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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO TRADUTOR & INTÉRPRETE MARIÁH RITA DE MAÇANEIRO CIDRAL A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DA CONSCIÊNCIA SOCIAL DURANTE O OFÍCIO DA TRADUÇÃO: UMA ANÁLISE DA OBRA DE MOEMA VIEZZER “SE ME DEIXAM FALAR” ENGENHEIRO COELHO 2013

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO

TRADUTOR & INTÉRPRETE

MARIÁH RITA DE MAÇANEIRO CIDRAL

A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DA CONSCIÊNCIA SOCIAL DURANTE O OFÍCIO DA TRADUÇÃO: UMA ANÁLISE DA OBRA DE MOEMA VIEZZER “SE ME

DEIXAM FALAR”

ENGENHEIRO COELHO 2013

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MARIÁH RITA DE MAÇANEIRO CIDRAL

A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DA CONSCIÊNCIA SOCIAL DURANTE O OFÍCIO DA TRADUÇÃO: UMA ANÁLISE DA OBRA DE MOEMA VIEZZER “SE ME

DEIXAM FALAR”

Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo do curso de Tradutor & Intérprete, sob orientação da professora Tania Maria Lopes Torres.

ENGENHEIRO COELHO 2013

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Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo, do curso de Tradutor & Intérprete, apresentado e aprovado em 26 de novembro de

2013.

_____________________________________________________

Orientadora: Prof. Ms. Tania Maria Lopes Torres

______________________________________________________

Segundo Leitor: Prof. Dr. Milton Luiz Torres

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Dedico este trabalho a todos aqueles que são silenciados e aqueles sofrem com a repressão das vozes daqueles que não os representam.

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AGRADECIMENTOS

• Agradeço a Deus que fez a mim, meus pais, minha irmã e meus amigos para

que pudéssemos desfrutar uns dos outros eternamente e a todos os sonhos,

conselhos e conversas que tive com os seres humanos que habitam este

lindo planeta, pois, possibilitaram a reflexão sobre o amor e a compaixão pelo

próximo que deram origem a este trabalho.

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“Silence is the language of God, all else is poor translation.” Jalal Muhammad Rumi

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RESUMO

Neste trabalho acadêmico procuram-se apresentar as etapas de um estudo sobre a função social que o tradutor pode exercer perante a sociedade; função tal que, através do seu trabalho, a arte de traduzir, ultrapassa a noção do simples ato de transpor textos de uma língua para a outra. Desenvolve-se o presente trabalho a partir da noção de que o tradutor é um agente social e tem papel importante para uma comunicação eficaz através da linguagem empregada durante a tradução a fim de auxiliar o leitor a enxergar o outro a partir também de outra ótica. Assim, o foco deste trabalho é a obra de uma tradutora que, tendo em vista o seu papel na sociedade e a importância da tomada da consciência social durante o oficio da arte da tradução, tornou de conhecimento de outros povos os problemas políticos, econômicos e as injustiças sociais enfrentadas por uma determinada comunidade. Palavras-chave: Tradutor; Tradução; Agente social; Consciência social.

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ABSTRACT

This academic study aims to present the steps of a study about the social function that the translators can exert in society. This function, through their work, the art of translating, goes beyond the simple act of transposing texts from one language to another. The present study is developed out of the notion that translators are social agents and have an important role for effective communication through the language used during translation in order to assist the reader to see the other also from another viewpoint. Thus, the focus of this study is the work of a translator who, beholding her role in society and the importance of social awareness in the art of translation, helped other peoples to know the political, economic and social injustices faced by a particular community. Keywords: Translator; Translation; Social agent; Social awareness.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 10

2 A ARTE DA TRADUÇÃO COMO AGENTE TRANSFORMADOR DA REALIDADE SOCIAL ..................................................................................................................... 13

2.1 A transformação da visão de mundo através da arte de traduzir ........................ 15

3 ESCOLHA DA OBRA ............................................................................................ 19

3.1 A autora ............................................................................................................... 20

3.2 Contexto da obra ................................................................................................. 20

3.2.1 Contexto da personagem principal ................................................................... 21

4 A POSSIBILIDADE DA “FALA” PROPORCIONADA PELO TRABALHO DA TRADUÇÃO .............................................................................................................. 25

4.1 Impactos do resultado da observação da consciência social na motivação e

tradução de se me deixam falar ................................................................................ 27

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 31

6 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 33

7 ANEXO A ............................................................................................................... 36

8 ANEXO B ............................................................................................................... 38

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1 INTRODUÇÃO

Os diversos estudos tradutológicos desenvolvidos ao longo da história da arte

da tradução detalham linearmente as diversas habilidades que o profissional desta

área possui. Trata-se de habilidades linguísticas, idiomáticas e até diplomáticas,

dentre outras. O tradutor detém ainda a responsabilidade por aquilo que escreve.

Essa responsabilidade em criar uma atmosfera na qual o leitor do idioma de

chegada encontre-se capaz de compreender a experiência estrangeira, muitas

vezes, infelizmente, não é observada. Assim, como descrito por Paulo Bonomi

(2008, p. 38):

Os tradutores irresponsáveis continuarão a existir, como sempre existiram. Como ervas daninha brotarão sempre ao lado da boa planta, confundindo-se com ela. Não serão jamais extirpados. [...] No campo em que florescem as ideias, a sua existência é tão nociva, tão catastrófica, como uma erosão contra a qual não se tomasse providência alguma.

Tendo em vista esta responsabilidade da qual o tradutor é incumbido durante

seu ofício, aborda-se no próximo capítulo, a atuação deste como agente

transformador, sob a visão daquele que não apenas informa, mas que muitas vezes

é responsável por modificar a esfera em que se encontra determinada sociedade

para seu leitor, através da arte de tradução, ao valer-se de sua consciência social.

Também será discutido, a partir do terceiro capítulo, o trabalho de uma escritora e

tradutora que foi consciente da importância de sua atuação, a partir do uso de sua

consciência social ao explanar sobre os problemas enfrentados por uma

comunidade afetada pelas injustiças sociais na Bolívia das décadas de 1970 e 1980.

A autora parece ter consciência da expressão latina cum se scire actionem

(PIANIGIANI, 2010),  ou seja, quando se sabe o que se está fazendo. Conforme o

dicionário etimológico de Pianigiani (2010), a palavra conscientia significa “estar

ciente”, ou “ter consciência de”; o termo é empregado nesta pesquisa juntamente

com outro termo também de origem latina: socialis, que em português tornou-se

“social”. Da combinação dessas duas palavras originou-se o termo “consciência

social”, o qual tem suas raízes fundamentadas no movimento feminista do século 20

e que compõe, juntamente com a ação social, os fundamentos para a

conscientização de comunidades (BICKFORD; REYNOLDS, 2002, p. 229-254).

Pretende-se, assim, discutir o uso desta consciência por parte dos profissionais de

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tradução durante o exercício de sua profissão. Diante disso, este trabalho tem por

base os moldes da pesquisa bibliográfica e histórica, visto ser desenvolvido a partir

do levantamento bibliográfico sobre o tema e duas entrevistas com a autora de “Se

me deixam fala”. Uma das entrevistas realizadas, e que se encontra ao final deste

trabalho como anexo A, foi realizada pelos próprios autores deste trabalho com

perguntas relacionadas ao planejamento de coleta de informações sobre o tema.

