas sobre como cada filme interpreta
Lula, o homem real e sua história de vida, e como cada filme constrói um Lula próprio para si.
Também se pôde observar como cada estilo de filme, ficção e não ficção, modificam a
percepção sobre o protagonista dos filmes, imprimindo um maior ou menor senso de realidade
ao personagem para os espectadores.
Dentro do veio qualitativo de pesquisa, o trabalho usará a análise fílmica socio-
histórica de Vanoye e Goliot-Leté, presente no livro Ensaio sobre a Análise Fílmica (1994),
para analisar ambos os filmes que são a unidade de estudo desta monografia. A análise fílmica
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geralmente resulta em um trabalho escrito, mas pode também gerar um trabalho audiovisual
ou ainda possuir uma forma mista.
Para Vanoye e Goliot-Leté (1994) analisar um filme é descontruí-lo de forma
detalhista. Dessa forma, é possível observar os elementos individuais que compõem um filme,
uma cena ou mesmo apenas um enquadramento do filme. Quando esses elementos estão
delimitados desta maneira, pode-se analisar como cada elemento, ferramenta ou recurso
fílmico contribuiu para tentar criar para o público certa percepção sobre um assunto presente
no filme. Esses elementos dificilmente seriam de possível observação ao apenas assistir um
filme ininterruptamente, já que as ferramentas e simbolismos individuais se diluem no
conjunto total de uma obra audiovisual. Essa forma de desconstrução de um filme é
apropriada também para que o analista consiga tomar um distanciamento da obra a ser
analisada. Em um segundo momento da análise, se faz necessário reconstruir o filme ou partes
dele, agora já de posse do conhecimento de seus elementos individuais. Ao tomar esses
elementos individuais de um filme, é possível estabelecer ligações entre eles e assim
compreender como esses elementos se associam para criar um significado total das obras.
Dentre os tipos possíveis de análise fílmica de Vanoye e Goliot-Leté, o autor optou
pela análise sócio-histórica. Nela leva-se em conta o contexto interior e exterior em que uma
obra audiovisual foi realizada. Vanoye e Goliot-Leté (1994) destacam que todo filme é fruto
de muitos fatores além das vontades de um determinado autor. Além de aspectos técnicos da
produção de um filme, como condição de filmagem, planejamento, financiadores e promoção,
há aspectos como o contexto em que o filme está inserido culturalmente. Obviamente um
filme é uma expressão de uma determinada cultura e carrega esses traços em si, assim como o
próprio autor de um filme carrega estes traços culturais em si em suas demais obras.
Além disso, um filme está inserido em um momento histórico que pode influenciar
na sua criação, nas suas ideias ou pode condicionar a maneira com que determinado assunto é
exposto. Para os filmes que tratam de Lula como personagem central, é de suma importância
levar em conta o contexto em que os filmes foram realizados. Primeiramente é importante
destacar que Lula é um homem público e ainda vivo, portanto sua história pessoal ainda não
acabou e pode vir a futuramente influenciar na percepção que o público possui sobre ele.
Mesmo se fosse já falecido, sempre há a possibilidade de que novas informações sobre Lula
cheguem ao público e isso alterar a imagem simbólica que se formou em torno dele.
Conforme o momento histórico e conjuntura política, um filme poderia estar sob
pressão de censura ideológica. Ou dependendo de seus financiadores, pode criar percepções
distorcidas, favoráveis ou desfavoráveis a certos assuntos. Há ainda outros fatores pontuais no
59
caso de filmes com Lula, tais como o período eleitoral. Portanto, é essencial levar em conta o
contexto socio-histórico em que uma obra audiovisual é desenvolvida para assim realizar uma
análise relevante de seus elementos e significados.
Com esta necessidade de analisar os filmes separando-os em seus elementos
individuais em seus elementos individuais e levando em conta o contexto em que eles foram
realizados, é necessário um método de catalogação e organização das informações recolhidas
e percebidas. Assim, foi determinado que a técnica de análise dos campos semânticos de
David Bordwell seria a mais adequada para o presente trabalho.
De acordo com Bordwell (1995) um campo semântico é um apanhado de unidades
linguísticas ou conceituais, referentes a um conteúdo ou elemento em comum. Ou seja, um
campo semântico pode se caracterizar como a delimitação de um assunto dentre vários
assuntos que um filme pode possuir. Após separar um filme em suas partes e elementos
individuais, é possível verificar, por exemplo, quais cenas se preocupam em destacar certo
assunto, ou quais cenas possuem uma mesma forma de observar certo aspecto. Assim, os
campos semânticos são úteis para se catalogar elementos e simbolismos cinematográficos
separados por elementos ou por temática. Desta forma pode-se verificar os padrões que eles se
repetem ao longo de um mesmo filme ou em uma comparação entre filmes diferentes.
Bordwell (1995) destaca que há três etapas para executar este tipo de pesquisa. A
primeira etapa é construir os campos semânticos que podem ser encaixados nos filmes. Após
isto é preciso definir os padrões e assuntos que ordenarão os campos. Posteriormente a estes
passos, pode-se analisar e comparar de forma textual os dados aferidos nos campos
semânticos. É importante também destacar que cada campo semântico pode ser representado
por uma tabela que elenca os elementos em destaque em determinado campo. Os campos
semânticos devem ser organizados conforme a abrangência e a especificidade do campo.
Quanto mais relativo ao total da obra e mais aberto a diferentes elementos, mais abrangente é
o campo. Quanto mais o campo tratar de questões individuais ou elementos restritos, mais
específico é o campo semântico.
Os três campos semânticos a serem aboradados no capítulo de análise são: política,
jornada do heroi e características do personagem Lula. Os indicativos dentro de cada campo
correspondem a um assunto, elemento ou estrutura do campo semântico. Estes indicativos
também são organizados na ordem de mais abrangente para mais específico, conforme os
acontecimentos cronológicos nas narrativas cinematográficas ou dos fatos historicos a eles
relacionados.
60
7 ANÁLISE DOS FILMES PEÕES E LULA - FILHO DO BRASIL
Peões e Lula - Filho do Brasil possuem entre si um personagem em comum
extremamente popular. Porém, pode-se observar que são filmes com formas e gêneros
completamente diferentes, realizados por cineastas com bagagens culturais e carreiras
distintas no cinema nacional. Para compreender como estes autores e suas referências de vida
profissional e pessoal podem influenciar no resultado final de ambos os filmes, é necessário
entender suas trajetórias.
O diretor de cinema Fábio Barreto vem de uma carreira de cinema comercial
típico, contando em muito com o apoio de seu pai, o experiente produtor Luís Carlos Barreto.
O produtor Barreto despontou no cinema brasileiro como produtor e fotógrafo de filmes do
Cinema Novo, movimento artístico no cinema brasileiro das décadas de 50 e 60 que trazia
traços da cultura popular brasileira apresentados com narrativas experimentais e conteúdo
simbólico de forte conotação política. Com o tempo, Luís Carlos Barreto passou a manter sua
carreira cinematográfica produzindo longa-metragens de cunho comercial, resultando em
filmes nacionais extremamente célebres, como Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976)1,
dirigido por seu outro filho cineasta, Bruno Barreto. Fábio Barreto desde o início de sua
carreira se identifica com a fase comercial das produções de seu pai. Seus filmes usam
narrativas com estruturas básicas já convencionadas no ramo cinematográfico da indústria
cultural. Estas características comerciais de sua cinematografia desagradam muito à crítica
audiovisual nacional. Porém, a alcunha de ser mais um comerciante do que um verdadeiro
artista não incomoda Fábio (2009), que vê sua obra e sua razão de ser como “colaborar para a
existência de uma indústria brasileira de cinema”.
Outro aspecto da filmografia de Fábio Barreto são as ambientações históricas,
algumas vezes remetendo a fatos reais. Nesta gama podemos destacar Luzia-Homem (1988),
O Quatrilho (1995), Bella Dona (1997) e A Paixão de Jacobina (2002). Todos os filmes
lidam com cenários de um passado histórico, dando ainda destaque para grupos sociais pouco
representados na cultura brasileira, muitas vezes comunidades afastadas dos centros urbanos.
Dois de seus filmes se passam no interior do estado do Ceará, demonstrando parte do
cotidiano difícil do sertão. Dirigir uma cinebiografia de um retirante nordestino está bastante
afinado com o repertório do cineasta, já que se trata de um personagem do interior do Brasil,
1 Dona Flor e seus Dois Maridos foi o filme brasileiro de maior bilheteria nacional até o ano de 2010, contando com 10.735.524 de espectadores pagantes, de acordo com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, departamento da Ancine – Agência Nacional do Cinema (2013).
61
lidando com um cotidiano de dificuldade de recursos, que acaba fazendo parte de um contexto
histórico único marcado por eventos que mudaram o país.
O outro diretor Eduardo Coutinho é um documentarista de enorme prestígio no
cinema nacional2. Muito adepto do método documental da entrevista, Coutinho realiza
documentários com o viés da interação com seus personagens. Os personagens de seus filmes
se constroem no momento da entrevista e da interação da equipe com os entrevistados. Ainda,
o próprio Coutinho acaba por se converter em um personagem de seus filmes ao
conscientemente permitir que ele e sua equipe apareçam durante cenas do filme e que eles
mantenham um diálogo com os entrevistados ao invés de ocultar a presença dos cineastas.
Além deste modo interativo de fazer filmes, outro elemento presente na
filmografia de Coutinho é a busca por expressividades da população brasileira mais típica. Em
1960 Coutinho torna-se integrante do Centro Popular de Cultura, organismo da União
Nacional dos Estudantes. Ali ele pôde percorrer o interior do Brasil e registrar de perto a
cultura e as condições de vida do que se concebe como a maior parte da população brasileira,
na maioria das vezes pessoas pobres e miseráveis, de parcos recursos e conhecimento.