O trabalho visa, sobretudo, a obra de Moema Viezzer – “Se me deixam falar”

(1997) e a obra Why translation matters, de Edith Grossman (2010). A escolha

desta se justifica porque, além de tradutora, Grossman tem desenvolvido seus

estudos com base na conjectura da tradução como conscientização social, por meio

da conexão que esta proporciona entre os povos: “[tradução] também representa

uma presença literária concreta com a capacidade crucial de facilitar e tornar mais

significativas nossas relações com aqueles com quem nunca antes nos conectamos

(GROSSMAN, 2010, p. x). Por sua vez, a escolha de Moema Viezzer se justifica por

seu papel fundamental na divulgação dos problemas enfrentados pelos mineradores

bolivianos e suas famílias nas décadas de 1970 e 1980 através da tradução de sua

obra “Se me deixam falar”. Tendo esta como exemplo prático da importância da

consciência social durante o ato de traduzir, a pesquisa também tem por base os

estudos de Hermans (1996) acerca da atuação do profissional de tradução como

agente social.

O tradutor coloca-se a serviço de dois idiomas; de maneira simples, o

primeiro, ele deve compreender, e o segundo, deve explicitar; ou seja, ele trabalha a

serviço de dois senhores. Sua consciência, porém, deve ir além dos signos

linguísticos e dos recursos tradutológicos a serem empregados. Com este conceito

em mente, pergunta-se, então, qual a importância da observação da consciência

social (JOHNSON, 2009, p. 29-35) na criação e desenvolvimento da obra de “Se me

deixam falar” (VIEZZER, 1990) e o impacto social da mesma.

A partir do pressuposto enfatizado acima, a hipótese para o presente trabalho

é que é de extrema importância que, além de todas as ferramentas tradutológicas

utilizadas pelo tradutor durante o desenvolvimento da arte da tradução, ele se

conscientize de sua responsabilidade em redefinir esferas sociais e experiências

através das diferentes visões de mundo que é capaz de proporcionar ao leitor ao

valer-se de sua consciência social na tradução. A partir do conceito de que “os

tradutores são agentes sociais” (HERMANS, 1996, p. 10), discute-se no capítulo

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final a importância da observação da consciência social por parte do tradutor, ao se

apresentar como porta-voz dos problemas enfrentados por determinadas

comunidades, além da importância de sua profissão perante comunidades

periféricas através da linguagem escolhida durante o ofício da tradução.

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2 A ARTE DA TRADUÇÃO COMO AGENTE TRANSFORMADOR DA REALIDADE SOCIAL

A maneira pela qual o ser humano enfrenta os problemas, primeiramente, a

partir da sua ótica. A partir de experiências, vivências e reflexões se desenvolve

esse quadro mental no qual, todos estão fadados a valer-se no momento em que se

deparam com as questões da vida; isso caracteriza o ser vivente, pensante.

O ser humano, caracterizado assim por sua capacidade de raciocinar, revelou

desde os primórdios certa necessidade de externar essa vivência, suas experiências

e informar aos outros sua visão de mundo. Assim, valeu-se das mais diferentes

artes, como os desenhos em rochedos, artesanatos, pinturas em cerâmicas,

arquitetura, música, dança e por que não dizer das palavras, para a realização de tal

exercício.

Azevedo Júnior (2007, p. 59), dentre as possíveis definições de arte diz que:

“a arte é uma experiência humana de conhecimento estético que transmite e

expressa ideias e emoções”. Assim, cunhadas a partir de experiências, as artes

passam a existir da concepção sobre algo, sentimentos e emoções a fim de

expressar o que fora vivenciado pelo ser criador ou refletir o que este pode ter

presenciado.

As palavras também possuem esta mesma função e expressam sentimentos

emoções e experiências das mais diversas maneiras; refletem a sociedade vivida

por quem as escreve e como este deseja informar ao mundo o que experimentou.

“Ela (a palavra) é a expressão mais direta da natureza histórica da consciência

humana” (VIGOTSKY, 2001, p. 485-86); é assim que arte das palavras transmite

conhecimentos, ideias, pensamentos, valores do que a pratica e acaba por realizar,

intencionalmente ou não, certa transformação naquele que as lê. E é nesta esfera

que surge a tradução, porém como uma arte ainda mais peculiar.

Transpassar o estado do eu, indivíduo, e passar a enxergar o mundo sob o

ponto de vista do outro, por mais desafiador que isso possa parecer, possibilita a

abrangência de culturas e valores externos que contribuem ainda mais para as

perspectiva lançadas sob os seres. Além disso, como dito por Freire (1995, p. 20):

“Estar no mundo, necessariamente implica estar com o mundo e com os outros”. E é

exatamente isso que a tradução possibilita: o “estar com os outros” através das

palavras.

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A arte da tradução leva consigo marcas, essência, vivência de outros povos, e

torna familiar o que antes era estrangeiro. Para tanto embasamos este pensamento

no que Grossman (2010, p. ix) afirma:

A tradução sempre nos auxilia a conhecer, a enxergar sob um ângulo diferente, a atribuir novos valores para aquilo que um dia era estranho. Tanto como nação quanto como indivíduos, temos uma necessidade crítica desse tipo de conhecimento e insight.

A arte de traduzir propõe, em sua essência, a vivência do outro, abrange um

universo ainda maior e possibilita uma intertextualidade com determinados aspectos

que o leitor talvez nunca vivenciara. Além disso, o tradutor espera que o leitor do

texto da língua de chegada experimente, vivencie tanto a emoção quanto a

sentimento que o leitor do texto da língua de partida experimentou (GROSSMAN,

2010).

A transformação da visão de mundo, causada pela leitura de um texto, o qual

provém da cultura do leitor do primeiro idioma, torna-se ainda mais impactante no

ofício da tradução; uma vez que a ótica imposta sob determinado povo, cultura, etc.,

pode ser totalmente modificada a partir do contato do leitor da segunda língua com o

novo mundo. Neste aspecto, a difusão dos mais diversos assuntos torna-se de suma

importância tanto para quem os escreve quanto para quem os lê.

A possibilidade de difusão do trabalho de diversos autores contribui para a

agregação de valores extrínsecos; estes dependem da arte de tradução para

oferecer uma realidade diferente para leitores dos mais diferentes idiomas e,

consequentemente, criar uma consciência coletiva diferente nestes. O transcender

do ser, do indivíduo, por meio das representações comuns à massa, constitui um elo

de união de determinada sociedade. Para Durkheim (1986), por exemplo, cada

esfera social possui poder suficiente para moldar os seres que nela vivem. Pode-se

dizer que o tradutor, então, atua como ponte entre essas esferas e que como

mencionado anteriormente, atua como um refletor da consciência coletiva de uma

sociedade para a outra.

Segundo Durkheim (1986, p. 34), o indivíduo e sua síntese resultam na

realidade social, ou seja, uma unidade social; a partir daí surge a consciência

coletiva. Esta unidade social origina uma massa e, assim, uma unidade de

pensamento. Desta forma, possibilitará a ação sobre o indivíduo de determinada

sociedade e auxiliará na construção dos conceitos, crenças e ideologias do mesmo.