Já em 1975, Eduardo Coutinho integra a equipe do Globo Repórter, da rede Globo
de televisão, onde ficaria até 1984. No programa ele realiza não somente documentários
televisivos puramente expositivos sobre um tema, mas consegue também estabelecer um tipo
de interação e construção de personagens únicos, como é o caso de Theodorico, Imperador do
Sertão (1978). São elementos que Coutinho utilizaria mais tarde em seus documentários
cinematográficos.
Ao realizar seus documentários, ele seguiu com a mesma preocupação de registrar
o popular, aquele que ao mesmo tempo é o mais presente e o mais anônimo na sociedade. O
projeto de Peões respeitou estes elementos cinematográficos do autor, que buscou registrar e
interagir com o homem comum e anônimo, que no caso deste filme são os ex-metalúrgicos e
ex-grevistas dos fins dos anos 70 e dos anos 80 no ABC paulista (LINS, 2004).
7.1 CONTEXTO DE PRODUÇÃO DE PEÕES E LULA FILHO DO BRASIL
2 De acordo com a Cinemateca Brasileira (2013) em 1984 o documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, ganhou 11 prêmios no Brasil e no mundo, trazendo imediato prestígio ao trabalho do cineasta dali para frente.
62
Outro aspecto determinante para a análise das duas obras presentes nesta
monografia é observar o contexto em que elas estão inseridas. Os filmes analisados trabalham
com um personagem que na vida real é alguém com grande influência no meio político
institucional, portanto o contexto político influencia fortemente na pré-produção, produção e
pós-produção de ambos os filmes. Como Lula é uma figura muito popular, se um autor deseja
gerar sucesso de público com seu filme ele pode criar uma imagem de Lula conforme a visão
popular já estabelecida sobre o ex-presidente. Em ambos os casos, motivações políticas e
econômicas podem afetar como é concebido para o público o personagem Lula.
Outro elemento importante na produção de qualquer filme é o seu financiamento,
pois sem ele uma produção sequer é concebida. A produção de um filme custa caro, fazendo-
se necessário um grande investimento público ou privado. Cada financiador possui interesses
quando apoia um determinado projeto cinematográfico, interesses estes que devem ser
levados em conta quando analisado o conteúdo presente nas obras. Um patrocinador pode até
influenciar diretamente no conteúdo de uma obra. Ou de maneira reversa, os produtores de
um filme podem modificar o conteúdo de um filme para apresentar seu projeto de maneira
mais atraente para um patrocinador. Seja no caso de financiadores privados ou públicos, os
interesses de cada parte podem influenciar na maneira positiva ou negativa com que as
temáticas dos filmes serão apresentadas e nos elementos que compõem os personagens.
O ambiente das forças políticas atuantes sobre a produção de um filme são de
enorme influência para o seu resultado final. No caso da política institucional os principais
fatores que devem ser levados em conta para o contexto da produção de um filme são quais as
forças políticas que estão na situação e oposição ao governo vigente e qual o contexto
eleitoral em que a obra é realizada e lançada. No caso de um filme que lida com a figura
pessoal de um político, este personagem pode receber um tratamento que o favoreça ou
desfavoreça no contexto de uma eleição. Conforme os objetivos dos autores em influenciar a
opinião pública ou um determinado público-alvo, certos aspectos pessoais ou políticos podem
ser realçados para cooptar o apoio de uma parcela da população. Assim, é importante levar em
conta inúmeros elementos que compõem o contexto socio-histórico dos filmes para entendê-
los.
Peões foi realizado enquanto se desenrolava a quarta campanha presidencial de
Lula. Tratava-se inicialmente de um trabalho conjunto das equipes de cinema dos
documentaristas Eduardo Coutinho e João Moreira Salles. Ambos tinham consciência de que
aquela eleição do ano de 2002 seria histórica não importando o seu desfecho. Lula já vinha
sendo apontado como favorito, depois de oito anos de governo já desgastado de Fernando
63
Henrique Cardoso. O sucessor de Fernando Henrique, José Serra, era o segundo favorito do
pleito eleitoral. Com a possibilidade da vitória de Lula, ambos documentaristas perceberam a
importância de gravar as campanhas políticas dos dois candidatos à presidência. Com a
impossibilidade para realizar este projeto, ambos resolveram priorizar Lula, cada um a sua
maneira. Enquanto João Moreira Salles registrava a campanha de Lula e desenvolvia o que
seria o filme Entreatos, Coutinho se ateve a uma frase do próprio Lula (apud Lins, 2004, p.
169) “eu só existo e sou o Lula porque existiram as greves do ABC.” Dessa forma, Coutinho
criou uma caracterização de Lula e daquela eleição presidencial através de entrevistas de ex-
participantes das greves metalúrgicas que Lula capitaneou no ABC paulista.
Lula - Filho do Brasil é concebido em um contexto em que Lula não somente já é
o presidente do país como está prestes a sair de seu cargo após o fim de seu segundo mandato.
No ano de 2009 se instaurava um clima de pré-eleição, com a opinião pública se indagando
quem seria o sucessor de Lula no poder executivo. Afinal, quem ficaria à altura do carisma de
Lula era uma grande dúvida. Por maior que fosse sua popularidade, não havia segurança de
que o eleitorado, acostumado a exercer o voto de forma mais personalista do que de forma
ideológica-partidária, concederia mais quatro anos para o PT na presidência.
Neste ambiente é lançado o Filho do Brasil, que de forma dramática e épica,
reconta a história de Lula desde o nascimento até a vitória de seu primeiro mandato. Pelo
contexto de seu lançamento, com Lula ainda no poder e brevemente em campanha eleitoral
indireta, o filme atraiu todo tipo de polêmica. Primeiramente foi questionada qual a imagem
de Lula que o filme iria estimular no público. Com Lula ainda no governo, se imaginava que o
filme seria amplamente financiado pelo Governo Federal, o que causaria interferência na
produção e na imagem de Lula. Além disso, o filme utilizou como base para o roteiro a
biografia oficial que Denise Paraná fez de Lula, que também colaborou diretamente com o
roteiro. O livro retrata a vida do ex-presidente de maneira bastante positiva e edificante. Para
afastar as possíveis críticas, Luís Carlos Barreto procurou financiar o filme sem dinheiro
público, para passar a credibilidade de que o filme não iria sofrer interferência governamental.
Por outro lado, segundo reportagens da revista Veja (Azevedo, 2009) e da revista Cult (Socha,
2009) os patrocinadores privados do filme são empresas ou com ligação direta com o governo
ou que executaram serviços ao governo e obtiveram muito lucro nos governos de Lula. Com
todas estas polêmicas ainda em sua produção, Fábio Barreto conseguiu dirigir um dos filmes
64
mais caros da história nacional e contou com receptividade muito abaixo do esperado nas
salas de cinema.3
7.2 CAMPOS SEMÂNTICOS
O trabalho da análise de filmes é congelar sequências individuais das obras e
destacar sua importância para o seu resultado final, que em última instância controla de que
forma o personagem Lula é desenvolvido e poderá ser interpretado pelo público
cinematográfico. Para separar estes momentos específicos, os campos semânticos são uma
ferramenta muito útil. Através de tabelas que destacam momentos e cenas elementares dos
filmes, se faz possível perceber os esforços que foram feitos em cada filme para a criação de
uma figura específica de Lula. Além disso, é possível traçar nestes campos semânticos uma
comparação entre os filmes na forma com que cada um aborda um tema ou emprega
ferramentas para obter um resultado que se almeja. Para este propósito, foram criadas tabelas
para representar três assuntos que compoem campos semânticos identificáveis nos dois filmes
em análise: a Jornada do Heroi, a Política e Personagem Lula.
A seguir, constarão as tabelas com os momentos de importância de cada filme já
elencados, necessitando posteriormente de uma análise descritiva sobre cada aspecto e os
elementos que se sobressaem em cada campo semântico. Ainda mais adiante nesta
monografia, serão desenvolvidas conclusões e considerações finais acerca do capítulo de
análise e do presente trabalho como um todo, sempre tendo em vista a busca pelos objetivos
iniciais traçados.
Jornada do Heroi
Indicações Apontamentos Peões Lula - Filho do Brasil
Mundo
Comum
- Entrevistados de
Várzea Alegre
- Miséria e seca no
nordeste brasileiro
3 À época do lançamento do filme, a produtora do filme Paula Barreto (2009) afirmou que o orçamento do filme era de R$ 12 milhões, o maior da história do cinema nacional. O consultor da produtora do filme, Luis Carlos Barreto (2009) esperava que o filme poderia alcançar a marca inédita de até 20 milhões de espectadores. De acordo com Observatório Brasileiro de Cinema e Audiovisual (2009), o filme obteve 848.733 espectadores pagantes.
65
- Nasce Luiz Inácio,
que sem conhecer o
pai, vive vida difícil
no interior de
Pernambuco com a
mãe e os irmãos.
Chamado à
Aventura
- Busca de melhores
oportunidades de vida
- Socorro ouvia sobre
as greves de 1979 no
rádio e se
emocionava, queria
ser metalúrgica
- Após receber carta
de Jaime, Dona Lindu
vai com os filhos para
Santos, SP. Lula “se
atira no mundo”,
como pai.
Recusa do
Chamado
- No meio da viagem
à Santos, Lula fica
chocado com morte
de um dos passageiros
que não resiste à
trajetória.