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É a partir dessa ótica que o tradutor deve passar a enxergar a sua atuação na

sociedade.

Os significados, realidades e as representações que o profissional da área de

tradução proporciona ao leitor são resultados da ação que este realiza através do

seu trabalho e o produto deste em outra realidade social. Ou seja, o objetivo do

tradutor torna-se expor e levar a representação de determinada realidade social para

outra localidade, a fim de apresentar e familiarizar uma cultura com outra e criar uma

consciência coletiva.

Através de uma nova unidade social, constituída de uma nova esfera de

pensamentos sobre determinado assunto, o leitor poderá ter uma vivência mais

aproximada da realidade social desconhecida. Assim, sofrerá as possíveis variações

da consciência coletiva (DURKHEIM, 1986, p. 39) então apresentada e, portanto,

sua visão de mundo poderá ser transformada.

2.1 A transformação da visão de mundo através da arte de traduzir

Como apresentado na discussão anterior, a linguagem e os mecanismos

linguísticos que o tradutor utiliza durante o processo tradutório, exercem função de

extrema importância para o leitor, constituindo a consciência social deste segundo

sua experiência ao longo da leitura do texto sobre a outra realidade apresentada.

Assim, sua percepção de mundo pode, então, ser modificada quando em contato

com as diferenças expostas. A tradução é: […] reconciliação. É uma congregação, é

congregar coisas uns para com os outros, para que possam entender e acessar uns

aos outros a partir de suas origens em vez de aceitar ou forçar as pessoas a serem

processadas [...] em outro idioma (DUPREY, 2013, p. 236).

O leitor torna-se “sujeito cognoscente” ao refletir sobre as ideias, conceitos e

discursos que foram traduzidos e estão representados de forma tal que assumam

algum significado, mesmo que totalmente desconhecido anteriormente, mas que

agora o leve a compreender e se solidarizar com a realidade do outro. É a partir das

representações apresentadas pelo tradutor que haverá funcionalidade na

comunicação e entendimento de outro mundo como Duprey descreve: “[tradutores]

não são simples mediadores entre duas línguas, mas entre dois mundos” (2013, p.

236-237).

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Johnson (2009, p. 32) afirma que: “A tradução, em outras palavras, sempre foi

a tradução do significado”. Ou seja, a priori deve ser o outro significado de um

determinado signo, que antes não fazia parte da consciência social do leitor para

que, dessa maneira, possa ocorrer a compreensão cada vez mais completa deste

para com a realidade estrangeira (JOHNSON, 2009). Para Foucault (1990), por

exemplo, a representação do signo deve-se desprender do significado que o

indivíduo possui a partir de sua vivência de mundo e assumir o aspecto do objeto,

ideia em si. É somente desta maneira que pode ocorrer, então, uma comunicação de

conceitos que proporcionam ao leitor um entendimento maior da problemática da

questão que é apresentada (FOUCAULT, 1990, p. 79-81). A função do tradutor,

então, passa a corresponder ao papel de um mediador de conceitos, das

representações, uma vez que é através dele que ocorre a comunicação.

Ao se considerar a função do tradutor como correspondente, mediador, ponte,

etc., admite-se, então, que o desenvolvimento da consciência de mundo também por

parte do profissional da área de tradução torna-se tão necessário no exercer de sua

arte quanto por parte do leitor, visto que esta reflete muito mais do que a dimensão

de cada um. O seu objetivo passa a ser não apenas uma contribuição passiva a fim

de tornar o ambiente real mais equilibrado (AZEVEDO JÚNIOR, 2007); mas,

também, inquietar a mente e visão pela qual o leitor de seus textos na língua de

chegada tem perante a sociedade determinada. O tradutor tenta por meio de seu

ofício dar significado às representações e criar novos elos entre as mais diversas

sociedades.

O tradutor encontra-se em meio a intercepções de ideias, e enfrenta a

problemática de transmitir ao leitor o modo de vida, cultura, costumes, e

consequentemente, construir um novo significado para aquilo que antes era

estranho, ou até mesmo oculto para o leitor. Assim, a arte de traduzir dentre suas

mais diversas características, possui algumas peculiaridades, tal como a capacidade

de aumentar a extensão do alcance do trabalho de escritores, conscientizar

populações e aproximar povos.

Para Hermans (1996, p. 9): “os tradutores são, agentes sociais: traduzem

dentro de determinadas concepções e expectativas a respeito da tradução,

cumprindo o importante papel de dar acesso a discursos antes inacessíveis”. Dentre

as várias nuanças da tradução, a concepção do tradutor como agente social, aquele

indivíduo que transmite informações e que conscientiza cidadãos, podemos notar a

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importância de considerar o aspecto da consciência social na prática desta arte

(HERMANS, 1996, p. 10).

Essa característica de transformador e agente social revela a distinção e

importância deste trabalho muitas vezes apresentado como “invisível” perante os

leitores, e em geral, perante a sociedade. Ser o porta-voz de povos, tribos e nações

diante do mundo exige, do profissional da tradução, muito mais do que

conhecimentos linguísticos. Diante disto, vemos que a destreza necessária ao

tradutor ao apresentar novos conceitos a um leitor da língua de chegada, é

alicerçada na consciência desenvolvida durante a observação dos problemas a partir

da ótica de outrem.

O tradutor deve estar ciente do ambiente do seu objeto de tradução e ter a

sensibilidade para perceber os reais motivos que se encobrem no discurso que será

traduzido. Assim, é possível ter a percepção da emoção e arte que o leitor da

primeira língua pode vivenciar como Grossman (2010) apresenta. Eventualmente, a

observação deste aspecto durante a arte da tradução resulta em uma

transformação, ao menos individual, perante certa problemática social apresentada

nos meandros de um texto.

Este poder de apresentar aos leitores as noções, histórias, fatos e problemas

sociais a partir da visão de mundo do outro, o que qualifica o tradutor como um

agente social, atribui a este profissional a responsabilidade de desenvolver certo

senso crítico. Esse senso crítico deve ser tal que o torne capaz de apresentar um

texto de modo a informar e impactar o leitor do texto da língua de chegada quase

que simultaneamente à sua leitura.

Desta maneira, é possível apresentar, por exemplo, os mais diversos

problemas sociais que determinados povos enfrentam e ocasionar o

desenvolvimento da consciência social também por parte do leitor. As palavras

traduzidas perante o leitor do segundo idioma têm como um de seus correlários,

fazer com que este se sensibilize diante das dificuldades enfrentadas pelos sujeitos

do texto do primeiro idioma.

Como já foi dito, a fim de conseguir o senso crítico para que isso aconteça, o

tradutor necessita fazer uso de sua consciência social e de sua percepção de mundo

para poder aplicá-las nos mais variados discursos com que se depara durante o

exercício de sua profissão. Segundo Grossman (2010, p. 7),

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[...] os tradutores precisam desenvolver um senso de estilo penetrante em ambas as línguas, a fim de aperfeiçoar e expandir a consciência crítica do leitor perante o impacto emocional das palavras, a aura social que os cerca, o cenário e a disposição que os informa, a atmosfera que eles criam.