Encontro
com o
Mentor
- Letreiro
informativo: Lula
surge como líder dos
metalúrgicos
- Joaquim diz que
Lula era como um
segundo pai
- Lula conhece seu pai
Aristides, que rejeita
66
ele e sua família .
- Dona Lindu assume
a criação de sua
família e de Lula após
briga com Aristides
- Lula conhece
Feitosa, presidente do
sindicato dos
metalúrgicos
- Dona Lindu
aconselha Lula até o
fim da vida
Travessia do
Primeiro
Limiar
- Zélia relembra da
entrada de Lula no
sindicato e das
mudanças
- Lula, em Linha de
Montagem (1982)
influenciando
grevistas a seguirem
na luta
- Dona Lindu
matricula Lula no
SENAI
- Lula é aceito em
fábrica
- Ziza apresente
sindicato dos
metalúrgicos à Lula
- Lula aceita vaga no
sindicato dos
metalúrgicos
67
Testes,
Aliados e
Inimigos
- Trabalho na fábrica
era “escravo”, como
diz Zacarias
- Cena de Linha de
Montagem:
metalúrgicos em
assembleia de Vila
Euclides gritam
“Trabalhador unido,
jamais será vencido”
- Perseguição policial
nas ruas
- Estádio Vila
Euclides interditado
por governo
- João Chapéu: logo
depois de greve de 80
foi demitido por ter
participado da greve
- Nice e Januário
contam da dificuldade
de equilibrar vida
operária, sindical e
familiar-pessoal
- Lurdes não aceita
bem a ideia de seu
marido entrar para
sindicato.
- Morrem Lurdes e
seu filho recém
nascido.
- Lula desafia e acusa
Feitosa, presidente do
68
sindicato.
- Lula busca irmão
Ziza, preso e
torturado pelos
militares.
Aproximação
da Caverna
Oculta
- Tê diz que a
preparação de uma
“greve é que nem um
parto”
- Lula triste com
morte de Lurdes,
ocupa ainda mais seu
tempo com sindicato
- Lula é eleito
presidente do
sindicato dos
metalúrgicos de São
Bernardo do Campo e
Diadema
- Lula prepara greve
do sindicato
Provação - Perseguição às
greves
- Intervenção federal
no sindicato
- Lula e diretoria do
sindicato são presos
- Demissões de
grevistas
- Dona Lindu está
doente em cama de
hospital
- Lula pondera em
parar greve e
69
companheiros e
chamam de traidor
Recompensa - Lula, em imagem de
ABC da Greve,
decreta greve
novamente em 1980
- Lula é mantido na
diretoria do sindicato
- Mesmo com
fracasso da greve de
1980, Lula desponta
como figura nacional
- Greve dos
metalúrgicos segue,
mesmo com Lula e
lideranças presas. “Se
não soltar o Lula,
ninguém vai
trabalhar” clamam os
grevistas.
Caminho de
volta
- Elza: “Olha onde ele
[Lula] tá hoje”
- Letreiro informa que
Lula foi liberado da
prisão e tentou se
eleger presidente da
república por três
vezes. E ele seguiu
tentando.
70
Ressureição - Tê: “Lula está
chegando ao poder”
- Letreiro final: Lula é
eleito presidente em
segundo turno
- Lula é eleito
primeiro presidente
de origem humilde do
Brasil
Retorno com
Elixir
- Hoje Bezerra vota
com a própria
consciência, não à
cabresto
- João Chapéu no
sindicato aprendeu
que só se melhora de
vida lutando
- Nice: “fiz meu papel
pra que hoje as
pessoas possam se
expressar com mais
liberdade”
- Januário: “...faria
tudo de novo”
- Mensagem final ao
espectador: “Nossa
esperança é maior do
que o nosso medo.”
Ambos filmes em análise possuem traços da clássica jornada do heroi. Peões
possui traços mais fragmentados, menos preso às etapas e à ordem cronológica das etapas da
jornada do heroi. Já Lula - Filho do Brasil é bastante próximo da jornada padrão. O uso da
formula da jornada do herói em cada filme pode se dar por conta do tipo de filme que cada
diretor pretendia realizar.
71
Peões, tratando-se de um documentário, não possui tendência a trabalhar com uma
jornada do heroi, já que os personagens que compoem sua narrativa são pessoas que prestam
depoimentos para um entrevistador, supostamente de maneira espontânea. Além desta
premissa básica da forma documental participativa, Eduardo Coutinho em seus trabalhos opta
por realizar cortes das falas de um entrevistado para outra fala dele mesmo, até o momento
que se esgotarem os assuntos da conversa ou as ações dos personagens que demonstram ao
público traços peculiares de suas personalidades. Dessa forma, cada ex-metalúrgico
entrevistado relata separadamente a sua jornada pessoal, que acaba por ter traços da jornado
do herói clássica. Ainda assim, cada entrevistado vê e relata sua trajetória a sua maneira, de
forma que há semelhanças e diferenças entre as histórias de cada ex-operário. Algumas
histórias dos ex-metalúrgicos retratam maior ou menor sucesso em suas jornadas pessoais e
seus objetivos, mas todos atestam que participaram de acontecimentos que deixaram
influências para o resto de suas vidas, um traço essencial das míticas jornadas do heroi.
Em Peões é possível aplicar a lógica da jornada do heroi de forma mais básica e
com alguns de seus passos mais triviais. Invariavelmente, há vários elementos que condizem
com os elementos de uma jornada, principalmente o fato de que cada entrevistado pode ser
considerado um heroi que percorreu uma trilha de aventuras e desbravações em busca de uma
recompensa, seja essa recompensa a qualidade de vida, seja a conquista de direitos
trabalhistas para sua categoria, seja a conscientização política própria e de seus próximos.
Todos entrevistados atestam que não foram mais os mesmos desde que empreenderam a
viagem do nordeste ao sudeste em busca de emprego melhor. Ainda mais modificados
ficaram aqueles que participaram ativamente das greves e até mesmo de organizações
sindicais.
Peões inicia suas entrevistas na cidade de Várzea Alegre, no interior do Ceára.
Esta característica já denota o tipo de depoimento que Coutinho colhe de seus entrevistados: a
viagem de ida e de volta do retirante nordestino em busca de melhores oportunidades de vida.
Assim, logo é possível estabelecer um paralelo com a jornada do herói, visto que ela sempre
descreve a trajetória de um indivíduo que explora um mundo novo e volta ao seu lugar de
origem para trazer as experiências que colheu na jornada. Este é o caso destes ex-metalúrgicos
de Várzea Alegre. Todos saíram de seu lugar de origem pacato para enfrentar o desconhecido
mundo metropolitano em plena ascenção industrial do ABC paulista. Nenhum deles tinha
referência de como seria o modo de vida e de trabalho lá, apenas tinham o objetivo de
experimentar outra vida para poder voltar ao interior do Ceará em melhores condições
financeiras.
72
Quando se relaciona a jornada do herói com o mito do retirante nordestino, não é
possível traçar a figura de um Mentor para a jornada que os retirantes realizaram. Em
nenhuma entrevista eles citam alguma referência de algum migrante nordestino específico de
sucesso, tampouco é aclarado no filme que informações os levaram a empregar esta jornada
sem terem conhecimento dos desafios que teriam de enfrentar para sobreviver e estabelecer
uma vida com mais recursos financeiros.
Ao analisar a jornada do heroi compreendendo a luta sindical e a luta dos
metalúrgicos por direitos, fica claro que o Mentor de todos ex-grevistas é Lula. Ele mostrou
aos metalúrgicos a importância de reivindicar direitos, conscientizou os metalúrgicos de que
cada um possui importância política, estimulou a luta e união de trabalhadores de diferentes
ramos, inspirou os metalúrgicos a se mobilizarem e a acreditar em uma vida melhor, a
acreditar em uma greve que funcionasse como pressão para negociar com os donos das
empresas por melhores condições de trabalho e a acreditar no sindicalismo como método de
organização para a luta de direitos da classe trabalhadora. Peões condensa este aspecto de
Lula como inspirador dos valores da jornada do heroi de cada ex-grevista com um fragmento
do filme Linha de Montagem (1981), em que Lula (2004) diz que “nunca os trabalhadores
conseguiram ganhar nada sem que houvesse luta, sem que houvesse perseverança, sem que
houvesse disposição de brigar até o fim”.
Os grevistas que abordam o assunto das greves são unânimes em declarar que as
greves dos metalúrgicos não seriam as mesmas sem Lula como presidente do sindicato e líder
de massas. O metalúrgico Geraldo (2004) diz que na luta por melhoras através das greves
Lula foi efetivamente um heroi. Ainda de acordo com outros ex-grevistas, muitos
metalúrgicos anteriormente apáticos e apolíticos passaram a acreditar na importância de lutar
por direitos humanos, de se envolver com política e sindicalismo e na possibilidade de vitória
da categoria metalúrgica graças a disposição e a vontade de vencer de Lula.
Os peões também falam de todos sacrifícios que fizeram, seja na vida profissional
ou mesmo pessoal, por conta da exploração do trabalho, da falta de respeito pela vida do
trabalhador, das perseguições de quem se envolve com sindicalismo e política. O que todos
atestam em comum é o orgulho em terem feito tudo o que fizeram e orgulho de eles serem
quem eles são hoje. Alguns, como Geraldo e Antônio (2004) enfatizam o orgulho de exercer
sua profissão de metalúrgico de maneira bem feita e incessante. Outros demonstram este
orgulho em uma forma mais política, seja na conquista de direitos para trabalhadores seja em
um âmbito mais político e trangressor. Para a ex-sindicalista Nice (2004), ter participado das
greves e passeatas em apoio às greves foi uma forma de desafiar o poder das empresas e do
73
próprio regime político. Ela se diz satisfeita de durante a ditadura militar poder ter contribuído
para a conquista da liberdade de expressão no Brasil.