Tendo isso em mente, o tradutor ao tratar sobre os problemas sociais deve

observar estes aspectos, como estilo e senso crítico, e se a responsabiliza pelo

poder de influência e de grande impacto incutidos em suas palavras. Da mesma

maneira, muitos são os benefícios que o trabalho de um tradutor pode trazer para

determinada comunidade, por exemplo, quando este elucida sobre problemas

sociais enfrentados ali se valendo de sua consciência social (SWIFT, 1990).

Ao explanar sobre esse tipo de questão, a combinação entre o senso de estilo

observado pelo tradutor e o uso de desta consciência contribuem imensamente para

com o objetivo da tradução como meio de transformação social. O tradutor

consciente disto torna-se agente social e atua, a partir de então, de forma

impactante e penetrante na consciência social do leitor.

O que poderia ser apresentado de certa forma com leviandade, como assunto

trivial, faz parte intrínseca do desempenho do profissional da tradução, e pode

tornar-se algo de grande repercussão se exposto segundo os aspectos

tradutológicos apresentados por Grossman (2010); é neste momento que a tradução

passa a funcionar como um mecanismo eficiente de divulgação de problemas

sociais.

A partir de então, o tradutor tem maiores chances de ocasionar mudanças

necessárias para que o assunto em questão mobilize outras comunidades e cause

empatia e compreensão da realidade do outro. Desta maneira, a tradução tem papel

importantíssimo para desencadear reações no público-alvo, a fim de que leis sejam

revistas, projetos sejam criados e populações se mobilizem no intuito de modificar,

para melhor, as condições das vítimas de determinado problema social.

É sob esta ótica, a tradução baseada na consciência social, que o próximo

capítulo discorre sobre o trabalho que a cientista social Moema Viezzer (1990)

desenvolveu por meio de sua obra “Se me deixam falar”, apresentando o contexto

em que a obra foi escrita, o tema de que trata e o impacto que esta causou não

apenas na sociedade boliviana, mas em diversas comunidades, desde a década de

1970 até os dias de hoje a partir de sua tradução, tendo em vista o emprego da

consciência social em seu trabalho.

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3 ESCOLHA DA OBRA

Aquele que escolhe o ofício da tradução sabe que mais cedo ou mais tarde se

encontrará cercado por concepções, ideias, ideologias e poderes; e que será de sua

responsabilidade o ato de transpassar essas esferas e adentrá-las para refletir sobre

o que nelas há para o seu leitor (SILVEIRA, 2004, p. 23). Como visto anteriormente,

esse ato compreende a maneira pela qual o tradutor enxerga o mundo e como ele o

apresentará para o seu leitor.

Ao analisar mais profundamente a tradução, compreende-se o fato de esse

ofício ser essencialmente um meio de ressignificação de símbolos, ou seja, uma

troca de “lentes” entre aquele que escreve e aquele que lê. Assim, o tradutor, aquele

que interpola este “trocar de lentes”, está sempre em busca da compreensão textual

por parte do leitor. Quanto a isto, note-se o que Derrida e Stiegler (1996, apud

OTTONI, 2005, p. 105), propõem:

Assim como a relação entre as diversas línguas não deve chegar a intraduzibilidade absoluta, é necessária a tradução, deve-se inventar uma experiência da tradução que torne possível a passagem sem nivelar e apagar a singularidade do idioma. É outra experiência do outro que é preciso na tradução.

Essas trocas de experiências na arte da tradução, segundo Silveira (2004, p.

25), mostram que a ressignificação revela os detalhes que o tradutor que preza pelo

seu trabalho deve ter:

As melhores traduções são feitas, quase sempre, por tradutores que conhecem a obra, o ambiente e a personalidade literária do autor, tal como esta se reflete em seus livros. São feitas por tradutores que conhecem a história, a literatura e as tendências literárias, sociais, econômicas e filosóficas da época e do país em que viveu o autor.

Claro que se pode traduzir um livro qualquer sem que se tenha tal conhecimento. Mas não estamos tratando, aqui, de um livro qualquer. Estamos tratando da arte da tradução.

Segundo a análise de que a tradução é uma experiência do outro (DERRIDA;

STIEGLER, 1996, apud OTTONI, 2005, p. 105), será analisada a obra de Moema

Viezzer, “Se me deixam falar”, tendo em vista o trabalho desenvolvido por esta com

relação a visão a partir da experiência do outro e como base a importância do papel

da consciência social no ofício da arte da tradução, discutidos anteriormente.

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3.1 A autora

A autora escolhida, Moema Viezzer, natural do Rio Grande do Sul, é uma

educadora e cientista social, reconhecida internacionalmente por suas contribuições

para a difusão da educação popular e pela socialização de ideias e práticas dos

movimentos feministas e ambientalistas na América do Sul. Por meio de seu

trabalho e engajamento em causas sociais, Moema Viezzer fundou a ONG “Rede

Mulher de Educação” e hoje é referência em educação popular para mulheres, além

de ser escritora e tradutora de renome.

O ano de 1975 foi designado pela ONU como o Ano Internacional da Mulher,

e Moema Viezzer, dirigiu-se ao México para participar da primeira Conferência

Mundial Sobre as Mulheres. Durante o evento, Moema auxiliou como intérprete uma

humilde senhora boliviana, única representante da causa operária no local, durante

suas entrevistas em outros idiomas. Nesse momento, ambas passaram a se

conhecer melhor e Moema, comovida pela história daquela mulher, deu início a sua

obra.

Foi a partir do contato com o relato de Domitila Chungara, que Moema se

interessou por sua história de luta e superação contra a sociedade ditatorial

opressora boliviana da década de 1960 e 1970. Todo o sofrimento pelo qual aquela

jovem senhora com formação política e engajamento social herdados de seu pai

havia passado e sua causa eram notórios e, assim, Domitila Chungara ganhou voz e

atraiu a atenção do mundo.

A partir dos relatos de Domitila, Moema retratou, em seu livro, “Se me deixam

falar” de 1976, escrito originalmente em espanhol, o testemunho de uma mulher que

enfrentou, acima de tudo, dentre tantas dificuldades em sua vida, o preconceito

vindo da sociedade da qual fazia parte na Bolívia nas décadas de 1960 e 1970.

3.2 Contexto da obra

A Bolívia, país localizado a oeste do continente sul-americano, é detentora de

muitas riquezas naturais e, devido a isso, há tempos atrai os interesses econômicos

de outros países. Dessa maneira, começou a exploração da classe subalterna –

trabalhadores e camponeses – por parte do governo e das diversas empresas que

se instalaram no país, como relatado por Domitila:

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21  

Alguém disse que a “Bolívia é imensamente rica, mas que seus habitantes são apenas uns mendigos”. E é assim na realidade porque a Bolívia se acha submetida às empresas estatais e transacionais que controlam a economia do meu país. E a isto se prestam muitos bolivianos que se deixam comprar por uns dólares, fazem política com os gringos e os seguem nas suas negociatas. Para eles, o problema é quanto mais podem ganhar para si mesmos. Quanto mais podem explorar os trabalhadores mais felizes estão (VIEZZER, 1990, p. 15).

Além disso, a Bolívia esteve sob o domínio do regime militar no período de

1964 até 1982. O imperialismo cultural e econômico exercido pelos Estados Unidos

da América (GILPIN, 1975, p. 137-141), por exemplo, sob a Bolívia, Chile, Peru,

Equador e tantos outros países de terceiro mundo, a fim de evitar crises financeiras

acabaram por ocasionar a exploração exacerbada destes. Assim, o poder

hegemônico (GRAMSCI, 1978), que acima de tudo exerce uma opressão cultural,

passou a conduzir os povos das classes subalternas de países periféricos a uma

revolta contra o sistema capitalista vigente.

Oprimidos pelo governo e explorados pelas empresas, a classe de

trabalhadores das minas se uniu para tentar mudar o rumo miserável em que se

encontravam. O povo vivia sob as rígidas normas de seus comandantes, e passou a

sofrer com a consequente e inevitável repressão: os movimentos trabalhistas foram

“extintos”, os direitos civis foram suspensos e militares foram enviados para os

centros de mineração onde os trabalhadores faziam greves a fim de forçar o governo

e as empresas a melhorar o salário e diminuir o horário de trabalho, entre outras

coisas.

É em meio a este contexto de conflitos e condições de vida sub-humanas que

surge a personagem principal, por assim dizer, da obra de Moema Viezzer –

Domitila Chungara: uma jovem e humilde senhora, esposa de minerador e uma das

tantas vítimas das injustiças e flagelo ocasionados pelo governo boliviano das

décadas de 1960 e 1970. Tudo o que Domitila e o seu povo queriam era apenas

requerer os mínimos direitos que possuíam, mas, ao contrário do que esperavam,

este não era o plano que o governo havia traçado para eles.

3.2.1 Contexto da personagem principal

De origem humilde e com uma infância sofrida, Domitila Chungara, morava,

juntamente com seu esposo e com seus filhos, em uma comunidade de

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mineradores, a Siglo XX, localizada na cidade boliviana de Llallagua. Nesse local,

ela pode presenciar os problemas sociais que surgiam constantemente devido à

falta de apoio do governo aos trabalhadores das minas com respeito à educação,

saúde, moradia e tantos outros direitos dos cidadãos que ali habitavam.

A situação daquela comunidade subalterna (GRAMSCI, 1978) era

preocupante e comovente. Os mineradores trabalhavam em jornadas longas,

recebiam baixos salários e uma pequena casa de dois cômodos. Seus filhos,

quando podiam ir à escola, mal tinham o que vestir e como estudar. As mulheres

tentavam, da maneira como lhes cabia, ajudar na renda familiar, além de cuidar das

crianças e do lar. Os banheiros eram comunitários, a água impotável, e os

mantimentos eram comprados nos armazéns que as próprias empresas estatais ali

montavam.

Ou seja, além de não receberem um salário adequado para o ofício de alto

risco que realizavam e viverem em condições sub-humanas, o restante da baixa

renda que possuíam era enviado para a própria empresa que os empregava. Para

agravar a situação, os mineradores trabalhavam sem segurança e, devido ao longo

período de trabalho a que se submetiam diariamente, adoeciam facilmente.

Diferentemente do camponês, que ao menos possuía a terra que cultivava, o

trabalhador das minas e sua família eram despejados da pequena casa, chamadas

de vivendas, onde moravam assim que o minerador fosse despedido da empresa ou

viesse a falecer. Outra dificuldade que enfrentavam era com relação aos alimentos

disponíveis; a base da alimentação era o pão, a carne e o arroz, além de beberem

apenas chá. Recebiam, assim, pouquíssimos nutrientes necessários para as longas

jornadas de trabalho na mina e as crianças cresciam subnutridas.

Infelizmente, essa era a triste realidade em que se encontrava aquele povo,

que tanto fez para o governo boliviano. Afinal, o comércio de minérios gerava lucro

considerável para o país e para as empresas estrangeiras que exploravam. A Bolívia

e países como os Estados Unidos da América enriqueciam à custa da classe

trabalhadora enquanto que esta não recebia o retorno merecido.

A indignação de Domitila com relação ao sistema operário e governamental

pode ser observada em um de seus discursos registrados por Viezzer (1990, p. 26):

Porque, finalmente, seguindo como estamos... quando conseguiremos ter uma sociedade sadia? E se o homem continua sendo tratado somente como uma força que tem que produzir, tem que produzir e que morra; e, quando morre, o trocam por outra força que é outro homem,

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também para arruiná-lo... bem, estamos jogando fora o capital humano, que é o mais importante para a sociedade, não é mesmo.

Domitila, não contente com a situação, resolveu agir a fim de buscar melhores

condições de vida. Sua atitude notória revolucionou a história do povo boliviano; ela

conseguiu mostrar às esposas de outros mineradores que também habitavam a

Siglo XX que algo deveria ser feito para mudar aquela situação. Formou-se, assim, o

“Comité de Amas de Casa del Distrito Minero Siglo XX”.

Viezzer enfatiza o caráter revolucionário e a posição que Domitila defendia,

como se observa em seu comentário em entrevista (VIEZZER, 2012) concedida:

“Efetivamente, Domitila sempre defendeu o direito de cidadãos e cidadãs,

ressaltando, principalmente nos tempos da ditadura, o direito à voz do povo, à sua

organização, ao direito à vida com dignidade”.

A princípio, o comitê lutava pelo direito dos seus filhos à educação, mas logo

tornou-se peça fundamental no apoio ao sindicato dos mineradores na luta contra a

exploração do trabalho, por melhores condições de segurança para os

trabalhadores, moradia, melhoria nos hospitais e baixa no preço dos alimentos e

produtos. De fato, devido às necessidades por que passavam, essas mulheres não

se intimidaram com o preconceito e continuaram a lutar como descrito por Domitila:

Nós, as mulheres, desde o berço fomos criadas com a ideia de que a mulher é feita somente para a cozinha e para cuidar das crianças, que ela é incapaz de desempenhar tarefas importantes e que não se deve permitir-lhe meter-se na política. Mas a necessidade nos fez mudar de vida (VIEZZER, 1990, p. 35).

O grupo teve, primeiramente, que vencer o preconceito dos próprios cônjuges

que alegavam que as mulheres pertenciam à casa e à cozinha e que deveriam

cuidar dos filhos. As integrantes do comitê foram hostilizadas e acusadas de serem

promíscuas e inúteis por parte de suas famílias e integrantes dos comitês dos

mineradores. A aceitação do comitê por parte do povo dependia da aprovação que

teriam de receber dos mineradores.

Logo, visto o engajamento e a seriedade pela qual tratavam assuntos de

interesse dos próprios maridos, elas ganharam espaço e voz no movimento pelos

direitos dos mineradores na COB – Central Obrera Boliviana. A felicidade de

Domitila quanto à aceitação de seu movimento também é relatada na obra de

Viezzer (1990, p. 93): “Eu me senti muito feliz naquele momento, vendo a

solidariedade que me mostravam os companheiros”.