Alguns dos ex-grevistas relatam trajetórias de maior sucesso que outros. Geraldo
(2004) revela que até a data da gravação do filme ele ainda era metalúrgico. Socorro voltou a
sua terra natal de Várzea Alegre, mas depende da pensão do ex-marido para se sustentar, pois
não há emprego na cidade. Já metalúrgicos mais envolvidos com os sindicatos tiveram mais
oportunidades no futuro. Januário, por exemplo, trabalhou como fotógrafo em sindicato e
ainda foi votado para exercer três mandatos sindicais. Bitu (2004) diz que foi demitido por
participar de greve em 1988, mas hoje é muito feliz trabalhando junto com movimentos
sociais e comunidades carentes através da prefeitura de São Bernardo do Campo. Apesar das
diferenças nas trajetórias de cada um, cada ex-grevista participou de uma jornada que os levou
para fora de seus cotidianos e acabou por transformá-los neste processo.
Lula - Filho do Brasil é uma ficção de padrão comercial e por esta razão segue as
prescrições de sucesso instantâneo dos manuais de roteiro, que se baseiam na jornado do
heroi. Em grande parte o filme se enquadra nesta forma. Porém, há muitos momentos
desconexos entre si, o que demonstra que apesar da vontade de realizar um roteiro em um
formato facilmente compreensível e consumível pelo público, há cenas que parecem possuir
importância para a formação do personagem principal, mas são cenas que não procuram em
nenhum momento fazer com que a trama do roteiro se desenvolva. Como um exemplo pode-
se citar as cenas em que a professora de colégio de Lula elogia sua inteligência e esforço para
logo em seguida ela se oferecer para adotá-lo. Após essa cena, ocorre uma briga que resulta
na separação do pai de Lula do resto da família. Nesse sequenciamente de cenas, não é
possível ver um critério que conecta as duas cenas, ficando uma destinada a mostrar uma
característica do protagonista e a outra cena responsável por dar real sequência aos eventos da
trama.
Filho do Brasil é um melodrama clássico com Lula sendo Lula o Heroi
melodramático perfeito, aquele que apesar de todas adversidades e prognósticos persevera na
sua jornada ao se manter íntegro aos seus valores e aos valores que sua Jornada e Mentora
representam. Ele é o menino pobre que possuía como único alicerce a família e
principalmente sua mãe Dona Lindu, a Mentora da jornada. Lula, sempre carregando consigo
a esperança e a ética que sua Mentora lhe inspirou ao longo da jornada do filme, alcança a
redenção de sua jornada ao chegar à presidência da República, com a promessa de ser um
redentor para seu povo, seja ele o nordestino, o pobre ou o trabalhador explorado. Assim ele
74
torna-se como sua mãe, inspirando a esperança, a força de lutar e a ética, completando sua
jornada vencendo todas as forças que se abatiam contra ele.
A opção pela forma básica de jornada do heroi pode ser entendida de duas
maneiras. A principal tem a ver com o diretor do filme Fábio Barreto, que possui uma
cinematografia composta por filme com pretensões comerciais, que portanto obedecem aos
padrões narrativos e estéticos já instituídos do cinema massivo. Estes padrões funcionam
como um salva-guarda para alcançar sucesso de público, já que a população com contato com
as artes audiovisuais já estariam acostumadas a um padrão de elementos, e ao mudá-los um
cineasta estaria dificultando o sucesso de seu filme ao fazer uma obra que pode ser
trangressora e incompreensível para o grande público acostumado aos padrões.
A outra justificativa é que por se tratar de um filme que explora a figura de uma
pessoa muito popular, o roteiro só poderia seguir padrões populares de gosto da maior parte
da população. Somado ao tema, o filme teve lançamento contando com um esquema robusto,
que segundo Fábio Barreto (2009) contou com 400 cópias distribuídas em sua estreia nos
cinemas.
Assim como nos melodramas, as “forças do mal” se abatem sobre Lula e sua
família como ondas incessantes e disformes, muitas vezes forças que estão fora do controle
dos personagens. A seca do nordeste é uma dessas forças. A chuva que derruba o barraco da
família em Santos é outro exemplo, sempre ligado a uma força ou característica da natureza.
Quando Lula e Ziza começam a se envolver com sindicalismo, o roteiro passa a materializar
essas forças opositoras como o regime militar, seja na política de arrocho salarial, seja na
estrutura legislativa que mantém os sindicatos controlados ou no momento em que Ziza é
preso por seu envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro. Nos momentos de greve dos
metalúrgicos o regime militar, atuando na forma da Lei e de seus executores burocratas e
policias, declara a greve ilegal, intervém no sindicato e prende sua diretoria e Lula. Apenas na
cena final da conquistada da presidência da república é que Lula vence todas as forças que
impediam a alguém de suas origens a alcançar este posto de poder.
Dona Lindu é a Mentora principal da jornada. Porém, há outras pequenas jornadas
do heroi dentro da jornada geral de Lula. No início do filme há um arco da estória em que
pode-se identificar que o pai Aristides brevemente ocupa o espaço do Mentor. Dona Lindu
(2010) fala para o pequeno Lula que “seu pai caiu no mundo” ao explicar a ausência do pai
em busca de recursos para sustentar a família. Devido ao fato de Aristides conseguir mandar
dinheiro para a família trabalhando em Santos, a família não acha descabida a proposta que
Aristides lhes faz em uma carta para que eles venham morar com ele, mesmo que a carta fosse
75
um texto falso escrito por Jaime, irmão mais velho de Lula. Quando Dona Lindu decide rumar
para Santos, Lula (2010) exclama “Agora é nossa vez de cair no mundo!”, demonstrando que
ele está seguindo os passos do pai, que inspira esta etapa da jornada.
Ao conhecer o pai, é estabelecido no roteiro que a mentora passa a ser a mãe de
Lula. O pai não aceita a família do nordeste em Santos. Ao conviver com o pai, Lula vê que
ele não é um personagem que seja exemplo de virtude e valores de sua jornada. A partir daí o
grande referencial de Lula será quase que exclusivamente sua mãe, enfim a mentora da
jornada. Ela é a força de vontade que luta por uma vida melhor para sua família, não
importando o quão improvável sejam as chances deles conseguirem melhorar de vida.
Quando Lula ingressa no sindicato, o presidente atual Feitosa passa a ser outro
mentor. Ao aceitar entrar no sindicato, aceita o sindicalista Feitosa como um mestre. Ao falar
nas assembleias, ele atrai a atenção de Lula para o sindicato. Depois ele lhe consegue o
primeiro emprego fora da linha de montagem da fábrica. Lula torna-se seu pupilo dentro do
sindicato, mostrando a ele como funciona a entidade e para que ela poderia ainda servir.
Com a decepção que Feitosa se torna para Lula, o heroi reafirma que Dona Lindu é
sua mentora, principalmente no que tange os seus valores e a esperança de lutar por uma vida
melhor, mesmo que para Lindu isso não se traduza como o sindicalismo. A própria Lindu não
se põe verdadeiramente contra, pois apoia o filho, mas mantém-se preocupada frente ao
contexto em que eles vivem. Efetivamente, ela anteviu os problemas a serem enfrentados na
próxima etapa da jornada do heroi, em seu terceiro ato dedicado à luta sindical.
A mentora de Lula, Dona Lindu, é uma figura bem trabalhada ao longo do filme.
Até o momento final o espectador é lembrado de sua importância para a formação de Lula,
utilizada como uma das justificativas para explicar como Lula pôde perseverar e chegar no
posto máximo de poder na República do Brasil.
A jornada de Lula em Filho do Brasil é materializada pelo desejo de se alcançar
uma vida melhor. Inicialmente este conceito de vida melhor é apenas um emprego com
melhor renda mediante menor esforço. Após passar pela infância miserável no nordeste e pela
adolescência pobre no ABC paulista, Lula alcança o primeiro objetivo que sua mentora, Dona
Lindu, sempre traçou para o filho-heroi: ser metalúrgico. Após este evento, a vida de Lula e
de sua família mudam, pois apesar de seguirem vivendo de forma humilde, possuem salário
estável e suficiente para custear elementos básicos e bens de consumo que garantem
comodidade e entretenimento. Até certo ponto da jornada, a preocupação de Lula passa a ser o
futebol e as novelas televisivas. O despertar para o segundo momento da jornada acontece
conforme aumenta o envolvimento de Lula no sindicato. Deste momento em diante, os
76
valores da jornada de Lula se materializam no fortalecimento do sindicato dos metalúrgicos
para organizar e politizar a classe dos trabalhadores da indústria para lutarem por condições
mais dignas de trabalho.
Ao final o filme deixa uma mensagem ambígua em relação ao resto do roteiro. A
penúltima cena do filme é um anti-climax em que o futuro da greve está incerta, o sindicato
está sob intervenção, Lula e suas lideranças estão presos e por fim sua mãe morre. Na última
cena do filme, Lula termina sendo empossado Presidente do Brasil e se escuta sua voz
discursando, relembrando que o exemplo da mãe o fez chegar até ali. Os problemas
desenvolvidos na trama não foram resolvidos. Nem Lula nem sua mãe anteviram um futuro
com o filho presidente da República. Tampouco é mencionado a construção deste objetivo, a
tomada de poder como o caminho para o sucesso da jornada e redenção dos trabalhadores
explorados. Ao se pensar em um espectador que desconhece completamente a história real de
Lula, o final do filme é uma surpresa sem explicações.
Política
Indicações Apontamentos Peões Lula - Filho do Brasil
Metalúrgico/
Peão de
fábrica
- Antônio: “já estou
preparado para ver meu
filho peão de fábrica.”
- Antônio: “É desmérito
[ser peão de fábrica]? É
orgulho!”
- Geraldo tem orgulho
de fazer um trabalho
bem feito
- O filho pequeno de
João Chapéu achava
que todos carros tinham
peças que o pai tinha
feito na fábrica.
- Januário diz que
atualmente empresas
mecanizadas
77
eliminaram muitos
postos de trabalho que
metalúrgicos
realizavam
- Lula realiza o sonho
da mãe de vê-lo
metalúrgico
Falta de
direitos
trabalhistas
- Zacarias: “a gente era
tratado como escravo”
- Antônio e George:
Acidentes de trabalho e
condições insalúbres.
“Por que [você acha]
que Lula não tem um
dedo?”
- Lula, cansado pelo
excesso de trabalho,
acidentalmente deixa
prensa de máquina cair
sobre sua mão e perde o
dedo mínimo.
Classe
patronal,
empresários
- Zacarias ia chorar no
banheiro de raiva para
não bater em chefes
- Antônio diz que
“Quando a gente se
acidenta é um
desmerecimento
profissional muito
grande.”
- Lula na greve de
1980, em cena de Linha
de Montagem “Todos
78
sabem porque estamos
em greve...só não
querem saber os nossos
empresários.”
- Lula lamenta que
grevistas aliados de
Ziza tenham matado um
empresário em
confusão dentro de
fábrica
- Lula diz que patrões e
funcionários não são
inimigos, pois um paga
o salário do outro
Sindicato - João Chapéu:
“Sindicalismo, eu acho
isso uma coisa linda!”
- Zacarias chama
Coutinho de
“companheiro”.
- Cena de ABC da
Greve: “Trabalhador
unido jamais será
vencido.”
- Lula em cena de
Linha de Montagem:
“Eu já falei que
sindicato não é esse
prédio.”
- Lula assume como
“sangue novo” no
sindicato
79
Greve - Tê: Greve é que nem
gestação e parto
- Cenas de Lula em
assembleia
- Cena de Lula em
pedindo aos grevistas a
volta ao trabalho
- Socorro: greves
possibilitaram às
pessoas lutarem por
seus direitos em uma
época em que isso era
proibido.
Nice: a luta por direitos
ajudou a reacender
liberdade de expressão
no país.
Regime
militar
- Cartão “a repressão é
violenta”
- Zacarias: corri muito
da polícia. Vi muitos
companheiros sendo
preso.
- Socorro fala sobre
greves de 1979 e 1980:
“Até aquele tempo era
proibido lutar.”
Nice: “eu dei a minha
participação pra que
hoje as pessoas possam
ir pra rua, possam
criticar, possam opinar,
80
porque na época nós
não podíamos.”
- Elza diz que Lula foi
mais perseguido pelo
governo do que os
outros
- AI-5 Lula: “eles já
tomaram tudo, que
querem mais?”
- Irmão de Lula é preso,
agente da repressão
- Lula diz que o povo
ainda vai se revoltar
contra a opressão do
governo
- Governo intervém em
greve e sindicato
- Polícia prende Lula
Despertar de
consciência
política
- João Chapéu aprendeu
que só se conquista
direitos ao se
conscientizar deles e
lutar por eles.
- Bezerra hoje vota com
consciência própria.
- Zé Pretinho diz que se
com Lula eleito
presidente “nada vier
pra nós, aí o bicho
pega!”
- Lula preferia novela à
sindicato até conhecer
de perto a entidade
81
- Lula observa
diferença injusta entre
patrões e empregados
Partido dos
Trabalhadore
s
- Tê: a propostado PT
seria fazer tudo
diferente na polítca
- Zé Pretinho: O plano
de governo do Lula é o
PT
- Geraldo votou nos 13,
Lula e Mercadante
- Não há nenhum
registro em Filho do
Brasil, mesmo na cena
da eleição de Lula.
Ideologia - Tê: “O Lula está
chegando ao poder, não
o PT.”
- Zé Pretinho se diz de
esquerda, confia em
Lula, mas também sabe
que governo é incerto
- Lula critica PCB,
partido do irmão Ziza,
como arruaceiros
- Feitosa diz que
ideologia é coisa pra
bitolado
-Lula diz em
assembleia que
trabalhador não é nem
de direita, nem de
82
esquerda
- Lula, ao ser
interrogado por militar,
diz que não é comunista
Em Peões as posições políticas e percepções sobre o trabalho de fábrica,
sindicalismo, eleições, patrões, militância podem servir para verificar como pensa uma parte
do eleitorado de Lula e que por terem convivido com ele parecem apontar para quais eram ou
ainda seriam as posições políticas do próprio Lula. Como alguns entrevistados dizem, a
maioria não convive com Lula há muito tempo, mas a memória que eles mantém do ex-líder
sindical e candidato à presidente da república é positiva e esperançosa.
Em Lula – Filho do Brasil as cenas mostram as percepções do personagem de Lula
sobre atividades políticas (como sindicalismo, greves e eleições), grupos socias (metalúrgicos,
empresários, funcionários, chefes) e ideologia quanto à regimes políticos (ditadura militar,
democracia, esquerda, direita). Como se trata de um filme de ficção atrelado politicamente ao
período eleitoral da campanha presidencial de 2010, o Lula criado para o filme age de acordo
com as percepções que se pretendia imprimir no potencial eleitor de Lula. Há um esforço para
não posicionar Lula dentro de uma corrente política tradicional ou radical, enfatizando sua
falta de ortodoxia e seu papel conciliador já desde a época sindical. Para tanto, há cenas com
diálogos desenvolvidos para expor de forma clara quais seriam as posições políticas deste
Lula personagem, não o homem real, mas aquele Lula candidato concebido pelas equipes de
comunicação e propaganda eleitoral.
Sobre a visão que os metalúrgicos possuem de si mesmo, os entrevistados de
Peões em geral demonstram orgulho do trabalho que faziam como metalúrgicos. Geraldo
(2004) tem orgulho de fazer até hoje um trabalho bem feito. Antônio (2004) em 1975 já
queria ver seus filhos como metalúrgicos, como acabou ocorrendo de fato. Na sua fala é
possível perceber que ele tem ciência de que a profissão de metalúrgico seria algo mal visto
aos olhos da sociedade, trabalho para mão de obra física e desqualificada, por isso ele
reafirma o orgulho que tem pela própria profissão. João Chapéu (2004) quase chora ao contar
o orgulho que o filho pequeno sentia pela profissão do pai, pois o menino achava que cada
carro que ele enxergava na rua possuia uma peça que o pai havia confeccionado. Por fim,
Januário (2004) faz uma análise da situação do operário fabril na época das greves do ABC e
83
compara com a situação atual. Ele diz que um momento é muito diferente do outro, já que
hoje muitos postos de trabalho nas fábricas foram substituídos através da mecanização,
gerando desemprego na categoria e portanto uma reserva de mão de obra no mercado. Ele
acha muito difícil haver coesão e mobilização operária nestas condições instáveis de mercado
e emprego. Esta fala mais analítica demonstra o conhecimento maior que Januário possui de
sua classe, muito provavelmente graças a sua trajetória sindical.
Da mesma maneira que os ex-grevistas de Peões, o Lula de Filho do Brasil é
alguém orgulhoso de sua profissão. Mesmo antes de trabalhar como metalúrgico, ele e sua
mãe cultivavam o sonho de conseguir a profissão. Na adolescência, ao ver metalúrgicos em
suas vestimentas de trabalho, Lula diz que ainda vai ter um macacão. Após isto Lula se forma
pelo Senai e passa a exercer a função de metalúrgico. No primeiro dia de visita a uma fábrica,
Lula faz questão de manchar seu macacão com óleo, somente para despertar orgulho na mãe.
O apego de Dona Lindu é grande a ponto dela lembrar de salvar o macacão de Lula quando o
barraco da família está inundando. Estas cenas cumprem a função de mostrar ao público que
Lula valorizou o seu trabalho do metalúrgico e demonstra este orgulho até hoje, não
pretendendo esconder seu passado de vida difícil.
O trabalho nas fábricas são apontados não sendo apenas como difícil, mas sendo
abusivo e sem condições de segurança e saúde. Zacarias (2004) fala como os empresários e
chefes exerciam pressão desumana sobre seus trabalhadores, exigindo metas e ameaçando-os
com o desemprego imediato. Para o ex-metalúrgico esta situação era de escravidão. George
(2004), metalúrgico filho do também metalúrgico Antônio, fala que até hoje a área de solda
em que trabalha é totalmente isalubre e perigosa. Ele e o pai associam esta falta de respeito
pela vida como uma das principais motivações para tantas greves metalúrgicas. Ainda
relembram que há muitos acidentes de trabalho, dentre eles o acidente que fez o próprio Lula
perder o dedo mínimo da mão esquerda. Em Filho do Brasil, há a encenação do momento em
que Lula perde o dedo. A cena demonstra que Lula cometeu um erro ao operar a máquinha
pois estava cansado, devido à quantidade de trabalhos diferentes que ele precisa ter para se
sustentar. Isto demonstra a vida dura e sujeita a riscos de vida do operário de fábrica.