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24  

O movimento ganhou notoriedade e ratificou a importância do engajamento

de todas as classes e gêneros na luta contra os mais diversos problemas sociais e

opressões. Porém, Domitila queria muito mais do que melhorias para o seu povo;

seu lugar de discurso era o âmago do povo boliviano, e ressoava o sofrimento, as

mágoas e o lamento do mesmo contra a tirania do poder político, econômico e

cultural (GRAMSCI, 1978) a que sofriam.

Seu objetivo era fazer sua situação conhecida por outros povos: “E falei de

todas as coisas que tinha visto [...]. E lhes disse que eles deveriam fazer o mundo

inteiro conhecer essa situação” (VIEZZER, 1990, p. 93). Durante seu discurso para

alguns agentes do governo boliviano que haviam entregado aparelhos televisores

aos moradores da comunidade de Siglo XX a fim de acalmá-los diante do país e

para que, assim, não causassem mais transtornos, Domitila disse:

Se me deixam falar [...] Mas que desgraça...Que desgraça ver que outros países que não produzem estanho e com ele estão enriquecendo, têm mundos fantasiosos para seus filhos e nós não temos nada! Que doloroso é ver que nossos companheiros estão botando seus pulmões nas minas somente para dar riquezas ao estrangeiro! Então, o que acontece com a televisão? A nós, em vez de servir de educação, de distração, serve para fazer-nos mais desgraçadas (VIEZZER, 1990, p. 173).

Outro momento memorável das tantas ações promovidas por Domitila e pelo

comitê ocorreu em dezembro de 1977 no arcebispado de La Paz quando quatro

esposas de mineradores deram início a uma emblemática greve de fome, exigindo

que o então governante, Bánzer, concedesse anistia política aos presos e exilados

políticos durante o seu governo e o retorno à democracia por meio de eleições

gerais. Este fato acarretou uma greve de fome nacional. Assim, Bánzer se viu

obrigado a decretar a anistia aos exilados políticos e a realizar as eleições.

Por seu engajamento e trabalho, sobretudo na luta pelos direitos humanos, e

a divulgação deste para os mais diversos povos, em 2005, juntamente com outras

mulheres, Domitila foi nomeada para um prêmio coletivo Nobel da Paz, além de

receber postumamente o Cóndor dos Andes do atual presidente boliviano, Evo

Moralez, no ano de 2013 (MULLER, 2012, p. 56).

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25  

4 A POSSIBILIDADE DA “FALA” PROPORCIONADA PELO TRABALHO DA TRADUÇÃO

Diversas vezes o indivíduo oprimido por um poder hegemônico (GRAMSCI,

1978, p. 33-36) acaba por sucumbir às expectativas impostas sobre ele; há então

uma “redenção” cultural, social e, consequentemente, econômica em que as

sociedades periféricas estão fadadas a aceitar por não “haver” força e organização

tal a fim de mudar essa realidade em que estão inseridos. Percebe-se então que há

um ciclo de poder e opressão que tende apenas a continuar crescendo até que haja

alguma intervenção. Isso ocorre, pois, as diversas comunidades periféricas não

correspondem aos padrões econômico-sociais impostos pelos países de primeiro

mundo.

Porém, há outro aspecto desse comportamento que também deve ser

abordado: o que esses indivíduos que compõem determinadas comunidades

periféricas sofrem não é apenas a opressão de uma cultura por um poder

hegemônico (GRAMSCI, 2006, p. 15-22). Eles, na verdade, são oprimidos e

silenciados de tal forma que aqueles que não possuem contato direto com esses

indivíduos acreditam que são seres alienados e até mesmo ignorantes de sua

realidade; portanto, a voz do oprimido é transpassada – e silenciada – pela

sociedade opressora em questão (SPIVAK, 1988, p. 24-28). A ausência de melhores expectativas de vida é apresentada, aparentemente,

em “Se me deixam falar” como algo que se enquadra essencialmente em

parâmetros político-econômicos. Porém, é perceptível que o que aquelas pessoas

da comunidade de Siglo XX almejavam era a preservação de sua cultura, crenças, e

de maneira generalizada, o seu país e seu povo. Domitila e as mulheres bolivianas

que compunham o Comitê das Donas de Casa não eram indivíduos alienados e que

mantinham padrões sociais e econômicos baseados nos padrões impostos por seus

opressores.

O problema enfrentado por aquelas mulheres e pelos tantos outros militantes

das minas bolivianas era justamente a impossibilidade de lutar – a discrepância da

proteção oferecida às empresas estrangeiras pelo governo e pelos militares era

tamanha que a comunidade de mineiros da Siglo XX não era capaz de combatê-los

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sozinha; era necessária uma intervenção externa para auxiliá-los nesta questão. E a

maneira pela qual conseguiriam denunciar estes problemas a fim de mudar sua

realidade era através da fala. Assim, problema maior ainda estava na falta de

oportunidade em externarem os flagelos que sofriam.

Sob a perspectiva de que: “Não há conscientização popular sem uma radical

denúncia das estruturas de dominação e sem o anúncio de uma nova realidade a

ser criada em função dos interesses das classes sociais hoje dominadas” (FREIRE,

1981, p. 81), percebe-se, então, que o real problema enfrentado por eles era a

impossibilidade de se comunicar; (SPIVAK, 1988, p. 24-28) – o que é apresentado

como uma aparente alienação e falta de expectativas para as outras sociedades. O

silêncio daquela comunidade de mineradores era o objetivo principal a ser alcançado

pelo poder opressor do então governo boliviano.

De acordo com Foucault e Deleuze (em países de Primeiro Mundo, sob a padronização e arregimentação do capital socializado, embora não pareçam reconhecer isso) os oprimidos, quando lhes é concedida a oportunidade (o problema de representação não pode ser ignorado), e no caminho pela solidariedade por meio de alianças políticas (há uma temática Marxista que atua neste ponto), podem falar e sabem de sua condição (SPIVAK, 1988, p. 25).

Sob este pensamento, é claro identificar em “Se me deixam falar” que a

situação em que se encontravam – a classe dos oprimidos – não era de ignorância e

alienação, pois sabiam de sua condição, mas sim, de impossibilidade de

comunicação. A partir da possibilidade que lhes foi proporcionada através da obra

de Moema Viezzer, pode-se perceber que o que eles precisavam era, na verdade,

apenas de uma voz – que não a deles, muito menos a de seu opressor. E foi a partir

deste diálogo entre classes, gêneros, culturas e ideologias proporcionado através do

trabalho da tradução naquela comunidade que pode haver uma confluência de

entendimento do universo deles com os demais.

“Com o objetivo de transformar a sociedade, segundo Beverly, o testemunho é fruto do trabalho cooperativo entre um intelectual comprometido com sua realidade social e um representante de um grupo subalterno e surge da urgência de se fazer conhecer uma situação de opressão social desde a perspectiva dos que a sofrem” (ECHENIQUE, 2002, p. 139).

Moema Viezzer realizou o papel de agente social – interventor – externo ao

“emprestar” a sua voz ao povo mineiro boliviano, assim como o tradutor no exercer

de seu ofício. Os discursos e consciências observadas pelo tradutor são externados

das mais diversas formas, mas, sempre com o objetivo de fazer o leitor ter uma

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maior compreensão do que lhe é estrangeiro. O resultado do alcance desse objetivo

é refletido então, nas eventuais repercussões e transformações sociais e ideológicas

ocorridas.