A relação dos donos das fábricas com seus funcionários, patrões e peões, é
retratada de maneira diferente em Peões e Lula – Filho do Brasil. Zacarias (2004), que conta
que diante das pressões dos patrões, precisava se conter para não golpeá-los, devido à raiva
que sentia. Ao invés disso, ele se controlava e ia ao banheiro chorar, para não perder o
emprego. Antônio (2004), que já se acidentou com queimaduras, lembra o quão ultrajado um
metalúrgico se sente com o que os chefes passam a pensar de alguém que comete um erro no
84
trabalho. O próprio Lula (2004), em cena do filme Linha de Montagem afirma que a greve
tem motivos óbvio para acontecer, mas a classe patronal não admiti a situação e nem tem
interesse em entendê-la. Depoimentos como estes mostram a tensão, disputa e a desigualdade
de poder entre os que trabalham em uma fábrica e os que as comandam, além de uma relação
de ressentimento. Em Filho do Brasil, as falas de Lula trazem um discurso diferente. Quando
ele assume a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema,
Lula (2010) faz questão de dizer que nenhum trabalhador é inimigo dos patrões, pois eles que
contratam e pagam o salário de todo funcionário. Lula ainda faz uma defesa de um empresário
que é atacado e morto por grevistas que são parceiros de seu irmão Ziza, durante uma greve
em 1963. De acordo com Lula, não há exploração que justifique matar um homem.
É possível identificar uma cultura sindical nos ex-metalúrgicos de Peões. Zacarias
(2004) durante sua entrevista se dirige ao entrevistador Eduardo Coutinho chamando-o de
“companheiro”, termo que foi popularizado nos sindicatos. Outros falam do quão gostavam e
da importância do sindicato para a união, organização e educação da categoria metalúrgica.
João Chapéu pode ler as histórias de luta dos trabalhadores de outros países para se inspirar.
Este aspecto educativo do sindicato dos metalúrgicos é atestado por Lula (2004), em cena
extraída do filme Linha de Montagem (1982), que ele diz que o sindicato não é aquele prédio,
sindicato é a ação do trabalhador em transformar sua vida social e a de seus companheiros de
classe. Antônio ia em muitas reunião e participou de todas as greves, mesmo a custa de
perder contato com sua família. Há ainda os que se tornaram sindicalistas, como Djalma, Nice
e Januário. Em Filho do Brasil, Lula inicialmente não gosta da ideia de sequer conhecer o
sindicato. Mais tarde na trama, ele gosta da ideia de trabalhar na entidade, mas pretende ser
“sangue novo” na administração, fazendo sindicato ser uma ferramenta de luta e de
negociação dos trabalhadores. Ao longo do filme, Lula mantém o caráter combativo e
autêntico de seu sindicalismo.
As greves em ambos filmes são retratadas em suas amplas dificuldades e desafios,
além de destacar o papel de Lula na sua liderança. Em Peões é mostrado, seja nas falas de
entrevistados, seja em imagens de arquivo, a repressão policial e a intervenção no sindicato,
assim como a prisão de Lula. Zacarias (2004) compara as manifestações e os piquetes das
greves com um movimento de guerra. Nice (2004) avalia o papel político que as greves
tiveram em tempos de ditadura militar, um evento que despertou os brasileiros para a
mobilização e liberdade de expressão. O papel de Lula é fundamental para o andamento das
greves, de acordo com Geraldo (2004) ele foi um heroi e exemplo para todos na época. Estas
85
falas são corroboradas por imagens de arquivo em que Lula incita as greves e ao mesmo
tempo pede organização, ordem e calma.
Em Filho do Brasil, Lula tem o papel de ser a voz e guia do trabalhador. No filme
ele sofre mais pessoalmente as pressões de ser o líder de milhares de pessoas, pois apesar de
tomar suas decisões com firmeza, ele sempre possui dúvidas, que muitas vezes o faz consultar
a mãe em busca de conselhos. Há momentos que ele é chamado de traidor por companheiros,
quando ele pede pelo fim da greve em vista de que o governo vai invadir a sede do sindicato e
cassar a diretoria. Porém, Lula é apoiado pelos metalúrgicos até o final, quando é levado de
volta ao presídio depois de ir ao enterro da mãe.
A posição de Peões em relação ao regime militar e ao papel de Lula preocupa-se
mais com a questão informativa de como o golpe militar alterou a vida dos trabalhadores e a
repressão às greves. Em um letreiro o espectador é informado de que o direito de greve foi
abolido e os sindicatos perderam autonomia. Para além disto, há depoimentos dos ex-grevistas
que mostram consciência de que sofriam censura e que lutaram para ter liberdade de
expressão. Outros contam como a repressão do governo às greves foi violenta, com tropas de
choque e cavalaria avançando sobre passeatas e piquetes, efetuando prisões ou
espancamentos. Sobre Lula, eles mencionam que com a atitude de organizar uma greve de
toda categoria, Lula peitou o governo e os empresários. Foi por essa coragem que ele teria
sido afastado dos sindicatos pelo governo e depois preso.
Em Filho do Brasil, Lula e sua família são mostrados como vítimas da ditadura
militar. É principalmente desta forma que o regime aparece caracterizado no filme, mais do
que os momentos de repressão às greves. Em especial, existe a questão que o personagem de
Ziza, irmão de Lula, é envolvido com o Partido Comunista Brasileiro. Com o passar dos anos
no filme, o regime torna-se cada vez mais presente na vida da família Silva. Inicialmente, a
polícia prende dois companheiros de Ziza. Mais tarde, é o próprio Ziza que é preso e
torturado. Lula vai buscar seu irmão na delegacia. Ele é enfrentado por um agente militar, que
questiona se ele é comunista e se gosta deste país. Lula (2010) afirma que não é comunista e
quanto ao gosto por seu país “não [gosto] do jeito que tá”, se referindo ao regime militar.
Após o irmão sair da cadeia, Lula (2010) comenta que “daqui há pouco, além de salário o
pessoal vai querer liberdade”. Com esta conclusão de Lula, o filme deixa bem claro que a
posição do personagem é contrária ao regime, mesmo que Lula não saiba exatamente o que
fazer quanto a isto e prefere focar sua luta no sindicato e na reivindicação de direitos.
Além da melhora física e econômica de vida, um dos grandes avanços que os ex-
metalúrgicos de Peões tiveram ao se envolver com a luta por seus direitos foi o despertar de
86
sua consciência política. João Chapéu (2004) diz que aprendeu muito com sindicato, que era
uma fonte de informações sobre a história do movimento sindical e operário do mundo.
Graças a esses exemplos, ele aprendeu que só se melhora de vida ao exigir e fazer pressão por
melhores condições. Bezerra (2004) diz que hoje ele vota com a própria consciência ao invés
de votar a mando de seu chefe ou líder político. Lula aparece em imagens do filme Linha de
Montagem (1982), dizendo que os sindicalistas tem que meditar sobre o que estão fazendo,
ele não deve ser um líder dizendo o que todos tem que fazer. Este aspecto é reforçado com ex-
metalúrgicos como Zé Pretinho (2004), que mesmo sendo eleitor e fã de Lula, coloca em
dúvida se o governo de Lula realmente mudará o foco do governo e trabalhará para os
trabalhadores.
Em Filho do Brasil, este processo educativo do sindicalismo fica em segundo
plano. Quando o irmão Ziza (2010) reclama de que falta consciência política no trabalhador
brasileiro, Lula (2010) faz uma defesa conformada: não se pode esperar de quem precisa
gastar todo seu empenho diário para apenas pagar as contas familiares. Lula também é
chamado pelo seu irmão de alienado, pois gasta seu tempo livre com futebol e novela. Mas
com o passar do tempo e o envolvimento de Lula com o sindicato, principalmente depois da
morte de sua primeira mulher, ele passa a se conscientizar do papel do sindicato e de que todo
trabalhador deve lutar por condições melhores de vida e de trabalho. Neste processo Lula
tenta politizar o resto da categoria, aparece incentivando as pessoas a participarem das
assembleias, distribui o jornal do sindicato pessoalmente e muda a comunicação deste jornal,
tornando-a de mais fácil compreensão para todos metalúrgicos. Nunca é mostrada a reação e
mudança nos metalúrgicos liderados, com exceção do gosto que eles criam por Lula e pelas
suas estratégias de ação. No entanto não ocorre a transmissão de conhecimentos mais
profundos como história do sindicalismo e de a luta dos trabalhadores no mundo, tampouco é
criada alguma crítica ao regime militar ou outra causa que não dos próprios metalúrgicos.
Outro assunto que não é abordado e também está relacionado à conscientização
política é a formação de instrumentos políticos de luta além do sindicato. Filho do Brasil não
entra em nenhum momento neste debate, que já surgiu quando Lula foi preisdente pela
priemria vez no sindicato. Não são mostrados os congressos metalúrgicos e de outros
sindicatos, onde começou a surgiu a ideia da Central Única dos Trabalhadores. Tampouco se
menciona o desenvolvimento e a criação de um partido político para representar a massa de
trabalhadores desassitidos, ideia que culminaria no nascimento do PT. O filme termina com a
eleição de Lula, com ele ao lado de Marisa Letícia no carro presidencial enquanto uma grnade
comemoração ocorria na Esplanado dos Ministérios. Em nenhum momento do filme é
87
mostrado como ele criou a base de sustentação que pôde fazer com que ele disputasse e
conquistasse o poder.
Em Peões o Partido dos Trabalhadores aparece bem representado. Os entrevistados
usam camisetas, broches e fitas do PT e de Lula. Muitos ex-metalúrgicos afirmam que votarão
em Lula para presidente nas próximas eleições. Para além do líder, outros como Geraldo
(2004), entrevistado logo após o dia da eleição, votou em todos candidatos do PT. Zé Pretinho
(2004) afirma que o plano de governo de Lula é o plano do PT no governo, não há distinção.
A avaliação que é feita sobre o PT por Tê (2004) é de que sua proposta seria diferente já no
modo de agir, priorizando o trabalho de educação de base ao invés das práticas de favores
eleitorais dos outros partidos.
Há uma gama de ideologias que surgem na fala dos ex-grevistas, algumas
explicitando posições mais definidas e outras menos. João Chapéu (2004) afirma ter orgulho
de ser comunista. Zé Pretinho (2004) afirma que é de esquerda e sempre esteve do lado do
trabalhador. Outros sugerem apoio à Lula e ao PT nas eleições, mas não falam sobre
preferências ideológicas ou medidas que o governo deve tomar. Mesmo vendo Lula como um
grande líder e grande pessoa, Tê (2004) avalia que Lula se eleger presidente não é o mesmo
que o PT estar obtendo o poder. O diálogo neste momento é cortado e Coutinho passa para o
próximo entrevistado, deixando a reflexão de Tê sem explicação mais profunda. Pode-se
aferir que ela levantou o fato de que a presidência da república não consegue executar o seu
plano de governo desejado sem contar com o apoio de outros partidos na Câmara dos
Deputados e do Senado. Outra interpretação possível seria quanto à ideologia que move Lula,
já que Tê entenderia que ele pensa diferente do seu partido. A questão enfim, fica imprecisa,
mas Coutinho fez questão de inserí-la no filme.
Ideologicamente há alguns momentos importantes de Filho do Brasil a serem
levados em conta na imagem de Lula que o filme tenta passar para o público. Primeiramente
pode-se observar que o filme trás consigo traços do que foi o governo de Lula do ano de 2003
até o ano da produção do filme em 2009. Um desses traços é o fator conciliador e negociador
de Lula. Por mais que o filme exalte o trabalhador que luta por seus direitos, há também uma
defesa do ponto de vista dos empresários e patrões, uma marca do que foi a aliança
trabalhador-empresário nacional dos governos do PT. No filme, quando Lula já é presidente
do sindicato, ele renega ideologias fixas, procurando o pragmatismo para alavancar o
sindicato e o movimento grevista. Como o personagem de Lula (2010) fala em dado
momento, logo após sua posse como presidente do sindicato dos metalúrgicos, “Trabalhador
não é nem de esquerda, muito menos de direita.” Essa indefinição pode muito bem ter sido
88
realmente utilizada por Lula à época para afastar a imagem de subversivo, esquerdista ou
comunista que um operário sindicalizado e combativo possuía em meio à ditadura militar. O
que se pode afirmar, no entanto, é que o filme privilegia estas cenas para ilustrar para o
público que Lula não é um operário radical, que estando no governo ele não privilegia apenas
uma classe de brasileiros.
Personagem Lula
Indicações Apontamentos Peões Lula - Filho do Brasil
Organização
e liderança
- Lula em
assembleias do
sindicato em 1979-
1980 é ovacionado
e carregado nos
braços
- Zé Pretinho: “Lula
disse que o que
importa é a equipe.”
- Joaquim: “nós
tínhamos esse
homem pra nós
guiar, nos orientar.
- Zélia diz que Lula
foi um pai, irmão,
tudo
- Lula cogita parar
greve e é chamado
de traidor por
colega
União e
espírito de
solidariedade
- “Trabalhador
unido jamais será
vencido” entoado
em assembleias
89
- Januário: “Lula
disse: mandato
sindical passa, os
trabalhadores é que
ficam.”
Bom humor
e carisma
- Januário lembra
piada que fez sobre
dedo mínimo de
Lula e diz que ele "é
um gozador"
- Lula conta piadas
em assembleias e
reuniões, para gosto
de todos.
- Lula pede charges
para a Tribuna
Metalúrgica
Inteligência
e educação
- Tê fala que Lula é
uma das pessoas
mais inteligentes
que já conheceu
- Professora escolar
de Lula elogia
inteligência e se
oferece para adotá-
lo para lhe garantir
um futuro
econômico melhor.
Ética - Disposição do
trabalhador em
alcançar vitória
final
- Lula sugere que
tirem ele e diretora
90
do sindicato pelos
erros cometidos
- Januário conta que
Lula recusou
presente/propina
- Lula se elege
como “sangue
novo” no sindicato
- Lula impede que
Feitosa se aproveite
do sindicato
presente-propina
para parar greves
Coragem,
esforço e
superação
- Geraldo: “Lula foi
um heroi”
- Elza: “Lula é
nosso hino nacional,
uma pessoa
lutadora.”
“Olha onde o Lula
tá agora.”
- Lula defende mãe
de surra do pai
- Lula chama
Feitosa de covarde
por não cogitar uma
greve em meio à
ditadura militar.
- No jornal Tribuna
Metalúrgica é feita
convocação da
categoria, mesmo
com risco de
censura do governo.
91
Lula diz que
“cadeia não foi feita
pra homi[sic]!”
- Discurso final:
“Nossa esperança é
maior que nosso
medo.”
Pragmatismo - Tê diz que Lula
tem jogo de cintura
tremendo
- Feitosa diz que
ideologia é coisa
pra bitolado
- Lula em
assembleia diz que
trabalhador não é
nem de esquerda,
nem de direita
Em Filho do Brasil, o personagem de Lula está de corpo presente na tela. Dessa
forma ficam mais visível os trejeitos e características pessoais do personagem. Assim, o Lula
que surge neste filme é uma pessoa carismática e agradável. É um homem leal e corajoso,
apesar de ter aspectos humanos que o fazem cometer erros e enganos, o que por sua vez acaba
humanizando o ex-metalúrgico e aumentando a simpatia do público por ele.
A liderança de Lula é inquestionável em ambos filmes. A fala é corroborada pelo
próprio Lula (2004), que em imagens de arquivo em assembleias com os metalúrgicos diz que
nunca os trabalhadores conseguiram ganhar nada sem estarem dispostos a lutar até o fim por
seus direitos. Estes elementos demonstram como Lula possui papel de liderança política para
os metalúrgicos e era uma inspiração para suas lutas de reivindicação por direitos.
Especialmente em Peões, o papel de líder de Lula é ainda aumentado para um
nível quase passional com os depoimentos de Joaquim (2004) que diz que Lula era um
segundo pai, orientando, mas não ditando, os passos que os metalúrgicos deveriam dar
durante as greves. Esta afirmação possui respaldo em cena de Peões, retirada do filme Linha
de Montagem (1982), em que Lula (2004) afirma que ele não precisa dizer para os
92
metalúrgicos o que deve ser feito, pois cada um tem consciência e capacidade para fazer
reflexões por conta própria. Há ainda Zélia (2004) que tem admiração por Lula a ponto de
considerá-lo como “um pai, meu irmão, meu tudo.” Ao falar do tempo presente, em que Lula
é candidato à presidente da republica, Zé Pretinho (2004) afirma que “Lula disse que o que
importa é a equipe”, compartilhando a ideia de que Lula nunca se coloca como um líder
centralizador ou alguém mais importante do que os outros indivíduos de um coletivo humano.
A união dos trabalhadores de uma mesma categoria é enfatizada pelo personagem
de Lula em Filho do Brasil em inúmeros discursos e assembleias do sindicato. Somente a
unidade entre os vários trabalhadores, que sozinhos não possuem poder de barganha para
enfrentar a classe patronal, consegue dar aos próprios trabalhadores poder para exigir seus
direitos. Muitas vezes esse aspecto em Peões aparece reforçado pelas imagens de arquivo de
Lula, nestas mesmas situações de assembleia e reunião. Januário (2004) ainda revela outro
traço da consciência de Lula quanto à importância do trabalhador acima da diretoria do
sindicato já que “o mandato sindical passa, os trabalhadores é que ficam”.
Nas encenações das assembleias e reuniões do sindicato em Filho do Brasil, Lula
exerce carisma sobre sua plateia, sempre arrancando plavras de ordem ou tendo seu nome
repetido em coro. Um dos principais motivos é sua maneira despojada e direta de falar com os
metalúrgicos, sempre utilizando metáforas simples e piadas para fazer o trabalhador mais
simples e sem estudo captar sua mensagem e assim mobilizá-lo. Outro exemplo é uma cena
em que Lula sugere que se utilize histórias em quadrinhos e charges no jornal Tribuna
Metalúrgica para deixar o conteúdo do jornal mais divertido e de fácil entendimento. Em
Peões, Januário (2004) lembra de vez em que ele fez piada com o dedo mínimo ausente de
Lula, e o próprio alvo da piada achou a piada engraçada, reforçando a imagem de Lula como
um sujeito bem humorado.
Lula em Filho do Brasil é mostrado como inteligente desde a infância, quando se
esforçava na escola chamando atenção de sua professora. Há uma cena especialmente
dedicada ao momento em que esta professora de Lula oferece à Dona Lindu que ela pode
adotar Lula para lhe dar um bom futuro, enfatizando que vê esperança no garoto devido a sua
vontade e capacidade em sala de aula. Com o passar dos anos na trama do filme, Lula vai
ganhando cada vez mais repertório de conhecimentos e capacidade de articular ideias ao
longo do filme. Esta capacidade pouco a pouco desemboca na participação de Lula no
sindicato dos metalúrgicos.
Se em Filho do Brasil a professora de Lula se refere à ele como alguém inteligente
no aspecto formal, em Peões, Tê (2004) afirma que o personagem além de inteligente conta
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com um “jogo de cintura fantástico”. Este adendo denota que ele não apenas é alguém com
conhecimento teórico. Lula saberia trazer este conhecimento para o campo prático e
desenvolver suas táticas e estratégias de acordo com o meio em que ele está inserido. Tê pode
ter enfatizado esta afirmação devido ao momento histórico em que a entrevista estava se
desenvolvendo, com a provável conquista da presidência por Lula. O “jogo de cintura” seria
uma qualidade de Lula que garantiria a governabilidade e o diálogo.