4.1 Impactos do resultado da observação da consciência social na motivação e

tradução de “Se me deixam falar”

Viezzer, como discutido anteriormente, exerceu papel fundamental no registro

e divulgação da história da luta travada pelo povo boliviano contra as dificuldades

originárias do regime ditatorial. Seu livro, escrito primeiramente em espanhol, língua

mãe de Domitila, foi divulgado apenas em países de língua castelhana. Porém, o

impacto desses relatos originou comoção tamanha que a obra acabou por ser

traduzida para o português, e hoje o livro pode ser encontrado traduzido para o

inglês e para mais outros 14 idiomas. Segundo a própria autora, em entrevista

concedida:

Para mim, foi muito gratificante constatar que o trabalho que fiz junto com Domitila, dando a conhecer ao mundo o seu testemunho de vida, foi também uma oportunidade de ser solidária com nossos irmãos e irmãs da Bolívia. Isso porque a forma como organizei o testemunho de Domitila permitiu a muita gente, do mundo inteiro, entrar um pouco no coração da Bolívia, ouvir sua voz e constatar sua força. (VIEZZER, 2012).

A tomada de consciência sobre a seriedade do engajamento e luta de

Domitila, por parte de Viezzer, resultou não apenas na história oral contida em seu

livro. O eixo trabalhado exprime os anseios de um povo construídos sob as lacunas

das injustiças sociais e compõe o reflexo de tantas vozes silenciadas e oprimidas. O

anseio pelo conhecimento de todos sobre as injustiças que ocorriam na comunidade

mineira de Siglo XX era não apenas de Domitila, mas também de Viezzer (1990). De

fato, a assimilação da consciência social por parte de Viezzer reflete preocupação

com o impacto que os relatos causariam em outros povos. Desde a maneira como

os relatos foram compilados até à escolha de palavras, tudo demonstra a

preocupação da autora em mostrar a realidade de maneira tal que até os

desconhecidos pudessem passar a enxergar a mesma realidade com os olhos

daqueles que sofreram com o regime de trabalho e a política de governo ditatorial

naquele país.

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28  

Tendo em vista que a compilação do testemunho de Domitila é uma das

formas de expressão da cultura subalterna, o impacto da obra de Viezzer e das

traduções da mesma é tamanho que mulheres, trabalhadores, partidários e até

acadêmicos passaram a ter uma maior compreensão do que é viver em uma classe

prejudicada pelos mais diversos problemas sociais; além disso, o relato de Domitila

também auxilia na compreensão de problemas enfrentados por outras classes e

comunidades que não fazem parte do mundo de Domitila, mas que, assim como ela,

também necessitam de compreender melhor sua realidade e expor aquilo que

sofrem. Como relata Lisa Albrecht (1982, p. 4):

Eu certamente não posso dizer que compreendo completamente a vida de Domitila Barrios de Chungara, uma mulher das minas da Bolívia; mas posso oferecer este comentário como um desafio aos leitores: como mulheres politicamente conscientes, devemos ampliar nossas análises políticas para além das limitações geográficas dos Estados Unidos da América. Somente assim poderemos reivindicar uma compreensão mais completa da natureza da opressão das mulheres e dos homens em outras culturas e “Se me deixam falar” nos oferece conhecimento para dar este passo.

A consciência social observada durante a composição da obra, a qual pode

ser percebida em cada detalhe de “Se me deixam falar”, também alcançam o seu

próprio povo e tem o papel de alertá-los sobre sua real situação. Visto que o desejo

de Domitila era impactar não apenas outros povos, a tradutora realizou feito maior

ainda – conseguir alcançar o objetivo de Domitila sem mesmo fazer parte daquela

comunidade. Todo o arranjo da obra reflete a arte que lhe fora empregada – a da

tradução – através dos detalhes observados pela tradutora; este trabalho denota

além da experiência linguística, a experiência de mundo e a capacidade de

compreensão das reais necessidades que o texto – por meio da fala de Domitila –

necessitava para o desenvolvimento de uma consciência social no leitor.

Também acredito que o formato deste livro e a proposta em escrevê-lo são tão importantes quanto seu conteúdo. O formato reflete a política de Domitila – não é escrito como um tratado teórico mas, como um leitor para pessoas da classe operária; a linguagem é simples e o estilo é coloquial. As palavras de Domitila são para seu povo e para nós, para que possamos analisar e criticar nossa vida. Ela deseja que jornalistas e pesquisadores percebam que seus trabalhos sempre devem servir as pessoas que estão sendo estudas. Por meio destes tipos de contribuições, as pessoas podem aprender a compreender melhor sua realidade e melhorar sua vida (ALBRECHT, 1982, p. 5).

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29  

Verifica-se então, a importância do papel do tradutor como um agente social

(HERMANS, 1996) e responsável por transmitir o que for necessário e da maneira

mais inteligível possível para seu leitor a mensagem que se deseja passar. O leitor,

agora “sujeito cognoscente”, ao lhe apresentar todas as nuanças possíveis e

disponíveis no texto traduzido, é capaz de obter compreensão tal que a realidade do

outro passa a servir de inspiração, reflexo ou até mesmo de uma moldura para

enxergar a sua própria realidade. A consequência do impacto que o leitor sofre ao

compreender durante a leitura de tal tradução é, em sua maioria, a mudança ao

menos na compreensão de mundo; há uma ampliação de horizontes.

Pode-se constatar a repercussão e consequências do impacto da obra “Se

me deixam falar”, através das diversas reportagens, artigos, livros e entrevistas que

foram publicadas posteriormente não apenas sobre Domitila, mas também sobre seu

povo. O elo entre as mulheres que participaram do Ano Internacional da Mulher em

1975 no México e Domitila – o anseio por impactar outras mulheres com suas lutas

sociais diárias – mostrou-se demasiadamente diferente e isso foi ainda mais

acentuado na compilação de seus relatos. Após a publicação dos mesmos, Domitila

passou a ser cada vez reconhecida como líder sindical e revolucionária para sua

época e condição como cita o livro “68 a geração que queria mudar o mundo:

relatos” (FERRER, 2011, p. 244), assim a figura de Domitila Barrios de Chungara

recebeu outra significação perante seu povo e as mais diversas comunidades a

partir do impacto de seus relatos.

É evidente que toda essa observância acabaria por ser reconhecida pelos

seus leitores como afirma King (2004, p. 114), por exemplo, que “[...] os melhores

testemunhos conhecidos, sem dúvida, são de Domitila Barrios de Chungara, ‘Si me

permiten hablar’, sobre o proletariado mineiro [...]”. Ou seja, Viezzer conseguiu

retratar a simplicidade de Domitila, a sua força de vontade e, ao mesmo tempo, a

maneira pela qual esta enxergava seu mundo e o mundo exterior; seus relatos,

mesmo depois de décadas, continuam a impactar de maneira ideológica tanto na

esfera política, quanto na econômica, bem como na esfera sociocultural leitores das

mais diversas comunidades.