Januário (2004) relembra quando durante uma greve algum empresário tentou
negociar o fim da greve ao entregar no escritório de Lula um aparelho de som novo, de última
geração na época. Lula prontamente ligou para o sujeito que tentou comprar seu apoio com o
presente, na frente de demais companheiros do sindicato. Lula irritado, manda o sujeito vir
buscar o presente antes que ele denuncie à toda categoria que ele tentou comprar seu apoio.
Januário conclui que desde aquele momento passou a ver Lula como um exemplo de
integridade em um líder.
Em Filho do Brasil o Lula que entra no sindicato dos metalúrgicos também tem
atitudes de respeito à lei e à ética, demonstrando que queria verdadeiramente reinventar o
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Antes de Lula se eleger
como presidente do sindicato, há uma cena em que Lula confronta o atual presidente do
sindicato Feitosa. Após descobrir que o presidente do sindicato realizou um esquema ilegal
para manter um aliado dentro do sindicato de forma assalariada e sem função real, Lula o
confronta exigindo explicações. Ao final da cena Lula diz que ele mesmo sairá candidato à
chapa sindical, indignado com as atitudes de seu mentor sindical.
Outro aspecto do personagem de Lula tanto em Filho do Brasil como o Lula
descrito pelos metalúrgicos de Peões pode ser resolvido em uma da frases-conselhos de sua
mãe Dona Lindu: se ele insistir, tudo pode ser consquistado. Ela carregava a esperança
constante de que a vida poderia e iria melhorar graças à perseverança e força de vontade.
Levando em conta a jornada desafortunada que Lula teve de percorrer desde a miséria na
infância até a conquista de um sindicalismo autêntico em um regime autoritário e
posteriormente conquistar o cargo de Presidente da República, Lula realmente “teimou”. Lula
precisou enfrentar um líder inescrupuloso do sindicato dos metalúrgicos, enfrentar os
empresários da indústria metalúrgica e enfrentar o controle do governo. Acima de tudo, Lula
também enfrentou preconceitos de origem e de classe.
Apesar de sua perseverança irredutível, Lula também aparece como um
personagem pragmático em ambos filmes. Em Filho do Brasil, pouco antes de aceitar entrar
no sindicato, Lula escuta do presidente sindical Feitosa (2010) que “ideologia é coisa pra
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bitolado”. Quando torna-se líder sindical, Lula (2010) demonstra ter aprendido a lição de seu
mestre ao dizer em assembleia que trabalhador não é nem de esquerda, muito menos de
direita. Em Peões pode-se destacar novamente a fala de Tê (2004) sobre o “jogo de cintura”
de Lula, demonstrando seu caráter de negociador pragmático.
Em Peões a imagem de Lula, criada através dos depoimentos dos metalúrgicos
participantes das greves do ABC que ficaram anônimos, possui um duplo significado. Lula é
um sujeito tão corriqueiro como os anônimos grevistas e migrantes, pois divide com eles a
mesma trajetória de vida, as mesmas dificuldades, as mesmas lutas. Ao mesmo tempo Lula é
um ser extraordinário, que alcançou um lugar de liderança e fama que raramente é conferida
às pessoas de sua origem. Lula acaba sendo um exemplo para os trabalhadores tanto por suas
semelhanças, como por suas diferenças por ter alcançado um status invejável na sociedade.
Este status e poder que Lula conquistou faz com que outras pessoas da mesma origem
humilde de Lula tenham a percepção que alcançar uma posição de poder na sociedade é mais
acessível em vista de Lula ter conseguido.
De maneira geral, o Lula que emerge de Filho do Brasil é acima de tudo um
lutador. Um indivíduo que apesar de todas adversidades conseguiu chegar à vitória,
justamente por se manter fiel a seus ideais e características éticas e solidárias. Junto da
exaltação de sua imagem, o filme também retrata de forma bastante positiva e romântica a
luta de cidadãos excluídos por melhores condições de vida. Por outro lado, a luta em si é
mostrada com mais destaque do que o processo e o trabalho de conscientização dos
trabalhadores para que chegassem a esse estado de mobilização. Lula acaba suprindo esta
lacuna do processo de conscientização do trabalhador, tendo um papel de líder messiânico,
que imbuído de conhecimento acima de todos, guia seus liderados para a luta grevista ao
invés de ensiná-los autonomia e conscientizá-los para que tomem suas próprias decisões. Se
tem a impressão de que Lula mereceu o posto que conseguiu e o prestígio de líder por seus
esforços e características individuais ao invés de ser mais um participante de um processo
plural, coletivo e complexo.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lula foi e segue sendo o maior líder nacional hoje, talvez o maior líder da América
Latina ainda vivo. Mesmo afastado de cargos governamentais, ninguém questiona a sua
influência e herança para o cenário político brasileiro. Porém, esta envergadura do homem
real se confunde com o homem mitificado, um mito que pode ser interpretado de forma
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positiva ou negativa de acordo com quem estabelece a interpretação. Para uns, Lula político
institucional nada mais é que outra etapa na sua trajetória de liderança. Outros se assustavam
com este mesmo político e mito, o operário que liderou milhares de outros operários e parou o
Brasil. A imagem de Lula varia de acordo com quem a observa, seja na realidade ou nas
representações artísticas.
O trabalho acadêmico demonstrou que a maneira como o personagem de Lula é
apresentado em cada um dos filmes possui relação com as características de cada projeto.
Estas características podem ser os objetivos iniciais traçados por cada projeto audiovisual.
Podem ser a influência da visão do cineasta sobre quais facetas do Lula real devem estar
contidas no personagem que representa Lula. Ou ainda, o contexto socio-histórico,
principalmente político-institucional, em que esses projetos foram desenvolvidos afetam os
objetivos e resultados de cada projeto, afetando assim qual imagem e representação o
personagem Lula deve possuir.
Em comum ambos filmes trabalham um passado recente de Lula, marcado por sua
trajetória pessoal e por eventos históricos nacionais. Mesmo um dos filmes sendo um
documentário e o outro uma ficção, ambos fazem um mesmo exercício junto ao espectador:
pensar o político de sucesso Luiz Inácio da Silva através de um enfoque que nos leva ao seu
passado. Através desta origem, os cineastas propoem que seria possível interpretar o que fez
este indivíduo igual a tantos outros retirantes nordestinos, vendedores ambulantes, torneiros
mecânicos, sindicalistas e políticos institucionais ter alcançado um espaço simbólico de
enorme prestígio na imaginação do povo brasileiro. Olhando sua trajetória, o homem real se
aproxima do mito extraordinário, da jornada do heroi, para então hoje ocupar este espaço
duplo de mito vivo. Os filmes, logicamente, não fogem a essa lógica, demonstrando o
personagem Lula como um heroi em sua travessia pessoal.
O saldo da imagem de Lula que é construída através de Peões e Lula, Filho do
Brasil é uma figura edificante. Lula é um heroi típico, aquele que espelha anseios de um povo,
gerando identificação e projeção. É um líder a ser seguido, já que é uma pessoa com
capacidade legimitimada para tanto. Como todo heroi, Lula atravessou uma aventura repleta
de percalços que poem à prova a sua disposição e seus valores para alcançar seus objetivos.
Estes desafios o moldaram como pessoa. Da mesma forma, nas obras audiovisuais em que ele
é representado, os conflitos presentes nas tramas moldam o seu personagem e suas
características.
Em Peões o personagem Lula é concebido através das opiniões sobre Lula vindas
de pessoas que conviveram com ele, de maneira mais próxima ou distante. Em Lula, Filho do
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Brasil há uma encenação dramática de eventos reais, centralizando o próprio Lula na narrativa
ficcional. Se em ambas formas de representação de Lula o que desponta é um heroi, quais
afinal são os valores da jornada de Lula que ele pretende levar ao seu povo, seus
representados e eleitores? Lula é um redentor de si mesmo e de sua família ao ter melhorado
de vida? É um redentor do retirante nordestino que ascendeu? Redentor dos metalúrgicos que
ele liderou? Redentor da classe trabalhadora, que Lula tanto prega a união em discursos?
Redentor do sindicalismo autêntico como ferramenta de luta por direitos? Ou ainda ele seria
um redentor da política institucional, levando a ética e o comprometimento que faltam a todos
outros?
As características do personagem Lula, como solidariedade, senso de justiça, e
coragem mostram ao fim o que sua figura representa: a esperança. Lula seria a prova viva de
que a força de vontade trás benefícios. Ele é a esperança do povo brasileiro de que tudo pode
melhorar, tal qual a vida do personagem melhorou mesmo com as condições mais adversas
para enfrentar, cenário comum para boa parte dos brasileiros. Mesmo sendo uma excessão à
regra, sua figura mítica permanece como inspiração para o público.
Ao final, Lula segue como figura de destaque no imaginário nacional. Apesar de
não mencionar nenhuma pretensão de voltar à Presidência da República, ele está
constantemente nas mentes de qualquer cidadão quando o assunto é a disputa eleitoral. Tendo
terminado seu governo com recordes de 80% de aprovação, seu nome segue sendo o eterno
candidato à Presidência da República. Resultado de sua trajetória pessoal e das formas com
que ela foi retratada para a sociedade brasileira, sendo uma das maneiras mais exploradas o
cinema. A única certeza que se pode ter é que o Lula homem é um ser complexo e
surpreendete, podendo ainda gerar muitos filmes, fazendo perdurar assim o Lula mito, que por
sua vez sempre nos trará alguma dimensão do homem real.
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