A disseminação de suas ideias alcançou lugares inimagináveis, e ganhou

notoriedade em seu engajamento político e literário como, por exemplo, Chinchilla

(1979, p. 87) destaca: “[...] a história de vida de Domitila, como contada por Moema

Viezzer, é uma contribuição rica e fascinante a crescente coleção livros, fitas e

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filmes sobre a vida das organizadoras da classe operária. Mas, é muito mais do que

isso. É concebida explicitamente como uma ferramenta para organização política”.

Nota-se que abrangência do impacto nas mais diversas sociedades e culturas

proporcionado pela arte da tradução a partir da caracterização do tradutor como

agente transformador pode alcançar variados leitores. E isso é o que torna esta arte

ainda mais interessante – o contato com mundos diferentes e que por meio da

leitura de um texto traduzido podem conceber novas ideias, visões e concepções

totalmente dessemelhantes. As ressignificações, os novos conceitos e a busca pela

dissipação do preconceito pelo em relação ao que é estranho, proporcionados pelo

trabalho do tradutor, fazem deste um agente social e o incumbem das mais

diferentes responsabilidades perante seu público.

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31  

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da suposição de que a “tradução não é apenas uma questão de

palavras: é uma questão de fazer inteligível toda uma cultura” (BURGESS, 1984, p.

4), vê-se que a arte de traduzir transpassa o conhecimento dos idiomas em questão

e os recursos tradutológicos aprendidos por tradutores em todo o mundo. Faz-se

necessário um aprendizado mais amplo sobre a função do tradutor perante as

comunidades, uma vez que este é quem concretizará a árdua tarefa de realizar a

comunicação entre culturas. Assim, o papel social do tradutor passa a caracterizá-lo

não apenas como interlocutor, mas, como discutido no início deste trabalho, um

agente social (HERMANS, 1996, p. 10).

Durante seu ofício, o tradutor terá de tornar o leitor sujeito cognoscente capaz

de refletir sobre uma realidade muitas vezes distante e totalmente diversa da sua.

Desse modo, o tradutor é responsável pelas opiniões, conclusões e ponderações

originadas a partir do texto traduzido, o que ratifica ainda mais a importância da

observação da consciência social deste profissional; assim, é evidente que o

tradutor deva saber situar-se na realidade a qual traduzirá.

A questão da arte da tradução como meio de conscientização social

proporciona aos leitores das mais variadas culturas uma compreensão mais

abrangente sobre diversos assuntos. A comunicação torna-se, então, cada vez mais

eficaz e o tradutor interage tanto com o texto da língua de partida quanto com o texto

da língua de chegada de maneira tal que se torna um agente social. Desde a

escolha da linguagem a ser empregada, os recursos estilísticos até ao texto final,

cabe ao tradutor saber lidar com as aparentes nuanças culturais e sociológicas nas

quais o texto está inserido para que haja uma composição textual compreensível no

outro idioma e, como proposto pelo trabalho – um texto que consiga transpor a

realidade do outro de modo que o leitor consiga compreender essa realidade a partir

da visão daquele que a vive.

A partir da observação da consciência social por parte do tradutor, acredita-se

que os conceitos e valores diferentes que se encontram no texto a ser traduzido são

passíveis de uma tradução mais inteligível e consciente e ampliam a visão desse

profissional com relação ao seu ofício, como pode ser constatado no caso da obra

de Moema Viezzer (1990). O ponderar sobre o quê, como, e para quem se está

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fazendo determinada tradução eventualmente auxiliará em todo o processo de

compreensão do leitor. Dessa maneira, o ensino da tradução como meio de

conscientização social e do tradutor como agente e fator determinante no

desenvolvimento de conceitos e criação de novos valores para diferentes tipos de

leitores se faz tão importante no processo de formação desse profissional.

Os tantos exemplos de traduções mal sucedidas que se têm revelam que os

erros ali expressos não são apenas devidos à falta de preparo do tradutor em

quesitos como concordância verbal, erros gramaticais ou desconhecimento de

jargões, gírias, etc. Pode-se perceber que esses erros implicam algo além do

conhecimento idiomático, como apresentado na hipótese deste trabalho: seria a falta

de consciência social desses profissionais que ocasionaria tais problemas nas

traduções. A fim de evitar a propagação do conceito do tradutor como um traidor, a

partir dos exemplos expostos, sugere-se que haja o ensino do conceito da

consciência social para a conscientização dos alunos de tradução e interpretação

quanto ao seu real papel como tradutores perante a sociedade para a qual

trabalharão.

Acredita-se, com este trabalho, que é de suma importância que haja uma

ampliação da visão de mundo do aluno de tradução e interpretação e,

consequentemente, o desenvolvimento de sua consciência social. A visão holística

sobre a questão da tradução ajuda a resolver os problemas específicos da mesma, e

assim, a concepção do lugar onde se está e a compreensão do que se está fazendo

resultarão em trabalhos mais acessíveis e menos passíveis de erros. Espera-se que

ao criar essa visão e concepção, o tradutor aja como agente social consciente de

que possíveis mudanças sociais ocorrem devido ao seu trabalho de tradução.

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6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO A ENTREVISTA COM MOEMA VIEZZER

1 - Para a senhora, qual a importância da observação da consciência social na atuação do profissional da área de tradução/interpretação? Considero importantíssima, pois traduzir de alguma forma sempre significa também

interpretar. E inclusive tenho percebido que muitas vezes, a falta de conhecimento

de linguagens utilizadas nos movimentos sociais quando traduzidas só tecnicamente

acabam se tornando inapropriadas quando não equivocadas (aquela questão do

tradutore-traditore...né?).

2 - A senhora ratifica a atuação do tradutor/intérprete como agente social/ativista ao este expor os problemas enfrentados por determinada sociedade? Com certeza. Inclusive quando o livro foi traduzido para a versão alemã, recebi o

depoimento de uma professora de tradutores/intérpretes que utilizava “Se me

deixam falar” nas suas aulas como uma das formas de alimentar ou ampliar a

consciência de seus alunos da importância de se situarem na realidade por eles

traduzidas.

3 - Com base em suas experiências, qual seu parecer perante o estado em que encontra-se a classe subalterna: alienação de sua realidade social ou incapacidade de externar devido a falta de um porta-voz (autor/tradutor)? Penso que as classes denominadas subalternas estão procurando emergir e ter

seus próprios "porta-vozes" a partir de suas lideranças. No Brasil, finalmente até os

indígenas conseguiram entrar "NA PAUTA" dos assuntos nacionais. Penso também

que os autores e tradutores podem sim, tornar-se porta-voz sempre que se

identifiquem com a realidade social trabalhada, não se apropriando indevidamente

do que é dito.

4 - A senhora tem algo a acrescentar sobre essas ponderações? Parabenizo esta iniciativa e espero que ela contribua para uma visão mais holística

do Ato de Traduzir e Interpretar. Afinal, num mundo globalizado, esta é uma questão

fundamental também na busca de melhor entendimento entre os seres humanos que

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acreditam num novo processo civilizatório, mais humanizado e sem interpretações

falsas.

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ANEXO B TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO