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Teatro de Artur Azevedo

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TEATRO DE ARTUR AZEVEDO VOLUME 1

Texto-base digitalizado por: Sérgio Luiz Simonato – Campinas/SP e-mail de contato: [email protected] Fonte: Clássicos do Teatro Brasileiro - Volume 7 - Teatro de Artur Azevedo - Tomo I, editado pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas TEATRO DE ARTUR AZEVEDO VOLUME 1 INSTITUTO NACIONAL DE ARTES CÊNICAS APRESENTAÇÃO Quando eu morrer, não deixarei o meu pobre nome ligado a nenhum livro, ninguém citará um verso, nem uma frase que me saísse do cérebro; mas com certeza hão de dizer: "Ele amava o teatro", e este epitáfio moral é bastante, creiam, para a minha bem-aventurança eterna. (Artur de Azevedo, com suas iniciais A.A., no folhetim semanal intitulado "O Theatro" em "A Notícia", vespertino do Rio de Janeiro, de 22 de setembro de 1898) Num bilhete conservado no arquivo da Academia Brasileira de Letras, dirigido a Machado de Assis, entre outras coisas, escreveu meu pai: ...estive enfermo, sem ânimo para pegar na pena senão para escrever (com que esforço!) essas frioleiras que me ajudam a viver. Tendo sempre presente este ensinamento de humildade, que também é síntese de autocrítica, leio e conservo o que escreveram a respeito do meu pai, como documentos humanos, grato aos que julgaram com simpatia e indulgência, indiferente aos que lhe foram adversos, em razão do absoluto desconhecimento do meio teatral de sua época, do avanço cultural do país, e, por conseqüência, da mentalidade das platéias de seu tempo, o que tudo redunda em incompreensões e injustiças de julgamento sobre o escritor. Julgamentos que revelam tais falhas nesses respeitáveis julgadores que me deixam absolutamente alheio ao que disseram, porque, para mim, mais do que sua obra, que representa parte do pão dos que dele dependeram, vale o admirável exemplar humano que ele foi. Aluísio Azevedo (Apresentação da obra escrita pelo filho de Artur Azevedo, que tem o mesmo nome do tio.)

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TEATRO DE ARTUR AZEVEDO VOLUME 1

PEÇAS DO VOLUME I AMOR POR ANEXINS UMA VÉSPERA DE REIS A PELE DO LOBO A FILHA DE MARIA ANGU A CASADINHA DE FRESCO ABEL, HELENA O RIO DE JANEIRO EM 1877 NOVA VIAGEM À LUA A JÓIA OS NOIVOS O CALIFA DA RUA DO SABÃO A PRINCESA DOS CAJUEIROS O LIBERATO À PORTA DA BOTICA

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AMOR POR ANEXINS Entreato cômico Esta farsa, entreato, ou que melhor nome tenha em juízo, o meu primeiro trabalho teatral, foi escrito há mais de sete anos. no Maranhão, para as meninas Riosa, que a representaram em quase todo o Brasil e até em Portugal. Pô-la em música e em boa música, Leocádio Raiol; mas ultimamente representaram-na sem ela Helena Cavalier e Silva Pereira: desencaminhara-se a partitura. Tem agora nova música, e não inferior, de Carlos Cavalier. Artur Azevedo PERSONAGENS Isaías Inês Um Carteiro A cena passa-se no Rio de Janeiro. Época, atualidade. Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à direita. Mesa à esquerda com preparos de costura. Num dos cantos da sala uma talha d'água. Cadeiras. Cena I Inês INÊS - (Cose sentada à mesa, e olha para a rua, pela janela.) - Lá está parado à esquina o homem dos anexins! Não há meio de ver-me livre de semelhante cáustico. Ora eu, uma viúva, e, de mais a mais com promessa de casamento, havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E ninguém o tira dali! Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de cena.) Copla Eu, que gosto, perdido Tenho casamentos mil, Com mais de um belo marido, Garboso, rico e gentil, De um velho agora a proposta, Meu Deus! Devia aceitar? Demais um velho que gosta De assim tão jarreta andar! Nada! Nada!

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Não me agrada! Quero um marido melhor! É bem mau não ser casada, Mas mal casada é pior. Ainda hoje escreveu-me uma cartinha, a terceira em que me fala de amor, e a segunda em que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira.) Ela aqui está. (Lê.) "Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão encontrá-la no gozo da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido. Antes assim que amortalhado. Venho pedi-la em casamento pela segunda vez. Ruim é quem em ruim conta se tem, e eu que não me tenho nessa conta. Jamais senti por outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira."(Declamando.) Que enfiada de anexins! Pois é o mesmo homem a falar! (Continua a ler.) "Tenho uns cobres a render; são poucos, é verdade, mas de hora em hora Deus melhora, e mais tem Deus para dar do que o diabo para levar. Não devo nada a ninguém, e quem não deve não teme. Tenho boa casa e boa mesa, e onde come um comem dois. Irei saber da resposta hoje mesmo. Todo seu, Isaías."(Guardando a carta. ) Está bem aviado, Senhor Isaías! Vou às compras; é um excelente meio de me ver livre de vossemecê e de seus anexins. Vou preparar-me. (Sai pela porta da direita. Pausa.) Cena II Isaías ISAÍAS (Deita com precaução a cabeça pela porta do fundo.) - Porta aberta, o justo peca. (Avançando na ponta dos pés.) A ocasião faz o ladrão. Preciso estudar o gênio desta mulher: antes que cases, olha o que fazes. Dois gênios iguais não fazem liga; se a pequena não me sai ao pintar, para cá vem de carrinho. É preciso olhar para o futuro: quem para adiante não olha atrás fica; quem cospe para o ar cai-lhe na cara, e quem boa cama faz nela se deita. Resolvi casar-me, mas bem sei que casar não é casaca. Alguém dirá que resolvi um pouco tarde, porém, mais vale tarde que nunca. Deus ajuda a quem madruga, é verdade; mas nem por muito madrugar se amanhece mais cedo. Procurei uma mulher como quem procura ouro. Infeliz até ali! Vi-as a dar com um pau: bonitas, que era um louvar a Deus de gatinhas; mas... nem tudo o que luz é ouro; feias também que era um Deus nos acuda; mas muitas vezes donde não se espera daí é que vem. Quem porfia mata caça dizia com meus botões, e não foi nada, que enquanto o diabo esfrega um olho, cá a dona encheu-me... o olho. Pois olhem que não me passou camarão pela malha... Esta é viúva e costureira... Estou pelo beicinho, e creio que estou servido. Quem já deu não tem para dar, é certo; mas, ora adeus! Quem muito quer muito perde. Já tomei informações a seu respeito: foram as melhores possíveis; ma como o saber não ocupa lugar, e mais vale um tolo no seu que um avisado no alheio, observei-a . Eu sou como São Tomé: ver para crer. Vi-a andar sempre sozinha... e nada de pândegas! Dize-me com quem andas, dir-te-ei as manhas que tens. (Examinando a casa.) Boa dona-de-casa parece ser! Asseio e simplicidade. Pelo dedo se conhece o gigante. Há de ser o que Deus quiser: o casamento e a mortalha no céu se talham. (Reparando.) Ai, que ela aí vem! (Perfilando-se.) Coragem, Isaías! Lembra-te de que um homem... (Atrapalhando-se.) é um gato e um bicho é um homem! Disse asneira... Cena III Isaías e Inês INÊS (Vem pronta para sair, ao ver Isaías assusta-se e quer fugir.) - Ai! ISAÍAS (Embargando-lhe a passagem.) - Ninguém deve correr sem ver de quê. INÊS - Que quer o senhor aqui? ISAÍAS - Vim em pessoa saber da resposta de minha carta: quem quer vai e quem não quer manda; quem nunca arriscou nunca perdeu nem ganhou; cautela e caldo de galinha... INÊS (Interrompendo-o .) - Não tenho resposta alguma que dar! Saia, senhor!

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ISAÍAS - Não há carta sem resposta... INÊS (Correndo à talha e trazendo um púcaro cheio d'água) - Saia, quando não... ISAÍAS (Impassível.) - Se me molhar, mais tempo passarei a seu lado; não hei de sair molhado à rua. Eh! Eh! Foi buscar lã e saiu tosquiada... INÊS - Eu grito! ISAÍAS - Não faça tal! Não seja tola, que quem o é para sim pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue! Não exponha a sua boa reputação! Veja que sou um rapaz; a um rapaz nada fica mal... INÊS - O senhor, um rapaz?! O senhor é um velho muito idiota e muito impertinente! ISAÍAS - O diabo não é tão feio como se pinta... INÊS - É feio, é!... ISAÍAS - Quem o feio ama bonito lhe parece. INÊS - Amá-lo eu?! Nunca... ISAÍAS - Ninguém diga: desta água não beberei... INÊS - É abominável! Irra! ISAÍAS - Água mole em pedra dura, tanto dá... INÊS - Repugnante! ISAÍAS - Quem espera sempre alcança. INÊS - Desengane-se! ISAÍAS - O futuro a Deus pertence! INÊS - Há alguém que me estima deveras... ISAÍAS - Esse alguém (Naturalmente.) sou eu. INÊS - Isso era o que faltava! (Suspirando.) Esse alguém... ISAÍAS - Quem conta um conto, acrescenta um ponto... INÊS - Esse alguém é um moço tão bonito... de tão boas qualidades... ISAÍAS - Quem elogia a noiva... INÊS - O senhor forma com ele um verdadeiro contraste. ISAÍAS - Quem desdenha quer comprar... INÊS - Comprar! Um homem tão feio!... ISAÍAS - Feio no corpo, bonito na alma. INÊS (Sentando-se.) - Deus me livre de semelhante marido! ISAÍAS - Presunção e água benta cada qual toma a que quer... (Senta-se também.) INÊS (Erguendo-se.) - Ah, o senhor senta-se? Dispõe-se a ficar! Meu Deus, isto foi um mal que me entrou pela porta! ISAÍAS (Sempre impassível.) - Há males que vêm para bem. INÊS - Temo-la travada. ISAÍAS - Venha sentar-se a meu lado. (Vendo que Inês senta-se longe dele.) Se não quiser, vou eu... (Dispõe-se a aproximar a cadeira.) INÊS - Pois sim! Não se incomode! (Faz-lhe a vontade.) Não há remédio! ISAÍAS (Chegando mais a cadeira.) - O que não tem remédio remediado está. INÊS (Afastando a sua. ) - O que mais deseja? ISAÍAS - Diga-me cá: o seu noivo? ... (Faz-lhe uma cara.) INÊS - Não entendo. ISAÍAS - Para bom entendedor meia palavra basta... INÊS - Mas o senhor nem meia palavra disse! ISAÍAS - Pergunto se... fala francês... INÊS - Como? ISAÍAS - Ora bolas! Quem é surdo não conversa! INÊS - Mas a que vem essa pergunta? ISAÍAS (Naturalmente.) - Quem pergunta quer saber. INÊS - Ora! ISAÍAS (Sentencioso.) - Dois sacos vazios não se podem ter de pé. INÊS - Essa teoria parece-se muito com o senhor. ISAÍAS - Por quê?

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INÊS - Porque já caducou também. ISAÍAS (Formalizado.) - Então eu já caduquei, menina? Isso é mentira. INÊS - É verdade. ISAÍAS - Não é. INÊS - É. ISAÍAS - Pois se é, nem todas as verdades se dizem. (Ergue-se e passeia.) INÊS - Ah! O senhor zanga-se? É porque quer; não me viesse dizer tolices! (Ergue-se.) ISAÍAS (Interrompendo o seu passeio, solenemente. ) - Na casa em que não há pão, todos ralham, ninguém tem razão. INÊS - Ora! Somos ainda muito moços! ISAÍAS - Quem? Nós? INÊS (De mau humor.) - Não falo do senhor: falo dele... ISAÍAS - Ah! Fala dele... INÊS - Havemos de trabalhar um para o outro... ISAÍAS - É bom, é: Deus ajuda a quem trabalha. Canto INÊS - Sem desgosto viveremos, Seremos ricos, talvez; Muitos morgados teremos... ISAÍAS - Mas um só de cada vez... (Zangado.) A faceira Talvez convidar-me queira Para padrinho de algum! INÊS - E não suponha que, apesar de pobre, não me faça bonitos presentes o meu noivo. ISAÍAS - É! Quem cabras não tem e cabritos... INÊS - Insulta-o? ISAÍAS - Cão danado, todos a ele! Pois eu havia de insultá-lo, senhora? INÊS - Se estivesse calado... ISAÍAS - Sim, senhora: em boca fechada não entram mosquitos... mas é que o seu futurozinho me interessa... INÊS - Muito obrigada. (Senta-se.) ISAÍAS - Não há de quê. Se bem que eu não seja nenhum Matusalém, estou no caso de lhe dar conselhos. Ouça-me; quem me avisa meu amigo é; quem à boa árvore se chega, boa sombra o cobre. INÊS - Mesmo por já estar no caso de me dar conselhos, é que o não quero para marido. ISAÍAS - Se eu fosse jovem, não me havia de aceitar, por estar no caso de os receber. Preso Por ter cão e preso por não ter!... INÊS - Não desejo enviuvar de novo... ISAÍAS - Vaso ruim não quebra... INÊS - Desengana-se, senhor: não são os seus ditados que me hão de fazer mudar de resolução! (Passeia.) Oh! ISAÍAS (Acompanhando-a .) - Talvez façam, talvez!... Devagar se vai ao longe... muito tolo é quem se cansa... (Inês volta-se param defronte um do outro.) Menina, antes só do que mal acompanhado... Olhe que o pior cego é aquele que não quer ver... INÊS (À parte.) - Vou pregar-lhe uma peta. (Alto.) Mas se me faltasse esse noivo, outros rapazes há que me têm feito pé-de-alferes. ISAÍAS - Águas passadas não movem moinhos! INÊS - E entre eles... ISAÍAS -O passado, passado! INÊS - Não me interrompa!.. E entre eles há um ricaço que em outro tempo... ISAÍAS - O tempo que vai não volta!

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INÊS - Não me interrompa, já disse! E entre eles há um ricaço que noutro tempo se esqueceu da promessa... ISAÍAS - O prometido é devido! INÊS - Ai, mau!... se esqueceu da promessa que me havia feito; mas que está outra vez pelo beicinho... ISAÍAS - Cesteiro que faz um cesto faz um cento... (Movimento de Inês. Com força.) Se tiver Verga e tempo! E quem é esse... ricaço? INÊS - É segredo. ISAÍAS - Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz... (A um gesto de Inês.) de homem! Mas faz bem, faz bem: o segredo é a alma do negócio... INÊS - O senhor tem na cabeça um moinho de adágios! Passa!... ISAÍAS - O que abunda não prejudica. INÊS - Bem! Para maçadas basta. Mude-se! ISAÍAS - Os incomodados é que se mudam. INÊS - Mas eu estou em minha casa, senhor! ISAÍAS - Descobriu mel de pau! INÊS - Irra! Que homem sem-vergonha! ISAÍAS (Examinando cinicamente a costura.) - Quem não tem vergonha todo o mundo é seu. INÊS - Se o meu noivo o visse aqui! Ele, que jurou dar cabo do primeiro rival que... ISAÍAS - Cão que ladra não morde.. E eu sou homem!... tenho força... E contra a força não há resistência!... INÊS (Irônica.) - Ora, por quem é, não faça mal ao pobre moço, sim? ISAÍAS - Faço!... Quem o seu inimigo poupa às mãos lhe morre. Julga que não estou falando sério? Uma coisa é ver a outra... INÊS (No mesmo.) - Ora não faça tal. ISAÍAS - Faço! Isto tão certo como dois e três serem cinco. São favas contadas. Quem não quiser ser lobo não lhe vista a pele! INÊS - Mas sabe que ele é valente? ISAÍAS - Também eu sou! Cá e lá más fadas há! Duro com duro não faz bom muro, e dois bicudos não se beijam! Inês - Ponha-se ao fresco, preciso sair; tenho que fazer lá fora. Isaías - E eu tenho que fazer cá dentro. Um dia bom mete-se em casa. (Pausa.) Olhe, senhora, olhe bem para mim acha-me feio; não acha? INÊS - Ai, ai, ai!... ISAÍAS - Eu também acho, e feliz é o doente que se conhece. Mas muitas vezes as aparências enganam e o hábito não faz o monge. Experimente e verá. (Suplicante.) Case comigo. INÊS - Gentes! ISAÍAS - Ah! Se fôssemos casadinhos, outro galo cantaria! Por exemplo: em vez de sair agora à rua, com este sol de matar passarinho, mandava-me a mim, ao seu maridinho... INÊS (Arremedando-o .) - Ao seu maridinho... (À parte.) Oh! Que idéia! Vou me ver livre dele. (Alto.) Então, sem sermos casados, não pode prestar-me um pequeno serviço? ISAÍAS - Conforme o serviço: ponha os pontos nos ii. INÊS - Se me fosse comprar três metros de escumilha. Olhe... Aqui tem a amostra... No Armarinho do Godinho.. Sabe onde é? ISAÍAS - Sei; mas quando não soubesse? Quem tem boca vai a Roma. INÊS - Está contrariado? ISAÍAS - O que vai por gosto regala a vida. INÊS - Tome o dinheiro. ISAÍAS - Nada... não é preciso... (Vai saindo e estaca.) Diabo! Não me lembra um ditado a propósito! (Sai.)

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Cena IV (Inês) INÊS - Está bem aviado... Quando voltares, hás de achar a porta fechada. Safa! Que maçador! Agora, tratemos de sair: são mais que horas. (Aparece à porta um carteiro.) Cena V Inês, o Carteiro O CARTEIRO - Boa tarde, minha senhora. INÊS - Boa tarde. O que deseja? O CARTEIRO - Aqui tem esta carta... é da caixa urbana... INÊS - Uma carta? (Recebendo a carta, consigo.) De quem será? (Ao carteiro.) Obrigada. O CARTEIRO - Não há de quê, minha senhora. Passe muito bem! Inês - Adeus. ( O carteiro sai.) Cena VI (Inês) INÊS - Ah! A letra é de Filipe. Faz bem em escrever-me o ingrato! Há doze dias que nos não vemos... (Abre a carta e lê. Jogo de fisionomia. ) "Inês. Peço-te perdão por ter dado causa a que perdesses comigo o teu tempo. Ofereceram-me um casamento vantajoso, e não soube recusar. Ainda uma vez perdão! Falta-me o ânimo para dizer-te mais alguma coisa. Dentro em uma semana estarei casado. Esquece-te de mim - Filipe." (Declamando.) Será possível! Oh! Meu Deus! (Relendo.) Sim... cá está... é a sua letra... (Depois de ter ficado pensativa um momento.) Ora, adeus. Eu também não gostava dele lá essas coisas... Digo mais, antes o Isaías; é mais velho, mais sensato, tem dinheiro a render, e Filipe acaba de me provar que o dinheiro é tudo nestes tempos. Espero aqui o Isaías com o meu "sim" perfeitamente engatilhado! Oh! O dinheiro... Recitativo Louro dinheiro, soberano esplêndido, Força, Direito, Rei dos reis, Razão. Que ao trono teu auriluzente e fúlgido Meus pobres hinos proclamar-te vão. Do teu poder universal, enérgico, Ninguém se atreve a duvidar! Ninguém! Rígida mola desta imensa máquina, Fácil conduto para o eterno bem! Aos teus acenos, Deus antigo e déspota, Aos teus acenos, Deus modernos e bom, Caem virtudes e se exaltam vícios! Todos te almejam precioso Dom! Inda hás de ser o derradeiro ídolo, Inda hás de ser a só religião, Louro dinheiro, soberano esplêndido, Força, Dinheiro, Rei dos reis, Razão!...

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Cena VII Inês, Isaías ISAÍAS (Entrando.) - Quem canta seus males espanta. INÊS - Já de volta! O senhor foi a correr! ISAÍAS - Nada! Quem corre cansa. Encontrei outro armarinho mais perto... INÊS (Tomando a fazenda.) - Muito obrigada. Quanto custou? ISAÍAS - Um pau por um olho. Mil e duzentos o metro... INÊS - Pois olhe: o outro vende mais barato. ISAÍAS - O barato sai caro, e mais vale um gosto do que quatro vinténs. INÊS - Regateou? ISAÍAS - Regatear! Para quê? Mais tem Deus para dar do que o diabo para tomar. INÊS - Já vejo que é tão pródigo de dinheiro como de anexins! ISAÍAS - Da pataca do sovina o diabo tem três tostões e dez réis. Poupado sim, sovina não. Eu cá sou assim! Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Tenho um só defeito: quero casar-me. Cada louco com sua mania. Canto Há sido um gato sapato; Preciso do casamento! O maldito celibato Não é viver, é tormento. Quero honesta rapariga Entre as belas procurar, Muito embora o mundo diga: Quem já andou não tem pra andar... A existência de casado Talvez venturas me traga, Se diz verdade o ditado: Amor com amor se paga. Se eu for constante e fervente, Ela tudo isso será; Se eu amá-la eternamente, Ela também me amará! Eu escravo e a esposa escrava, Viveremos sem desgosto; Uma mão a outra lava E ambas lavam o rosto!... Faço-lhe pela milésima vez o meu pedido. Nem todos os dias há carne gorda. A senhora falou-me em um apaixonado. Por onde andará ele? Eu estou aqui, e mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. INÊS (À parte.) - Levemos a coisa com jeito. (Alto.) O senhor... (Com uma idéia.) Ah! ISAÍAS - Oh! INÊS - Já viu representar As pragas do Capitão? ISAÍAS - Não, senhora. De pragas ando eu farto. INÊS - Era um militar que praguejava muito. A senhora que ele amava deu-lhe a mão de esposa, mas depois de estabelecer-lhe a condição de não praguejar durante meia hora.

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ISAÍAS - Falo em alhos, a senhora responde com bugalhos! INÊS - Já lá vamos aos alhos aceito a sua proposta. ISAÍAS ( Impetuosamente.) - Aceita? INÊS - Sim, senhor. ISAÍAS (Incrédulo.) - Qual! Quando a esmola é muita, o pobre desconfia... INÊS - Mas imponho também a minha condição... ISAÍAS - Imponha: manda quem pode. INÊS - Se conseguir levar meia hora sem... ISAÍAS - Sem praguejar?... INÊS - Não! Sem dizer um anexim! Se conseguir, é sua a minha mão. ISAÍAS - Deveras? INÊS (Sentando-se.) - Deveras. ISAÍAS - Mas eu posso estar calado? INÊS - Como assim?! Era o que faltava! Há de falar pelos cotovelos! ISAÍAS - Isso é um pouco difícil: o costume faz lei... INÊS - Ai, que escapou-lhe um! ISAÍAS - Pois o que quer? A continuação do cachimbo... INÊS - Faz a boca torta, já duas vezes. ISAÍAS - Nas três o diabo as fez. INÊS - Ai, ai, ai! Vamos muito mal! ISAÍAS - Ma não tínhamos ainda entrado em campo... Aqueles foram ditos de propósito. Agora sim! Agora é que são elas! INÊS - Outro! ISAÍAS - Protesto! "Agora é que são elas" nunca foi anexim. A César o que é de César! INÊS - O senhor vai perder... Olhe: são duas horas. (Aponta para um relógio que deve estar sobre a mesa.) Aceita o desafio? (Pausa.) Bem. Quem cala consente... ISAÍAS - Ah! Agora é a senhora quem os diz! Virou-se o feitiço contra o feiticeiro... INÊS - Ai, ai! ISAÍAS - Foi engano. INÊS - Dos enganos comem os escrivães. (Pausa.) Então? Diga alguma coisa... ISAÍAS - O que hei de dizer.. senão.... que gosto muito da senhora... e... INÊS - Pois diga: vai tantas vezes o cântaro à fonte, que lá fica. ISAÍAS - Não me provoque, senhora, não me provoque! INÊS - Cada qual puxa a brasa para sua sardinha... ISAÍAS (Agitado.) - Brasa! Sardinha! Oh! Que suplício! INÊS - O que tem o senhor? ISAÍAS - Nada... não tenho nada... é que esta proibição me incomoda... Este maldito costume... parece que não estou em mim... INÊS - Sabe o que mais? ISAÍAS - Vou saber. INÊS - Diga o que quiser! Abra a torneira dos anexins, ditados, rifões, sentenças, adágios e provérbios... Fale, fale para aí? ISAÍAS - E a condição? INÊS - Caducou. (Dando-lhe a mão.) Aqui tem: sou sua. ISAÍAS (Contente.) - Minha! (Em outro tom.) E os outros? INÊS - Não existem, nunca existiram! ISAÍAS - Pois estou acordado? Se estiver dormindo, deixa-me estar: não me acordes. INÊS - Está bem acordado. ISAÍAS - Estou?! (Pulando de contente.) Então viva Deus! Viva o prazer! ... Trá lá lá rá lá! (Quer abraçá-la.) INÊS (Gritando.) - Alto lá! Mais amor e menor confiança! ISAÍAS - E que o rato nunca comeu mel, quando come.. (Outro tom.) Pode-se dizer este ditadozinho?... INÊS - Quantos quiser!

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ISAÍAS (Concluindo.) - ... se lambuza! (Tomando-lhe as mãos.) E tu? Amas-me, meu bem? INÊS - Sossegue: o amor virá depois. Seja bom marido e deixe o barco andar! ISAÍAS - Apoiado. Roma não se fez num dia! INÊS - E tenha sempre muita fé nos seus anexins. ISAÍAS - É verdade: O que tem de ser tem muita força. O homem põe... e a mulher dispõe!... INÊS - Basta! Despeça-se destes senhores, e vá tratar dos papéis... ISAÍAS - Quem tem boca não manda... cantar. Mas, enfim... (Ao público.) Copla final Antes que daqui nos vamos, Inês vos dirá quais são Os votos que alimentamos No fundo do coração. INÊS - Os votos que neste instante Fazemos nestes confins (Deita a mão sobre o coração.) É que nos ameis bastante Embora por anexins. AMBOS- Muitas palmas esperamos De vós: Metade para o autor, metade para nós. (Cai o pano.)

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UMA VÉSPERA DE REIS COMÉDIA EM UM ATO Música de Francisco Libânio Colás Representada pela primeira vez no Teatro de São João da Bahia, em 15 de julho de 1875 Personagens REIS, pai de família BERMUDES, fazendeiro de Camamu ALBERTO, estudante de medicina JOSÉ, moleque FRANCISCA, mulher de Reis EMÍLIA, sua filha UMA VIZINHA Dois pretos minas, rancho dos Reis, povo, etc A cena passa-se na capital da Bahia, em uma casa do Largo da Lapinha. Atualidade ATO ÚNICO Em casa de Reis. Sala de visitas. Mobília velha: mesa, cadeiras, piano de mesa. Castiçais com grandes mangas de vidro. Registros do Senhor do Bonfim. Palha benta em um dos cantos da sala. Ao fundo, porta que deita para o corredor; à direita, duas janelas; à esquerda porta comunicando com o interior da habitação. É dia. CENA I JOSÉ E ALBERTO (José está à janela, conversando com Alberto, que se acha da parte de fora.) JOSÉ - Então, Vossa Senhoria me acha um cara de pau-de-cabeleira; não é assim, seu Doutor? ALBERTO - Fecho-te já a boca...(Dando-lhe dinheiro.) Toma lá dois mil réis. JOSÉ (Examinando.) - Aqui só estão dez tostões... (Guarda o dinheiro.) ALBERTO - Logo dar-te-ei os outros dez. Anda! vê um momento em que ela esteja sozinha. JOSÉ - Não se incomode! Venha de lá um charutinho para o moleque... ALBERTO - Eu fico à espera do assobio ali, (Aponta.) encostado ao chafariz... JOSÉ - Faça favor de seu fogo. (Acende seu charuto no de Alberto.) Pode ir descansado que a cabra é onça. ALBERTO - Vê lá o que fazes, hein? Até logo... (Desaparece.) CENA II JOSÉ JOSÉ (Desce à cena e canta, findando o trêmulo que a orquestra tem conservado desde a introdução.)

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Coplas I Sou vivo como um azougue, para dinheiro arranjar; hoje não pude, no açougue, o carniceiro enganar. Apesar de ser moleque, sou vivo como um senhor doutor; pra num bolso dar um cheque. Como eu ninguém há por cá. Olá! Como eu ninguém há! Olé! Como eu ninguém é! Oli! Como eu ninguém vi! Olô! Ninguém como eu sou! Olu! Ninguém é como tu! II Que me importa que se diga qu'estes meus medos são maus; que sou doido de uma figa e ando feito um dois-de-paus? Se me vêm nas algibeiras moedas a tinir, cair! Dou-me bem co'estas maneiras, pois é isso que dá (Esfrega os dedos.) pra cá! (Aponta para as algibeiras.) Olá! etc. CENA III JOSÉ E EMÍLIA EMÍLIA (Vendo José a fumar.) - Muito bonito! Parece um dono de casa! JOSÉ (Apaga o charuto com saliva e guarda-o atrás da orelha.) - A benção, iaiazinha? EMÍLIA - Adeus. (Senta-se.) Já viste passar o Alberto, José? JOSÉ - Já sim, iaiazinha. EMÍLIA - Ora! Por que não me chamaste? JOSÉ - Coisa melhor, iaiazinha! Não se amofine! (Mostra-lhe a carta e cantarola.) Trá lá rá lá lá... EMÍLIA (Ergue-se vivamente.)- Deixa ver! deixa ver! JOSÉ (Arremeda-a.) - Deixa ver! deixa ver! (Esquiva-se ao alcance das mãos da moça, negando-lhe a carta; afinal trepa sobre uma cadeira e entrega a carta, depois de levá-la à maior altura em que possam tocá-la as mãos de Emília.) EMÍLIA - Deixa-te de confianças, moleque! (Toma a carta.)

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JOSÉ - Eu é que devo levar a resposta, iaiazinha! EMÍLIA (Abre e lê a carta.)- "Milu. Peço-te que me deixes entrar hoje para a sala. O José ficará à porta e nos avisará quando avistar teu pai. À janela sempre podemos dar que falar a vizinhança. Teu - Alberto". (Guarda a carta.) Ora! seu Alberto não se enxerga! JOSÉ - O que diz, iaiazinha? EMÍLIA - Digo o que deve dizer uma menina de juízo: não consinto que ele transponha aquela porta sem o consentimento de papai e mamãe. Quando for meu noivo, sim... JOSÉ - Se a iaiazinha soubesse o empenho que seu doutor mostra! Olhe, não diga nada a ele... mas... ele pediu-me que dissesse a iaiazinha que me entregou a carta com lágrimas nos olhos...(Pausa.) Mas uma vez que a iaiazinha não quer...(Vai a sair pelo fundo.) EMÍLIA - José? JOSÉ (Voltando ligeiro.) - Mando entrar o moço? EMÍLIA (Depois de hesitar.) - Está bom, manda. (José vai a sair.) Mas espera: é preciso que lhe afirmes que só consenti depois de muitas instâncias tua. Será bom que não me julgue fácil. Manda-o entrar. Onde está ele? JOSÉ - Olhe. (Aponta para a rua, pela janela.) Não vê aquele tipo encostado ao chafariz? Fumando? EMÍLIA - Sim. Isso há de ser já, enquanto papai não volta e mamãe está ocupada com o doce de aracá...(Vai saindo.) JOSÉ - Então iaiazinha não fica para recebe-lo? EMÍLIA - Eu devo vir lá de dentro como quem não sabe da coisa. Já te disse: quero que ele se persuada que eu não aprovo... JOSÉ - Se sinhô velho descobre... EMÍLIA - Anda! Não estejas aí a papaguear! Avia-te! (Sai.) CENA IV JOSÉ, depois ALBERTO JOSÉ - O que eu quero é não ficar mal no negócio. Tenho medo destas coisas que me pélo. (Vai a janela e assobia: reponde-lhe da rua um outro assobio.) Moleque está fino no namoro! Duetino JOSÉ (À janela.) Entre depressa, meu ioiozinho! (Correndo ao corredor.) Não fala bulha! Devagarinho! (Alberto entra.) Faça de conta que a casa é sua, pois sinhô velho está na rua. ALBERTO - E sinhá velha? JOSÉ - Lá na cozinha Fazendo doce com iaiazinha. ALBERTO(À boca da cena.) - Eu sou Alberto Ribeiro estudante mais pimpão! JOSÉ - Na bolsa pouco dinheiro muito amor no coração. Juntos - { me lembro} Quando { } que a namorada {se lembra} nesta casinha vive isolada

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deixo } } pro lado a Anatomia deixa } e sem saudades da Cirurgia deito} } a correr pro seu lado! deita} Sou } } ligeiro namorado! É } Olaré! Olaré! Vida boa isto é que é! JOSÉ - Não se demore muito, é que é; hoje, véspera de Reis, sinhô velho deve entrar cedo... ALBERTO - E Milu? Onde está ela?... JOSÉ - Iaiazinha não tarda. está contente como quê! Mas não diga nada a ela, porque ela me disse que lhe dissesse que ela não aprova a entrada de Vossa Senhoria aqui e que só a muitas instâncias minhas... ALBERTO - Bem. Toma lá dois mil réis... (Dá-lhe dinheiro.) JOSÉ - Aqui só estão dez tostões... ALBERTO - Anda... Mexe-te... Logo terá os outros dez. JOSÉ - Olhe; aí vem iaiazinha. (Sai pelo fundo.) CENA V ALBERTO E EMÍLIA EMÍLIA (Fingindo surpresa.) - Ui! ALBERTO - Não se assuste... não se assuste... Sou eu... EMÍLIA - Quem foi que o autorizou...? ALBERTO (Interrompendo-a.) - Quando se ama, meu bem, não se quer saber de autorizações; o coração tudo autoriza e às leis que ele dita, não há desobediência possível. EMÍLIA - Você tem lábias, tem... ALBERTO - E lábios... para dizer que te amo, que te adoro, que és o sol de minha vida, a estrela da minha existência! (Ajoelha-se.) EMÍLIA - Ó gentes! Eu não sou santa, seu Alberto. Se alevante. (Alberto ergue-se.) Mas estes estudantes são mesmo muito atrevidos. Ora se papai... ALBERTO - Descansa; o José está à porta da rua para prevenir-nos... EMÍLIA - Hei de contar a mamãe o desaforo de José. Você acha muito bonito andar de comunicações com o moleque, não? ALBERTO - O que eu acho é que foi com o teu consentimento que.. EMÍLIA (Depois de fechar a porta da esquerda.) - Vamos ao que importa: o que me quer? ALBERTO - O que te quero? Quero ver-te; falar-te; pintar-te ao vivo este amor; ouvir de ti mais uma vez que me amas. EMÍLIA - Mesmo por você que o amo; mesmo por esperá-lo à janela para vê-lo passar e apertar-lhe a mão ou oferecer-lhe uma flor, é que você abusa! Ingrato! Fazer consentir em que tenha entrada aqui, sem papai e mamãe saberem! ALBERTO - És injusta, Milu, és muito injusta. (Emília faz-lhe má cara.) Está bem! Já não digo nada! Adeus! não quero comprometê-la...(Dirige-se para a porta do fundo.) Não quero abusar... EMÍLIA - Alberto? ALBERTO (Quase a sair.) - Adeus. EMÍLIA (Bate o pé.) - Alberto! ALBERTO (Volta à cena.) - Milu?

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EMÍLIA (Toma-lhe as mãos.) - Você não é homem; você é o diabo! ALBERTO - Queres dizer que sou mulher? EMÍLIA - Por que não me pede a papai? ALBERTO - Já te disse que isso tem seus quês: teu pai, disseste-me, quer casar-te com o filho de um seu compadre... EMÍLIA - Meu pai não é homem que obrigue a filha a casar-se à força! ALBERTO - Ainda há outra coisa: eu tenho um tio... EMÍLIA - Ah! você tem um tio? Ainda não me havia dito... ALBERTO - Pois de onde me vem a mesada? De meu tio... É preciso que me entenda com ele... Se faz-me as vezes de pai, não é muito natural que eu, que faço as vezes de filho, case-me sem ao menos dizer: Água vai. EMÍLIA - E se ele puser alguma objeção?... ALBERTO - Não põe, não. Meu tio é muito meu amigo. É capaz de trepar ao céu, para ir buscar a lua, se eu lha pedir. O mais que pode haver é alguma demorazinha... Já estou no quinto ano... Logo que me formar... EMÍLIA - Logo que se formar, adeus... Ora, eu bem conheço estes estudantes! Mentem por quantas juntas têm! ALBERTO - Então já gostaste de algum, antes de mim? EMÍLIA - Ó gentes! quem foi que disse? ...(À parte.) Só de três... (Alto.) As minhas amigas é que me contam... ALBERTO - Histórias! Se elas os merecessem, como me mereces, não havia motivo de queixa... (Toma-lhe as mãos.) Sossega: prometo que hei de ser teu marido, a menos que te esqueças de mim. EMÍLIA - E posso contar com a mesma firmeza de sua parte? ALBERTO - Ainda me perguntas? EMÍLIA - Jure... ALBERTO (Estende solenemente a mão.) - Juro... (Outro tom.) pelo que queres que eu jure? EMÍLIA - Por tudo quanto há de mais sagrado... ALBERTO (Estende solenemente a mão.) - Por tudo quanto há de mais sagrado... Estás satisfeita? EMÍLIA - Estou, sim; é impossível que você quebre um juramento tão bonito! ALBERTO - Se já estivesse formado, jurava-te à fé de meu grau! CENA VI EMÍLIA, ALBERTO e JOSÉ JOSÉ (Entra a correr.) - Iaiazinha! Seu doutor! Fujam! Fujam!... (Toda a cena é rápida e de movimento.) ALBERTO E EMÍLIA - O que é? O que é? JOSÉ - Quando dei por mim, sinhô velho já vinha por trás da igreja!... Fujam! Fujam!... ALBERTO - Logo que ele entrar para o corredor, eu pulo pela janela. (Coloca-se atrás da janela.) EMÍLIA (Vai à janela e volta.) - É impossível! JOSÉ - Depressa! ALBERTO (A Emília.) - Por que?... JOSÉ - Depressa! ALBERTO (A Emília.) - Mas por quê, por quê? EMÍLIA - Seu Antônio está na porta. ALBERTO - Quem é seu Antônio nesta vida? EMÍLIA - É o maroto da venda... JOSÉ - Chi! Uma língua danada! Quando não tem de quem falar, fala de si... Depressa! Sinhô velho já deve estar na porta... (Vai à porta e volta aflito com as mãos na cabeça.) EMÍLIA - Estou perdida! ALBERTO - Ah! esta mesa...(Esconde-se debaixo da mesa.) REIS (Fora.) - Vamos entrando...

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EMÍLIA - E vem acompanhado... Meu deus! O que sairá daqui?... JOSÉ - Salve-se quem puder! (Vai saindo e Reis, que entra com Bermudes, agarra-o pelo braço.) REIS (A José, no fundo.) - Ó José, logo que vires o Manuel, aquele negro que foi capitão do canto da Soledade (Tu o conheces...) com outro, carregando os baús do compadre, levá-os lá para o sótão... O carreto já está pago... Vai... (José sai; durante a cena que se segue vêm-se passar pelos fundos dois negros, carregando os baús; depois tornam a passar em sentido contrário, com as mãos vazias; Alberto de vez em quando espia por baixo do pano que deve cobrir a mesa e mostra que está impaciente e mal acomodado.) CENA VII EMÍLIA, ALBERTO, REIS e BERMUDES BERMUDES (Sem reparar em Emília, bem como Reis) - Você está num casão, compadre. Quanto paga por isto? REIS - Trinta mil réis. BERMUDES - Tem purrões? (Senta-se junto à mesa.) REIS - Não, mas aqui a vizinha da esquerda tem, e é quanto basta. (Outro tom.) Compadre, você vai para o sótão... para o quarto do Antonico, seu afilhado...Aquilo por lá é fresco... há de gostar... BERMUDES - E onde está ele? REIS - O sótão? É lá em cima... É só subir... BERMUDES - Não; o Antonico. REIS - Pois não lhe mandei dizer que foi para a Corte? Lá está na escola... escola... Ora diabo! esquece-me sempre o nome da tal escola... (Repara em Emília.) Ó Milu! estavas aí? Antes de me tomares a benção, dize cá: como é o nome da escola em que está teu irmão, lá no Rio de Janeiro? EMÍLIA - Politécnica. REIS - É isso... é isso... Poli... BERMUDES - ...técnica. O nome é danado. REIS (Dá a benção a Emília, abraça-a e beija-a na testa.) - Deus te faça santa! (A Bermudes.) Aqui está minha filha, compadre; você não a conhece; quando veio da última vez à cidade, ela estava na Providência. Milu, tome a benção ao compadre de papai... BERMUDES - Qual a benção! Venha de lá um abraço ao velho amigo de papai e mamãe. (Ergue-se.) A iaiá não faz idéia como éramos camaradas quando papai morava em Camamu. (Abraça-a.) Éramos a corda e o caldeirão... já lá vão uns bons vinte anos. EMÍLIA - Papai fala-me muitas vezes em vossemecê. BERMUDES - Pois não havia de falar? Entendíamo-nos perfeitamente! Camaradas em tudo: chapas combinadas para as eleições, gostos iguais, etc.; etc.! Que bons tempos! O que diz, compadre? REIS - Mas ainda você não me disse nada da pequena. BERMUDES - Pois que lhe hei de dizer? (Graceja.) É muito feia... muito desajeitada...(Abraça-a de novo.) Eh, eh! Mentira, iaiá! É um anjinho de Nossa Senhora. (A Reis.) Está satisfeito? EMÍLIA (Enquanto Bermudes a abraça, a Reis.) - Isso é debique de seu compadre, não é, papai? REIS - O que eu sei é que és uma rapariga de muito juízo... EMÍLIA (Á parte, olhando com intenção, para o esconderijo de Alberto.) - Se ele soubesse... BERMUDES - Mas onde está encantada esta comadre?... REIS - Vais chamar mamãe, Milu, dize-lhe quem está cá... EMÍLIA - É já, papai. ( Vai saindo.) REIS - Olha: leva isto lá fora. (Entrega-lhe chapéus e guarda sóis seus e de Bermudes; Emília sai, olhando para o esconderijo de Alberto.) BERMUDES (Vendo-a sair.)- Ora quem havia de dizer? Está uma moça, hein? Isto é que me faz velho... (Senta-se.)

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CENA VIII REIS e BERMUDES BERMUDES - Está mesmo que parece talhadinha para o rapaz! Que bonito casal! Estou certo que, em se vendo, ambos os dois hão de ficar de beiço caído... REIS (Senta-se ao lado de Bermudes.) - Eu também estou certo disso. (Um pouco embaraçado.) Mas olhe, compadre, eu toquei nisso à pequena... BERMUDES - Ah! Tocou? REIS - Toquei, sim, compadre, toquei... BERMUDES - Então, toque...(Apresenta a mão a Reis que a aperta.) A pequena (já se sabe!) pulou de contente; não pulou, não? REIS - Pelo contrário, compadre; torceu o focinho... BERMUDES - Torceu? REIS - Torceu, compadre, torceu... BERMUDES - Aqui é que a porca torce o rabo... Mas ora adeus! Eu não quero que os pequenos casem sem se conhecerem. Eles que namorem primeiro um ano, dois... e depois amarrem-se! Falem-se, estudem-se! Se gostar um do outro, muito que bem; se não, já cá não está quem falou. Isso não vai a matar, nem vale a pena contrariá-los! REIS - É que Milu... se não me engano... BERMUDES - Se não se engana... REIS (Com mistério.) - Tem aí o seu namorico... BERMUDES - Então está tudo acabado! (Erguem-se.) Dê-se o dito por não dito e deixe-se correr o barco! O que você não deve, compadre, é constrangê-la: olha que desces constrangimentos nasce muita coisa feia... REIS - Aí vem sua comadre. CENA IX ALBERTO, REIS, BERMUDES, FRANCISCA e JOSÉ (Francisca entra da esquerda com as mãos lambuzadas de doce e as mangas arregaçadas e José, do fundo.) FRANCISCA (Expansiva) - Ora viva o seu compadre! BERMUDES - Ora viva a sinhá comadre! (Quer apertar-lhe a mão.) FRANCISCA (Foge com as mãos.) - Estou com as mãos sujas! Estava dando ponto a um doce de araça, de que o compadre há de gostar e lamber os beiços. Mas venha de lá esse abraço!... Cuidado! não se suje... BERMUDES (Antes de abraçar Francisca, a Reis.) - Com sua licença, compadre... JOSÉ (Enquanto Bermudes e Francisca abraçam-se e depois conversam baixinho, aproxima-se de Reis.) - Sinhô velho? REIS - O que é que me queres, moleque? JOSÉ - Sinhô dá licença para eu hoje vir tarde para casa? REIS - O que é que tens de fazer na rua, vadio?... JOSÉ - Hoje é véspera de Reis... e eu sou do rancho... REIS - O que tu és sei eu! Vá lá... vá lá... JOSÉ - Sinhô velho faz bilhete?

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REIS - Não é preciso; é véspera de Reis: podes andar sem bilhete. (Dá-lhe dinheiro.) Não vá beber de cachaça, hein? (A Bermudes, mostrando José.) Ó compadre, conhece esta peça? BERMUDES - É um bonito moleque! JOSÉ - Muito obrigado. REIS (a José.) - Cala a boca, moleque! FRANCISCA - Já não se alembra dele, compadre? REIS - O José... cria de nossa casa?... JOSÉ - José Filomeno dos Reis, um criado de Vossa Senhoria... FRANCISCA (A JOSÉ.) - Cala a boca, apresentado! BERMUDES (Recordando-se) - Ah! agora me lembro! Mas como está crescido este moleque! FRANCISCA - É muito vadio, compadre! Quando era pequenino... BERMUDES - A comadre estimava-o muito... REIS - Chegava mesmo a fazer-lhe a cama; agora, não vale o que come! (Bermudes e Francisca continuam a conversar baixinho.) JOSÉ (A Reis.) - Posso ir, sinhô velho? REIS - Vai (José vai saindo.) Ó que idéia! (Chama.) José! JOSÉ (Voltando.) - Sinhô? REIS (A Bermudes.) - Vou festejar a sua chegada, compadre! (A José.) Uma vez que tu és do rancho, quero que faças com que ele venha a dançar aqui esta noite, ouviste? JOSÉ - Sim, sinhô: eu faço de burrinha... FRANCISCA - Você deita-me este moleque a perder, seu reis! (A Bermudes.) Todo dia santo este moleque leva todo o santo dia na vadiação. REIS (Sem dar ouvidos a Francisca; a José.) - Está bom! Se vierem, dou uma gorjeta; se não vierem, levas uma dúzia de bolos! JOSÉ - Antes quero a gorjeta, sinhô! (Sai correndo e cantarolando.) BERMUDES (A Reis..)- Então, para festejar a minha chegada, manda você dançar os reis hoje aqui... (A Francisca.) O compadre é o mesmo: não mudou mesmo nada... FRANCISCA - Deixa ele falar: aquilo é porque ele se chama seu Reis. BERMUDES - Ah! ah! ah! A comadre teve graça! ( A Reis.) Também não mudou nada mesmo nada... REIS (A Bermudes.) - Mas ainda você não disse a Dona Francisca... FRANCISCA (Interrompe-o.) - Lá vem seu Reis com Dona Francisca! O cabeçudo ao pé de gente não é capaz de me tratar por Dona Chiquinha... BERMUDES - É costume antigo! Andavam sempre brigando por via disso em Camamu! FRANCISCA - Aqui tem sido a mesma coisa! Veja lá, compadre! Com tantos anos de casados! E eu que embirro com semelhante nome de Francisca! REIS (Maçado.) - Pois vá lá, Dona Chiquinha... (Estala a língua.) FRANCISCA - Mas vamos a saber... (A Reis.) O que ia você dizendo? REIS - É que ainda o compadre não lhe disse o motivo que o trouxe à cidade... Mas você interrompe a gente... BERMUDES - Venho à cidade por via daquela questãozinha de terras... A comadre lembra-se? FRANCISCA - Não me lembro eu de outra coisa! Questãozinha diz o compadre? Questãozona, digo eu! que muitos cabelos brancos lhe fez criar! BERMUDES - Ora! as terras eram minhas! A legitimação estava feita...(Sinal de assentimento de Reis e de Francisca. Pausa.) Mas eu dormi no negócio... REIS - Foi todo o seu mal, compadre! BERMUDES - Mas agora o coronel Casimiro... FRANCISCA - Grandessíssimo cão! Não me hei de esquecer do dia em que ele me veio convidar para substituir a professora pública, que vinha doente para a cidade! REIS - Ora! Aquilo é um vira-casaca muito desavergonhado! FRANCISCA - Quando o bruto sabia perfeitamente que eu não sei ler! BERMUDES - Não se admire, comadre, não se admire, porque aí por esse interior velho muita gente ensina aquilo que não sabe!... REIS - Mas vamos à questão...

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BERMUDES - O coronel Casimiro apresenta documentos de que as terras são dele! "Oh! digo eu cá comigo, esta agora fia mais fino!" Entreguei a minha causa na mão do Secundino Barbosa... FRANCISCA - Quem? Aquele rábule que brigou a soco com seu Reis nas eleições de 54? REIS - E por sinal me partiu dois dentes. (Mostra a falta dos dentes e fala com a boca aberta.) que nunca mais tornaram a nascer! BERMUDES - Esse mesmo! (Em tom lamentoso.) Ah! compadre! (Toma a mão de Reis.) Ah! comadre! (Toma a de Francisca, esquecendo-se que está suja.) Aquele homem foi a morte de minha causa! FRANCISCA E REIS - Sim? deveras? BERMUDES (Abandona-lhes as mãos com desânimo.) - E talvez seja a causa de minha morte! (Limpa a mão que pegou na de Francisca.) REIS - Ora não pense nisso! FRANCISCA - Ponha o coração à larga, compadre... BERMUDES - Tem razão, compadre; tem razão, comadre; ambos os dois tem razão. (Alegra-se aos poucos.) Principalmente hoje, véspera de Reis e dia de alegria, porque vi a vossemecês, a menina e amanhã verei também meu sobrinho. O tratante anda sempre a mudar-se e então agora está em férias: não posso procurá-lo na Academia, Olhem que aquele rapaz é o meu pecado! Mas, graças às cabaças, está quase senhor doutor e pronto para mandar gente para o outro mundo... Pouco se me dá dos cobritos que tenho gasto com ele neste! FRANCISCA - E o que me diz a respeito de umas certas cartinhas trocadas entre seu Reis e o compadre? BERMUDES - Já não se fala nisso! A moça gosta de outro e amor não é imposto pessoal. FRANCISCA - Eu já não penso assim! Bem podíamos mostrar a Milu o verdadeiro caminho da felicidade... REIS - Asneira no caso! BERMUDES (Sentencioso.) - Comadre, o verdadeiro caminho da felicidade é aquele em que a gente anda por seu gosto e não aquele para onde nos empurram. REIS - Apoiado! Casem-se à vontade as moças e depois lá se avenham! FRANCISCA - O Compadre já sabe que o seu afilhado... BERMUDES - Já. Já sei que está na escola... na escola... (AReis.) Como é o nome da escola, compadre? REIS - Escola... escola... Como é, Dona Francisca? FRANCISCA (Zangada.) - Dona Francisca, hein?... REIS (Emenda.) - Como é, Dona Chiquinha? FRANCISCA - Ora! Eu tenho o nome debaixo da língua... BERMUDES - Eu também... REIS - Eu também... (Chama.) Milu, ó Milu! (Emília responde de dentro com um grito.) REIS E FRANCISCA - Vem cá... OS TRÊS - Escola... escola... Ora! Coro Ó que diabo de nome! Ó que nome do diabo! A paciência consome e da pachorra dá cabo! CENA X OS MESMOS e EMÍLIA EMÍLIA - O que querem? OS TRÊS - Como é o nome da escola em que está o Antonico? EMÍLIA - Como? Não entendi! OS TRÊS - Como é o nome...(Calam-se e entreolham-se.)

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EMÍLIA - Fale só um. (Tornam a falar todos a um tempo.) BERMUDES - Fale você compadre. REIS - Fale você, Dona Fran... Chiquinha. FRANCISCA - Fale você, compadre. BERMUDES - Como é o nome da escola em que está o Antonico? EMÍLIA - Escola po-li-téc-ni-ca OS TRÊS - Ahn... Repetição do Coro Ó que diabo de nome! Ó que nome do diabo! A paciência consome e da pachorra dá cabo! EMÍLIA - Com licença. O tacho ainda está no fogo. (Sai, olhando furtivamente para o esconderijo de Alberto.) BERMUDES (Vendo-a sair.) - Que boa dona de casa esta ali se formando, hein, comadre? FRANCISCA - Veremos, compadre, veremos... REIS - Temos trabalhado para fazer dela não só uma boa dona de casa, como diz você; mas também uma senhora que saiba entrar numa sala... FRANCISCA - Lá isso é verdade! BERMUDES - Nunca lhe doam as mãos, compadre! REIS - Já aprendeu francês, inglês, um bocadinho de italiano... BERMUDES - Deveras? FRANCISCA - Sim, senhor; e está agora arrecordando o português... REIS - Olhe! (Aponta para o piano.) BERMUDES - Piano, hein?! REIS - É como vê! BERMUDES - Muito bem! (Outro tom. A Francisca,) Ora, comadre! Vim encontrar esta heróica cidade de São Salvador muito mudada! FRANCISCA - É verdade! Ainda não me falou a esse respeito! O que me diz do parafuso? ... Seu Reis já me fez trepar naquela geringonça! Mas não é mais a filha de meu pai... O compadre subiu pelo parafuso?... BERMUDES - Subi, comadre, subi; mas também não é mais o filho de minha mãe... Eu estava só vendo desgrudar-se aquela futrica, e zás catrapus, era uma vez um Bermudes! (Benze-se.) Nada! FRANCISCA - E o chupão que se recebe? (Imita.) Fuuu... Agora, os bondes, sim... BERMUDES - Sim, senhora! Para aí vou eu! Falem-me dos bondes! Mas que mudanças, compadre, que invenções, comadre! Tango BERMUDES - - Tanta mudança me faz confuso! Pois se o progresso anda tão fino, que temos bondes e parafuso, temos o cabo submarino! - E até é uso lindas modinhas tocar o sino! Se o que se passa cá na Bahia, dizer-se quer mandar à França! vem a resposta no mesmo dia, e na viagem ninguém se cansa!...

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Virgem Maria! Me faz confuso tanta mudança. OS TRÊS - Virgem Maria! etc, BERMUDES - - Não há mais o que se invente! Que invenções encontrar vim! Por três tostões vai a gente até o fim do Bonfim! A libra chama-se quilo, segundo os novos padrões! O que nos falta é aquilo com que se compram melões... OS TRÊS - O que nos falta, etc. REIS - Dona Francisca, vá... FRANCISCA - Chame-me Dona Chiquinha, seu Reis! Jesus! que teima de homem! REIS (Com resignação.)- Dona Chiquinha, vá aprontar o sótão... Já sabe que compadre vem morar conosco? FRANCISCA - Nem a gente consentia que morasse em outra parte! REIS - As bagagens já lá estão. FRANCISCA - Então, com licença, seu compadre. Quando quiser, nada de cerimônias, que am casa é sua. (Vai saindo e retrocede.) Ah! deixe-me acender estas velas. (A cena tem escurecido gradualmente. Francisca acende duas velas dos castiçais.) REIS (Enquanto Francisca prepara a luz.) Você não quer mudar de roupa compadre? BERMUDES - Daqui a bocadinho... Se você tem um cachimbo, traga-me... Eu ainda fico por cá. Está agradável esta viração. REIS - É já. (Sai com Francisca.) CENA XI ALBERTO e BERMUDES (Bermudes senta-se junto à mesa: pega num álbum, deita os óculos e começa a folheá-lo. Alberto sai do esconderijo.) BERMUDES (Examinas as fotografias.) - Este é Sua majestade... É um imperador bem bonito! Está acabado... Pois olhem que é mais moço do que eu... (Folheia.) Aqui estão o compadre, a comadre, a Milu e o meu afilhado... Está muito bom este grupo... A comadre é que não está muito parecida, não. O Antonico, está um homem! Deus queira que faça alguma coisa lá pela tal escola lipotécnica... ALBERTO (Aproxima-se pé ante pé de Bermudes, tapa-lhe os olhos e disfarça a voz.) - Quem sou eu? BERMUDES - Oh! Oh! não aperte tanto! Sei lá quem é! Veja que o senhor está enganado: eu não sou o compadre; isto é: sou o compadre, sim, mas o compadre do compadre! Largue-me, senhor! e esta! Será algum maluco? ALBERTO (Com voz natural.) - Então já adivinha? BERMUDES - Que ouço!... Que vejo!... (Ergue-se admirado e contente.) Pois tu... mas tu... oh! tu... Duetino BERMUDES - - Corre a meus braços! ALBERTO (Abraça-o.) - Aqui me tem! BERMUDES - - Oh! meu Deus, isto faz tanto bem! (Abre de novo os braços.) Novos abraços! ALBERTO - - Aqui me tem! BERMUDES - - Como estou satisfeito! ALBERTO - - E eu também!

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BERMUDES - - Mais um abracinho! (Mesmo jogo de cena.) ALBERTO - - Aqui estou eu! BERMUDES - - Oh! meu Deus, que de bens isto faz! Oh! meu sobrinho! ALBEERTO - - Oh! tio meu! BERMUDES - - Quanto estou satisfeito! ALBERTO - Eu 'stou mais! BERMUDES - Mas como diabo achas-te aqui? ALBERTO - Vim seguindo-o: vossemecê vinha adiante; eu vinha atrás; até que afinal vi-o entrar para cá; esperei-o, a ver se saía; mas como vi entrarem as bagagens, disse: Bem, ao que parece, vai o homem hospedar-se ali... BERMUDES - Bem mostras que tens cabeça; sais a teu pai que, para ir a qualquer parte, bastava que lhe ensinassem o caminho. Eu ia para o hotel, para de lá procurar-te e morar contigo... Onde moras tu agora? ALBERTO - No beco do Tira-chapéu... numa república. BERMUDES - República?! ALBERTO - É uma espécie de Boêmia... BERMUDES - Boêmia?... ALBERTO - É uma espécie de república... BERMUDES - Ahn.. (À parte.) A explicação foi bem dada, mas eu fiquei na mesma... ALBERTO - Mas, afinal de contas, por que não foi morar comigo? BERMUDES - Encontrei o compadre, que obrigou-me a vir para cá. Mesmo porque, em casa do compadre estou melhor do que numa... como chama? ALBERTO - República. BERMUDES - Mas que diabo quer dizer uma república? ALBERTO - É uma espécie de... BERMUDES - ... de Boêmia. Estou ciente. Cá recebi, não havia pressa! (À parte.) Isto é por força nome de mezinha... CENA XII OS MESMOS e REIS REIS (Traz um cachimbo aceso e um cálice de aguardente que oferece a Bermudes.) - Aqui tem, compadre, o cachimbo e um golinho de aguardente para refrescar. (Cumprimenta Alberto.) BERMUDES (Fumando.) - Meu sobrinho, de quem tantas vezes falamos. REIS - Ah! Sim?... Como está, senhor doutor? Sinto que nunca nos viesse ver... BERMUDES - Quem teve a culpa foi esse seu criado. Não lho apresentei, porque disse lá comigo: Quanto menos conhecimento tiver, mais depressa andará em seus estudos... REIS (Amável.) - E como soube que estava aqui o senhor seu tio, doutor? BERMUDES - Seguiu-nos... REIS - Oh! e por que não falou logo?... ALBERTO - É que a princípio duvidei que fosse meu tio; mas depois que vi entrarem as malas... REIS - Então foi pelas malas que o conheceu? BERMUDES - É que elas trazem o meu nome... REIS - Ahn... ALBERTO (À parte.) - Feliz acaso... BERMUDES - Compadre, vamos para o tal sótão... Quero conversar com este rapaz sobre seus estudos, sua vida na cidade. (A Alberto.) Quero dizer-te também o que me fez sair do meu sossego... ALBERTO (À parte.) - Bis.

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BERMUDES - E mostrar-te uma ferida que tenho... mas não te mostro, não. Tu já tens tempo de sobra para saber... ALBERTO (Com importância.) - Ora! BERMUDES - Talvez seja alguma... Boêmia, hein?... ALBERTO - Que disparate, meu tio! REIS - Vamos, compadre. Passemos pelo corredor! (Saem pelo fundo.) CENA XII EMÍLIA depois FRANCISCA EMÍLIA (Entra pressurosa e, depois de certificar-ser que está só, ergue o pano da mesa sob que estava escondido Alberto; tristemente.) - Foi-se! FRANCISCA (Entra.) - Quem?... EMÍLIA - Senhora? FRANCISCA - Quem é que - foi-se - ? EMÍLIA (Perturbada.) Donde? FRANCISCA - Ó Milu! Pois não arribaste o pano da mesa e não disseste - Foi-se? Foi-se quem?... EMÍLIA - Ah! era um camundongo... FRANCISCA - Pois aqui em casa não havia ratos... EMÍLIA - Não era rato; era camundongo... FRANCISCA - Vem a dar certo: eles hão de crescer por força... Vou mandar pôr pelos cantos das casas bananas espetadas com fosques. EMÍLIA - Isso não é bom; vossmecê já o fez, e em vez dos ratos, foi o gato que comeu as bananas e morreu. FRANCISCA - Pobre Rocambole! EMÍLIA - Para onde foi seu compadre, mamãe? FRANCISCA - É provável que para o sótão, que é o quarto que está marcado para ele. E por falar no compadre, menina: se te casasses com o sobrinho... EMÍLIA - Havia de ser muito infeliz.. FRANCISCA - Pelo contrário: havias de ser muito feliz. O compadre é homem endinheirado e o tal sobrinho vem a ficar com aquilo tudo... REIS (Fora, do sótão.) - Dona Francisca... ó Dona Francisca! FRANCISCA - Lá está teu pai a chamar-me de Dona Francisca. Olhem que é forte teima! Pois não respondo não! REIS (Fora.) - Dona Francisca... FRANCISCA - Grita para aí. REIS (No mesmo.) - Dona Francisca... FRANCISCA (A Emília.) - Vê se ajudas a Maximiniana a passar aquele doce de araçá para as compoteiras. REIS (No mesmo.)- Dona Francisca... FRANCISCA - Grita! REIS (No mesmo.) - Dona Chiquinha! ó Dona Chiquinha! FRANCISCA - Ah! isso é outro cantar... (Muito terna.) O que é, seu Reis, o que é? Aí vou eu... (Sai pelo corredor.) CENA XIV EMÍLIA - "Havias de ser muito feliz", disse mamãe. Moço... rico... Ora quem dirá que o Alberto há de ser sempre constante? ... Este é certo e sempre ouvi dizer que não deixes o certo pelo duvidoso... Mas não! não! Isso seria muito feio! Um moço que nunca vi, nunca conheci... (Cai numa cadeira.) E não tenho uma amiga, uma confidente... uma conselheira... que me ouça... que me atenda... que me aconselhe... (Olha para a rua.) Ah! ali vem a nossa vizinha Dona Emília... uma viúva traquejada nestas coisas de

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namoro... Foi Deus que me mandou!... (Vai à janela e fala para fora.) Ó vizinha, antes d eentrar em casa, podia dar-me uma palavrinha? VIZINHA (Fora.) - Duas ou três, se quiser.. CENA XV EMÍLIA à janela e UMA VIZINHA na rua VIZINHA (Modos hipócritas; vestida a passeio.) - Como está, meu nome?... EMÍLIA - Assim-assim. E a senhora?... VIZINHA - Muito constipada; mas agora vou melhorzinha. Vim agora da Lapinha; fui levar uma velinha ao menino Jesus... EMÍLIA - Para ficar boa?... VIZINHA - Então? Ah! meu nome! a senhora não faz idéia! Desde que fiquei viúva, nunca mais tive um dia de saúde! Parece história! De mais a mais hoje acabei de engomar e pisei n'água fria! EMÍLIA - Que loucura, meu nome! Não faça mais semelhante cousa... VIZINHA - Não foi por querer. Meu sobrinho Vitor (aquele que é tipógrafo) não pode lavar as mãos sem deixar o lugar do lavatório todo molhado. Ai! Ai! enquanto não me casar não tenho sossego! EMILIA - Ora, meu nome! O que tem seu sobrinho e o lavatório com o seu casamento? VIZINHA - Não é só isso, meu nome: os ataques histéricos não me largam... EMÍLIA - Então a senhora acha que é muito bom o casamento?... VIZINHA - Ó gentes! o que pode haver melhor do que a gente ter seu maridinho? Meu nome, por que não se casa?... EMÍLIA - Isso é bom de dizer... A senhora bem sabe que o Alberto... VIZINHA - Quem?... O doutor Alberto?... Se a senhora vai atrás dele, está bem aviada, meu nome... Aquilo é um empata... EMÍLIA - Como é que sabe disso?... VIZINHA - Gosta de todo o mundo... feminino. Ainda outro dia... era um dia santo. (Como lembrando-se.) Que dia santo era, Emília? (Recordando-se.) Creio que foi no dia de Natal... vinha ele no bonde piscando o olho... Adivinhe a quem, meu nome?... EMÍLIA - A quem, meu nome?... VIZINHA - A uma irmã de caridade... EMÍLIA - O que é que diz?... VIZINHA - Ele passa aqui todos os dias por minha causa... EMÍLIA - Por sua causa?... VIZINHA - Por minha causa... E lança-me sorrisos ternos e diz amabilidades... EMÍLIA - O que está dizendo, minha rica senhora?... VIZINHA - Menina, eu tenho muita prática de homens, sei o que são essas coisas... EMÍLIA - Pois olhe, vizinha, há um moço rico com quem me desejam casar... VIZINHA - Deveras?... EMÍLIA - Deveras: é o sobrinho do padrinho do meu irmão... VIZINHA - E o que vem a ser da senhora?... EMÍLIA - Uma vez que papai é compadre do tio dele e ele é sobrinho do compadre do papai, é por conseguinte de mamãe também... e como sou filha do compadre e da comadre do tio dele, creio que vem a ser meu primo... VIZINHA - Um primo, e ainda em cima rico, não é moleque de tio Chico... Agarre-o com unhas e dentes, meu nome. Acredite que isto de maridos, qualquer serve, contanto que seja homem... EMÍLIA - Mas sempre supus que o Alberto fosse de outra marca... VIZINHA - Não é capaz! Agora eu?... Eu talvez me case com ele... EMÍLIA (Vivamente.) - Como?... VIZINHA - Tenho muito jeito para endireitar homens...A senhora verá como ele há de andar direitinho como um fuso! Adeus, meu nome: Nossa Senhora a faça feliz...

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EMÍLIA - A senhora quer vir dançar os Reis aqui?... VIZINHA - O moleque já me deu essa novidade... Quando eles vierem, eu passarei pela cerca e cá virei também... Até logo... (Some-se.) EMÍLIA - Até logo, meu nome... (Sai da janela.) CENA XVI FRANCISCA e EMÍLIA FRANCISCA (Entra muito contente.) - Menina... iaiá... aposto que há de casar-te com o sobrinho do compadre... EMÍLIA - (À parte.) - Ouviu tudo... (Alto.) Sim, senhora: estou deliberada a isso... FRANCISCA (À parte.) Já sabe quem é. (Alto.) E nada me dizias, hein, minha disfarçada? Hoje mesmo fica combinado o casamento. Agora, vai ajudar a Maximiniana que são horas de acabar com aquele doce de araçá... EMÍLIA - Não conheço o meu noivo: mas estou certa de que havemos de ser ambos muito felizes... (Saindo, à parte.) O que não dirá o Alberto? ... (Sai.) FRANCISCA (Vai-lhes ao encontro.) - Venham... venham... CENA XVII ALBERTO, REIS, BERMUDES e FRANCISCA BERMUDES - Então? Onde está a Milu, comadre?... FRANCISCA - Está ocupada com o doce de araçá. ALBERTO - A senhora disse-lhe quem era eu?... FRANCISCA - Não; mas ela o sabe... ALBERTO - Como assim? É impossível!!.. FRANCISCA - Pois quando vim do sótão e lhe disse: aposto que hás de casar com o sobrinho do compadre, ela disse-me logo que estava resolvida a isso... ALBERTO (Admirado.) - Oh! Então ela?... REIS - Então? que cara é essa, senhor doutor?... BERMUDES - Não gostas de Milu? ALBERTO - Muito; mas muito! REIS - Pois se ela quer... FRANCISCA - ... casar com Vossa Senhoria... ALBERTO - Justamente por querer casar comigo, é que... Não! Ela não quer casar comigo... ela quer com o sobrinho do compadre! REIS (À parte.) - Enlouqueceu.. BERMUDES (À parte.) - Está doido... FRANCISCA (À parte.) - Enlouqueceu... REIS - Mas então quem é o sobrinho do compadre?... BERMUDES - Quem é o meu sobrinho?.. ALBERTO - Eu sei o que ou... A Senhora Dona Francisca... FRANCISCA - Um favor, senhor doutor: trate-me por Dona Chiquinha... ALBERTO - ... sabe que o sou... (Aponta para o Reis.) O senhor ... (Aponta para o tio) Vossemecê - sabem; ela, porém, não o sabe... REIS (À parte.) - Enlouqueceu.. BERMUDES (À parte.) - Está doido... FRANCISCA (À parte.) - Enlouqueceu... REIS - Endoideceu... BERMUDES - Está doido... REIS - O melhor é chamarmos a Milu; ela nos há depor isto em pratos limpos... BERMUDES - Apoiado! FRANCISCA (Chama.) - Milu... ó Milu... (Milu responde de dentro com um grito.) REIS E FRANCISCA - Vem cá...

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Trio BERMUDES - - Se percebo... se percebo, sebo! (A Reis e Francisca.) - Perceberam a trapalhada? REIS E FRANCISCA - - Nada! BERMUDES - - Não entendo! FRANCISCA - - Não compr'endo! REIS - - Percebendo quase estou... BERMUDES - - Pois dê graças às cabaças: o compadre adivinhou! BERMUDES, REIS E FRANCISCA - - Que embrulhada! que maçada! É preciso adivinhar! A charada complicada ninguém pode decifrar! CENA XVII FRANCISCA, ALBERTO, REIS, EMÍLIA e BERMUDES EMÍLIA (De olhos baixos.) - Senhora? FRANCISCA - Vem cá, Milu: tu conheces aquele moço? ... (Toma-lhe o braço e aponta para Alberto.) EMÍLIA (Sem levantar a vista.) - Não senhora... REIS - Mas tu ainda não lhe viste o frontispício! (Toma-lhe também o outro braço.) FRANCISCA - Sim: não levantaste os olhos... BERMUDES (Benze-se.) - Cada vez isto se complica mais! REIS - E não te queres casar com ele?... EMÍLIA (À parte, e ainda de olhos baixos.) - Resolvi o contrário... Não posso esquecer-me do Alberto... FRANCISCA - Então, não respondes?... EMÍLIA - Não senhora. REIS - Não respondes ou não queres casar? EMÍLIA - Não quero... FRANCISCA - Responder ou casar? BERMUDES (Benze-se.) - Jesus! EMÍLIA - Casar... TODOS (Menos Alberto e Emília.) - Ora esta! ALBERTO - Que satisfação! TODOS (Espantados.) Satisfação! EMÍLIA (Reconhece a voz de Alberto, levanta os olhos.) - Ah!... (Corre para ele.) - Quero! Quero!... TODOS (Espantados.) - Quer? EMÍLIA - Pois este é que o sobrinho do compadre. TODOS - Este é que é o sobrinho do compadre? EMÍLIA - Quero! quero! por que não hei de querer? (Conversa baixo com Alberto.) REIS (A Bermudes.) - Estão doidos, compadre! BERMUDES (A Francisca.) - Estão doidos, comadre? BERMUDES, REIS E FRANCISCA - - Que embrulhada! que maçada! É preciso adivinhar! A charada complicada

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ninguém pode decifrar! (A orquestra une com essa música o canto popular dos reis, tocado em surdina.) REIS - Doidos ou não , casem-se! FRANCISCA - Apoiado! E lá vem os Reis. CENA XIX FRANCISCA, ALBERTO, REIS, BERMUDES e a VIZINHA VIZINHA (Entra da esquerda.) - Aqui estou eu, vizinhas... Os Reis já estão perto, meu nome... ALBERTO - Senhora viuvinha da parte d'além, que quer se casar e não acha com quem, ponha-se ao fresco, senão... A senhora quando andou a intrigar-me, não se lembrou daquela célebre cartinha que me escreveu, bastante para perder a sua reputação se a tivesse... VIZINHA - Ó que vergonha, meu nome!...(Vai saindo pelo fundo e esbarra com José, que entra em costume de burrinho.) Ui! (Desaparece.) CENA XX FRANCISCA, ALBERTO, REIS, BERMUDES, EMÍLIA e JOSÉ; logo depois o RANCHO DOS REIS, POVO, etc. JOSÉ - Licença pro rancho, sinhô velho... REIS - Entre o rancho... (Todos sentam-se, formando grupos. A música rompe forte; o Rancho dos Reis entra e começa a executar suas danças e cantigas; povo agrupa-se na janela e invade a casa.) (Cai o pano.)

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A PELE DO LOBO Comédia em um ato Escrita em 1875 e representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Fênix Dramática, em 10 de abril de 1877 A ANTONIO FONTOURA XAVIER PERSONAGENS CARDOSO - subdelegado AMÁLIA - sua mulher APOLINÁRIO PERDIGÃO JERÔNIMO MANUEL MARIA VITORINO O COMPADRE UMA PARTE Dois soldados da polícia A cena passa-se no Rio de Janeiro Atualidade. ATO ÚNICO Sala, secretária, relógio de mesa, etc., etc. CENA I CARDOSO, AMÁLIA (Vestidos para a cerimônia e prontos para sair.) UMA PARTE (Que logo sai, à porta do fundo.) CARDOSO - Sim, senhor; sim,. senhor! Pode ir com Deus. Descanse, que hoje mesmo serão dadas as providências que o caso exige. PARTE - Às ordens de Vossa Senhoria. (Retira-se.) CARDOSO - Safa! AMÁLIA (Erguendo-se.) - Deixar-te-ão desta vez? CARDOSO- E metam-se! AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o país! AMÁLIA - Para que aceitaste esta maldita subdelegacia? CARDOSO (Ainda passeando.) - Eu não aceitei: pedi. Mas já tenho dito um milhão de vezes que os serviços prestados ao país e ao partido pesam muito no ânimo daqueles que me podem fazer galgar mais um degrau na escala social.

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AMÁLIA - Deixa-te disso, Cardoso; um degrau dessa tão falada escala social, não vale decerto o sacrifício que te custa essa autoridade de ca-ca-ra-cá. São uns desfrutadores, eis o que são! Hás de ser pago com um pontapé. Verás! CARDOSO - Hei de ser promovido na primeira vaga que aparecer. O Cantidiano está por pouco a bater a bota. Verás se o lugar é ou não é meu! AMÁLIA - Fia-te na Virgem e não corras. CARDOSO - E uma vez que aceitei o cargo... AMÁLIA - A carga, deves dizer. CARDOSO - Venha com ele o sacrifício. Antes de tudo o dever! AMÁLIA - Estamos prontos para sair há duas horas. CARDOSO (Consultando o relógio de mesa.) - Há duas horas e dois minutos. AMÁLIA (Embonecando-se ao espelho.) - Creio que não chegamos a tempo para o batizado. CARDOSO - Que remédio terão eles, senão esperar pelos padrinhos? AMÁLIA - E o carro na porta há tanto tempo? CARDOSO - Anda com isso, anda com isso! E metam-se! AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o país! AMÁLIA - Vamos. Não percamos mais tempo. CARDOSO - Vamos . (Vão saindo. Batem palmas.) AMBOS - Bateram. CARDOSO - Quem é? APOLINÁRIO (Fora.) - Sou eu. AMÁLIA - Eu quem? APOLINÁRIO (No mesmo.) - Um criado de Vossa Senhoria. CARDOSO - Entre quem é. AMÁLIA - Temo-la travada! (Entra Apolinário. Pisa macio e fala descansado.) CENA II OS MESMOS e APOLINÁRIO APOLINÁRIO (À porta do fundo.) - Dá licença, senhor subdelegado? CARDOSO - Entre, senhor. (Vai outra vez por o chapéu na secretária.) APOLINÁRIO (Entrando e sentando-se em uma cadeira que deve estar no meio da cena.) - Não se incomode Vossa Senhoria. Estou muito bem. Vossa Senhoria como tem passado? CARDOSO - Bem, obrigado. O que pretende o senhor? APOLINÁRIO - Sua senhora tem passado bem, senhor subdelegado? AMÁLIA - Bem, obrigada. O senhor o que pretende? APOLINÁRIO - Ah! estava aí, minha senhora? Os meninos estão bons? AMÁLIA - Que meninos, senhor? APOLINÁRIO - Os seus filhos, minha senhora. AMÁLIA - Não os tenho. E esta! APOLINÁRIO - Pois levante as mãos pra o céu e dê graças a Nosso Senhor Jesus Cristo!(Sinais de impaciência em Cardoso e Amália.) Eu tenho três, três! Todos três machos, felizmente. Mas que consumição! Que canseira! Quando não está um doente, está outro; quando não está outro, está outro; quando não está nenhum, está a mãe; quando não está a mãe, está o pai. Às vezes estão, filhos e pais, todos doentes. É preciso chamar a vizinha para dar-nos qualquer coisa. É uma lida, minha rica senhora! Peça a Deus que lhe não dê filhos. Olhe...(Mostra a cabeça.) Não vê? AMÁLIA - O quê? o quê? APOLINÁRIO - Já estou pintando... Ainda anteontem... Anteontem não... Quando foi, Apolinário? Segunda... terça... Foi anteontem mesmo... Eu tinha acabado de tomar o meu banhinho e de ouvir minha missinha...

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CARDOSO (Interrompe-o.) - Meu caro senhor, tomo a liberdade de preveni-lo que temos muita pressa e não, podemos perder tempo. Íamos saindo justamente quando o senhor entrou... APOLINÁRIO (Erguendo-se.) - Nesse caso, senhor doutor... CARDOSO - Perdão, não sou doutor. APOLINÁRIO - Fica para outro dia... Eu vinha dar minha queixa, mas... (Cumprimenta.) Senhor doutor... minha senhora... (Vai saindo.) CARDOSO - Venha cá, senhor: já agora diga o que pretende. APOLINÁRIO (Voltando-se e preparando-se como para um discurso, com força.) - Senhor subdelegado... CARDOSO - Não é preciso gritar tanto... APOLINÁRIO - Esta noite fui roubado. CARDOSO - Diga. APOLINÁRIO - Dezoito cabeças de criação... dezoito ou dezenove... Ontem esteve em nossa casa um cunhado meu, irmão de minha mulher, empregado no Arsenal de Guerra, e não tenho certeza de que ele levasse alguma galinha consigo, mas creio que não. Em todo caso, foram dezoito ou dezenove cabeças, não falando em um bonito galo de crista, que comprei no mercado, não há quinze dias. CARDOSO - Muito bem. O senhor chama-se... APOLINÁRIO - Apolinário, um criado de Vossa Senhoria. CARDOSO - Apolinário de quê? APOLINÁRIO - Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu (Dando um cartão) Olhe, aqui tem Vossa Senhoria meu nome e morada. CARDOSO - Bem; pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige. APOLINÁRIO (Preparando-se outra vez para um discurso e elevando muito a voz.) - Ainda não fica nisso, senhor doutor! CARDOSO - Já tive ocasião de dizer-lhe, primeiro, que não é preciso gritar tanto; segundo, que não sou doutor. APOLINÁRIO (Com a mesma inflexão, porém baixinho.) - Não fica nisso. Eu conheço o gatuno! CARDOSO - E por que estava calado? AMÁLIA (Não se podendo conter.) - Com efeito, Senhor Paraguaçu! APOLINÁRIO (Atarantado.) - Hein! (Falando com cada vez mais descanso.) Não conheço eu outra coisa! Chama-se Jerônimo de tal, um ilhéu, um vagabundo, que foi há tempo cocheiro de bondes e agora não sai da venda de seu Manuel Maria, ao qual dizem que vende por um precinho de amigo, o que ... (Ação de furtar.) Vossa Senhoria sabe qual é a venda de seu Manuel Maria? É a que fica mesmo em frente à casa do meu cunhado, do mesmo que esteve ontem em nossa casa, e sobre o qual estou em dúvida se levou ou não alguma galinha. (A Amália.) Mas que bonito galinho, senhora! Vossa Senhoria dava oito mil réis por ele com os olhos fechados... Era branco, branquinho, como aqueles patinhos do Passeio Público. Uma crista escarlate! Que bonito galo! CARDOSO - Vamos! Não temos tempo a perder! Faça o favor de sentar-se naquela mesa e dar a queixa por escrito. APOLINÁRIO - De muito bom gosto, senhor doutor. (Obedece.) CARDOSO - E o senhor a dar-lhe! Já lhe disse que não sou doutor. APOLINÁRIO - Isso é modéstia de Vossa Senhoria. AMÁLIA - Parece de propósito, Senhor Paraguaçu. CARDOSO - Deixa-o para lá. (Vai para junto de Amália.) Que maçador! E metam-se! AMÁLIA - Não chegaremos a tempo. APOLINÁRIO (À mesa.) - Esta pena está escarrapachada, senhor subdelegado... CARDOSO - Vou dar-lhe outra... vou dar-lhe outra... AMÁLIA - Anda... Tem paciência... Acaba com isso. (Cardoso vai abrir a secretaria e mudar a pena da caneta.) APOLINÁRIO - Muito obrigado! Que incômodo tem tomado Vossa Senhoria! Mas também não há quem diga à boca cheia: "Aquilo é que é um subdelegado! Zelo até ali... É o pai das partes!" CARDOSO - Faça o favor de escrever o que tem de escrever... APOLINÁRIO - Às ordens de Vossa Senhoria . (Escreve.)

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CARDOSO (Voltando para junto de Amália.) - Decididamente peço a demissão! AMÁLIA - Isso já devias ter feito há muito tempo. CARDOSO - Olha que é bem difícil suportar uma maçada assim... E metam-se! AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o país! AMÁLIA - Pede demissão, Cardoso, pede demissão. APOLINÁRIO (Da mesa.) - Senhor subdelegado, faça o favor de me dizer o modo por que devo principiar este requerimento... Em matéria de polícia sou completamente leigo... Diga-me só o cabeçalho... O cabeçalho! o resto vai... CARDOSO - Aí, Senhor Paraguaçu! O senhor é maçante! Tenho estado a aturá-lo há meia hora! AMÁLIA (Olhando o relógio.) - Há meia hora e sete minutos. CARDOSO - Estamos muito apressados, meu caro senhor... não posso estar com isso... APOLINÁRIO - Eu quis retirar-me quando Vossa Senhoria disse que ... CARDOSO - Vamos lá! Escreva no alto - Ilustríssimo Senhor . APOLINÁRIO - O Ilustríssimo Senhor - já cá está. CARDOSO - Bem (Ditando.) -"O abaixo assinado, morador nesta freguesia, à rua de tal , número tal..." APOLINÁRIO (Escrevendo.) - ... número treze... CARDOSO - "Queixa-se a Vossa Senhoria de que, ontem, às tantas horas da noite..." APOLINÁRIO - "Queixa-se" é com x ou ch? AMÁLIA - Ó céus! (Rindo-se.) CARDOSO - Como quiser! Não faço questão de ortografia. APOLINÁRIO - Vai com ch. (Acabando.) ... "da noite"... CARDOSO - Como está?! (Vendo.) Fulano de tal, tal, tal. Ah! (Ditando.) "Furtaram-lhe tantas galinhas..." APOLINÁRIO (Escrevendo.) - ..."e um galo de crista"... CARDOSO - "... as suspeitas de cujo furto faz recair em Fulano de Tal." (Consultando o relógio.) E metam-se! APOLINÁRIO (Escrevendo.) - "Fulano de tal, vulgo Barriga-cheia". Pronto! CARDOSO - Na outra linha: "Deus guarda a Vossa senhoria." APOLINÁRIO - ... "a Vossa Senhora"... CARDOSO - Na outra linha: "Ilustríssimo Senhor Subdelegado de tal freguesia." APOLINÁRIO - Pronto. CARDOSO - Assine. APOLINÁRIO - ... "Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu." (Erguendo-se.) Pronto. CARDOSO - Bem; agora pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige. APOLINÁRIO - Com licença, senhor subdelegado... Às ordens de Vossa Senhoria... CARDOSO - Passe bem. APOLINÁRIO - Minha senhora... AMÁLIA - Viva. (Volta-lhe as costas.) APOLINÁRIO - Sem mais incômodo. (Saída falsa.) CARDOSO - Safa! AMÁLIA - Saiamos, saiamos quanto antes! pode vir outro... (Vão saindo.) APOLINÁRIO (Voltando.) - Ia-me esquecendo, senhor subdelegado... CARDOSO - Outra vez! AMÁLIA - Assustou-me até! CARDOSO - O que mais deseja? APOLINÁRIO - Hoje, logo depois do almoço, encontrei-me cara a cara com o tal Jerônimo! CARDOSO - Que Jerônimo, senhor? APOLINÁRIO - O Barriga-cheia, o tal que me furtou as galinhas... CARDOSO - E o que tenho eu com isso, não me dirá? APOLINÁRIO - Direi, sim, senhor. Com licença. (Desce à cena e senta-se.) Chamei-o de ladrão! Disse-lhe assim: "Você é um ladrão!" - Com licença da senhora...

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AMÁLIA - E o que tem meu marido com isso? APOLINÁRIO - É que o sujeito tomou três testemunhas, e diz que me vai processar por crime de injúrias verbais. CARDOSO - Mas, enfim, faz favor de me dizer para que voltou cá? APOLINÁRIO - Vim prevenir a Vossa Senhoria de que... CARDOSO - Vá prevenir ao diabo que o carregue! APOLINÁRIO (levantando-se.) - Senhor doutor. CARDOSO (Gritando.) - Já lhe disse que não sou doutor! APOLINÁRIO (Imitando-o) - Isso é modéstia de Vossa senhoria! CARDOSO - Saia! Ponha-se ao fresco! Supõe o senhor que sirvo de joguete? APOLINÁRIO - Mas Vossa Senhoria... CARDOSO - Saia! APOLINÁRIO - É que ... AMÁLIA - Oh! senhor, já é a terceira vez que se lhe diz - saia. APOLINÁRIO - Minha senhora, eu...(Tornando a sentar-se, com todo o sossego.) Com licença... AMÁLIA - Oh! isto é demais! CARDOSO - Então, não ouve! APOLINÁRIO - Quero justificar-me! CARDOSO (Ameaçador.) - Cuidado, Senhor Paraguaçu! APOLINÁRIO - Bem, Vossa Senhoria está em sua casa: manda. (Levantando-se e cumprimentando.) Ás ordens de Vossa Senhoria. CARDOSO - Viva! Há mais tempo! (Passeia agitado.) APOLINÁRIO - Minha senhora... AMÁLIA - Passe bem. (Saída falsa de Apolinário.) Que inferno! que inferno! E metam-se! APOLINÁRIO (Voltando.) - Acredite senhor doutor, que eu não queria de forma alguma... CARDOSO (Desesperado.) - Ah! ele é isso? (Agarra uma cadeira e levanta-a, correndo para Apolinário.) AMÁLIA (Muito aflita.) - Ah! (Suspende o braço de Cardoso. Ficam todos numa posição dramática.) APOLINÁRIO (Com todo o sangue frio.) - Tableau. (Desaparece.) CENA III CARDOSO e AMÁLIA CARDOSO - Vês, Sinhá, vês como um homem se deita a perder? AMÁLIA - Sim, sim, mas vamos, anda daí! CARDOSO (Caindo na cadeira que tinha nas mãos.) - E que dor de cabeça fez-me este bruto!... E metam-se. AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o país! AMÁLIA - Espera... vou buscar a garrafinha de água-flórida. (Sai e volta com a garrafinha.) CARDOSO - Depressa... depressa, Sinhá! (Amália esfrega-lhe as frontes com água-flórida.) Bem... basta... está pronto... Aí! que ferroadas! deita a garrafinha em cima a mesa e vamos, vamos! (Amália deita a garrafinha sobre a mesa e vai dar o braço a seu marido.) AMÁLIA - Vamos! (Saem e voltam.) Esqueci-me do leque. (Entra à direita baixa.) CARDOSO (Falando para dentro.) Que demora, Sinhá, que demora! Ainda há de vir alguém, verás! (Passeia.) Então não achas esse leque! Aí! minha cabeça! E metam-se! (Quebra-se alguma coisa dentro.) O que foi isso?! O que foi isso?! (Corre também para a direita baixa.) AMÁLIA (Dentro.) - O meu frasco de água da Colônia! CARDOSO (Dentro.) - Que pena!

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AMÁLIA (Dentro.) - Ah! cá está o leque! (Voltam à cena, de braço dado e dirigem-se para a porta.) CARDOSO - Já estou suando. (Procura nos bolsos.) Não tenho lenço. AMÁLIA - Oh que maçada! Quanto mais pressa, mais vagar. (Sai correndo pela direita baixa.) CARDOSO - E metam-se, hein! E metam-se a servir o país! AMÁLIA (Voltando com um par de meias na mão.) - Toma, toma... Apre! (Dá-lho.) CARDOSO - Isto é um par de meias, Sinhá! Estás a meter os pés pelas mãos! (Restitui-lho.) AMÁLIA - Como está esta cabeça, meu Deus! (Sai e volta com um lenço.) Toma... Vamos... uf! CARDOSO - Vamos! (Encaminham-se para a porta. Batem palmas.) AMBOS - Ah! CARDOSO (Fora de si.) - Não estou em casa! JERÔNIMO (Aparecendo, de chapéu na cabeça.) - Licença para um... CENA IV OS MESMOS e JERÔNIMO CARDOSO - Então é assim que se entra em casa alheia? JERÔNIMO (Sombrio.) - Assim como? A casa da autoridade é uma repartição pública. (Deita no chão a cinza de um cachimbo; e escarra na parede.) CARDOSO - E que tal? AMÁLIA - Vê o que ele quer, Cardoso? JERÔNIMO - Venho preveni-lo de que é falso o que lhe veio hoje dizer um tal Paraguaçu, acerca de um furto de galinhas. É provável que ele lhe dissesse que eu, Jerônimo Linhares, vulgo Barriga-cheia, sou o autor desse furto, como andou por aí dizendo a quem quis ouvi-lo. É falso! (Cospe outra vez na parede.) AMÁLIA (Empurrando um escarrador com o pé.) - Faz favor de não cuspir no chão... Aqui tem o escarrador... (Jerônimo nem olha para Amália.) CARDOSO - Era só isso? Estou ciente. JERÔNIMO - Não, senhor; por isto só não vinha eu cá, ora viva! Venho queixar-me do queixoso por crime de injúrias verbais. Chamou-me de ladrão, e se quiser o mais, mande aquela mulher para dentro. (Cospe outra vez na parede.) CARDOSO - Pois apresente a queixa e as testemunhas. JERÔNIMO - A queixa aqui está. (Apresenta um papel sujo, que Cardoso pega com repugnância. Vai à porta do fundo.) Ò compadre! Ó seu Manuel Maria! Ó seu Vitorino? podem entrar... Nada de cerimônias! CARDOSO (A Amália.) - O tratante dispõe desta casa como se fosse sua! CENA V OS MESMOS, MANUEL MARIA, depois O COMPADRE, depois VITORINO MANUEL MARIA (Entrando.) - Aqui estou eu! COMPADRE (Entrando.) - E eu... VITORINO (Entrando.) - E eu... AMÁLIA - Cardoso, dize-lhes que venham em outro dia... (À parte.) Como cheiram a cachaça! CARDOSO - Meus senhores, tenham a bondade de voltar amanhã. JERÔNIMO - Aí vem o maldito sistema da demora e do papelório. CARDOSO - Cala-te daí, insolente, que não tens autoridade para fazer considerações neste lugar... Apareçam terça-feira ou mesmo amanhã! Mas terça-feira é melhor, porque é o dia da audiência. Não posso estar agora com isto... Estamos prontos para sair há muito tempo! AMÁLIA - Há três horas!

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CARDOSO (Consultando o relógio.) - Há três horas e três minutos! JERÔNIMO (Cuspindo na parede.) - Então, podiam ter dito logo! Escusava a gente de estar aqui à espera! É isto sempre! A autoridade vai para a pândega, e o povo que sofra! CARDOSO - Insolente! Espera que te ensino! (Agarra numa cadeira que está perto do toucador.) AMÁLIA - Cardoso! O que vais fazer?!.. JERÔNIMO - Ah! Ele é isso? (Tira uma faca e deita a correr atrás de Cardoso. Amália fecha-se no quarto. As três testemunhas correm atrás de Jerônimo, para retê-lo. Cardoso apita.) MANUEL MARIA - O que é isto, seu Jerônimo?! COMPADRE - Compadre, tenha mão! VITORINO - Não se deite a perder! (Cardoso continua a apitar. Confusão.) AMÁLIA (Grita de dentro.) - Aqui d'el-rei! CENA VI OS MESMOS e DOIS SOLDADOS SOLDADOS - O que é isto? o que é isto?...(Correm todos em redor da cena.) CARDOSO - Prendam-no! prendam-no! (Jerônimo é afinal preso.) Levem-no! (Os soldados levam o preso, Saem também as testemunhas.) CENA VII CARDOSO e depois AMÁLIA CARDOSO (Caindo extenuado em uma cadeira.) - Uf! AMÁLIA (Entrando.) - Feriu-te o maldito, feriu-te? CARDOSO - Creio que não. (Apalpando-se.) Não feriu, não, Sinhá! Se não fossem as ordenanças que estavam na porta, a estas horas estavas viúva! AMÁLIA - Credo! Viúva! CARDOSO - Maldita subdelegacia! Maldita a hora em que aceitei semelhante cargo! AMÁLIA - Como estás suando! Esta camisa é incapaz de aparecer no batizado... CARDOSO - É verdade! O batizado! Vou mudar de camisa... AMÁLIA - Mas isso depressa... depressa! (Saída falsa de Cardoso.) Ó Senhor Deus! Isto contado lá se acredita! É bem feito , senhor meu marido, é bem feito! Quem não quiser ser lobo, não lhe vista a pele. (Rolo na rua. Apitos. Gritos. Pancadaria. Amália vai à janela.) Que vejo! Uma malta de capoeiras! Cardoso! Cardoso! Não tardam a entrar... CARDOSO (Entra em mangas de camisa e com o fitão de subdelegado.) - O que é isto? (Espirra.) Atxim! constipei-me... Atxim! O que é isto? Atxim! (Sai a correr pelo fundo.) CENA VIII AMÁLIA, depois PERDIGÃO AMÁLIA - Meu Deus! Hoje parece ser o dia de São Bartolomeu! Se não anda o diabo solto na cidade, ao menos nesta freguesia.. PERDIGÃO (Entra apressado pelo fundo, vestido para a cerimônia.) - Ó compadre! Ó comadre! AMÁLIA - Mais uma parte! PERDIGÃO - Deixe-se de partes! AMÁLIA - Meu marido não está... (Reparando.) Ah! é o compadre! PERDIGÃO - Estamos até estas horas à espera do padrinho e nada! AMÁLIA - Queixe-se da maldita subdelegacia, compadre! Estamos vestidos há três horas... (Consultando o relógio.) Há três horas e um quarto...

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PERDIGÃO - Ora! Para que foi o compadre buscar sarna para se coçar... AMÁLIA - O compadre não imagina! Quantas vezes, alta noite, está ele sossegado a dormir, quando, de repente, é despertado pelas malditas partes... PERDIGÃO - Por força! AMÁLIA (Indo à janela.) - Já está aplacado o rolo... (Voltando.) Hoje quase o matam! PERDIGÃO (Dando um salto.) - A quem? AMÁLIA - Ao Cardoso. PERDIGÃO - Ah! Ele descia a escada com tanta impetuosidade! Ia em mangas de camisa e de fitão... Olhem que figura! Espirrava, que era um Deus nos acuda! "Viva!" lhe disse eu; ele, porém, não me conheceu, apesar de responder: "Dominus tecum", em vez de: "Obrigado!" OS MESMOS e CARDOSO CARDOSO (Entra e cai espirrando em uma cadeira.) - Atxim! PERDIGÃO - Viva! CARDOSO - Dominus te... Quero dizer: Obrigado... Atxim! Ah! É o senhor, compadre? Desculpe. PERDIGÃO - Já sei de tudo... Está mais que desculpado... Mas não perca tempo! AMÁLIA - Sim, não percamos tempo! CARDOSO - Vamos! (Ergue-se e deita o chapéu.) - Estou pronto! PERDIGÃO - Em mangas de camisa, compadre? CARDOSO - É verdade! (Corre ao quarto e volta vestindo a casaca.) AMÁLIA - De fitão, Cardoso? CARDOSO - É verdade! (Despedaça o fitão zangado.) Atxim! PERDIGÃO - Já leu o que traz hoje o Jornal a seu respeito? CARDOSO - Já: descompostura bravia! É o pago que dão a tantos sacrifícios. PERDIGÃO - Diga antes: é o castigo que infligem ao erro de aceitá-los. AMÁLIA (Impaciente.) - Vamos embora! (Vão todos saindo.) CENA X OS MESMOS e um SOLDADO SOLDADO (a Cardoso.) - Trouxeram este ofício e esta carta para Vossa Senhoria. (Entrega a carta e o ofício e sai.) CARDOSO - De cá. (Abrindo a carta.) Com licença. (Lê.) É um bilhete em que o oficial do gabinete do ministro me participa haver sido outro nomeado para a vaga do Cantidiano... E metam-se! PERDIGÃO - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o país! (Abrindo o ofício.) Com licença! (Depois de ler o ofício.) Sabem o que é? Minha demissão. PERDIGÃO E AMÁLIA - Demissão? CARDOSO - Á vista do que a meu respeito tem aparecido na imprensa periódica! PERDIGÃO - Não falemos mais nisso! Vamos embora. CARDOSO - Poupou-me o trabalho de pedi-la. AMÁLIA - Quem não quiser ser lobo... PERDIGÃO - Mas o compadre acaba de despir a pele do lobo. (Apanhando o fitão.) Ei-la! CARDOSO - Atxim! (Saem tos os três e cai o pano.) [ Cai o pano]

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A FILHA DE MARIA ANGU Adaptação brasileira da Opereta LA FILLE DE MME. ANGOT DE SIRAUDIN, CLAIRVILLE E KONING Música de Lecocq Nova edição,Alterada 1893 OPERETA EM 3 ATOS Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Fênix Dramática, em 21 de março de 1876, e, depois de alterada conforme esta edição, representada pela primeira vez na mesma cidade, no Teatro Santana, em 17 de março de 1894 PERSONAGENS CLARINHA ANGU CHICA VALSA ÂNGELO BITU SAMPAIO BARNABÉ SOTA-e-ÁS O ESCRIVÃO CARDOSO GUILHERME UMA AUTORIDADE UM TIPO O JUIZ DA FESTA CHICA PITADA GAIVOTA GENOVEVA BABU TERESA LEONOR CIDALISA MADEMOISELLE X Operários, jogadores, urbanos, festeiros, cocotes, soldados da polícia, pessoas do povo, etc. A ação do 1º e 3º ato passa-se na freguesia de Maria Angu, e a do 2º na cidade do Rio de Janeiro, em 1876. ATO PRIMEIRO Praça pública em Maria Angu. A esquerda uma casa com este letreiro: "Barnabé, barbeiro e sangrador. Apelica bixas." Ao fundo, uma grande fábrica com este letreiro: "Fábrica de Fiação e Tecidos Pinho & Companhia." CENA I

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BOTELHO, CARDOSO, GUILHERME, GAIVOTA, TERESA, OPERÁRIOS depois BARNABÉ Coro - Que prazer, Que alegria Deve haver Neste dia! Pois Clarinha Casadinha Enfim nós vamos ver! OS HOMENS (À esquerda.) - Olá! Olá! Barnabé! Olá! BARNABÉ (Aparecendo à janela.) - Aqui estou! TODOS - O Barnabé lá está! BARNABÉ - Já lá vou! (Desaparece.) UNS - Que pressa tem! OUTROS - Faz muito bem! AS MULHERES (À direita) - Clarinha! Clarinha! Clarinha! BABU (Aparecendo à janela.) - 'Stá se aprontando a sinhazinha. TODOS - Que diz a mulatinha! BABU - Mas não se pode demorar, - Pois o véu já foi colocar. BARNABÉ (Saindo de casa, vestido de noivo.) - Gentis amigos meus Aqui estou! Aqui estou! Eu sou feliz, meu Deus! Coplas I - Inda um sonho me parece Tudo quanto aconteceu! Toda a minha alma estremece Estremece o peito meu! Todo mundo agora inveja O prazer que vou sentir... Vou solteiro entrar na igreja E casado vou sair! Vendo as coisas neste pé, Sinto dentro um quer-que-é! Coro - Nosso amigo Barnabé Sente dentro um quer-que-é! II BARNABÉ - Vai chegar a noiva amada Nos seus trajes virginais! Vai chegar envergonhada, E mais bela, muito mais! Meus senhores e senhoras, Tenham compaixão de nós:

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Não nos macem muitas horas... Nós queremos ficar sós! Vendo as coisas neste pé, Sinto dentro um quer-que-é! BABU (À Janela.) - Aí vai a noiva bela! BARNABÉ - Ah! É ela! TODOS - É ela! CENA II OS MESMOS, CLARINHA Vestida de noiva e acompanhada pela madrinha de casamento Coro - Aí! como vem galante! Assim tão elegante Ninguém há! Meu Deus, está tão linda! É mais bonita ainda Vestida como está! (Durante toda esta cena, Clarinha deve conservar os olhos baixos.) OS HOMENS - Vem abraçar a gente! AS MULHERES - A nós primeiramente! BARNABÉ -Vão amarrotar-lhe o vestido! Abraça apenas teu marido! CLARINHA -Da mesma forma amarrotá-lo-ia! CARDOSO (Repelindo Barnabé.) - Sim! sim! Pra trás! AS MULHERES - Então Clarinha, Que dizes tu desta festinha CLARINHA - Que digo eu? AS MULHERES -Fala! CLARINHA - Não sei. Romança I - Meus qu'ridos pais, vós dissestes-me um dia Que era preciso de estado mudar: Contrariar-vos eu não pretendia, E consenti sem me fazer rogar. Mas, com franqueza, aqui digo e sustento Que ignoro ainda em que vou me meter... Que poderei dizer do casamento? Eu nada sei, nada posso dizer... Coro Candura só Clarinha tem! BARNABÉ - Ela nada sabe! Ainda bem! II CLARINHA - Aqui fiquei, orfãzinha inocente, E resolvestes mandar-me educar;

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Tudo aprendi, isto é, tão somente O que uma moça não deve ignorar. Fui até hoje ajuizada e modesta, E de hoje em diante de certo o serei; Mas só direi o que penso da festa Quando souber, pois ora não sei... Coro - Candura só Clarinha tem! BARNABÉ - Ela nada sabe! Ainda bem!... BOTELHO - Para a Matriz marchar sem mais demora! CARDOSO - Para a Matriz? Cedo inda é! Temos por nós inda uma hora, Para cair num balancé! BARNABÉ - Vou para perto da Matriz, Sentar-me vou no chafariz, Pois junto ao templo do himeneu, Mais paciência terei eu! Coro - Pois dito está! Vamos pra lá! Que prazer, Que alegria Deve haver Neste dia! Pois Clarinha Casadinha Enfim nós vamos ver! CENA III OS MESMOS, CHICA PITADA CHICA - Ouçam! TODOS - Que é? CHICA - Um obstáculo se opõe ao casamento! TODOS - Um obstáculo! BARNABÉ - Bonito! CHICA - Não é nada de cuidado. Sossega, Barnabé, que não te foge a noiva! Trata-se de uma pequena contrariedade. Vou dizer o que tenho a dizer, mas é preciso que Clarinha não esteja aqui. ( Levando-a para casa.) Entra por alguns momentos... vai... TODOS (Entre si, murmurando.) - Que será? Um obstáculo! CENA IV OS MESMOS, menos CLARINHA E BABU GUILHERME - Vamos! Desembuche! Que há de novo? TODOS - Fale! Fale! BOTELHO - Vamos, senão rebento! BARNABÉ - Estou em brasas! CHICA - Lá vai rapazes! Sabem vocês que nos metemos em boas?

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CARDOSO - Quais boas, homem? CHICA - Quando a defunta Maria Angu morreu, pobre que nem Jó, ela que tinha tanto dinheiro, e deixou no mundo uma filhinha que, com a graça do Senhor, nasceu no Hotel Ravot, lá na Corte... TODOS - Sim, sim! E que mais? CHICA - Não estivemos com meias medidas, hein? Dissemos todos a uma: Já que a pequena não tem pai, nem mãe, há de ser filha da gente cá da fábrica! Foi dito e feito, rapazes! Vocês ficaram sendo pais (Às mulheres.) e nós, mães! Ora aí está! TERESA - Até aí morreu o Neves. GUILHERME (Meio triste.) - Mas para que diabo vir cá lembrar essas coisas? CHICA - Essas coisa pouco têm que ver com o que lhes quero contar. O caso é que trasantontem fizemos uma grande asneira. TODOS - Uma asneira! CHICA - Para podermos casar a pequena, como não havia certidão de idade, fomos ao Senhor Vigário e declaramos que ela era filha do Alferes Angu e de sua mulher, Dona Maria Ernestina de Carvalho Angu. TODOS - E daí? CHICA - Daí que a pequena tem vinte anos e há vinte e dois que o Alferes Angu deu a casca! CARDOSO - Nem tal nos passou pela cabeça! BOTELHO - Mas havia de passar pela do alferes... CHICA - Não me interrompam! Ontem mandaram uma carta anônima à comadre do Senhor Vigário, dizendo que a Clarinha entrou neste mundo dois anos depois que o pai saiu. BARNABÉ - Que é lá isso? Então minha noiva não é filha do seu pai? De quem então é ela filha? CHICA - Valha-me Nossa Senhora! Não há de ser do outro senão daquele sujeito rico que lhe dava cama e mesa no Hotel Ravot. BARNABÉ - A quem? Ao pai de minha?... CHICA - Não: à mãe... Era um barão muito rico! BARNABÉ - Quem?... a mãe?... CHICA - Não: o pai! BARNABÉ - O pai da minha noiva, um barão! Que honra, meu Deus! que honra para um barbeiro sangrador! Ó seu Botelho, o pai, sendo barão a filha que vem a ser? BOTELHO - Baroa! CARDOSO - Continue, tia Chica Pitada. Que tem a comadre do Senhor Vigário com o que nos acaba de contar? CHICA - A comadre nada; mas diz o Senhor Vigário que é preciso por força arranjar-lhe outro pai. TODOS - Ah! BOTELHO - Se o noivo estiver pelos autos! BARNABÉ - Eu? ora essa! Não me caso com o pai, caso-me com a filha! GUILHERME- E podes levantar as mãos para o céu! Aquilo é mesmo uma tetéia! GAIVOTA - Nós, que lhe servimos de pai e mãe, não olhamos as despesas para dar-lhe uma educação esmerada. CARDOSO- Foi criada como uma marquesa! CHICA - Podes dizer uma princesa, porque o foi no colégio das irmãs de caridade. GUILHERME - Razão pela qual ficou com um ligeiro sotaque francês que lhe dá muita graça. TERESA - E que juizinho o dela! Como é modesta... inocente!... BARNABÉ - Oh! lá inocente é ela! Por isso meto eu as mãos no fogo! CARDOSO - E ainda te queixas? BARNABÉ - Tão inocente que não se atreve nem a olhar para mim que sou seu noivo! CHICA - Que diferença entre mãe e filha! BARNABÉ - É verdade: vocês que conheceram como as palmas das mãos essa famosa Maria Angu, que deu nome a esta freguesia, digam-me: é verdade tudo o que contam a seu respeito? CHICA - Se é verdade? Ora essa! Ouve lá, meu rapaz!...

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Coro I - Na fábrica do Pinho Ainda a encontrei Era um santo Antoninho, Onde é que te porei! Se acaso lhe tocava Algum sujeito, zás! (Deita as mãos nas ilhargas.) Aqui as mãos botava E agora vê-lo-ás! Arrogante, Petulante, tendo uns cobres no baú, Respondona, Gritalhona, - Era assim Maria Angu! CORO - Arrogante, etc.; II CHICA - Andou por Sorocaba Por Guaratinguetá, Por Pindamonhangaba Por Jacarepaguá. Depois, em Caçapava, Um certo capitão Vendeu-a como escrava E foi pra correção! Paraíba Guaratiba, Chapéu d'Uvas, Iguaçu, Itaoca Aiuroca Tudo viu Maria Angu! CORO - Paraíba, etc. III CHICA - Enfim, por toda a parte Depois de muito andar, Sem mais tirte nem guarte Na corte foi parar; Um barão com grandeza Por ela se enguiçou, E deu-lhe cama e mesa No grande Hotel Ravot! Arrogante, etc. BARNABÉ - Tudo isso é muito bom, mas vamos, vamos, que se vai fazendo tarde! Eu sinto uma vontade de me casar... VOZES (Fora.) - Viva o Imparcial! Viva Nhonhô Bitu! TODOS - Que é isto? Que barulho é este?

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CHICA - Ora o que há de ser? É o vagabundo do Nhonhô Bitu! GUILHERME - Quê! pois já saiu da cadeia?... TERESA - Ele para lá na prisão!... CARDOSO - Não sei como diabo tece os pauzinhos! O Senhor Subdelegado, que não é para graças, manda prendê-lo todas as semanas, e daí a três dias aparece de novo o jornal!... GAIVOTA - Mas por que o prendem? CHICA - Pois não sabes que ele é republicano, e escreve artigos contra o Senhor Subdelegado, que faz o que entende? Manda quem pode! E a graça é que está proibida a leitura do Imparcial, sob pena de três dias de prisão e multa correspondente... a três meses! BARNABÉ - Se esse pássaro de arribação se contentasse com escrever gazetas contra a autoridade, era bem bom, mas arrastar a asa à minha noiva!... BOTELHO - Lá nesse ponto, Barnabé, podes estar sossegado. GUILHERME - Ora adeus! cá estamos nós! OS HOMENS - E também nós! AS MULHERES - E então nós? e então nós? BARNABÉ - Vocês tem razão, meus estimados sogros e sogras; quando uma rapariga tem tantos pais e tantas mães, não se deve temer um sedutor! (Rumor fora.) BITU (Fora.) - Meu povo, daqui a nada aparece o Imparcial! A assinatura são cinco mil réis por trimestre, pagos adiantados! Número avulso, cem réis! (Entrando.) Daqui a pouco será distribuído o interessante e enérgico periódico o Imparcial! Vem descompostura bravia! Viva a liberdade de imprensa! VOZES (Fora.) - Viva! viva! CENA V OS MESMOS, BITU BOTELHO - Então já saiu do xilindró, Nhonhô Bitu? BITU - Olé! que chiquismo! GUILHERME - Mais dia, menos dia, o senhor é enforcado ali ao Largo da Matriz! BITU - Não creia nisso, Mestre Guilherme; fui hoje solto pela qüinquagésima; mas é muito provável que me prendam daqui a pouco, logo que se distribua o Imparcial, para ser solto amanhã. E que fazem vocês, infelizes filhos de Maria Angu? Que fazem vocês, que não reagem contra as arbitrariedades de um burlesco fanfarrão, arvorado em autoridade policial? Mas, ora adeus! diz o ditado "o boi solto lambe-se todo"; eu mesmo preso lambo-me bem... BARNABÉ - Então você é boi? BITU - Já estabeleci na Câmara Municipal, isto é, na cadeia, o meu escritório de redação. CARDOSO - Mas o senhor quem é e de onde veio, não nos dirá? BITU - Pergunta-me bem a quem não lhe pode responder. Todos sabem a minha história, menos eu, que ignoro quem sou, de onde vim e para onde vou. Aqui onde me vêem está um grande homem! Abraço as idéias do século e pugno pela nobre causa da democracia! Em 1867 tentei proclamar uma pequena república na Ilha dos Ratos! Foi a falta de metal sonante que me privou de fazer lavrar a minha santa propaganda... BARNABÉ (À parte.) - Santa propaganda! nunca vi esta santa na folhinha! BITU - Mas para que todo este aparato? BARNABÉ (À parte.) - Um bonito nome! Propaganda! CHICA (A Bitu.) - Temos hoje um casório. BARNABÉ (À parte.) - Quando tiver uma filha, hei de chamá-la Propaganda! BOTELHO (Mostrando Barnabé.) - E o futuro está presente. BITU - Pois é este paspalhão? Estou passado! BARNABÉ - Paspalhão é ele! BITU - Meus sinceros parabéns, mestre Barnabé. BARNABÉ - Aceito os parabéns, mas engula, engula o paspalhão! BITU - Pois engulo, essa não seja a dúvida. BARNABÉ - E não engolisse!

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BITU - E com quem se casa este pax-vobis? BARNABÉ (Entre dentes.) - Insolente! CARDOSO - A noiva é nossa filha. CHICA - A filha dos operários da fábrica! TODOS - Clarinha! BITU - Clarinha? Ah! é a Clarinha? (Inclinando-se diante de Barnabé.) Nova edição de parabéns! BOTELHO - A propósito, meu escrevinhador de gazetas; tenho a lembrar-lhe que a honra de nosso futuro genro nos é tão preciosa como a nossa, ouviu?... CARDOSO - E que se algum pelintra tivesse o desaforo de ... Percebe? GUILHERME - Tinha de se haver conosco, entende! OS HOMENS - Com todos nós! AS MULHERES - E então nós! BITU - Que querem vocês dizes na sua? CARDOSO - Simples advertência, Nhonhô. Agora rapaziada, vamos embora! TODOS - Vamos embora! Coro - Arrogante petulante, etc., etc., (Saem todos.) CENA VI [ BITU ] BITU (Só.) - Com que então ela casa-se... apesar de todas as suas promessas, apesar do juramento, que lhe fiz, de matar-me, se se ligasse ao paspalhão do barbeiro! Olhem que é mesmo um paspalhão! Mas, enfim, louvado Deus, não me hão de faltar consolações, e, para prova, aqui está uma cartinha que acabo de receber pelo correio. (Lendo.) "Senhor Ângelo Bitu. Uma pessoa que vela pelo senhor e se desvela pelo seu bem estar, espera que depois d'amanhã se ache no Largo do Rossio, na Corte, às quatro horas da tarde, junto ao quiosque que fica em frente à Rua do Sacramento, e siga a preta velha que lhe disser: venho da parte daquela que se desvela pelo senhor". (Declamando.) E com tanta vela estou às escuras! Não importa! Tomarei o trem das dez... Naturalmente esta carta é escrita por uma mulher... (Cheirando a carta.) Isto não é cheiro de homem... Rondó - Eu gosto muito da Clarinha, Mas não devo me entristecer, Pois quero crer que esta cartinha Consolação vem me trazer. Este perfume capitoso Revela esplêndida mulher, Que, desejando arder em gozo, Nos lábios seus, meus lábios quer! Eu gosto muito da Clarinha, E ser quisera o esposo seu; Digam porém, se é culpa minha Coisa melhor baixar do céu! - Esta carta misteriosa Me pôs, confesso, o juízo a arder! A mão que fez tão bela prosa Ansioso estou por conhecer!

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Eu gosto muito da Clarinha; Ela, porém, vai se casar... Passou-me o pé a Sinhazinha, Hei de lhe o pé também passar! De mais a mais este mistério o meu espírito agitou! Para saber se o caso é sério, No trem das dez à Corte vou. Mas deixe estar, Dona Clarinha, Que, se me passa agora o pé, Um belo dia será minha, Ligada embora ao Barnabé! CENA VII BITU, CLARINHA, BABU BITU (Á parte.) - Ela! CLARINHA (A Babu.) - Ouviste bem? Está alerta! BABU - Eh, eh, Sinhazinha! Veja o que faz! CLARINHA - Fica ali na esquina, e, se os vires, vem dizer-me depressa. BABU - Ah, Sinhazinha! No dia do seu casamento! (À parte.) O que fará depois? (Sai.) CLARINHA (Indo resolutamente a Bitu.) - Então? Não me cumprimentas pelo meu vestuário? BITU (Friamente.) - Minha senhora... CLARINHA - Não gostas de me ver assim vestida? BITU - Se queres que te fale com franqueza... CLARINHA - O caso é que a estas horas eu já devia estar casadinha da silva... BITU (Tristemente.) - Casada... CLARINHA - Mas achei um pretexto para demorar a cerimônia: escrevi uma carta anônima ao vigário. BITU - E a cerimônia foi transferida à última hora? CLARINHA - Infelizmente a carta não produziu um resultado completo. BITU - E agora? CLARINHA - É preciso procurar outro pretexto; não achas? BITU - Se eu achasse, estava tudo arranjado. CLARINHA - Não te lembras de nenhum? BITU - O mais simples é este: declaras que morres por mim e que eu morro por ti; que somos dois morrões, como dizia o outro. CLARINHA - Mas não me havias pedido que guardasse segredo? BITU - Então não sabes por quê? Porque nada sou, porque não tenho onde cair morto... não passo de um simples jornalista da roça. A propósito: aqui tens o número de hoje do Imparcial. Tem de ser distribuído daqui a pouco. Estou só a espera do entregador; não o mostres por ora a ninguém. CLARINHA (Guardando o jornal.) - Eu já recusei dezenove pretendentes. Bem sabes que meus pais e minhas mães fazem empenho em meu casamento com Barnabé. Eu não tinha motivo algum para recusá-lo, e, se o recusasse, seria afligi-los. Que me restava a fazer, se devo tudo àquela boa gente? BITU - Casas por gratidão, não é assim? CLARINHA - Não! não me caso, mesmo porque, se o fizesse, tu suicidavas-te. BITU (Tirando uma grande faca.) - E suicido-me!... (Como quem quer cortar o pescoço.) CLARINHA - Acredito... acredito... guarda a faca! (Fá-lo guardar a faca.) Vê o dilema em que me acho; se me caso, matas-te; se não me caso, desgosto a meus pais e minhas mães. Ah! se minha verdadeira mãe estivesse em meu lugar, outro galo cantaria!

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BITU - Quem? Maria Angu? CLARINHA - Era mulher decidida! Para ela não havia obstáculo possível! BITU - Como diabo se sairia a velha deste entalação? CLARINHA - É nisso que estou parafusando... BITU - Parafusemos... Dueto AMBOS - Esse pretexto desejado Encontraremos, tu verás, Pois diz um célebre ditado Que a união a força faz. CLARINHA - Posso dizer que estou doente BITU - Isso não pega! Tens tão boa cor! CLARINHA - Vou procurar coisa melhor. BITU - Esse pretexto é deficiente. CLARINHA - Não! Não! Dificultoso está! Maria Angu teria achado já! AMBOS - Maria Angu teria achado já!... BITU - Se o Barnabé, o teu futuro, Exp'rimentar a força do Bitu? CLARINHA - Queres dar-lhe? BITU - Hein? que dizes tu? Creio que enfim achei um furo! CLARINHA -Não! Não! Dificultoso está! Maria Angu teria achado já!... AMBOS -Maria Angu teria achado já!... BITU - Ao Barnabé prevenirás, Para ver se te renuncia, Que tu, mais dia menos dia, O enganarás... CLARINHA - Isso se faz... Mas sem se dizer. BITU - Então não sei que possamos fazer! CLARINHA - Eu tenho um meio extraordinário Que pode evitar tamanho desgosto: No momento em que o S'or Vigário Perguntar se caso por gosto, Em vez de "sim", eu direi"não"! BITU - Tu dirás "não"? CLARINHA - Eu direi"não"! BITU -'Stá dito então! Ah! que alegria em mim nasce! Quero beijar-te a rubicunda face! CLARINHA - Vê que estou vestida assim! Não queiras beijos de mim! BITU - Oh! que te importa o vestuário? Ainda não foste ao Vigário! Não me dás um beijo tu? A teus pés morre o Bitu

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Juntos BITU CLARINHA - Meu amor, não tenhas pejo! - Eu não quero, não desejo Sem demora, dás-me um beijo Receber nem dar um beijo! Ai, ladrão, não queiras tu Fica quieto, meu Bitu! Que a teus pés morra o Bitu! Ai, meu Deus! Que fazes tu? (No fim do dueto, no momento em que Bitu dá um beijo em Clarinha, Sampaio e o Escrivão aparecem ao fundo. Os namorados fogem, ele para a esquerda e ela para casa.) CENA VIII SAMPAIO, o ESCRIVÃO SAMPAIO - Que é isto? Escândalos na via pública!... ESCRIVÃO - Senhor Subdelegado, saiba Vossa Senhoria que aquele capadócio que deu as de vila Diogo é ele! SAMPAIO - Ah! é ele? Mas ele quem, seu escrivão? ESCRIVÃO - Ele, o Ângelo Bitu, mais conhecido por Nhonhô Bitu. SAMPAIO - O redator do Imparcial. ESCRIVÃO - Tão certo como dois e três são trinta e dois às avessas. SAMPAIO - Eu mandei-o soltar inda agorinha mesmo, e ele já aqui anda fazendo das suas?! ESCRIVÃO - Em soltá-lo é que Vossa senhoria faz mal; para aquilo galés perpétuas por toda a vida e mais cinco anos! SAMPAIO - Se aparecer de novo o pasquim, cadeia com ele! ESCRIVÃO - Com o pasquim? SAMPAIO - Com o Bitu, seu escrivão! Você é um bolas!... Bem como com todo indivíduo ou indivídua que o ler em público! ESCRIVÃO - As ordens de Vossa Senhoria serão cumpridas à risca. Mas eu achava melhor desterrar o tal Bitu. SAMPAIO - Qual desterrar nem meio desterrar ! Você é um bolas, seu escrivão! Por artes de berliques e berloques, o tal rabiscador veio ao conhecimento de meus amores com a Chiquinha Valsa... aquela rapariga da Corte, que parece francesa... aquela que foi passear à Europa à minha custa?... ESCRIVÃO - Na verdade, só por artes de berloques e berliques... SAMPAIO - E você compreende que, se aqui sabem de minhas relações com aquela mulher, vai tudo raso! ESCRIVÃO - Se eu estivesse no lugar de Vossa Senhoria, bem pouco se me dava... Ora! um subdelegado! SAMPAIO - Você é um bolas, seu Escrivão! pois não vê que sou chefe de família? Não tenho mulher, sou viúvo, mas adeus! aí estão três filhas solteiras... A propósito, seu Escrivão: recebi hoje notícias que a Chiquinha voltou da Europa. É preciso partirmos amanhã para a Corte. Vamos estabelecer de novo a banca, que há ano e meio me rendeu bem bom cobre. Você acompanha-me para evitar suspeitas, entende? E pode arranjar seu gancho, servindo de ficheiro... ESCRIVÃO - As ordens de Vossa Senhoria serão cumpridas à risca. SAMPAIO - O que pretendo fazer, antes de partir, é entender-me com o tal Bitu. Sei que é um troca-tintas, e não hesitará em quebrar a pena, mediante algumas pelegas. ESCRIVÃO - Eu também estou convencido de que Vossa Senhoria alcançará mais com pelegas do que com a cadeia. (Vendo vir Bitu.) Olhe, a ocasião é excelente... ele aí vem.. SAMPAIO - Afaste-se, mas não vá para muito longe. Olhe que o cabra é capoeira! Quando eu gritar... ESCRIVÃO - Cadeia com ele! As ordens de Vossa Senhoria serão cumpridas à risca. (Sai).

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CENA IX BITU, SAMPAIO BITU - Separaram-se finalmente! Que amoladores serão estes? SAMPAIO (Consigo.) Não sei por onde hei de principiar... BITU (Consigo.) - Que grande maçante! SAMPAIO (Consigo.) Ora! pelo dinheiro! (Dirigindo-se a Bitu.) Não é o célebre redator do acreditado periódico o Imparcial, ao Doutor Ângelo Bitu que tenho a honra de... BITU - O próprio, menos o Doutor: não passei dos preparatórios. SAMPAIO (Amável.) - Aceite minhas felicitações; sou entusiasta pelo seu talento... admiro os seus bonitos artigos... BITU (À parte.) - Apanho uma assinatura! SAMPAIO - Apontar os abusos, desmascarar os intrigantes, difundir a instrução é muito bonito, é muito louvável, é... Mas o senhor tem sido muito injusto com um cidadão conspícuo, pai de três filhas solteiras, que é constantemente injuriado nas colunas do Imparcial. BITU - De quem se trata? SAMPAIO - Do subdelegado desta freguesia. O senhor não o conhece... BITU - Não o conheço de vista, mas sei que é um refinado tratante! SAMPAIO (Gritando.) - Senhor Bitu! (Vendo o Escrivão que espia ao fundo.) Vá embora! não há novidade! (O escrivão desaparece.) O senhor sabe com quem está falando? BITU - Não tenho a distinta... SAMPAIO - Eu sou o subdelegado! BITU - o Sampaio?! ... Ah!Ah!... Dueto BITU - Pois quê! é o Subdelegado? SAMPAIO - Sim, senhor: Subdelegado! BITU - Eu não tinha imaginado Encontrá-lo agora cá! Ah!ah!ah!ah!ah!ah!ah! SAMPAIO - De que ri, não me dirá? BITU - Eu não ligava o nome... SAMPAIO - Eu cá não me constranjo Para propor-lhe um bom arranjo: É matar o Imparcial, Suprimir o seu jornal! BITU (Altivo). - Nem quero responder! SAMPAIO (Á parte.) - Tratante, eu cá te entendo! (Alto.) Se um bom conteco eu lhe oferecer? BITU (Com dignidade) - Então, quer me comprar? Senhor, eu não me vendo! SAMPAIO - Pois bem! Dois contos! quer! BITU - Senhor!... SAMPAIO - Então três contos, sim? BITU - Três contos... SAMPAIO - Está dito? BITU (À parte.) - Três contos, safa! Um bom dote é bem bonito. E não tem tanto o Barnabé! SAMPAIO (À parte.) - Oh! Que bom! ele hesita! (Alto.) Eu já propus até Três contos! BITU - Não! SAMPAIO - Dou quatro!

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BITU - Não há meio! SAMPAIO - Pois bem! pois bem! eu dou-lhe quatro e meio! BITU - Não! Eu quero inda mais! SAMPAIO - Eu generoso sou. Pois arredondo as contas e cinco dou! BITU - Cinco contos? SAMPAIO - Pegou? BITU - Sim! aceito os cinco contos! SAMPAIO - E o seu jornal acabará? BITU - O meu jornal acabou já! SAMPAIO - E o senhor sai daqui? BITU - Já tenho os baús prontos! Quero ser pago já e já! SAMPAIO - Em minha casa o cobre está! Juntos BITU SAMPAIO - Sim senhor, fiz bom negócio - Sim senhor, fiz bom negócio - Vou viver em santo ócio! Co'este grande capadócio! Cinco contos eu ganhei! Cinco contos eu gastei, Sou mais feliz que um rei! Porém melhor viverei Brevemente estou casado! Posso agora sossegado Viva o S'or Subdelegado Ser um bom Subdelegado! Viva, viva o meu jornal! Morra, morra o tal jornal! Viva, viva o Imparcial! Morra, morra o Imparcial (Sampaio sai) CENA X BITU, depois BABU BITU - Então, seu redator do Imparcial, sabe você o que acaba de fazer? Nada menos que vender a sua pena! Vendê-la, sem! Mas em que há nisto mal? Para velhaco, velhaco e meio. Eu gostava da Chiquinha Valsa como se pode gostar de uma mulher bonita. É a brasileira mais francesa que eu conheço! Ela andava também pelo beicinho, e, durante o tempo em que isso durou, passei uma vida de Lopes. Um dia apareceu este subdelegado em casa dela. Eu disse-lhe que não a queria em companhia de um matuto... Palavra puxa palavra... zangamo-nos... ela foi para a Europa... e o resultado foi perder eu a mina! Resolvi vingar-me deste tipo! Vim para cá, fundei o Imparcial, tenho-lhe dado bordoada de criar bicho, e agora obrigo-o a gastar cinco contos de réis para tapar-me a boca. Isto é o que se chama habilidade, e o mais são histórias! BABU (Correndo) - Saia! Depressa! Depressa! Aí vem toda gente! (Reparando.) Uê! Sinhazinha já foi? BITU - Já. Vai ter com ela, e dize-lhe de minha parte que já achei o pretexto que procurávamos. BABU - O ... quê? BITU - Pretexto. Não se pode falar com gente inculta! BABU (Repetindo a palavra para lembrar-se.) - Pretexto... pretexto... pretexto... pretexto... (Sai. Rumor fora.) BITU - Eles aí vêm! Coragem, Bitu! Um homem é um homem!... CENA XI BITU, CARDOSO, GUILHERME, BOTELHO, CHICA PITADA, GAIVOTA, TERESA, BARNABÉ, depois CLARINHA à janela

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CARDOSO - Não é preciso tanta pressa. Temos tempo. BARNABÉ - Mas olhem que minha noiva deve estar com cuidados! Ela ignora o motivo da demora do casamento, e a estas horas supõe talvez - coitadinha! - que algum obstáculo mais importante nos prive da ventura de pertencer um ao outro! BITU - Se é só isso o que receia... BOTELHO - Ainda o Nhonhô Bitu! BITU - Eu estava aqui à espera de todos vocês. TODOS - Ah! GUILHERME - À nossa espera! BITU - Aí vai tudo em duas palavras: casando-se aqui com o mestre barbeiro e sangrador, Clarinha sacrificava-se à gratidão que lhes deve. BARNABÉ - Que diz ele? CARDOSO - Cala a boca! (A Bitu.) Adiante! CLARINHA (Aparecendo à janela, à parte.) - De que pretexto lembraria ele? BITU - O que é verdade é que eu e Clarinha nos amamos! CLARINHA (À parte.) - Que ouço! BITU - Se até agora ocultei esta circunstância, é que estava pobre; mas hoje o negócio muda de figura. CLARINHA (À parte.) - Hein? TODOS - Explique-se... BITU - Tenho cinco conto de réis! TODOS - Cinco contos de réis!... BITU - Portanto o que vocês podem fazer de melhor é dizer ao Barnabé que volte às suas navalhas e ao seu sabão, e aceitar-me em seu lugar. BARNABÉ - Ah! TODOS - Oh!... GUILHERME - Então, que dizem vocês a isto? CHICA -Digo é que tenho visto muito homem descarado, mas assim também, não!... GAIVOTA - Mas, dado o caso que Clarinha goste de você... BARNABÉ - Deixe-se disso! GAIVOTA - É uma suposição. TODOS - Sim... sim... GAIVOTA - Quem é você? Donde vem? Para onde vai? Sabe dizê-lo? BITU - Querem saber quem sou? Sou um homem! Donde venho? Da Corte, onde fui educado... Aonde vou? Aonde o destino e o meu cobre me levarem. TERESA - E onde foi buscar esse dinheiro? Que cabras não tem... BITU - Esse dinheiro? Arranjei-o com o Imparcial! CHICA -Pois é esse papelucho que lhe dá cinco contos de réis? TODOS - Ora!ora!ora! CHICA - Então pensa que comemos araras? BITU - Mas eu asseguro-lhes que... CARDOSO - E quando assim fosse? Julga que vendemos nossa filha como você vendeu sua folha? BITU - Mas eu já lhes disse que ela não gosta do Barnabé! BARNABÉ - Isto revolta! CARDOSO - Cala-te, que vamos pôr tudo em pratos limpos. Precisamos entender-nos com ela. BOTELHO - Sim, está claro. CARDOSO - E quanto a você, seu imparcial, fique na certeza de que, se ela o ama, damo-lhes cabo do canastro! CLARINHA (À parte.) - Que ouço! (Deixa a janela.) GUILHERME - E se ela não o ama, degolamo-lo! (Saem.) BITU - ( Á parte.) - Estou metido em bons lençóis; enfim. BARNABÉ (Voltando.) - Sim! se ela o ama.

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BITU (Ameaçando.) - Ai mau! ai mau!... BARNABÉ (Fugindo.) - Eu não!... Eu não!... (De longe.) ... dão-lhe cabo do canastro! (Sai) CENA XII BITU, só BITU - Ah! seu Bitu, não bastam cinco contos para se alcançar quanto se deseja! E tinha você precisão de comprar a felicidade quando ela se lhe oferece grátis? (Mostra a carta.) Acaso esta mulher, que tão depressa esqueci, este anjo misterioso que vela e se desvela por mim, exige cinco contos de réis? Ingrato! Idiota!... para teu castigo suprimirás a tua folha, mas também não receberás semelhante dinheiro, que te escaldaria as mãos! CENA XIII BITU, UM TIPO, PESSOAS DO POVO O TIPO - Ali está ele! ali está ele! BITU - Bonito! Aí chegam alguns dos meus assinantes! O TIPO - Viva o redator do Imparcial! TODOS - Viva! Viva Nhonhô Bitu! BITU - O Imparcial morreu, meus senhores! (À parte.) E sacrifico toda esta popularidade! TODOS - Hein? BITU - Morreu! O TIPO - Não pode ser! De hoje em diante quem defenderá os interesses da freguesia? BITU - Procurem outro. Não esperem nada de mim. Amanhã piro-me para a Corte. TODOS - Ah! O TIPO - Tu prometeste distribuir agora o jornal! BITU - Já lhes disse o que tinha a dizer! TODOS - Oh! Final CORO - Nhonhô Bitu, venha o jornal! Sem mais tardar queremos lê-lo! Se não aparecer , a gente vai-te ao pêlo! É já Pra cá O Imparcial! CENA XIV OS MESMOS, CARDOSO, GUILHERME, BOTELHO, CLARINHA, CHICA PITADA, GAIVOTA, TERESA, OPERÁRIOS - Que será? Por que tanto alarido? ASSINANTES - É Bitu que falta ao prometido! OPERÁRIOS - Bitu é coisa ruim E o seu jornal pasquim! ASSINANTES - Não! não! não! não! É antes um poltrão! O TIPO - Não quer mais uma vez Dormir lá no xadrez! CLARINHA (À parte.) - O Imparcial aqui vou ler E deste modo me faço prender! CORO - Mas ele prometeu, e nós queremos já!

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Venha o jornal, senão apanhará! O jornal! o jornal! Nhonhô Bitu, venha o jornal, etc. CLARINHA(Lançando-se no meio de todos.) - Ouçam lá! BARNABÉ - Que vens aqui buscar? CLARINHA - Desse jornal que tanto faz gritar Eu consegui um número arranjar! Tenho-o cá, E posso lê-lo já! BITU (À parte.) - Que diz ela! OPERÁRIOS - Tu, a leres na rua! BARNABÉ - E isso à hora de casar! CARDOSO - Pois esta pombinha sem fel Tem a lembrança singular De ler na rua este papel! CORO - Sim! vai ler e nós vamos ouvir! Mas ela vai para a prisão... BITU (À parte.) - Eu tremo! CLARINHA - Haja atenção! CENA XV OS MESMOS, O ESCRIVÃO, que entra e observa cautelosamente tudo quanto se passa Coplas I CLARINHA (Lendo o jornal.) - Esta maldita freguesia De um grande abismo à beira está Não tem o povo garantia, Moralidade aqui não há! O famoso subdelegado Do cargo seu não quer cuidar, Porque leva esse desgraçado Todas as noites a jogar! É isto, leitores, pregar no deserto, E não vale a pena, não vale, decerto, Qu'rer dar remédio a tanto mal No independente Imparcial! CORO - É isto, leitores, pregar no deserto, etc. O ESCRIVÃO (À parte.) - Ora espera! (Sai.) II CLARINHA - Conquanto viúvo e já cansado, E com três filhas a educar, Tem o Senhor Subdelegado Uma mulher particular. Lá na Corte essa tipa mora, Casa de muito luxo tem... Tudo quanto ela deita fora Paga este povo e mais ninguém! É isto, leitores, pregar no deserto, etc.

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CENA XVI OS MESMOS, O ESCRIVÃO, SOLDADOS ESCRIVÃO - Prendam esta senhora! CORO - Céus! BITU - Isso não quero eu! Alego sem demora Que aquele artigo é meu! ESCRIVÃO E SOLDADOS - Para a prisão sem tardar! BITU - O preso devo ser eu! ESCRIVÃO E SOLDADOS - Para a prisão sem tardar! BITU - Pois se aquele artigo é meu! ESCRIVÃO E SOLDADOS - Para a prisão sem demorar! BARNABÉ - Ai! fica o noivo em casa só, E a noiva vai pro xilindró! CLARINHA - Deixem, deixem que me prendam! Vou contente pra prisão! Não dispute, não contendam! Assim quer meu coração! BITU - Oh! entreguem-na ao desprezo! Vossem'cês não têm razão! Sou eu que devo ser preso, Eu que devo ir pra prisão! BARNABÉ E OPERÁRIOS - Oh! meu Deus, que coisa feia Ir Clarinha pra prisão! E livrá-la da cadeia Ai! não está na nossa mão! ESCRIVÃO - Prendam, prendam sem demora! Não aceito apelação! Levem, levem a senhora Direitinha pra prisão! (Durante este coro, grande movimento. O Escrivão arrasta Clarinha, enquanto os soldados cruzam as baionetas contra o povo, que se quer opor à prisão.) [(Cai o pano.)] ATO SEGUNDO Sala muito rica. Portas laterais e ao fundo. Candelabros com luzes. CENA I COCOTES, sentadas aqui e ali; entre elas CIDALISA, LEONOR, e MADEMOISELLE X; SAMPAIO, de pé, depois, CHICA VALSA. CORO DE COCOTES - É decerto muito engraçado O que acaba de nos contar! Realmente faz espantar O poder de um subdelegado, Que até mesmo pode matar! Se bem que em lugar afastado Se desse o caso singular, É decerto muito engraçado O que acaba de nos contar!

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SAMPAIO - Pois é verdade, minhas senhoras; foi assim que o caso se passou, em plena praça, e com uma rapariga que ia casar naquele dia! LEONOR - Na roça dão-se coisas! MADEMOISELLE X - C'est incroyable! CIDALISA - Mas que escândalo!... SAMPAIO - Não há como ser subdelegado lá fora! Faz-se o que se quer, e mais alguma coisa! CHICA VALSA (Entrando.) - Seu Sampaio, veja se fala de outra coisa. Não há mais assunto para a conversa senão a sua subdelegacia? SAMPAIO - Lá na freguesia eu posso quero e mando! Um vagabundo, vendo que aqui na Corte não arranjava farinha, arvorou-se em redator de gazeta, foi para lá, e fundou um pasquim, o Imparcial. CHICA VALSA (À parte.) - É ele! SAMPAIO - O patife embirrou comigo, e toca a dar-me bordoada. Tenho apanhado como boi ladrão. No último número descobriu os meus amores aqui com a Chiquinha... CHICA VALSA (À parte.) - Deveras? (Alto.) Se você não fosse se gabar lá na roça do que faz aqui na cidade... SAMPAIO - Eu gabar-me! Por meu gosto ninguém o sabia! Tenho três filhas solteiras! CIDALISA - Adiante. SAMPAIO - O tratante descobriu também que eu ia todas as noites jogar o vira-vira em casa de Lopes Boticário, e pôs-me a calva à mostra. Se eu não tivesse autoridade e se não tivesse dinheiro, estava a estas horas desmoralizado! MADEMOISELLE X - C'est incroyable! SAMPAIO - Mas que fiz eu? Proibi a leitura do Imparcial em público sob pena de cadeia! TODAS - Oh!... SAMPAIO - Depois encontrei o troca-tintas a jeito e, vendo que com a cadeia nada arranjava (pois já o tinha mandado prender meia dúzia de vezes) prometi-lhe cinco contos de réis para acabar com o pasquim e bater a linda plumagem. CHICA VALSA - E ele aceitou essa proposta? SAMPAIO - Aceitou, mas depois disso já saiu mais um número do jornaleco... e até essa data ele ainda não foi buscar os cobres. CHICA VALSA(À parte.) - Pois Bitu faria isso? (Alto.) Então? Joga-se ou não se joga hoje? MADEMOISELLE X - Mais, dame! Le rende-vouz est à minuit! SAMPAIO - O meu escrivão foi prevenir os parceiros para a meia-noite. O Sota-e-ás incumbiu-se de trazer mais alguns. CHICA VALSA - O diabo é a polícia... Moramos num lugar tão público! Para evitar suspeitas, lembrei-me de iluminar a casa para um baile, como estão vendo. SAMPAIO - É o diabo! os morcegos não dormem! CHICA VALSA - Tive outra lembrança. Os sujeitos que vêm cá jogar são muito conhecidos da polícia. Preveni-lhes que trouxessem barbas postiças e casacões. Com os senhores urbanos é preciso muita cautela. MADEMOISELLE X - C'est incroyable! CHICA VALSA - São finos como lã de cágado! Coplas CHICA VALSA - Respeitai os senhores urbanos! CORO - Os urbanos! CHICA VALSA - Não são pra graça tais maganos; Tem olho vivo, espertos são, E contra nós, paisanos, Em guarda sempre estão! I

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- Como um corcel bem ardido a galope. A morcegada avante vai! Ninguém com ela tope, Porque por terra cai! Se acaso encontra uma senhora, Bem pouco se lhe dá! esteja muito embora! Aqui é cutilada! Ali é pescoção! Pontapé! Cabeçada! Cachaça! Bofetão! CORO - Respeitai os senhores urbanos, etc. II CHICA VALSA - Já não se pode estar tranqüilamente Jogando numa reunião: Na sala de repente Os morcegos estão! Abre de par em par a porta A morcegada, e investe, arranha, fere e corta! Uns correm pr'este lado E os outros para ali! Metida em tal assado Mais de uma vez me vi! CORO - Respeitai os senhores urbanos, etc. CENA II OS MESMOS, SOTA-E-ÁS SOTA - Boa noite! boa noite! Cada vez mais béias, mais aebatadoias!(A Chica Valsa.) Góia à deusa desta casa! (A Mademoiselle X.) Bom soir; passez-vous bien? MADEMOISELLE X - Oh! quel français! C'est incroyable! SOTA - Fancês muito bom! Apendi-o no Acazá! Tou aebatado! Boa noite, seu Sampaio... você tá na pesença de um home aebatado! (Dá um pulo e pisa Sampaio.) SAMPAIO (Gritando.) - Oh! muito arrebatado! MADEMOISELLE X - Quelle grâce! CIDALISA - Como ele pula! LEONOR - E como cai tão chique! SAMPAIO - Em cima do meu melhor calo! Muito obrigado! SOTA - Eu sei puiá! E dançá! Quem dança na Cote como eu? Sou um dançaino! (Dá viravoltas.) CHICA VALSA - O que admiro é sua imprudência de entrar aqui a estas horas, sendo jogador conhecido e sabendo que a polícia... SAMPAIO - E que os urbanos... SOTA - Óia! A poícia! os ubanos! Passei no meio deis! TODOS - No meio deles? SOTA - Acotoveiando-os assim! (Acotovela-os.) SAMPAIO - Mas o senhor estava só? SOTA - Sozinho com a gaça de Deus e meu podê excutivo! (Brande a bengala) MADEMOISELLE X - Aussi beau que charmant! CIDALISA - E como é leve! SOTA - Como uma pena! Qué vê? (Vai para pular, Sampaio pega-lhe no pé.) SAMPAIO - Deixe disso! A VOZ DE BARNABÉ - Deixem-me entrar! deixem-me entrar!

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CHICA VALSA - Quem é? Quem é? (Entra Barnabé esbaforido, com uma mala debaixo do braço.) CENA II OS MESMOS, BARNABÉ BARNABÉ - Com licença, minha senhora... Desculpe... é que... SAMPAIO (À parte) - Valha-me Nossa Senhora! É o barbeiro lá da freguesia! (Escondendo-se atrás de uma cadeira.) Vem atrás da noiva. Não há que ver! CHICA VALSA - Quem é este homem? que deseja?... BARNABÉ - Minha senhora... preciso falar-lhe... eu... minha noiva... CHICA VALSA - Tome fôlego, senhor! SOTA - Como ei tem os cabeios eiçados! CHICA VALSA - E o olhar esgazeado! TODOS - Fale! fale! SAMPAIO (À parte.) - Estou metido em boas! BARNABÉ - Se tenho os cabelos esgazeados e o olhar eri... não!... o olhar esgazea... não... CHICA VALSA - Veja lá no que fica! BARNABÉ - É que me sucedeu uma grande desgraça!... CHICA VALSA - E que tenho eu com isso? BARNABÉ - Ia casar-me com um anjo que adorava, e... CHICA VALSA - E foi traído? BARNABÉ - Por ora não; mas ouça: no próprio dia de nosso casamento, ela foi presa por ler uma gazeta que se imprime lá na freguesia, apesar de estar proibida a leitura pelo subdelegado. No outro dia quiseram soltá-la e não a encontraram mais na prisão. O escrivão do juiz de paz, a quem costumo ir aos queixos, contou-me tudo: minha noiva fugiu aqui para a Corte em companhia do senhor subdelegado. CHICA VALSA - Mas de onde é o senhor? BARNABÉ - Eu sou de Maria Angu! CHICA VALSA - E o subdelegado chama-se? BARNABÉ - Chama-se Seu Sampaio; CHICA VALSA - Ah! BARNABÉ - Ora, como O senhor subdelegado, sempre que vem à Corte, hospeda-se em sal casa, eu vim pedir-lhe, Senhora Dona, que... SAMPAIO (À parte.) - Estou arranjadinho... BARNABÉ - Oh! se a senhora conhecesse a minha noiva... É tão inocente, coitadinha... Acredite que não fez aquilo por mal. Romance I - Ela é muitíssimo inocente! Supôs que não fizesse mal, E pôs-se a ler o Imparcial Pra que o ouvisse toda a gente! Não julgou ser coisa imprudente Em alta voz ler um jornal, De mais a mais imparcial! Ela é muitíssimo inocente! II - Ela é muitíssimo inocente; Tem bem formado o coração; Não tinha visto a proibição.

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E foi filada incontinente! Dói-me bastante vê-la ausente, Porém não devo recear Que alguém ma possa conquistar! Ela é muitíssimo inocente! CHICA VALSA - Muito bem! Onde está o Senhor Sampaio? (Vendo-o.) Que faz aí escondido? Venha, que temos contas a ajustar! (Sampaio sai do seu esconderijo.) SOTA - C'est bon ça... c'est bon ça... BARNABÉ - (Vendo Sampaio.) - Olé! Vai dar-me contas de minha noiva! (Avança.) SOTA (Suspendendo-o.) - Não se deite a pedê! SAMPAIO (Atrapalhado.) - Espere, senhor! Vou explicar-lhe tudo. (À parte.) Esta gente não entende de justiça: posso mentir a meu gosto. (Alto e arrogante.) Nós somos subdelegado, entendem? Muito bem! A noiva deste senhor leu publicamente um jornal cuja leitura havíamos por bem proibir entendem? Tratava-se de uma menor branca e de bons costumes... BARNABÉ - Eu arrebento! SOTA - Não aebente! SAMPAIO - O código não previne este caso.. BARNABÉ - Eu é que o previno de que... SOTA - Não se deite a pedê. É a poícia que tá faiando. (A Sampaio) Continue a poícia... SAMPAIO - Nós, como tínhamos que vir para a Corte, trouxemos a presa conosco. BARNABÉ - Nós quem? SAMPAIO - Nós eu! Quando a autoridade fala, é nós! CHICA VALSA - Adiante! SAMPAIO - Trouxemo-la conosco... e temo-la em depósito... Vamos apresentá-la ao chefe de polícia. (À Parte.) Foi bem sacada! CHICA VALSA - Sabe que mais? Vá buscá-la! SAMPAIO - Hein? CHICA VALSA - Bem te conheço, quaresma mas não posso jejuar! Como o senhor, contando-nos a prisão dessa moça, não nos disse que a tinha trazido? Ande! vá buscá-la! (A Barnabé.) Você volte logo. BARNABÉ - E a senhora promete-me?... CHICA VALSA - Sim, sim, mas volte logo! BARNABÉ (Já risonho.) - Então vou ver as figuras de cera na Guarda-velha, e volto.( Vai saindo e dá um encontrão em Sampaio.) SAMPAIO - Irra!... (Atira-o sobre Sota-e-ás.) SOTA (Empurrando-o.) - Passa f´óia! BARNABÉ - Perdoem! (Sai.) CHICA VALSA - Esta rapariga é bonita? SAMPAIO - Fazenda. CHICA VALSA - Foi um achado. Vá buscá-la. SAMPAIO - Mas... CHICA VALSA - Não ouve? Nós o queremos! SAMPAIO - É que... CHICA VALSA - Eu também sou autoridade!... eu também sou nós!... SAMPAIO - Eu vou... eu vou... (Sai.) CHICA VALSA - Seu Sota, você hoje tem ocasião de falar ao Barão de Anajámirim? SOTA - Tavez CHICA VALSA - Diga-lhe que pode vir ver aquilo de que falamos. Olhe, vá procurá-lo. Adeus, até a meia noite. Não falte! SOTA - Vou num puio! Como um zéfio!... (Antes de sair, dirige-se à Mademoiselle X e dá-lhe um pequeno embrulho.) O Amará lhe manda esse presente. Vem uma catinha dento. Adieu! Adieu! (Sai dançando.)

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CHICA VALSA (Às cocotes.) - Vocês por que não vão até o jardim do cassino que é tão perto? Ainda é cedo; até as onze e meia há tempo para fintar um paio. LEONOR - Ou mesmo dois! (Às outras.) Vamos? TODAS - Vamos! Até logo.. CENA IV CHICA VALSA, depois GENOVEVA CHICA VALSA (Só.) - O Sampaio e o jogo não me bastam. A incumbência é lucrativa, e não é a primeira que desempenho com felicidade. Se a pequena é realmente bonita, o barão me pagará bem... Hoje é um dia completo! Só me falta o meu Bitu!... GENOVEVA (Entrando.) - Minh'ama, Senhô Sampaio trouxe uma moça vestida de noiva, que está esperando que vossemecê a mande entrar. CHICA VALSA - Já?! O tal depósito era perto! Diga-lhe que entre! GENOVEVA (À parte.) - Entre, Sinhá! (Sai.) CENA V CHICA VALSA, CLARINHA CLARINHA (Ao fundo, consigo.) - Como isto é bonito!... Que luxo!... Como se deve viver bem aqui!... CHICA VALSA - Aproxime-se, moça! CLARINHA - Aqui estou, minha senhora! CHICA VALSA - Chegue-se mais!... (Reparando.) Gentes! CLARINHA - Que vejo! CHICA VALSA - Clarinha! CLARINHA - Tu aqui?! Conheces a dona da casa?... CHICA VALSA - A dona da casa sou eu... CLARINHA - Será possível?... CHICA VALSA - Nunca ouviste falar na célebre Chica Valsa? Sou eu! CLARINHA - Tu?... Mas no colégio chamavam-te Chiquinha Morais... CHICA VALSA - Deitei fora a moralidade, e o povo entrou a chamar-me Chica Valsa, porque ninguém valsava como eu nos bailes do Pavilhão. CLARINHA - E o caso é que ficaste, mais do que eu, com este sotaquezinho que nos deixou a educação entre franceses. CHICA VALSA - Eu faço de propósito para que tomem por francesa. CLARINHA - Eu já tenho perdido todo o sotaque. CHICA VALSA - Mas conta-me a tua história, pelo menos de anteontem para cá. CLARINHA - É muito engraçada. Queriam casar-me contra a minha vontade com o mestre barbeiro lá da terra. CHICA VALSA - Continua. CLARINHA - Ora, eu não podia nem casar-me nem deixar de me casar. CHICA VALSA - Como assim? CLARINHA - Primeiro que tudo, porque há lá um bonito rapaz que julgo preferir... CHICA VALSA - Que julgas? CLARINHA - Que... prefiro, se assim o queres. CHICA VALSA - Agora entendo. CLARINHA - Segundo que tudo, esse rapaz tinha jurado matar-se, se eu me casasse com o barbeiro! CHICA VALSA - E tu acreditaste nisso, criança?

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CLARINHA - Se o conhecesses? É um rapaz destemido... meio maluco! - Esse casamento era imposto pelos operários da fábrica do Pinho, que me educaram... CHICA VALSA - Lembra-me bem: teus pais e tuas mães. Como vão eles? CLARINHA - Bem, obrigada. Enfim, para sair do embaraço em que me via, só tive um meio: deixe-me prender lendo um jornal cuja leitura... CHICA VALSA - Eu sei disso. Foi uma boa idéia. CLARINHA - O subdelegado foi à minha prisão, achou-me bonita, e perguntou-me: - Menina, quer ir para a Corte comigo? - Eu disse aos meus botões: Uma vez na Corte, escrevo ao meu namorado, reunimo-nos, casamo-nos,... aceitei a proposta do subdelegado. CHICA VALSA - E daí? CLARINHA - Daí, cá estou. Passarei pelo perigo e ficarei incólume, compreendes? O que não sei é para que me trouxeram à tua casa. Ele havia-me alugado um quarto no Hotel dos Príncipes. CHICA VALSA - Mas que lembrança a tua! CLARINHA - Lembranças as que tínhamos no colégio, hein? Aquilo sim!.. CHICA VALSA - Ah! bom tempo! bom tempo! CLARINHA (Suspirando) O colégio!.. CHICA VALSA (Suspirando.) - O colégio... Dueto JUNTAS - Tempo feliz da infância pura, Em que há mamãe, em que há papai! Tanto prazer, tanta ventura, Fugiu veloz, bem longe vai! CHICA VALSA - Lembrada estás quando fui ao portão Pra conversar cum estudante Do qual conservo ainda - e por que não? Muita cartinha interessante? CLARINHA - Lembrada estás de um professor Que, me encontrando um dia a jeito, Apertou-me contra o seu peito E quatro beijos me pregou? CHICA VALSA - E felizmente o tal sujeito Com isso só se contentou... JUNTAS - Tempo feliz da infância pura, etc. CHICA VALSA - Hoje aqui - deixa que te diga! Passo uma vida de invejar! CLARINHA - Eu não invejo, minha amiga, O teu viver de lupanar! CHICA VALSA - Ah! naquele belo tempo, Que passou, não volta mais, Eu dar-te-ia esta resposta Na linguagem dos teus pais: (Pondo as mãos à ilharga.) Eh! Olá! Não grimpes, não! Ou retiras a expressão, Ou co'esta mão

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Dou-te muito pescoção CLARINHA - Eu poderia responder (mesmo jogo de cena.) Vosmecês não querem ver Esta tipa sem pudor, Negociando o seu amor, E vendendo a quem mais der Seus encantos de mulher! JUNTAS - Ai que prazer! CHICA VALSA - Isto é melhor, pudera não! Do que a linguagem de valão! JUNTAS Ah! ah! ah! bonitas coisas No colégio fui saber, E hoje em dia, Todavia, Tenho ainda que aprender! Que prazer a infância dá! Outro assim não há!... CHICA VALSA Lembrada está de alguns dizeres Que sem querer fui saber eu? Diziam que teu pai morreu Dois anos antes de nasceres CLARINHA Lembrada estás de certa história Que foi bem pública e notória No bom tempo que lá vai? Nós não soubemos nunca o nome de teu pai! JUNTAS Ah! ah! ah! bonitas coisas, etc. CHICA VALSA - Tu serás muito feliz, muito feliz, Clarinha; quem to assegura sou eu. (À parte.) O resultado é duvidoso... CENA VI AS MESMAS, GENOVEVA, depois o ESCRIVÃO GENOVEVA (Entrando.) - Minh'ama, posso falar a vossemecê? CHICA VALSA - Por que não? GENOVEVA - A vossemecê só? CHICA VALSA - Que temos? GENOVEVA - Uma preta velha, acompanhada por um moço, que querem falar a vossemecê. Estão no corredor. CHICA VALSA (À parte.) - Oh! meu Deus!... Já nem me lembrava que Bitu podia chegar agora! CLARINHA - Estou te embaraçando? CHICA VALSA - Não, mas... ESCRIVÃO (Entrando.) - Perdão, minha senhora, onde está sua senhoria, o senhor subdelegado? (À parte.) - A noiva do Barnabé aqui! CHICA VALSA - Não sei: está no meu bolso!

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ESCRIVÃO - Vou procurá-lo. (Cumprimenta e diz à parte.) E no corredor o Nhonhô Bitu... Aqui há coisa... hei de saber! (Vai saindo e escorrega.) CLARINHA - Não caia, seu aquele! ESCRIVÃO - Escorreguei no ispermacetes... CHICA VALSA - Tu, minha querida Clarinha, entra para este quarto; hei de ir ter contigo. Fica sossegada: não te casarás com o Mestre Barnabé. CLARINHA - Obrigada. (Sai.) CHICA VALSA - Manda entrar... GENOVEVA - A preta velha e o moço? CHICA VALSA - O moço só, estúpida! (Genoveva sai.) CENA VII CHICA VALSA, BITU BITU (entrando.) Ora esta! era você?!... CHICA VALSA - Sim, era eu! Venha de lá esse abraço! BITU - Mas isto foi uma traição! (Á parte.) Ainda está mais bonita! CHICA VALSA - Não tenhas medo! Abraça-me... BITU (Abraçando-a.) - Medo de que ? CHICA VALSA - Estava com muitas saudades suas. Chamei-te para fazermos as pazes. BITU - Estão feitas! (À parte.) E Clarinha, que deixei presa em Maria Angu. (Alto.) Julguei que não tivesse voltado da Europa. CHICA VALSA - Há quinze dias... Havemos de conversar. BITU - E... o motivo da nossa separação? CHICA VALSA (Embaraçada.) Hein? BITU - O pomo? CHICA VALSA - Que pomo? BITU - O pomo da discórdia! O Sampaio! CHICA VALSA - E você a dar-lhe com o Sampaio! Que diabo! Seja razoável, Bitu! BITU - Não importa! Estou bem vingado! CHICA VALSA - Já sei que você pintou a manta em Maria Angu. BITU - A manta, o sete, o padre, o simão de carapuça e até a saracura! Pintei tudo! Mas... CHICA VALSA - Mas... falemos de nós. Duetino CHICA VALSA - Até que enfim, Bitu, eis-me a teu lado! BITU - Enfim ao lado meu estás! CHICA VALSA - Ingratatão! BITU - Não me dirás Por que é que fui por ti chamado? CHICA VALSA - Quero, ó Bitu, saber por quê Lá em Maria Angu você Me injuriou num papelucho! Pois tu não sabes, meu Bitu Que sem dinheiro não podias tu Agüentar tamanho repuxo? BITU - Oh! Não me digas isso, não! Eu te adorava, coração! Se dispensasses tanto luxo,

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Se não andasses tão liró, Podias tu ser minha só! Se bem que pobre como Jó, Eu agüentava tal repuxo! CHICA VALSA - No peito meu rebenta uma esperança! Inda és o mesmo, eu logo vi! Meu coração enfim descansa! Saudades tuas tive em França... BITU - Se tais saudades mereci, Não me trouxeste uma lembrança? CHICA VALSA -Nem mesmo numa sepultura Eu poderia me esquecer de ti; Trouxe-te uma abotoadura... BITU - Oh! não me digas isso, não! Talvez custasse um dinheirão! CHICA VALSA - Oh! não! BITU - Não me esqueceste, oh! que ventura! É teu de novo o meu amor! É tua a pena do escritor E a tesoura do redator! Eis-me a teus pés, ó minha flor! - Mostra-me a tal abotoadura! CENA VIII OS MESMOS, GENOVEVA, depois CLARINHA GENOVEVA (Entrando.) Minh'ama! Minh'ama! CHICA VALSA (Dirigindo-se a ela.) - Que temos? GENOVEVA (Baixo.) - Aquele home, escrivão de sinhô Sampaio, falou à preta velha que acompanhou aquele moço, depois foi muito apressado dizer não sei o quê a Sinhô Sampaio e todos dois vêm aí. Sinhô Sampaio estava no Largo do Rossio. Vem furioso! CHICA VALSA (À parte.) - Fazer sair Bitu? Não! Há tão pouco tempo chegou... Ah! (Chamando.) Clarinha! Clarinha! BITU (À parte.) - Clarinha! Que coincidência de nomes! CLARINHA (Entrando.) - Que é? BITU - Que vejo! Ela! CLARINHA - Ah! CHICA VALSA - Conhecem-se? GENOVEVA - Minh'ama, ele aí chegam. CHICA VALSA (A Clarinha e Bitu.) - Por favor, não me desmintam! A tudo quanto eu disser, Ora pro nobis; confirmem, ou estou perdida! CLARINHA E BITU - Perdida! CHICA VALSA - Silêncio!

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CENA IX OS MESMOS, SAMPAIO, O ESCRIVÃO SAMPAIO (Entrando, zangado.) - Sei tudo! Sei tudo! CHICA VALSA - Que isto quer dizer? SAMPAIO - Sei que a senhora e este senhor entendem-se perfeitamente! CLARINHA (À parte.) - Hein? SAMPAIO - E que o recebeu em sua casa, isto é, em minha casa! CLARINHA - É só isso? É verdade que recebi este senhor em minha casa! SAMPAIO - Minha! La maison est de moi! Je suis le subdelegué qui mande ici!... CHICA VALSA - Esta senhora é a minha melhor amiga. O Senhor Ângelo Bitu ama Dona Clarinha Angu, e é correspondido. Eu quis aproximá-los... (Baixo.) e malograr o seu intento, percebe?... Quinteto SAMPAIO - Hein? ESCRIVÃO - Ih! SAMPAIO - Oh! CLARINHA - Eu cá zombar não quis... CHICA VALSA - Se o senhor de mim desconfia, Faz-me chegar a mostarda ao nariz! SAMPAIO - Pois bem! que jure aqui reclamo Que gosta do Bitu! CLARINHA - Já que assim quer, eu lhe juro que o amo! CHICA VALSA (À parte.) - A pobrezinha corada ficou, Repetindo tais c'raminholas! ESCRIVÃO( À parte.) - Vai dizer que sou um bolas! SAMPAIO (A Bitu.) - E você lá, seu redator, Aqui só está por causa dela? BITU - Juro, caríssimo senhor, Que aqui vim ver a minha bela! ESCRIVÃO -Uh! CHICA VALSA - Meu caro senhor, é por ela Que se acha aqui Nhonhô Bitu, E não foi senão para vê-la Que ele deixou Maria Angu. JUNTOS - Meu caro senhor, é por ela, etc. SAMPAIO e ESCRIVÃO - Pois não será por causa dela Que se acha aqui Nhonhô Bitu! Foi para ver a tal donzela Que ele deixou em Maria Angu. BITU e CLARINHA - Não, não senhor, não é por ela Que se acha aqui Nhonhô Bitu! {vê-la e dar-lhe trela Foi para { { ver-me e dar-me trela

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Que lá deixei } } Maria Angu! Que ele deixou } SAMPAIO (A Clarinha) - Mas não! Com Barnabé casar-se deveria! Zombando estão de mim! CHICA VALSA - Aí com que perfeição Mente aquele ladrão! SAMPAIO - Isso é sério? BITU - Sério sou! ESCRIVÃO (À parte.) - O pobre diabo acreditou! TODOS - A coisa está patente! A Chica tem razão! Não pode tanta gente Fazer combinação! SAMPAIO - Seu escrivão, que diz a isto? Você é um bolas, um grande animal! ESCRIVÃO - Perdão! Enganei-me, está visto... Julguei mal... Eu fiz uma apreciação falsa... Mas vendo estou.... SAMPAIO - Que vês tu? ESCRIVÃO - Que a Senhora Chica Valsa Não faz caso do Bitu! CHICA VALSA - Ora aí está que sem malícia Me defende este escrivão! O escrivão é da polícia; Tem valiosa opinião. TODOS - Ora aí está que sem malícia Me} } defende este escrivão, etc. A } SAMPAIO - Está tudo acabado! (Estendendo a mão a Bitu.) Seja meu amigo. BITU (Apertando-lha.) Obrigado, senhor. SAMPAIO (Ao Escrivão.)- Você é um bolas, seu escrivão!... Vá se deitar... ESCRIVÃO - As ordens de Vossa Senhoria serão cumpridas à risca. (Vai saindo.) Sobem a escada... CHICA VALSA - Serão já os rapazes? ESCRIVÃO - É o mestre barbeiro Barnabé. (À parte.) Decididamente, todo o Angu mudou-se para esta casa. (Sai.) CHICA VALSA - É o Barnabé! CLARINHA - Meu noivo! CHICA VALSA - É preciso que ele não te veja! (Conduzindo Clarinha e Bitu à direita.) Entrem para a sala de jantar. (Bitu e Clarinha saem.) Oh! que idéia! É preciso desfazermo-nos deste Barnabé! Já nem me lembrava dele! Clarinha deve pertencer-me! (A Sampaio.) Dê-me o seu apito. SAMPAIO - Para quê? CHICA VALSA - Não ouve? Sampaio dá-lhe um apito, Chica Valsa tira uma pulseira do braço.)

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CENA X OS MESMOS, BARNABÉ, depois DOIS URBANOS (Música na orquestra.) BARNABÉ (Sempre com a mala.)- Com licença! Já vim das figuras de cera. Mal empregados cinco tostões. Onde está minha noiva? (Enquanto Barnabé fala, Chica Valsa mete-lhe a pulseira no bolso: depois corre ao fundo e apita.) SAMPAIO - Que é isto? BARNABÉ - Que quer isto dizer? CHICA VALSA (Gritando.) - Um gatuno! um gatuno!... BARNABÉ - Onde está o gatuno, minha senhora? onde está o gatuno? Socorro! pega! Pega!... (Entram dois urbanos.) CHICA VALSA (Aos urbanos, mostrando Barnabé.) - Camaradas, este homem introduziu-se em minha casa; é um gatuno! Vejam se ele não tem no bolso uma pulseira! (Os urbanos revistam os bolsos de Barnabé.) BARNABÉ - Mas que é isto?! eu não sou gatuno!... Não me meta a mão no bolso! Onde já se viu isto?!... CHICA VALSA - Prendam-no! (Os urbanos acham a pulseira e entregam-na a Chica Valsa.) URBANOS - Venha... venha! (Desembainham os refes e arrastam Barnabé para fora. Cessa a música.) SAMPAIO (À parte.) - Esta mulher é da pele do diabo! Eu safo-me, senão é capaz de me mandar também para a cadeia! (Sai apressado.) CHICA VALSA - Venham... venham... CLARINHA (Entrando.) - Dali vimos e ouvimos tudo. BITU (Entrando.) - Para que prendê-lo? CLARINHA - Que prisão esquisita! CHICA VALSA (À parte.) - É quase meia noite: os rapazes não tardam... (Genoveva entra.) Clarinha, vai com a criada. Genoveva, leva esta moça para a saleta, onde passará a noite. BITU (Á parte.) - Ela vai dormir aqui?! CHICA VALSA - Deita-te, dorme bem, a amanhã conversaremos. CENA XI CHICA VALSA, BITU CHICA VALSA - Eis-nos sós. Não percamos tempo! Sabes jogar o bacará? BITU - Por quê? CHICA VALSA - Responde! anda!... BITU - Eu sei jogar tudo, desde o burro e o pacau até o xadrez. CHICA VALSA - Tens dinheiro? (Bitu coça a cabeça.) Empresto-te duzentos mil réis. (Dá-lhos.) Estás numa casa de jogo; não sabias? BITU - Deveras? CHICA VALSA - Quero-te ao pé de mim, e só jogando poderei consegui-lo... Depois, acharei meio de me ver livre do Sampaio. BITU - Bem. CHICA VALSA (Com mistério.) - Eles aí vêm. BITU - Eles quem? CHICA VALSA - Os parceiros... Vem comigo... (Saem.) CENA XII SOTA-E-ÁS, JOGADORES, depois CHICA VALSA, BITU (Sota-e-ás e os Jogadores trazem todos suíças postiças, casacões e bengalas.)

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CORO - Dizem que é vício Jogar, mas é Amargo ofício, Penoso até! Dá-nos canseira, Faz-nos suar A noite inteira Aqui passar! A morcegada, Que é muito sagaz, Anda assanhada, De pé atrás... Estas suíças É convenção Trazer postiças E casacão CHICA VALSA (Entrando.) Vêm disfarçados que faz gosto vê-los! SOTA-E-ÁS - Sim! sim! de jogadois nós somos os modeios! Ente nós, ente nós não há nenhum potão! BITU (Entrando.) - Inda bem! OS JOGADORES - Céus! (Procuram esconder-se.) CHICA VALSA - Não tenham medo, não! (Apresentando Bitu aos jogadores.) Ora aqui têm mais um parceiro! Não joga mal, mas tem dinheiro... Vamos jogar! Fora a preguiça! Então! Então! Cartas na mão! SOTA - Mas ei não tem casacão... Não tem também baba potiça... OS JOGADORES - Mas ele não tem casacão... Não tem também barba postiça.. Dizem que é vício Jogar, mas é, etc. CENA XIII OS MESMOS, CLARINHA, depois as COCOTES CLARINHA (A Chica Valsa.) - Enfim te encontro! OS JOGADORES - Uma moça! CHICA VALSA - Imprudente! Que vens aqui fazer? CLARINHA - Prevenir-te que vi Pelos vidros da janela muita gente E alguns urbanos que vêm para aqui! OS JOGADORES -Os urbanos, oh, céus!... Oh, meu Deus! oh, meu Deus!... AS COCOTES (Entrando assustadas.) - A casa está cercada! a fuga é impossível A gente toda é presa E vai para a estação!

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Ah! meu Deus! Com certeza Temos multa e prisão! SOTA - Pisão! TODOS Pisão! (Apitos fora.) CHICA VALSA - Não! Não! Não! Não! Ninguém vai para a prisão! TODOS - Como assim? CHICA VALSA - O caso é já, neste momento, Improvisar um casamento! (Apontando para Bitu e Clarinha.) E os noivos, ei-los aqui estão! (Aos jogadores.) Mas essas barbas? Visto Está que nos denunciarão! SOTA - Pa não imos para a prisão, É já escondê tudo isto! OS JOGADORES - É já esconder tudo isto! (Durante o coro que se segue, Sota-e-ás e os Jogadores tiram e escondem os casacões, os chapéus, as barbas e as bengalas. Dois criados entram, e levam para dentro todos os móveis.) CORO DE URBANOS(Fora.) - Quem estiver aqui jogando Pra estação vai já marchar! Guerra a vício tão nefando! Guerra, guerra a quem jogar! CHICA VALSA (Declamando.) Eles aí vêm! Vamos, senhores, tirem pares para uma valsa! (Valsa com Sota-e-ás.) Valsai! Valsai! Não parar nem um segundo! Os desgostos deste mundo A valsar olvidai! Valsai! TODOS (Valsando.) - Valsai! valsai!, etc. CENA XIV OS MESMOS, UMA AUTORIDADE, URBANOS URBANOS - Quem estiver aqui jogando, etc. CHICA VALSA - Queiram dizer o que desejam. A AUTORIDADE - Os jogadores que aqui estão! CHICA VALSA - Jogadores aqui não sei quais sejam! Temos dois noivos... estes são! (Mostra Bitu e Clarinha.) Tivemos hoje um feliz casamento, E o nosso baile vem cá perturbar! porém não damos cavaco um momento. E os convidamos até pra dançar! Aos bons urbanos Nós, os paisanos, Urbanamente queremos tratar... Escolham pares, E aos calcanhares É dar sem dó.

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(Á autoridade.) - Eu serei o seu par. (Valsa com a Autoridade, enquanto os urbanos valsam com algumas das cocotes.) CORO - Valsai! valsai!, etc. CLARINHA (Valsando com Bitu.)- Como isto é bom! Valsemos mais depressa. BITU - Dize, ó Clarinha, que me queres bem! CLARINHA - Teu desespero, benzinho, não cessa! Sou tua, tua, e de mais ninguém! CHICA VALSA (Que ouviu.) - Será possível (Deixa seu par.) A AUTORIDADE (Valsando só.) -Diga o que tem! CHICA VALSA - Eu... eu... A AUTORIDADE - Se quer, eu pararei também... CHICA VALSA (Disfarçando.) - Oh! céus! que vejo! (Reparando nalguma coisa na sobrecasaca da Autoridade.) Um percevejo! (À parte.) - Traída fui, mas eu me vingarei! Vingada, sim, serei!... CORO - Valsai! Valsai! etc. (Valsa geral e muito animada.) [(Cai o pano.)] ATO TERCEIRO Um arraial em Maria Angu, na noite da festa do Espírito Santo. Fogos de artifício. Balões de papel. À direita casa do juiz da festa e à esquerda um igrejinha, abertas ambas e iluminadas. CENA I CARDOSO, GUILHERME, BOTELHO, CHICA PITADA, GAIVOTA, TERESA, OPERÁRIOS, FESTEIROS, POVO, depois o JUIZ DA FESTA (Ao levantar o pano vem do fundo o bando do Espírito Santo. À frente o Imperador representado por uma criança. repiques de sino. Foguetes.) CORO DE FESTEIROS - Entoemos nosso hino Perante o celeste altar, Para louvar o Divino, Para o Divino louvar! (O bando do Espírito Santo entra na igreja.) O JUIZ DA FESTA (Saindo da casa e dirigindo-se aos que ficaram em cena.) Então, rapaziada! Venham trincar uma perna de peru cá em minha casa! Eu sou o juiz da festa! Viva o divino Espírito Santo! TODOS - Viva! viva o Juiz! Vamos! vamos!... (Festeiros e homens do povo seguem o Juiz, que entra em casa.) GAIVOTA - Então? Não vamos nós também? GUILHERME - Eu não! Vão vocês, se quiserem! CHICA - Ora! é tão bom trincar uma perna de peru! CARDOSO - Trincar! Seria preciso que não tivéssemos coração! BOTELHO - E que tivéssemos fome! CARDOSO - Trincar uma perna de peru quando não sabemos o fim que levou nossa filha! GAIVOTA - Sabemos que não está presa, porque escreveu-nos, dizendo que a esperássemos hoje. BOTELHO - Mas para que diabo foi aquela rapariga ler o maldito Imparcial? Isto é que me tem feito pensar!

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GUILHERME - E o que foi fazer na Corte com o subdelegado?.. Nadamos num oceano de conjeturas! CHICA - Uma mosca morta que não levanta os olhos! TERESA - Parecia uma santinha! GAIVOTA - De pau carunchoso! CARDOSO (Tirando uma carta da algibeira.) - Se ainda esta carta nos pusesse ao fato de alguma coisa, mas de fato não põe ao fato de coisa alguma! (Lê.) "Peço a todos os meus pais e mães que hoje à noite se achem às oito horas na festa do Espírito Santo. Eu lá irei ter, e tudo saberão. Clarinha." GAIVOTA - Bem! uma vez que nos vem dizer tudo... TERESA - É porque nada tem que ocultar. BOTELHO - Está sabido! Mas queira Deus que ela diga toda a verdade... (Rumor fora.) TODOS (Subindo ao fundo.) Que é? Que é? CHICA - Uma moça bem vestida! Como vem cercada de povo! Aquilo é senhora da cidade! CARDOSO - Mas não! é ela! é a nossa rica filha! TODOS - Clarinha! BOTELHO - Ei-la aí vem!.. CENA II OS MESMOS, CLARINHA, POVO (Clarinha vem exageradamente vestida, e acompanhada pelo povo.) CORO - Ei-la! Ei-la! Vem tão janota! Ei-la entre nós de novo enfim! Mas que fatiota! Onde ela foi vestir-se assim! CARDOSO Chegaste enfim! CHICA De onde vem tu? CARDOSO - Como é que assim nos aparece? CHICA - Deus me perdoe! Já não pareces A filha de Maria Angu! CORO - Deus me perdoe! Já não pareces A filha de Maria Angu Coplas I CLARINHA - Fizestes muitos sacrifícios para que eu não tivesse vícios, E eu tive sempre paciências de aparentar muita inocência! Constante fui no fingimento; Sonsa como eu nenhuma havia! Tudo isso, devo ao meu temperamento, Por temperamento eu fingia! De Maria Angu Eu cá sou filha, não há negar. II - Sou Clarinha Angu! Filho de peixe sabe nadar... Olhem lá!

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Venham cá! Sou Clarinha Angu! CORO - De Maria Angu Ela é a filha, não há de negar! etc. CLARINHA - Íeis me dar, não duvido, Um maridão, um bom marido, Porém a outro namorado Meu coração eu tinha dado! Querendo, embora por estúcia, Impedir esse casamento, Eu fiz com que me prendesse esta súcia! Tudo por meu temperamento De Maria Angu, etc. BOTELHO - Como? pois foi por causa do teu temperamento que fizeste todo esse destempero? CHICA - Por que não nos disseste francamente a verdade, em vez de te deixares prender? CARDOSO - E como foste dar com o costado na Corte? CLARINHA (À parte.) - Aproveito a mentira do Sampaio. (Alto.) Fui para a Corte à disposição do chefe de polícia, que me mandou embora... Depois contarei tudo. Só o que lhes digo é que jugo ser traída! TODOS - Traída! CLARINHA - Por meu namorado!... CHICA - Não é outro senão Nhonhô Bitu! CLARINHA - Sim! É Bitu, é! E o que eu suspeito é verdade! Não me casarei com ele... CARDOSO - Nisso fazes bem! CLARINHA - E ficarei solteira toda a minha vida! GAIVOTA - Nisso fazes mal! TERESA - E Barnabé? GUILHERME - Sim! Que lugar reservas em tudo isso para Barnabé? CLARINHA - Não se ocupem com ele; ficou preso na Corte. TODOS - Preso! CLARINHA - Também depois hei de contar-lhes isso... Não estejamos cá. Há de vir aqui alguém, que encaminhei para cá, e não quero que me veja. Viva Deus! Hei de provar-lhes que sou a filha da minha mãe! BOTELHO - Não parece a mesma... CARDOSO - Filho de peixe sabe nadar. CLARINHA - E ainda não viram nada! GUILHERME - E esse vestido? Quem foi que te pôs nesse chiquismo? CLARINHA - Foi meu pai! TODOS - Seu pai?!... CLARINHA - o Barão de Anajá-mirim! CHICA - O Barão de Anajá-Mirim?... É ele!... TODOS - Quem? CHICA - O Barão do Hotel Ravot! CLARINHA - Também depois hei de contar-lhes isso! Vamos! (Saída geral, com um motivo no último coro. Entra Sampaio, disfarçado, com um grande chapéu desabado e barbas postiças.) CENA III SAMPAIO, só SAMPAIO - Cá estou. Vejo que fui o primeiro a chegar.Parece-me que estou bem disfarçado... Vejamos se esqueci de alguma coisa, pois tenho andado com a cabeça à razão de juros. (Tira uma carta

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da algibeira e lê.) "Senhor Sampaio" (Declama) Ela escreve Sampaio com o cedilhado! (Lê) "O senhor é enganado. Se quer saber quem é o amante de sua amante, esteja hoje à noite na festa do Espírito Santo, em Maria Angu. Vá disfarçado e leve os olhos bem abertos. - Clarinha" (Declama.) Clarinha! É ela, a noiva do Barnabé, essa bonita rapariga que daqui levei com intenção perversa, e me foi roubada pela Chica, que a entregou ao Barão de Anajá-mirim. Foi bem feito. O Barão encheu-a de presentes, porém, mal tinha trocado quatro palavras com a pequena, reconheceu que era pai dela, e naturalmente arrepiou carreira! Disse lá consigo: Nada! uma pequena que tem dois futuros e ainda aceita presentes, não é digna de ser minha filha! mas, Clarinha, que se mostrava tão amiga da Chica, escrever-me agora contra ela! À custa de quem quererá divertir-se esta moça? À minha? Mas sou muito grande para palito. Que horas serão? Ali no relógio da igreja é meia noite há oito anos. meia noite ou meio dia. Creio que a impaciência fez-me vir antes de tempo... Se eu visse a Clarinha... (Saindo pela esquerda.) procuremo-la. (Sai) CENA IV BARNABÉ, depois SAMPAIO (Barnabé entra correndo e também disfarçado.) BARNABÉ - Uf! Eis-me enfim em Maria Angu... e quase reduzido a angu! Que é isto? ah! a festa!... Sarcasmo do destino!... (Pausa.) Quantas atribulações para um pobre barbeiro sangrador! No dia do meu casamento sangram-me o coração: prendem-me a noiva antes que eu a prendesse com os laços do himeneu! Sei que ela foge para a Corte, levada pelo subdelegado! Vou também para a Corte e tenho a satisfação de saber que ela não tinha fugido, mas fora apenas conduzida à presença do chefe de polícia. Não sei como nem como não, roubo uma pulseira, que é encontrada no meu bolso, prova cabal que a roubei... mas como? Mandam-me prender por uns soldados que são tudo menos urbanos, e ferram comigo na estação dos ditos, na Travessa do Rosário. No xadrez encontro o Jerônimo, vulgo cabeçada, preso também por ter dado uma cabeçada num sujeito que lhe pilhou dando um beijo em sua mulher... (Como lhe devia ficar a cabeça!) O Jerônimo é um amigo velho; fui eu que lhe emprestei duzentos mil réis, quando residi na Corte, para prestar fiança quando quis ser condutor de bondes. Por sinal nunca mais vi a cor desse dinheiro! Levamos toda a noite a contar um ao outro nossas desventuras. O Jerônimo lembrava-se dos duzentos mil réis, e teve pena de mim... Tinha de sair logo de manhãzinha do xadrez, e, como não fazia muito empenho em tornar a ver a mulher, lembrou-se de me fazer sair em seu lugar. Vesti a sua roupa, ele vestiu a minha, pus o seu chapéu, e quando vieram soltá-lo, zás! por aqui é o caminho! Estava ainda no Largo do Rossio, quando ouvi gritar: "Pega! pega!" Pernas pra que te quero?! Olho um tílburi que saía! Brr... Entrei na estação... noutra, mas desta vez na da Estrada de Ferro... Felizmente o trem estava sai-não-sai... Em viagem lembrei-me de minha mala, mas o colete é o meu e os cobres cá estão... Chego a Maria Angu mais morto que vivo, e eis-me numa festa! Numa festa... E talvez a estas horas a minha Clara gema no ovo!... O ovo é o xilindró... SAMPAIO (Entrando.) - Não a encontrei. BARNABÉ - Vim buscar o auxílio de meus sogros e de minhas sogras, mas parece estar escrito no livro do destino que não há livro do destino que a aguarda!... SAMPAIO - Já devem ser horas. BARNABÉ - Vou procurá-los. SAMPAIO - Vamos por outro lado... (Esbarram-se.) AMBOS - Você está cego? SAMPAIO - Oh! que bruto! BARNABÉ - Pra lá! AMBOS - Céus! Quem será? (Afastam-se com medo um do outro.) SAMPAIO - Quem será? BARNABÉ - Quem será? AMBOS (À parte.) - Será, pois não! imensa asneira Medo por ele aqui mostrar! Eu vou, vou já, de um capoeira

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As aparências tomar! (Provocam-se como os capoeiras.) SAMPAIO - Você não vê por onde anda! BARNABÉ (À parte.) - Ai! que o sujeito é valentão! (Alto) É que eu olhava pra outra banda... SAMPAIO (À parte.) - Este indivíduo é fracalhão! (Alto.) Zangado estou, e vou-lhe às ventas! BARNABÉ (À parte.) - Se eu recuar, perdido estou! (Alto.) Eu quero ver se tu sustentas O que da boca te escapou! Se não retiras a expressão Fanfarrão! Levas muito cachação! SAMPAIO (À parte.) - Ele é valente! Haja prudência! BARNABÉ (Avançando.)- Há de ter santa paciência: Apanhas como ladrão! SAMPAIO (Fugindo, à parte.) - Ele me quer limpar a roupa! BARNABÉ (À parte.) - O fanfarrão tremendo está! (Alto, avançando.) Fazer-te quero numa sopa! SAMPAIO (Fugindo.) - Adeus, e fique-se por cá! (Barnabé agarra-o pelas barbas, que lhe ficam na mão.) BARNABÉ - Hein? Deixou de ser barbado! SAMPAIO - Bico! Bico por quem é!... BARNABÉ - Que vejo? O subdelegado! SAMPAIO (Á parte.) - Conheceu-me! Passo o pé! (Vai fugir.) BARNABÉ - E eu cá sou o Barnabé! SAMPAIO (Voltando.) - O Barnabé! JUNTOS - Ah!ah!ah!ah!ah!ah!ah! Estou aparvalhado! Caso mais engraçado! Decerto que não há! - Ah!ah!ah!ah!ah!ah!ah! SAMPAIO - Mas como pode isto ser? Eu supunha-o preso! BARNABÉ - Preso não estou; estou apenas surpreso! (Lembrando-se.) Mas... oh, meu Deus... dar-se-á caso que Vossa Senhoria queira catrafilar-me outra vez? Acredite que estou inocente!... SAMPAIO - Descanse. Folgo até de encontrá-lo aqui. BARNABÉ - Por quê? SAMPAIO - Quer me parecer que nós somos enganados... BARNABÉ - Vossa Senhoria, quando diz "nós", fala como autoridade, ou refere-se a mim também? SAMPAIO - Falo como barbeiro. Vejamos se alguém nos ouve... (Sobem a cena e observam, um à direita, outro à esquerda. Sampaio põe as barbas.) BARNABÉ - Senhor subdelegado, onde está Vossa Senhoria? Ah! Cá está! Com as barbas já não o conhecia! (Clarinha aparece ao fundo e aí se conserva.) CENA V OS MESMOS, CLARINHA SAMPAIO - Ninguém. BARNABÉ - Ninguém também por este lado... CLARINHA (À parte.) - Hein?... SAMPAIO - Este meu disfarce não o admira?

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BARNABÉ - Decerto... SAMPAIO - Pois foi sua noiva quem me aconselhou que o arranjasse. BARNABÉ - Clarinha? CLARINHA (À parte.) Meu nome?... SAMPAIO - Ela escreveu-me... BARNABÉ - A Vossa Senhoria?... SAMPAIO - Para dizer-me e provar-me que Chica Valsa me engana... Agora não vá dar com a língua nos dentes... Eu sou viúvo e tenho três filhas solteiras... CLARINHA (À parte.)- É o Sampaio! E o Barnabé solto! BARNABÉ - Mas Clarinha não está presa? Não está embrulhada nestes negócios da leitura do Imparcial? SAMPAIO - Não, tolo: a Clara não está embrulhada... BARNABÉ - Esta embrulhada é que não está clara! SAMPAIO - Foi ela que lhe arranjou aquela prisão; que lhe meteu a pulseira no bolso! BARNABÉ - Ela!... SAMPAIO - Queria desfazer-se de você! BARNABÉ - De mim?! SAMPAIO - Aqui para nós, que ninguém nos ouve: aquela sua noiva não é lá muito boa peça... CLARINHA (À parte.) - Ah! BARNABÉ - Clarinha! um anjo de inocência e de candura! SAMPAIO - Você é um bolas seu Barnabé! BARNABÉ - Chame-me Vossa senhoria o que quiser... para mim é o mesmo... mas não diga mal da pobrezinha! Hei de defendê-la, enquanto puder, contra tudo e contra todos! SAMPAIO - Que lhe faça bom proveito! BARNABÉ - Ela! Tão bonita, tão boa, tão amável, tão honesta! CLARINHA (À parte.) - Pobre rapaz! SAMPAIO - E se eu lhe provar que ela está cá? BARNABÉ - Ela quem? Clarinha? Aqui?!.. SAMPAIO - Olhe, ouça: vamos percorrer a festa, e, se a encontrarmos, desejo que ela não me conheça. Quero observá-la a fim de saber com que fim me escreveu... CLARINHA (À parte.) - Ah! tu não queres ser conhecido. (Vai-se.) BARNABÉ - Ela? Ela? decididamente fico idiota! SAMPAIO - Siga-me, digo-lhe eu: mas, quando a virmos, não fale. Evitemo-la, sem a perder de vista. (Clarinha cantarola no bastidor.) Uma voz de mulher! BARNABÉ - Ai! meu Deus! SAMPAIO - Quem é? BARNABÉ - É ela! É ela! SAMPAIO - Ela!... (Levando-o para um canto.) Deixemo-la passar! (Clarinha entra, sempre cantarolando, e, depois de percorrer o fundo, aproxima-se dos dois e finge que se assusta.) CLARINHA - Ui! Os senhores meteram-me um susto! BARNABÉ - Pois quê! É ... SAMPAIO (Dando-lhe um empurrão.) - Cale-se! CLARINHA - Ah! desculpem... não os conheço. Estão aqui para a grande questão, não é assim? SAMPAIO (Disfarçando a voz.) - Que questão? CLARINHA - Trata-se de mim... SAMPAIO - Ah! trata-se da senhora? CLARINHA - De mim, Clarinha Angu. BARNABÉ (À Parte.) - E como está vestida! SAMPAIO - Ah! a senhora é... CLARINHA - Imagine o senhor que me queriam casar com um homem, oh! um homem de bem, às direitas... BARNABÉ (À parte.) - Ah! CLARINHA - mas tolo...

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BARNABÉ (À parte.) - Eh! CLARINHA - Um coração invejável, um caráter como poucos... BARNABÉ (À parte.) - Ih! CLARINHA - Um bom rapaz, enfim... BARNABÉ (À parte.) - Oh! CLARINHA - Mas, como já disse, tolo o que se pode chamar tolo!... BARNABÉ (À parte.) - Uh! Terceto CLARINHA - Está na conta o Barnabé Para ser irmão ou amigo; Porém meu ideal não é... Não há de se casar comigo! BARNABÉ - Céus! ela o que dizendo está! SAMPAIO - Je comprends ça, je comprends ça! CLARINHA - Muito me custa vê-lo aflito, Mas eu a outro amava já... BARNABÉ - A outro! CLARINHA - Muito mais bonito! SAMPAIO - Je comprends ça, je comprends ça! BARNABÉ - Ah, meu Deus! cambaleio! No chão vou já cair! CLARINHA - Mas o meu namorado, creio, Está pensando em me trair Aí está o mistério Que devo desvendar! É esse o caso sério Que tem-me feito suar! OS TRÊS - Aí está o mistério {deve Que { desvendar! {devo É esse o caso sério { me Que { tem feito suar! { a CLARINHA - Sabem vocês quem é a Chica Valsa, Que vive os homens a enganar? BARNABÉ - Sim, eu... SAMPAIO - Não sei. CLARINHA - Foi uma amiga falsa, Mas eu a vou desmascarar: Certo amante muito arruinado Cedeu lugar ao macacão Sampaio, o tal subdelegado... SAMPAIO - Ao macacão! BARNABÉ (À parte.) - Toma lá, meu vilão! CLARINHA - O macacão tudo lhe dá, Mas a Chica é mulher leviana: Com o seu antigo amante, olá! O s'or subdelegado engana! SAMPAIO - Céus! ela o que dizendo está!

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BARNABÉ - Je comprends ça, je comprends ça! CLARINHA - Essa mulher da pá virada Eu sei que considera já O Sampaio um paio e mais nada! BARNABÉ - Je comprends ça, je comprends ça! Ah, meu Deus! cambaleio! No chão vou já cair! CLARINHA - É co meu namorado, creio, Que a Chica os eu conta iludir! E aí está o mistério, etc. SAMPAIO (Tirando as barbas.) - Olá! eu sou o subdelegado! CLARINHA - Já disso sei! SAMPAIO - Já sabe então? CLARINHA - Olé! BARNABÉ - E eu cá sou... CLARINHA - O Senhor Barnabé. BARNABÉ - Sabia então? CLARINHA - Ora se não! SAMPAIO - Vingança eu vou tomar! CLARINHA - Vai tudo transtornar! Daqui afastemo-nos já! (Sobe ao fundo.) Céus! Bitu que ali está! OS DOIS - Bitu! CLARINHA (Descendo.) - Vingança! Vingar-me é a minha esperança Pra vingar-me um belo dia Desse grande lheguelhé, Eu capaz até seria... (A Barnabé.) De casar-me com você! Venham cá! Venham já! Vocês vão conhecer-me, E dizer-me Depois, "Tens talento por nós dois"! OS DOIS - Vamos lá Vamos já! Vamos lá conhecê-la E dizer-lhe depois "Tens talentos por nós dois!" (Saem) CENA VI [BITU, só] BITU (Entrando do fundo.) - Eis-me enfim na festa do Espírito Santo, o único espírito que há nesta terra, não falando no engarrafado e no meu. Como me bate o coração! A Chica escreveu-me, pedindo-me uma entrevista para hoje, as nove horas, aqui! É esquisito! Uma entrevista em Maria Angu, quando na Corte não nos faltava sítio... Ela, enfim, tem lá suas razões...

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CENA VII BITU, CHICA VALSA CHICA VALSA (Vestida de preto e de véu espesso.) Enfim te encontro! BITU - Acho-te enfim! CHICA VALSA (Levando as mãos ao peito.) - Estou com o coração nas mãos... BITU - Não! estás com a mão no coração. CHICA VALSA - Obrigas-me a fazer coisas... BITU - Que receias tu? CHICA VALSA - Estou exposta a tanto! podia ser alguma cilada... mas, enfim, cá estás; estou mais sossegada. Fiz tudo o que me recomendaste em tua carta. BITU - Em minha carta? CHICA VALSA - Que tal achas este vestuário de viúva? Não é assim que querias? BITU - Que eu queria, como? Não te entendo! CHICA VALSA - Pois tu, a quem não via desde aquela noite fatal, em que brigamos por causa da Clarinha Angu, não me escreveste ontem... BITU - Eu? CHICA VALSA - ... dizendo que me achasse aqui, na festa do Espírito Santo, às nove horas, assim vestida?... Achei o lugar esquisito, quando na Corte poderíamos fazer as pazes! BITU - Mas foste tu quem escolhestes o lugar, benzinho. CHICA VALSA - Eu, meu amor? BITU - Tu, meu coração; nesta cartinha que já sei de cor e salteado! CHICA VALSA - Uma cartinha que eu te escrevi! Eu?!... BITU - Estás arrependida? CHICA VALSA - Queres divertir-te à minha custa? BITU - Já não te lembras? Nesse caso ouve lá! (Lê a carta.) Dueto - "Qu'rido Bitu que se esqueceu de mim, É meu amor, amor sem fim! Eu devo confessar, Nhonhô, que ao fazer desta Padece o peito meu, e a causa disso és tu! Hoje, às nove da noite, espero-te na festa, Lá em Maria Angu. Apaga-me esta chama, Sufoca-me estes ais, E não te esqueças mais Desta infeliz que te ama." CHICA VALSA - Assina-se quem? BITU - Vê: "Chica Valsa". CHICA VALSA - Traição! BITU - Esta firma é falsa? A carta que aqui está Tua não é? CHICA VALSA - Ouve lá! (Lendo outra carta que tira do seio.) "Não passo de um jornalista da roça, Sem ter futuro, sem ter posição, Mas, meu amor, por ti sinto paixão; Viver sem ti não suponhas que eu possa! Longe, lá em Maria Angu

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Há hoje festa do Espírito Santo. Nesse poético recanto, Meu doce amor, não queres tu, Fingindo ser senhora viúva, De capa preta, véu e luva, Ir encontrar o teu Bitu? Como eu presumo que me adoras, Sem falta, amor, contigo conto, Se tu não vem às nove horas Eu me mato às dez em ponto!" BITU - Isto por artes só de Belzebu! E assina quem? CHICA VALSA - Vê: "Ângelo Bitu." AMBOS - Que cilada se armou! Eu envergonhad {o { estou!... {a CHICA VALSA - Fugir, fugir, se é tempo ainda! BITU - Não!... Para quê? Aqui fique você! Minha Chica, tu és tão linda! Oh! Eu te adoro!... O meu segredo aí está! Ninguém o saberá! CENA VII TODOS OS PERSONAGENS DESTE ATO (Todos, ao fundo, ouviam as últimas palavras de Chica e Bitu.) CORO - Ah! ah! ah! ah! Segredo, olá! Que todo mundo sabe já! BITU - Este senhora é muito minha! Qu'remos passar! CLARINHA (Aparecendo.) - Mais devagar! TODOS - Clarinha!... I CLARINHA - Estás aí, Chica Morais? Tem paciência: ouvir-me vais, Pois me fizeste, por traição, Ir ter cum velho solteirão! Ó coisa ruim, não julgues tu Que eu chore a perda do Bitu, Canalha a vil que a quem mais der Vende o jornal, vende a mulher! Com ele podes tu ficar! Luvas te devo até pagar! Livre fiquei, graças ao céu, De semelhante chichisbéu! A mão lhe dá de esposa E o mundo então dirá:

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Não é lá grande coisa; mas casada está! CORO - Que tal a rapariga? Arrasa o seu Bitu! Não há que se lhe diga! Bem mostra ser Angu! II CHICA VALSA - Estás aí, Clarinha Angu? Ouve também agora tu, ó donzelinha, que a falar, Um batalhão fazes corar! não te faz conta o meu Bitu, Porque o prender não podes tu; Se ele aceitasse o teu amor, Tu lhe darias mais valor... Porém sabendo ficarás... Não faço empenho no rapaz; Casem-se, e não mostres assim Tão negra inveja ter de mim! A mão lhe dá de esposa, etc. (As duas chegam às vias de fato; Sampaio vai separa-las e apanha bordoada) SAMPAIO - Um bofetão me pespegou, senhora! CHICA VALSA - Quem é você? Não me dirá? SAMPAIO (Tirando as barbas.) - Não me conheces agora? CHICA VALSA - Também você? Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! TODOS - Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! SAMPAIO (Furioso) - 'Stou zangado! 'Stou danado! Vou de cólera saltar! Ó senhora, Sem demora Vamos contas ajustar! BITU - A Chiquinha Só é minha! Não a podes maltratar! Meu amigo, Só comigo Terá contas a ajustar! TODOS - Mas que é isto? Jesus cristo! Não precisam disputar! Tudo agora Sem demora Vai-se elucidar! (Confusão geral) CLARINHA - Cesse o rumor! basta de bulha! (A Chica Valsa.) Dá-me tua mão!

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CHICA VALSA - Pois queres apertar... CLARINHA Não faças caso: isto foi pulha! Não deve a gente se zangar! CHICA VALSA(Apertando a mão de Clarinha.) - Pois bem! SAMPAIO - Mas ouçam cá! CLARINHA (A Sampaio.) - Neste momento O que de melhor vai fazer, Pra reputação não perder, É aceitá-la em casamento! CHICA VALSA - E eu dou-lhe o meu consentimento! Em casa do juiz agora um baile invento! (A Sampaio.) Queira-me acompanhar. (Entra na casa do Juiz da festa acompanhada por Sampaio.) CORO - O que irá ela ali buscar? BARNABÉ (A Clarinha, que tem estado a chorar.) - Que vejo! Choras tu, Clarinha? CLARINHA - Eu não... BARNABÉ - Tu sim, que vendo estou! CORO - Então tu choras? CLARINHA (Enxugando os olhos.) - Já passou! BITU - Arrependeu-se a sinhazinha? Oh! se assim foi, eu lhe ofereço a mão! CLARINHA - Você não me conhece, não! De raiva é que é este choro! De raiva é que isto é! Perdi o meu tesouro! Perdi o Barnabé! (Estendendo a mão a Barnabé, sem olhar para ele.) Pois se eu lhe disser :"Toca" Ele é capaz, até De oferecer-me em troca, Em vez da mão... o pé... BARNABÉ (Tomando-lhe a mão com amor.) - Eu te juro! Eu rejuro Pelas cinzas do meu pai, Ó Clarinha Vida minha, Que o passado já lá vai! CORO - Que nobreza! Que franqueza! Que vergonha pro Bitu! Que barbeiro Cavalheiro! Casa-se Clarinha Angu!.., BITU (À parte.) - Ah! lá se vai o meu amor Como a mamã, porém, fará!... O que for Soará... CHICA VALSA (Voltando, acompanhada por Sampaio.) - Eu convido este ilustre auditório Pra na casa dançar do juiz!

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BARNABÉ - Ai, meu Deus! como eu sou feliz! Vou celebrar meu casório! CHICA VALSA - Pois vai casar-se mais alguém? Quem? CLARINHA - De Maria Angu A filha é noiva de Barnabé! Sou Clarinha Angu! Filho de peixe peixinho é! Olhem cá! Vejam lá! Sou Clarinha Angu! CORO - De Maria Angu A filha é noiva de Barnabé! É Clarinha Angu! Filha de peixe peixinho é! Olhem cá! Vejam lá! É Clarinha Angu! [(Cai o pano)]

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A CASADINHA DE FRESCO Imitação da ópera-cômica LA PETITE MARIÉE DE EUGÊNIO LATERRIER E ALBERTO VANLOO MÚSICA DE CARLOS LECOCQ Ópera cômica em três atos Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro fênix Dramática em 19 de agosto de 1876, e em São Paulo, no Teatro de São José em 5 de outubro do mesmo ano. PERSONAGENS O CAPITÃO GENERAL MANUEL DE SOUZA O MORGADO DE SÃO GABRIEL TEOBALDO BENTO UM MUDO UM ALFAIATE UM VIAJANTE OUTRO UM SOLDADO OUTRO CARLOS GABRIELA GERTRUDES BEATRIZ UMA COSTUREIRA Viajantes, peões, camaradas, estancieiros, oficiais de lanceiros, soldados, criados, povo, etc. A cena passa-se, o primeiro ato em Viamão e o segundo em Porto Alegre, província do Rio Grande do Sul. Tempos coloniais. ATO PRIMEIRO Pátio de uma estalagem. Portão ao fundo. Portas aos lados. CENA I BENTO, BEATRIZ, viajantes, estancieiros, camaradas, depois peões. (Os viajantes comem e bebem, sentados defrontes de pequenas mesas. Bento e Beatriz andam azafamados de um lado para o outro, servindo-os.) Introdução CORO - Mais presteza! Ligeireza! É petiscar e partir! A carreta com certeza sem demora vai sair.

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UM ESTANCIEIRO - Olá senhor! OUTRO - Olá senhora! OUTRO - É despachar! BENTO - Não val'zangar: inda tendes muita demora. BEATRIZ - Podeis com vagar mastigar BENTO (A um viajante.) - Provai desta botelha. BEATRIZ (A outro.) - Que belo pastelão! BENTO (A outro.) - Eis uma pinga velha! BEATRIZ (A outro.) - Não quer que o sirva, não? CORO - Mais presteza! etc. (Ouve-se o rodar de um carro, e o barulho dos guizos dos animais.) UM VIAJANTE - Atenção, rapaziada! Os guizos ouvi! CORO - Os guizos ouvi da tal carreta abençoada. (Entrada ruidosa de oito peões.) CORO DE PEÕES - Hop! Hop! Hop! Bonitos peões, lampeiros, ligeiros, ligeiros, lampeiros... Hop! Hop! Hop! vos dizem: Patrões, é já seguir sem tugir nem mugir. Eis os peões ligeiros, lampeiros! (Aprontam-se todos para seguir viagem.) BENTO - Escutai! Um costumezinho, ao qual convém vos conformar, a Beatriz, neste instantinho, vai, a cantar, vos explicar... CORO - Pois venha lá mais essa! BENTO - Beatriz, escarra e começa. Canção I BEATRIZ - Há muito já, fregueses meus, abriu-se a nossa hospedaria; tem sido um - louvar a Deus - lá no que toca à freguesia; mas a razão plausível é: desde que abriu-se esta casita a estalajadeira é bonita e o vinho é velho como a Sé. O vinho é bom! Mais um almude! Convém os copos esgotar! Da estalajadeira a saúde

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bebei! bebei! É de virar! TODOS - O vinho é bom, etc. II BEATRIZ - Ah! Portugal! Quem negará que o deus das vinhas o protege? A sua uva é um maná! deixai-lhe que o mundo lha inveje. Se, quanto a mim, formosa sou, é que aqui, nesta casita, a estalajadeira é bonita o vinho é... um vinho avô O vinho é bom, etc. Repetição do Coro Hop! Hop! Hop! etc (Saída geral e animadíssima. Carlos aprece ao fundo e observa inquieto a cena.) CENA II CARLOS, depois um ALFAIATE e uma COSTUREIRA CARLOS - Enfim! Foram-se enfim! Afinal! Se alguém aqui me viu! É hora do sinal... (Chamando alguém da esquerda.) Olá! UMA VOZ - Olá! CARLOS (Examinando a cena.) - Oh! meu Deus! se alguém deu por mim... O ALFAIATE -Psiu! CARLOS - Psiu! AMBOS - Silêncio! CARLOS - 'Stá pronto? O ALFAIATE - Já pronto está. CARLOS (Apontando para a direita.) - Entre para lá... O ALFAIATE - Já sei: por acolá (Vai saindo.) CARLOS - Falar não vá Hein? ... Olhe lá! Psiu!, etc. (Carlos conduz o Alfaiate à direita, e volta depois para a esquerda.) Oh! meu Deus! Se acaso alguém me viu! (Chamando.) Olá! UMA VOZ - Olá! (Aparece à esquerda a Costureira, também com um embrulho.) CARLOS - Psiu! etc. (Mesmo jogo de cena que com o Alfaiate. Carlos, depois de ter feito entrar a Costureira para a esquerda, dirige-se para o fundo, inquieto, sempre como se esperasse ainda alguém, e sai. Cessa a música.)

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CENA III BENTO, BEATRIZ, depois CARLOS (Bento e Beatriz, que reapareceram à porta, acompanharam todo o jogo de cena.) BEATRIZ - Titio? BENTO - Minha sobrinha? BEATRIZ - Vossa Mercê viu? BENTO - Tu reparaste? BEATRIZ - O que quer isto dizer? BENTO - Sei cá! este estrangeiro, que aqui chegou há oito dias, em companhia de um velhote e de sua filha, não me inspira lá muita confiança. BEATRIZ - No entanto o velhote tem cara de boa pessoa e a menina é bem simpática. BENTO - Sim, não duvido; mas o moço tem assim uns modos... BEATRIZ - tem uns modos assim... É um foguete; não pára! Preocupado, sombrio! Além disso, titio, dos viajantes moços que tem aqui pousado, é o único que ainda não me deu sequer um beijo... BENTO - Como é lá isso? Pois ele não te beijou ainda? BEATRIZ (Suspirando.) - Não, titio! E creio que se irá embora sem cumprir essa formalidade! BENTO - Oh! Oh! Um homem que não beija a sobrinha do estalajadeiro! A coisa é mais séria do que eu supunha! Se fossem conjurados?! BEATRIZ - O moço é estrangeiro: não deve conjurar. BENTO - Quem nos diz a nós que não é tão brasileiro como tu? Estes conjurados de tudo se lembram! Uma conjuração em minha casa! Não me faltava mais nada! BEATRIZ - O Senhor Capitão-general! dizem que não é para graças! BENTO - Estou perdido! O desembargo do paço manda-me enforcar como toda a certeza! BEATRIZ - É preciso sabermos ao certo que gente é esta! BENTO - Tens razão... tens razão... BEATRIZ - mas como há de ser? BENTO - Muito simplesmente; vendo e ouvindo. Olha, vai espiar aquela porta e eu esta. (Vai espreitar à direita; a sobrinha faz o mesmo à esquerda.) CARLOS (Entrando.) - E o meu amigo, nada de aparecer! Queira Deus que não me deixe a ver navios! (Vendo Bento e Beatriz.) Hein? O que é aquilo? (Aproxima-se de bento e dá-lhe um pontapé.) Ah! patife! BENTO (Gritando.) Ai! BEATRIZ (Voltando-se.) - Viu alguma coisa, titio?... BENTO (Esfregando a parte ofendida.) - Não! Isto é , vi estrelas. CARLOS (Agarrando-o pela orelha) - O que fazia você ali? Musque-se! BENTO (Tremendo.) - Sim, meu fidalgo. Anda daí Beatriz! BEATRIZ - Vamos, titio! BENTO - Aqui anda maroteira, e grande maroteira! (Saem Bento e Beatriz.) CENA IV CARLOS, só [CARLOS] - É isto! ando cercado de espiões. De um momento para outro tudo se descobrirá, e então... Começo a arrepender-me de haver dado esse passo! É o diabo! Quem me mandou sair de Lisboa? (O Alfaiate e a Costureira entram. Música.) Ah! finalmente deram conta do recado... (Dá-lhes dinheiro. O Alfaiate e a Costureira saem.) CENA V CARLOS, depois GABRIELA CARLOS - Ninguém os viu entrar nem sair... Muito bem! (Ao público.) Se eu disser que estes dois indivíduos, que assim envolvo no mais tenebroso mistério, são simplesmente... Qual! Ninguém acredita!

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São simplesmente um alfaiate e uma costureira que trazem a roupa de noivado de meu futuro sogro e de minha futura mulher... (Com terror.) Ó céus! falei tão alto! Creio que ninguém me ouviu! (Olhando em volta de si.) Não... Ninguém... Respiro! (A porta de Gabriela abre-se lentamente.) Vem alguém! Calma, sangue freio! GABRIELA (Entrando.) - Aqui estou, meu queridinho! CARLOS (À parte.) - Gabriela! E como vem vestida! Dueto GABRIELA - Eis-me afinal, ó meu marido! CARLOS (À parte.) - Ó céus! já seu marido... GABRIELA - Querido amor! CARLOS - Anjo querido! GABRIELA - Vem para mais perto de mi... CARLOS - De ti? GABRIELA - De mi... CARLOS (Aproximando-se, receoso). - Eis-me aqui. Coplas I GABRIELA - Venho mostrar-me ao noivo meu, quase a chegar o f'liz momento, a ver se sou do agrado seu, vestida já pro casamento. Saber do meu futuro quis se este vestido é do seu gosto, e se achas a cor destes rubis d'acordo coa cor do meu rosto. É mui suspeita a opinião daquele que por mim palpita; mas diga lá, por compaixão, se a noivazinha está bonita. II - Mas, oh! meu Deus! que quer dizer este ar assim tão inquieto? Pois não lhe dá nenhum prazer coroado ver nosso afeto? Acaso ao gosto seu não 'stou? Repare bem... não viu direito... Do mesmo parecer não sou, pois o vestido está bem feito. Aflito esteja, meu senhor; mas se não quer me ver aflita, diga-me lá, faça o favor, se a noivazinha está bonita. (Carlos volta a cabeça; Gabriela afasta-se despeitada.) Amor, então, já me não tem? CARLOS - Juro fazer quanto em mim caiba para que sejas feliz porém, convém, amor, que ninguém saiba... GABRIELA - Como ninguém?...

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CARLOS - - Ninguém! Ninguém! Eu te falo sério... Não duvides, não! Lá no coração guardemos o mistério deste ardente amor... Ninguém seja sabedor deste amor... GABRIELA - Só posso então dizer que te amo... CARLOS - Bem devagar. GABRIELA - Bem devagar? Pois assim seja: eu não reclamo. CARLOS (À meia voz.) - Eu te amo! GABRIELA (No mesmo.) - Eu te amo JUNTOS - Eu te falo!} } sério Tu me falas} Não duvides } } não Não duvido } Lá no coração, etc. GABRIELA - Mas por que todo este mistério? Quem se casa corre perigo? CARLOS - O casamento é um perigo para os homens em geral, e para mim em particular... Oh! GABRIELA - O que receias tu? Não gozas de tanta influência? Não é o privado do Capitão-general? CARLOS - O Capitão-general! Oh! não pronuncieis esse nome, Gabriela! Se ele soubesse... GABRIELA - O quê? CARLOS - Não me perguntes mais nada! Amas-me, não é assim? Casemo-nos. GABRIELA - Decerto! Isso é coisa resolvida! (Ouve-se rumor de fora.) Jesus! Aí vem papai! Ele é que não está nada satisfeito com estas reservas! CARLOS - É teu pai? Aí vem ele deitar a casa abaixo! E todo mundo vai ouvi-lo! CENA VI OS MESMOS e CASTELO BRANCO CASTELO BRANCO (Entrando de muito mau humor.) Palavra d'honra! Isto não se comenta! (Vendo Carlos.) Ah! é Vossa Mercê, Monsiu? Quisera vê-lo no inferno, e ao seu casamento absurdo! CARLOS - Então! tenha calma, senhor meu sogro. GABRIELA - O que é papai? o que é? CASTELO BRANCO - O que é? O que é? Não é nada! (Com toda a calma.) Ah! falta-me um botão. (Zangado.) Quando digo que tudo me chega! GABRIELA - É só isso? Descanse: hei de pregá-lo, papai. CASTELO BRANCO - Pois bem, pois bem. Mas não me posso conter! Quero desabafar! por que cargas d'alhos, eu, Antonio Pedro Salema Coutinho Castelo Branco, morgado de São Gabriel e podre de rico, consenti no casamento de minha filha com Vossa mercê, que não é meu compatriota, nem tem, nem pode ter posição oficial definida? GABRIELA - Eu sempre gostei muito do Senhor Carlos, papai. CASTELO BRANCO - Não é um motivo plausível! GABRIELA - pois não é? CASTELO BRANCO - O motivo foi outro. Já lhes disse que sou podre de rico, e, por conseqüência, proprietário de muitas propriedades. Uma dessas propriedades, e justamente aquela que ligo mais apreço, de tal modo está situada, que tira a vista do rio ao palácio do Capitão-general. Muitas vezes

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chegou a dizer-me o Capitão-general: "Morgado de São Gabriel, você não quer vender-me o cochicholo." recusei sempre ceder-lhe o cochicholo. Então, vai um belo dia e diz-me o Capitão-general: "Morgado de São Gabriel, você não quer vender-me o cochicholo? hei de possuí-lo sem gastar um real. Vou mandar arbitrá-lo pela municipalidade, e babau!" CARLOS - Mas não sei que relação possa haver... CASTELO BRANCO - Espere! Um dia pareceu-me que a rapariga tinha certa inclinação por Vossa mercê. GABRIELA - Oh! muita, muita, muita, papai! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga. Inclino-me a crer que, de seu lado, Vossa Mercê tinha também certa inclinação pela rapariga. Iam ambos por um plano inclinado! Vai uma vez , convidei-o para jantar. No dia seguinte Vossa mercê apresentou-se, também para jantar, mas desta vez sem ser convidado. Assim aconteceu durante um mês inteiro. Vocês iam numa desfilada... GABRIELA - Numa grande desfilada! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga. O mal estava feito. O que não tem remédio... CARLOS - Mas a que conclusão deseja chegar o senhor meu sogro? CASTELO BRANCO - A que conclusão? pois Vossa Mercê não compreendeu o meu plano? Eu dissera com os meus botões: o Carlos é privado do Capitão-general: se lhe dou a rapariga, eis-me sogro do privado; excelente meio de não ser privado de minha propriedade. GABRIELA (Curiosa.) - Como assim? pois o papai casa-me para segurança de sua propriedade? CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! Infelizmente o resultado foi nulo, pois o Monsiú declarou ser preciso que o casamento se efetue clandestinamente! GABRIELA - Mas, papai, eu já lhe disse que tanto me faz clandestinamente como às claras. CASTELO BRANCO - A ti, tanto faz assim como assado; mas a mim? O que lucro eu com semelhante casamento? serei o sogro do privado, é certo; mas de que serve tudo isso, se hei de ser um sogro anônimo? CARLOS - Enfim, onde quer chegar? CASTELO BRANCO - Quero desabafar, eis o que eu quero! Vamos, não percamos mais tempo! Toca para a matriz! Acabemos com isto, acabemos com isto! GABRIELA - Sim, sim, eu acho bom! CARLOS - Um momento: estou à espera de... CASTELO BRANCO - De quem? CARLOS - precisamos de dois padrinhos... Um deles já está lá dentro... É um mudo! CASTELO BRANCO - Um mudo! CARLOS - Tenho certeza de que não há de dar com a língua nos dentes. Infelizmente não pude arranjar dois mudos. Escrevi a um amigo íntimo e seguro. Já devia aqui estar. CASTELO BRANCO - Se convidarmos o dono da estalagem? GABRIELA - É verdade; dir-lhe-emos que meta esse serviço na conta. CARLOS - Deus me defenda! Um homem curiosíssimo que anda a espreitar às portas! iria apregoar por toda a parte meu casamento! Nunca! Nunca!... CASTELO BRANCO - Portanto... GABRIELA - Se o tal amigo tardar? CARLOS - Esperaremos. CASTELO BRANCO (De mau humor.) - Oh! mas isto é demais, senhor Monsiú! Isto é demais! CARLOS - Senhor Morgado de São Gabriel! CASTELO BRANCO - Há oito dias que Vossa Mercê parece estar a caçoar comigo e com a rapariga. É demais! GABRIELA - Papai! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! (A Carlos.) Convidamos o estalajadeiro? CARLOS - Não! não e não! CASTELO BRANCO - Tome sentido Monsiú: eu posso desmanchar a igrejinha! CARLOS (Encolhendo os ombros.) - Pois desmanche: é o mesmo. GABRIELA - Hein! Pois é o mesmo? CASTELO BRANCO - Mas devo observar-lhe que se não devia meter de gorra em minha casa!

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CARLOS - Diga antes que me armou uma ratoeira! CASTELO BRANCO - Por que razão vinha jantar comigo? CARLOS - Se não fosse convidado... CASTELO BRANCO - Por que aceitava os meus convites? CARLOS - Que culpa tenho de que sua filha me pespegasse como um cáustico? GABRIELA (Furiosa.) - Um cáustico, papai, um cáustico!... CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! (A Carlos.) Estava em suas mãos desviá-la. GABRIELA - A culpa foi sua. CARLOS - Minha! Terceto CARLOS - Tão amável não fosse a senhora... GABRIELA - Não me houvesse jurado afeição... CASTELO BRANCO - Meu genro não seria agora, se não gabasse tanto a sua posição! CARLOS - ... de certo a não teia amado! GABRIELA - ... não me teria apaixonado! CASTELO BRANCO - Eu não havia de lembrar de o convidar para jantar! GABRIELA - Mas o senhor é tão galante... CARLOS - Mas a senhora é tão chibante... CASTELO BRANCO - Tal posição! GABRIELA - Ai! que ilusão! Juntos CASTELO BRANCO GABRIELA E CARLOS - Estou despeitado! - Fui de seu agrado Que sogro eu sou! e já não sou! 'Stá tudo acabado... 'Stá tudo acabado... Tudo entre nós acabou! Tudo entre nós acabou! CARLOS - Oh! Felizmente inda podemos sanar o mal que feito está! GABRIELA - O dito por não dito demos! A mim bem pouco se me dá! CASTELO BRANCO - Tudo entre nós acabará! CARLOS - Pois não, senhor morgado! É já! CASTELO BRANCO - Isto é, se for do seu agrado... CARLOS - Senhor, não vai ficar zangado... CASTELO BRANCO - Tudo acabou! GABRIELA e CARLOS - Tudo acabou! CASTELO BRANCO - Já despir este fato vou! GABRIELA e CARLOS - Tudo acabou! CASTELO BRANCO - Meu genro, tudo acabou! (Silêncio. Cada um toma direção diversa.) GABRIELA - Adeus, senhor! CARLOS - Adeus, minha senhora! GABRIELA (Parando à porta, à parte.) - Porém... CARLOS (Mesmo jogo de cena, no fundo.) - Porém... JUNTOS - Meu Deus! quero-lhe bem! Quem o negará? Ninguém! Ninguém!

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CARLOS (Voltando.) - De novo o coração se humilha... GABRIELA - De novo o meu também se humilha... CASTELO BRANCO - Então, minha filha? CARLOS - Meu anjo! GABRIELA - Meu amor! CASTELO BRANCO - Voltam ao velho estado? GABRIELA - Meu amor! CARLOS - Meu anjo! JUNTOS - 'Stá tudo arranjado. CASTELO BRANCO - Nada acabou? CARLOS e GABRIELA - Nada acabou! CASTELO BRANCO - Oh! já não está cá quem falou! CARLOS e GABRIELA - Nada acabou! CASTELO BRANCO - meu genro, nada acabou! JUNTOS CASTELO BRANCO GABRIELA E CARLOS - Não estou despeitado! - Fui de seu agrado Que sogro eu sou! E ainda sou! Nada está acabado... Nada está acabado... Nada entre nós acabou! Nada ente nós acabou! CASTELO BRANCO (Rosnando sempre.) - Está bem, está bem; fique de parte o estalajadeiro. Esperaremos... GABRIELA - Vê se arranja isso depressa. CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! Vamos. Até logo, senhor meu genro. CARLOS - Fale mais baixo... CASTELO BRANCO (Baixinho.) - Até logo, senhor meu genro. (Vai saindo com Gabriela.) CARLOS (Idem.) - Até logo, senhor meu sogro. GABRIELA (Voltando, baixinho.) - Veja se arranja isso depressa. (Sai.) CENA VII CARLOS, BENTO e BEATRIZ CARLOS - E o outro padrinho que não aparece? Haveria algum transtorno? BENTO (Que entra pelos fundos com Beatriz, baixinho.) - Olha, ele fala sozinho... Oh! estes estrangeiros! BEATRIZ - Estes conjurados! CARLOS (Vendo-os.) - Ainda vocês! o que há?... BENTO - Não vos zangueis! Vínhamos prevenir-vos... BEATRIZ - Que vieram agora mesmo... BENTO - Neste instante... BEATRIZ - Não há cinco minutos... BENTO - Qual cinco minutos... CARLOS - Então? Então? BEATRIZ - Trazer esta cartinha... CARLOS - Está bem! Dê cá! BENTO (A Beatriz.) Vai tu, vai levar-lhe. Eu sou capaz de apanhar outro pontapé, e tu não! BEATRIZ (Aproximando-se com precaução.) Aqui tem... (Dá-lhe a carta e retira vivamente.) BENTO (Levando-a) - Anda daí... Credo! Um conjurado. CARLOS (Que abriu e leu a carta.) - Oh! Sapristi! Isto só a mim acontece! O padrinho não pode vir: estou reduzido ao mudo. Todavia é preciso outro... Hei de arranjá-lo por força.

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CENA VIII CARLOS E MANUEL DE SOUZA MANUEL DE SOUZA (Fora.) - Estou muito apressado! Façam com que meu cavalo coma a galope! Não me posso demorar! (Entra.) CARLOS - Um estancieiro!... MANUEL DE SOUZA - Três dias de atraso! Gertrudes deve estar furiosa! CARLOS (Observando.)- Esta cara não me é estranha! MANUEL DE SOUZA (No mesmo.) - Não me engano! É ele... CARLOS (Dirigindo-se a ele.) - Não é por ventura o Senhor Manuel de Souza? MANUEL DE SOUZA - Não é ao Monsiú Carlos que tenho a honra de... CARLOS - Exatamente. Foi pelo ano passado... MANUEL DE SOUZA - Tomávamos banhos no rio... em Porto Alegre. CARLOS - Eu nadava como um peixe... MANUEL DE SOUZA - Eu nadava como uma pedra... CARLOS - Tu andavas em uma barquinha.. MANUEL DE SOUZA - De repente a barquinha virou-se, e bumba... CARLOS - Ias morrer afogado, quando agarrei-te pelos cabelos e trouxe-te à tona d'água. MANUEL DE SOUZA - Eu estava salvo! Devo-te a vida, meu bom Carlos. CARLOS - Ora este Manuel de Souza! (À parte.) Tenho padrinho (Alto.) Não fazes idéia do prazer que me causa a tua presença! Tu vais bem, não vais? MANUEL DE SOUZA - Menos mal... Isto é, eu casei-me... CARLOS - Casaste-te? pois, aqui onde me vês, vou fazer outro tanto! MANUEL DE SOUZA - Oh! diabo! CARLOS - E mesmo a esse respeito, preciso muito de ti, é indispensável que me prestes um serviçozinho. MANUEL DE SOUZA - Tenho a observar-te que estou com muito pressa. CARLOS - Apenas uma hora. MANUEL DE SOUZA - Uma hora! Sinto muito não te poder ser útil, meu caro, mas minha mulher está à minha espera. CARLOS - Ela que espere mais uma hora. Que inconveniente há nisso? MANUEL DE SOUZA - Que inconveniente? Ah! bem se vê que não sabes quem é Gertrudes! Que mulher, meu amigo! ela me tem um amor, mas que amor tão veemente que, não me lembra sob que pretexto, fui obrigado a ausentar-me de casa. Devia estar de volta no fim de quinze dias, e há dezoito que saí de casa. Faz tu idéia da recepção que me aguarda! Além de tudo, Gertrudes tem um péssimo costume. CARLOS - Qual é? MANUEL DE SOUZA- Como gosta muito de montar a cavalo, tem sempre uma chibatinha na mão... e quando zanga-se comigo... zás... CARLOS - E tu consentes nisso? MANUEL DE SOUZA - Que queres tu? Ela tem-me um amor! CARLOS - E tu temes a chibatinha! Pois bem: uma vez que j[á estás habituado a semelhante sistema, algumas carícias de mais ou de menos, para servires um amigo que te salvou a vida... MANUEL DE SOUZA - Mas... CARLOS - É absolutamente preciso que me sirvas de padrinho. MANUEL DE SOUZA - De padrinho! Pois ainda não estás batizado? CARLOS - Padrinho de casamento... MANUEL DE SOUZA - Pois é para isso? Por que não agarras tu outro sujeito, que tenha menos pressa? CARLOS - Porque o meu casamento deve ser ignorado por todos... Já arranjei um mudo. Preciso de outro... Manuel de Souza, esse outro mudo hás de ser tu. MANUEL DE SOUZA - Mas por quê? CARLOS - Por quê... queres tu saber?

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MANUEL DE SOUZA - Sim... não! tenho muita pressa. CARLOS - Pois bem! Escuta... e treme! MANUEL DE SOUZA (À parte.) - Diabo! uma história... Quanto mais pressa, mais vagar... CARLOS - Como muito bem sabes, Manuel de Souza, eu sou há muito tempo, o amigo... o privado do Capitão-general. Vim com ele de Lisboa, e até hoje tenho-me conservado sempre ao seu lado. Hoje esse tirano está viúvo, mas, antes disso, era casado... MANUEL DE SOUZA - Ah! (Lembrando-se.) Naturalmente, pois se é viúvo... CARLOS - muito bem! A mulher do Capitão-general, uma italiana de temperamento de fogo, de sangue cálido, de alma ardente e vulcânica... MANUEL DE SOUZA - Como Gertrudes... CARLOS - Era admiravelmente formosa... eu andava pelo beicinho... MANUEL DE SOUZA - Como eu... CARLOS - Era inevitável o escândalo... Um belo dia, ou antes um mau dia, o Capitão-general surpreendeu-nos em um colóquio que... MANUEL DE SOUZA - Não deites mais na carta... CARLOS - Em meu lugar, outro qualquer abriria a janela, e deixar-se-ia escorregar pela goteira. Eu fui sublime! Fiquei! Coloquei-me entre a mulher e o marido ultrajado, e exclamei: "Perdoai-lhe, senhor! É de sangue que precisais! Aqui tendes o meu! É vosso!" MANUEL DE SOUZA - Foste muito nobre, mas um tanto estúpido... CARLOS - "Um escândalo, respondeu ele, para dar lugar a que, ainda em cima, zombem de mim! Não! Minha vingança há de ser mais calma. Tranqüiliza-te. Tu és o meu privado; continua a sê-lo, sê-lo-ás para todo o sempre!" MANUEL DE SOUZA - Ora ali está um homem comedido! CARLOS - Ouve o resto. "Era teu amigo; de hoje em diante o serei mais que nunca, porém..." MANUEL DE SOUZA - Ah! temos um porém... CARLOS - "Algum dia te hás de casar... Emprazo-te para lá... Nesse dia, meu amigo, ajustaremos contas, e então, dente por dente, olho por olho. Fizestes das tuas, eu farei das minhas. Entendeste?" "Sim". "Muito bem! Vai amanhã jantar comigo. Seremos os mesmos um para o outro". - Como de fato, desde esse momento, nem mais uma palavra a respeito... "Diante do mundo, o sorriso das salas; no fundo. o ódio e a vingança!" MANUEL DE SOUZA - Tudo isso que me acabas de contar é muito interessante; mas... Adeus. meu amigo, estou com muita pressa. CARLOS (Detendo-o.) - Bem sei o que me queres dizer: nesta situação restava-me tomar um partido muito simples: não casar-me nunca.. MANUEL DE SOUZA - É verdade! CARLOS - Disso lembrei-me eu... Estava resolvido a ficar solteiro toda a minha vida, ou toda a vida do Capitão-general, se fechasse o olho primeiro que eu... Infelizmente, porém, o homem é um ser incompleto, que, por ser incompleto, cedo ou tarde sente a necessidade de completar-se. MANUEL DE SOUZA - E é hoje que te completas? CARLOS- Como vês. O meu casamento deve ser efetuado no mais profundo segredo. Para mais segurança fiz com que alguns médicos de Porto Alegre me recomendassem os ares do campo a um reumatismo que não tenho. Desde que aqui estou, tenho escrito ao Capitão-general, dizendo-lhe que vou cada vez pior, a fim de que ele não desconfie de minha prolongada estada em Viamão. Ontem mesmo (vê tu que excesso e precaução!) mandei-lhe dizer que estava quase a bater a bota. Tal é, Manuel de Souza, a narração exata e dolorosa que tinha a fazer. Convirás que é absolutamente preciso que me sirvas de padrinho. Ficas, não é assim? MANUEL DE SOUZA - Homem... é que... Como já tive ocasião de dizer-te, Gertrudes... Gertrudes não é nada, mas a chibatinha... CARLOS - Só uma hora! MANUEL DE SOUZA - Uma hora! É muito, meu amigo, é muito! CARLOS - Vamos! Uma hora, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Pois vá lá! Ora adeus! Diga Gertrudes o que quiser! Fico! CARLOS - Ah! eu logo vi! Obrigado, muito obrigado! (Aperta-lhe a mão com efusão.)

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CENA IX OS MESMOS, BENTO, BEATRIZ, depois CASTELO BRANCO, GABRIELA e o MUDO BEATRIZ (Entrando com Bento, a Manuel de Souza.) - Está pronto o cavalo. CARLOS - Deixe-o estar. Não é preciso por ora. BEATRIZ - Sim, senhor. BENTO (Examinando a Manuel de Souza.) - É outro que tal! Decididamente isto não é uma estalagem; é um valhacouto de conjurados... BEATRIZ - Estamos bem aviados, titio. (Saem.) CARLOS - Agora, mãos à obra! (Indo à porta de Castelo Branco.) Olá Senhor Morgado de São Gabriel! Gabriela! CASTELO BRANCO (Entrando com a filha.) - Podemos ir? CARLOS - Sim, senhor. (Apresentando Manuel de Souza.) Meu padrinho, o Senhor Manuel de Souza, a quem salvei a vida. (Cumprimentos.) MANUEL DE SOUZA - Estou com muita pressa. Vamos ligeiro, hein? CARLOS - A demora não há de ser por mim. Vou buscar o mudo. (Chamando para dentro.) Oh! Senhor Mudo... Psiu! Venha cá! (Entra o Mudo e cumprimenta a todos.) MANUEL DE SOUZA - Então você é mudo? (O Mudo faz sinal afirmativo.) Não pode dizer com a boca? É preciso estar a ... (Arremedando o Mudo, ri-se bestialmente - a Carlos.) Saiu-te ao pintar, hein? CARLOS - E baratinho... Vinte cruzados só... Mas vamos, vamos embora! TODOS - Vamos embora! Quinteto CARLOS - É já safar, sem mais tardar sem haver demora! GABRIELA - Com precaução, com prontidão! vamo-nos embora! TODOS É já safar, etc. MANUEL DE SOUZA - É já partir com todo o afã! O MUDO - An, an, an, an! CARLOS - Cautelosos pressurosos convém sairmos daqui! MANUEL DE SOUZA - Tempo é de andar daí! O MUDO - Hi, hi, hi, hi! GABRIELA - Com prudência, com cadência, partamos sem tardar! TODOS - Sem demorar! Já, já, já, já! O MUDO - Ah! Ah! Ah! Ah! (Saem todos. O Mudo fica só em cena continuando mentalmente o motivo da saída. Vendo que está só.) O MUDO (Confidencialmente.) - Eu sou mudo de profissão; mas se isto só me render o ajuste, mudo de profissão! (Sai a correr.)

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CENA X BENTO, BEATRIZ, depois GERTRUDES BENTO - Então, minha sobrinha? BEATRIZ - Então, titio? BENTO - Não é o que te digo? Aqueles desgraçados vão revoltar o interior da província! BEATRIZ - Ah! titio! O que será de nós!... GERTRUDES (Entrando bruscamente com uma chibatinha na mão.) Olá! Oh! de casa! Venha alguém! (Vendo Bento e Beatriz.) - Olá velhote, olá rapariga! BEATRIZ (Voltando-se.) - Uma senhora! BENTO (Com solicitude.) - Oh! minha senhora, vós... GERTRUDES (Sem lhe dar tempo de falar.) - Nem claro, nem moreno... BENTO - Senhora... GERTRUDES (No mesmo.) - Nem alto, nem baixo... BENTO - Senh... GERTRUDES (No mesmo.) - Nem gordo, nem magro; figura insignificante, boca sem expressão; sorriso desenxabido; mas com um certo ar de distinção... Nem muito nem muito pouco... São estes os seus sinais. Viram-no? (Passeia agitando a chibata). BEATRIZ - O que diz ela? BENTO - Nem muito, nem muito pouco... (Com uma idéia.) Ah! é a senha... a senha dos conjurados... Senhora, também pertence a ... GERTRUDES -A quê, homem de Deus? BENTO - Bem sabe... (Baixo.) À conjuração.. GERTRUDES - Você é um tolo! Quem foi que lhe falou em conjuração? É meu marido, é o meu Manuel de Souza que procuro. BENTO - Seu marido! GERTRUDES - Não percebem? Meu marido! Só tenho aquele e não me faz conta perdê-lo! Ária O meu amor. meu tudo, o grande cabeçudo, grandíssimo infiel, - meu belo Manuel; o meu gentil marido, meu confidente infido, - de casa se ausentou; sozinha me deixou! Ai! quanto é mau, embora belo! O Manuel de mim já se esqueceu! Pra ele todo meu desvelo, pra mim o esquecimento seu... Mas se o ciúme me maltrata o desvairado coração, (Agitando a chibata.) vinga-me, olé! me vinga esta chibata, a fustigar o maganão. Olá! Toma lá! Olá! Meu sandeu! Toma lá que te dou eu, judeu!

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À vez primeira em que nos vimos, amor veemente aqui brotou; os nossos corações unimos: ai, meu Deus! foi quanto bastou. pouco depois de a ele unida (recordação que mal me faz), Manuel fez-me uma partida... Eu estava armada... Ah! meu rapaz!... Olá!, etc. (Com uma expressão langorosa.) Ah! Ah! Ah! O meu amor, meu tudo, etc. BENTO - Ah! a senhora anda à procura de seu Manuel? GERTRUDES - Ele está cá, pois não está! Ah! meu senhor estalajadeiro, diga-me, diga-me que ele está cá. BENTO - Sinto muito dizê-lo, senhora, mas... nunca o vi mais gordo. GERTRUDES - Aquele monstro! Aquele miserável! Semelhante conduta! Aposto que ele neste momento engana-me com mulheres, talvez!... Ah! senhor estalajadeiro, se você soubesse a história do retrato... BENTO - Que retrato! GERTRUDES (Mostrando um medalhão que tira d algibeira.) - Deste que trago sempre aqui, na algibeira... uma senhora de Porto Alegre por quem ele andou outrora apaixonado. (Abrindo o medalhão.) Você conhece por acaso alguma senhora de Porto Alegre, que se pareça com isto? BENTO - Não... BEATRIZ - Nunca a vi mais gorda... GERTRUDES (Fechando o medalhão com cólera.) - Ó raiva! Sempre que me lembro de semelhante velhacada, fico de tal forma impressionada... Senhor estalajadeiro, segure-me... eu... (Finge que desmaia nos braços de Bento.) BENTO - Então o que é isto, minha senhora? o que é isto?... GERTRUDES (A Beatriz, com voz sumida.) - Menina? BEATRIZ - Senhora? GERTRUDES - Quero tomar alguma coisa... alguma coisa quente! BEATRIZ - Quer ir lá para dentro? GERTRUDES - Não sei! Estou tão fraca! Vou experimentar... (Dá alguns passos sustida por Bento e Beatriz; depois endireita-se bruscamente e entra na estalagem, agitando a chibata.) - Ah! velhaco! alma de cão! Se te apanho... (Beatriz segue-a.) BENTO (Só.) - Com certeza esta senhora tem uma aduela de menos! (Rodar de carruagem fora.) Hein? uma carreta. (Vai ver ao fundo.) Que vejo! Soldados! Misericórdia! A conjuração foi descoberta! Vão ser presos os conjurados, e aqui estou eu comprometido. CAPITÃO-GENERAL (Fora.) - Anda daí, Teobaldo. TEOBALDO (Fora.) Pronto! CENA XI BENTO, CAPITÃO-GENERAL e TEOBALDO CAPITÃO-GENERAL (Entra, acompanhado por Teobaldo.) - Muito bem! Esperem lá fora! (A Bento.) Você que é o dono desta estalagem? BENTO - Eu é que sou o dono desta estalagem. (À parte.) Estou arranjadinho... CAPITÃO-GENERAL - Aproxime-se BENTO (Tremendo.) - Às vossas ordens. CAPITÃO-GENERAL - Viajo incógnito; mas como sei o que são estas estalagens, julgo conveniente preveni-lo que sou o Capitão-general...

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BENTO (Aterrado.) - O Capitão-general!!! Céus! ... (À parte.) Estou aqui, estou enforcado...) CAPITÃO-GENERAL - Você tem um quarto desocupado? BENTO (Balbuciando.) - Senhor... TEOBALDO - Sua Excelência pergunta se você tem um quarto desocupado!... BENTO (Atrapalhado.) - Posso mandar preparar a sala de espera... CAPITÃO-GENERAL - Mas a tal sala de espera é mais cara? BENTO (Sorrindo amavelmente.) - Saiba Vossa Excelência que sim. CAPITÃO-GENERAL - Não importa: hei de lha pagar baratinho. BENTO (Sorrindo amargamente.) - Vossa Excelência manda. CAPITÃO-GENERAL - Mas vamos ao que aqui me traz, e responda sem circunlocuções! BENTO (Intimidado) - Senhor... TEOBALDO - Sem circunlocuções! BENTO - Sem circun... Como? CAPITÃO-GENERAL - Como vai ele? BENTO - Mas... CAPITÃO-GENERAL - Você não tem aqui um doente? BENTO (Surpreso.) - Ah! (Mudando de tom.) Ah! Sim. Sim. (À parte.) Ele quer sondar-me... CAPITÃO-GENERAL - Ele passou melhor a noite? BENTO (Atrapalhado.) - Saiba Vossa Excelência que... isto é... TEOBALDO (Batendo-lhe no ombro.) - Sua Excelência pergunta se ele passou melhor a noite! BENTO - Oh! Oh! não bata no púlpito! CAPITÃO-GENERAL (Vivamente.) - Mas ao menos não morreu?? BENTO - Oh! não! Não! CAPITÃO-GENERAL - Respiro! BENTO (À parte.) - Se eu percebo... CAPITÃO-GENERAL - Mande dar palha ais meus animais, ande! BENTO - Saiba Vossa excelência que nesta ocasião só há cevada de muito boa qualidade... CAPITÃO-GENERAL - É mais cara? BENTO (Sorrindo amavelmente.) - Saiba Vossa Excelência que sim... CAPITÃO-GENERAL - Não importa! hei de lha pagar baratinho. BENTO (Sorrindo amargamente.) - Vossa Excelência manda. CAPITÃO-GENERAL - Musque-se! BENTO - Vossa Excelência manda. (Sai) CENA XII O CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO, depois CARLOS CAPITÃO-GENERAL - Ora esta! Esqueci-me de perguntar a este tolo onde é o quarto de Carlitos, vai tu saber , Teobaldo. TEOBALDO (Saindo.) - Num abrir e fechar d'olhos. CAPITÃO-GENERAL (Só). - Carlitos assustou-me com este bilhete! (Lendo.) "Sinto-me fraco. tenho medo de não amanhecer com vida". - Mal recebi hoje pela manhã estas letras, corri... Deus queira que haja esperanças de salvá-lo! CARLOS (Entrando.) - Eis-me finalmente casado. (Dá alguns passos e acha-se cara a cara com o Capitão-general.) Ah! CAPITÃO-GENERAL (Admirado.) - Pois quê! És tu?!... CARLOS (À parte.) - O Capitão-general! E Gabriela que... CAPITÃO-GENERAL - Eu julgava encontrar-te em posição horizontal! CARLOS - Vossa Excelência bem sabe... O reumatismo agudo é uma moléstia que vai e vem, vem e vai... CAPITÃO-GENERAL - Um reumatismo agudo é grave! mas estás com muita cara... teu último bilhete sobressaltou-me sobremodo. Corri! Voei!

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CARLOS (À parte.) - Desalmado! Pintei o meu estado feio demais. (Alto, procurando levá-lo para fora.) Vossa Excelência tomou aposentos? CAPITÃO-GENERAL - Teobaldo anda a tratar disso. Ah! meu querido Carlitos, quanto folgo por encontrar-te em posição vertical! CARLOS (Cada vez mais inquieto e à parte.) - Gabriela está aí, está a chegar... CAPITÃO-GENERAL - É que... como não ignoras, tua vida é-me preciosa como a minha. (Batendo-lhe no ombro amigavelmente.) Hein? Negarás que a tua vida é-me tão preciosa... CARLOS (Inquieto sempre) - Sim... sim... CAPITÃO-GENERAL - Felizmente estás muito moço ainda; tens o futuro diante de ti. Mais dia menos dia, casas-te (Movimento de Carlos.) Tomara eu já! Há de ser grande a alegria! E aqui estou eu, que desde já prometo assistir às tuas bodas! Rondó - Um dia, olé! te casarás... Muito m'hei de rir... Tu verás... Mais do que tu 'starei contente... Bem certo estou: procurarás e com certeza encontrarás para mulher - mulher ardente... - Um dia, olé! te casarás... Muito m'hei de rir... Tu verás... Mais do que tu 'starei contente De minha mão receberás Tua mulher pura, inocente; muito feliz então serás! com que fervor a adorarás! Mas o fervor que sentirás Não será muito mais fervente Que o meu fervor seguramente. Ah! Ah! - Um dia, olé! te casarás... Muito m'hei de rir... Tu verás... Mais do que tu 'starei contente CARLOS - Não duvido que assim seja... Oh! mas esse dia ainda está muito longe. (À parte.) Quem não está longe é Gabriela. CAPITÃO-GENERAL - Veremos! Tudo chega! CARLOS (À parte.) - Quem vai chegar é ela. (Ouve-se a voz de Castelo Branco.) Eles vêm aí! Agora é que são elas! CENA XIII OS MESMOS, CASTELO BRANCO e GABRIELA CASTELO BRANCO (Entrando com Gabriela.) - Senhor Monsiú, Senhor Monsiú! Vossa mercê veio a correr! CARLOS (À parte.) - Antes não viesse! CASTELO BRANCO - E despediu-se à francesa... Não admira, é francês. GABRIELA - Onde é que se meteu? CAPITÃO-GENERAL - Ó que linda mulher! CASTELO BRANCO - O Capitão-general! (Inclinando-se, a Gabriela.) Cumprimenta, rapariga.

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CARLOS (À parte.) - Estou em brasas! CAPITÃO-GENERAL - Oh! mas se não me engano, é o morgado de São Gabriel, que tão obstinadamente recusa a ceder-me o cochicholo... CASTELO BRANCO - É uma recordação de família, senhor... CAPITÃO-GENERAL - Bem! bem! Senhor Morgado! O que lhe difo é que o cochicholo há de ser meu! (À parte.) Manda quem pode. CASTELO BRANCO (À parte.) - Ó raiva! não passo de um sogro anônimo! CAPITÃO-GENERAL - Esta encantadora senhora é sua filha, Senhor Morgado? CASTELO BRANCO - Nossa. (A Gabriela.) Cumprimenta, rapariga. CAPITÃO-GENERAL - É linda como os anjos! (Cumprimentado-a.) Minha senhora... GABRIELA - Senhor Capitão! CASTELO BRANCO (Acotovelando-a.) - General... General... GABRIELA - Senhor General... CASTELO BRANCO ( No mesmo.) - Capitão-general. GABRIELA - Senhor Capitão-general. CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! CAPITÃO-GENERAL - Que ricos vestidos! Afigura-se uma noiva... CASTELO BRANCO - E noiva é... CAPITÃO-GENERAL - Ah! acaba de casar-se porventura? CARLOS (Sem saber o que diz.) Precisamente não... casou-se assim sem se casar... GABRIELA - Como?! CARLOS - Isto é... sim... quero dizer que seu marido... CAPITÃO-GENERAL - E o feliz marido de tão interessante menina é? CARLOS (Atrapalhado e à parte.) Meu Deus! (Alto.) É... é... CAPITÃO-GENERAL - Quem? CARLOS (Incomodadíssimo.) É... é... CENA XIV OS MESMOS e MANUEL DE SOUZA MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) - Meu caro, venho dizer-te adeus... CARLOS (À Parte.) - Ele! Oh! que idéia. (Apresentando-o.) Ei-lo, o Senhor Manuel de Souza. GABRIELA e CASTELO BRANCO - Hein? GABRIELA (À parte.) - Meu marido! Ele? CASTELO BRANCO (Idem.) - Meu genro! Ele? MANUEL DE SOUZA - Senhor Capitão-general... GABRIELA (A Carlos.) - O que quer isto dizer! CARLOS (Baixo.) - Cala-te, em nome do céu! O capitão-general não se demora muito; já vê pois que... CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.) - Meus parabéns, Senhor Manuel de Souza: é muito linda! MANUEL DE SOUZA - Quem? CAPITÃO-GENERAL - Quem há de ser? (Apontando.) Ela... CARLOS - Ela... CASTELO BRANCO - Ela... GABRIELA - Eu... CASTELO BRANCO - Não insista, rapariga! MANUEL DE SOUZA - Ah! realmente é muito linda... é... CAPITÃO-GENERAL (À parte.) Hão de ir morar no meu palácio, quer queiram, quer não queiram! (Alto a Manuel de Souza.) Tenho as melhores informações sobre Vossa mercê, Senhor Manuel de Souza. Em meu palácio de Porto Alegre tenho um pequeno estado-maior de oficiais de lanceiros. Quero elevá-lo provando-lhe assim a consideração que... MANUEL DE SOUZA - Mas...

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CAPITÃO-GENERAL - hesita? Já sei quem o impede... (Com malícia.) Sua senhora; não é? MANUEL DE SOUZA - Minha mulher?! Quem disse a Vossa Excelência?... CAPITÃO-GENERAL - Pois bem : Vossa Excelência levá-la-á consigo. MANUEL DE SOUZA - Minha mulher? CAPITÃO-GENERAL - Os oficiais do meu estado-maior são quase todos casados e mora, em meu palácio com suas respectivas metades. Tenho acomodações para mais um casal. Estou certo que sua senhora não se negará a acompanhá-lo. (A Gabriela.) Não é assim, minha senhora? MANUEL DE SOUZA - Como! Mas não é esta que... CARLOS (Tapando-lhe a boca.) Cala-te! É tua mulher... provisoriamente. MANUEL DE SOUZA - Hein? CAPITÃO-GENERAL - Então está dito? MANUEL DE SOUZA - É que... CASTELO BRANCO - Com licença... Vou por tudo em pratos limpos! GABRIELA - Sim, é preciso que se saiba que... CAPITÃO-GENERAL - Deixem-me disso! Nada de agradecimentos! Estamos de acordo! CASTELO BRANCO, GABRIELA e MANUEL DE SOUZA - Sim... CAPITÃO-GENERAL - Preparem-se, enquanto vou dispor tudo para a nossa partida. (A Castelo Branco.) Morgado, acompanhe também sua filha a Porto Alegre. (A Manuel de Souza...) Quanto à Vossa mercê... CARLOS - Ah! Vamos preparar-nos também... CAPITÃO-GENERAL - Tu não... Para que hás de ir, Carlitos? Fica, fica... Lembra-te de teu reumatismo... GABRIELA e CASTELO BRANCO (À parte.) - Pois ele fica?... CAPITÃO-GENERAL (A Gabriela.) Vão... vão... CASTELO BRANCO (Levando a filha.) - Sim, senhor Capitão-general. Vamos, rapariga! GABRIELA - Ah! papai, em que há de dar tudo isto?... (Saem) CENA XV MANUEL DE SOUZA e CARLOS MANUEL DE SOUZA - Então, então? Agora, que estamos sós, é preciso que me expliques... CARLOS - Não tenho tempo agora. Os acontecimentos precipitam-se... Não receies coisa alguma. Tudo se há de arranjar! MANUEL DE SOUZA - Mas Gertrudes, minha mulher,. minha verdadeira mulher?... CARLOS - Ora adeus! Está longe... MANUEL DE SOUZA - Longe... Isso é o que não sabemos... CENA XVI OS MESMOS e GERTRUDES GERTRUDES (Entrando, consigo.) Ah! Sinto-me mais forte agora. Não há dúvida. O velhaco do meu marido cá não está . Andei por todos os quartos. remexi armários, gavetas, prateleiras... (Vendo Manuel de Souza.) Ah!... MANUEL DE SOUZA (Dando um salto.) Ah! Minha mulher! GERTRUDES (Agitando a chibata.) - Aqui! MANUEL DE SOUZA (Hesitando.) - Pois quê! És tu, minha boa amiga? GERTRUDES (No mesmo.) - Aqui! Não ouve?... MANUEL DE SOUZA - Aqui me tens, aqui me tens! (Aproximando-se timidamente.) Como tens passado, Gertrudinha? bem?... GERTRUDES (No mesmo.) - Manuel de Souza, há dois dias que ando à tua procura! MANUEL DE SOUZA (Recuando.) - Eu também tenho andado à tua procura... GERTRUDES - mentes!

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MANUEL DE SOUZA (Recuando.) - Olha, pergunta aqui ao Carlos... Ele que te diga... (Mudando de tom e com volubilidade.) Tenho o prazer de apresentar-te o meu amigo Monsiú Carlos. (Empurrando-o para sua frente.) Ele que te diga... Não é assim, Carlos? CARLOS - É... GERTRUDES (Com força.) - Não é! CARLOS (Espantado.) - Olé! Olé! (À parte.) Que mulherzinha! MANUEL DE SOUZA - Juro-te, juro-te, Gertrudinhas! Olha, estou tão satisfeito por te tornar a ver... GERTRUDES - Você sente o que está a dizer? MANUEL DE SOUZA - Oh! se sinto! CARLOS - Oh! se sentimos! GERTRUDES - Manuel, quem me dera poder acreditá-lo! MANUEL DE SOUZA (Querendo tirar-lhe a chibata.) - Olha, põe isto de parte... GERTRUDES (Repelindo.) - Não! (Com calma.) Manuel? MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! GERTRUDES - Você não me enganou? MANUEL DE SOUZA - Não, coração! GERTRUDES - Ah! (Abre-lhe os braços.) MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! GERTRUDES - Manuel (Abraçam-se.) MANUEL DE SOUZA - Olha, põe isto de parte... GERTRUDES (Severa.) Não! (Com calma.) Manuel? MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! GERTRUDES 0 Nunca mais havemos de nos separar! MANUEL DE SOUZA - Nunca mais! GERTRUDES - ...ca mais! MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) Belíssima situação! CARLOS (O mesmo a Manuel de Souza.) - Sê prudente, e deixa o resto por minha conta. (Gritos de - Viva o Capitão-general.) CENA XVII OS MESMO, POVO, o CAPITÃO-GENERAL, depois GABRIELA e CASTELO BRANCO, depois TEOBALDO Final CORO - A correr bem pressurosos, neste dia festival, nós bradamos jubilosos: - Viva o Capitão-general! (Bis.) CAPITÃO-GENERAL - Ah! para um Capitão-general, é bom gozar popularidade! Tendes para comigo essa bondade, ó filhos do Brasil e Portugal! CORO - A correr, etc. (Durante o coro entram castelo Branco e sua filha.) CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.) - Já pronto está? (A Castelo Branco e Gabriela) - Prontos estão? MANUEL DE SOUZA (Atrapalhado.) - Mas senhor... (À parte.) Ai! que aflição! CAPITÃO-GENERAL - Pra Porto Alegre vou, e digo: o senhor me acompanhará! GERTRUDES (Admirada.) - Pra lá! CAPITÃO-GENERAL - E irá com sua esposa, amigo.

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GABRIELA (À parte, com tristeza.) - Comigo! GERTRUDES (À parte, com alegria.) - Comigo! Concertante CAPITÃO-GENERAL - Pasmados de surpresa a todos vendo estou! Este anjo de beleza por pouco não chorou! Que vida folgada - não há mais que ver- embora casada com ela vou ter! TODOS - Eu confundido estou! CARLOS, CASTELO BRANCO, GABRIELA e MANUEL DE SOUZA - De terror, de surpresa - De terror, de surpresa a morrer quase estou! a morrer quase estou! Há que ver, com certeza Ó que grande afoiteza no que aqui ver vou! eu ver agora vou! Com esta embrulhada, Com esta embrulhada, das duas - é ver - não há mais que ver; à força levada à força levada qual é que há de ser! à força vou ser! GERTRUDES - Com ele levada, que vida vou ter! Que vida folgada! Não há que dizer! Mui considerada agora vou ser! (O Capitão-general sobe ao fundo para dar ordens.) GERTRUDES (A Manuel de Souza.) - Com gentileza agradecer vou já um favor de tal natureza... MANUEL DE SOUZA (Vivamente.) - Não! Não! agradecer não vá! GABRIELA (A Carlos.) - Esta fineza eu recusar vou já, mas com toda a delicadeza. CARLOS (Vivamente.) - Não! Não! oh! recusar não vá! CASTELO BRANCO - Que grande maçada! CARLOS - Que grande embrulhada! MANUEL DE SOUZA - Oh! que trapalhada! OS TRÊS - Com ambos casada como é que há de ser! REPETIÇÃO DO CONCERTANTE - De terror, etc. TEOBALDO (Aparecendo ao fundo.) - Vossa carreta pronta está! GERTRUDES - Vamos embora, já e já! CAPITÃO-GENERAL - Meus senhores e senhora, não pode haver demora! (A Manuel de Souza.) Senhor, quando quiser... MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) - Está tudo perdido! CARLOS - Toma sentido! MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) - E minha mulher?

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CARLOS - Não faças ruído! Eu cá já sei o que farei... CAPITÃO-GENERAL - Meus senhores e senhora, já, já nos vamos sem demora embora! Não mais esperarei! CORO - Partamos sem demora! A correr, etc. (Gabriela, o Capitão-general, Castelo Branco e Manuel de Souza saem pelo fundo.) GERTRUDES (Não reparou na saída do marido e desespera, vendo-se abandonada.) Então?! Deixam-me aqui? Manuel! Manuel! Ah! (Desmaia nos braços de Carlos, que a entrega a Bento, que entra espavorido. Todos no fundo agitam lenços e chapéus.) [(Cai o pano)] ATO SEGUNDO Jardim, no palácio do Capitão-general. À direita, primeiro plano, pequeno pavilhão, para o qual se sobe por uma escada dupla. À esquerda, segundo plano, um banco de mármore, com recosto. Avenida em perspectiva. CENA I OFICIAIS DE LANCEIROS, SOLDADOS, depois TEOBALDO, depois GABRIELA, CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA Introdução CORO - Qual é, qual a razão de sermos convidados pr'esta reunião? De tal convocação, estamos espantados! Qual é, qual a razão desta reunião?... TEOBALDO (Saindo do pavilhão.) - Olé! parabéns por tal [pontualidade! É muito natural que ao capitão agrade o vosso zelo pelo serviço militar. CORO - Mas queira confessar qual é, qual a razão, etc. TEOBALDO - Vosso, silêncio agora, amigos meu, reclamo; de vossa parte espero um pouco de atenção: por isso que vos vou dar comunicação de uma resolução de nosso ilustre amo. TODOS (Gritando.) Viva o sem rival Capitão-general! TEOBALDO Bico calado; lá não está... TODOS (Reprimindo o entusiasmo) - Bico calado: não está lá TEOBALDO - Psiu, psiu! Eu principio. (Abre um folha de papel e lê)

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"Nós, Capitão-general nesta cidade de Porto Alegre, por Sua Majestade Fidelíssima, a quem Deus guarde, fazemos saber a todos os oficiais e mais funcionários residentes em nosso palácio, que nesta data havemos por bem nomear Manuel de Souza capitão do regimento de lanceiros,e Dona Gabriela, sua mulher, nossa leitora." TODOS (Gritando) - Viva o sem rival Capitão-general! TEOBALDO - Bico calado: lá não está... TODOS (Como acima.) - Bico calado: não está lá... TEOBALDO - Em breve os novos nomeados vereis aqui chegar, amigos meus; eu lhes vou dar os tít'los seus, para poderem ser empossados. De vós nenhum convém deixar de fazer zunzum TODOS - De fazer um zunzum é não deixar de modo algum! (Murmúrio prolongado, durante o qual entram Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza, revestidos com os uniformes de seus novos cargos) GABRIELA, CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Vós com tais atenções, cativais corações TODOS - Ilustres recém-nomeados se amigos sois do Capitão, Também sereis afeiçoados aos cavalheiros que cá estão! Ilustres recém-nomeados! TEOBALDO - Agora vou (vós ides ver, senhores meus, formosa dama) sem mais aquela proceder ao que estabelece o programa. (A Gabriela.) De pro meu lado vir faça o favor. GABRIELA - Aqui estou, meu senhor. TEOBALDO - O Capitão-general vos nomeia sua leitora. GABRIELA - Que profissão maçadora. TEOBALDO - É muito especial, é muito original! TODOS - É muito original, é muito especial! TEOBALDO - Ao Morgado agora vou dar um decreto. CASTELO BRANCO - Aqui estou. TEOBALDO - Feito está Capitão-mor, que é das honras a maior. TODOS - Feito está Capitão-mor, que é das honras a maior. CASTELO BRANCO - Oh que bom! Eu vos agradeço! TEOBALDO - A cerimônia recomeço. Senhor Manuel de Souza, eu quero dar-lhe alguma cousa. (Trazem uma espada, que Teobaldo apresenta a Manuel de Souza.)

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TEOBALDO e OFICIAIS - Capitão, não suponha que esta luzente espada é chanfalho vulgar, não pode alguém matar. Ela não envergonha ninguém, desembainhada: quem a tiver na mão dizima um batalhão! Ela é longa, é pontuda, e de puro metal! Espada sem rival luzente e pontiaguda! TODOS - Ela é longa, etc. TEOBALDO e OFICIAIS - No auge da batalha precisa um belo dia ver morto aos seus pés pimpões aos seis, aos dez? - Conte que ela não falha! Em um segundo enfia barrigas a valer: é só - tirar, meter!... Ela é longa, etc. (Repetição do Coro) - Ilustres recém-nomeados, etc. (Saem todos, com exceção de Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza.) CENA II GABRIELA, CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA MANUEL DE SOUZA - Foram-se? GABRIELA - Sim... MANUEL DE SOUZA - Muito bem, Agora, meu caro Senhor Morgado e minha excelente senhora, a trapalhada fica por vossa conta e risco. CASTELO BRANCO - Como por nossa conta e risco? GABRIELA - Dar-se-á o caso que o Senhor Manuel de Souza nos queira abandonar? MANUEL DE SOUZA - Há uma hora chegamos, há uma hora procuro ocasião para escafeder-me. GABRIELA - Mas isso é impossível! CASTELO BRANCO - Abandonar-nos! Era o que faltava! GABRIELA - Que havemos nós dizer ao capitão-general, quando não o vir conosco? MANUEL DE SOUZA - É isso justamente o que fica por vossa conta e risco. Cada um responde por si. Minha mulher com certeza veio ao nosso encalce, e, de um momento para o outro, cai aqui como um raio, bumba! Oh! bem a conheço! É capaz de deitar abaixo este palácio! prefiro não esperar pela catástrofe, e despedir-me... Tenho a honra de.... (Dá alguns passos) GABRIELA (Pegando-o pelo braço.) Não, não, não! Não há de ir assim sem mais nem menos, Ajude-me, papai. CASTELO BRANCO - Sim, rapariga. (Pegando-o pelo outro braço.) Vossa Mercê não se há de ir embora, Senhor Manuel de Souza. MANUEL DE SOUZA (Tentando livrar-se) - Oh! mas isto é um violência. Já vos disse que... CASTELO BRANCO - Não se há de ir embora, Senhor Manuel de Souza! GABRIELA - Não se há de ir embora, Senhor Manuel de Souza! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! CENA III

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OS MESMOS e CARLOS CARLOS (Aparecendo ao fundo.) - O que é isto? o que é isto? TODOS - Carlos! GABRIELA (Correndo para ele.) - Ai! o meu queridinho! CARLOS - Silêncio. Podem ouvir-te. Ah! meus amigos, estou morto... morto! Segui-vos toda a viagem a cavalo, à distância de meia hora! GABRIELA - Coitado do querido" CASTELO BRANCO - Quer sentar-se? (Indica-lhe o banco.) CARLOS - Não, não, obrigado! CASTELO BRANCO - Melhor! (À parte.) Tolo fui eu em lho oferecer. CARLOS - Agora, quero saber em duas palavras de tudo que se tem passado... O Capitão-general... GABRIELA - Logo que desceu da carreta, entregou-nos ao ajudante de ordens e ordenou-lhes que nos apresentasse todo o estado-maior. CASTELO BRANCO - Estamos no maior estado de satisfação; o capitão-general confundiu-nos com dignidades! A rapariga está feita leitora. CARLOS - Leitora? Que diabo de dignidade é essa? CASTELO BRANCO - Ali o Senhor Manuel de Souza é capitão de lanceiros, e eu Capitão-mor não sei de onde. CARLOS - Ele, porém, de nada desconfia... GABRIELA - Nada... CARLOS (Respirando.) - Ah! sinto-me melhor! GABRIELA - O que há é que o Senhor Manuel de Souza queria por força ir-se embora! CARLOS - Ir-se embora! CASTELO BRANCO - E deixar-nos ao Deus dará! MANUEL DE SOUZA - Meu amigo, tu bem sabes: eu tenho muita pressa... Além disso tu cá estás; arranja-te como puderes. (Estendendo-lhe a mão.) Até mais ver, meu bom Carlos. CARLOS - É irrevogável essa resolução? Queres ir-te embora? MANUEL DE SOUZA - Quero ir-me embora! CARLOS - Seja (Estendendo-lhe a mão.) - Até mais ver, Manuel de Souza. MANUEL DE SOUZA - Até mais ver. CARLOS (Apertando sempre a mão de Manuel de Souza.) Mas olha lá... Tu ainda não sabes a conseqüência do que vais fazer. O teu procedimento é... é grave. MANUEL DE SOUZA (Inquieto.) - Grave?.. CARLOS - Decerto! Agora que estás feito capitão, safares-te sem ao menos dizer água-vai é simplesmente cometer crime de deserção. Expõe-te a acabar teus dias em um aljube. MANUEL DE SOUZA (Saltando.) -Hein? CARLOS - Enfim, isso é lá contigo. (Estendendo-lhe a mão.) Até mais ver, Manuel de Souza... GABRIELA (No mesmo) - Até mais ver, Manuel de Souza! CASTELO BRANCO (A Gabriela.) Não insistas, rapariga! (Imitando os outros.) Até mais ver, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Deixe-me estar! Não me aborreçam! Então estou obrigado a ficar aqui... E minha mulher? CARLOS - Não te dê isso cuidado... Tua mulher, por enquanto, não pode deitar água na fervura. MANUEL DE SOUZA - Como assim? CARLOS - Eis o caso: no momento em que partiste, Dona Gertrudes desmaiou nos meus braços... (A Manuel de Souza.) Tu não sabes, Manuel de Souza, o que é ter tua mulher nos braços. MANUEL DE SOUZA - Como não sei? Ora! Quantas vezes! CARLOS - Fi-la transportar para um dos quartos da estalagem e mandei procurar um médico... Infelizmente não há médicos em Viamão... Veio um alveitar. TODOS - Um alveitar!

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CARLOS - Um alveitar, que prometeu-me fazer com que a moléstia durasse oito dias, pelo menos... GABRIELA - E nós? e nós? CASTELO BRANCO - Continuamos a representar esta farsa? É preciso que resolvamos alguma coisa! CARLOS - Eu sei... mas resolver o quê? Enfim, verei, verei... Primeiro que tudo, quero estudar a situação... ser o Capitão-general... GABRIELA - Ele aí vem... O melhor seria talvez confessar-lhe tudo. CARLOS - Confessar-lhe tudo! Nunca! Silêncio e prudência! CENA VI OS MESMOS e o CAPITÃO-GENERAL CAPITÃO-GENERAL - Sou eu; incomodo-os talvez? MANUEL DE SOUZA - Qual incomodar-nos! GABRIELA - Pelo contrário... CASTELO BRANCO - Vossa Excelência dá-nos sempre muito prazer... CARLOS - Não se quer sentar? não se quer sentar? CAPITÃO-GENERAL - Carlitos! Mas o que é isto? Ficaste no campo, em convalescença, e, apenas chegado, encontro-te aqui! CARLOS - Vossa Excelência sabe? o reumatismo precisa de exercício. Mas se Vossa Excelência quiser, volto... CAPITÃO-GENERAL - Fica. Eu sempre gostei de ver-te a meu lado. Mas permite: deixa-me dar atenção aos noivos. (A Gabriela.) Então? Está satisfeita? GABRIELA - Satisfeitíssima. CASTELO BRANCO - Senhor Capitão-general, estamos todos satisfeitíssimos; não é assim meu genro? (Vendo que Manuel de Souza não lhe responde, dá-lhe uma cotovelada.) Não é assim, meu genro? MANUEL DE SOUZA - Ah! Sou eu que... (Vivamente) Sim... sim... CARLOS - É como Vossa Excelência vê: estão todos satisfeitíssimos. Baixo a Manuel de Souza.) presta mais atenção, desalmado! GABRIELA - Satisfeitíssimos. CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! CAPITÃO-GENERAL - Agora temos de tratar das acomodações da família. GABRIELA - Da nossa acomodação? CAPITÃO-GENERAL - Sim. Lembrei-me daquele pavilhão. É pequenino, mas ao pintar para uma lua-de-mel. Uma saleta, um quarto pequenino... GABRIELA - Oh! papai! um quarto pequenino!... CARLOS - Como um quarto pequenino? (Baixo a Manuel de Souza.) Protesta, protesta, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - (Baixo.) Homem, olha: há situações que t~em suas exigências... CARLOS (À parte) - Velhaco! CAPITÃO-GENERAL (A Gabriela.) - Então? não me agradece? GABRIELA - É quê... Senhor Capitão-general... CAPITÃO-GENERAL - É quê... o quê? Vejamos... GABRIELA - Um quarto pequenino... CAPITÃO-GENERAL - E então... GABRIELA - Preferiria dois grandes... CASTELO BRANCO - Muito grandes... CARLOS - Enormes!!! GABRIELA - Enormíssimos!!! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! CAPITÃO-GENERAL - Esta agora!

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CARLOS - Mas é o mesmo... Manuel de Souza acaba de dizer-me que ficará com a saleta, e Dona Gabriela tomará conta do quarto pequenino... CAPITÃO-GENERAL - Como?! Separados?! Já?! E casou-se esta manhã? Oh! Senhor Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Perdão, Senhor Capitão-general; mas não sou eu que... CARLOS - Sim, é um costume de família! CAPITÃO-GENERAL - Ah! CARLOS - É tradicional dos Manuéis de Souza a separação de leitos. CAPITÃO-GENERAL - Deveras?... CARLOS - E o costume tem sucedido de pais a filhos! CAPITÃO-GENERAL - Ah! (À parte.) - É original! (A Carlos.) - Já estarão frios? CARLOS - Frios? Não! Calmos, estão calmos... CAPITÃO-GENERAL - (À parte.) - Vai tudo às mil maravilhas! (Alto.) Vou dizer ao meu ajudante que se ponha inteiramente às suas ordens. Até logo. TODOS - Até logo, Senhor Capitão-general CAPITÃO-GENERAL (À parte.) Vai tudo às mil maravilhas. (Apenas desaparece o Capitão-general, Carlos, Gabriela e Castelo Branco voltam-se para Manuel de Souza às gargalhadas.) CENA V OS MESMOS, menos o CAPITÃO-GENERAL MANUEL DE SOUZA (A Carlos.) - Fizeste-a bonita. Agora peço-te eu que me digas o que vai aquele homem pensar a meu respeito. CARLOS - Pense lá o que quiser. Eis-nos livres do primeiro perigo: estou mais sossegado sobre a nossa situação. MANUEL DE SOUZA - Como assim? GABRIELA - Como assim? CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! CARLOS - Muito simplesmente. Agora que o Capitão-general engoliu a pílula, convém que permaneçamos algum tempo no status-quo. MANUEL DE SOUZA - Como no status-quo?... Queres então que eu fique sendo marido de tua mulher? CARLOS - Decerto, isto é, oficialmente. MANUEL DE SOUZA - Está visto: na salinha. Mas, vem cá, e minha mulher? CARLOS - E tu a dares com tua mulher! Tua mulher! Confessar-lhe-emos tudo, e, logo que haja cá entre nós certa combinação, verás que vidinha... MANUEL DE SOUZA - Como assim? CASTELO BRANCO - Como assim? GABRIELA - Como assim? CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! CARLOS - Como assim! Como assim! Parece-me que me expliquei perfeitamente, apesar de falar mal o português. Vejamos! Manuel de Souza é teu marido, é certo... Vamos, porém, estabelecer uma distinção: ele não passa de um marido para o mundo, de uma marido... honorário... GABRIELA - E daí? CARLOS - Daí que ele é teu marido das nove horas da manhã às dez da noite... GABRIELA - Mas... CARLOS - E das dez horas da noite às nove da manhã cede o lugar a outro, o verdadeiro, o legítimo... GABRIELA - Oh!... MANUEL DE SOUZA - Tu ficas com o melhor... CARLOS - Pudera! GABRIELA - Sim: mas ouve cá! Eu preferia ser tua mulher tanto de noite como de dia...

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CARLOS - De noite como de dia! Para quê, meu amor? Basta-nos a noite... Queres tu saber? Coplas I -Bem vês: de dia, anjo querido, há cem mil coisas que arranjar: nem a mulher, nem o marido, ocasião têm pra conversar. Enquanto o esposo o tempo gasta a dirigir negócios mil, no toucador a esposa casta faz-se-lhe aos olhos mais gentil. Para lidar com o deus Cupido nunca ninguém 'stá de maré de dia, ó meu anjo querido... II - O bom marido e a mulher sua vão passear desde o arrebol, pois quem se ama à luz da lua, bem pode amar-se à luz do sol. Dos calendários dos casados tire-se o dia, e me dirão o que será dos desgraçados!... Horas de amor lhes faltarão... Não sendo assim, eu te afianço, hei de zangar-me muita vez: a noite fez-se pro descanso... CARLOS - Pas toujours... Tem seus quês... GABRIELA (Ao pai) - O que diz a isto, papai? CASTELO BRANCO - Eu não digo nada, rapariga: estou por tudo contanto que me deixem ser Capitão-mor. É quanto quero! Assim tenho a propriedade segura. GABRIELA - Papai não pensa em outra coisa. CASTELO BRANCO - Ora essa! Eu cá não sou namorado: sou proprietário. CARLOS - Está dito! Manuel de Souza está por tudo! (Oferecendo o braço a Gabriela.) Vem daí... MANUEL DE SOUZA - Onde vais tu? CARLOS - Dar uma volta pelo jardim. MANUEL DE SOUZA - Com a minha mulher! CARLOS - Com a minha! MANUEL DE SOUZA - Que é minha para o mundo; de sorte que se ele os encontrar... CARLOS - Eles quem? MANUEL DE SOUZA - O mundo... CARLOS - Ora! MANUEL DE SOUZA - Há de supor... CASTELO BRANCO - Quem? MANUEL DE SOUZA - O mundo... CARLOS - Ora! MANUEL DE SOUZA - Há de supor que sou algum... CARLOS (Dando o braço a Gabriela.) Deixa-o supor. Tens a consciência tranqüila... é quanto te basta.

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GABRIELA - É quanto lhe basta, Senhor Manuel de Souza. (Carlos e Gabriela saem a rir.) CASTELO BRANCO (Batendo-lhe no ombro.) - A consciência... é tudo! MANUEL DE SOUZA - Não insista, Senhor Morgado! CASTELO BRANCO (Rindo.) - Ah! ah! ah! Pobre Manuel de Souza. (Sai pelo lado oposto àquele por onde saíram Carlos e Gabriela.) CENA VI MANUEL DE SOUZA e depois GERTRUDES MANUEL DE SOUZA (Só.) 0 Ainda em cima zombam de mim... ingratos! Mas enfim eles não sabem o perigo que todos corremos! Gertrudes ainda n~]ao se pronunciou em tudo isso, e quando se pronunciar, bumba! Lá se vai tudo quanto Marta... (neste momento Gertrudes, que apareceu ao fundo, tem-se aproximado e dá-lhe uma chibatada nas pernas.) Ah! Gertrudes... Pronunciou-se! GERTRUDES (Atira fora a chibata e cruza os braços.) - Monstro! MANUEL DE SOUZA - Minha querida amiga... GERTRUDES - Cão! MANUEL DE SOUZA - Minha querida amiga... GERTRUDES - Cachorro! MANUEL DE SOUZA - Queridinha (Á parte.) Mau! desço e cão a cachorro! GERTRUDES - Saltimbanco! MANUEL DE SOUZA - Meu anjo! (À parte.) Bem! Agora subi a homem! GERTRUDES - Você não me esperava, não é assim? MANUEL DE SOUZA - Oh! pelo contrário... Quero dizer... eu to digo... Estava já um pouco impacientado... Já havia dito com os meus botões: Gertrudinhas não vem! Gertrudinhas não vem! GERTRUDES - Bárbaro! Abandonar-me em uma estalagem no campo, safando-se com outra mulher às minhas barbas! MANUEL DE SOUZA - Atende, santinha... GERTRUDES - Pérfido! Dueto GERTRUDES - Ah! tudo isto me exaspera! MANUEL DE SOUZA - Mas isto o quê? GERTRUDES - Todo nervoso meu se altera! MANUEL DE SOUZA - Porém por quê? GERTRUDES - Nós somas todas mil extremos... MANUEL DE SOUZA - Pois não, pois não! GERTRUDES - Que recompensa recebemos? MANUEL DE SOUZA - A ingratidão! GERTRUDES - Enquanto estou no lar querido a trabalhar, pobre mulher! - por fora o bom de meu marido façanhas faz e quantas quer! 'Stou danada! MANUEL DE SOUZA - Vê tu lá! GERTRUDES - 'Stou danada! MANUEL DE SOUZA - Vê tu lá! GERTRUDES - Danada! danada! Em minha mão não está! Zás! (Dá-lhe uma bofetada.)

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MANUEL DE SOUZA - Ah! GERTRUDES (Soltando um suspiro de satisfação.) - Consolada! GERTRUDES MANUEL DE SOUZA - Ai! que bom bofetão - Meu Deus! que bofetão Não estava mais em minha mão! Porém, amor, não tens razão! MANUEL DE SOUZA - Eu vou explicar-te tudo em duas palavras: não conheço essa mulher... GERTRUDES - Não a conheces? MANUEL DE SOUZA - Quero dizer: conheço-a sem conhecer. O Carlitos foi que me pediu para... Não vês que o capitão-general... entendes? GERTRUDES - Não! MANUEL DE SOUZA - Fui obrigado a dizer que ela é minha mulher; mas, no fundo, é de Carlitos. GERTRUDES - Do Carlitos? MANUEL DE SOUZA - Palavra! GERTRUDES - Falas verdade, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Já te dei a minha palavra de honra, Gertrudinhas! GERTRUDES - Poisbem: seja, acredito; mas pelo sim, pelo não, levo-te comigo... Assim estarei mais sossegada. Vamos! passa adiante; voltemos para casa. MANUEL DE SOUZA - Tem paciência, Gertrudinha; mas isso agora é que fia mais fino... GERTRUDES - Então você quer levar toda sua vida aqui? Fazendo fosquinhas às mulheres, não é assim? Ao diabo da sujeita do retrato, talvez? MANUEL DE SOUZA - Oh! Gertrudinhas! Eu todos os dias me retrato do diabo da sujeita! E tu a dares! Não se trata agora disso... Já vejo que não reparaste em mim... vê como estou vestido... Olha esta farda, esta espada! Aqui onde me vês, sou o Senhor Capitão! GERTRUDES - Capitão? É verdade! Não tinha feito reparo! (À parte, examinando-o.) E como lhe fica bem a farda! MANUEL DE SOUZA - Já tu vês que não me posso ir embora. Mas descansa: quando não houver serviço, estarei ao teu ... GERTRUDES - Ao meu o quê? MANUEL DE SOUZA - Serviço... de manhã ao meio-dia, à noite, sempre, sempre, sempre... GERTRUDES (Com ternura.) Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Estão feitas as pazes? GERTRUDES (Apresentando-lhe as faces) - Toma! (Ele beija-a.) MANUEL DE SOUZA (À parte.) - Apre! Custou... GERTRUDES - Manuel de Souza, estou muito cansada... Quero descansar... Onde é o meu quarto? MANUEL DE SOUZA (À parte.) - Onde diabo há de ser? GERTRUDES - Mais um beijinho!... MANUEL DE SOUZA - Dois e três se quiseres. (Saem aos beijos pela direita.) CENA VII O CAPITÃO-GENERAL e TEOBALDO CAPITÃO-GENERAL - Que vejo! Manuel de Souza aos beijos com uma mulher! Já!... TEOBALDO - O novo capitão está a fazer o seu pé-de-alferes. CAPITÃO-GENERAL - Ah! Agora compreendo a frieza de hoje pela manhã, Vamos! Vamos, o momento é favorável. Teobaldo, vai dizer a Dona Gabriela que lhe desejo falar. TEOBALDO - Sim, Senhor Capitão-general. (Sai.) CAPITÃO-GENERAL (Só) - O que vou praticar é simplesmente uma velhacada. Dona Gabriela é linda como os amores; e como o marido é um Manuel de Souza, proponho-me um candidato. É muito engenhoso o meio que pretendo empregar para a conquista. Nomeio-a minha leitora. É caso virgem semelhante nomeação; mas ora Deus! por que não pode ter um capitão-general sua leitora? Eu não

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gosto de leitura; mas é que os livros têm tanta influência sobre as mulheres, como as mulheres sobre os livros. Hei de mandar pedir para a Europa bons autores. Na minha biblioteca nada tenho que sirva para o fim que almejo. Encontrei uma coleção de contos italianos, mas italianos! (Tirando uma enorme folha de papel do bolso.) Escolhi um dos mais divertidos, e traduzi-o para o português... Conseguirei alguma coisa? Ela aí vem. CENA VIII O CAPITÃO-GENERAL e GABRIELA CAPITÃO-GENERAL - Aproxime-se minha senhora. GABRIELA - Vossa Excelência mandou-me chamar? CAPITÃO-GENERAL - Tenho necessidade de seus serviços... GABRIELA - É que... Eu tomo a liberdade de confessar a Vossa Excelência... CAPITÃO-GENERAL - O quê? GABRIELA - Eu não gosto da leitura... CAPITÃO-GENERAL - Tampouco eu! GABRIELA - Tem graça. CAPITÃO-GENERAL - Mas é o mesmo. Havemo-nos de habituar. Então, comecemos... Ali, debaixo daquele caramanchão... (Toma-lhe a mão.) Dueto CAPITÃO-GENERAL - Dê-me a sua alva mão... Sob a folhagem escura, proceda-me a leitura lá no caramanchão. É bela esta verdura; a brisa aqui murmura melíflua canção. Ai, vamos lá! não tema, não. GABRIELA - Vossa Excelência quer que eu leia lá, para onde me conduz? Mande buscar uma candeia, pois eu não posso ler sem luz. CAPITÃO-GENERAL - Ai! não me faça cara feia! O que receia? Juntos CAPITÃO-GENERAL - Dê-me a sua alva mão, etc. GABRIELA - Ó céus! que posição a minha! Convém ter toda discrição: cautela e caldo de galinha... Não devo ir pro caramanchão. (O Capitão-general quer arrastá-la para o caramanchão: Gabriela, com um gesto designa-lhe o banco de pedra. Ele inclina-se e fá-la sentar-se, conservando-se de pé.) CAPITÃO-GENERAL - Então, minha leitora? Comece a dobadoura! O que vai ler é bom... (Dizendo isto, apresenta-lhe a enorme folha de papel escrita.) GABRIELA - Que grande cartapácio! CAPITÃO-GENERAL - É lê-lo alto e bom som. GABRIELA (Lendo.) - "Um conto de Bocácio." Por quê, não me dirá?

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Em manuscrito está? CAPITÃO-GENERAL - De um livro bom e decente o traduzi literalmente. Verá que sã moral! que conto original! Se gostar dele, presto, apenas em um mês, eu lhe prometo o resto verter pro português. Queira pois ler o conto: eu para ouvir 'stou pronto. GABRIELA (Lendo.) - "O Rouxinol. Conto I - Lá na România, o bom país, era uma vez um cavalheiro; tinha uma filha, a história o diz, dos corações o cativeiro. Vai senão quando um mocetão apaixonou-se da donzela, e tanto fez o maganão, que certa noite a nossa bela, presa do amor no doce anzol, disse ao papai com ar tranqüilo: "Canta no bosque o rouxinol, de perto já quero ir ouvi-lo..." (Ergue-se e vai maquinalmente deixando cair o papel que o Capitão-general toma-lhe das mãos.) Ah!ah!ah! (Afasta-se. O Capitão-general coloca o papel diante dos seus olhos. Ela continua a ler como que sem saber o que faz.) "Dos bosques entre a sombra, o rouxinol cantou, e, sob a verde alfombra, a bela o escutou..." JUNTOS Dos bosques entre a sombra, etc. (O Capitão-general apresenta-lhe de novo o papel. Ela hesita um momento e, afinal, decide-se e continua a leitura.) II " O pai da moça (valha-o Deus) como sucede em toda a história, era um sandeu entre os sandeus e tinha uma alma bem simplória; eis que, porém, desconfiou, não sei por quê, do passarinho, e tanto fez, tanto pensou,

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que ao bosque foi devaegarinho... A lua tendo por farol, descobre o pai um desaforo: o mavioso rouxinol tinha um bigode espesso e louro!" (Deixa cair o papel. O Capitão-general ergue-o e guarda-o.) GABRIELA - Ah!ah!ah! Dos bosques entre a sombra, etc. CAPITÃO-GENERAL - Então, minha encantadora menina? O que diz desta história; não é tão bonita? GABRIELA (Perturbada.) - Sim... Sim... mas... (À parte.) Fez-me medo este homem! (Alto.) Perdão, Senhor Capitão-general, mas não me posso demorar. CAPITÃO-GENERAL - Pois já? GABRIELA - Meu marido está à minha espera. (Cumprimentando-o.) Senhor Capitão-general! (Dirigindo-se ao pavilhão e à parte.) É muito arriscado semelhante emprego de leitora. (Sai.) CENA IX O CAPITÃO-GENERAL, depois CARLOS CAPITÃO-GENERAL (Só.) - Foi-se... O conto produziu algum efeito. Vai tudo às mil maravilhas! (Vendo Carlos, que chega.) Ah! és tu, Carlitos? chegas muito a propósito... CARLOS - Ainda bem! Em que posso ser útil a Vossa Excelência? CAPITÃO-GENERAL - Aqui onde me vês estou contente como se me houvessem feito rei! Quero que te aproveite a minha alegria! CARLOS - De que modo? CAPITÃO-GENERAL - O que dirias tu, se me esquecesse do passado? CARLOS - Como? CAPITÃO-GENERAL - Se te perdoasse? CARLOS - Se me... CAPITÃO-GENERAL - Se te dissesse: casa-te, Carlitos, e nada temas. CARLOS -(Muito alegre.) - Oh! que coração ode Vossa excelência. Muito obrigado, Senhor Capitão-general! muito obrigado! CAPITÃO-GENERAL - Só te peço em troca um pequeno serviço... CARLOS - Um pequeno serviço? CAPITÃO-GENERAL - Quase nada. Vais ver. (Tomando-o pelo braço.) Meu amigo, primeiro que tudo, convém saberes de uma circunstância: eu estou apaixonado! CARLOS - Ah! Sim? CAPITÃO-GENERAL - Por uma adorável mulher. Aposto que já adivinhaste quem é? CARLOS - Não sei quem seja... CAPITÃO-GENERAL - Pois quem há de ser senão a mulher do manuel de Souza? CARLOS (À parte.) - Gabriela! CAPITÃO-GENERAL - Então, não tenho bom gosto?... CARLOS (Atônito.) - Mas, senhor... CAPITÃO-GENERAL - Não é linda? CARLOS - Sim... sim... linda... (À parte.) Não me faltava mais nada! CAPITÃO-GENERAL - Quanto ao serviço que te falei... aposto também que já adivinhaste de que se trata? Conto com o teu auxílio... CARLOS - Com o meu auxílio?... E é de mim que Vossa Excelência vem exigir semelhante coisa? CAPITÃO-GENERAL - Então, por quê? CARLOS - De mim... de mim... que sou tão amigo de Manuel de Souza... CAPITÃO-GENERAL - Pois bem, por isso mesmo... como tens intimidade com a família, não te custará nada deixar de quando em quando escapar um elogio... Hein? Está dito?

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CARLOS - Pelo contrário! Hei de fazer o possível para frustrar os desígnios de Vossa Excelência. Ora esta! Manuel de Souza! Um amigo daquela ordem! CAPITÃO-GENERAL - E eu não era também teu amigo? CARLOS (Caindo em si.) - É verdade. CAPITÃO-GENERAL - Já vês que... CARLOS - Vamos lá! Vossa Excelência disse aquilo a brincar! não é capaz de semelhante atentado à honra alheia! CAPITÃO-GENERAL - Com que calor a defendes! Parece que se trata de tua mulher! CARLOS - Ora! Eu gosto tanto daquele Manuel de Souza! CAPITÃO-GENERAL - E eu também; mas gosto mais de Dona Gabriela. (Pausa.) Decididamente não me prestas o teu auxílio? CARLOS - desculpe, Vossa Excelência, mas não posso... CAPITÃO-GENERAL - Pois bem! Olha, aí vem Manuel de Souza; verás que vou preparar tudo sem o teu auxílio. CENA X OS MESMOS e MANUEL DE SOUZA CAPITÃO-GENERAL - Capitão, vá buscar oito praças... MANUEL DE SOUZA (Inquieto.) Hein? CAPITÃO-GENERAL - E parta com eles para São Tomé. O Capitão-mor requisitou um destacamento de lanceiros contra os índios Guaicurus! MANUEL DE SOUZA - Guiacurus! (À parte.) E Gertrudes vai ficar à minha espera! CARLOS (Inquieto e à parte.) - Quais serão as suas tenções? MANUEL DE SOUZA - Vossa Excelência há de permitir que lhe lembre que estou designado para comandar a patrulha que tem de rondar o palácio... CAPITÃO-GENERAL - Não lhe dê isso cuidado... Eu substitui-lo-ei... Vá, ande. MANUEL DE SOUZA - E Gertrudes? Hei de preveni-la por um bilhetinho. (Sai. Começa a anoitecer.) CAPITÃO-GENERAL (A Carlos.) - Compreendes, não? Enquanto o marido é destacado para Guaicurus, eu... CARLOS - Basta! basta! Aceito! CAPITÃO-GENERAL - O qu~e? CARLOS - Quero auxiliar a Vossa excelência. (À parte.) É o único meio de impedir... CAPITÃO-GENERAL - Nada! Tarde piaste... Já te declaraste amigo do homem. És suspeito. CARLOS - Portanto... CAPITÃO-GENERAL - Nada! Além disso, não quero perder o direito que tenho sobre ti. CARLOS - mas... CAPITÃO-GENERAL - O dito por não dito... Façamos de conta que nada houve ainda há pouco entre nós. Olha: já é noite. Adeus, Carlitos... Boa noite, hein? Muito boa noite. (Sai.) CENA XI CARLOS, e depois GABRIELA CARLOS (Só.) - Bonito! Vejam se há criatura mais infeliz do que eu! Sabendo que basta que minha mulher seja minha mulher, para que ma queira roubar o maldito Capitão-general, faço-a passar por mulher alheia, e eis que ma querem roubar da mesma forma. Oh! não! não! Mas o que devo fazer? Só há um meio: a fuga! Consentirá ela? (Aproximando-se do pavilhão.) Gabriela! Gabriela! GABRIELA (Fora.) - És tu, Carlitos? CARLOS - Sim: sou eu. Vem depressa; não tardes! GABRIELA (Entrando.) - Aqui estou. CARLOS - Deus queira que ela queira! (Correndo à esposa, que sai do pavilhão.) Gabriela, tu amas-me, não é assim?

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GABRIELA - Por quê? CARLOS - Adoras-me? GABRIELA - Meu amigo... CARLOS - A tua adoração por mim não tem limites; hein? Oh! responde, responde! O que ter vou propor, só devemos propor a quem nos consagrar uma adoração sem limites... Gb (Muito depressa.) - Pois bem, pois bem: a minha adoração por ti não tem limites! CARLOS - Queres tu fugir comigo? GABRIELA - Fugir? CARLOS - Sim! Fugir como salteadores, no meio da noite através de mil perigos... Queres!? Oh! não me diga que não queres! GABRIELA - Se quero! Decerto! Uma fuga foi sempre o meu ideal, um rapto o meu sonho dourado! Dueto e Coplas CARLOS - Tu partirás? GABRIELA - Eu partirei. CARLOS - Seguir-me-ás? GABRIELA - Seguir-te-ei. JUNTOS - Depressa! depressa! Fujamos, amor, antes que apareça qualquer maçador. Quais negros fugidos da vil servidão, vivamos metidos no meio do sertão. CARLOS - É bem longa a viagem! GABRIELA - Com muito gosto irei. CARLOS - Preciso é ter coragem! GABRIELA - Pois bem: eu a terei. CARLOS - E se nos perseguirem? GABRIELA - Deixá-los perseguir! CARLOS - Meu Deus! se nos perseguirem? GABRIELA - Não hão de nos seguir. JUNTOS - Depressa! depressa! etc. I GABRIELA - Que originalidade! quem vê tal evasão logo se persuade que dois amantes são. De um pai ou de um marido feroz e destemido fugindo pro sertão, provavelmente vão. Pois bem! não há tal: conhecido que tudo fique é mister: é uma mulher que vai fugir com seu marido; é um marido que foge com sua mulher! JUNTOS - É uma mulher, etc.

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GABRIELA - Ninguém achar procure novidades, porquê, embora cheire ou fure, de novo nada vê! Pois neste mundo antigo, já disse e ora redigo: É tudo rococó, qual meu tataravô. Fato , porém desconhecido venha cá ver quem quiser: É uma mulher, etc. JUNTOS - É uma mulher, etc. (No fim do dueto tem anoitecido completamente.) CARLOS - Vamos; é noite fechada; não percamos tempo... Vou preparar tudo para a nossa partida. Entra e espera-me. GABRIELA - Não te demores! CARLOS - Em cinco minutos estarei de volta. GABRIELA- Achar-me-ás pronta. (Entra no pavilhão. Carlos sai a correr.) CENA XII GERTRUDES, e depois CARLOS GERTRUDES - Acabo de receber de Manuel de Souza este bilhete, no qual diz-me: "Minha pomba. Não posso, como te havia prometido, ficar no pombal esta noite. A pátria precisa do meu braço. Teu pombo, Manuel de Souza". Aqui anda maroteira. Ai! dele, se me engana! (Sai.) CARLOS (Volta envolvido numa capa.) - Gabriela estará pronta? (A ronda aproxima-se.) Ai! meu Deus! é a patrulha! E é o Capitão-general que a comanda! Ocultemo-nos... (Oculta-se.) CENA XIII CARLOS, oculto, o CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO E RONDANTES (O Capitão-general conduz a patrulha e traz na mão uma lanterna furta-fogo.) Coro dos Rondantes - Mal começa a noite aparece a ronda; ninguém cá se acoite, ninguém cá se esconda. Ofender a sã moral que não venha algum pascácio do Capitão-general, no respeitável palácio, pois quem vai para a prisão sem mais remissão nem apelação! (A ronda percorre o teatro. Ao passar defronte do pavilhão, o Capitão-general lança-lhe um olhar significativo.) CENA XIV CARLOS, de pois GERTRUDES, depois GABRIELA CARLOS - Não percamos tempo. (Corre ao pavilhão.) Gabriela, Gabriela, estás pronta?... GABRIELA(Fora.) - Aí vou, aí vou.

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GERTRUDES (Aparecendo.) - Parece-me que ouvi... Sim; não me engano... Está ali alguém. Oh! aquele manto! É ele, é ele! ... o que fará ali?... CARLOS - Despacha-te. GERTRUDES (Consigo.) - Com quem fala ele?... GABRIELA (Sai do pavilhão embrulhada em um manto, com uma trouxa na mão.) Aqui estou, aqui estou! GERTRUDES - Uma mulher! E tratou-a por tu! Oh! Vamos rir! vamos rir! CARLOS - Vem! vem! (Dirigem-se para o fundo.) GERTRUDES (Pondo-se-lhes na frente.) - Um momento... CARLOS e GABRIELA (Atônitos.) - Ah! GERTRUDES - Não me esperavam, não é assim? GABRIELA - Mas, senhora... CARLOS - Silêncio! Silêncio! GERTRUDES - Apanhei-te com a boca na botija! GABRIELA (Querendo fugir.) - Mas... GERTRUDES - Aqui ninguém passa! GABRIELA (Escapando-se.) Oh! Acharemos meio de escapulir! GERTRUDES (Tomando-lhes a passagem.) - Aqui ninguém passa! CARLOS -Ah! ele é isso? (Atira-lhe a capa sobre a cabeça. Vem, Gabriela... GERTRUDES (Tentando desembaraçar-se da capa.) - Aqui-del-rei! Socorro! Aqui-del-rei! CAPITÃO-GENERAL (Fora.) Que bulha é esta?... CARLOS - Aí vem a patrulha! estamos perdidos! CENA XV OS MESMOS, CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO E RONDANTES CAPITÃO-GENERAL - O que há? o que há? GERTRUDES - O que há, Senhor Capitão-general? Um escândalo, um escândalo inaudito! este senhor ia fugir com esta senhora! (Chorando.) Monstro! mal empregado tanto amor! CAPITÃO-GENERAL - Vejamos! (Alumiando o rosto de Carlos com a lanterna.) Carlitos! (Vendo Gabriela.) Ela!... TODOS - Hein? GERTRUDES (Estupefata.) - Não era Manuel de Souza! (A Carlos,) Ah! senhor, peço-lhe mil perdões: foi um erro involuntário... CARLOS - Vá para o diabo! CAPITÃO-GENERAL - Ah! tu querias fugir com a mulher de um amigo daquela ordem! CARLOS - Senhor... GABRIELA - Deixe-me dizer-lhe, Senhor Capitão-general: este senhor me havia simplesmente oferecido o braço para darmos uma volta pelo jardim... CAPITÃO-GENERAL - Assim vestidos! a estas horas!... e com uma trouxa!... (Gabriela lança fora a trouxa com despeito.) Bem! Bem! (Baixo a Carlos.) Por isso é que ainda há pouco a defendias com tanto calor! Querias guardá-la para ti. Muito bem! Deixa estar que eu te ensinarei... CARLOS - Oh! CAPITÃO-GENERAL - Teobaldo! TEOBALDO - Pronto! CAPITÃO-GENERAL - Manda tocar a rebate!... TEOBALDO - Sim, Senhor Capitão-general... CARLOS - O que vai fazer Vossa Excelência? CAPITÃO-GENERAL - Prevenir o marido... Ele é que me há de vingar. TODOS - O marido!... (Toques de cornetas e tambores.) CENA XVI OS MESMOS, MANUEL DE SOUZA, CASTELO BRANCO, Oficiais de Lanceiros e Lanceiros.

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Final TEOBALDO e RONDANTES - Alerta! Alerta! Alerta! OFICIAIS E MANUEL DE SOUZA (Aparecendo de todos os lados.) - Por que se me desperta? Estou de boca aberta!... (A cena ilumina-se.) CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.) - Espada em punho, capitão! MANUEL DE SOUZA (Desembainhando a espada.) - Cá está! CAPITÃO-GENERAL - Sem mais hesitação espete este sujeito! AS MULHERES - Ó céus! MANUEL DE SOUZA - Carlitos! CARLOS - Eu não! CAPITÃO-GENERAL - Espetar! espetar! espetar! e despachar! TODOS - Espetar! espetar! espetar! e despachar! CARLOS (Desembainhando a espada.) - Espetar-me! Não é má! MANUEL DE SOUZA - Olé! Armado está! CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.) - É mais leal! Vá! Dito e feito! 'Stá contrafeito?... GERTRUDES (A Manuel de Souza.) - Não, não! Tu não te baterás! MANUEL DE SOUZA - Não, não! Eu não me baterei! GABRIELA (A Carlos.) - Não, não! Tu não te bater-te-ás! CARLOS - Não, não! Eu não fraquejarei! {Tu } {bater-te-ás JUNTOS - Não, não { }não {baterás {Eu } {me baterei { } {fraquejarei MANUEL DE SOUZA (Com energia.) - Não, não! Eu não me baterei! CAPITÃO-GENERAL - Saiba que aquele machacaz Senhor Manuel de Souza, raptava sua esposa! MANUEL DE SOUZA - Raptava minha esposa!... TODOS - Que cousa!.... Espetar! espetar! espetar e despachar! MANUEL DE SOUZA - Ouçam lá! Vou tudo pôr em pratos limpos. CARLOS (A parte.) - Traidor! MANUEL DE SOUZA (Apontando a Gabriela.) - Eu marido não sou desta senhora, mas sim daquela que lá está! (Apontando para Gertrudes.) CORO - Ah! GERTRUDES (Apontando Manuel de Souza.) - Eis meu marido! GABRIELA (Apontando para Carlos.) - Eis meu marido!

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TODOS - Que trocas baldrocas! CAPITÃO-GENERAL - Ah! ah! ah! ah! ah! O moço é casado! Ah! ah! ah! ah! Que caso engraçado! CORO - Olaré! Olaré! O moço é casado! Olaré! Olaré! Que caso engraçado! Casadinho o moço é! Ó que papel desgraçado fazer vai, olé!... CAPITÃO-GENERAL (A Carlos.) - Então querias me enganar? Carlitos, hás de me pagar... CARLOS - Oh! senhor, minha desventura está em vossa mão! Ela é tão tímida, tão pura... ai! tende compaixão! CARLOS e GABRIELA - Sim, compaixão! CAPITÃO-GENERAL - Verei... verei... CARLOS e GABRIELA - Sim, compaixão! CAPITÃO-GENERAL - Terei... terei... CORO ( Às gargalhadas.) - Ah! ah! ah! ah! ah! ah! Olaré Olaré, etc. CAPITÃO-GENERAL (A Carlos) - Mais tarde pensaremos na vingança agora não; como eu te prometi, vai entre nós haver aqui muito prazer, muita folgança... CAPITÃO-GENERAL (A meia voz) Um dia, olé! te casarás. muito m'hei de rir; tu verás... CARLOS - Mas senhor.... CAPITÃO-GENERAL - Tu verás... (Aos oficiais.) - Á f'licidade conjugal vamos beber deste casal! GABRIELA (A Carlos.) - Fazias tanto espanto... tanto... tanto... O capitão é até bem folgazão! CARLOS - Oh! muito folgazão! (Alguns lacaios trazem vasos e taças.) CAPITÃO-GENERAL (De taça em punho.) Bebei do vinho do Porto; bebei, porque dá conforto! TODOS - Bebei do vinho do Porto, etc. (O Capitão-general oferece uma taça a Gabriela.) Canção

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I GABRIELA - Dizia meu tataravô que o casório é um regalório que nunca lhe desagradou; os meus bisnetos tataranetos hão de casar, bem certa estou... Meus folgazões! das libações o momento já se avizinha! Bebei! bebei! cantai! dizei! Viva a formosa noivazinha! TODOS (Menos Carlos.) - Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL (A Carlos, declamando.) - Então tu, Carlitos! CARLOS (Contrariado.) - Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL (Arremedando-o.) - Viva a formosa noivazinha! TEOBALDO, MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES (Simultaneamente.) - Viva a formosa noivazinha GABRIELA - Olé! tirolé! lé! É bom bom bom bom bom! O casamento, olé! o casamento é bom! CORO Olé! tirolé! lé! etc. II GABRIELA - Dizem que a vida conjugal - é encantadora, - é maçadora; é mel e fel - regra geral! Eu tenho dito e hoje repito que não lhe vejo nenhum mal! Meus folgazões das libações o momento já se avizinha! bebei, bebei cantai, dizei: Viva a formosa noivazinha! TODOS (Menos Carlos) - Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL (A Carlos, declamando.) - Então não bebes! não cantas? O que tens, meu amigo? CARLOS (Contrariado.) -Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL (Arremedando-o.) - Viva a formosa noivazinha! TEOBALDO, MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES (Simultaneamente.) - Viva a formosa noivazinha CORO - Olé! tirolé! lé! É bom bom bom bom bom! O casamento, olé!

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o casamento é bom! [(Cai o pano)] ATO TERCEIRO Varanda, ocupando os dois ou três primeiros planos do teatro, e separada ao fundo por ligeiras colunas de um terraço donde se vê o panorama da cidade de Porto Alegre. Portas à direita e á esquerda. CENA I MANUEL DE SOUZA, e soldados. (Ao erguer o pano, desponta a aurora. Os soldados estão deitados na varanda e no terraço em posições diversas. Manuel de Souza ressona em uma cadeira colocada contra a porta da direita. No fundo vela um soldado. Música na orquestra, acompanhada pelo ressonar dos que dormem. Ouve-se ao longe rufar o tambor. Alguns soldados levantam a cabeça.) Introdução CORO - Plã! rataplã! Do regimento é o tambor! Já nos desperta o maçador! Plã! rataplã! É cara ter de não o ouvir e que se dorme é já fingir. Plã! rataplã! (Tornam a deitar-se e desatam de novo a ressonar. Novo rufo.) MANUEL DE SOUZA (Acordando.) - Plã! rataplã! Alerta! Alerta! É o tambor que nos desperta... (Erguem-se todos. Os tambores entram em cena precedidos de um tambor mor. Pleno dia.) Coro geral - Rataplã! rataplã! É o tambor! Que maçador! (No fim do coro, estão todos alinhados à boca da cena.) MANUEL DE SOUZA (Esfregando os olhos e espreguiçando-se.) - Brrr! Está fresco, está. Fiz mal em dormir. Façamos a reação! (Começa a percorrer velozmente a cena. Para em frente aos soldados e brada em voz de comando.) Ombro armas! Apresentar armas! Isso... Desmanchar fileiras!... (Ninguém se mexe. Manuel de Souza tira o chapéu e diz com toda cortesia.) Os senhores fazem-me o especial obséquio de desmanchar fileiras?... TODOS - Am... (Dispersam-se.) MANUEL DE SOUZA - Hein? Que disciplina! Como obedecem! É porque eu cá não lhes dou confiança! Não vê! Eles já me conhecem! 1º SOLDADO (Aproximando-se de Manuel de Souza e apoiando-se-lhe no ombro.) - Diga-me cá, ó capitão. 2º SOLDADO (Fazendo o mesmo do outro lado.) - Ó capitão, diga-me cá. MANUEL DE SOUZA - Então! que liberdade é esta!? (Olhando a sorrir para eles.) Vocês são uns grandíssimos velhacos!

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1º SOLDADO - Ó capitão, faça o favor de dizer-nos por que motivo ficamos aqui de guarda durante toda a noite. MANUEL DE SOUZA - O que vocês querem sei eu: desejam saber por que o Capitão-general, depois de haver bebido ontem à saúde do francesito e de sua cara metade, separou-os, cada um em seu quarto... É isso ou não é? TODOS - Sim, sim! MANUEL DE SOUZA - E nos ordenou que guardássemos as portas dos ditos quartos até nova ordem? 2º SOLDADO - É isso mesmo. MANUEL DE SOUZA - É isso que vocês querem saber? TODOS - Sim! MANUEL DE SOUZA - Ora! a razão é muito simples... TODOS (Esperançosos.) - Ah! MANUEL DE SOUZA - A razão sei eu... TODOS (O mesmo.) - Ah! MANUEL DE SOUZA - Mas vocês é que não hão de saber.... TODOS (Com despeito.) - Oh! MANUEL DE SOUZA - Vocês são muito novos ainda... 1º SOLDADO - Ora, meu capitãozinho, diga-nos... TODOS - Capitãozinho, capitãozinho! (Cercam-no.) MANUEL DE SOUZA - Andem lá! Vocês são os meus pecados! Pois bem! Vá lá! Vou dizer-lhes tudo: ouviram? (Toma um soldado em cada braço, e dá alguns passos, como que dispondo-se a entabular conversação com eles.) Meus amigos, meus bons amigos, meus excelentes companheiros d'armas, saibam todos que o Monsiú Carlos... Cena II Os mesmos e Gertrudes GERTRUDES (Fora.) - Obrigado! Não é preciso! Eu mesmo vou ter com ele... MANUEL DE SOUZA (Desembaraçando-se dos dois soldados.) Depressa! Cerrar fileiras! (Enfileiram-se.) Sentido! Ombro armas! GERTRUDES (Que entra com um pequeno cesto debaixo do braço, contemplando-o.) - Como ele é bonito a comandar! (Indo a ele.) Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! Estavas aí? GERTRUDES - Sim, Manuel. Como sabes lidar com esta gente! Quem foi que te ensinou estas manobras?... MANUEL DE SOUZA - Isto é instinto: eu tenho a bossa das armas... (À parte.) Sou muito boçal... sou... (Alto.) Além disso não dou confiança a esta gente. Vê tu lá que disciplina! Faz gosto, hein, Gertrudinhas?... (Voltando-se, vê que estão todos debandados.) Então?... Cerrar fileiras!... (Ninguém se mexe.) Cerrar fileiras!... (Com cortesia.) Meus senhores, fazem-me o especial obséquio de cerrar fileiras?... (Enfileiram-se.) Estás vendo? E agora ... Meia volta à esquerda... não! quero dizer à direita... à... Ora! meia volta à direita ou onde muito bem quiserem. Volver! Ordinário, marche! (Desfilada; passo redobrado. Os soldados saem depois de haverem desfilado.) MANUEL DE SOUZA (Ao fundo, satisfeito, vendo-os sair.) Isto é que é vida! Isto é que é vida! GERTRUDES - Aqui te trago o almoço. MANUEL DE SOUZA - Quem o traga sou eu. (Gertrudes tira do cesto um bolo e uma pequena cafeteira.) Quanto és boa, Gertrudinhas! GERTRUDES - Toma, bebe... MANUEL DE SOUZA (Comendo.) - Estou te desconhecendo, Gertrudinhas! essa ternura não é natural em ti... Aposto que queres me pedir alguma coisa? GERTRUDES - Apostas muito bem... MANUEL DE SOUZA - Ah! eu cá sou muito perspicaz! Vamos lá! O que temos?

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GERTRUDES - Manuel de Souza, quero voltar para a estância contigo... Faz idéia como andará aquilo, entregue, como está, em mãos alheias. MANUEL DE SOUZA - Homem! já não me lembrava que, antes de ser capitão, era estancieiro! GERTRUDES - Além disso, tu aqui corres muito risco... MANUEL DE SOUZA - Eu?... GERTRUDES - Sim. Tu és um rapaz bonito... (Manuel vai protestar, Gertrudes grita.) Não me digas o contrário! És um bonito rapaz... Em Porto Alegre as mulheres dão o beicinho pelos militares... Enfim, Manuel de Souza, tenho medo... tenho medo... MANUEL DE SOUZA - Ora o que te havia de lembrar?! GERTRUDES - Não fiques, sim? MANUEL DE SOUZA - Mas... GERTRUDES - Recusas! Tens então motivo para ... MANUEL DE SOUZA - Pois, Gertrudinhas, queres que eu parta a minha espada? GERTRUDES - Preferes partir-me o coração? MANUEL DE SOUZA - Pois bem! parto. GERTRUDES - Partes-me o coração? MANUEL DE SOUZA - Não! Parto, isto é, vou-me embora! GERTRUDES - Oh! ainda bem! MANUEL DE SOUZA - Mas olha que isto tem suas formalidades, hein? Eu não posso arredar pé daqui sem licença do Capitão-general. GERTRUDES - Hei de pedir-lhe a tua baixa; expor-lhe-ei minhas razões. Anda daí. MANUEL DE SOUZA - Qual anda daí nem meio anda daí. Eu não posso arredar-me... GERTRUDES - De quê? MANUEL DE SOUZA - De quê, meu anjo? da guarda! E o meu dever de soldado? Pois não sabes que estou de serviço? (Põe-se a percorrer a cena.) GERTRUDES - Mas... MANUEL DE SOUZA - Passe de largo! GERTRUDES - Meu Deus! que rigor! (Pausa. Manuel percorre a cena. Gertrudes põe-se a imitá-lo, subindo quando ele desce e vice-versa.) É verdade... Ainda ali está metida aquela pobre moça... E quando me lembro que sou eu a culpada.... MANUEL DE SOUZA - Se não fosses tão ciumenta... GERTRUDES - Pobrezinha! Como deve ter sofrido! Para nós, mulheres, o amor é sofrimento. MANUEL DE SOUZA - Bravo! Gostei! Continue! (À parte.) Dá-lhe às vezes para isto!. Cena III Os mesmos e Castelo Branco CASTELO BRANCO (Entrando.) - Minha filha! Onde está a rapariga?... (A Manuel de Souza.) É ali o seu aposento, senhor capitão? MANUEL DE SOUZA - Sim, mas não pode entrar, Senhor Morgado. CASTELO BRANCO - Chame-me antes Capitão-mor. MANUEL DE SOUZA (Emendando.) - Senhor Capitão-mor. CASTELO BRANCO - Homem! Ás nove horas! Enfim! Ora imaginem que ontem, no momento em que todos se retiravam, achamo-nos separados, não sei como, nem como não... Eu queria despedir-me dela, pois pretendia partir hoje muito cedo... Sosseguei, porque, enfim, a rapariga estava sob salvaguarda do seu marido! GERTRUDES e MANUEL DE SOUZA - Hein? Ele não sabe de nada! CASTELO BRANCO - Agora, porém, já são mais que horas de... (Chamando.) Gabriela? Ó rapariga, olha que são horas! MANUEL DE SOUZA - Silêncio! Passe de largo! GABRIELA (Fora.) - Ah! papai!... papai!... Abra! CASTELO BRANCO - Como?!... GABRIELA (Fora.) - Estou aqui fechada!

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CASTELO BRANCO - Fechada! A rapariga fechada! MANUEL DE SOUZA - Sim, senhor Morgado... CASTELO BRANCO - Chame-me antes Capitão-mor. MANUEL DE SOUZA - Sim, senhor Capitão-mor. (Baixo.) E sozinha... CASTELO BRANCO - Sozinha! Esta agora! E o marido? MANUEL DE SOUZA - Ah! O marido anda por outra freguesia. CASTELO BRANCO - Como por outra freguesia?... GERTRUDES - O marido passou a noite em outro quarto. CASTELO BRANCO - Hein?... GERTRUDES - O Capitão-general foi que assim quis! CASTELO BRANCO - O Capitão-general?! GABRIELA (Fora.) Papai! CASTELO BRANCO - Já vou, já vou! Não insistas, rapariga! (A Manuel de Souza.) Então solta-se ou não a pequena? GERTRUDES - Aquilo corta o coração... Vou abrir a porta... MANUEL DE SOUZA - Mas é que... GERTRUDES - Ora! Se está preso o marido, que inconveniente pode haver em soltar a mulher? (Abrindo a porta da direita.) Vamos... saia... (Gabriela sai triste, com os olhos pisados.) Cena IV Os mesmos e Gabriela CASTELO BRANCO - Minha filha! GABRIELA - Ah! papai, papai! Eu sou muito caipora! CASTELO BRANCO - Então o que há?... GABRIELA - Se papai soubesse... Ora, ouça. Quarteto GABRIELA - Naquele quarto entrei sozinha, supondo que lá fosse ter o meu amor logo à noitinha, porque assim costuma ser. GERTRUDES - Costuma ser... CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Costuma ser... GABRIELA - O pranto meu correu a fios, por semelhante ingratidão... GERTRUDES - Ela ficou a ver navios... que decepção! CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Que decepção! GABRIELA - A hora passou... GERTRUDES - A hora passou... GABRIELA - E meu amor não se chegou! GERTRUDES - E seu amor não se chegou! GABRIELA - Ah! não tem jeito! JUNTOS - Ah! é mal feito! Não faz-se isto a ninguém! Ah! não tem jeito! Qual jeito! qual jeito! Qual! Jeito não tem! GABRIELA - Cansada, enfim, de ver navios não tendo com que me entreter, de um sofá nos coxins macios

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eu procurei adormecer. GERTRUDES - Adormecer... CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Adormecer... GABRIELA - Na minha funda mágoa imersa o sono meu fugir eu vi. GERTRUDES (A Manuel de Souza.) - Hein? foi por causa bem diversa que eu não dormi... MANUEL DE SOUZA - Que eu não dormi... GABRIELA - A hora passou, etc. CASTELO BRANCO - Vamos, vamos! Não te aflijas tanto! Teu marido é impossível que esteja perdido! Havemos de achá-lo! GABRIELA - Confundi-lo CASTELO BRANCO - Repreendê-lo! GABRIELA - Repreendê-lo! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! Vem, vem comigo! Pobre pequena! é mesmo muito caipora! GABRIELA - Muito... CASTELO BRANCO - Não insistas... (Saem.) Cena V Gertrudes, Manuel de Souza, depois o Capitão-General e Teobaldo GERTRUDES - Veja, Manuel de Souza! Mire-se naquele espelho! Aquilo sim; aquilo é que se chama de amor, afeição, dedicação, resolução... MANUEL DE SOUZA - E tudo que acaba em ão. GERTRUDES - Você era lá capaz de andar à minha procura, se me houvesse perdido? MANUEL DE SOUZA - Ora, pois julgas... (À parte.) Seria preciso que me houvesse perdido também o juízo! CAPITÃO-GENERAL (Entra seguido por Teobaldo que traz uma ruma de livros.) - Deita tudo isto cá, Teobaldo... TEOBALDO - Sim, Senhor Capitão-general! (Depõe os livros e sai.) Cena VI Os mesmos, menos Teobaldo, depois Carlos MANUEL DE SOUZA - O Capitão-general... (Encaminha-se para ele, e cumprimenta.) Senhor... CAPITÃO-GENERAL - Viva! viva! Traga-me cá o Carlitos. MANUEL DE SOUZA - É já... GERTRUDES (Baixo a Manuel.) - Boa ocasião para pedir-lhe a tua baixa. (Indo ao capitão.) Preciso muito falar a Vossa Excelência. CAPITÃO-GENERAL (Preocupado.) - Mais tarde. GERTRUDES - A respeito de meu marido... CAPITÃO-GENERAL - Não tenho tempo agora... GERTRUDES (Seguindo-o.) - Ele anda doente, e este serviço continuado... CAPITÃO-GENERAL - Já lhe fiz ver que não tenho tempo agora... (A Manuel de Souza.) Vá buscar o homem! GERTRUDES (À parte.) - Fica para outra vez... (Manuel de Souza abre a porta da esquerda.) CARLOS (Saindo, a Manuel de Souza.) Ah! Meu amigo, o que se tem passado aqui? Onde está minha mulher? O que me contas de novo?... MANUEL DE SOUZA - Cala-te! Olha o Capitão-general! CARLOS - Oh!

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CAPITÃO-GENERAL - Deixem-nos sós. GERTRUDES (À parte, saindo com Manuel de Souza) - Fica para outra vez! (Saem.) Cena VII O Capitão-General e Carlos (Momento de silêncio. O Capitão-general, a esfregar as mãos, passeia em redor de Carlos, que o examina inquieto, de soslaio.) CAPITÃO-GENERAL (Cantarolando.) - Um dia, olé! te casarás!... CARLOS (À parte.) - Parece estar satisfeito... CAPITÃO-GENERAL (O mesmo.) - Um dia, olé... (Momento de silêncio.) CARLOS (À parte.) Oh! meu Deus! dar-se-á caso que... Eu tremo... CAPITÃO-GENERAL (Parando.) - Bom dia, Carlitos; como passaste a noite? CARLOS - Mas... CAPITÃO-GENERAL - Eu passei muito bem, muito bem... CARLOS - Meu Deus! CAPITÃO-GENERAL - Está tranqüilo... Não é ainda o que supões! CARLOS (Suspirando.) - Ah! CAPITÃO-GENERAL - Mas deixa estar, deixa estar... Isso há de ser um dia... não tenho pressa... CARLOS (Vivamente.) - Nem eu... CAPITÃO-GENERAL - À noite passada refleti maduramente sobre o caso, já tenho o meu plano. CARLOS - Ah! CAPITÃO-GENERAL - Vou continuar da mesma maneira que encetei... Vê estes livros? CARLOS - Sim. Vejo. CAPITÃO-GENERAL - Tua mulher os lerá um por um, sentada ao meu lado... CARLOS - Todos?! CAPITÃO-GENERAL - Todos e outros muitos. Minha biblioteca é imensa! Afinal de contas, terás uma mulher ilustrada... CARLOS - Muito ilustrada! Oh! mas como estou prevenido, defender-me-ei. CAPITÃO-GENERAL (Arremedando.) - Defender-me-ei!... Tem graça! pois já não te fiz ver que o meu plano está feito?... Naquele tempo (lembras-te) eu não me defendi... de nada sabia... Já vês que convém restabelecer o equilíbrio. (Chamando.) Teobaldo! (Teobaldo aparece.) Vai buscar o Capitão Manuel de Souza! TEOBALDO - Sim, Senhor Capitão-general. (Sai.) CARLOS - O que vai Vossa Excelência fazer? CAPITÃO-GENERAL - Vais ver... Trata-se de restabelecer o equilíbrio... Cena VIII Os mesmos, Manuel de Souza e Gertrudes GERTRUDES (Correndo, ao Capitão-general.) - Vossa Excelência mandou-nos chamar? Foi sem dúvida para ouvir o que tenho para dizer a Vossa Excelência. É a coisa mais simples desta vida, Senhor Capitão-general: meu marido... CAPITÃO-GENERAL - Não se trata disso... GERTRUDES (À parte.) - Fica para outra vez. CAPITÃO-GENERAL (A Manuel de Souza.)- Capitão, leve este senhor ao pavilhão amarelo, onde o guardará à vista até nova ordem. CARLOS - Preso! CAPITÃO-GENERAL - Não faças disto um bicho-de-sete-cabeças. Aquilo não é uma prisão, é um ninho. (A Manuel de Souza.) - Vá!... MANUEL DE SOUZA - Mas Senhor Capitão-general, é que... CAPITÃO-GENERAL - O quê? MANUEL DE SOUZA - Minha mulher...

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GERTRUDES - Deixa-me falar! Excelentíssimo Senhor, eu sou um pouco ciumenta. meu marido teve um passado tempestuoso! MANUEL DE SOUZA - Tu exageras, Gertrudinhas! GERTRUDES - Cala-te, escalda-favais! CAPITÃO-GENERAL - E então? GERTRUDES - O que mais me incomoda é a história do retrato. Havia nesta cidade uma sujeita por quem ele andou apaixonado, não duvido que ela ainda esteja em Porto Alegre... CAPITÃO-GENERAL - E?... GERTRUDES - E, para evitar um encontro, quero carregar daqui o meu Manuel de Souza! Assim, pois peço a Vossa Excelência que lhe mande dar baixa.. CAPITÃO-GENERAL - Por enquanto seu marido me faz muita falta. Mais tarde falaremos... GERTRUDES - Mas... CAPITÃO-GENERAL - Basta! GERTRUDES (À parte.) - Fica para outra vez. CAPITÃO-GENERAL - Capitão, cumpra as minhas ordens. (Sai.) MANUEL DE SOUZA - Sim, senhor. (Indo a Carlos, rindo-se.) - Ah! ah! ah! ah! Pobre Carlos ! O caso não é para rir, porque enfim és muito meu amigo, mas... Ah! ah! ah! não posso... (A Gertrudes, sério.) É muito meu amigo! GERTRUDES (Não podendo conter o riso.) - Ah! ah! ah! é muito teu amigo. CARLOS (Despeitado.) - Muito riso, pouco siso... MANUEL DE SOUZA - Ah! ah! ah! meu amigo... Dá cá a tua espada. Gertrudinhas, dá-lhe o braço... (Gritando.) - Meia volta à esquerda! Não, não! Como quiserem! Vamos! (Gertrudes toma um braço e Manuel de Souza e levam Carlos às gargalhadas.) Cena IX O Capitão-General, depois Gabriela e Castelo Branco CAPITÃO-GENERAL (Só.) - Vai tudo às mil maravilhas! GABRIELA (Aparecendo com o pai.) - Venha, papai! Meu pobre maridinho preso! Oh! hão de mo restituir, olé! CAPITÃO-GENERAL - Ei-la! GABRIELA - O Capitão! (Ao pai.) Vai ver como lhe falo! CAPITÃO-GENERAL (À parte.) - É agora! (Alto.) Minha amável leitora... GABRIELA (Ao pai.) - Já não me atrevo... CASTELO BRANCO - Anda, desembucha. GABRIELA (Timidamente.) - Preciso falar a Vossa Excelência. CAPITÃO-GENERAL - Já sei o que vem me pedir. É inútil! Está preso, e preso ficará! GABRIELA - Oh! ,meu pobre maridinho! Quero-lhe tanto! É tão lindo, tão terno, tão generoso... (Mudando o tom.) Por que Vossa Excelência mandou prender? CAPITÃO-GENERAL - Porque... porque havia motivos. GABRIELA - Mas que motivos?... CAPITÃO-GENERAL - Isso é que não lhe direi! GABRIELA - E se eu pedisse a Vossa Excelência que esquecesse desses motivos? CAPITÃO-GENERAL - É impossível! GABRIELA - Impossível! CASTELO BRANCO (Baixo.) - Insiste, rapariga, insiste! GABRIELA - Se suplicasse de mãos postas... CAPITÃO-GENERAL - Não! não! CASTELO BRANCO (Como acima.) - Insiste, rapariga, insiste.! GABRIELA - Meu bom Capitão-generalzinho!

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CAPITÃO-GENERAL (À parte.) Hein? GABRIELA (Com as mãos nos ombros do Capitão-general.) - Dá-me o meu maridinho, sim? CASTELO BRANCO (Colocando-se ao lado do Capitão-general.) - Então? Faça a vontade da rapariga! (Dá-lhe uma cotovelada. O Capitão-general encara-o com severidade.) Oh! Perdão! CAPITÃO-GENERAL (A Gabriela.) - Não posso, não posso! Só dando-me... (Filando-a.) uma compensação... GABRIELA - Uma compensação? Então quer Vossa Excelência que eu lhe dê uma compensação?... CAPITÃO-GENERAL - Sim... GABRIELA - É que... (Tendo uma idéia.) Ah! achei! CAPITÃO-GENERAL (Vivamente.) - Deveras? GABRIELA - Decerto... a tal propriedade de papai, que tira a vista do rio a Vossa Excelência. CASTELO BRANCO - O meu cochicholo! GABRIELA - Dou-lhe em troca da liberdade de meu marido. CAPITÃO-GENERAL (Desapontado.) - Ora! CASTELO BRANCO - Mas o que é lá isso? O cochicholo! Não insistas, rapariga! GABRIELA (Ao Capitão-general.) - Então está dito? CAPITÃO-GENERAL - O cochicholo... É que... não digo que... GABRIELA (Afagando-o.) - Oh! como eu agradecerei a Vossa Excelência... CAPITÃO-GENERAL (Comovido, à parte.) - Então? A pequena não me está entendendo? (Alto.) Não é essa a compensação... GABRIELA - Pois não é essa?... (Quase a chorar.) Não vejo mais nada... CAPITÃO-GENERAL (Levando-a a parte.) - Pois bem... eu quero... eu que... GABRIELA (Fitando-o com simplicidade.) - O quê? CAPITÃO-GENERAL (Vencido pelo olhar da moça.) - Não! Seria um sacrilégio! É tão inocente! (Alto.) Nada, nada, minha filha, nada quero. (Chamando.) Ó Teobaldo. TEOBALDO (Aparecendo.) - Excelentíssimo.. CAPITÃO-GENERAL - Mande que ponham o Senhor Carlos em liberdade e tragam-no cá. GABRIELA (Alegre.) - Ah! CAPITÃO-GENERAL - Vê? Satisfaço seu pedido... Mas imponho uma condição... GABRIELA - Qual? CAPITÃO-GENERAL - Há de jurar-me que não dirá a seu marido o meio que empregou para obter a liberdade dele. GABRIELA - Juro! CAPITÃO-GENERAL (À parte.) - A pequena desarmou-me... Mas as aparências vingar-me-ão! (Alto.) Então? Agora estás bem comigo?... GABRIELA (Muito alegre.)- Pudera não! CAPITÃO-GENERAL - Seremos amigos! Venha de lá um abraço! GABRIELA - Com mil desejos! (Salta ao pescoço do Capitão-general e abraça-o; neste momento, Carlos aparece ao fundo.) Cena X Os mesmos e Carlos CARLOS - Ah! CAPITÃO-GENERAL (Com Gabriela ainda nos braços.) - Meu amigo, chegaste muito a propósito. Tenho uma excelente nova a dar-te: estás livre, absolutamente livre! CARLOS (Aterrado.) - Ah! estou livre... CAPITÃO-GENERAL - Não te fiz esperar muito tempo... Então, não vais abraçar tua mulher? GABRIELA (Indo a ele.) - Meu amigo... CARLOS (Repelindo-a e descendo à direita.) - Não! não! GABRIELA (Surpresa.) - Como! CAPITÃO-GENERAL (Indo a Carlos.) - Meu Deus! com que cara estás tu!

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Coplas - Ter um marido essa cara em plena lua de mel, na verdade é coisa rara! Faz um ridíc'lo papel! Porventura arrependido do casamento estarás? Esse todo aborrecido de todo mostra que estás. Porém tu, não tens motivo: sem adulação ela tem, maganão... maganão... maganão... milhares de atrativos!... II Aqui, que ninguém nos ouve, namoradeira ela é; mas, não sei se alguém já houve que fizesse aqui filé. Tem paciência, meu caro, pois que muito vale, crê, ver certas coisas a claro e fazer que se as não vê. Mas não sejas vingativo: sem adulação, etc. CAPITÃO-GENERAL - Bem. Eu deixo-te, meu bom Carlitos. Até logo! (A Gabriela.) Até logo, minha senhora. (Rindo.) Ah! Ah! Ah! (Saindo.) Maganão... Cena XI Gabriela, Carlos e Castelo Branco (Carlos está desviado dos mais, sombrio e abatido.) CASTELO BRANCO (Indo a ele.) - Estou-o estranhando, senhor meu genro! Vossa Mercê devia estar alegre... CARLOS - Alegre eu! GABRIELA (Indo a ele.) - Agora que o Capitão-general já cá não está, abraça-me! CARLOS - Abraça-la! tinha graça! GABRIELA (Aflita.) - Oh! papai!... papai! Ele não me quer abraçar! CASTELO BRANCO - Pois não insistas, rapariga. (A Carlos.) Vossa Mercê é um ingrato. Saiba que a ela é que deve a graça que acaba de obter! CARLOS - Mas foi com a minha desgraça que se pagou semelhante graça! Abraçá-la! Tinha graça! GABRIELA (Ao pai.) - Então, ele já sabe do cochicholo... CASTELO BRANCO - Provavelmente foi o ajudante de ordens que lho disse. GABRIELA - Pois bem! já que sabe de tudo, diga-me: não foi uma boa idéia? CASTELO BRANCO - Sim? CARLOS (Levantando as mãos para o céu.) - Uma boa idéia. Que cinismo! CASTELO BRANCO (A Gabriela.) - Vês? está contrariado! A culpa foi tua... Eu bem te disse: Não insistas, rapariga... Devias consultá-lo...

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GABRIELA - Pois preferias ficar na prisão por amor de uma insignificância? CASTELO BRANCO - E deixe dizer-lhe: ele já estava um tanto estragado, velho, sujo... CARLOS - É o requinte do cinismo! GABRIELA - Vamos lá! A intenção era boa... Só deves olhar para a intenção... (Com meiguice.) Então, meu queridinho?... CARLOS (Desabridamente.) - Eu não sou seu queridinho!... CASTELO BRANCO (À parte.) - Palavra d'honra! Nunca o supus tão agarrado ao dinheiro! (Alto, a Gabriela.) Não insistas, rapariga! GABRIELA - Isto não tem jeito! Coplas - Para livrar-te de medonha prisão, astúcias empreguei, e tu me fazes carantonha... qual a razão? Não sei... não sei... Pois deves estar satisfeito! quem mais fará por ti? Ninguém! Anda lá, foi pra teu bem que fiz o mal que já 'stá feito. Deixe estar que te ensinarei... Eu nada mais por ti farei! II Os bens que eu trouxe em casamento menos valor, bem sei, vão ter; porém nem todas, rabugento, mesmo esse pouco hão de trazer. Ó céus! que cara enfarruscada! Ó céus! que olhar feroz! feroz! Não tens razão, pois, entre nós, o mal que eu fiz não vale nada... Deixe estar que te ensinarei Eu nada mais por ti farei! GABRIELA (Vendo que Carlos está calado.) - Então, não me dizes nada?... CASTELO BRANCO - Deixa-o lá rapariga... não insistas, não insistas... vem para junto de teu pai... CARLOS - Oh! pode-a levar para sempre! Restituo-lha! GABRIELA - Hein? CASTELO BRANCO - Restitui-ma! GABRIELA - Como? Por causa de uma bagatela? CARLOS (Amargamente.) - Sim, minha senhora, por causa de uma bagatela. GABRIELA (Aflita.) - Ah! papai! CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! (A Carlos com dignidade.) - Está bem, tomo conta outra vez da minha filha... Seu velho pai cá está para ampará-la... Coragem, Gabriela, coragem! GABRIELA (Com esforço.) - Hei de tê-la, papai, hei de tê-la! Adeus, senhor... CARLOS (Secamente.) - Adeus! (Sobe a cena e dirige-se à esquerda.) CASTELO BRANCO Meu genro... quero dizer: senhor, eu não o cumprimento, ouviu? Vamos rapariga! (Sai. Gabriela vai para sair também, mas deixa-se cair em uma cadeira e desata a chorar. Carlos, que tinha parado no fundo, volta-se e dá com ela.)

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Cena XII Gabriela e Carlos CARLOS (Voltando, à parte.) - Ela chora... GABRIELA (Vendo-o.) - Ele! Oh! Não quero que veja estas lágrimas! (Passando diante de Carlos, enxuga os olhos vivamente.) Dueto CARLOS - Tu choras, meu amor?! GABRIELA - Não choro, não, senhor... e se chorar, oh! não se importe! CARLOS - Queres em vão parecer forte! Tu choras, meu amor... GABRIELA - Chorar! Eu? Não, senhor. CARLOS - Chorando me desarmas! de ti quero fugir, porém a essas armas não posso resistir! Juntos CARLOS - Chorando me desarmas! etc. GABRIELA - As lágrimas são armas que devo lhe encobrir... Convém não avistar-mas, pois quero resistir! Por que tamanha inquietação?... Veja, senhor: não choro, não! CARLOS - Mas... GABRIELA - Quê... CARLOS - Estás bem certa disso? GABRIELA - O pranto meu não desperdiço. CARLOS - Com que então, não choras, não? GABRIELA - Chorar! Por quem? Por ti? Oh! tinha graça... Dar pranto e receber ingratidão. Choramingar! Ai! que chalaça! Não, não, senhor, não choro não! CARLOS (Vivamente.) - Tu choras! GABRIELA (Fracamente.) - Eu não choro, não. CARLOS - Tu choras! GABRIELA (Mais fracamente.) - Eu não choro, não. CARLOS - Tu choras! GABRIELA (Desatando a chorar.) - Eu não choro, não... Juntos CARLOS - Chorando me desarmas, etc. GABRIELA - As lágrimas são armas, etc. CARLOS - Gabriela! GABRIELA - Carlos! CARLOS - Jura que não me enganaste! GABRIELA - Enganar-te eu! Pois supuseste!...

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CARLOS - Sim. sim! Não é possível! Onde tinha eu a cabeça?! É que este perdão dado de repente... Dize como o obtiveste. GABRIELA - Não posso... CARLOS (Mudando de tom) - Não podes? GABRIELA - Fiz um juramento... CARLOS - Não ousas confessar! Já não duvido de coisa alguma! Tenho plena certeza de tudo! GABRIELA - Então, meu queridinho! CARLOS - Cale-se!... Eu não sou seu queridinho! Deixe-me! deixe-me! Eu enlouqueço, meu Deus! (Deixa-se cair em uma cadeira à direita.) GABRIELA (Fazendo o mesmo em outra cadeira à esquerda.) - Afinal de contas, o que lucro eu com o haver feito sair da prisão? Cena XIII Os mesmos e o Capitão-General CAPITÃO-GENERAL (A Carlos.) - Então o que é isto, Carlitos? Ainda arrufados? CARLOS (Erguendo-se.) - Ah! Vossa Excelência não me dirá?... CAPITÃO-GENERAL - Não te direi absolutamente nada. És muito curioso! GERTRUDES (Fora.) - O Senhor Capitão-general! Onde está o Senhor Capitão-general? CAPITÃO-GENERAL - Que bulha é esta? Cena XIV Os mesmos, Getrudes, Manuel de Souza, Teobaldo, Castelo Branco, Oficiais de lanceiros e soldados. GERTRUDES (Aparece ao fundo trazendo Manuel de Souza arrastado e seguida por todos.) - Ah! ei-lo ali! Venha! venha! MANUEL DE SOUZA - Mas, Gertrudinhas... GERTRUDES - Cale-se! (Ao Capitão-general.) Agora, Excelentíssimo Senhor, não pode ficar para outra vez! Ela cá está! CAPITÃO-GENERAL - Ela quem? GERTRUDES- Ela, a original do retrato. CAPITÃO-GENERAL - Então, deve ser ele! Ela o original! É original! GERTRUDES - A amante de meu marido! Ainda não há dois minutos, passando por uma das salas do palácio, vi pendurado á parede... O quê? O mesmo retrato em ponto grande... Tal e qual este, Excelentíssimo Senhor. (Tira o retrato da algibeira e mostra-o.) CAPITÃO-GENERAL (Olhando, dá um grito.) - Que vejo! (Á parte.) Minha mulher! (Vendo Manuel de Souza.) Vamos! Decididamente a defunta não merecia a minha vingança. (Alto a Carlos.) Carlitos, podes abraçar tua mulher, dou-te minha palavra de honra... CARLOS e GABRIELA - Oh! (Abraçam-se.) CARLOS (Baixo a Gabriela.) - Mas o perdão? Como o obtiveste? GABRIELA - Dei-lhe o cochicholo de papai. CAPITÃO-GENERAL (A Gertrudes.) - Pode carregar com seu marido. GERTRUDES - Ah! Manuel de Souza! CAPITÃO-GENERAL - Está terminada a comédia. (A Gabriela.) Minha senhora, compete-lhe cantar o couplet final. GABRIELA - Mas, Senhor Capitão-general... CASTELO BRANCO - Não insistas, rapariga! GABRIELA (Ao público.) Ai! que vidinha! que vidão! com meu marido estremecido agora eu vou ter, verão!

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Somente resta no fim da festa, saber se a peça agrada ou não... É pois mister que eu, a tremer, vos fale e peça o que vos peço: mil palmas sai, assegurai À Casadinha um bom sucesso! TODOS (Simultaneamente.) À Casadinha um bom sucesso! GABRIELA - Olé! tirolé! lé! é bom bom bom bom O casamento, olé! TODOS - Olé! tirolé! lé!, etc. [(Cai o pano)]

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Abel e Helena Peça cômica e lírica Escrita a propósito da ópera-cômica A BELA HELENA de HENRIQUE MEILHAC E LUDOVICO HALÉVY Música de Jacques Offenbach PERSONAGENS Abel, professor público Nicolau, fazendeiro Pantaleão de Los Rios Cascais, vigário da freguesia Alferes Andrade, comandante do destacamento Góis & Companhia, negociantes Filomeno, sacristão, sineiro, etc. Eustáquio, ferreiro Helena, afilhada de Nicolau Pedrinho Juca Sá, estudante de férias Benjamim Marcolina, mucama Um feitor Um empregado do correio Devotas, rapazes, negros, povo, músicos, etc. A cena passa-se em uma freguesia da província do Rio de Janeiro Atualidade. ATO PRIMEIRO QUADRO PRIMEIRO A MISSA Praça pública. Ao fundo a Matriz e a casa de residência do Padre Cascais. É dia de festa. Cena I Povo, depois Cascais e Filomeno (Ao erguer do pano homens e mulheres, defronte da porta de Cascais, apresentam flores, frutas, velas de cera e frango. Flores em mais abundância.) Coro Aceite, ó senhor padre, os mimos que lhe dão de coração os que aqui 'stão com devoção! E lhe pedimos já cheíssimos de fé, que rogue a Deus por nós, se nosso amigo é. Aceite, ó senhor padre, etc.

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UMA RAPARIGA (Oferecendo um ramalhete a Cascais.) - Aceite estas cravinas aceite por favor Não são tão purpurinas? Não têm tão linda cor? OUTRAS RAPARIGAS - Se o seu padre não aceita este raminho já, tomamos por desfeita e não voltamos cá... Coro Aceite estes presentes, se nos quer ver contentes. Aceite ó senhor padre, etc. (Acabado o coro, continua a música na orquestra, enquanto o povo depõe os seus presentes nas mãos de Filomeno, e vai se retirando.) Cena II Cascais e Filomeno CASCAIS - Guarde tudo isso, seu sacristão. FILOMENO - Sim, senhor vigário. (Vai aos poucos levando as oferendas para a casa de Cascais.) CASCAIS - Ora, valha-me Deus! Que presentes! Que presentes! Duas velas de cera, apenas um frango, e flores, flores, e mais flores! (Com desgosto.) Pra que flores? - Ah! Já vai o tempo dos perus e das galinhas gordas... O tempora, o mores! E viva um pobre vigário da modesta côngrua! Já não há fé nos vigários! Já não há fé nos vigários! FILOMENO - Não é tanto assim, senhor vigário; o seu colega de Itapiri... CASCAIS - É exato. É o homem mais feliz que conheço. Até o sermão de hoje mo tiraram para dar-lho, a ele! E levam-lhe bois, porcos, sacos de farinha e de feijão... FILOMENO - Deve fazer bom negócio... CASCAIS - Ora se faz! Mas por cá é o que você está vendo: flores, flores e mais flores! (Como quem se resigna.) Enfim! você há de levar este ramalhete à comadre... (Dá-lhe um ramalhete que tem conservado na mão.) FILOMENO - Sim, senhor vigário. CASCAIS - E o sino?! Trouxeram o sino, que tinha ido ao mestre ferreiro, para segurar o badalo? FILOMENO - Ainda não. CASCAIS - Como ainda não?! FILOMENO - Estou à espera... CASCAIS - Olhe que hoje não podemos passar sem sino! Um dia de tanto júbilo! Festa literária depois da missa das dez... FILOMENO - Vossa Reverendíssima não me explicará o que vem a ser essa festa literária? CASCAIS - Coisas do Senhor Pantaleão de los Rios, que não tem mais o que fazer! Dá um prêmio a quem decifrar uma charada, responder a uma pergunta enigmática e glosar um mote! Ah! Senhor Pantaleão, Senhor Pantaleão! Ne sutor ultra crepidam. FILOMENO - Ora o Seu Pantaleão! CASCAIS - Já vê você que não podemos passar sem o sino! Preciso do sino! FILOMENO - Falai no mau. Aí vem o Mestre Eustáquio com ele. (Eustáquio entra pela direita carregando um pequeno sino.) Cena III Os mesmos e Eustáquio CASCAIS - Então, Mestre Eustáquio, que demora foi essa?

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EUSTÁQUIO - Vossa Reverendíssima desculpe; mas estive ocupado a arranjar umas ferraduras para o senhor juiz de paz, e... Mas cá está o sino, e desta vez, bem seguro o badalo. CASCAIS - Veja lá se o arranca de novo, seu sacristão! EUSTÁQUIO - Olhe! (Agita o sino.) CASCAIS (Precipitando-se para sufocar o som.) - Pare, pare, homem de Deus! vai o povo persuadir-se de que o estou chamando à missa... EUSTÁQUIO - Desculpe... CASCAIS - Também já são horas. Ali vêm algumas devotas e entre elas a juíza da festa. Vamos, seu sacristão, leve o sino para a torre, pregue-o no lugar, e chame à missa. (Filomeno entra na igreja com o sino. A Eustáquio.) Este sacristão acumula, hein? Ele é sacristão, sineiro, oficial de justiça, vende cera e faz a escrita da loja do Polidoro. (Outro tom.) Mestre Eustáquio, venha amanhã receber as duas patacas do ajuste. EUSTÁQUIO - Não há novidade... (Vai-se.) Cena IV Cascais e a juíza da festa, devotas de mantilha, Helena e Marcolina CASCAIS (À juíza da festa.) Viva a juíza! Entre, Dona Bárbara! (Acompanha-a até a porta da igreja. Nisto entra Helena acompanhada por Marcolina. Helena, durante o coro, cumprimenta o vigário.) CORO DE DEVOTAS MOÇAS - Eis de sinhá, falange honesta que também vem gozar a festa, pois jovem ser não é razão que justifique a reclusão HELENA - Ah! que satisfação ser moça como eu sou! O coração se me alvoroça! Quem foi que amores inventou? (Filomeno tem aparecido na torre da igreja, e prega o sino a uma pequena trave.) I HELENA - Meu coração palpita, pulsa por quem chegar vai hoje aqui! Sinto-me, ó céus, toda convulsa, como jamais me senti. Mas, ah! não sei se meu padrinho me deixará ou não casar com meu benzinho. II Ele não tem ...(Faz sinal de dinheiro.) A ver navios eu ficarei talvez, até, só porque dois sacos vazios não se poderão ter em pé. Mas, ah! não sei se meu padrinho me deixará ou não casar com meu benzinho (Continua a música. O coro entra na igreja. O vigário vai a entrar também, mas Helena o agarra e obriga-o a descer com ela à cena. Marcolina conserva-se no fundo.) Cena V Helena, Cascais e Marcolina HELENA - Dá-me uma palavrinha? CASCAIS - Duas e três, se quiser, mas a missa... HELENA - Tem tempo. (Cessa a música.)

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CASCAIS - Estou às suas ordens... HELENA (Dando com Marcolina.) - Vá para a matriz, Marcolina. MARCOLINA - Iaiá, sinhô velho me disse que não deixasse vossemecê sozinha. HELENA - Faze o que te digo! MARCOLINA - Tá bom, eu vou mas depois não quero cumo-chama comigo. (Entra na igreja.) Cena VI Helena e Cascais HELENA - Padre, vim reclamar sua proteção. CASCAIS - Minha proteção, Dona Heleninha? Explique-se. HELENA - Padre, eu já estou em idade de casar-me: vinte e quatro anos não são vinte e quatro horas. CASCAIS - Ciente. HELENA - À última vez que estive na corte, quis o destino que me encontrasse com ele. CASCAIS - Ele quem? HELENA - Abel. CASCAIS - Que Abel? HELENA - Um moço que se apaixonou por mim e por quem tive a fraqueza de me apaixonar. CASCAIS (Sorvendo uma pitada.) - Ciente. HELENA - Desde que voltei para a roça, a sua imagem não me saiu mais do coração. Ai! o padre não sabe o que é o amor! CASCAIS - Tolitur questio HELENA - Amo-o como só se ama uma vez. CASCAIS - Deveras? HELENA - E Abel não tarda aí! CASCAIS - Aí onde? HELENA - Aqui. CASCAIS - Aí aqui? HELENA - Por um desses meios difíceis que só lembram os namorados, Abel conseguiu que uma cartinha me chegasse às mãos. CASCAIS - Por meio de alguma pomba? HELENA - Agora apresentou-se candidato à cadeira de primeiras letras cá da freguesia, fez o exame e apanhou o lugar. CASCAIS - Mas, enfim, o que deseja de mim, Dona Heleninha? HELENA - Sua proteção, repito. Abel é muito pobre e meu padrinho e tutor, como Vossa Reverendíssima sabe, só quer casar-me com sujeito rico. Como Vossa Reverendíssima exerce influência em dindinho, escrevi a Abel, dizendo-lhe que o procurasse. CASCAIS - A quem? ao dindinho? HELENA - Nada! Ao padre. Peço-lhe que seja seu amigo e o apresente a dindinho, já sabe: com alguma recomendação. Ah! ele! sempre ele!. CASCAIS - Ele quem? HELENA - O caiporismo. Já estou ficando tia, e nada de novo! CASCAIS - Tia, Dona Heleninha! A senhora, tia! Distingo! HELENA - Se dindinho não consente em meu casamento com Abel, mato-me! (Ouve-se rumor fora.) CASCAIS (Depois de olhar à direita.) - Ai, ai! Quem vem ali! Está na terra aquele vadio?! HELENA - Quem? CASCAIS - O Pedrinho! vem deitar a freguesia de pernas para o ar! e com que súcia! Entre, Senhora Heleninha, entre... HELENA - Não se esqueça de mim, padre... CASCAIS - Hei de fazer o possível. (Helena entra na igreja.) Com toda a certeza o Nicolau abana as orelhas, mas tudo se há de arranjar.

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Cena VII Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e rapazes vadios da freguesia, dos quais um toca flauta e o outro violão OS RAPAZES (Entrando ruidosamente e envolvendo Cascais.) - Ora viva o senhor vigário! Viva! I PEDRINHO (A Cascais.) -Na cidade me aborrecia: as férias cá passar, pois vim, e trouxe em minha companhia o Juca Sá e o Benjamim (Apresentando Juca Sá e Benjamim a Cascais.) O Benjamim e o Juca Sá! que lhos apresente consinta. CASCAIS -Grande prazer é o que me dá! Senhores eu tenho a distinta ... PEDRINHO - O Benjamim e o Juca Sá! TODOS - O Benjamim e o Juca Sá! (Dançam em volta de Cascais.) Tsing lá lá, tsing lá lá! Lá rá lá rá, lá rá lá rá! II PEDRINHO - Sem mais extensos palanfrórios: estudantes ambos e dois: não passam dos preparatórios... Hão de os fazer lá pra depois... O Benjamim e o Juca Sá! que lhos apresente consinta. CASCAIS -Grande prazer é o que me dá! Senhores eu tenho a distinta... PEDRINHO - O Benjamim e o Juca Sá! TODOS - O Benjamim e o Juca Sá! (Repetem com mais vivacidade as danças.) Tsing lá lá, tsing lá lá! Lá rá lá rá, lá rá lá rá! (No fim das coplas, acha-se de novo Cascais envolvido no grupo.) PEDRINHO - Ora ouça o que aqui nos traz, senhor vigário: saltei do trem, há pouco, com os meus dois colegas. Conhece-os? Apresento-lhe os senhores... CASCAIS - Basta! basta! Você já mos apresentou por música. PEDRINHO - Havíamo-nos reunido a esta rapaziada, quando vimos de longe negrejar a túnica de Vossa Reverendíssima. - O que é aquilo? - O quê? - Aquele ponto negro? - Aquilo é o vigário! - Ah! é o vigário aqui da freguesia? perguntou o Benjamim. - Como se chama? acrescentou o Juca Sá. - Cascais, respondi eu. - Cascais? o ilustre Cascais?! - É o próprio. - Quero vê-lo de perto! - Queremos vê-lo! - E aqui estamos. (A Benjamim e Juca Sá.) Rapazes, aqui têm o vigário! Que tal o acham? BENJAMIM - Bom JUCA SÁ - Muito bom. CASCAIS - Meus bons amigos, a companhia é muito agradável, mas... Com licença... Os deveres do meu cargo estão a reclamar-me. PEDRINHO - Nada de cerimônias, senhor padre, nada de cerimônias; faça de conta que está em sua casa... (Cascais entra na igreja.)

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Cena VIII Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e rapazes. BENJAMIM - Então, não vamos à missa? PEDRINHO - Qual! Vocês ainda não viram a vila. Quero mostrar-lhes todas as curiosidades. JUCA SÁ - Ora! Na matriz é que está o madamismo! PEDRINHO - O madamismo é uma das curiosidades, lá isso é!... BENJAMIM - Nada conheço mais curioso do que a mulher. PEDRINHO - ... Mas teremos tempo de sobra para apreciá-lo, e com todos os ff e rr, em casa do Senhor Pantaleão de los Rios. BENJAMIM - Quem é esse Senhor Pantaleão de los Rios? PEDRINHO - É o delegado literário da freguesia: um espanhol que aqui reside há muito tempo; está naturalizado brasileiro, e tem a mania de ser literato. BENJAMIM - Nesse caso, é também uma das curiosidades? PEDRINHO - É. Acaba de promover nada menos que uma festa literária! BENJAMIM - Uma festa literária? Conta-nos lá isso! PEDRINHO - Vocês hão de ver. (Ao da flauta.) Ó Frederico, para que horas está marcada a festa em casa do los Rios? O DA FLAUTA - Para o meio dia. PEDRINHO - Já vêem vocês que temos tempo de percorrer a vila. BENJAMIM - Siga a passeata! JUCA SÁ - Viva a pândega! PEDRINHO - Olha essa música! (Os rapazes tocam. Saída ruidosa. Repetição do último coro: Tsing lá lá, etc.) Cena IX Abel, com uma mala na mão, acompanhado de um negro que traz um baú na cabeça, depois Cascais ABEL - Então, é esta a casa do vigário? (O negro afirma.) Vejamos. (Vai bater à porta do vigário.) UMA VOZ DE MULHER - Quem é? ABEL - Sou eu. Está em casa o vigário? A VOZ - Não, senhor: está aí apegado na matriz. ABEL - Obrigado. (Dirigindo-se para a igreja.) Pelo que vejo há festa hoje por cá... (Cascais sai da igreja, sem reparar em Abel.) CASCAIS (Consigo.) - Está lá dentro um calor... Engrolei uma missa em três tempos! Já tenho habituado este povo a ouvir missas instantâneas, como as fábulas do Mosquito. Agora está pregado o colega de Itapiri. ABEL - Vossa Reverendíssima não é o vigário cá da freguesia? CASCAIS (Modestamente.) À falta de homens... ABEL - Pode dar-me uma palavrinha? CASCAIS - Estou às suas ordens, mas.. se se trata de ir confessar alguém muito longe da freguesia... Em dia de festa... ABEL - Não se trata disso. Primeiro que tudo, consinta que este preto vá a deixar em sua casa aquele baú e esta mala... CASCAIS - Mas... ABEL - Descanse. (Dando a mala ao negro.) É por uma hora, se tanto. (Ao negro.) Leva isso lá para dentro. (O negro entra com a carga em casa de Cascais.) Vossa Reverendíssima não recebeu uma cartinha de seu irmão, o Senhor Doutor Cascais? CASCAIS - Uma carta de meu irmão? Há dois meses que não escreve! (O negro sai de casa de Cascais; Abel vai ter com ele e dá-lhe dinheiro. Sai o negro.)

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Cena X Abel e Cascais ABEL - Veja como são as coisas! Eu queria trazer a carta para trazer em mão própria... É uma carta de recomendação... CASCAIS - Ciente. ABEL - Mas o Doutor Cascais me disse que seria melhor viesse a carta adiante, porque, assim, Vossa Reverendíssima preparar-se-ia para receber-me. Mas não importa! CASCAIS (Apontando para a direita.) - Olhe, ali vem o caixeiro do agente do correio; talvez traga a carta. ABEL - Queira Deus que assim seja. Cena XI Os mesmos e um empregado do correio O EMPREGADO DO CORREIO (Entrando. A Cascais.) - Seu padre-mestre, a benção! O patrão manda pedir-lhe muitas desculpas, por não lhe ter mandado entregar logo esta carta. Estava metida em outros papéis e ninguém deu por ela. CASCAIS - Está bom, dê cá. (A Abel.) É a história eterna dos nossos correios. O EMPREGADO DO CORREIO - Passar bem, seu padre-mestre. CASCAIS - Viva! (O empregado do correio sai.) É, na verdade, letra de meu irmão. Como está ele? Bem? Gordo? ABEL - Bem gordo; (Vendo que Cascais arranca o selo da carta e guarda-o.) Para que guarda isso? CASCAIS - Eu faço coleção de selos... ABEL - Ah! CASCAIS (Abrindo a carta.) - Dá licença? ABEL - Essa é boa... CASCAIS (Lendo, com acompanhamento na orquestra.) "Com a saúde que se quer vá te achar esta cartinha, pois vai menos mal a minha, como a de minha mulher. Para essa freguesia nomeado professor, para lá segue o Senhor Abel de Souza Faria (Abel cumprimenta.) A amizade que me tem a apresentar-to me impele: o que fizeste por ele a mim me farás também. Um verdadeiro romance hás de ouvir de meu rapaz, e, nesse ponto, far-lhe-ás o que for a teu alcance. Sem assunto para mais - sou teu irmão obrigado, venerador e criado, Ambrósio Teles Cascais." (Cessa a música.)

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Quanto ao romance de que fala meu irmão, ciente. A Senhora Dona Heleninha contou-me tudo. Antes desta (Mostra a carta.) já tinha recebido a sua recomendação. ABEL - E então? O que acha Vossa Reverendíssima de tudo isto? Venço ou não venço? CASCAIS - Não vence. Asseguro-lhe que o senhor não vence. A vitória estará sempre do lado do Nicolau, o padrinho e tutor de Dona Heleninha. ABEL - Mas Reverendo, esse homem não me conhece! Nunca lhe pedi, nem ele me recusou coisa alguma! CASCAIS - Senhor Abel, eu não sou homem de paliativos. Gosto das coisas - anda mão, enfia dedo. Se o senhor for pedir ao Nicolau a mão da afilhada, não ganha terreno; perde, ao contrário: escabreia o homem! O Nicolau de vez em quando retira-se de casa e vai passar um, dois, três dias na fazenda. Deixa a casa entregue à afilhada e a afilhada aos fâmulos. ABEL - Deveras? CASCAIS - Deveras. Na primeira ocasião que se oferecer, tire a menina de casa e traga-a cá, que os caso. ABEL - Mas o Nicolau é capaz de zangar-se com Vossa Reverendíssima. CASCAIS - Deixe estar, eu cá me arranjo... Todo o meu desejo é uni-los e para isso, envidarei bons esforços. Agora, diga-me cá: é certo que faz mestre-escola só para estar perto de sua pretendida? ABEL - Assim foi... Olhe que sempre fui muito atrevido. CASCAIS - Como assim? ABEL - Não entendo patavina da matéria em que fui examinado. CASCAIS - Está brincando. Isso pode lá ser! ABEL - Duvida, Reverendíssimo? Não sabe o que é empenho? CASCAIS - Não sei, não sei! Pois se não fosse ele, o empenho, teria eu esta modesta côngrua? ABEL - Pois o empenho e o amor fizeram responder a perguntas de gramática àquele que nem por fora a conhecia! CASCAIS -Horresco referens! ABEL - Sabe quem foi um de meus examinadores? Adivinhe. CASCAIS - Quem foi? ABEL (A rir.) - Seu irmão. CASCAIS - O Ambrósio! Ah! Ah! Ah!... (Dando uma pancadinha no ventre de Abel, e arrependendo-se, gravemente.) Oh! Perdão. ABEL - Ouça e pasme. Rondó Quando fiz o meu exame, veio ter comigo o doutor e disse: - Nada de vexame! Sou seu examinador... Olaré! que os professores assim são feitos é que são! Com tais examinadores fazem sempre um figurão! - Este nome, ele me disse, que valor é que aqui tem? Respondi-lhe uma tolice, mas valeu-me um - Muito bem! A mais de um adjetivo eu chamei de conjunção; o verbo era substantivo,

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e o advérbio interjeição!... Olaré! tantas sandices de mim próprio nunca ouvi! Olaré! mil parvoíces disse, disse e repeti... Repeti, e repeti... O auditório, de espantado, muita vez fazia assim: (Abre a boca.) mas eu, muito sossegado, estava bem senhor de mim! Oh! que exame esbodegado! Oh! que exame malandrim! O doutor estava calmo, mas assim como quem diz: - Ele não enxerga um palmo adiante do nariz... Olaré! que vale o estudo, se o patau consegue tudo o que quer em meu país? Aprovado plenamente, minha carta, enfim tirei, e venho escandalosamente, ensinar o que não sei. Olaré! minha pequena bem contente vai ficar! Olaré! Abel e Helena afinal vão se juntar ! CASCAIS (Apertando-lhe a mão.) - Muito bem! Fez uma belíssima figura! Os meninos cá da freguesia sabem, felizmente para o senhor, distinguir o adjetivo do substantivo. É o que lhe vale. Aprenderá com eles... (Aparece o Filomeno de novo na torre, e põe-se a repicar.) Hein? Está acabado o sermão? Depressa! (A Abel.) Vai ter o prazer de ver Dona Heleninha. (Música na orquestra; saem os que tinham entrado na igreja, dispersam-se e desaparecem. Helena sai por último, acompanhada sempre por Marcolina.) Cena XII Cascais, Abel, Helena, Marcolina e povo CASCAIS (Baixinho a Abel, apontando para Helena) - Audaces fortuna juvats! (Entra em sua casa. O povo tem desaparecido completamente.) Cena XIII Abel, Helena, Marcolina depois Cascais ABEL (Correndo para Helena.) - Helena! HELENA (Tomando-lhe as mãos.) - Abel! (Permanecem embevecidos, a olhar um para o outro.) MARCOLINA (Depois de alguma pausa.) - Iaiá! (Aparece Cascais à janela de sua casa.) HELENA - Abel! ABEL - Helena! CASCAIS (Consigo.) - A bela Helena... há uma tragédia com este título.

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MARCOLINA - Iaiá, vamo prá casa. HELENA - Vai esperar ali na esquina. MARCOLINA - Depois sinhô velho me ralha... HELENA - Vais ou não vais? MARCOLINA - Tá bom! depois não quero cumo-chama. (Sai.) Cena XIV Abel, Helena e Cascais, à janela ABEL - Finalmente estamos sós. HELENA - Não imaginas como estou satisfeita! ABEL - Mas a minha presença não basta, minha boa Helena... Teu padrinho, segundo me informou nosso reverendo protetor, é o homem mais inexorável desta vida... Em vez de buscar ardis que podem falhar, o melhor seria darmos logo... o golpe de estado! HELENA - Como o golpe de estado? ABEL - A fuga! HELENA - A fuga! ABEL - Fujamos, sim! Fujamos para bem longe, onde não nos possa chegar aos ouvidos a maldição importuna que ele te há de lançar! gozemos de nosso amor no meio das florestas, ao ciciar da brisa, ao arrular da rola, ao murmurar da cascata... CASCAIS (Consigo) - Tytire, tu patulae recubans... ABEL - Fujamos, sim! Oh! não me digas que não! Não tragas o desespero a este coração que é teu, e que despedaçarias, se o contrariasses, Helena! HELENA - Mas o que dirá dindinho, a quem devo tantos favores?... a única pessoa que me tem valido neste mundo, e que, apesar da vontade que quer exercer em meu destino, ama-me como sem fosse meu pai? ABEL - E o que dirá teu amante? O que dirá aquele que, por teu respeito, deixou os prazeres ruidosos da corte, para sepultar-se na roça?... Que, por teu respeito, expõe-se a apanhar uma carga de chumbo, ou pelo menos, uma dita de pau, de algum malfeitor, peitado por teu dindinho?... Que, por teu respeito, confundiu advérbios com substantivos diante de um auditório, que sabia distinguir substantivos de advérbios?... HELENA - Meu Abel! ABEL - Oh! mas o que importa? Eu, nesse momento, só pensava em ti. Quem pode saber gramática, quando sente o coração invadido pelo amor? Quem pode amar quando tem a cabeça sublocada pela gramática? CASCAIS (À parte.) - Coitadinho... HELENA - Como és bonito, Abel! ABEL (Com faceirice.) - Helena! CASCAIS (Arremedando-o.) - Ai, gentes! HELENA - Deixa ver-te de perfil... Vira-te um poucochito!... De três quartos agora... Como és lindo, meu bem! Agora do outro lado... Este sinalzinho dá-te uma graça... Levanta a cabeça... Não abras a boca... Admirável! ABEL - Mas, afinal de contas, em que ficamos? HELENA - Ficamos em que estou por tudo que quiseres. ABEL - Bem, faremos por afastar teu padrinho, e, vendo-o pelas costas... HELENA - O golpe de estado! Cena XV Os mesmos e Marcolina MARCOLINA - Iaiá, iaiá, vamos embora! HELENA - Tens razão, Marcolina. (Dá a mão a Abel.) ABEL - Até sempre, Helena... (Pausa.) Adeus!

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HELENA (Vai saindo e volta.) - Olha: se a desgraça... MARCOLINA - Iaiá! HELENA (De mau humor, a Marcolina) - Espera, diabo! (A Abel.) Olha: se a desgraça for persistente... ABEL - Morramos juntos! (Helena retira-se, acompanhada de Marcolina. Abel entra em casa de Cascais, que fica só, à janela.) CASCAIS (Levantando as mãos para o céu.) - Improbus amor, quod, mortalia pectora cogis! Mutação QUADRO SEGUNDO Cena Única Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, e povo, depois sucessivamente, Góis & Companhia, Alferes Andrade, Nicolau, Helena, Pantaleão, quatro músicos italianos, depois Abel, e, afinal um feitor CORO E MARCHA - Chega, chega, minha gente, a casa do inteligente literato Pantaleão! Muita comida e bebida (Isto é coisa decidida!) deve haver nesta função. (Durante o coro colocam dois negros algumas cadeiras à direita.) GÓIS & COMPANHIA - (Entrando.) I - Somos Góis & Companhia qualquer mais cotó! GÓIS - Nos vimos um bom dia lá no Cabrobó. COMPANHIA - Desde então - quem tal diria? somos dois e um só! CORO - Eis o Góis & Companhia, qualquer mais cotó! II ALFERES ANDRADE (Entrando.) - Eis o Alferes Andrade que vem se mostrar! Incompatibilidade entre o militar e o escritor, em verdade, ninguém pode achar! CORO - Eis o Alferes Andrade, bravo militar! NICOLAU (Entrando com Helena, que vai se sentar à direita.) III - Eis o padrinho de Helena! Eis o Nicolau! Quero casar a pequena porém, sem...(Sinal de dinheiro.) babau! Mas enfim não vale a pena me fazer de mau. (Senta-se ao lado de Helena.) CORO - Eis o padrinho de Helena! Eis o Nicolau!

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PANTALEÃO (Entrando.) - Este pimpão literato é o Pantaleão! Vou dar sem espalhafato, uma reunião, só para ver se combato o ignorantão! CORO - - Este pimpão literato é o Pantaleão. REPETIÇÃO DO CORO - Chega, chega, minha gente, etc. (Durante o coro, tomam todos lugares. O povo e os músicos no fundo. Entra Abel e confunde-se com o povo.) PANTALEÃO - Está aberta a sessão! Tem a palavra, como presidente desta reunião, meu amigo, compadre... PEDRINHO -... e quase parente... PANTALEÃO - ... Senhor Nicolau Madureira. NICOLAU (Ergue-se. Pausa.) - Meus senhores e minhas senhoras... Não! Quero dizer: Minhas senhoras e meus senhores... (As mulheres primeiro, depois os homens)... eu não estou acostumado... eu não tenho o hábito... eu não tenho o hábito de falar em público... (Por esse lado nunca irei à glória)... Meus senhores... Minhas senhoras e meus senhores... Não!... meus... minhas... eu não tenho o hábito de falar em público... de falar em público... em público... ALFERES ANDRADE - Está bom! Já se sabe! NICOLAU - Minhas senhoras e meus senhores, ei não tenho o hábito de falar em público... eu não tenho o hábito... (Hilaridade. Nicolau protesta.) ... O hábito da rosa! (Baixo a Helena.) Isto foi para não dizer sempre a mesma coisa... (Aos circunstantes.) Eu não tenho a prática... (Satisfeito por ter achado outro termo.) A prática! a prática!... Eu não tenho a práticas das lides oratórias... Consenti, minhas senhoras e meus senhores, que eu presida sem falar e que aqui o compadre Pantaleão fale sem presidir. (A Pantaleão.) Compadre, restituo-lhe a palavra! Mande vir um copo de água para molhar a minha. (Pantaleão faz um sinal a um negro que sai. Nicolau senta-se. Silêncio.) PEDRINHO - Fale o dono da casa. TODOS - Apoiado. (O negro volta; traz uma bandeja com dois copos d'água. Nicolau serve-se de um e Pantaleão toma conta de outro.) PANTALEÃO (Erguendo-se e deitando o copo sobre a cadeira em que estivera sentado.) - Povos desta freguesia, não é a uma festa vulgar que aqui vindes assistir! Não se trata de batizar alguma criança, isto é, de encher o pandulho à minha custa! (Bebe um gole de água.) PEDRINHO - Mesmo porque, se houvesse rega-bofes, a entrada não seria franca... BENJAMIM - Não interrompas o orador! Adiante! PANTALEÃO- Este dia é especialmente consagrado às coisas da inteligência! Nós temos capitalistas, proprietários, fazendeiros, negociantes, etc; mas ah! não temos literatos!... TODOS - Apoiado! Apoiado! PANTALEÃO - Esta freguesia embrutece-se! (Bebe um novo gole d'água.) TODOS - Apoiado! Apoiado! PEDRINHO - Viva a adesão! PANTALEÃO (Apontando para Pedrinho, Benjamim e Juca Sá.) - Aqui estão estes senhores: três estudantes, isto é, três homens do futuro! Os moços que a pátria contempla com alguma esperança, que vivem mais em contato do que nós com a literatura, que são da corte, que o digam: Meninos... mancebos! em algum dos que aqui estão achais uma fisionomia que indique as longas noites de insônia passadas na companhia amiga de um bom livro? PEDRINHO (A Benjamim e Juca Sá.) - Vamos procurar! (Examinam, cada um de seu lado, as caras dos circunstantes e voltam a seus lugares. O Alferes Andrade fica muito despeitado.) O senhor vigário é o que tem a melhor cara BENJAMIM - Nem uma olheira!

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JUCA SÁ - Nada! PANTALEÃO - E, caramba, isto é uma pouca vergonha!... (Com o caramba! de Pantaleão alguns se assustam. Góis & Companhia, que estavam a cochilar, caem sentados. O alferes desembainha instintivamente a espada. Restabelece-se o silêncio.) A fim de descobrir entre nós homens de talento foi que instituímos este concurso. Todos, sem distinção alguma, serão igualmente admitidos. (Bebe outro gole d'água.) São três as provas de hoje: decifrar uma charada, responder a uma pergunta enigmática e glosar um mote. Quem glosar o mote, responder à pergunta e decifrar a charada, receberá das mãos da Senhora Dona Helena, este livro... (Entrega a Helena um exemplar impresso da Filha de Maria Angu.) PEDRINHO - E que livro é esse? Dá licença? (Toma o livro e lê o título.) A Filha de Maria Angu. ALFERES ANDRADE - Ora via! Uma paródia! uma paródia!... NICOLAU - E o que tem que seja uma paródia? ALFERES ANDRADE - Vi-a representar... É a maior bagaceira... (Com energia, puxando pela espada.) E não me digam que não é!... NICOLAU - Quem foi que disse, Seu Alferes? Guarde a durindana, homem! ALFERES ANDRADE - É assim que o Senhor Pantaleão de los Rios quer fazer literatos: dando-lhes de presente A Filha de Maria Angu! PEDRINHO - Não seja tolo, Seu Alferes! ALFERES ANDRADE (Tirando a espada.) Isso é sério? PEDRINHO - Muito sério! ALFERES ANDRADE (Embainhando a espada.) - Eu logo vi! Comigo ninguém brinca... NICOLAU - Ora ali está uma espada de que não se pode dizer: -Nunca saiu da bainha. PANTALEÃO - Eu continuo! Meus senhores, ânimo! Puxai pela inteligência! Disputai gloriosamente A filha de Maria Angu! (Aos músicos.) E vós, ilustres maccaroni, fazei vibrar as cordas de vossas harpas e rabecas! (Bebe água.) TODOS - Apoiado! A música! A música! (A música toca desafinadamente.) NICOLAU - Excelente orquestra, compadre! PANTALEÃO - Meia dúzia de maccaroni, que estão de passagem na freguesia... Tocam regularmente... (Outro tom.) Vamos principiar a luta da inteligência. (Tirando do bolso um periódico.) Neste número da Gazeta de Notícias acha-se a charada. (Tirando outro periódico.) Neste, a decifração. (Dando uma das gazetas a Nicolau.) Leia compadre: é a que está marcada à margem. NICOLAU (Lendo.) "Assuntos do dia... Houve grande rolo ontem na Rua de São Jorge... A feiticeira vermelha..." Não é isso! "O nosso amigo..." Onde está? Ah! "Charadas", cá está ela! (Lendo.) "Uma, três. Tomo esta fazenda, sento-me nela; tem graça!" PEDRINHO - Convém observar que a charada é da novíssima reforma; portanto "Tomo esta fazenda... ALFERES ANDRADE (Triunfante.) - Eu sei, eu sei!... Eu sei o que é!... PANTALEÃO (Em tom de zombaria.) - Então você sabe o que é? ALFERES ANDRADE - Sei! quem é que diz que não sei?... (Tirando meia espada.) "Tomo esta fazenda... (Aponta com malícia para Helena.) Ora, quem há de ser a fazenda? PANTALEÃO - Isto é de mau gosto, seu alferes. Está enganado! Vamos: "Toma esta fazenda, uma..." GÓIS - Uma... uma o quê? PANTALEÃO - Uma sílaba! É boa! GÓIS - O quê? a sílaba? COMPANHIA - Não; ele disse - É boa -, assim como quem diz - É burro. PANTALEÃO - Tomo esta fazenda, sento-me nela, três... GÓIS - Três o quê? COMPANHIA - Cala-te. PANTALEÃO - O conceito: - Tem graça... GÓIS - Não acho. NICOLAU (Repetindo, de mau humor.) - "Uma, três. Tomo esta fazenda e sento-me nela; tem graça!" PANTALEÃO - Vamos! vamos! É matar no ar.

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GÓIS - Mosca! COMPANHIA - Pilhéria! ALFERES ANDRADE - Paródia PANTALEÃO - Fala cada um por sua vez! Quem disse - mosca? GÓIS - Fui eu. PANTALEÃO - Como é que explica? GÓIS - O senhor disse que era de matar no ar. O que é que se mata no ar? (Como quem mata uma mosca.) Mosca... NICOLAU - Mosca me parece você. PANTALEÃO - Quem disse pilhéria? COMPANHIA (Timidamente.) - Fui eu, mas retiro a expressão. ALFERES ANDRADE- Eu disse paródia! E ele é! O que é que tem graça? Paródia! (Murmúrios.) PANTALEÃO - Venham outros! Então? Ninguém? (Todos se põem a pensar. cascais, Pedrinho e Pantaleão são os únicos que observam.) ABEL (Apresentando-se.) Dá licença? PANTALEÃO - Pois não! A entrada é franca! (À parte.) Quem será? NICOLAU - Decifrou a charada? (À parte.) Quem será? ABEL - Sim, senhor. Tomo esta fazenda: brim; sento-me nela, cadeira... ALFERES ANDRADE (Interrompendo.) - Brincadeira! Brincadeira! Achei! ABEL - Brincadeira, sim. ALFERES ANDRADE (Triunfante.)- Fui eu que disse! PANTALEÃO - Seu alferes, está ficando insuportável! Cale-se! ALFERES ANDRADE (Tirando a espada.) - Insuportável! retire a expressão! PANTALEÃO - Ora, deixe-se disso. ALFERES ANDRADE (Tranqüilamente.) - Está bom. (Guarda a espada.) HELENA (Satisfeita, à parte.) - Foi ele, foi ele! NICOLAU - O que tem você, menina? Parece estar sentada em alfinetes! PANTALEÃO - Toque a música! (Música dos italianos.) Vamos agora à pergunta enigmática. (Dando um papel a Nicolau.) Leia, compadre. NICOLAU (Lendo.) - "Que diferença há entre o senhor vigário e um rei?" ALGUNS - Nenhuma! Nenhuma! CASCAIS - Como nenhuma? ALFERES ANDRADE (Triunfante.) - Nenhuma! nenhuma!... Desta vez achei! GÓIS - Eu sei: é que o senhor vigário diz missa e um rei ouve. COMPANHIA - É que um rei é barbado e seu vigário não é. (Aparece Abel.) HELENA - Ele! ele!... NICOLAU - O que é isso, menina? (A Abel.) O senhor sabe a diferença? ABEL - Sim, senhor. NICOLAU (À parte.) - Este diabo tem cabeça! ABEL - Deixai-me dizer-vos, senhores, que a diferença é bem certa: o rei tem c'roa fechada e o padre tem c'roa aberta. TODOS - Muito bem! Muito bem! (Abel é cumprimentado.) PANTALEÃO - Um belo improviso! PEDRINHO - Toquem a música. (Os italianos obedecem.) PANTALEÃO - Agora o mote: (Dando outro papel a Nicolau.) - Compadre, leia... NICOLAU - Eis o mote. (Lendo.) "Meu bem será sempre meu." ALFERES ANDRADE - Ora, isto é fácil! Eu já adivinhei! PEDRINHO - Adivinhou o quê, seu Alferes? ALFERES ANDRADE - Adivinhei o mote! PEDRINHO (À parte.) Forte bruto! (Alto.) Pois diga. ALFERES ANDRADE (A Nicolau.)- Como é a adivinhação?

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NICOLAU - Que adivinhação? ALFERES ANDRADE - O mote. NICOLAU (Maçado.) - "Meu bem será sempre meu." ALFERES ANDRADE -(Depois de repetir, com ênfase.) Eu juro por tudo quanto é mais sagrado eu juro por meu pobre pai que há muito já morreu que meu bem será sempre meu! PEDRINHO - Pode limpar as mãos à parede! PANTALEÃO - Isso não são versos, meu amigo! ALFERES ANDRADE - Então o que são? PEDRINHO - Ora cale-se! (Gesto do Alferes Andrade.) COMPANHIA - Dá licença? PANTALEÃO - Diga. COMPANHIA (Com lirismo.) - Na brisa dos meus ardores, dos belos anjos de Deus, cai um fonte nas flores, meu bem será sempre meu. PANTALEÃO (Depois de uma pausa. A Nicolau.) - Você entendeu, compadre? NICOLAU - Homem, não entendi... mas os versos me parecem harmoniosos... PANTALEÃO - Tenha paciência, repita. COMPANHIA (Com certo receio.) - Na brisa dos meus ardores dos belos anjos de Deus PEDRINHO - cai uma fonte nas flores meu bem será sempre meu. É harmonioso, mas não tem sentido. Você há de fazer escola, você há de fazer escola! GÓIS (Avançando timidamente.) - Brincadeira! PANTALEÃO - Saia, saia! (Abel aparece.) HELENA - Ele outra vez! Ele! NICOLAU - O que é isto, menina? ABEL - Dirijo-me ao Senhor Nicolau Madureira e a esta interessante senhora... HELENA - Fale, fale! NICOLAU - Menina! ABEL - ... e digo: Que importa um tutor das dúzias um desalmado tutor as suas bênçãos recuse-as a meu puro e casto amor, se no peito casto e puro um coração tenho eu, porque baixinho murmuro: - no presente e no futuro meu bem será sempre meu! TODOS - Muito bem! muito bem! HELENA (Depois das mais) - Muito bem! NICOLAU - Menina! PANTALEÃO - O que diz dos versos, compadre? NICOLAU - Homem, aquela alusão aos tutores... Isso quanto à essência. Quanto à forma, não há o que se lhe diga. PANTALEÃO (Dirigindo-se a Abel.) Dou-lhe sinceros parabéns, senhor... Como se chama? ABEL - Abel de Souza Faria. PANTALEÃO - Ah! então é o professor, cuja nomeação me foi comunicada, como delegado literário que sou?.. ABEL - Sou eu mesmo.

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PANTALEÃO - Então, viva o novo professor! TODOS - Viva! viva! Toca a música! Viva! FINAL CORO - Bravo, meu caro professor! Do prêmio foi merecedor! Bravo, meu caro professor. ALFERES ANDRADE (Com raiva.) - Eu fiz figura má... PANTALEÃO - Caramba! me venceu!... ABEL - O prêmio! Venha o prêmio! O vencedor fui eu! TODOS Venceu! HELENA (À parte.) - Mete Abel, por ser tão belo, a todos num chinelo! ABEL - Venha o meu prêmio! TODOS - Venha esse prêmio! sem mais proêmio! HELENA - Pois um ditado, muito acertado, o prometido diz que é devido. TODOS - Demos-lhe o prêmio! NICOLAU (Amável a Abel.) - Há de deixar que o presidente sinceramente o cumprimente... Folguei de descobrir que tem ilustração quem vem distribuir a pública instrução nesta povoação. (A Helena.) Olha esse prêmio que saia! HELENA - - O prêmio aqui está! (Nicolau tropeça.) Não caia! TODOS (Enquanto o livro é entregue por Helena A Abel.) - Bravo, meu caro professor, etc. NICOLAU (A Abel.) - Às suas ordens nossa casa está Sem cerimônia, pois não há senhoras, vá hoje mesmo jantar lá. HELENA (Com sentimento.) - Nós jantamos às três horas... Para a mesa vamos às três horas... ABEL (Cortesmente) - Eu pontual serei; às três horas não faltarei. HELENA (À parte.) - Ai! que prazer o meu!... Jantar ao lado seu! CASCAIS (Baixo a Abel.) - Então, está contente? ABEL (Baixo a Cascais.) - Mais estaria, certamente, se o Nicolau 'stivesse ausente! De nós afaste este sandeu, conforme já me prometeu. CASCAIS (No mesmo.) - Ainda não; depois... Não passe de nós dois... (Ouvem-se fora vozes confusas e tropel de animal.) PANTALEÃO - Estranhos ruídos.

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milhões de alaridos a nossos ouvidos eu sinto morrer! TODOS - Nós todos ouvimos, nós todos sentimos, mas não descobrimos o que possa ser! O FEITOR (Entrando pelos fundos.) - Eu caio aqui como uma bomba para trazer notícia má! Seu Nicolau, não faça tromba! TODOS - Vamos ouvir... O que será?! NICOLAU (Declamando.) - É o feitor lá da fazenda! O FEITOR - Vim a galope de longe anunciar um caso de espantar! Oh! que desgraça horrenda! Houve um levantamento e muito violento... NICOLAU (Declamando.) - Aonde? quando, homem de Deus? O FEITOR - Esta manhã, lá na fazenda! NICOLAU - Bom! vou partir pra fazenda! HELENA - Dindinho, vá para a fazenda! ABEL (A Cascais.) - Então? Que diz? Nem de encomenda! NICOLAU - Que maço! partir pra fazenda! ALFERES ANDRADE - Vá s'embora pra fazenda! TODOS (Cercando Nicolau.) - Vá pra fazenda! Vá, vá! vá já! HELENA - Vá já, meu dindinho; é bom o caminho... (Consigo.) Ah! ah!... Vai-se o dindinho de Helena; e ela vai ficar... Ai! com certeza a pequena há de aproveitar Sim, porque não vale a pena desaproveitar Vai-se o dindinho de Helena Helena vai ficar! TODOS (A Nicolau.) - Vá pra fazenda! Vá, vá! Vá já! ABEL - Senhor, atenda: Vá pra fazenda! Não se arrependa! TODOS - Vá sem tardar, sem demorar! Corre! corre, ó Nicolau! Segue! segue o teu feitor! Corre, corre tudo a pau! Volta, volta vencedor! (Durante o coro, carregam Nicolau com um grande capote, mala, guarda-chuva, botas de montar, chicote e chapéu de palha. Despedidas de Nicolau e Helena.)

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[(Cai o pano)] ATO SEGUNDO QUADRO TERCEIRO O VÍSPORA Sala de engomar em casa de Nicolau. Ao fundo, porta, deitando para o, quintal, e no meio de um parapeito com janelas envidraçadas. Portas laterais. Canapé à direita. Na tábua de engomar, ao fundo, está estendida uma peça de roupa branca. Cadeiras. É noite. Cena I Helena, Marcolina e moças CORO DAS MOÇAS - Por que razão, ó Dona Helena, tão triste está que causa pena? Diga-nos já, e ao seu penar talvez possamos consolar. MARCOLINA (Deixa o seu trabalho e vem também para junto de Helena.) - Iaiá, não 'steja assim tão triste. HELENA - Meu Deus! Meu Deus! o meu coração não, resiste a tamanha dor a tanto dissabor! Eu desejava neste instante a solidão corroborante; portanto, se de mim tiverem dó, dois minutos ou três deixem-me só... MARCOLINA - Mas quem 'sta assim amargurada deve ser acompanhada. CORO DAS MOÇAS - Fique só, já que não quer, ó Dona Helena nos confiar sua pena. Sim, como quer sozinha estar, vamos embora sem tardar. (As moças retiram-se pela esquerda. Marcolina põe-se de novo a engomar, cantarolando alguma cantiga da roça.) Cena II Helena e Marcolina HELENA - Marcolina? MARCOLINA (Deixando o trabalho.) - Iaiá? HELENA - Cala-te! MARCOLINA - Iaiá não vai pra sala? HELENA - Não. MARCOLINA - Iaiá. isso não é bonito! As moças vêm visitar vossem'cê e vossem'ecê pede a elas que se retire! Os brancos tudo rumado lá na sala e vossem'cê não vai pra lá! Ué! HELENA - Quem está lá dentro? MARCOLINA - Seu Pantaleão, Seu Arfere, Seu Pedrinho, aqueles dois estudante da cidade, aqueles dois lojista da rua do Imperadô, e que andam sempre cumo unha com carne, e mais um punhado deles. Tá tudo na sala, e vosssem'cê metida na sala do engomado, no lugar das pretas... HELENA - Essa gente toda, se vem aqui, não é por minha causa, mas por amor do víspora. MARCOLINA - Vossem'cê deve ir conversar com eles, porque sinhô velho tá na fazenda. HELENA - Cala-te. MARCOLINA - Iaiá, arrefrita... HELENA - Essa gente toda me aborrece...

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MARCOLINA - Mas o que quer? HELENA - Se me favorecessem com sua ausência... MARCOLINA - Sinhô véio, quando vortá, não há de gostá dessa farta de cumo-chama. HELENA - Não quero sentenças, ouviu? MARCOLINA - Tá bom, tá bom... HELENA - Vá para a cozinha! MARCOLINA (À parte.) - Cabeça dela tá virada por aquele marreco dess'outro dia... (Vai saindo, e olha para o quintal.) Então? Quando uma coisa me parpita...(Alto.) Iaiá? HELENA - O que é? Ainda aí estás? MARCOLINA - Faça favô de vim na jinela; veja quem tá ali... HELENA (Erguendo-se pressurosa.) - Aonde? aonde? MARCOLINA - No quintal... (À parte.) O moleque sartou pelo muro... HELENA (Chegando-se à vidraça.) - Quem é? (Vendo.) Ah!... MARCOLINA - O que iaiá vai fazê? HELENA (Consigo.) - Meu Deus! meu Deus! dai-me forças! MARCOLINA - Iaiá vai mandá ele entrá? HELENA (No mesmo) - Ó céus! Não posso sustentar por mais tempo esta luta entre o amor e o dever... E nada me lembra... nada me ocorre... Não tenho uma pessoa que me ouça, que me aconselhe... (Com uma idéia.) Ah! MARCOLINA (À parte.) - Hoje é dia dos ah! Iaiá já sortou dois... HELENA - Vá ao quarto de dindinho e traze o seu retrato, que está pendurado na parede. MARCOLINA - O retrato? HELENA - Sim! Avia-te! MARCOLINA - Mas o que iaiá vai fazê com o retrato de sinhô véio? HELENA - Não tenho que dar satisfações! Vá e volte já! MARCOLINA - Tá bom, tá bom; (À parte.) Um... (Sai.) Cena III Helena HELENA - Talvez que, tendo presente a imagem daquele que eu desejava estivesse presente, possa evitar as seduções daquele que eu estimava fosse o meu futuro. Ah! meu Deus! fiz um trocadilho no estado em que me acho! Cena IV Helena e Marcolina MARCOLINA (Trazendo um enorme retrato de Nicolau.) - Aqui está! HELENA - Bom. Deita-o sobre aquela cadeira. (Marcolina obedece.) Fecha aquela porta. MARCOLINA (Hesitando.) - Pra quê, iaiá?... HELENA (De mau humor.) - Fecha aquela porta! MARCOLINA - Tá bom...(Vai fechar a porta da esquerda.) HELENA - Retira-te. MARCOLINA - O que é que iaiá vai fazê? HELENA - Não é da tua conta. MARCOLINA - Mas sinhô véio... HELENA - Já viram desavergonhada mais teimosa? MARCOLINA - Iaiá vai pintá o sete, e depois... HELENA - Hein? MARCOLINA - Tá bom; depois não quero cumo-chama comigo. (Sai)

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Cena V Helena [HELENA] (Toma nas mãos o retrato do padrinho e, depois de contemplá-lo largo tempo, exclama com entonação dramática.) - Ó meu querido, meu venerado ! (Outro tom.) Este retrato está muito bem apanhado... Para macaco falta-lhe... Não lhe falta nada...(Tragicamente) Ó meu venerável padrinho, por que te ausentaste? Não me deixaste outra guarda mais do que Marcolina e minha consciência... Tanto minha consciência como Marcolina são fracas, e meu coração é tão forte! Oh! eu também fazia coro com aquela gente! Oh! eu também te dizia. - Vá pra fazenda! vá pra fazenda! Quanto me pesa haver contribuído também para tua ausência inoportuna... (Vai colocar o retrato onde estava.) Coplas I Dindinho foi para a fazenda: deixou-me ficar sobre mim... Queira Deus que não se arrependa de ser tão imprudente assim! Por isso que vítima imbele de um grande amor, pois sou mulher, se vejo Abel, fujo com ele, fujo com ele, haja o que houver, diga dindinho, o que disser (Dirigindo-se ao retrato.) Por quê, por quê dindinho, vossam'cê sozinha me deixou aqui me abandonou?... II O ser honesta e ter bom senso é minha preocupação; mas ao romance é bem propenso meu machucado coração.. Não devo, sei, fugir de casa de quem me adora como pai; mas sinto lacerante brasa que no meu peito ardente cai... Amor me chama, amor me atrai Por quê, por quê, dindinho, vossam'cê sozinha me deixou, aqui me abandonou? - Agora sinto-me forte. Pode vir, Senhor Abel, pode vir! (Apontando para uma trouxa que deve estar debaixo do canapé.) Ah! se ele soubesse que já tenho a trouxa pronta... (Abre a porta do fundo e acena para fora) Ele aí vem... coragem! Cena VI Helena, Abel, depois Marcolina ABEL (Apertando com efusão as mãos de Helena.) Como estás, meu anjo? HELENA - Abel, que imprudência! ABEL - Não me crimines: estou autorizado por ti... (Pausa.) Então? estás pronta? HELENA (Estremecendo.) - Pronta? para quê?

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ABEL - Para... Faze-te agora de esquerda... HELENA - Não me lembro... ABEL - Helena? HELENA - Abel? ABEL - Estás zangada comigo? HELENA - Não. ABEL - Só fala por monossílabos! (À parte.) É a única coisa que sei de gramática... (Alto.) Não temos tempo a perder... Vamos! HELENA - Meu Deus! ABEL Hesitas? HELENA - Não sei... ABEL (Depois de pequena pausa.) Helena, a ocasião não pode ser mais favorável. Arranja a trouxa... Ainda não arranjaste a trouxa? HELENA (Estremecendo e olhando de soslaio para trouxa.) - Mas... ABEL - Pois arranja depressa a trouxa e partamos. Daqui a meia hora temos um trem. HELENA - Meu amigo... ABEL - Tens escrúpulos? HELENA - Ouve cá: não seria melhor revelarmos o segredo do nosso amor a dindinho? (Aponta para o retrato.) ABEL (Dando com o quadro.) - Ah! pois não! É o que menos custa! (Tirando o chapéu e com toda a cortesia, ao retrato.) Meu caro Senhor Nicolau, participo-lhe que eu e a senhora sua afilhada nos amamos... e fugimos... HELENA - Não zombes, Abel! Quem sabe o resultado de uma revelação que lhe fizéssemos? Donde não se espera... ABEL (Enterrando o chapéu na cabeça e em tom resoluto.) - Dize-me cá: já te achaste algum dia em presença de um homem que trouxesse uma resolução? HELENA - Metes-me medo! ABEL - Pois olha: eu trouxe uma resolução, entendes? Não te digo mais nada... HELENA - Abel, se te mereço piedade... ABEL - Vamos! Arranja a trouxa! HELENA - Ah! mas não serás capaz... ABEL - Tu sabes que sou muito atrevido! Quem se apresentou candidato à cadeira de primeiras letras desta freguesia, sem saber pitada de gramática, é capaz... HELENA (Assustada.) - De quê? ABEL - Vais ver! (Avança para ela.) HELENA (Evitando-o, a gritar.) - Marcolina! Marcolina!... MARCOLINA (Entrando.) - Iaiá chamou? HELENA (A tremer.) - Nada é... nada é... ABEL (Descobrindo-se.) - Vejo que me enganei... Supus que sua palavra não voltava atrás... Adeus! Oh! mas ainda me resta um meio... HELENA _ Qual é? ABEL - Veremos... (Cobre-se e sai resolutamente.) HELENA (Depois de pequena reflexão, como que caindo em si.) - Marcolina! Marcolina! vai ter com ele! MARCOLINA - Com ele quem? HELENA - Com esse moço que acaba de sair daqui; chama-o! MARCOLINA - Iaiá! HELENA - Dize-lhe que já tenho a trouxa pronta... MARCOLINA - Ué! HELENA - Vai depressa! MARCOLINA - Nada! Não me meto em fundura! Não quero cumo-chama comigo. (Música.) Olhe: aí vem os brancos... Vêm pro víspora. HELENA - Malditos amoladores! Não podem jogar em outro lugar! Vai abrir a porta.

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(Marcolina abre a porta da esquerda, vai colocar-se ao fundo da cena. Helena senta-se no canapé.) Cena VII Helena, Marcolina, Pantaleão, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e visitas (O Alferes Andrade tem trazido grande quantidade de cartões para o jogo do víspora. Trazem a mesa para centro da cena e preparam o jogo.) CORO - Joguemos por distração, mas... pelo sim, pelo não, companheiros folgazões, paguemos só dois tostões por cartão tão tão tão tão! CASCAIS (Aproximando-se de Helena.) - O que é que tem, Dona Heleninha? Tão retirada hoje... HELENA - Desculpe, se não apareci. O padre bem sabe... CASCAIS (Em voz muito alta.) Sei! Uma forte enxaqueca... (Baixinho.) Em que ficaram? HELENA - Não tenho ânimo; é-me impossível abandonar assim a casa de dindinho... CASCAIS - Está bem, minha senhora: ad impossibilia nemo tenetur... HELENA - Dê-me um conselho, padre. CASCAIS - Já lhe dei um conselho; não lhe digo mais nada, porque conheço Nicolau como as palmas de minhas mãos... HELENA - Aí, padre! Vossa Reverendíssima nunca amou! CASCAIS - De mínimis non curat proetor... PANTALEÃO (Sentando à mesa.) - Já vieram notícias do compadre? CASCAIS - Cá está ele...(Pega no retrato e vai colocá-lo a um canto da cena.) HELENA - Nenhuma. PEDRINHO - É sinal que não há novidade. ALFERES ANDRADE (Impaciente.) Começa o víspora ou não? BENJAMIM - Ao que parece, o Senhor Alferes dá o beicinho pelo víspora. ALFERES ANDRADE - E o que lhe importa a você, seu pelintra? BENJAMIM - Não seja malcriado! ALFERES ANDRADE (Tirando a espada.) - Até este fedelho! BENJAMIM (Fazendo-lhe uma careta.) - Uh! ALFERES ANDRADE (Guardando tranqüilamente a espada.) - Vamos ao víspora. (Hilaridade.) Cada cartão custa dois tostãos. PEDRINHO - Tostãos! Ah! Ah! Ah! ALFERES ANDRADE - Tostões! Arre! Não puxo pela espada porque estou com as mão ocupadas. (Procede à separação dos cartões.) Quantos quer, seu vigário? CASCAIS - Se quer que lhe fale com franqueza, Senhor Alferes: eu não gosto de jogar com o senhor... ALFERES ANDRADE - Por quê? Por quê? CASCAIS - O outro dia, no solo, o senhor foi mão três vezes seguidas! Eu não disse porquê, enfim... ALFERES ANDRADE - Então, cuida que para ser mão só padre? Quantos cartões quer? CASCAIS - De cá lá dez. Aqui tem dois mil réis. (Recebe os cartões e paga-os - mão lá, mão cá.) PANTALEÃO - Dê-me outros dez. (Paga e recebe-os.) PEDRINHO - Quem me empresta dez tostões? (Fazem-se todos desentendidos.) Quem me empresta dez tostões? (Aproxima-se de Helena, que está pensativa.) Ó Dona Helena, a senhora me empresta dez tostões? HELENA (Despertando de sua cisma.) - Hein? PEDRINHO (Impaciente.) - A senhora me empresta dez tostões?

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HELENA - Empresto. (Dando-lhe uma nota.) Aqui tem dois mil réis; com os outros dez tostões compre cinco cartões para mim. (À parte.) Talvez me distraia. PEDRINHO (Ao Alferes.) - Dê cá cinco. (Recebe e paga.) Quantos queres, ó Juca Sá? JUCA SÁ - Dez. (Compram, etc.) GÓIS (Ao sócio.) - Quantos queres? COMPANHIA - Quantos quiseres. GÓIS - E quantos hei de querer? COMPANHIA - Dez para cada um. GÓIS - Então dez e dez... dez e dez são... (Calcula.) COMPANHIA (Contando nos dedos.) - Dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um... GÓIS - Já basta! Dez e dez são vinte. (Ao Alferes.) Dê cá vinte, Seu Alferes Pancada... quero dizer, Andrade. ALFERES ANDRADE (Tirando meia espada.) - Eu dou-lhe mais são vinte espadeiradas! (Guarda a espada tranqüilamente e dá os cartões.) Dê cá quatro mil réis. (Góis paga. Acham-se todos munidos dos competentes cartões.) Quem mais quer? quem mais quer? PEDRINHO - Já todos tem... Vamos com isso! ALFERES ANDRADE (Estendendo muitos cartões que restam diante de si.) - Tomem lugares! (Remexendo os números em um saquinho.) Vamos principiar! CASCAIS (Ao Alferes.) - Mas, com licença, o senhor não pagou! ALFERES ANDRADE - Como não paguei?... PEDRINHO - Ainda não, senhor! TODOS - Não, senhor! Pague! Pague e não bufe! ALFERES ANDRADE - Pois vá lá... pela segunda vez! Contra força não há resistência. (Tirando dinheiro.) Cá está! (Marcolina sai pela direita.) PEDRINHO - Esta nota ainda não está recolhida? ALFERES ANDRADE - Eu é que te recolho já esta espada no bucho! Falta um tostão! Quem empresta um níquel? PANTALEÃO - Ninguém. ALFERES ANDRADE - Pois bem: quem tirar a mesa tem o direito de me exigir um níquel! BENJAMIM - Mas haverá crédito? ALFERES ANDRADE - Menino, eu sou comandante de um destacamento! BENJAMIM - Folgo muito. CASCAIS - Se a dificuldade é um níquel, dignus est entrare. (Marcolina, que tinha saído, volta com um saco de milho, do qual distribui um punhado a cada jogador. Os personagens estão colocados do seguinte modo: Helena, no canapé em que já estava sentada, estende seus cartões. No canapé, onde cabem duas pessoas, vai sentar-se também outra moça. Cascais puxa uma cadeira para a boca de cena e coloca seus cartões sobre a cúpula do ponto. A banca é ocupada pelo Alferes, no centro, e nos dois lados por Pantaleão e Pedrinho. Góis senta-se numa cadeira e estende os cartões no chão. O sócio vai buscar o retrato de Nicolau, coloca-o nas costas de Góis, e, de pé, por trás da cadeira, espalha seus cartões na tela do retrato. Benjamim e Juca Sá sentam-se no chão defronte um do outro. Na tábua de engomar devem jogar três ou quatro moças. Os mais distribuem-se por todos os lados. Marcolina vai guardar o saco de milho e, quando volta, coloca-se por trás do canapé.) ALFERES ANDRADE (Depois de contar o dinheiro que está sobre a banca.) - Vamos! A banca é de vinte e quatro mil e setecentos... Com o tostão que estou a dever, vinte e quatro mil e oitocentos. Pronto. TODOS - Pronto! ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Sete. ALGUNS - Sete! (Uns marcam, outros não, - assim por diante.) ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Sessenta e nove... Não! não! Ou é!... PEDRINHO - Veja no que fica!

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ALFERES ANDRADE - Eu não sei se é sessenta e nove ou noventa e seis... PANTALEÃO - Deixe ver: é sessenta e nove. CASCAIS - Ligere et non inteligerre, burrigere est. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Muito obrigado! Oitenta e oito. ALGUNS - Oitenta e oito. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) -Vinte! ALGUNS - Vinte. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Trinta e seis! ALGUNS - Trinta e seis. CASCAIS - Duque. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Noventa e nove! PEDRINHO - Olha que é sessenta e seis... ALFERES ANDRADE - É verdade: sessenta e seis! BENJAMIM - Terno. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Dois! ALGUNS - Dois ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Noventa! PANTALEÃO - Terno ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Doze! ALGUNS - Doze. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Vinte e quatro! CASCAIS - Terno. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Quatorze! (Desta vez ninguém responde.) - Quatorze! CASCAIS - Ciente. ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Sessenta e quatro! CASCAIS - Venha a boa! ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Trinta (Com força.) Víspora! TODOS - Hein? ALFERES ANDRADE (Muito tranqüilamente.) - Quero dizer: duque... (Gritando.) Um! GÓIS (Levantando timidamente a cabeça e em tom de lástima.) - Terno ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Vinte e três! PANTALEÃO - Venha a boa! ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Oitenta e seis! PANTALEÃO (Erguendo-se enfurecido.) - Por um ponto! (Batendo o pé com toda a força.) - Caramba! (Góis & Companhia assustam-se e cai um por cima do outro. Caindo, Góis enterra a cabeça na tela do retrato, que lhe fica em volta do pescoço. Confusão geral, Helena deita as mãos na cabeça. Marcolina tira o retrato, leva-o para dentro e volta.O Alferes aproveita-se da confusão para procurar no saco o número que lhe convém. Só Pantaleão vê esta trapaça. ALFERES ANDRADE (Achando o número.) - Dez! Víspora! Víspora! Dez! Aqui está! Dez!... (Chegam-se todos para o Alferes, menos Helena e Marcolina, que voltam a seus lugares.) Canto ALFERES ANDRADE - É como se vê: são dez! TODOS - Dez! ALFERES ANDRADE (Atirando-se ao dinheiro.) - São meus os vinte e quatro mil e setecentos (Guarda o dinheiro) PANTALEÃO - É muito atrevimento! Patota fez você! ALFERES ANDRADE (Puxando a espada.)

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- Quem foi? quem foi que fez? PANTALEÃO - Guarde o chanfalho, ó toleirão! GÓIS - Não seja tão parlapatão! CASCAIS - Então? então? Dê-me o que é meu! ALFERES ANDRADE - Vocês quem pensam que sou eu? HELENA - Seu Alferes, tal não fará! PEDRINHO - Entregue esse dinheiro e nada se dirá! ALFERES ANDRADE - Do meu bolso não sairá! TODOS - Dê-nos o cobre! Dê-nos já! ALFERES CORO DE HOMENS Raspem-se já Se não nos dá senão, senão, nosso quinhão, vai haver cá gritamos já: revolução!... pega ladrão!... TODOS - Pega ladrão! Pega ladrão!... GÓIS & COMPANHIA (Colocam-se um de cada lado do Alferes, que tenta fugir.) - O valentão que tanto arrota, e que no jogo fez patota, não leva já tunda de pau, em atenção ao Nicolau... ALFERES CORO DE HOMENS Raspem-se já, etc. Se não nos dá, etc. TODOS - Pega ladrão! Pega ladrão! ALFERES ANDRADE - Não sou ladrão, não sou ladrão! (Foge.) TODOS (Acossando-o.) - Pega ladrão! Pega ladrão! (Saída ruidosa pela esquerda. Helena e Marcolina ficam sós.) Cena VIII Helena e Marcolina (Marcolina deita a mesa em seu lugar, arranja os móveis e coloca os cartões sobre a mesa.) HELENA - Que sempre há de haver disto! Por isso não gosto que se lembrem de jogar aqui o maldito víspora! MARCOLINA (Arranjando os trastes.) - Também aquele Seu Arfere é um tipo. HELENA - É um tipão. MARCOLINA - Fazer trapaça não é nada, mas deixar-se apanhar... HELENA - Vai para dentro; preciso estar só. MARCOLINA - Outra vez, iaiá! HELENA - Deixa-me! MARCOLINA - Vossem'cê não vai cear com as visitas? HELENA - Não; quero descansar. MARCOLINA - Então, vá pro seu quarto. HELENA - Não quero. (Aparece Cascais.) MARCOLINA - Aqui está... HELENA (Sobressaltada.) - Quem?... MARCOLINA - Sinhô padre-mestre. HELENA - Ah! MARCOLINA (À parte.) - Outra ah! Já sortou três!

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Cena IX As mesmas e Cascais CASCAIS - Aquele Alferes Andrade é um tipo! HELENA - Um tipão! MARCOLINA - Ele arrestituiu o dinheiro, sinhô padre-mestre? CASCAIS - Só a metade... Que trapaceiro! Vade retro! HELENA - Deixa-nos a sós, Marcolina. Vai dizer a esses senhores desculpem minha ausência... mas a enxaqueca... CASCAIS (Em voz mito alta.) - Sim, uma forte enxaqueca... MARCOLINA - Mas... HELENA - Vai! MARCOLINA - Tá bom! (Sai.) Cena X Helena e Cascais HELENA - Ó padre! CASCAIS - O que temos? HELENA - Ainda há pouco não pudemos falar à vontade. Vossa Reverendíssima não calcula o quanto padeço... CASCAIS - Horribili dictu! HELENA - Ele esteve ainda agora aqui.... CASCAIS - Quando? HELENA - Antes do víspora. CASCAIS - E não... fez víspora? HELENA - Oh! fiz-me esquecida... Hesitei... Ele saiu... Deixei-o sair, mas sabe Deus com que vontade... Oh! CASCAIS (À parte.) - Hoje é dia dos ohs! A rapariga já soltou dois... HELENA - O que diz, padre? CASCAIS - O que digo é isto... (Prepara-se para dizer uma sentença latina.) HELENA - Oh! não! não! Fale português. CASCAIS - Então sabia que eu ia falar latim? HELENA - Já conheço pela sua cara. CASCAIS - Então, o que digo é isto: nada de hesitações. deixe-se levar, e o resto fica por minha conta... HELENA (Com piedade.) - E o dindinho? CASCAIS - Ora! dindinho que vá plantar mandioca. A senhora ou bem há de querer o dindinho, ou bem o Abel. Ambos juntos é impossível! São incompatíveis. Dois proveitos não cabem num saco... HELENA - Oh! CASCAIS (À parte.) - Mais um oh! (Alto.) E daí, quem sabe? Podem muito bem fazer as pazes e meter ambos os proveitos em um saco só. Ande daí; venha cear. HELENA - Não. Tenho uma tal tristeza n'alma... CASCAIS - Triste est anima mea. HELENA (Sentando-se no canapé.) - Verei se posso sossegar. CASCAIS - Aqui? Não é melhor ir para o seu quarto? HELENA - Irei depois. CASCAIS (Querendo retirar-se.)- Nesse caso, Dona Heleninha.. HELENA - Não se vá embora por quem é! Sua presença faz-me bem. CASCAIS - Favores que não mereço... HELENA (Recostando-se no espaldar do canapé.) - Estou com um sono... (Fechando os olhos.) Ó padre, se eu dormir, peça aos céus que me enviem um sonho benfazejo; sim? CASCAIS - Sim (À parte.) Ora! para o que lhe havia de dar!

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HELENA (No mesmo.) - Por que não é dindinho amigo de Abel? Se eu pudesse vê-lo em sonhos... CASCAIS - A quem? Ao dindinho? HELENA (Enfadada.) - Não. CASCAIS - O outro... HELENA - O outro... Se pudesse vê-lo em sonhos... Que mal havia nisso? Padre, peça, peça aos céus que me enviem um belo sonho... Estão-se-me a agarrar as pálpebras... Peça... (Outro tom.) Peça... se não fico mal com Vossa Reverendíssima... (Adormece.) CASCAIS - Tem graça! pedir um sonho assim como quem pede um charuto! - Oh! Fulano, dá cá um charuto. - Ó céu, manda lá um sonho à Senhora Dona Helena. (Contemplando-a.) Como é bonita! (Dá dois passos para ela, e arrependendo-se, benzendo-se.) Est ne nos induca in tentationem.(Nisto, Abel, que tem aberto lentamente a porta do fundo, entrado e avançado, toca no ombro de Cascais, que se assusta.) Ai! ABEL - Não se assuste! Sou eu. Cale-se; não a desperte... CASCAIS - O senhor pregou-me um susto... ABEL - Não vá agora pregar-me um sermão... Ah! desculpe... CASCAIS - Essa é boa! Inter amicus non habet geringonça. ABEL - Silêncio... (Entra Marcolina; Abel oculta-se atrás de Cascais.) Cena XI Helena, Cascais, Abel e Marcolina MARCOLINA - Então iaiá não quer ir pro seu quarto! CASCAIS - Psiu... Está dormindo... Não a desperte, senão volta aí a enxaqueca. MARCOLINA - Mas isto não tem jeito! Dormir aqui! CASCAIS - Não faz mal. MARCOLINA - Então, vamos embora. CASCAIS - Vai fechar a porta. (Marcolina fecha a porta da esquerda. Cascais segue-lhe os movimentos e Abel os de Cascais, de modo que se conserve sempre a salvo dos olhares de Marcolina.) Agora, vamos, passa adiante... MARCOLINA - Sim, sinhô.... (Sai.) CASCAIS (À porta do fundo.) Oc opus hic labor est... (Sai.) Cena XII Abel e Helena ABEL (Contemplando-a.) - Como é bonita, ó minha casta Helena! Vamos! Ânimo, Abel! o Nicolau está na fazenda e o deus do amor te protege!... (Ouve-se fora, à esquerda, o coro seguinte.) CORO - Olá! que vinho tem na adega Seu Nicolau! Pode apanhar-se uma broega, pois não é mau! Quem saúde ambiciona tome, com moderação, de vez em quando uma mona, de vez em quando um pifão! Lá lá lá lá lá lá ... ABEL (Durante o coro.) - O que é isto? (Vai olhar pelo buraco da fechadura.) Estão ceando. Que grande patuscada! (Deixa a fechadura e ajoelha-se perto de Helena.) HELENA (Despertando.) - Abel! Tu aqui?!... ABEL - Sim, sim, o teu Abel! HELENA - Mas... estarei sonhando? ABEL (À parte.) - O que diz ela? HELENA - Sim... é o sonho que ainda agora pedi ao padre...

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ABEL - Um sonho! Muito bem! Confunde-me com um sonho... (Helena ergue-se maquinalmente. Abel condu-la à boca de cena.) Dueto HELENA - O céu já me enviou o sonho celestial que o padre suplicou! Que prazer vou sentir! Que sonho venturoso Helena vai fruir JUNTOS - Céus! ai! que sonho, que sonho de amor! A noite dá-lhe seu mistério... A noite dá-lhe seu favor... Sinto um contentamento etéreo! Ai! que gentil sonho amor! Céus! ai! que sonho, etc. HELENA - Repete, ó Abel, e me farás feliz... Diz - Eu te amo; - diz e rediz! Pois te quero seguir... ABEL - Seguir-me, minha Helena? HELENA - A casa em que nasci, por ti deixo sem pena. Mas... tu não me abandonarás? ABEL - Ó minha bela, tal suspeita do coração não vem direita! Revoga-a já e já, com beijos ao rapaz! HELENA - Quantos então! ABEL - Só três... HELENA - Na mão? ABEL - Não, não, não, não; porém no rosto, de perfeições almo composto, que vida e morte a um tempo dá! Oh! dá-me, dá-me beijos! Satisfaz meus desejos! HELENA - Se não é mais que um sonho... vá lá... (Deixa-se beijar.) JUNTOS - Céus! ai! que sonho de amor, etc. HELENA - Agora, ó meu Abel... ABEL - Ó minha Helena, agora... é fugir HELENA - Fugir! ABEL - Sem demora! não há tempo a gastar... o trem já vai chegar... HELENA - Serás meu bom amigo? ABEL - Sim! HELENA - Não mangarás comigo? ABEL - Não! Um protetor em mim terás, ó coração! Amanhã de manhã, manhã pura e serena, esplêndida louçã, Um padre que eu cá sei casar-nos-á, Helena... Esposos, meu amor, seremos amanhã! HELENA - Amanhã?

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ABEL - Amanhã... Deixa portanto, Helena, a sala do engomado, e vem, longe daqui, seguir teu namorado! HELENA (Apoderando-se da trouxa que está embaixo do canapé.) - Se não é mais que um sonho... vá lá... JUNTOS - Céus! ai! que sonho, que sonho de amor! A noite dá-lhe seu mistério... A noite dá-lhe seu favor... Sinto um contentamento etéreo! Ai, que gentil sonho de amor! Céus! ai! que sonho, etc. (Terminado o dueto, Helena deita sobre os ombros uma manta e dispõe-se a sair com Abel, pelo fundo, quando a porta se abre de repente e surge Nicolau que solta um grito.) Cena XIII Os mesmos e Nicolau HELENA (Caindo, confundida, nos braços de Nicolau.) - Dindinho! Oh! então não era um sonho! (Atira para longe a trouxa.) NICOLAU (Deixando cair por terra todos os preparos de viagem com que saíra no final do primeiro ato.) - Um sonho! Eu é que estou a sonhar! HELENA - Vossemecê fez boa viagem, dindinho? NICOLAU (Procurando ver Abel, que Helena trata de esconder.) - Fiz... fiz... Mas aquele sujeito... HELENA - Os negros já estão acomodados? NICOLAU - Já... já... É o senhor... HELENA - E qual foi o motivo do levantamento? NICOLAU (Tirando Helena da frente de Abel.) - Ah! é o senhor?! Veio cá decifrar uma charada? HELENA - Esteve sempre de saúde? Caçou muito por lá? NICOLAU - Eu cá sei o que cá sei... HELENA - O que caçou? NICOLAU - Eu cá sou muito tolo: a dar resposta. (Gritando.) Aqui d'el rei! Aqui d'el rei!... ABEL - Cale-se! O senhor é um imprudente! NICOLAU - Eu cá sei o que cá sou! (Gritando.) Aqui d'el rei! Aqui d'el rei!... O senhor Abel... Qual Abel nem meio Abel! De hoje em diante só o hei de chamar de Caim! O senhor Caim não pode dotar a ofendida; pode? Não pode! Logo - aqui d'el rei! Ó de casa! HELENA - Olhe que estão visitas! (Tira a manta.) NICOLAU - Ah! estão... Melhor! (Vai abrir a porta.) ABEL - Vem tudo aí! Sai cá um barulho... NICOLAU - Eu cá sei o que cá sai! Mas que é da Marcolina?... Final NICOLAU (Gritando.) - Vem cá, ó Marcolina! Aqui! HELENA - Ó que imprudente ABEL - Vai sair cinza incontinente! HELENA - Meu Deus! Meu Deus! estou metida em bons lençóis! (Desmaiando. Abel corre para junto dela.) NICOLAU - Aqui d'el rei! aqui d'el rei! aqui d'el rei! Que dois heróis! Cena XIV Helena, Abel, Nicolau, Pantaleão, Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Marcolina e visitas (Os homens, menos Cascais, vêm ligeiramente alcoolizados.)

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PEDRINHO - Olá! que vinho tem na adega Seu Nicolau! Pode apanhar-se uma broega, pois não é mau! Quem saúde ambiciona tome, com moderação de vez em quando uma mona, de quando em vez um pifão! Lá lá lá lá lá lá lá... PANTALEÃO (Dando com Nicolau.) - O Nicolau! TODOS - Olá! NICOLAU (Tragicamente.) - O Nicolau cá está! (Agarrando Marcolina pelo pulso e trazendo-a à boca de cena.) - Helena ia fugir co'aquele sedutor! Responde já, ó Marcolina, tu, que eras a guarda da menina: que foi feito de seu pudor? TODOS - Que foi feito de seu pudor? (Nicolau deixa, furioso, o braço de Marcolina que foge para o fundo.) NICOLAU - Sim, seu pudor? ALGUNS - Ora! o pudor! TODOS - Ai! o pudor! Você não deve estar zangado, pois, de algum modo, é o mais culpado! NICOLAU - Pois sou culpado? HELENA (Tornando a si, e aproximando-se do padrinho.) - Qualquer parente que, estando ausente em casa entregue a si deixou linda afilhada enamorada entrar não deve como entrou. Bem procedido tinha um marido assim chegando de supetão: mas meu dindinho devagarinho não entra em casa um solteirão! TODOS - Mas, ó dindinho devagarinho não entra em casa um solteirão! II HELENA - Que o namorado desconfiado observe a bela sem descansar; pai ciumento em mau momento filha querida possa encontrar noivo zeloso e cauteloso queira por gosto ser espião: mas, meu dindinho

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devagarinho não entra em casa um solteirão! TODOS - Mas, ó dindinho devagarinho não entra em casa um solteirão! NICOLAU - Bem: mas se meus amigos são, mandem-no embora a pescoção! PANTALEÃO - É já! É já... Seu professor, seu proceder me causa horror! ABEL - Ir-me daqui sem minha bela! Então, senhores meus, então, voltarei noutra ocasião, e irei com ela! e irei com ela! TODOS - Vai-te, ó sedutor! Vai-te, parlapatão! HELENA (Baixo a Abel.) - Oh! vai-te! meu amor te seguirá... O meu amor seguir-te-á... Danados estão! Vê que olhar tão furibundo! Capazes que são de mandar-te pr'outro mundo! ABEL CORO Sim! sou fanfarrão! Ó que fanfarrão! Pois aqui, só num segundo Ó que professor imundo! sou capaz, verão! O parlapatão de matar a todo mundo quer matar a todo mundo! ABEL (Fazendo os gestos indicados nos seguintes versos.) - Eu sou capoeira! Não me assustam, não! Passo um rasteira: tudo vai ao chão! Puxo um canivete pra desafiar! Ai, que pinto o sete! Mato dezessete e vou descansar!... CORO - Feroz punição vamos dar ao badameco! Merece ladrão ser corrido a peteleco! (Procuram todos evitar Abel, que se mostra satisfeito de seu triunfo.) PANTALEÃO (A Abel.) - Ai, não se perfile, file, file, file! Não temo a você! Não se rejubile, bile, bile, bile, pois não tem de quê! CORO (Perseguindo a Abel.) -Ai, não se perfile, file, file, file, etc. ABEL - Sou eu que direi: Ai não se perfile file, file, file!

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(Grande disputa em que só não tomam parte Helena e Cascais, que tentam, em vão, apaziguar os ânimos.) CORO - Feroz punição vamos dar ao badameco! Merece o ladrão ser corrido a peteleco! Abel retira-se pelo fundo, ameaçando sempre, e Helena desmaia nos braços de Marcolina.) [(Cai o pano)] ATO TERCEIRO QUADRO QUARTO O TREM DE FERRO Estação da estrada de ferro (espécie de alpendre). À esquerda um balcão em que se vendem vinhos e pastéis. Ao fundo a estrada. Paisagem em perspectiva. Quadro animado; uns bebem e outros comem. Cena I Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, Góis & Companhia, Alferes Andrade e povo CORO - Comer! beber! Viva o prazer! Aproveitamos nossa idade! Brincar! folgar! Quem não gostar de ser assim, que vá ser frade. Beber! comer! Viva o prazer! Recitativo PEDRINHO - O tal Nicolau é da pá virada! É um trapalhão! TODOS - Ninguém diz que não! PEDRINHO - Contrariando o professor, deu grandessíssima patada, por isso que irritou um deus chamado - Amor! Voltas I Abel ama a Dona Helena... Não lhe vejo nenhum mal TODOS - Abel ama a Dona Helena... Não lhe vemos nenhum mal! PEDRINHO - Quer casar-se coa pequena: isso é muito natural! Mas o grande Nicolau não quer dar-lha nem a pau. Ah! Ah! Passa fora, Nicolau! Passa fora, meu patau! TODOS - Passa fora, Nicolau! II PEDRINHO - Por orgulho, que apoquenta,

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não quer dar-lha por mulher! TODOS - Por orgulho, que apoquenta, não quer dar-lha por mulher! PEDRINHO - Presunção e água benta cada qual toma a que quer e... Quer ele queira, quer não, marido e mulher serão! Ah! Ah! Passa fora, Nicolau! Passa fora, meu patau! TODOS - Passa fora, Nicolau! PEDRINHO - Mas, enfim, o que resolveu o Nicolau? BENJAMIM - Há casamento? GÓIS - Fuga? COMPANHIA - Surra? ALFERES ANDRADE - Qual fuga nem surra! Não há nada disso! GÓIS - Corre por toda a freguesia... Mas ao que corre pela freguesia não podemos dar ouvidos... PEDRINHO - Se aqui estivesse o vigário, diria: Vox populi... ALFERES ANDRADE - Mas o que corre pela freguesia, seu Góis & Companhia? GÓIS - Góis & Companhia somos nós dois, eu e este. Eu só sou o Góis. COMPANHIA - E eu a companhia. BENJAMIM (Ao Alferes.) - Assim como do senhor pode-se também dizer: Alferes & Companhia.. ALFERES ANDRADE (Tirando a espada.) - Qual é a companhia? BENJAMIM - Qual há de ser? A durindana... ALFERES ANDRADE - Ah! (A Góis.) mas vamos: o que é que corre? GÓIS - Corre por toda a freguesia que, no trem das oito e três quartos, Dona Helena vai para a corte, em companhia de um frade que a tem de vir buscar. PEDRINHO - Não sei se é isso um maranhão, mas, com certeza, é o motivo pelo qual nos achamos aqui todos reunidos: confessem! GÓIS - Deixe-se disso! Sempre foi costume encher-se a estação de gente. PEDRINHO - Eu nunca vi aqui nem você nem seu sócio... ALFERES ANDRADE - Está visto que, se não viu um, não podia ver o outro... BENJAMIM - Ora até que afinal o Alferes disse uma coisa quase com graça! ALFERES ANDRADE (Brandindo a espada.) - Quase! PEDRINHO - Seu Alferes, quero dar-lhe um conselho. ALFERES ANDRADE - Dar ou receber? PEDRINHO - Ouça primeiro e depois esbraveje à vontade... TODOS - Ouça, seu Alferes, ora ouça! ALFERES ANDRADE - Vocês tomaram-me à sua conta! Deixem estar que eu os ensinarei! PEDRINHO - O conselho é este: deite fora a bainha de sua espada. ALFERES ANDRADE - Por quê? Então não está nova? PEDRINHO - Não é por isso: é porque de nada lhe serve a bainha! A lâmina não pára dois minutos lá dentro. ALFERES ANDRADE - Menino! (Brande furioso, a espada, que tem conservada em punho.) PEDRINHO - Então! O que dizia eu? Lá está de espada em punho! TODOS - Ah! Ah! Ah! ALFERES ANDRADE - Protesto! Já estava fora da bainha!... Já estava fora da bainha!... TODOS - Ah! Ah! Ah! PEDRINHO - O que vale é que, se o chanfalho não leva muito tempo na bainha, também na mão... É só mandá-lo guardar! TODOS - Guarde, guarde o chanfalho! ALFERES ANDRADE (Guardando tranqüilamente a espada.) - Vocês pedem com tão bons modos...

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GÓIS - Seu Alferes não é mau rapaz... COMPANHIA - Tem suas coisas... Ora! quem não as tem? JUCA SÁ - No fundo é um bom moço... ALFERES ANDRADE - Pois não se fiem muito! Um dia faço aqui uma estalada! Vocês não me conhecem! Cena II Os mesmos e Cascais CASCAIS - Dominus vobiscum! PEDRINHO - Ora aqui está o senhor vigário, que é quem nos pode explicar a coisa. CASCAIS - Que coisa? PEDRINHO - O que há e o que não há sobre Dona Helena? CASCAIS - E o que têm vocês com isso? BENJAMIM - Interessa-nos a sorte dessa desventurada senhora. CASCAIS - Já que querem com tanta instância saber da vida alheia, o caso é este... PEDRINHO - Atenção! CASCAIS - Dona Helena deixa o lar paterno. ALFERES ANDRADE - Paterno, não: padrinherno! BENJAMIM - Bico, Seu Alferes! ALFERES ANDRADE - Ora bolas! o lar é do padrinho! PEDRINHO - Mas Dona Helena casa-se ou não se casa com o mestre-escola? CASCAIS - Nada. ALFERES ANDRADE - Então o mestre-escola que se casa com ela? GÓIS - Seu Alferes, não interrompa! ALFERES ANDRADE (Com força.) - Não me interrompa você! CASCAIS - Dona Helena vai entrar para um convento. TODOS - Ah! PEDRINHO - Mas como pode isto ser? Quem a pode obrigar a meter freira? COMPANHIA - Ela é maior... BENJAMIM - É até maior do que eu! ALFERES ANDRADE - Vocês é que estão interrompendo; não sou eu! CASCAIS - Quem a pode obrigar? O padrinho! Regis est imperare. PEDRINHO - Ouvimos dizer que vinha um frade buscá-la; é para levá-la ao convento? CASCAIS - Adivinhou. ALFERES ANDRADE (À meia voz.) - Ela, então, vai entrar para um convento de frades?... CASCAIS - Nada: o frade leva-a para um convento de freiras. BENJAMIM - Mas por que não a leva o Nicolau em pessoa ao convento? JUCA SÁ- Em vez de entregá-la a um estranho? CASCAIS - Vocês bombardeiam-me com perguntas! ALFERES ANDRADE - Pois bombardeie-nos com respostas! CASCAIS - Não é um estranho tal: o Nicolau me disse que não tinha ânimo de levar a afilhada para a cidade e lá deixá-la metida entre quatro paredes; confrangia-se-lhe o coração... Pediu-me que me encarregasse disso. COMPANHIA - Pobre Nicolau! ALFERES ANDRADE - E então? CASCAIS - Recusei por dois motivos: primo, não podia abandonar a freguesia. (Tenho medo de uma ex-informata que me pelo) secundo, quem me visse em companhia de uma senhora, poderia fazer um juízo desairoso, tanto para mim como para ela. ALFERES ANDRADE - E o terceiro? PEDRINHO - Como o terceiro? Eram só dois! CASCAIS - Há; ainda há um terceiro. BENJAMIM - Vejamos. CASCAIS - Tercio, Dona Helena, me quereria mal, se fosse eu que a levasse para o convento...

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ALFERES ANDRADE - Bem pensado. E o quarto? CASCAIS - Não há mais. ALFERES ANDRADE - E o quinto? CASCAIS (Encarando-o) - O quinto é que você é um tolo! ALFERES ANDRADE - Ora é boa! Podia não haver um quarto, mas haver um quinto... CASCAIS - Então, pediu-me o Nicolau que lhe lembrasse um alvitre qualquer, que fosse eficaz. Disse-lhe que havia na corte um frade, amigo meu de velha data e pessoa de maior confiança, que viria buscar Dona Helena, se lho eu pedisse por meio de uma cartinha. PEDRINHO - E o Nicolau aceitou a alvitre? CASCAIS - Aceitou. O frade entrega-a à superiora do convento, que já está prevenida para recebê-la e competentemente autorizada. Deo Gratia. PEDRINHO - Isso é inverossímil! Isto só se vê em comédias! ALFERES ANDRADE - Ou em paródias! CASCAIS - Pois é a pura verdade. Eu sou como o outro. A Deo veritatis diligens era, ut ne loco quidem mentiretur... Ora adeus! Vocês não sabem disso; estou perdendo meu latim... ALFERES ANDRADE - Mas é uma maldade roubar uma deidade à sociedade e entregá-la a um frade para levá-la para a cidade! É uma atrocidade!... CASCAIS - Oh! Senhor Alferes! quanta rima perdida! Quando quiser dizer versos, previna a música: cante-os. PEDRINHO - Rapaziada, vamos dar uma volta; o trem ainda se demora um quarto de hora. BENJAMIM - Contanto que não deixemos de ver o frade! ALFERES ANDRADE - Voltaremos. Vamos, vamos dar uma volta; eu também não sei estar parado. PEDRINHO - Irá, com a condição de não puxar a espada em caminho... ALFERES ANDRADE- Vocês tomaram-me à sua conta; vocês não me conhecem! TODOS - Até logo, senhor vigário. BENJAMIM (Batendo com liberdade no ombro de Cascais.) - Até logo! CASCAIS (Tomando-o pelo braço.) - Menino, adolescentis est majore nutu vereri... BENJAMIM - Fiquei na mesma. CASCAIS (Recomeçando.)- Adolescentis,,, TODOS - Vamos! Vamos! (Saem.) (Alguns têm já se retirado pouco a pouco da cena. A orquestra toca em surdina o estribilho das voltas cantadas por Pedrinho na cena primeira. Cascais fica só.) Cena III Cascais [Só] [CASCAIS] (Dirigindo-se ao público com toda naturalidade.) - Os senhores hão de estar lembrados daquela cartinha que recebi de meu irmão no primeiro ato. Pois bem: ouçam a resposta. (Tirando uma carta e lendo.) "Meu mano e prezado amigo, estimo que passes bem, pois é o que se dá comigo e coa comadre também . Os pequerruchos vão indo, mas muito mal, caro irmão: com coqueluche o Clarindo e o Nho-nhô com dentição" (Declama.) - Isto não, intimidades. Inter amicus...(Continuando.) "Recebi a tua carta com data de vinte e três

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e vou, antes que o trem parta, respondê-la, como vês. Não quero que seja diverso o meu sistema do teu: como escreveste-me em verso, em verso respondo eu. O Abel, teu recomendado, há dias pra lá voltou; foi demitido (coitado!) do cargo que abiscoitou. Não pode cantar vitória, nada pode conseguir; que ele te contasse a história é muito de presumir... Se tirá-la por justiça decerto a pequena vai, de volta de alguma missa, que só é quando ela sai. Que ao tutor ninguém dissuade, tenho de mim para mim, pois quod natura dat... não sei se sabes latim. Não posso ser mais extenso: vou minha missa dizer; ex-informata suspenso, caro irmão não quero ser. Lembranças cá da comadre, não só a ti, como aos mais, teu irmão e amigo, o Padre Bernardo Teles Cascais" (Declama.) - Há um post-scriptum, mas não vem ao caso. Enfim... (Lendo.) "Post sciptum: É um dos maiores o calor que faz aqui por isso em trajos menores desculpa escrever-te a ti". (Guardando a carta.) - Esta resposta, tinha-a eu escrito ontem. Ia deitá-la no correio, quando encontrei o Nicolau que me pediu um meio para mandar a afilhada para o convento. Lembrei-me, então, de que o Abel poderia muito bem passar por frade barbadinho, e arranjei uma farsa... Em vez de mandar esta carta a meu irmão, escrevi uma outra a Abel, dizendo que se apresentasse hoje, no trem que vai chegar, com o competente disfarce, e... O resto adivinha-se... Não me posso sair bem desta brincadeira: o Nicolau há de cair-me em cima como uma bomba, bumba! Mas, com meios brandos e suasórios, tudo conseguirei... Cena IV O mesmo e Pantaleão PANTALEÃO - Andava à sua procura, padre. Como passou? CASCAIS - Doente. PANTALEÃO - Doente? CASCAIS - Ou velho: senectus est morbus. O que deseja? PANTALEÃO - Falar-lhe sobre este maldito acidente... CASCAIS - Da pequena? PANTALEÃO - Sim.

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CASCAIS - O que quer que lhe faça? Mortus est pinto in casca. PANTALEÃO - É preciso que o compadre se esqueça de mandar Dona Helena para o convento. CASCAIS - A boas horas lembra-se você disso... PANTALEÃO - Como assim? CASCAIS - Você pintou... PANTALEÃO (Formalizado.) - Eu não pinto, padre! CASCAIS - Não se precipite! Não quero dizer que o senhor pinta o padre! - Você pintou... ao Nicolau todo este negócio com as mais negras cores e, como delegado da instrução pública, arranjou a demissão do pobre rapaz; Dona Helena há de agradecer-lhe... PANTALEÃO - E quem se encarregou de chamar o frade? Dona Helena há de agradecer-lhe! CASCAIS - Não estejamos a trocar palavras, Senhor de los Rios; resolvamos alguma coisa! PANTALEÃO - O que há de ser? CASCAIS - Em vindo o Nicolau, chamemo-lo de parte... PANTALEÃO - E... CASCAIS - Toca catequizá-lo! Tais considerações faremos... PANTALEÃO - Tais argumentos apresentaremos... CASCAIS - Aí vem ele e a pequena. (Afastam-se.) Cena V Os mesmos, Nicolau e Helena NICOLAU (Sem dar com a presença de Cascais e Pantaleão.) - "Oh! então não era um sonho!" É esta frase, Helena, é esta frase que espero que você me explique! HELENA - Dindinho! NICOLAU - Você é uma sonsa! pode vir com esses modos de santinha de pau carunchoso: não tomo nada! HELENA - Dindinho! NICOLAU - Não tomo nada, ouviu?! Não tomo nada!... HELENA - Pois bem, já que não toma nada, tome lá este pião à unha... NICOLAU - Hein? HELENA - De hoje em diante quero viver sobre min! NICOLAU - Olé! HELENA - Ah! supõe que não sei que estou emancipada por lei?... NICOLAU - Olá! HELENA - Até hoje tenho passado por tola! NICOLAU - Olé! HELENA - Mas de hoje em diante hei de mostrar quem sou! CASCAIS (A Pantaleão.) - Scintilla excitavit incendio! NICOLAU - A Senhora Dona Helena como deita as manguinhas de fora! HELENA - Onde me levam? Para que me obrigam a arrumar bagagem? O que venho fazer à estação do caminho de ferro?... NICOLAU - Não é da sua conta! HELENA - Tome sentido, dindinho! NICOLAU - Olé! HELENA - Vossemecê não me conhece! NICOLAU - Olá! PANTALEÃO (Intervindo.) - Então! Então!... O que é isto, compadre?... CASCAIS (Idem, à Helena.) - O que está fazendo, Dona Helena? (Baixinho.) Não grimpe! Obedeça passivamente... Ele quer mandá-la para um convento! Vá, vá sem respingar. HELENA - Mas... CASCAIS - Fie-se em mim: amicus certus in re incerta cernitur. NICOLAU - Desavergonhada! Faltar-me ao respeito!

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CASCAIS (Deixando Helena e dirigindo-se a Nicolau.) Dona Helena acaba de significar-me seu arrependimento... HELENA (Humildemente.) - É verdade, dindinho: esqueci-me por um momento do quanto lhe devo. Perdoe. PANTALEÃO - Perdoe. CASCAIS - Perdoe. HELENA - Perdoe. NICOLAU (Sombrio.) Perdôo. Coplas I HELENA - Não sou culpada, ó meu dindinho: nunca fui mais pura que sou: não me perdeu do bom caminho este amor que cá dentro entrou. Ai! tomo o céu por testemunha, queira ou não queira acreditar: quando eu ia fugir, supunha dormisse a bom dormir, sonhasse a bom sonhar! Se, por um sonho só, retira-me a amizade. o que fará então pela realidade?... II Nos sonhos dão-se circunstâncias, que se não podem revelar... Eu já sonhei - que extravagâncias! - eu já corei, mesmo a sonhar... Fosse punido quem as sonha: Helena, onde estarias tu? Ou em Fernando de Noronha, ou presa em Catumbi, ou morta no Caju. Se, por um sonho só, retira-me a amizade, o que fará pela realidade... NICOLAU (Depois de pequena pausa.) - Fiquei na mesma. CASCAIS (A Pantaleão.) - Este seu compadre é muito tapado! PANTALEÃO (Com acatamento, a Cascais.) - Não costumo desmentir os ministros de Deus... CASCAIS - Ó seu Nicolau, diga à menina que vá sentar-se àquela sala. Nós temos que falar-lhe em particular... NICOLAU - A quem? a ela? CASCAIS - Nada; a você. (A Pantaleão, enquanto Nicolau acompanha Helena, que se retira para a direita.) - É preciso resolver o homem a abdicar da idéia do convento. PANTALEÃO - Faremos o possível. CASCAIS (Á parte.) - Se terminar tudo na santa paz do Senhor, minha responsabilidade ficará salva. Cena VI Cascais, Pantaleão e Nicolau NICOLAU (Voltando.) - Sim, senhores: a rapariga tem me feito suar o tapete... quero dizer, o topete! PANTALEÃO - A culpa é sua! CASCAIS - Pode dizer: Mea máxima culpa.

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NICOLAU - Então, por quê? CASCAIS - Decerto! Quem é que se lembra de mandar uma rapariga para o convento em pleno 1877! NICOLAU - Lembro-me eu! Oh! deixem-na estar, deixem-na estar, que o convento há de ensiná-la! uma rapariga que sabe o código! Depois, eu cá tenho minhas tenções... PANTALEÃO - Ah! NICOLAU - Passados cinco anos, tiro-a do convento. Há de vir de lá um modelo de virtudes... CASCAIS - Há de vir de lá fazendo muito boa goiabada... NICOLAU - Venha como vier: virtuosa ou quituteira, ou quituteira e virtuosa ao mesmo tempo... (Observando a impressão deixada por suas palavras nas fisionomias de Pantaleão e Cascais.)... caso-me com ela! PANTALEÃO - Hein? CASCAIS - Casar o padrinho com a afilhada! PANTALEÃO - Ah! Ah! Ah! CASCAIS (Benzendo-se.) - Abrenuntio! PANTALEÃO - Ah! Ah! Ah! que lembrança! CASCAIS - Pois você não vê que tem mais do dobro da idade de sua afilhada? NICOLAU - Mas daqui até lá, ela já tem vivido mais cinco anos. CASCAIS - E você fica parado durante todo esse tempo? NICOLAU - É verdade... PANTALEÃO - Vamos, vamos! Pense bem, compadre! CASCAIS - Não contrarie o amor de Dona Helena! PANTALEÃO - A liberdade, compadre, a liberdade! Terceto PANTALEÃO - Hoje, que o tempo é só de liberdade, da lei do elemento servil. tu vais meter num claustro da cidade Helena, a moça mais gentil! CASCAIS - Poupe à menina essa desgraça! PANTALEÃO - Tem dó de Dona Helena. CASCAIS - Um convento é prisão onde não morre o coração NICOLAU - O que vocês querem que eu faça? PANTALEÃO e CASCAIS - Hoje, que o tempo é só de liberdade, da lei do elemento servil. tu vais meter num claustro da cidade Helena, a moça mais gentil! NICOLAU - Eu vou meter num claustro da cidade Helena, a moça mais gentil! CASCAIS - Se p'rum convento a pobre entrar há de bem cedo se finar... PANTALEÃO - E se acaso morrer a Dona Helena, o responsável será tu, pois és tu só quem a condena! CASCAIS - Sim, é você! pobre pequena! Seu Nicolau, há de sentir fatal remorso, atroz pungir! PANTALEÃO - Ouve lá, de um amigo velho, salutaríssimo conselho: I - Já os conventos não têm crédito,

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não dão exemplo de moral; Diz a Gazeta de Notícias que de um dos tais (não sei de qual) saltaram três freiras intrépidas - caramba! - os muros do quintal! II Chame o Abel; não seja ríspido, e deixa correr o marfim... Com o casamento e sem escândalo, há de ter tudo airoso fim. Se tal fizer, cheios de júbilo, hemos de dançar todos assim! (Dança.) Nicolau, para que hás de ser assim tão mau?! Juntos PANTALEÃO e CASCAIS NICOLAU Nicolau Não sou mau! para que hás de ser assim tão mau?! Nunca fui, não sou, nem serei mau!... CASCAIS - É bom refletir bem! PANTALEÃO - Convém pensar melhor! CASCAIS - A reflexão é o que convém... PANTALEÃO e CASCAIS - O casamento é dos males o menor... reflita bem, reflita bem! PANTALEÃO - Ele hesita... CASCAIS - Ele hesita... PANTALEÃO e CASCAIS - Ó que padrinho austero! (Examinam Nicolau, que reflete profundamente.) NICOLAU (Decidindo-se.) - Não quero... PANTALEÃO e CASCAIS - Se você manda a moça pro convento, arrepender-se-á! É natural que ela perca moral cento por cento saltando o muro do quintal... NICOLAU - Se eu mando a rapariga pro convento, não hei de arrepender-me! É natural que ela ganhe em moral cento por cento; não salte o muro do quintal... (Dirigindo-se, ora a Cascais, ora a Pantaleão.) - Dessas razões, padre, compadre, a mim bem pouco se me dá! Freira há de ser, compadre, padre! Disse e direi, ora aqui está! Há de ser freira! há de ser freira! PANTALEÃO - Isto é que é: queira ou não queira! PANTALEÃO e CASCAIS- Teimar assim desta maneira eu vejo, enfim, a vez primeira! Juntos.

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PANTALEÃO e CASCAIS NICOLAU - Se você manda, etc. - Se eu mando, etc. NICOLAU (A Pantaleão.) - Compadre, ponha o negócio em si: se sua filha estivesse no lugar de Helena, você não a mandava para o convento? PANTALEÃO - Minha filha! Deus me livre! Minha mulher, vá... NICOLAU - Mas você mesmo foi que me aconselhou... PANTALEÃO- Refleti. CASCAIS - Mas, enfim, em que ficamos? PANTALEÃO - Sim. NICOLAU - Como? CASCAIS - A menina vai? PANTALEÃO - Vai, compadre? NICOLAU- Com padre não; vai com frade. CASCAIS - É sua última palavra? NICOLAU - É minha última palavra! CASCAIS (Avança solenemente para Nicolau e desconserta-se.) - Diabo! Não me lembra um trecho latino a propósito... Cena VII Os mesmos, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e povo PEDRINHO - Está aí o trem! BENJAMIM - Lá vem! Lá vem! CASCAIS - Já o trem? TODOS - Já! O trem! Ele aí vem!, etc. CORO GERAL - Co'alvoroço o trem de ferro corre já para cá! (Ouve-se ao longe o silvo da locomotiva.) Eu já ouço-o! Ai! que berro! Sem tardar vai chegar. Da cidade vem um frade receber uma mulher! Ei-lo já; já parou; aqui está; já chegou! (Durante os últimos versos, um trem de ferro vem, da esquerda, parar em frente à estação. Entre alguns passageiros que saem e desaparecem, desce à cena Abel, disfarçado em frade. Barbas longas e grisalhas, óculos e capuz. Cercam todos o frade. Durante a cena seguinte, movimento de passageiros, etc.) Cena VIII Os mesmos e Abel CORO - Ó reverendo, este povinho

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só para vê-lo é que aqui está, pois dantes nunca um barbudinho por cá passou, passou por cá. Tirolesa e coro I ABEL - Eu, antes de mais nada, participo, caríssimos irmãos, que sou um tipo! Ai! tenho muito horror ao cantochão... Pesar de frade ser, sou muito folião! - Sou} ABEL e CORO } muito folião, pesar de frade ser! -É } ABEL - A cantar e a dançar tudo aqui quero ver! CORO - A cantar e a dançar ele aqui quer nos ver! ABEL - Lá lá itu, lá lá lá lá! CORO - Lá lá itu, lá lá lá lá! (Dança geral e desenfreada.) II ABEL - O meu sistema a todo mundo espanta; mas quem não gosta de pintar a manta? Quem assim fala hipócrita não é! A mesmíssima coisa eu fiz em Taubaté!... - Sou} ABEL e CORO } muito folião, pesar de frade ser! -É } ABEL - A cantar e a dançar tudo aqui quero ver! CORO - A cantar e a dançar ele aqui quer nos ver! ABEL - Lá lá itu, lá lá lá lá! CORO - Lá lá itu, lá lá lá lá! (Repetição da dança.) CASCAIS (Baixinho a Abel, apertando-lhe a mão.) - Olha que esse modos não são próprios de um frade! ABEL (No mesmo.) - Foram copiados do natural...(Alto.) Il signore Nicolau? Onde está Il tutore de la fanciulla? NICOLAU (Que tem ido comprar bilhetes de passagem.) - Estou aqui, Reverendíssimo, estou aqui! Tome Vossa Reverendíssima os cartões de passagem e esta carteira com que muito mal desejo gratificar seus bons serviços. ABEL - Grazia. Aceito i biblietti, ma il denaro no. Noi altri, ministri de l'altare, siamo tropo... tropo... Io parlo mal is portoghese... siamo tropo ... desinteressati. NICOLAU - Oui, monsieur, merci CASCAIS (À parte.) - Aquilo será tudo, menos italiano. ALFERES ANDRADE (A Pedrinho.) - Aquilo é que é língua! O italiano, oh! o italiano! La dona é mobile qual piuma al vento! ABEL - Má onde está metida la sorella que devo conducire al claustro? (Apontando para uma mulher do povo.) É questa dona? NICOLAU - Nada. ABEL - É questa? NICOLAU - Nada, nem questa também. Minha afilhada está ali; vou buscá-la. (Saída falsa.) (Ouve-se ao longe a locomotiva.) CASCAIS - E não há tempo a perder, porque já se ouve o silvo do trem que os deve levar. ABEL (Baixo a Cascais.) - Então? que tal estou?

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CASCAIS (A Abel.) - Muito bom, homem; você está muito bom! Mas o italiano está melhor. ABEL (A Cascais.) - Que italiano? (Procurando em volta de si.) Ah! Sim! o italiano que eu falo! (Outro tom.) Ainda nos havemos de ver. CASCAIS - Assim o espero. NICOLAU (Voltando.) - Vem, minha filha, vem. ABEL (Contemplando Helena, que ainda não aparece ao público.) - Ah! ecco la sorella! Oh! cielo, si giovani, cosi linda, giá desterrata em um claustro! Povera fanciulla! Má, enfim, andiamo! andiamo presto. (Aparece Helena.) CASCAIS (Á parte.) - Finis coronnat opus! Cena IX Os mesmos e Helena Final CORO - Ela aí vem! É ela! Ela vem para cá. Meu Deus, como é bela! Mas tão triste está! (Durante este coro, chega outro trem, em sentido contrário ao primeiro. Movimento de passageiros, etc.) HELENA - Ouvi, suponho, voz amiga, que nunca mais me sai de cá. (Do coração.) NICOLAU - Para o convento é seguir já, com este frade, ó rapariga! Bem caro vai pagar-me o mal que me causou. ALGUNS - O mal que lhe causou! HELENA - Ir pro convento! Não! Jamais! Eu lá não vou!... (Gesto de impaciência de Cascais.) ABEL - Io lá parlaré! PEDRINHO - Que lhe dirá o frade? ALGUNS - Sim, sim! que lhe dirá? ABEL - Il cielo inspirerá! (Baixinho a Helena.) Pois não viste que este frade era o repelido Abel?... HELENA (À parte, comovida.) - Abel?... ABEL - Vem comigo pra cidade; segue o noivo fiel. HELENA (Com escrúpulo.) - Abandonar o meu dindinho! NICOLAU - Há de partir, que o quero eu! PANTALEÃO e CASCAIS - São só três horas de caminho... HELENA (Á parte.) - Vou por meu gosto e pelo seu! TODOS - Vá já, Dona Helena; nos dá muita pena; mas vá! Vá já! NICOLAU - Então? Vá pro convento! Assim quero eu! ALGUNS - Ó que grande judeu! PEDRINHO - Deus a leve a salvamento! CASCAIS (À parte.) - Muito me hei eu rir... ALGUNS - O frade é já seguir! PANTALEÃO - Vão, embarquem num momento:

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Vai partir o trem! ABEL E HELENA - É já partir pro convento! Obedecer convém! CORO - Vá para convento, já neste momento! Vá para o convento! Vá com vento em popa! Já! Vá! vá! vá! vá! vá! (Durante o coro, Abel sobre para o trem com Helena, e aparece com ela a uma portinhola.) Recitativo ABEL - Ó Nicolau, triste papel fizeste em cena: cá levo Helena... Eu sou Abel! (Tira o capuz, as barbas e os óculos. Assombro geral.) UNS - Segue Helena, o professor; segue, segue o teu amor. OUTROS (A Nicolau.) - Que maldito professor! Vingá-lo-emos, senhor! (Uns riem e outros estão indignados. O Alferes puxa pela espada e corre atrás do trem. Nicolau cai fulminado por um ataque de apoplexia. Confusão.) [(Cai o pano)]

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O RIO DE JANEIRO EM 1877 A revista do ano 1877 Comédia de costumes populares, satírica e burlesca de espetáculo, ornada de couplets e coros, visualidades, transformações, em 3 atos, um prólogo e [18] quadros, pelos Senhores Artur Azevedo e Lino d'Assunção. [Música de Gomes Cardim e outros.] { Observação importante - Este texto foi digitado a partir do Livro o Teatro de Artur Azevedo, tendo sido extraído de cópia manuscrita efetuada por pessoa não identificada. Em virtude disso, contém pequenas omissões, as quais, entretanto, não prejudicam o entendimento da obra, bem como sua autenticidade.} PERSONAGENS DO PRÓLOGO A Política A Ilustríssima O Boato Bedel O City Improvements O Cortiço O Capoeira O Beribéri O Veículo O Engraxate O Carcamano A Febre Amarela A Inundação A Seca A Morte Um Médico A Subscrição A Conferência O Poeta O Anjo da Humanidade [Fé] } [Esperança] } [Personagens mudos] [Caridade] } PERSONAGENS DA COMÉDIA Opinião Um Espectador Zé Povinho O Boato Um Urbano A Política Capoeira Correio Cocheiro-veículo O Aanjo da Humanidade 1º Diretor Um Caixeiro Um Taberneiro Major Tubo Professor Público 1º Da Cia de Consumo Anúncio Dondon Uma Senhora Um Padre Um Médico Um Homem Gordo Outro Magro

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Um Sócio Um Burro Cartomante Santinha Homem da Pêra 1º Amigo Criado de General 1º Poeta 2º Poeta 1º Repórter 2º Repórter Orador 1º Admirador 2º Admirador Garden Vila Bela Um Popular Dentista Cacabana Globo Jornal do Comércio Diário do Rio Gazeta Diário Popular Reforma Jornal da Tarde O Senhor Filipe O Telefone Um Sujeito Um Conservador O Canal do Mangue 1º Gatuno Um Moleque Petizes 10 Jornal do Comércio e todos os Jornais Empregados da Alfândega Mascarados Velhos Rapazes Crianças Comissão de Senhoras Vendedores Povo Embuçados Guarda Nacional Teatro São Pedro Imperial Teatro Dom Pedro II São Luis Cassino Fênix Ginásio Circo de Cavalhinhos Varietés Arte Toureiro Spetrini } Blondini } Tony } Personagens mudos Bobe } Nota de Duzentos Mil Réis } [Um Urbano] } [Dois esgrimadores, um deles padre } P R Ó L O G O Gruta sombria Cena I Bedel (Espanejando algumas pedras soltas que se acham espalhadas pela cena.) Copla Vós, que tendes, meus senhores, bem formadas, boas almas, aos atores e autores batei palmas, batei palmas. De que nos dei uma vaia livre-nos Deus e o canhoto, mas pra que a peça não caia, basta cair-vos no goto. Hão de convir que é muito original esta idéia de encaixar o couplet final no princípio: mas, como tenho os meus pressentimentos de que o ano de 1877, que principia amanhã, há de andar tudo às avessas, assim faço. De mais, é mau costume pedir palmas no fim da peça; a gente as deve pedir no princípio, antes que o público saiba o que vai ver. O sujeito que vai empenhar-se com o examinador

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para que lhe aprove o filho plenamente na Instrução Pública, fá-lo sempre antes do exame. Que diabo. O pequeno pode sair-se mal e então o pedido não tinha pés nem cabeça. (Escarra, tosse, assoa-se.) O teatro representa uma gruta agreste em um país inteiramente desconhecido. Nesta gruta é que se costumam reunir, no dia 31 de dezembro, as calamidades brasileiras, a fim de darem conta dos seus trabalhos durante o ano, e predisporem-se para o vindouro. Cena I : Apareço em Bedel e digo:- Agora é que começa a revista. (Põe-se de novo a espanar, noutro tom.) Felizmente está terminado o meu serviço. Não tardam aí as calamidades brasileiras. Encontrarão tudo limpo. (Música.) Sinto passo, são elas. Cena II O Mesmo, a Política, a Febre Amarela, Ilustríssima, a Seca, a Inundação, City Improvements, o Boato, a Capoeira, a Subscrição, o Beribéri, o Cortiço, a Conferência, o Veículo, o Engraxate, o Carcamano, o Poeta, a Morte de braço dado com o Médico Coro Calamidades, ei-las por cá: pestes, moléstias, tudo aqui há. O fim do ano por cá nos traz. Somos, senhores, só coisas más. (A Política senta-se numa pedra mais elevada, ao fundo.) POLÍTICA (Ao Bedel.) - Não falta ninguém? BEDEL - Não, ao que parece. POLÍTICA - Mas como não gosto de dúvidas, eu, a Política, a principal das calamidades brasileiras, que amo e dirijo todas as outras, ordeno procedas à chamada geral. BEDEL - É já. (Abrindo um livro que tira de trás duma pedra.) - Política? POLÍTICA - Presente. BEDEL - A Fome? (Depois de pausa.) Não veio! Está jantando talvez. - Febre Amarela? A FEBRE - Presente. (Vem à boca da cena.) Eu não tenho cor política, pesar de ser amarela: não escolho as minhas vítimas, ataco a esta e àquela. BEDEL - A Junta da Higiene? (Silêncio.) Também não veio. Quer-me parecer que está ocupada com algum parecer. - A Ilustríssima? ILUSTRÍSSIMA - Cá estou (Vem à boca de cena.) Eu amo o povo, senhores, e as comunidades suas, mandando calçar as ruas em que moram vereadores. BEDEL - A Seca? A SECA - Pronto (Acompanhada de seus horrores.) Quando aos homens faço guerra, andam desgraças aos molhos, secam-se as fontes da Terra, abrem-se as fontes dos olhos. BEDEL - A Inundação? INUNDAÇÃO - Presente. (O mesmo.) São horrorosos meus feitos. Ai! que tragédias! que dramas! os rios saltam dos leitos e os homens saltam das camas. BEDEL - A City Improvements?

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CITY - Presente. (O mesmo. Todos tapam os narizes.) Eu cá não sou de modéstias, do que as primeiras sou mais. Sou mãe de muitas moléstias e filhas doutras que tais. BEDEL - O Boato? BOATO - Minio!... Quero dizer, presente! (Vem à boca de cena e canta em falsete.) Vocês me conhecem? Qual! Sou o boato, a mofina; Tenho mil nomes: verrina, apedido e etecetra e tal! BEDEL - O Capoeira? CAPOEIRA - Rente! (Ameaça cabeçada noutros personagens.) Eu sou Capoeira não m'assustam, não! Passo uma rasteira, tudo vai ao chão. Puxo uma navalha, sei desafiar. Se isto trabalha (Puxa a navalha.) é aí que pinto o sete. Mato dezessete, guardo o canivete e vou descansar. BEDEL - A Subscrição? SUBSCRIÇÃO - Eis-me aqui. Eu sou a Subscrição, mas sem a caridade benfazeja, a grande amolação que tão somente almeja a condecoração! BEDEL - A Conferência? CONFERÊNCIA (Sibiliando os ss.) A última expressão sou da oratória, tenho feito o diabo a quatro, já desertei da glória e ando agora no teatro, mas é pior e mais pândega A Conferência da Alfândega. BEDEL - O Veículo? VEÍCULO - Não estou atrasado. BEDEL - Então chegue-se. VEÍCULO - Eu sou o bonde, a carroça, a andorinha, a diligência pra dar cabo da existência dos desgraçados mortais. Ora acreditais que eu não possa. que eu não possa. do que hei feito. do que hei feito fazer mais. BEDEL - Beribéri? BERIBÉRI - Eis-me Eu sou o Beribéri e, como Otelo,

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nasci lá nos desertos africanos, nasci para flagelo dos humanos, e as mais moléstias meto num chinelo. Naturalizei-me brasileiro e firmei a minha residência na terra de Gonçalves Dias. Gosto muito do Nordeste, e decididamente não saio de lá. Ainda não passei da Bahia. Não faço casa da corte. BOATO - Isto é, não fazes casos na Corte. BEDEL - O Cortiço? O Engraxate? O Carcamano? O Poeta, a Morte e o Médico? A MORTE - Eu sou a Morte, a mor calamidade. MÉDICO - Juro à fé do meu grau que sou doutor. AMBOS (Abraçando-se e beijando-se.) - Temo-nos muita amizade, juramos constante amor! BEDEL - Está pronta a chamada. POLÍTICA - Agora que todos estão presentes, podeis falar. (Todos falam ao mesmo tempo, Bedel agita a campainha.) BOATO - À ordem! À ordem! Isto não é república! POLÍTICA - Atenção! (Silêncio.) Digníssimas calamidades, é sempre com o mais vivo prazer que ergo neste recinto a minha não autorizada voz. BOATO (À parte.) - Não apoiado. POLÍTICA (Continuando.) - Neste momento solene em que ides prestar contas dos vossos trabalhos, espero de vosso zelo e nunca desmentida perversidade, que as referidas contas não sejam contas de grão-capitão, o que não é de esperar da vossa reconhecida atividade! A boa vontade que vos caracteriza dá azo a que eu faça de antemão o melhor conceito de vossas diligências. Está aberta a sessão... FEBRE AMARELA - Peço a palavra. POLÍTICA - Tem a palavra a Febre Amarela. BOATO (À parte.) - Logo vi que era a primeira a falar!... Esta senhora tem raízes no país, por isso lhe concedem a primazia. POLÍTICA (Abraçando a Febre.)- Fale, cara amiga. FEBRE - Para bem poderes julgar os meus feitos deste ano, basta perceberes a verdadeira estima que me consagra este cavalheiro. (Indica a direita.) e todos os seus colegas. Pretendo continuar com a mesma atividade em 1877, se a tanto me ajudar a empresa Gari... ILUSTRÍSSIMA - Se a nobre amiga que me precedeu na tribuna... BOATO - Tribuna é flor de... retórica. ILUSTRÍSSIMA - ...conseguiu fazer alguma coisa de merecer a pena. Se foram devidos a esforços meus, e da nobre Junta da Higiene... BOATO - Junta que nunca está junta da Higiene... ILUSTRÍSSIMA - Em todo o caso, em 1877 redobrarão as nossas vigilâncias em que pese ao famigerado Cai... POLÍTICA (Com o gesto.) -... pira... para esquerda, basta!! Tem a palavra a Inundação. INUNDAÇÃO - Venho de Portugal, tenho feito por lá alguma coisa pela vida, ou pela morte. Torno de novo à terra de Camões. Não está cumprida a minha missão naquele reino. SUBSCRIÇÃO - Vá, que eu fico cá para maior flagelo. BOATO - Não tem nada... É viagem que ferve... Ela é viagem na França, agora vai a Portugal... e está aqui na América. Chama-se a isto correr as sete partidas do mundo... és uma inundação de viagens. POLÍTICA - Tem a palavra... BOATO - Peço a dita. POLÍTICA - Tem a palavra. BOATO - É preciso que 1877 já nos encontre a postos, está prestes a soar a meia-noite. Portanto, peço que passemos à ordem da noite. POLÍTICA - Está bem! Ponhamo-nos de novo a caminho. Tu, Febre, não perca os teus créditos que possuis na Europa. Mata a torto e a direito, e sobretudo agarra-te aos trinta botões. O Ilustríssima, continua a não mandar calçar as ruas e a contratar empreiteiros, a gente de trabalho que faça muito e

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ganhe pouco. Ó Inundação, faze o que puderes. Boato ataca-lhes as reputações e penetra no íntimo da família para levar-lhes o desespero e a vergonha. BOATO (Tirando dois lenços da algibeira, representando o Desespero e a Vergonha.) - Eles cá estão. O Desespero e a Vergonha. POLÍTICA - Ó Capoeira, faze as tuas eternas tropelias, não te amedronte o termo de bem viver, nem que te assentem praça na Armada! Tu, Conferência, amola o próximo! Veículo, continua tua sociedade com os médicos. (O Médico aperta a mão ao Veículo.) Ó Médico, ceifa... Ó Beribéri ceifa... Ó Morte ceifa... Cumpri todos o vosso dever. Ó Seca! A ti está reservado o mais importante papel entre as calamidades que hão de afligir a Nação Brasileira em 1877. Há bom número de anos que não pões em prática o teu valor. Vai agora e tira o ventre de miséria. Escolhe para sede de teu domínio uma província próspera e feliz. BOATO - Goiás, por exemplo. POLÍTICA - O Ceará! Ide, meus irmãos, trabalhai pela santa causa da desumanidade; quanto a mim hei de contribuir com o que estiver ao meu alcance para a desgraça pública e particular. Ide. TODOS - Vamos. Coro Cena III Os mesmos, o Anjo da Humanidade acompanhado de Fé, Esperança e Caridade ANJO - Ainda não. TODOS - O Anjo da Humanidade! BOATO - A estas horas! Quase se pode dizer: é o Bom Anjo da meia-noite. ANJO (Harmonias.) - Ó Política, não te iludas, O Anjo sou da Humanidade, ao lado estou das três virtudes, Fé, Esperança e Caridade. BOATO (À parte.) - Isto é um drama do São Luis. ANJO - Querem lutar? Pois bem... lutemos, eu pelo bem, vós pelo mal. Parti, partamos, e veremos quem suplantar há de afinal. POLÍTICA - Derrubemos essas virtudes malditas. TODOS - Guerra... Guerra. (Ameaças de todos os personagens, exceto Boato, que fica de parte.) ANJO - Para trás. (Subjugam-se os personagens. Forte na orquestra.) [(Cai o pano)] ATO PRIMEIRO QUADRO II Cena I (Depois da sinfonia, UM ESPECTADOR, que está num camarote dirige-se ao público naturalmente.) ESPECTADOR - Parece-me que, desta vez, temos coisa nova. Antes de vir para aqui, tinha dito a um dos meus amigos que creio deve estar aí na platéia: Palpita-me que vou ter uma imitação francesa parecida com a da Madame Angu ou uma tradução, como a da Mulher do Saltimbanco, mais ou menos apropriadas aos acontecimentos passados: mas julgo que me enganei. Errare humanum est. Ainda que me custe a engolir como genuinamente original, aquela esperteza de começar a peça pelo couplet final. Enfim, nihil sub sole novum. Uma das coisas que nunca falham numa revista francesa é o Monsieur du parterre, sujeito que finge ser do público, que fala como por acaso... Bem acredito eu nos tais casos... e que, no fim de contas, não passa de um ator com mais ou menos espírito. Felizmente nesta peça parece-me que estamos livres dele... do ator se entende... porque o espírito é de crer que o haja por atacado e a varejo, apesar da peça não ser do Varejão. Sem querer, falei demais... Não vão agora os

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senhores pensar que faço parte da peça! Deus me livre, que meu pai não me educou para cômico. Vamos ver o que sai por detrás daquele pano. (Sobe o pano. Praça, gafanhotos, vaga-lumes, Gatunos, Moleques, Policiais) Cena II Gafanhotos e depois (Ilegível.) Coro Cena III 1º, 2º Gatuno e Zé Povinho 1º GATUNO (Deixando cair uma carta no chão.) - Lá vai a isca. 2º GATUNO (Agarra a carta na ocasião em que o 1º vai também para lhe pegar, ficando o 2º com ela.) - Largue, que é minha. 1º GATUNO - Não há tal! Esta carta caiu-me da algibeira. ZÉ (Que tem visto.) - Caiu, que eu vi. 2º GATUNO - O senhor está combinado com ele! ZÉ - Combinado vá ele. Veja se quer exprimentar a peroba. (Ameaça-o.) 2º GATUNO - A carta é minha, e a prova é que tem dentro uma trancinha. 1º GATUNO - A carta caiu-me da algibeira, e não tem nada dentro. 2º GATUNO - Aposto em como tem uma trancinha. ZÉ - Aposto também eu! Aqui está dinheiro! 1º GATUNO - Também eu aposto. Vamos, feito! ZÉ - Quanto val a aposta? 2º GATUNO - Duzentos bicos... ZÉ - Case. Os meus aqui estão. Vão para a mão deste cavalheiro. 1º GATUNO - Abra a carta. 2º GATUNO (Abrindo a carta e mostrando uma trancinha.) - Ganhei. 1º GATUNO (Para Zé Povinho.) - Perdemos. (Os gatunos saem.) Cena IV Zé Povinho só; depois Boato, vestido de urbano; Nota de Duzentos Mil Réis que nada fala ZÉ (Meio atordoado.) - Perdemos. É singular este plural. Devia ter dito ganhamos, e perdeu! Querem ver que fui embarrilado? Creio que sim. Pelo sim, pelo não, vou queixar-me à Polícia. (Entra o Boato.) Ó camarada. (Boato não responde.) Ó seu guita! (O mesmo.) Vai a dormir. (Chega-se e grita-lhe no ouvido. O urbano desperta, puxa da espada e põe-se a gritar.) BOATO (Com volubilidade.) - O que é isso? O que é que é? O que há? Quem foi o ladrão? Onde é o fogo? Onde está a carroça? Que número tinha o bonde? Quantas facadas deu ele? ZÉ - Uma só... mas foi taluda. BOATO - Onde? ZÉ - Aqui. (Mostra o bolso.) Duzentos mil réis, Por sinal foi uma nota... BOATO - Uma nota de duzentos. (Passa uma nota perseguida por um urbano.) ZÉ - Olhe, exatamente como aquela!! BOATO - Como aquela? ZÉ - Tal e qual. (A nota faz negaças ao urbano até sair.) BOATO - Mas aquela é uma nota falsa! Você parece-me passador de moeda falsa. Venha à presença da autoridade. Está preso em flagrante de delito! Hum... amanhã dirão os jornais: "graças ao zelo da Polícia, foi preso um dos passadores de notas falsas. A Autoridade segue o rasto de vasta conspiração".

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ZÉ - Qual conspiração nem qual carapuças. Conspirando está você contra o meu sistema nervoso. O que me parece é que você está a dormir! BOATO - Insultos! Oh! que parte! ZÉ - Você quer tomar o peso ao cacete. BOATO - Ameaças! Oh! que parte! ZÉ (Levantando a bengala.) - E se não se safa.. BOATO (Apita.) - Vias de fato! Oh! que parte! Cena V Os mesmos e Política POLÍTICA - Pára. BOATO - Manda quem pode. POLÍTICA - O que foi isto? BOATO - Tomei este uniforme de urbano, e acabo de prender um passador de moeda falsa, visto que não podemos agarrar mais nenhum. Agarramos um, prendemo-lo, processamo-lo, levamo-lo ao júri, absolvemo-lo, apelamos, processamo-lo de novo, levamo-lo de novo ao tribunal, condenamo-lo, mas damos-lhe tempo para deitar sebo nas canelas. (Baixo.) Mas...esse... coitado... não passou: foi passado POLÍTICA - Nesse caso, retira-te... BOATO - Para onde? POLÍTICA - Vai vestir-te à paisana e assistir às sessões da Câmara. BOATO - Lá vou... lá vou... (Vendo entrar o Capoeira.) E vou em boa companhia. Cena VI Os mesmos e Capoeira ZÉ (Fugindo para o regulador.)- Ai mau! Ai mau! CAPOEIRA - Vamos à Câmara? BOATO - Eu vou para lá: vem comigo. (Enlaçam-se.) Trazes a navalha? CAPOEIRA - Trago. Vamos. É mais perto ir pela estrada do... (Indica à esquerda.) BOATO - ...do que ir pela travessa. (Saem.) Cena VII Zé Povinho e Política ZÉ (Rolando o chapéu nas mãos.) - Eu faltaria ao mais sagrado de todos os deveres se não lhe agradecesse... POLÍTICA - Nada tem que me agradecer. Somos conhecidos velhos. ZÉ - Vossa Mercê já andou pela Província? POLÍTICA - Eu ando em toda a parte. ZÉ - Mas nunca tive o gosto de a encontrar! POLÍTICA - Olá! Se tiveste! Sou a Política! ZÉ - Qual! POLÍTICA - Duvidas? ZÉ - Que esperança! Pois se sou uma vítima de tal víbora! Ainda nas últimas eleições, ela me fez gastar bons cobres! E afinal de contas o Sérgio pulou fora como um catita! Foi repelido à correia! Não o quiseram lá! Fora mais fácil meter um prado na Câmara, e não meteram, apesar de vir por obra e graça do Espírito Santo. Mas, apesar disso tudo, em se falando de eleições, sou outro homem; é defeito que me está na massa do sangue. Apesar da Política lá na terra ser velha e feia como o demônio. Você ao menos é toda chique, toda boa, pra não dizer mesmo toda coxa. A coisa por cá parece que rende. POLÍTICA - Qual! Vão-se acabando os privilégios. Já estão inventados todos os melhoramentos.

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ZÉ - Já eu tenho ouvido falar nisso. Isto por cá vai de vento em popa. É Empresa de Esgotos, Carris de Copacabana. POLÍTICA - Isso anda meio entruviscado. Botanical que dividir a Copacabana; quer ficar com a copa e deixar a cabana aos outros. ZÉ -Quem ocupa a copa esquipa sob a melhor capa! No copus hic labor est. POLÍTICA - Faço como Pilatos, que era homem asseado, e lavava as mãos mesmo quando estavam limpas... ZÉ - As mãos da Política não podem estar muito limpas... Oh! Mas vossemecê traz luvas... e que as não trouxesse! Tinha água da Empresa do Anjo Gabriel... É verdade que a tal água pode untar as suas mãozinhas, em vez de limpá-las... Mas posso saber quem é esse sujeito de quem me livrou? POLÍTICA - É um dos meus mais fiéis aliados: é o Boato. ZÉ - O Boato? POLÍTICA - O "consta-nos", o "diz-se", o "ouvi dizer", o "somos informados com toda a reserva". Uma espécie de calúnia de Beaumarchais... ZÉ - E você tem conhecimento com sujeito dessa ordem? Que ordem de sujeito! Está sujeito a ser chamado à ordem! POLÍTICA - Está bem: deixa-te de trocadilhos e anda daí a ver a cidade do meu afeto. ZÉ - Aceito. Mas receio que minha mulher, Opinião, vendo-me com vossemecê, faça uma cena dos diabos. POLÍTICA - Acharei artes para livrarmos dela. É ciumenta? ZÉ - Uma víbora! POLÍTICA - E como é que não está contigo? ZÉ - Ficamos de nos encontrar em Botafogo; mas, para aproveitar alguns momentos livre dela, ensinei-lhe o bonde de Vila Isabel. POLÍTICA - Pois amanhã o meu fiel Boato te livrará dela. ZÉ - Mas nada de intrigas. POLÍTICA - Sossega; não há ninguém como a Política para guardar as conveniências. ZÉ - E se todo em todo me não pode livrar dela? POLÍTICA - Quem não pode, trapaceia... ZÉ - Pois também a Política? POLÍTICA - Vem daí, ingênuo e primitivo caboclo. (Passam ao fundo dois personagens esgrimindo-se com penas de pato. Um deve ser padre.) ZÉ - O que vão fazendo aqueles dois indivíduos? POLÍTICA - São dois amigos meus que estão tratando da Questão religiosa. ZÉ - Pois ainda isso dura? POLÍTICA - E durará. (Vai ao fundo e aperta a mão dos esgrimadores.) ZÉ - O que foi vossemecê lá fazer? POLÍTICA - Estavam um pouco cansados; fui lhes dar novas forças. Vamos! (Saem.) Cena VIII Opinião, só OPINIÃO - Ora, uma destas só a mim acontece! Ah! que se o encontro dou-lhe uma sova de o deixar em lençóis de vinho. Larga-se um homem e mais a sua mulher lá dessas terras por onde Cristo nunca andou, para vir à corte opor-se ao concurso de abastecimento de carne verde à capital, sai-lhe pela proa um Berlinch e adeus minhas encomendas! Há de dar bons burros ao dízimo! A sua carne verde faz febre amarela! Ao menos há patriotismo nas cores! E o tratante do Zé Povinho mal aqui se apanha, foi uma vez! É capaz de andar rendendo preitos aberta... mente às francesas, e à ida para casa com este sistema, há de ser bonita... Se o apanho...

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Cena IX A mesma, o Boato, à paisana OPINIÃO (Vai sair e encontra-se com Boato.) - Vai cego? BOATO - Irribus! Pisou-me o melhor calo! OPINIÃO - Para outra vez, veja por onde pisa. BOATO - O que quer? Venho atordoado com o que me contaram. OPINIÃO - O que foi? BOATO - Dizem que um pobre homem, não vi, mas ouvi dizer a pessoa de confiança, tendo-se perdido esta manhã da mulher... OPINIÃO - O que faz? Valha-me Deus! Mas o marido também se perdeu de mim! BOATO - Da senhora? OPINIÃO - De mim, sim; já lhe disse tintim por tintim. BOATO - Pare lá com o sino! Enfim! E como se chamava ele? OPINIÃO - Zé Povinho. BOATO - É o mesmo. OPINIÃO - Mas o que lhe aconteceu? Ah! Conte! Céus! Diga! Estou num desespero incrível! BOATO - Pois, minha boa e pobre senhora... OPINIÃO - Estou viúva? BOATO -Provisoriamente! OPINIÃO - Explique-se ou o agatanho! BOATO - Seu marido, consta fez as malas e sem amá-la... pôs-se a panos mal a mala. (Sai.) Cena X Opinião e Espectador OPINIÃO - Mas isto é horrível! Abandonar-me no meio duma cidade desconhecida em risco de ser cantada... em alguma "ocorrência da rua". Em verdade, se fora segunda feira: e em prosa, se for a semana. Isto é ignóbil. ESPECTADOR - É muito mais do que a senhora julga! OPINIÃO - É porque terá outra amante? ESPECTADOR - Tem, e a pior de todas... OPINIÃO - Diga-me quem é, porque quero esganá-la! ESPECTADOR - Não fazia nada demais, porque ela tem esmagado a muita gente. OPINIÃO - Quem é ela? ESPECTADOR - A Política; OPINIÃO - Ai, que mulher sem-vergonha. Hei de desmascará-la. ESPECTADOR - Olhe que veio a propósito atrás dele! O seu Zé Povinho estava sossegado, como a linda Inês! OPINIÃO - Então ele não partiu? ESPECTADOR - Qual! A senhora foi vítima da seca... Ai, da seca. Oh! Perdão! Vítima do logro. OPINIÃO - É do que vive aquela sujeita, é de lograr todo o mundo! ESPECTADOR - Se a senhora quer, eu acompanho, até encontrar o homem. OPINIÃO - Com todo o gosto Dueto Lá vou, lá vou, lá vou sinhá. pois sim, pois sim, pois sim, venha cá. (À parte.) - É bem simpático este moço! Parece-me com a Vale, do Teatro São Luiz. Vou enciumar o pérfido e assim que lhe deitar as unhas, deito-lhe as ditas e dentes, e ponho-lhe as malas à

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costas e marcho para Goiás, que é terra de progresso, onde há um cabriolé ganho com o suor do rosto. (O Espectador desce para o palco.) ESPECTADOR - Pronto. OPINIÃO - Principiemos a exploração. (Derretida.) Não? ESPECTADOR - Está dito então. OPINIÃO - Onde vamos? ESPECTADOR - Ver a inauguração do plano inclinado para Santa Teresa! OPINIÃO - Plano inclinado? Nunca ouvi falar nisso, senão a respeito das nossas finanças. ESPECTADOR - Essas estão em muito bom pé... Agora em boa mão é que não sei... Ouvi falar aí numa história de dez mil contos, que é um verdadeiro romance. OPINIÃO - Mas então o que é o plano? ESPECTADOR - Venha, e depois lho explicarei. OPINIÃO - Por onde? ESPECTADOR - Metemo-nos no bonde aqui no largo. QUADRO III Cena XI (Vista do plano inclinado de Santa Teresa. Coro de inauguração de gente do povo.) Espectador e Opinião OPINIÃO (Abanando-se.) - Ai tanta gente e o Senhor Zé Povinho nem pintado o vejo. Ai! O que é que vem ali? Nunca vi animal semelhante. ESPECTADOR - Vem aqui por causa de sê-lo. Cena XII Os mesmos e o Correio, montado numa tartaruga (Correio é cercado e cumprimentado por todos os jornais.) OPINIÃO (À parte.) - Ele anda tão devagar... (Ao Espectador.) Pois o Senhor Diretor é bem ativo e inteligente. ESPECTADOR - Assim é que é o Correio geral! Mais moroso que aquilo só o Telégrafo. CORREIO - Agradeço a pontualidade. Vim um pouco mais tarde, porque tive de fechar a mala para Chapéu d'Uvas. Espero que haveis de ficar contente com a convenção de Berne. TODOS - O quê? CORREIO - Quero dizer que haveis de ficar satisfeitos com o plano, e eu, por meu lado, não hei de ficar no primeiro plano. ESPECTADOR - Não falo da carta; refiro-me ao plano. CORREIO - Desde que se aperte o freio do novo sistema, já não há perigo que as cartas sejam violadas; ESPECTADOR - Mas a que inviolabilidade se refere? CORREIO - À da vida dos que subirem o plano. Já dei ordem para serem carimbados... TODOS - Carimbados? CORREIO - Todos os bilhetes. Por estas e outras mereço todo o elogio. Na qualidade de Correio Geral e reconhecendo que uma carta levava dois dias para chegar da cidade a Santa Teresa, acho excelente a idéia do plano inclinado! O próprio indivíduo pode levar a sua carta, e entregá-la em mão própria em meia hora. (Sente-se o apoio e grande algazarra do povo.) TODOS - É agora. É agora. Vai subir. UM MOLEQUE - Quer balas, freguês, quer balas? (Aparece o bonde no plano inclinado. Estão Zé Povinho e a Política.) ZÉ - Eu cá estou. POLÍTICA - E eu também.

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OPINIÃO - (Que está à boca de cena.) - Lá está o pérfido! Acompanhado duma mulher! Oh! Quero saber quem é! Cena XIII Os mesmos e Boato BOATO (Ao ouvido da Opinião.) - Consta-me... não sei... mas parece-me que é a Política! OPINIÃO - Mas o que vai ele ali cheirar? ESPECTADOR - Não se admire: a Política cá na terra mete o nariz em toda a parte. OPINIÃO - Deus queira que não as meta nas algibeiras do velho. Basta que eu o faça. ESPECTADOR- É limpeza geral! ZÉ - A Opinião! Minha mulher! Ó Senhora Política, mande subir até onde há cabo. Ao cabo do mundo que seja, senão acabo! Ela dá cabo de mim. Cena XIV O Veículo e o Anjo da Humanidade VEÍCULO (Entrando desaforado com o tílburi na cabeça.) - Maldita invenção do bonde. Até mesmo esta subida já tem condução à noite. Pois bem guerra de morte! Comecemos por cortar o cabo! (Vai a dirigir-se para o fundo.) ANJO (Derrubando-o.) - Para trás! As conquistas do Progresso protege-as Anjo da Humanidade. VEÍCULO - Ora esta. Não sei o que tenho. Vinho não é, porque só bebi cachaça. (Aparece na plataforma do bonde o Anjo, que sobe ao som de gerais aclamações, levando a reboque a tartaruga em que vai montado o Correio.) OPINIÃO - Lá se vai o homem pela corda acima. BOATO - E dizem que a coisa vai descarrilar! OPINIÃO - Então lá leva o diabo o velho. (Cai desmaiada nos braços d'alguém.) (Mutação.) QUADRO IV Cena XV (Um botequim, mesas, cadeiras) Caixeiro, só, à porta CAIXEIRO (À parte.) - Estamos hoje em maré de vazante. Não aparece ninguém... Não admira... Os fregueses estão metidos aí em algum teatro a ouvir alguma conferência... E o mais é que estas coisas de conferência têm feito um mal dos diabos ao comércio. Há estabelecimento por aí que está sempre às moscas, outros estão como Nero. Nem mesmo uma mosca... todos os fregueses fugiram... foram naturalmente ser oradores de conferências. Que também não sei por que se não há de chamar de conferentes a esses oradores. Conferente!... Só o título quanto val! (Ouve-se um trovão.) Santa Bárbara!... Lá está um a orar... Ah! É um trovão. Ora, ó Lopes... Felizmente lá vem um freguês, mais do que um... é uma companhia. Cena XVI O mesmo, Diretores da Companhia de Consumo, depois Taberneiros 1º DIRETOR - O senhor é dono desta casa? CAIXEIRO - Por enquanto não, senhor. Sou apenas um dos interessados... em que ela ganhe dinheiro. 1º DIRETOR - Pois nós cooperamos o consumo, e vínhamos saber quantas ações quer que reservemos. CAIXEIRO - Para quê?

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1º DIRETOR - Para comer mais barato do que em qualquer outra parte... tudo puro e sem confeição. (Os taberneiros têm estado a espreitar a porta e entram ameaçadores.) Coro CAIXEIRO - Mas isto é uma invasão! Estão por acaso suspensas as garantias?... O que é isto, vivemos num império ou numa republiqueta? 1º TABERNEIRO - Nós, os secos e molhados... fazemos de guerra de morte a essa companhia, que jurou a nossa ruína. Nós somos o monopólio do bacalhau, a composição do vinho, a farinha avariada. Os paios em salmoura podre, o azeite rançoso e todos esses gêneros que fazem tapar o nariz à Junta da Higiene, que emagrecem o povo e nos engordam a nós. Eis o que somos. CAIXEIRO - Pois eu, como cá cheiro, não me cheira essa contenda, e ponham-se todo na rua. Rua! Senhores do Consumo, não me consumam a paciência. TODOS - Guerra! Guerra! (Saem em perseguição uns aos outros pela esquerda.) Cena XVII Caixeiro, depois, Zé, Política CAIXEIRO - Além de se não ter fregueses, ainda em cima me cai em casa uma praga destas! Onde estão as autoridades? Já não temos constituição, senão na Praça do Rossio. O país está perdido. (Entra Zé e Política.) A nação vai por um plano inclinado. ZÉ - De lá venho eu agora... e gostei. (Entra.) CAIXEIRO - Ó coração despaisado... Pois o senhor gosta da desgraça do país? ZÉ - Do país? Quem lhe fala nessas coisas? Eu refiro-me ao plano inclinado de Santa Teresa, e eu mesmos estou inclinado a fazer um plano daqueles lá na terra; mas puxado a burros. CAIXEIRO - A burros?! Queira desculpar. ZÉ - Não há de quê. (À Política.) Tomas alguma coisa? POLÍTICA - Isso não se pergunta, eu tomo sempre. ZÉ - Traga-me lá uma cajuada com groselha. (Sentam-se à mesa.) Pois gostei da tal caranguejola, é obra acabada... agora o que falta é acabar a obra. POLÍTICA - Não se há de demorar... Eu interesso-me pelo melhoramento. ZÉ - Tu também interessas-te por tudo... és a salvação do Povo... POLÍTICA - O Povo é os meus encantos, a minha tetéia... ou em melhor e moderna tradução, o meu bijou... Olha, lá vem um dos meus amigos. ZÉ - Quem? Aquele homem de capote que vem com aquela criançada toda? POLÍTICA - Esse mesmo. Dirige-se para aqui. CAIXEIRO - Estamos arranjados... se nos apanha de jeito, é capaz de nos pedir a camisa. Cena XVIII Os mesmos e o Major MAJOR - Meus senhores, venho implorar a sua caridade... Qualquer cosa me serve... Umas calças... até uma casaca me faz conta... mesmo das viradas... se é que há algumas por aqui... ZÉ (Baixo à Política.) - Aquilo parece que é contigo. POLÍTICA - Não é, mas faz-me arder... MAJOR - Querem uma amostra do pano? Pois aí vai o pano d'amostra. Eu tinha uma casaca. Duma das abas fiz um cueiro... vejam. (Mostra uma criança embrulhada numa aba da casaca.) Com outra, arranja-se uma capa como esta. (Vai mostrando o que diz.) O que este tem na cabeça é uma manga... cujo canhão disparou... quero dizer, desapareceu... a outra manga deu meias calças para este que está a espera d'outra casaca para completar a toalete... e o resto... o casco... desabado... cobre os ombros deste patusco... Vejam pois que as casacas di...abas são casacas santas... Vamos, meus senhores, qualquer cosa serve. ZÉ - Eu só lhe dei um cheque para o Banco Mauá.

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MAJOR - Depois que levou o xeque-mate, é quanto de mau... há. ZÉ - Pois se lhe não serve... (O Caixeiro que tem saído, entra com uma grande porção de roupa velha com que se vestem os pequenos caricatamente.) CAIXEIRO - Aqui tem o que há. Por hoje acabou-se a roupa velha cá em casa. ZÉ - É pena, porque o petisco é do gosto. POLÍTICA - E olha que não é mau petisco. MAJOR - Obrigado. CAIXEIRO - Quando o senhor sair condecorado, lembre-se de meu padrinho, que é uma jóia e vende as ditas na Rua Estreita de São Joaquim. MAJOR - Agora, rapazes, vamos a outra freguesia. (Dão a volta à roda da cena, ao som da Marcha.) Cena XIX Caixeiro, Zé, Política, depois Boato ZÉ - É original este tipo! POLÍTICA - As intenções são boas... ZÉ - Já não acontece o mesmo a todos... (Vai sentar-se num banco do que cai a perna.) Veja este banco que peça me armou... estava quebrado... não me preveni... convidou-me a sentar, e depois zás... uma destas faz perder a confiança nos bancos. (Ouve-se rumor.) POLÍTICA - Que rumor é este? CAIXEIRO - É na... o que lá vai. POLÍTICA - O que é? BOATO - Querem saber o que é, não se assustem. Todos os rapazes da Instrução Pública que, em vez de conhecerem os sujeitos da oração... ora... são a atacar todos os sujeitos que passam. ZÉ - Mas então estão incursos nos artigos da Lei. BOATO - São artigos indefinidos ainda. ZÉ - Mas isso não tem nome... Se hão de estudar a gramática e respeitar a regência... BOATO - Fazem-se prosas e fazem o inverso. POLÍTICA - Eu vou sossegá-los. BOATO - Talvez que o seu verbo ativo... ZÉ - ... os faça concordar... Mas eu creio que fazes mal em te ires meter com os pequenos... lembra-te do ditado: Quem se... POLÍTICA - Qual, de pequenino é que se torce o pepino. BOATO - E ela quer começar a torcê-los de pequenos. Vá, Dona Política... e veja se tem proposições capazes de fazer a concordância geral e pôr o complemento à questão. Não se ponha com interrogações, e ponha ponto na oração. (Política sai. Boato a Zé.) Enquanto apeamos, quer tomar café, para depois irmos gozar de uma partida de bilhar? ZÉ - A dinheiro vai... jogo o bilhar por uma partida de café. BOATO - Dizem que tem bom preço este ano? ZÉ - Isto é lá com os comissários... Vamos a isto. Cena XX Os mesmos, Espectador, Opinião, Tubo e Homem Canhão ESPECTADOR - Lá está ele... então o que lhe disse eu... encontramo-lo ou não. ZÉ - A Opinião! Estou asseado. BOATO - Coragem. OPINIÃO - Ora, até que tenho o gosto de lhe por a vista em cima... então, como se entende isto, senhor?... Que procedimento é esse? Quando o senhor subiu ao monte... ESPECTADOR - Foi quando ela subiu a serra! OPINIÃO - Vamos é arranjar malas e partir.

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ZÉ - Partir? OPINIÃO - Pois, por que espera? ZÉ - Por quê?... Ah! Sim... Quero que ande à roda! Comprei um bilhete com duas garantias, par a sorte grande ser mais certa! OPINIÃO - Com a cabeça à roda anda você desde que se apanhou com essas fúrias de cara caiada e de carro à porta! Ah! não sei o que me contou... (Raivosa.) Estou sedenta... BOATO (Muito breve.) - Rapaz, já um copo d'águia. CAIXEIRO - Acabou-se; TODOS - Acabou-se?! CAIXEIRO - O Fiscal fechou a torneira pela manhã. ESPECTADOR - Deve haver outras... CAIXEIRO - Há, mas são verdes... ou digo, são para os outros. TODOS - Água, água! TUBO - Pronto. (Mete um tubo pelo chão abaixo e sai um repuxo.) TODOS - Nada, nada. TUBO - Isto é simples. BOATO - Dizem que não pega... porque é bom! TUBO - Há de sair... BOATO - Olhe, canta-lhe...Quero dizer, toque-lhe a bomba... TODOS (Dando à bomba.) - Ajudemos todos, (Dando todos à bomba.) ESPECTADOR - Se eu tivesse um talismã, captava como o Vale , na Pêra de Satanás. BOATO - Eu também. ESPECTADOR - Vá de valetas. BOATO - De valetas. está dito. Cantam Talismã poderoso, que opera com o teu alto poder, maravilhas a nós todos, que a sede devora um pinga vem dar, seja embora do Cartaxo, do Porto, ou das |ilhas. (Jorra água por um lado e vinho do outro.) BOATO - Viva o nosso chafa... TUBO - ... ris? do progresso?... BOATO - Vivam os tubos. TODOS - Vivam. OPINIÃO - Vamos, Juquinha... Agora estou saciada, vamos para a tua terra. (Ouve-se um grande tiro.) O que é isto? (Passa ao fundo o Homem-canhão.) ESPECTADOR - É o Homem-canhão. BOATO - Homem-canhão... mulheres tenho visto. ESPECTADOR - Um homem que dispara... e põe logo a andar uma bala de calibre três mil, oitocentos e cinco... ZÉ - Que pena não haver um batalhão destes no Paraguai. BOATO - Para quê? Para se acabar a guerra num dia? OPINIÃO- E para nos livrar dos impostos para ela, que ainda estamos pagando. (Música fora.) TODOS - O que é isto? BOATO - Isto deve ser... ruim... parece-me que é alguma manifestação qualquer... porquê... ESPECTADOR - Desembuche... BOATO - Lá vai... conta-se... dizem que houve uma combinação entre o Diretor do Corpo de Bombeiros... eu não vi... mas afirma-se. Cena XXI Anjo, Zé e Espectador

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ANJO - (Aparecendo ao fundo.) - Afirma-se que houve um tempo em que os incêndios alteravam e destruíam com uma voracidade assombrosa a propriedade e os bens. ZÉ - Bem me lembro. No tempo em que eram circunscritos. ESPECTADOR - Um incêndio deixa sempre o juízo a arder. ANJO - E que esse tempo, graças à energia, zelo, boa vontade e coragem dum intrépido e benemérito militar, desapareceu... e que, por esse motivo, as Companhias de Seguro lhe vão oferecer uma casa para ele habitar... Não é muito que se dê um lar a quem tantos salvou! (Ouvem-se foguetes e música.) ZÉ - Viva o heróis dos fogos! TODOS - Viva! (Saem.) Mutação QUADRO V Cena XXII (Vista da praça, a mesma cena do Quadro II. Vendilhões, pretas, rapazes com gazetas. Ao fundo, um grupo de gente dá atenção ao Preto, que canta alguns trechos de Maria Angú.) Canção Cena XXIII Os mesmos e Opinião ZÉ (Entra da esquerda.) - Para fugir à Opinião tive que também que fugir da Política!...Parece sina... Estou em maré de perder de vista as mulheres... Ora, a minha Opinião, isto é coisa que ora está para o Norte, ora para o Sul... Mas a Política? Segundo me informaram, essa senhora quando se pespega no cachaço de qualquer, não é com duas razões que o deixa. OPINIÃO (Entrando pelo lado. À parte.) - Onde estará encafuado aquele maldito Boato? Se o desalmado corre, que ninguém o pode apanhar... (Vendo Zé.) Ola Seu Zé Povinho, apanhei-o. ZÉ - Credo, ela! OPINIÃO - Com esta não contavas tu, confessa! ZÉ - Confesso que estou satisfeito. OPINIÃO - Vamos, passa adiante! ZÉ - Onde diabos queres tu que eu vá? OPINIÃO - Vamos embarcar. ZÉ - Ora esta! Ainda não tomei o gostinho... Nem vi os teatros. OPINIÃO - As varietées, não?! Ora, passa adiante de mim. ZÉ (À parte.) - Se fosse a Política que governasse o Zé Povinho, ainda eu iria, mas da Opinião não me importa. Eu hei de me ver livre dela. OPINIÃO (Que tem subido a falar com alguém e desce agora.) - Vamos (Saem.) Cena XXIV A Companhia de Consumo do Pão perseguida pelos Professores Públicos, Boato e Anúncio PROFESSOR - Dê cá o pão! Dê cá o pão! 1º DA COMPANHIA - Largue o pão! Largue o pão! BOATO - O que é isto? O que é isto? 1º DA COMPANHIA - Senhores, nós somos a Companhia do Consumo do Pão. BOATO - Ah!! 1º DA COMPANHIA - Andamos à cata de acionistas! BOATO - Fazem mal, fiquem descansados em casa, que eles lá irão ter. 1º DA COMPANHIA - Precisamos de acionistas como de pão para a boca. BOATO - Isso é o que não aprece.Os senhores tem aí para um exército. 1º DA COMPANHIA - Isto é uma amostra do nosso pão.

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PROFESSOR - Senhor, nós é os pobre professor público. BOATO - Nós é... sim, senhor. Está se vendo... está se vendo... PROFESSOR - Nossos vencimento foi reduzido! Nós está com fome. Queremos este pão. TODOS - Queremos este pão! 1º DA COMPANHIA- Mas isto é uma violência. (Frases desencontradas de parte a parte e saem altercando para a direita.) BOATO (Só.) - Dizem que Jesus Cristo, com cinco pães, deu de comer a cinco mil pessoas. Se fossem todos da Companhia do Consumo, não era milagre nenhum. Aí vem o Anúncio: fujamos deste amolador. ANÚNCIO (Sombrio.) - Qual é a melhor cerveja nacional? A Cristiana! Dê-se um prêmio a quem provar o contrário. (Passeia e pára de novo.) O melhor favor que se pode fazer a uma senhora é indicar-lhe a casa especial de fazendas pretas. (O mesmo jogo.) O rend l'argent a quem comprar por menos. Aux 100.000 Palitots. (Sai majestosamente.) Cena XXV [Zé Povinho (Só.)] ZÉ - Então livrei-me dela ou não? A Opinião nunca está com o Zé Povinho, que é o mesmo que dizer que o Zé Povinho não tem opinião. O que é aquilo? Que povaréu é aquele? Cena XXVI O mesmo, Dondon, Operários da Alfândega OS RECÉM-CHEGADOS - É um desaforo! É uma pouca vergonha! ZÉ - Vossas Excelências queiram desculpar, mas o que foi que aconteceu? DONDON - Eu lhe conto, cidadão... Antes que tudo, qual é a sua cor política? ZÉ - O azul. DONDON - Como o azul? Zomba, cidadão? Olhe que lhe desanco com a musa do povo! ZÉ - Perdão, o que foi que perguntou? DONDON - Perguntei-lhe qual era sua cor política. ZÉ - Pois então desculpe, julguei que me perguntasse qual era minha cor predileta. DONDON - Política. A que corpo pertence. ZÉ - Eu não tenho cor po...lítica. DONDON - Saiba que aquele senhor, ou por outra, aquele charuto que ali passa ao fundo fez umas tantas exigências vexatórias e inconseqüentes a esta pobre gente! Fizeram greve... ZÉ - Uma greve é grave... DONDON - Vieram ter comigo, o Tribuno do Povo, o Mimoso das Multidões, o Hirsuto, o Encapotado, e pedirem-me que advogasse a sua causa. Fui a quem de direito... E o que julga o senhor que me respondesse quem de direito? ZÉ - Mandou-o pentear monos... ou pentear-se a si mesmo, que bem precisa disso. DONDON - Nada, cidadão! Disse-me - Por que se meteu nisso: OS OPERÁRIOS - É um desaforo, é uma pouca vergonha. DONDON - Hei de me vingar num seu colega a quem não cansarei de repetir com toda a força dos meus cabelos: - Larga a pasta. (Aos outros.) Amigos, segui-me e gritemos todos. Coro Cena XXVII Política e Zé Povinho POLÍTICA (Ouvindo ainda o coro.) - Imbecis, ora querem, ora não querem! (Vendo Zé.) Enfim te encontro. ZÉ - Onde andaste?

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POLÍTICA - Então julgas que sou alguma vadia? Estás muito enganado! A política não tem descanso. Ainda agora andei atrapalhada, apaziguando uma divergência que se estabeleceu entre um sujeito e um marceneiro... ZÉ - Por quê? POLÍTICA - Porque queria a viva força apoderar-se duma cadeira que estava em sua casa para cobrir de palhinha... e afinal apoderou-se. ZÉ - E quem é esse pândego? POLÍTICA - Um sujeito velho... ZÉ - Desembuche! Quem é esse sujeito velho? POLÍTICA - Não posso dizê-lo para evitar censura. Basta de darmos à taramela. Vamos. ZÉ - Aonde? POLÍTICA - Vamos aí à toa, não nos faltará o que ver. (Saem.) Cena XXVIII Espectador e Boato ESPECTADOR - Nada, não me faça entrar na... para cá... olhe que não sou da peça. BOATO - Não faz mal. ESPECTADOR - O empresário pode escamar-se... e com razão, que diabo. Um homem que sai do camarote e entra no palco. E o demônio do contra-regra onde tem a cabeça?... BOATO - Venha cá... venha cá... ESPECTADOR - De mais a mais, ó Seu Boato, olhe que isto é maçada... o espetáculo pode acabar depois da meia noite... e depois não há bonde. BOATO - Lá vai um vapor. (Passa um vapor.) ESPECTADOR - Agora pergunto-lhe eu: se estando sem vapor fazem tantas vítimas, a vapor com vapor quantas farão? É uma regra de três. BOATO - Quais são os três? ESPECTADOR - Ora esta! sempre é muito tolo!... Uma regra de três é... é... Eu lhe explico... É uma regra sem exceção. Você sabe que não há regra sem exceção. BOATO - Quanto ao número de vítimas não se amedronte. Agora há uma salva-vidas. ESPECTADOR - Mas já está posto em prática? BOATO - Posto em pratos? Em pratos limpos. ESPECTADOR - Em prática! BOATO - Por ora, está apenas posto em teoria. ESPECTADOR - Por força. Nesta terra é sempre assim. Se se tratasse dum salva-mortes, já a coisa andava na berra. mas diga-me cá: Você trata ou não de procurar a Dona Opinião? BOATO - Havemos de encontrá-la nas festas do carnaval. (vendo cair uma pasta, das bambolinas.) Ai! ESPECTADOR - Ai! BOATO - Caiu uma pasta. ESPECTADOR - Coitada! Donde cairia ela? BOATO - Do poder. ESPECTADOR - Então o poder é lá em cima? BOATO - É sim, senhor: dali é que nasce a corrupção dos povos. ESPECTADOR - É de cima. Sei. Cena XXIX Espectador e Política POLÍTICA - Ah! Cá está a pobre pasta... Que queda! ESPECTADOR - Mas quem a atirou lá de cima? POLÍTICA (Misteriosa.) Psiu! Vamos assistir ao carnaval?

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(Mutação.) QUADRO VI Sobe o pano do fundo e vêem-se diferentes grupos carnavalescos com as bandeiras das várias sociedades. Tocando a orquestra em surdina um cancã. TODOS (Gritando.) - Viva a folia! FEBRE AMARELA (Da esquerda.) - Bem, a ocasião é propícia para a ceifa. A Febre Amarela vai tirar o ventre da miséria. ANJO DA HUMANIDADE (Do outro lado.) - Ainda não há de ser desta vez, peste maldita. Para trás! (Ficam à boca de cena os personagens últimos e termina o ato com a música do Zé Pereira, e grande algazarra e confusão.) Fim do primeiro ato. [(Cai o pano.)] ATO SEGUNDO QUADRO VII Cena I (Na Praia do Russel. O mar invade a maior parte da cena. É noite. A Lua está em todo o esplendor. Sente-se amiudadas vezes durante o quadro a bulha dos foguetes e o estalar dos morteiros.) Cartomante e Santinha (Entra cada uma por seu lado e ficam separadas.) CARTOMANTE (À parte.) Quem será esta sujeita? SANTINHA - Quem temos de novo? CARTOMANTE (Á parte.) - Será concorrente? SANTINHA (Á parte.) - Teremos novo milagre? CARTOMANTE - Tenho pena que as minhas cartas não adivinham senão para os tolos, aliás ia já perguntar-lhes porque está esta cara de morte aqui. SANTINHA - (Á parte.) - Ah! que se eu não fizesse milagre senão para os parvos, havia de arranjar um ovo que pusesse a andar esta dama!? Será ela da roda cortesã? O melhor é ir ter com ela. (Alto.) Nosso Senhor esteja na sua santa guarda. CARTOMANTE - Eu não creio em Deus... o meu poder vem do inferno. SANTINHA - Credo! Cruzes!... Abre-te núncio! CARTOMANTE - E tanto assim que vim dizer-lhe quem é, com o auxílio das minhas cartas. (Vai para estender as cartas.) SANTINHA - Isso para mim já não pega. (Mostra um grande ovo, onde está escrito: Fome, peste e guerra.) CARTOMANTE - O quê? O célebre ovo... o prodigioso milagre da galinha santa... Lavre dois tentos, colega... Venha de lá um abraço. (Abraçam-se.) SANTINHA - Você é uma felizona. O seu modo de vida é livre, pode ter letreiro à porta: anuncia o negócio e a ciência em todos os jornais, é consultada por todas as classes e hierarquias, ganha bons cobres... enquanto que a mim foram-se à mão... diziam que faria concorrência à água da gruta, e que, neste tempo de seca, toda água é pouca... e tão pouca, que até já falta nos incêndios. A não ser alguma devota muito tola - já poucos acreditam em mim... Diga-me o que faz por aqui? CARTOMANTE - Espero um sujeito que me quer consultar... e, para dar mais aparato à coisa, mandei-o vir aqui. SANTINHA - Pois eu vim do caminho... quero ver o fogo de vistas... sempre nestas multidões se colhem muitas histórias que é bom saber. CARTOMANTE - Seja feliz.

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Cena II Os mesmos e Boato BOATO - Ora seja bem aparecida. CARTOMANTE - Já o espero há meia hora. BOATO - Se adivinhasse, como diz, podia ter poupado o trabalho da espera. CARTOMANTE - E o homem? BOATO - Não pode tardar... Quem é esta dama? CARTOMANTE - É a senhora do ovo. BOATO - Bem sei... é a galinha! CARTOMANTE - Não é isso... é a dona possuidora do ovo milagroso. BOATO - Ah! já sei... foi um ovo espertalhão que saiu cá para fora com umas palavras escritas na casca... dona, de maneira que não puderam fazer deles, ovos moles, livrou-se assim até de ser estalado. SANTINHA - Nem assim! BOATO - O quê? Pois foi passado pelas engolideiras. SANTINHA - Não somos nada neste mundo! BOATO - Lá vem ele... e com a mulher. Pode uma de vossemecês encarregar-se da mulher e outra do sujeito. Ele não é tolo, mas é ignorante político, aprecia a boa vida, é entusiasta, e gosta de andar arredor da amante, que é pouco mais ou menos como ele... Até a vista. SANTINHA - Como se chama ela? BOATO - Opinião. CARTOMANTE - E ele? BOATO - Zé Povinho. SANTINHA - Creio que há de ser difícil separar a opinião do povinho. BOATO - Também eu; mas nesse caso separemos o povinho da opinião. (Sai.) Cena III Cartomante, Santinha, Zé Povinho e Opinião (Cartomante e Santinha conservam-se um tanto quanto afastadas.) OPINIÃO -Bem te dizia eu que nos fossemos embora. Nunca me queres ouvir e agora aí o tens. Esta mania de consultar a Bruxa há de ser como a de comprar o tal bilhete da loteria. ZÉ - Pois sim, mas quem podia adivinhar que havia dois bilhetes com o mesmo número. OPINIÃO - Como eles arranjam essas coisas é que não sei... Foi como a história dos leilões. ZÉ - Não me fales nisso, que é a página negra da minha vida. OPINIÃO - Tudo por dar ouvidos a intrujões. ZÉ - Ora tu sabes que eu andava um tanto quanto necessitado de camisas... era mesmo muito boa pessoa, mas tinha poucas roupas brancas... Passo por uma casa... O leiloeiro gritava: 20 mil réis... 35... e 500 e 600 e... 365, não dão mais? 36, 36, 36, 36. A quem mais lança? Não lançam mais?... Parabéns, Senhor Zé Povinho. Dou o sinal e mandam-me, não uma caixa de dúzia, mas um caixote com uma dúzia de caixas. OPINIÃO - Foi uma boa camisa de onze varas. E ainda não te emendaste... Caíste noutra. ZÉ - E quem não havia de cair. Passo na mesma casa, e o mesmo sujeito gritando: Uma caixa de ceroulas, 20$000... levo a caixa... e encontro-me... OPINIÃO - Com meia dúzia!! É muito bem feito, que é para não ser tolo... Agora vá ter com sua amiga, a Política, essa vergonha que tem o perdido, e peça-lhe que remedeie o mal. ZÉ (Que vê a Bruxa.) - Cala-te, que ali está a Bruxa. CARTOMANTE - Bruxa vá ele... Veja como fala. ZÉ - Com a dita ao bruxo... volto eu... se disse coisa que a escandalizasse. CARTOMANTE - O que faço é filho dos altos estudos da ciência... (A Santinha.) Não é verdade? SANTINHA - Assim é... eu, porém, desprezo a ciência e faço tudo com o auxílio do Altíssimo. OPINIÃO - Sim?

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SANTINHA - É como lhe digo... A senhora quer saber o seu destino... eu faço divina invocação e tudo se me patenteia. OPINIÃO - Ora vejam lá... Estava meio tentada... SANTINHA - É Deus que a inspira... CARTOMANTE (Tem se afastado disfarçadamente com o Zé, e o mesmo faz Santinha com a Opinião.) É como lhe digo... As cartas vão dizer-lhe tudo! (Senta-se e deita as cartas.) Longa viagem... mulher feia... ZÉ (Á parte.) - Não há dúvida... Foi a viagem que fiz com a minha mulher. CARTOMANTE (Lendo as cartas.) - Lá está... Dama de paus... feia como é... é perseguida e amada. ZÉ - O quê? Que eu o faça por obrigação, vá; mas, que haja quem tenha o mau gosto de fazer as coisas por devoção... é que me custa a roer. CARTOMANTE - Pois roa a verdade... lá está ele... Valete de copas. (Continua a cena muda.) SANTINHA - Revelam os sagrados espíritos que seu marido trama um divórcio. OPINIÃO - Ah! Patife! SANTINHA - Convém evitá-lo! OPINIÃO - Como? SANTINHA - Despertando nele o ciúme. OPINIÃO - E depois? SANTINHA - Depois há de ser ele quem há de vir com a senhora. OPINIÃO - E posso-lhe afirmar que há de ser bem convidado. Veja o resto. CARTOMANTE (A Zé.) - Ela pretende ir com ele para longes caminhos com muitos dinheiros. ZÉ - Não é minha mulher... É uma nova edição da mulher de Cláudio... CARTOMANTE - A espadilha o afirma. ZÉ (Olhando para a Opinião.) - Deixa estar, que eu te arranjarei, mas em tal conjectura, o que hei de fazer? CARTOMANTE - Deixá-la fazer o que ela quiser, e vigiá-la de perto. ZÉ - Acho pouco essa coisa de só vigiar. CARTOMANTE - Enciumá-la a valer... e então verá ela quem voltar ao aprisco. ZÉ - Aprisco não, a casa. OPINIÃO - Há de ser como lhe digo. ZÉ e OPINIÃO - Está tudo acabado entre nós. ZÉ - A senhora é!... OPINIÃO - O senhor é!... Cena IV Os mesmos, Política e Boato POLÍTICA - Então, o que é isso? OPINIÃO - Olhem quem ela é... a senhora é que é a causadora de tudo isto! BOATO (A Opinião.) - Sosseguem! OPINIÃO - Que sossegue?! BOATO - Aqui estou eu para a amparar. OPINIÃO - Ora deixe-se disso. BOATO - Lembre-se que, se a sigo há tempo, é porque a amo. OPINIÃO - Olhe que meu marido pode ouvir. BOATO - Não tema, porque está entretido com a Política. OPINIÃO - Eu vou lhe arrancar os olhos. BOATO - Vamos antes ver o fogo de vistas. OPINIÃO - Eu é que tenho a vista em fogo... e estou a arder... SANTINHA (A Opinião.) Faça o que lhe disse, se perde esta ocasião, não apanha outra tão cedo. OPINIÃO - (Ao Boato.) - Tem razão. Vamos, meu querido. (Saem de braços dado.)

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ZÉ (Como uma bicha.) - Seu querido?! E ela vai com ele! Quem é aquele biltre, que não o conheço à noite? POLÍTICA - O Boato. ZÉ - Eu já o devia conhecer... Mas toma todos os dias uma cara diferente! Mas o que dirá o mundo, vendo a Opinião com o Boato? POLÍTICA - Não diz nada, porque o caso não é novo. Vem comigo. ZÉ - Mas não me dirá que insistência... POLÍTICA - Quero falar contigo a respeito das eleições municipais... e de muchas cosas más. ZÉ - Isso é outro caso... Primeiro que tudo o bem da pátria... POLÍTICA - Oh! Sim!... Abençoado seja o bem da pátria... ZÉ - Que me livra da minha mulher e me dá motivo para um divórcio... Onde vamos? POLÍTICA - Ver o fogo. (Saem.) CARTOMANTE - E nós? SANTINHA Vamos atrás deles para que nos paguem. De graça é que eu não trabalho... Ora que pouca vergonha. CARTOMANTE - Logo vi que a coisa acabava mal... estando a Política metida no negócio. (Saem.) Cena V Espectador, só ESPECTADOR - Safa! Nem aqui me deixam... Sou apoquentado por todos os lados... Eu não pertenço à peça, lá isso é verdade, pois até aqui me perseguem as subscrições. Não vejo surgir ante mim senão vítimas, e a mais vítima de todas é a minha pobre algibeira, que vai ficando visivelmente ética. Depois de tantas subscrições, deve-se abrir uma entre as vítimas, para os que subscreveram para elas... Lá vem mais... por esta é que não estou... Onde me hei de esconder. Ah! ali. (Esconde-se.) Cena VI Espectador, escondido, Homem da Pêra, Amigos HOMEM DA PÊRA - Obrigado, adeus. 1º AMIGO - Guarde-te bem, para não te acontecer o mesmo que ao inglês. E, assim, que estiveres em Nova Iorque, escreve. HOMEM DA PÊRA - Adeus... Até a vista, e que os céus me proteja. (Salta para a praia para se meter num bote e os amigos lhe dizem adeus.) AMIGO - Manda notícias. HOMEM DA PÊRA - Mandarei as notas de viagem e serão verdadeiras como todas as que tenho usado na minha vida. AMIGO - Adeus... e se encontrares o célebre orador que morreu na África, manda novas dele. (O barco some-se e os amigos retiram-se.) Cena VII Espectador e depois Urbano ESPECTADOR - Aquele parece-me que vai sem visto no passaporte... Felizmente vê-se livre das subscrições. (Vai passando.) URBANO - O senhor viu-o? ESPECTADOR - A quem? URBANO - Ao passador? ESPECTADOR - Eu não vi nada. URBANO - Mas disseram-me que havia de desembarcar aqui; demorei-me demais... encontrei a mulher das cartas e não pude resistir ao gostinho de a consultar. ESPECTADOR - Fez muito bem.

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URBANO - O diabo é que o perdi de vista. ESPECTADOR (Atemorizado.) - Lá vem ele! URBANO (Apitando.) - Socorro. ESPECTADOR - Apite. Aliás estamos depenados! URBANO (Tirando sossegadamente o apito da boca) - Mas quem são eles? ESPECTADOR - O povo das subscrições. URBANO - Misericórdia! Salve-se quem puder. (Vai a sair e a cena invade-se de povo.) CORO DE VELHOS ESPECTADOR - Retirem-se... eu não posso mais... estou roubado. (Saem todos.) Cena VIII Espectador, só ESPECTADOR - Graças a Deus que estou só... que formosa noite!... Que grandioso espetáculo! Parece que a mão caprichosa da natureza se comprouve em acumular as mais pitorescas belezas nesta formosa baía. Que felizes se devem julgar os que vêm naquele barco. (Aparece um barco com alguns personagens.) Como desliza sereno... Mas que vejo... Vai se engolfar na ressaca. (Gritando.) Metam o leme d'encontro. (O barco bate nas pedras.) Desgraçados!... Socorro! Cena IX O mesmo e Anjo da Humanidade ESPECTADOR - Salvemos aqueles desgraçados. ANJO DA HUMANIDADE - É tarde! ESPECTADOR - Oh! meu Deus! ANJO DA HUMANIDADE - São duas famílias de intrépidos trabalhadores riscadas do número dos vivos! oremos por elas. (Mutação) QUADRO VIII Sala com alguma mobília e uma cama. Ouve-se sons marciais de uma banda e vivas fora. Está em cena um CRIADO (General, no original,riscado e alterado em função da censura da época.) muito cansado e de mala em punho e um saco de dinheiro com este letreiro: 10:000$000 Réis. Traz na cabeça uma coroa de louro. Cena X Criado, Poeta, Orador, e 1º e 2º Repórter VOZES FORA - Viva o valente, viva o bravo, viva a nação, viva! CRIADO (Dirigindo-se para o público.) - É isto! (Vem descendo; novos vivas.) E não há meio de descansar um homem que tanto trabalhou em honra da pátria. tem sofrido mais neste pouco tempo que os cinco anos de batalhas e privações. (Vem descendo, novos vivas.) Ah! Parece que finalmente o deixaram tranqüilo! Deus queira que assim seja! Já me parece maçada. (Põe o saco de dinheiro a um canto.) Decididamente a glória é coisa muito incômoda. Já lhe chimparam nas barbas cinco dúzias de poesias, e outros tantos discursos. Está imortalizado em prosa e em verso. É a única desculpa desses maçantes poetas e arengadores: supõem-no imortal e, como tal, isento das conseqüências da mais tremenda das amolações! Como se enganaram! Mas agora julgo que está livre deles! Amém! (Pega numa bota do General e caem de dentro poesias.) Até dentro das botas estão flores e poesias! (Atira com a bota.) 1º REPÓRTER (Metendo a cabeça por uma das portas e tomando nota.) Descalçou uma bota. (O Criado espirra.) Espirrou. (Desaparece.)

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CRIADO - Hein? Então não estou constipado! POETA (Entreabrindo a porta.) - Dá licença, General? CRIADO - Quem é? POETA (Desdobrando uma enorme tira de papel.) - Ó tu, soldado imortal! CRIADO - Então! lá vem a imortalidade. POETA (Continuando.) - que vens coberto de glória visitar a Guanabara. onde te espera a vitória!... CRIADO - Tenho notado que todos estes poetas rimam glória com vitória. POETA - Escuta a voz de um poeta... CRIADO - Tenho a prevenir a Vossa Senhoria que eu não sou o General, mas sim Criado do Hotel. POETA - Oh! Onde está então Sua Excelência? CRIADO - A descansar. POETA - Então faça o favor de lhe entregar estes versos: têm a minha assinatura. (Dá-lhe os versos e sai fazendo grandes mesuras.) CRIADO (Pega a outra bota e caem versos de dentro.) - É isto! mais poesia nas botas! E eu, para vingar-me, meto as botas nas poesias! São detestáveis. (Tira o casaco e aparece um Orador.) Cena XI Os mesmos e o Orador ORADOR (Entreabrindo a porta.) - Dá licença, general. (Entra e tira um papel do bolso.) CRIADO - Outro! ORADOR - César, Anibal, Pompeu, Alexandre, Napoleão e outros quejandos heróis das eras antigas, médias e vindouras não tinham nem o teu valor nem as tuas virtudes. Eles eram usurpadores, e tu não! Tu empunhaste o gládio em prol da absoluta liberdade, e alumiaste a consciência nacional com os clarões de teu valor! (O Criado tosse.) 2º REPÓRTER (Saindo debaixo da cama.) - Tossiu! ORADOR - Imortal... CRIADO (Querendo falar, sem poder.)- Tenha a bondade de deixar ficar o seu discurso. Quero poupar-lhe o trabalho da leitura. ORADOR - General, eu não entrei ainda em matéria! O melhor ainda não li. CRIADO - Bem vejo que isto promete. Mas o que eu quero prevenir ao senhor é que o general ainda não o ouviu. ORADOR - Não! (À parte.) Então é surdo! Esta é que eu não sabia. (Gritando.) - César, Anibal... CRIADO - Eu não sou surdo. POETA - Então não percebo. CRIADO - Pois ainda não percebeu que eu não sou general, nem alferes? Olhe, Sua Excelência está descansando. Se quer, deixe ficar o discurso, que eu lho entrego. (O Orador entrega o discurso e sai com grandes mesuras.) CRIADO (Só.) - Safa. Este é pior que todos. Tratemos de dormir, antes que venha outro em prosa com versos. (Criado abre a boca e entra a bocejar até adormecer.) 1º REPÓRTER (Dum lado.) - Deita-se! 2º REPÓRTER (Do outro.) - Adormeceu. CRIADO (Sonhando.) -... Basta. Basta. De cá, eu guardo!... Então o General anda de carro sem cavalos!... Ele vai carregado à mão!... O POETA DO PRÓLOGO (Entreabre a pasta.) - Com sua licença. (Desenrola uma tira de papel e lê.) Se eu fosse um vate de inspirada Musa, Se a lira de Camões tivera, assim, neste dia, tuas grandes glórias, tuas vitórias eu cantar quisera!

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Pintor se eu fora de gentil pincel, mago painel esboçaria... (Criado ressona) - Ah! Dorme! pois espera! (Guarda os versos e percorre a cena.) O que é isto? Um saco de dinheiro! Dez contos de réis! Olé! Olá! (Carregando com o saco.) Ora! Tu estás coberto de louro! não precisas de louras... (Sai.) CRIADO (Sonhando.) - Assim, General! Às armas! Às armas! Fogo! (Um Admirador, à palavra "fogo", assusta-se e cai.) Cena XII Os mesmos e uma Comissão UM ADMIRADOR - Bravo! General! CRIADO (Acordando sobressaltado.) - Quem é? Quem é? ADMIRADOR - A Comissão! CRIADO - A Comissão! (Salta da cama.) Eu vou prevenir Sua Excelência. ADMIRADOR - Dá licença! Ela aí vem! (Começa a aparecer uma enorme lança, que atravessa a cena de lado a lado. Só depois de ter a lança desaparecido em meio por um lado, aparecem as personagens que seguram no cano pelo outro lado. Admirador, ensaiando-se.) Em honra de teus feitos, ó soldado, vencedor! vencedor! gênio imortal, esta lança te dão alguns sujeitos Em prova de muita consideração, ó General. OUTRO ADMIRADOR - Este último verso está mais comprido do que a lança. ADMIRADOR - O que abunda não prejudica. CRIADO - Sua Excelência pede o obséquio de passarem à outra sala, onde os espera a todos. (Todos saem.) TODOS - Viva o nosso herói! QUADRO IX Cena XIII (Vista de rua. Os personagens de costume enchem a rua.) Garden, só GARDEN (Velho americano encostado ao portão fumando.) - Oh! Este é o verdadeiro felicidade deste vida. Estar sempre tranqüila, ganha dinheiro, dá boa divedendo, serve perfeitamente o público fluminense e mora numa chácara por onde ninguém pode passar para que eu arremata privilégio... Casa esta muito minha. Cena XIV O mesmo e Zé Povino ZÉ - Oh! Monsiú... Vossa Senhoria dá licença que eu passe por cá? GARDEN - O que você quer faz? Se quer, vai em novas trilhos... faz favor, volta seu caminho. ZÉ - Nada, não senhor, vou no trilho de minha mulher, que depois de velha deu em gaiteira. Consta-me que ela está lá da outra banda, e, como o caminho mais curto é este... GARDEN - Você pode passa, mas dá cá uma níquel de duzentos réis... ZÉ - Se essa é a dúvida.. aqui tem; posso passar? GARDEN - Passa pode. (Zé sai.)

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Cena XV Garden, Vila Bela, depois Povo GARDEN - Este homem está muito minha conhecida. É Mister Zé Povinho. Mim tem-se dado perfeitamente com ele. (Entra a de Vila Belle seguida pelo povo.) VILA - Deixem-me! Deixem-me! Ó da guarda! GARDEN - O que é isso? Não pode passa! VILA - Senhor Garden. Vossa Senhoria é que vai decidir. GARDEN - O quê? VILA - Eu, como não ignora, estabeleci nos meus carros um sistema de cobrança que consiste em se pagar a viagem a pouco e pouco. Não quero sobrecarregar as algibeiras dos meus passageiros... quero dizer, dos meus condutores: à maneira que se vai andando, vai-se pagando. Recebe-se a passagem em prestações e a última é quando o carro vai para as estações. Ora, estes senhores, isto é, o Povo não quer. Vim, pois, perguntar-lhe o que o senhor faria no meu lugar. GARDEN - Mim não sabe o que faria... faz sempre o que pública quer... eu tenho passagens de oitenta mil réis, de cem, de duzentos, de trezentos, uma pataca - de pataco não tem - tem só duma cruzada e mim só faz uma cobrança - e meu pública está muito contenta. POVO - Apoiado! Muito bem! VILA - São sistemas americanos que não servem para o Brasil... Eu adotei o sistema austríaco, que é o melhor. GARDEN - Oh! Sistema americano está muito boa. Não está só em bondes, mas em tudo desta vida. Olha, ali vem dentista americano; pergunta se seu sistema de extrai dentes no está very well. Cena XVI Os mesmos, Dentista, uma carro encarnado, espelhado e dourado, mal entra, o Povo cerca-o UM POPULAR - Viva o Dentista! POVO - Viva! POPULAR - Viva o nosso doutor! O nosso Salvador, que arranca por favor, nossos dentes sem dor! VILA (À parte.) O que vale é que a opinião pública distrai-se facilmente! DENTISTA - É tal senhores, o alegrão em que este bom povo está imerso, que até falar só me faz, não em chata prosa... mas em verso... VILA - Ui! (Vai ao dentista com o boca aberta.) - Como o povinho me fez parar o bonde, numa corrente de ar... apanhei uma dor de dentes. (O Dentista tira-lhe um dente.) Não é esse, desgraçado! DENTISTA - Já cá está! VILA - Você tirou-me o dente do siso. (Saindo.) Ora o que há de ser duma companhia sem o dente do siso?... Cena XVII Os mesmos, Boato e Opinião OPINIÃO - Mas para que tomaste esse disfarce? BOATO (Vestido de urbano.) - É o meu fato predileto... E, de fato, é um fato cômodo... por tal sina, que nunca pára na cômoda.. quero prender este indivíduo. (Aponta para o Dentista.) OPINIÃO - Mas o que te fez ele? BOATO - O que me fez? (Neste momento o Dentista tem arrancado dente e queixo a um homem do povo.) Está preso! POPULAR - Ai! ai! DENTISTA - Foi sem querer?

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BOATO - Está preso, já disse... DENTISTA - Preso por quê? Por ser infeliz numa operação... por que não prende você por dia cinqüenta ou sessenta médicos! BOATO - Não sei cá disso... dizem que você não está examinado. DENTISTA - Veja... E pela Imperial Academia. (Apresenta-lhe a licença.) BOATO - Pois sim... mas à cautela, venha para a chácara de Catumbi. (Sai com o povo.) Cena XVIII Opinião, Espectador OPINIÃO- Então, não se vai e....e não me deixa... assim se abandona a Opinião a si própria? ESPECTADOR - Ora, até que a encontro! O que tem feito? Onde está seu marido? OPINIÃO - Eu sei lá!... Ah! Que se o apanho... ESPECTADOR - Se quer, procuremo-lo... pouco tenho que fazer. OPINIÃO - Aceito!... Mas para que lado iria ele? ESPECTADOR - Isso agora é que era adivinhá-lo. OPINIÃO - Que pena não termos a Santinha aqui à mão... ESPECTADOR - Assim é melhor, porque poupa esse dinheiro. OPINIÃO - Que se me tem ido de vento em popa por água abaixo por causa da proa do senhor meu marido... Um chaveco avariado que faz água por todos os lados... e que ainda se mete na prosápia de correr com todo o pano na alheta de qualquer fragatinha. ESPECTADOR - Bravo!... Chama-se a isso linguagem pitoresca marítima! Cena XIX Os mesmos, Garden, depois Cocabana GARDEN - Estar boa tarde, senhores. OPINIÃO - Vossa Senhoria viu, por acaso, passar por aqui?... GARDEN - Oh! Eu vi mas não sabe... (Neste meio tempo tem entrado Cocabana, que, sem Garden ver, vai entrando na chácara.) Oh! Senhor... que faz vossemecê aqui? COCABANA - Vou passando... não vê? GARDEN - Vejo, mas não quero! Vossemecê sabe que mim tem o privilégio desta chácara... COCABANA - Mas eu tenho a minha casa do outro lado, e, como me dá menos trabalho ir por aqui, pouco ou nenhum caso faço do seu suposto privilégio. GARDEN - Vossemecê não passa. OPINIÃO - Não pode passar sem licença. ESPECTADOR - É questão que deve ser pacificamente decidida nos tribunais! GARDEN - A ele vou! A Senhora Opinião há de ser minha testemunha... Cena XX Os mesmos, Zé, depois Boato ZÉ - Não a encontrei, GARDEN - Vem cá, homem serve também de testemunha... OPINIÃO - Ai, o patife do meu marido... ZÉ - A pérfida da minha mulher... COCABANA - Cá os meus tribunais são estes. (Apita.) BOATO (Vestido de urbano.) - O que temos? COCABANA - Quero passar, e este senhor não me deixa. BOATO (Desembainhando a espada.) - Quem tem razão? ESPECTADOR - Saiba Vossa Senhoria que ambos se julgam com ela, e só os tribunais... ZÉ e OPINIÃO (A uma lado.) - É para onde vamos. GARDEN - Oh! Yess.

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BOATO - Nada de bulha. (Ao Espectador.) Quem lhe pediu explicações?... Está preso... (A Garden.) E o senhor, deixe passar a mulher, quando não! GARDEN - Ah! Isto é muito mal feito... Eu vai faz bulha na imprensa... BOATO - Faça a bulha que quiser. Vossemecê, como não tem escrúpulos, vá passando. (A Cocabana vai passando.) OPINIÃO (Passando à esquerda.) - Eu também vou discutir para a imprensa o procedimento do senhor meu marido... ZÉ - E eu, o da senhora minha mulher... ESPECTADOR - Mas por que vão? BOATO (Ao Espectador.) - Deixe-os ir... vamos para o xadrez. ESPECTADOR - Esta só a mim acontece... TODOS - À Imprensa! (Saem.) Mutação QUADRO X Cena XXI (Sala, O JORNAL DO COMMÉRCIO e o DIÁRIO DO RIO entram trazendo nos braços o DIÁRIO POPULAR moribundo. JORNAL DO COMMÉRCIO - Tragamo-lo para esta sala! Pobre pequeno! Tão novo! DIÁRIO DO RIO - Quatro meses apenas! JORNAL DO COMMÉRCIO - Também é bem feito. (Depõe o Diário Popular sobre uma cadeira.) Já não há crianças. Este pobre Diário Popular quis principiar por onde os outros acabam! E eu, para chegar ao ponto que estou, meu caro colega Diário do Rio, eu, para ser Jornal do Commércio, para gozar das mil imunidades, com a graça de Deus e dos quinze mil assinantes, principiei assim... depois fui assim... assim... assim... assim... assim... É melhor do que começar assim... e depois ir assim... assim... assim... assim... e desaparecer! DIÁRIO DO RIO - E eu não posso falar assim, porque sou político... todavia reconheço que estes meninos nascem e querem logo ter correspondentes em toda a parte... querem ter sobrado na rua do Ouvidor. JORNAL DO COMMÉRCIO - Nada; eu principiei por onde devia principiar; pelo princípio; por isso é que, como o outro, Leonardo, soldado bem disposto, Cavalheiro, enamorado, também faço o que posso, não vê?! Tenho lá na redação uns gênios, uns astros... Que astros! DIÁRIO DO RIO - E eu então! Eu sou aquela sanha! Onde meto a mão, ou mesmo, meto o pé, que sanha! E tenho um redator que é uma pimenta.Lá pimenta é. Ou por outra... pimenta lá é! DIÁRIO POPULAR (Despertando.) - Ai! (Jornal do Commércio e Diário do Rio aproximam-se.) Dêem-me... remédios... JORNAL DO COMMÉRCIO (Vai a uma mesa, traz alguns frascos de remédios. Lendo as etiquetas.) Assinaturas... (despejando o frasco numa colher.) Nem uma gota!... (Tomando outra frasco e lendo.) Acionistas... (Mesmo jogo.) Nana! (Tomando outro frasco.) Anúncios... (Mesmo jogo.) Qual! DIÁRIO DO RIO - Esgotaram-se os últimos recursos. JORNAL DO COMMÉRCIO - Pobre Diário! DIÁRIO DO RIO - Pobre xará! Tão bom... tão espirituoso... DIÁRIO POPULAR - Agra!... Agra!.... Agra!... Agradecido. JORNAL DO COMMÉRCIO - Coitado! Está a morrer e não diz senão agra... agra... agra.... DIÁRIO POPULAR - Agra... agra... agra... agradecido! DIÁRIO DO RIO - Já aborrece tanto agra! DIÁRIO POPULAR (Berra como carneiro.) Ré!... Mé!.... Dio!.... JORNAL DO COMMÉRCIO - E, de vez em quando, dá-lhe para berrar como carneiro.

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Cena XXII Os mesmos e Filipe FILIPE - Bom dia... Bom dia... Então como vai o doente? DIÁRIO DO RIO - Pode dizer - o moribundo... FILIPE - Se querem, mando chamar por telegrama o meu mano d'Araraquara para prestar-lhe os últimos socorros... JORNAL DO COMMÉRCIO - Qual, meu Filipe... de outros socorros precisava ele... GLOBO (Pondo a cabeça da parte de fora.) - Posso entrar? DIÁRIO DO RIO - Quem é? FILIPE - É o Globo, JORNAL DO COMMÉRCIO - Entre, colega. (Globo entra.) Oh! Você diminuiu? Ainda há três dias era alto. (Baixo a Diário do Rio.) É o outro que tal! GLOBO - Mudei de formato, para ser mais cômodo aos meus leitores... e por haver muito mais comodidade de preço... DIÁRIO DO RIO - E como vais de saúde? GLOBO - Assim... assim... os passeios de manhã faziam-me mal... resolvi sair às tardes... E o colega? E este pobre Diário Popular como vai? DIÁRIO DO RIO - Eu assim assim... Estou sentindo umas coisas... não será isso velhice? GLOBO - Qual - Você está a lavar e durar. E Este pobre Diário Popular, como é que vai? FILIPE - Isto está por momentos, coitado: está a exalar o último salpico... quero dizer, o último suspiro! JORNAL DO COMMÉRCIO - Este Filipe é chamado para o calemburgo. FILIPE - É, não se pode dizer que este não tenha sal nem pico. DIÁRIO DO RIO (Ao Globo.) - Como vamos de redatores? GLOBO - Tenho lá alguém, um que em tino não deixa nada a desejar, dou sempre belos frutos aos leitores. FILIPE - Dás mais que frutos: dás boca e uva. JORNAL DO COMMÉRCIO - Este Filipe é os meus pecados. E então hoje parece que estamos em sexta-feira. DIÁRIO DO RIO - Aí volta... Resigna-te, xará, vais encontrar lá no céu o Mosquito, o pobre Mosquito. Ambos vocês gozarão da bem-aventurança eterna. DIÁRIO POPULAR - Agra... agra... agra... JORNAL DO COMMÉRCIO - Aí vem o Agra! DIÁRIO POPULAR - Agra... agradecido! GLOBO e FILIPE - O que é isto? DIÁRIO DO RIO - Só do agra... agra... (Entram A Reforma e o Jornal da Tarde a disputar.) JORNAL DA TARDE - O Ministro fez muito bem! REFORMA - Não fez tal. É um corrupto. É um tolo! JORNAL DA TARDE - Tola é ela! REFORMA - Miserável! JORNAL DA TARDE - Regateira! REFORMA - Olha que te esmurro! JORNAL DA TARDE - Ah! Ele é isso? (Querem atracar-se.) JORNAL DO COMMÉRCIO - Então, o que é isso? Olhem quem está ali moribundo... JORNAL DA TARDE - Vim visitá-lo. REFORMA - Eu também... JORNAL DO COMMÉRCIO (A Filipe.) - Quem é aquela sujeita? FILIPE - É a Reforma. Pois não conheces? JORNAL DO COMMÉRCIO - É que enxergo mal. E aquele moço que entrou com ela? FILIPE - É o Jornal da Tarde. Esse não admiras que não conheças, porque é novo... É novo, ele é o que diz... A mim não me embaça... (Em segredo.) É a Nação...

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DIÁRIO DO RIO - A nação? FILIPE - É a nação disfarçada de jornal da tarde... Não vês que é uma mulher vestida de homem? DIÁRIO DO RIO - Eu logo vi, pelo palavreado, que não podia deixar de pertencer ao belo sexo. (Indo ao Jornal da Tarde.) Está conhecido. JORNAL DA TARDE - Oh! Colega, toque lá estes ossos... Então não se esqueceu de mim? DIÁRIO DO RIO - Posso lá esquecer quem combate pelos mesmos princípios... JORNAL DA TARDE - Você agora está muito bonito! DIÁRIO DO RIO- Depois que morreu meu antigo patrão, enfeitei-me todo, não vê! REFORMA (Sentando-se.) Ontem não houve sessão na Câmara Temporária? DIÁRIO POPULAR - Agra... agra... agra... REFORMA e JORNAL DA TARDE - O que diz ele? JORNAL DO COMMÉRCIO - É um estribilho que já nos tem maçado deveras! Não diz outra cousa: é agra para cá, agra para acolá. FILIPE - Isto não é nada agra...dável. (Entra a Gazeta de Notícias.) Cena XXIII A Gazeta e os mesmos JORNAL DO COMMÉRCIO - Oh! Menina Gazeta, como vai? GAZETA - Adeus, honrado colega... Meus senhores! Ó Reforminha, viva! TODOS - Adeus, Gazeta! GAZETA - Como vai o pobre Diário? DIÁRIO DO RIO - Deixa-o: está descansando... Não lhe bulas, senão dá-nos aí com o agra, que é um nunca acabar. REFORMA - Então, como vais tu por lá, ó Gazeta? GAZETA - Muito bem... Ultimamente então tenho sido muito procurada por causa dos folhetins de costumes... do França! JORNAL DA TARDE - Ora, quem quer saber os costumes da França? GAZETA - Não são da França... FILIPE - São do França Júnior. JORNAL DA TARDE - Ah! Cena XXIV Anglo Brazilian Times e o Gil Blas aparecem ANGLO - Muito belos folhetins que mim traduz para a língua inglesa... Esta cosse muito apreciada n'Ingliterre. Good morning! JORNAL DO COMMÉRCIO - Ora viva o seu Anglo Brazilian Times ANGLO - Como passe o Popular Diário? DIÁRIO DO RIO - Está sossegando... Não lhe toque senão vem aí o Agra... ANGLO - Oh! Yess. GIL BLAS - Messieurs e medames, bonjour... Ce bon Diário Popular? GAZETA - Oh! Espirituoso Gil Blas... como vais? GIL BLAS - Pas mal... pas mal... Mais le confrére? GAZETA - Está aqui, está com os Anjos. GIL BLAS - Ah! Pauvre garçon!

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Cena XXV República e os mesmos REPÚBLICA (Entrando.) - Eu sou a jovem República. Sabia que estáveis aqui reunidos e vinha pedir-vos que protestásseis contra o abuso da Polícia! DIÁRIO DO RIO - O que fez a Polícia? JORNAL DO COMMÉRCIO - Pois há razão de queixa contra Polícia? REPÚBLICA - Sai a passeio e prenderam-me sem motivo. Deveis protestar. REFORMA - Deixe estar, que o negócio fica por minha conta. Que situação! Cena XXVI Os mesmos, Jornais Caricatos e Imprensa JORNAIS CARICATOS - Onde está o Diário? Queremos vê-lo! Queremos vê-lo! Onde está? TODOS - Pouca bulha... DIÁRIO POPULAR - Ai, ai... (Cercam todos o Diário Popular. Passa o Apóstolo a jogar pena com o Ganganelli.) A IMPRENSA - O que é isto? TODOS - A Imprensa? A IMPRENSA- Sim, a Imprensa, que recebeu agora a notícia de que estava para morrer aqui um filho que lhe dava tantas esperanças! Pobre Diário Popular! Tão novinho! Que dor a minha: imaginem que acabo de ver morrer um, e venho assistir à morte de outro... FILIPE - Ah! Sim, o mundo é assim... JORNAL DO COMMÉRCIO - Este Filipe é danado! DIÁRIO DO RIO - E quem foi o outro? IMPRENSA - O Psit! Morreu, coitadinho! JORNAL DO COMMÉRCIO - E a Rola? IMPRENSA - Ah! O A Rola, esse não morre nunca. É do tipo eterno! Pois se foi o A Rola que matou o Psit! DIÁRIO POPULAR - Ai... ai... agra... agra... agra...(Expira.) TODOS - Morto! FILIPE - Morreu... e mais o Neves. IMPRENSA - O que me consola é que estou de esperanças... Em 1º de janeiro darei luz à o Cruzeiro, e então, verão vocês o que é jornal... Bom e de peso. Vamos enterrar o pobre Diário. TODOS - Vamos! (Saem levando o cadáver.) Cena XXVII O Anúncio O ANÚNCIO - Vantagens quase bancárias. O Dudu vende relógios de outro a três mil e quinhentos réis a oitava e recebe no fim de um ano a quatro mil réis. À Rua da Quitanda, casa do galo que canta. (Vai saindo e volta.) Esquecia-me de dizer que a cerveja Cristiana é a melhor cerveja nacional e que a Aída é um batoque. (Sai.) Cena XXVIII Zé Povinho, Opinião, Garden, depois Boato ZÉ - O senhor... Não está ninguém em casa... Onde se meteriam estes tipos da imprensa?... OPINIÃO - Estão talvez na tipografia... ZÉ - Ora os tipões.

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GARDEN (Entrando.) - Estar só?... BOATO - O que pretendem? TODOS - O senhor aqui? BOATO - Eu estou em toda a parte...mas o meu lugar predileto é na imprensa... imprimo um cunho especial a certas notícias. OPINIÃO - Você o que é, é um clichê!... BOATO - Sai-te daqui, meu pastel. ZÉ - Chamar pastel à minha mulher... se repete a chalaça, vai a um granel de bofetões a menos de real... BOATO - Eu justifico-me... ZÉ - Não quero ouvir nada... Onde está o dono da casa? BOATO - O que pretendem? GARDEN - Eu quer tratar de questão... com outra companhia... ZÉ - E eu, certos negócios de família... BOATO - A Senhora Dona Imprensa não pode encarregar-se dessa questão... vou mandar-lhes chamar o meu colega a cargo de quem estão esses negócios. OPINIÃO - Então que venha o colega... Cena XXIX Os mesmos e A Pedido A PEDIDO (Com uma bolsa na mão.) - Às suas ordens... a cento e vinte réis cada linha de quarenta letras... e mais dez mil rés para a responsabilidade... ZÉ - Quanto me pode custar? (Fala-lhe ao ouvido.) A PEDIDO - Isso é carito... OPINIÃO (O mesmo.) - Por quanto me pode ficar? A PEDIDO - É puxadito... GARDEN (Ao A Pedido.) - Vem cá, senhor. ZÉ - A senhora é que tem culpa de tudo isto com os seus caprichos... OPINIÃO - E você? ZÉ - E se nós fizermos as pazes? BOATO - O quê? ZÉ (A Boato.) - Sai-te daqui para fora... OPINIÃO - Eu não faço as pazes nem que você me vista do novo dos pés à cabeça. BOATO - E eu sei onde há excelentes e baratíssimas popelines. ZÉ - Vamos daí. OPINIÃO - Está dito. (Vão a sair os três.) A PEDIDO - Ó senhores? ... Venha cá... eu faço abatimento. ZÉ - Adeus, meu amigo, desta vez não tem freguês... Contente-se me viajar por Macaé e Campos, ou entretenha-se com os teatros. (Saem.) GARDEN - Está dito então... A PEDIDO - Não tem nada... Vossa Senhoria merece-me toda a confiança...mande os originais. GARDEN - E se tribunais não faz nada?... se imprensa no dá resultado?... Oh! vai faz questão séria. (Sente-se uma salva de vinte e um tiros e, em seguida, grande confusão de jornais. A Imprensa, todos os personagens percorrem a cena alvoroçados, gritando.) Chegou Sua Majestade. IMPRENSA - A mim todos. Chegou o momento de saudar o chefe do Estado. Vamos e provaremos assim, como o Brasil sabe honrar o seu primeiro cidadão, e sejam os nossos vivas ao Imperador a manifestação do nosso amor pela pátria. UMA VOZ - Vivam Suas Majestades. TODOS - Vivam! (Saem.)

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Cena XXX Entram Política, Boato e a Opinião BOATO (Ouve-se o Hino Nacional em surdina. Política entra quase desfalecida encostada ao Boato.) - O que tem? Por que treme? POLÍTICA - Não sei, nem mesmo posso explicar o que senti ao ouvir aquela salva. (Torna a si e passeia agitada.) OPINIÃO (Ao Boato, espreitando.) - É muito bem feito! Então entendia que era só fazer gastar dinheiro ao meu marido e nada mais... POLÍTICA (Que tem passeado agitada.) - Aquelas notícias pelo telégrafo! Vamos, nada de desânimo! (Grande vozeria.) ZÉ (Da esquerda, correndo.) - São eles, chegaram; estão desembarcando; corramos a vê-los e a ver as festas. (Saem correndo à esquerda.) POLÍTICA (A só.) - E eu a mudar de trajo. QUADRO XI Grande festejo a Suas Majestades Imperiais Arco triunfal da Rua Direita. [(Fim do 2º Ato)] ATO TERCEIRO QUADRO XII Cena I (Vendedores e Povo, Coro de Vendedores. Segue coro de Povo.) BOATO - Como está tudo deslumbrante! Só não compra quem não quer. E digam lá que a cidade do Rio de Janeiro não possui a flor da gente para o negócio! Eis-me no meu elemento. Gente! Muita gente é o que eu quero! (A uma dama que passa.) Dizem que seu marido a atraiçoa... DAMA - Isso é uma calúnia... BOATO - Talvez... mas há vizinhos que o afirmam... DAMA - Se fosse verdade... (Retira-se.) BOATO (A um padre.) - Posso dar-lhe os parabéns? PADRE - Por quê?! (À direita.) Passe bem... ESPECTADOR - Por cá! Saiba que ainda não me pude safar daqui!... Olha que já é estopada! BOATO - Ora então cuida que se não sabe tudo! ESPECTADOR - Tudo?... O quê?... BOATO - O namoro com uma figurante da revista... uma rapariga toda chique que não ganha nada... e só no costume gastou para cima de dois contos de réis! ESPECTADOR - Pois o senhor julga-me capaz duma asneira dessas? BOATO - Pensa que a não vi!... (Faz a cena cômica mudas do namoro.) ESPECTADOR - O senhor está zombando comigo. BOATO - Tanto como este cavalheiro... (Passa um médico.) A... quem vou dar os parabéns... MÉDICO - A mim? BOATO - Corre que foi Vossa Excelência o primeiro colocado no Concurso de Retórica e Medicina... MÉDICO - Não me dá novidade nenhuma... isso eu já sabia. ESPECTADOR (À parte.) - Talvez antes do concurso. BOATO - Assistiu? ESPECTADOR - Não pude. BOATO - Pois perdeu, porque há muito que se não reúnem seis talentos tão belos... Safe-se... lá vem ela. ESPECTADOR - Ela quem?

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BOATO - A Amarela, a amiga do Filipe e do Barão do Lavra-deus! Estamos no fim do ano e não quer deixar de nos vir fazer uma visita. (A Febre Amarela passeia por entre os grupos. Entra um engraxate.) ENGRAXATE - Engraxate... senhores. ESPECTADOR - Lustra-me esse verniz! FEBRE AMARELA - Para que está dando o que fazer ao pequeno... Vem comigo... ESPECTADOR - Suspenda! FEBRE AMARELA - Não posso... está rijo demais para o deixar por cá. (Leva o pequeno.) ESPECTADOR - Que desgraça! BOATO - É um flagelo livrando-nos do outro. ESPECTADOR - Mas por quê não lavam e asseiam estas crianças e as não empregam num trabalho útil? BOATO - Os senhores deles não querem. ESPECTADOR - Os senhores... Pois ainda temos escravatura branca no Brasil?... BOATO - No Brasil, não... Quem as vende são os pais... lá na Europa. ESPECTADOR - Não é possível! BOATO - Pois se quer certificar-se da coisa, leia as Cartas romanas, do Guimarães Júnior, publicadas em folhetins da Gazeta de Notícias, e verá se isso é ou não verdade. ESPECTADOR - E o que faz o governo? BOATO - Ver se se segura no balanço, conforme pode... UM HOMEM GORDO (À boca.) - Vossa Senhoria, como bom católico, quer concorrer? BOATO - Para quê? HOMEM - Para a compra dum capacete. BOATO - Para quem? HOMEM - Para o senhor bispo... Pode lembrar-se de ir pregar outra vez a Santa Rita como no ano passado, e é bom achar-se prevenido para todas as eventualidades... ESPECTADOR - Mas ouvi falar numa mitra. HOMEM - Por fora! BOATO - Pois Deus o favoreça, irmão... nós somos mitrados demais para cair nessas. HOMEM - Paciência... Iremos a outra freguesia... (Sai.) ESPECTADOR - Que maçada!... hein!... Deixaram-nos sem camisa as tais subscrições! BOATO - Lá vem dois indivíduos por quem esperava. ESPECTADOR - Bem sei... Zé Povinho e a Opinião... O senhor tem-se portado mal com ela... procurando estabelecer a desordem no lar. BOATO - A culpa é da minha particular amiga, a Política. ESPECTADOR - Pois faz a sua amiga muito mal. Cena II Os mesmos, Opinião e Zé Povinho OPINIÃO - Vês, meu tonto... como isto aqui é bonito... É mesmo um paraíso. ZÉ - Para ti... para as minhas algibeiras vai ser provavelmente um inferno. BOATO - Vou ter com eles. ESPECTADOR - Antes diga-me uma coisa que ando há muito para saber. (Descem e conversam baixo.) OPINIÃO - Olhe que lindas popelines. VENDEDOR - E mais baratas do que em qualquer outra parte. (Os outros vendedores tossem todos.) ZÉ - Que diabo de catarral é este? VENDEDOR - Inveja... Vejam como essa é bonita... Veja contra abanda de luz para apreciar o fio... ZÉ - Bom fio... VENDEDOR - Desafio a quem vender mais barato e melhor! (Vendedores tossem.)

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ZÉ - Mas o que tem esta gente? OPINIÃO - Deixa-os lá!... Quanto custa o metro? BOATO - É o que lhe digo... A coisa fez uma bulha... deu que falar, mas afinal de contas... ZÉ - Palavra que nunca vi vender tão barato. (Vendedores tossem.) VENDEDOR - Se os colegas soubessem como eu administro as fazendas da minha casa, já não tossiam... BOATO - A polícia mandou recolher todos de que podem lançar mão, e fez bem... Uma coisa não tem nada com a outra. OPINIÃO - Bem... Não quero mais nada... Para vender barato, não há como... BOATO - Sociedade com Manel... era como todos acabavam. ESPECTADOR - Nunca doam as mãos da polícia... VENDEDOR - O meu sócio vai à Alfândega despachar mais fazenda, se quiserem esperar. (Sai o Sócio; no meio da cena escorrega. Boato e Espectador amparam-no.) ESPECTADOR - Escorregou? BOATO - Ia caindo. SÓCIO - Esta empresa Gari, que deixa as ruas cheias de casca de bananas... Ora que bonita queda... escorregar numa banana... Safa! (Ao Boato.) Meu querido amigo Boato, já não é o primeiro favor que lhe devo.. (Sai.) BOATO (À Opinião.) - Então já enfeirou? OPINIÃO - Falta-me uma corrente para o relógio... uma corrente para o leque... uma corrente para o vestido... uma corrente para o chapéu... E a minha peça toda é que ainda se não tenham inventado correntes para os maridos. ZÉ - Era invenção que adotavam logo todas as mulheres velhas... OPINIÃO - Pois adotava eu, sem ser tão velha como o senhor me quer fazer. BOATO - Então a senhora queria trazer seu marido preso como os papagaios? OPINIÃO - E por que não? BOATO - Podia lhe acontecer o mesmo que a um papagaio que eu conheci... Cena III Os mesmos e a Política POLÍTICA - Viva a bela reunião! Salve ilustres amigos meus... Parece que me esperavam... tenho aqui, segundo me consta, um bico d'obra a aviar...(Vendo a casa onde comprou Zé Povinho.) Ah! É ali. BOATO (À parte.) - Deu-lhe o faro e vai pelo caminho mais perto. POLÍTICA - Nem sempre vou à França por Tavira. (Encaminha-se para a loja onde aparece o Anjo da Humanidade.) ANJO - O que pretende? POLÍTICA - Quero saber do dono da casa... ANJO - Nada tem que saber... POLÍTICA - Mas eu cumpro o meu dever... ANJO - E eu o meu... POLÍTICA - Sabe quem eu sou? ANJO - Sei... E é por isso que lhe digo: respeitem-se os princípios... POVO - Apoiado! (Anjo retira-se.) POLÍTICA - Não encartei a vasa... ficará para outra vez. BOATO (À Política.) - Deixe a coisa por minha conta! (Alto.) Então já sabem que temos crise? TODOS - Crise? ZÉ - Bem sabemos... É a crise econômica. BOATO - Engana-se, é crise ministerial... ZÉ - Nesse caso, vou-me safando, porque me podem prender para ministro. (Entra um grupo de velhos.) ESPECTADOR - Aqueles é que são os ministros? BOATO - Nada... São os discípulos da escola noturna, vão ouvir as preleções do Doutor Costa.

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ZÉ - Eu vou também. BOATO - No que sempre aprenderá pelo menos a lavar a casa. ZÉ - E depois, se a lavar, quero ir ao teatro OPINIÃO - E eu também. BOATO - Pois iremos ao teatro. QUADRO XIII Cena IV Qualquer cenário. Ao levantar o pano, a cena está escura. Entram Zé Povinho, Opinião e Política POLÍTICA - Olha que estás hoje mais amolado do que... os artigos sobre a Macaé e Campos. ZÉ - Por que diabo está isto a escurecer? POLÍTICA - Hoje há eclipse da Lua, meu tolo. Olha, falavas dos teatros. Eles aí vem. (Aparecem os teatros. Espectador num camarote.) ESPECTADOR - Não! Lá é que não me pilham! Não saio mais daqui. O Vale fica escamado. Coro dos teatros Cena V Os mesmos, os Teatros e um Toureiro OPINIÃO - Sim, sim; isto é muito cômodo. Em vez de ir a gente aos teatros, os teatros é que vêm à gente. ZÉ (Ao São Pedro.) - Quem é você? SÃO PEDRO - Eu sou São Pedro, o mais antigo depois que morreu o meu colega São Januário. Neste ano tenho andado numa faina como não imagina o senhor, mas não tenho feito nada. Os três castelos de Espanha foram castelos no ar. As inundações de Portugal não me inundaram de notas. A lâmpada maravilhosa não me alumiou como devia. A filha do fogo pegou fogo. A mulher do saltimbanco foi uma mulher perdida. Se não fossem A cabana do Pai Tomás e a Jerusalém libertada... O que seria do velho São Pedro? ESPECTADOR - A cabana do Pai Tomás devia ser proibida pela polícia. SÃO PEDRO - Por quê? ESPECTADOR (No camarote.) - Fui ver aquilo e levei comigo os meus escravos. Sublevaram-se todos! Já não bastava a Lei de 28 de Setembro! SÃO PEDRO - Tive lá uma companhia de Lisboa: a que representaram com mais arte foi As intrigas no bairro. O mais... meus amigos, não serviu senão para fazer com que o público lastimasse o caso de um talento de primeira água. ZÉ (Ao Pedro II.) - E o senhor? Quem vem a ser? PEDRO II - Eu sou o teatro Pedro II, o teatro dos extremos, ou o circo dos saltimbancos, ou a sala da grande ópera. Este ano apareceu por lá uma novidade: as ocarinas sopraram muito, mas não assopraram o público. Depois vieram Fuci, Roles e Mendoros, artistas de primo cartello. Grandes espetáculos a quarenta mil réis por camarote! Lindas óperas, Fausto, Trovador, Aída... Vocês não vieram a Aída? ESPECTADOR - Eu de óperas só conheço A volta de Cogumelo. PEDRO II - Oh! a Aída! A Aída! Que delírio! Que entusiasmo! O Rio de Janeiro era todo Aída! Que furor! A índole deste povo é essencialmente lírica! SÃO PEDRO - Sim, ganhaste muito dinheiro: porém mais hei eu de ganhar com isto. (Tira do bolso um manuscrito.) PEDRO II - O que é isto? SÃO PEDRO - A viagem ao redor do mundo em oitenta dias. (Mete outra vez no bolso.) CASSINO (Arregalando os olhos.) - Oh! (Empalma o manuscrito. Tossindo e disfarçando, sobe ao pé de Zé Povinho.) Hum... hum... (Dirigindo-se ao Zé Povinho, com volubilidade.) Eu sou o Cassino. Andava dantes maltrapilho e malcheiroso... cheirava a angu. As famílias tinham fugido de mim. Os pais não queriam que os filhos me visitassem. A polícia tinha-me os olhos em cima. Andava por lá, apesar de

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tudo isso, o primeiro cômico nacional... Quando, de repente, um homem limpo enfeitou-me, lavou-me, ensaboou-me, almiscarou-me: as famílias voltaram, os filhos obtiveram de novo licença dos pais para visitar-me, a polícia descansou sobre o meu comportamento... Vejam: ando de casaca, gravata branca, chapéu de pasta... Hein? Que lhes pareço? ESPECTADOR - Quem o ouve falar, não o leva preso. ZÉ (Ao Ginásio.) - E você quem é, ó pequeno? GINÁSIO - Deixe-me, homem: eu sou um desgraçado. ZÉ - Sim? GINÁSIO - Tenho caveira de burro! Não sei o que é! Toda a gente foge de mim. Ninguém me quer! Neste campo solitário Onde a desgraça me tem, Falo - ninguém me responde Olho - não vejo ninguém. Andou por lá também alguém e foi de ventas à torneira. Pois se caíram nessa asneira! Quiseram ver se faziam alguma coisa com o Frade Negro... OPINIÃO - Irra! frade e negro de mais a mais! POLÍTICA - O que é que têm os frades? ESPECTADOR - Lá está a Política a defender os frades! GINÁSIO - Nem A porta do Inferno me abriu a do Paraíso! Nem A Irmã do cego... cego estava quem a representou... Nem o Botão d'âncora. Nem nada! Agora vivo entregue aos curiosos... preferia estar entregue à curiosidade... Mas qual! Quem me aparece por lá de vez em quando é a distinta atriz fulana de tal, a fazer benefício, com o concurso do distinto amador... TODOS - Coitado! Pobre Ginásio! OPINIÃO - E o São Luís onde está? (Ao São Luís.) Agora conte também sua história. (Ao mesmo tempo.) SÃO LUÍS - Apesar de santo como GINÁSIO - Apesar de ter santos, o São Pedro e de novo como o sem ser santo, e de não ser tão Cassino, sou caipora como o Ginásio novo como o vizinho... POLÍTICA - Por quem são, fale cada um por sua vez; não os ouço... SÃO LUÍS - Que quer?... É esta música aqui do lado que nem me deixa ouvir a mim mesmo. POLÍTICA - Pois mande parar a música. SÃO LUÍS - Não posso. Apesar de lhe ter metido uma parede de permeio, ficamos sempre de parede-meia. POLÍTICA - Pois Senhor Ginásio... Conserve-se agora calado como tem estado depois que se abotoou com o botão. GINÁSIO - Que eu julguei ser a minha âncora de salvação. SÃO LUÍS - E que ferrou com você à porta, inferi. GINÁSIO - Desenganado, recorri finalmente ao patriotismo.. POLÍTICA - O quê? Pois meteram-me à bulha nos teatros? ZÉ - Ora, senhor! Só vejo lágrimas. OPINIÃO (Ao Alcazar.) - E lá?... Quem é? ALCAZAR - Eu sou Santa Isabel. PEDRO II - Olha, morde aqui! Queres passar por Santa Isabel, mas comigo é que não arranjas nada. Tu és, mas é o Alcazar... Podes disfarçar-te como quiseres... hás de ser sempre o Alcazar! ALCAZAR - Para que me andas a descobrir? Se aquela gente sabe quem sou, não aparece por lá... ZÉ - O que é que nos dá de novo, seu Alcazar-Santa Isabel? ALCAZAR - Um drama nacional: A Lei de 28 de Setembro... Não vem?

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ZÉ - Não gosto de semelhante lei... O que há mais? ALCAZAR - O casamento da filha de Maria Angu TODOS - Aí... SANTA ISABEL - Ah! Não querem nada disto? Vou procurar um paio que me empreste dinheiro para montar uma mágica. ZÉ - Veja antes se encontra um mágico que lhe empreste dinheiro para comprar paios e monte uma venda. SANTA ISABEL - O senhor insulta-me! ZÉ - Ora vá para o inferno. (À Fênix Dramática.) E a senhora, tão catita, tão levada? FÊNIX - Eu sou a Fênix Dramática... Tenho tido bons sucessos, graças a Nossa Senhora do Parto, de quem sou vizinha... Dou um prêmio a quem provar o contrário, assim como que a cerveja Glória não é a melhor cerveja nacional. O meu empresário sabe onde tem o nariz. ESPECTADOR - Pudera! Um nariz daquele tamanho! FÊNIX - Sim, senhor! O que está aí a falar! O meu empresário enxerga um palmo adiante do nariz! ESPECTADOR - E há de convir que enxerga muito! Um palmo! ZÉ (Ao Varietés.) E o menino? VARIETÉS - Je suis les Varietés ZÉ - Ai! mau! Não pode dizer isso em português? VARIETÉS - Non, mon cher. Je suis tout français.. ZÉ - Então boa noite. No entende franciú . Não me apanhas nenhum l'argent. (Ao Circo.) E você, seu gaiato? CIRCO - Eu sou o Teatro-circo. ZÉ - Ora até que finalmente achei coisa que me sirva! (Abraça o teatro-circo.) ESPECTADOR - É! O Zé Povinho não quer saber senão dos cavalinhos! ZÉ - O que me dás para ver? Eu quero coisa boa! TEATRO-CIRCO - Vais ver. (Mutação. Aparece ao fundo um pano branco.) QUADRO XIV Sombrinhas (Os teatros arranjam-se dos dois lados da cena.) ZÉ POVINHO (Admirado.) TEATRO-CIRCO - Vais ver o Blondin! (Passa pelo fundo o Blondin.) A Speltrini! (Passa a Spelterini.) Tony, o imbecil e Bob, o maluco. (Passam.) A romaria ao Vaticano! (Passa pelo fundo um trem de ferro e, logo depois, sujeitos a correr atrás dele. Passa depois um padre.) ZÉ - Dois sujeitos a pancadas?... ESPECTADOR - Aquilo é um duelo de pau ... e chapéu. Cena VI Os mesmos e a Arte ARTE (Ao fundo.) - Zé Povinho! ZÉ - Pronto! Quem é Sua Senhoria? ARTE - Eu sou a Arte. (Os teatros fogem em debandada, e passam com sombrinha.) ESPECTADOR - O Cassino afasta-se: ao que parece despreza a Arte? CASSINO - Já não tenho arte... Trabalho com artes para agradar. ESPECTADOR - E pensas no grande gênero? CASSINO - No grande e espetaculoso... Nisso de ganhar dinheiro sou como Hamlet... To be or not to be ESPECTADOR - Fale-me em português, se quer que o entenda.

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ARTE - Zé Povinho, vou-te mostrar um trabalho digno do teu apreço! Olha e admira! (Rompe-se o pano de fundo e aparece o quadro da Batalha de Avaí. Hino Nacional em surdina. Execução da mutação.) POLÍTICA (À esquerda, depois do grupo dos teatros.) - Ora! Tem defeitos. ARTE - Poderá não os achar a Política. (Mutação.) QUADRO XV a Imprensa Nacional ARTE - Aqui tens, Zé Povinho, outra obra de arte digna de ti! É um edifício que honra o país. (A Arte sai.) ZÉ - Mas este é mais pequeno que a verdadeira arte. Outro não caberia na porta... Cena VII Política, Zé Povinho e Opinião POLÍTICA - Ficaste embasbacado, meu tolo! Sempre és muito lorpa! Pois, anda daí, vem ver como ressurjo os mortos! OPINIÃO - Ressurge os mortos! Credo! POLÍTICA - Acompanhas-me? ZÉ - Como não? Se minha mulher já tivesse morrido é que me não pilhavas lá! POLÍTICA - Vamos! (Saem.) Cena VIII Uma Russa, seguida por algumas pessoas do povo RUSSA (Lendo.) - Mais la femme és la más perfeta creatin of the God! TODOS - Basta! Basta! Ó Senhor! Que maçada! ESPECTADOR - O que é isto? RUSSA - La femme... TODOS - Basta! Basta! (A Russa continua a falar ao povo, que protesta e foge. Espectador salta ao palco.) ESPECTADOR - Nada! Eu quero saber o que é isto! Não está bem explicado! (Agarra um homem do povo que vai saindo por último.) Diga-me: o que é isto? HOMEM- É uma literata lá da Sibéria!.. ESPECTADOR - Pois olhe: é bem quente! HOMEM - Fez-nos, no Teatro São Pedro, uma leitura impossível sobre a mulher... ESPECTADOR - E sobre o homem? Não disse nada? HOMEM - Saímos desesperados do teatro, e ela entrou a perseguir-nos. Quero ver no que dá isto. (Sai a correr.) ESPECTADOR - Que diabo de mulher! O que vem a ser isto! Cena IX Espectador, um Sujeito e Telefone SUJEITO (Com o fio e a trombeta do Telefone.) Arrede-se, sim, arrede-se! Ando a fazer experiências do Telefone. ESPECTADOR - O Telefone! SUJEITO (Falando pelo telefone.) - Congratulo-me por este melhoramento... O TELEFONE - Bem, muito obrigado! SUJEITO - Bem; vou para mais longe. (Sai a correr: pouco depois passa o indivíduo que leva a outra extremidade.)

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Cena X Espectador e Conservador (Com um regador na mão, esbarra no Espectador.) ESPECTADOR - Olá! Não vê por onde anda? CONSERVADOR - Desculpe, que me caíram as cangalhas. ESPECTADOR - Pode-se saber onde vai com tanta pressa? CONSERVADOR - Onde vou?! Pois o senhor não sabe que sou o conservador? ESPECTADOR - Então não tem podido ser liberal... CONSERVADOR - Tenho poupado o que me tem sido possível... mas o senhor não entendeu... e sou o conservador do passeio... ESPECTADOR - É bom vadio. CONSERVADOR - Não me entendeu ainda... do passeio... ESPECTADOR- Público... e notório é isso. CONSERVADOR - Vou regar, varrer, podar, limpar, pintar... Tenho pintado o sete, mas obrigam-me agora a pintar a grade... ESPECTADOR - Para agradar, pinte; e para pintar, agrade. CONSERVADOR - Não há remédio! Ergueram a vassoura a altura de um princípio! - Adeus, adeus, que já está nomeado o homem do fogo para dar parecer sobre aquilo. (Ouvem-se grandes sopros. O Espectador e o Conservador caem no chão.) O que é isto? (Entra Tufão, e canta a ária do Eólo na Filha do Ar.) ESPECTADOR - É um Tufão. (Levantam-se.) Não se machucou? CONSERVADOR - Nada, eu sou um alho... ESPECTADOR (Assobia.) - Alho. CONSERVADOR - Quer vir até cá? ESPECTADOR - Vamos; não tenho que nada que fazer... não sou da peça... (Saem. Mutação.) QUADRO XVI Cemitério Política, Zé Povinho e Opinião POLÍTICA - Eis-nos chegados! OS DOIS - Chegados somos! OPINIÃO (Assustada.) - Ai! POLÍTICA - Conduzi-vos aqui para vos mostrar o meu poder sobre os mortos! ZÉ - Até sobre os mortos! A Política é dos trezentos! POLÍTICA - Vou ressurgir a briosa Guarda Nacional! Vede e pasmai! (Faz acenos. Com grande susto de Zé e Opinião, entram a sair dos túmulos primeiro - oficiais superiores, depois soldados rasos da Guarda Nacional. Marcha fúnebre que descai em marcha bélica. Grande desfilada.) ZÉ - Mas eu já vi esta revista de tropas noutra Revista. (Saem todos ao som da marcha.) Cena XI (Entra um indivíduo embuçado dos pés à cabeça; depois outro; segredam-se. Entram a pouco e pouco outros indivíduos. Segredinhos, etc. A orquestra toca a introdução do Coro dos Conspiradores da Madame Angot; os embuçados preparam-se a cantar, mas dizem apenas psiu e saem, ficando apenas um cena, que é Boato. BOATO - E finda-se o ano sem que se saiba qual é o novo ministério. (Sai.) Cena XII Febre Amarela e Canal do Mangue FEBRE - É o diabo com botas! Que contas hei de dar de mim? Tu é que tiveste a culpa! Maldito Canal do Mangue!

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CANAL - Eu! Estou aterrado! FEBRE - Meti-me de amores contigo; gastei todo o meu tempo em pândegas, e esqueci-me de matar alguém. É o diabo! CANAL - Mas... FEBRE - Vem daí, vem daí, meu sedutor! Agora só para o ano! (Saem.) QUADRO XVII Cena XIII Sala Opinião e Zé Povinho entram com malas ZÉ - Basta de vadiação! Vamos! Vamos! OPINIÃO - Não percamos nem mais um instante! Um ano de pândega! (Vão a sair.) Cena XIV Os mesmos e Anjo da Humanidade (Com algumas coroas na mão.) ANJO - Um instante! Antes de partir, venham comigo depositar coroas nos altares dos heróis que engrandeceram a pátria com o talento e as virtudes, e que nos foram arrebatados pela morte neste maldito ano que finda. Ao Panteon dos Brasileiros, que bem mereceram da pátria. (Saem. Mutação.) QUADRO XVIII Panteon Pompeu, Pinheiro, Guimarães, Alencar, Gomes de Souza, Zacarias ANJO- Agora, que acabamos de cumprir um santo dever de gratidão saudemos a aurora do ano novo, para que só traga ao Brasil alegrias, progresso e glória. Apoteose. (Fim da peça.)

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NOVA VIAGEM À LUA OPERETA EM 3 ATOS ORIGINAL DE ARTUR AZEVEDO E FREDERICO SEVERO Música de Le Coq 1877 Representada pela primeira vez no Teatro Fênix Dramática Rio de Janeiro PERSONAGENS MACHADINHO LUÍS AUGUSTO, guarda livros SILVA FONSECA ARRUDA BARÃO DE VAL-DE-VEZ DOUTOR CÁBULA (alcunha) SANTOS (empregado público) JOANINHA ROSINHA SARA CHIQUINHA UM FEITOR UM NEGRO DOIS CRIADOS Criados, escravos, estudantes, máscaras, cocotes, etc. A ação do primeiro ato passa-se em Ubá, província de Minas Gerais, e a dos dois últimos na corte. Atualidade. ATO PRIMEIRO O teatro representa o pátio de uma fazenda. À direita, a casa com alpendre e tranqueira. Cerca ao fundo. A estrada em perspectiva. CENA I Machadinho, Luís Augusto e Silva (Ao levantar o pano, a cena está vazia; ouve-se fora o jongo, entoado pelos negros no eito.) Jongo Trabaia, negro, trabaia Na roça de teu sinhô! O dia já vai bem arto... Trabaia té o só se pô...(1) (Machadinho, Luís, Augusto, e Silva entram em trajes de montar.

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MACHADINHO - Sim, senhor! Aqui é que se vive! Isto é que são passeios! Que bonitas fazendas! Que paisagens! Não volto! Decididamente, não volto! AUGUSTO - Que entusiasmo! MACHADINHO - Estou enlevado, encantado, arrebatado. (Caindo em uma cadeira de ferro.) e... cansado! Uf! Aquele maldito sendeiro! SILVA (À Luís.) - Duvido que aquelas moças que convidaste venham... MACHADINHO (Erguendo-se.) - Não estejas a imaginar desgraças! Por que não hão de vir? SILVA - Com este sol! Virão? LUÍS - Se lhes mandássemos a traquitana de papai? MACHADINHO- Que traquitana! Não estamos nós aqui? Nós, a elite, o high-life grand-monde? Deixa estar que elas hão de vir. AUGUSTO - O defunto não enjeita a cova. MACHADINHO- São favas contadas. Passaremos hoje uma noite esplêndida! LUÍS - Vou prevenir mamãe que temos visitas. AUGUSTO (Batendo-lhe no ombro.) - Um jantarão, hein, meu velho? A bela feijoada de orelheira e a maravilhosa salada de pepinos... SILVA - É indigesto. AUGUSTO - Indigesto és tu. (A Luís.) Tenho uma fome... MACHADINHO- É dois... SILVA - E quatro... LUÍS - Vocês não façam cerimônia; quando quiserem mudar de roupa, entrem; já sabem onde estão os seus quartos. AUGUSTO (Empurrando-o para casa.) - Olha, filho, ocupa-te mais do nosso estômago, e menos do nosso fato. Vai, vai... LUÍS - Até logo. (Entra em casa,) CENA II MACHADINHO, AUGUSTO e SILVA MACHADINHO - Sentemo-nos. (Senta-se.) SILVA - Bem lembrado. (Senta-se.) AUGUSTO - Vá lá. (Senta-se.) MACHADINHO (Bifurcado na cadeira.) - Então? O que lhes dizia eu? Que se não haviam de arrepender. E arrependeram-se? Isto é que é vida! AUGUSTO - Até agora não temos razão de queixa. SILVA - Temos sido muito obsequiados. AUGUSTO - E tratados a vela de libra! SILVA - Assim eu era capaz de passar um ano em férias! MACHADINHO - E eu um século. AUGUSTO - E eu abandonava o escritório do patrão por uma eternidade! - Mas, digam-me cá, rapazes! (Aproximam-se as cadeiras.) O Luís não lhes parece que anda meio assim?... MACHADINHO - Espera. (Ergue-se e vai certificar-se que estão bem sós.) O Luís é uma pérola, não é? AUGUSTO - Ninguém diz o contrário. MACHADINHO- Mas acerca disto, (Bate na cabeça.) coitado... SILVA - Ninguém diz o contrário. MACHADINHO- O Luís anda apaixonado... AUGUSTO e SILVA - Hein?... MACHADINHO - Vocês conhecem a Zizinha? SILVA - A polca? MACHADINHO - Que polca! A polca não se chama Zizinha... - Ó Silva, refiro-me àquela nossa vizinha, filha do Santos, empregado no Tesouro! SILVA - Ahn...

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AUGUSTO - O pai conheço eu, mas não tenho relações com a família. MACHADINHO - Pois a Zizinha está prometida ao Luís com uma condição: o velho Santos só lhe concede a mão da filha, se o Luís fizer com que o pai vá a corte. AUGUSTO - Homessa! SILVA - Nada mais fácil. MACHADINHO - Isso é o que te parece. O velho Arruda, pai de Luís, foi condiscípulo do velho Santos, pai de Zizinha, quando estudantes no Seminário; como eram muito teimosos, um belo dia brigaram por via da batina do reitor. AUGUSTO - Ora esta! MACHADINHO - Da batina, sim! Um dizia que era de merino e outro que de cetim! SILVA - Ah! Ah! Ah! De forma que... AUGUSTO - Ficaram mal... Ah! Ah! Ah!... MACHADINHO - Exatamente. O velho Arruda (seja dito de passagem aqui entre nós, que ninguém nos ouve)... (Certificando-se de novo que estão bem sós.) O velho Arruda anda de dois pés com licença da Câmara. SILVA (Com o mesmo jogo de cena.) - É tapado como uma ostra... AUGUSTO (No mesmo) - Como duas ostras. MACHADINHO - Retirou-se cá para a fazenda e embirrou em não voltar à corte enquanto o seu antigo condiscípulo se achasse lá. Turrão como ele só!... SILVA - Mas, afinal de contas, de que era a batina? MACHADINHO - As partes litigantes não chegaram a um acordo. (Aparece Luís.) AUGUSTO - E quem te contou essa história? O Luís? CENA III MACHADINHO, AUGUSTO, SILVA e LUÍS LUÍS - Eu mesmo, e é a pura verdade, meus amigos. SILVA (Sobressaltado.) - Estavas ouvindo? LUÍS - Estava. MACHADINHO (Muito atrapalhado.) - Oh! diabo! Ouviste o que dissemos a respeito de teu pai? LUÍS (Com simplicidade.) - De papai? Não... o que foi? MACHADINHO - Então estamos salvos. Desculpa minha indiscrição. LUÍS - Não só desculpo, mas agradeço. Poupaste-me o trabalho; eu ia fazer-lhes esta confidência... OS TRÊS - Sim? LUÍS - E pedir-lhes um serviço... OS TRÊS - Fala... LUÍS - Ajudem-me a fazer com que o velho vá à corte. AUGUSTO - É difícil. MACHADINHO - Qual difícil! Astúcia no caso! SILVA - Assim sim. AUGUSTO - Qual há de ser? MACHADINHO - O que acharmos. OS QUATRO - Procuremos... (Toma cada um sua cadeira, e sentam-se todos isoladamente. Pausa.) AUGUSTO - Acharam? SILVA - Qual! MACHADINHO - Ouçam. (Ergue-se, reflete e volta a sentar-se.) Qual! não presta! LUÍS - É o diabo... (Ergue-se.) AUGUSTO - Com botas! (Ergue-se.) SILVA (Imitando-os.) Não me lembro de nada.. MACHADINHO (No mesmo, desabridamente.) - Procuremos! OS QUATRO - Procuremos! (Pensam.)

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Coro Ou por bem, ou por mal. por qualquer mei'original, o velho vai à corte, olé! passar o carnaval! (Este coro é executado com um ligeiro movimento coreográfico.) CENA IV MACHADINHO, AUGUSTO, SILVA, LUÍS e ARRUDA ARRUDA (Sai de casa e parece preocupado com a leitura de um livro.) - Doze pé de artura sobre nove de largo. (A Luís, que lhe estende a mão.) Tu estava aí, Lulu? Deus Nosso Senhor Jesus Cristo te dê uma boa sorte. - Ó Lulu me diz: isto é verdade memo? Estes home fôrum a Lua? LUÍS - Que homens, papai? ARRUDA - Aqui tá escrevido em letra de imprensa nesta novela de (Lendo o lombo do livro.) Júlio Verne. LUÍS - É e não é verdade. MACHADINHO (Puxando pelo paletó.) - Cala-te, diabo! Deixa-me falar: achei um meio. ARRUDA - Ó Lulu, pois se aqui está imprimido! Como é entonces que não é verdade, home? Pois os livros da imprensa também mente, home? MACHADINHO - O Luís tem razão, Senhor Arruda; é e não é verdade. ARRUDA - Quá seu doutô, não é possíve! MACHADINHO - Eu me explico: é verdade, porque tudo isso que aí está escrito, aconteceu - e o não é, quanto ao nome dos personagens, que estão trocados. ARRUDA - Mas entonces por quê? MACHADINHO (Estalando os dedos.) Isso foi um cometimento grandioso, que abalou todas as notabilidades científicas dos dois mundos. ARRUDA - Os dois mundo? Quá é outro? (Satisfeito por ter achado.) Ah! é o mundo da Lua! SILVA (Rindo-se.) - Nada: o mundo velho e o novo mundo. ARRUDA (Com ares de quem sabe.) - Sim... sim...o véio e o novo... Vamo adiante. MACHADINHO- Como ia dizendo, essa empresa abalou todas as notabilidades científicas... todas e mais algumas! ARRUDA - Que brincadeira, hein? Abalou muita gente! MACHADINHO - Os que tomaram parte nela foram alvo de estrondosas manifestações, e por modéstia ocultaram os seus nomes; se assim não fizessem o povo da União não os deixaria mais descansar. ARRUDA - Da União e Indústria? (Risadas.) MACHADINHO- Quem lhe falou em União e Indústria? A União, isto é, os Estados Unidos da América! ARRUDA - Ahn... Agora entendi, seu doutô. Pois, meus amigo, tou com vontade de dá um passeio até a Lua! SILVA (Baixinho, a Machadinho.) - Até a Lua? E esta?... ARRUDA - Vamo à Lua, vamo, rapaziada? Que glória pra nós e pro Brasil, pro mode disso. MACHADINHO - Soberbo! Sublime arrojo! ARRUDA - É um grande projeto, não é, seu doutô? MACHADINHO - Admirável! AUGUSTO - Incomparável! SILVA - Incomensurável! ARRUDA - Vocês são quase engenheiro... AUGUSTO - Menos eu... ARRUDA - Se encarrégum de arranjá o apareio... mas porém eu é que devo dá o risco! Que tu diz a isto, Lulu?

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LUÍS (Simplesmente;) - Eu digo... Não digo nada... ARRUDA - Iremo num foguete! MACHADINHO - Boa idéia! ARRUDA - Só lhe falta o rabo. MACHADINHO - À idéia? ARRUDA - Ao foguete. MACHADINHO - Comprometo-me pela construção do aparelho! ARRUDA - O foguete há de assubir do morro mais arto que houvé no Rio de Janeiro! MACHADINHO - Certamente. ARRUDA - Duma feita em qu'o céu tivé bem limpo, e não chuvá nem trovoada tão cedo. SILVA - Isso é que há de ser difícil! ARRUDA - Difice? Tenho aqui o tira-teima, home ! (Tirando um folheto do bolso.) O Armanaque do Ayer! Isto é aquela certeza. Se ele pega diz que não chové, é porque não chove memo. AUGUSTO (À parte.) - Em que dará tudo isto? ARRUDA - Vamo passá o entrudo na Lua: ao menos o terceiro dia há de ser muito adivertido! LUÍS - Mas, papai, a empresa é muito dispendiosa. ARRUDA - Sou pobre de rico, louvado seja Deus Nosso Senhor Jesus Cristo! Pra cobri de glória a minha terra, não olho sacrafício. LUÍS - Mas... MACHADINHO (À parte, a Luís.) - Não te calarás! (Alto, a Arruda.) Está dito, Senhor Arruda, vá fazer o desenho do foguete. E hurra pela Lua! TODOS - Hurra! Rondó e coro MACHADINHO - Isto há de dar ao mundo o que falar! Estes tipos pelo ar (é verdade nua e crua!), num foguete a viajar! A glória que nós vamos conseguir, essa glória que há de vir, - não há nada que a destrua; nada a pode destruir! Quando chegarmos à Lua, hei de, olé! me divertir! Tomarei uma perua! Muito havemos nós de rir! TODOS - Quando chegarmos à Lua, hei de, olé! me divertir! Tomarei uma perua! Muito havemos nós de rir! MACHADINHO - Destemidos, decididos, vamos viajar no ar! Sujeitos tão atrevidos se procurarão em vão. O nosso nome grande renome com certeza alcançará; um monumento tão grande invento juro que valer-nos-a! Pobre ficamos que mal nos faz?

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Glória alcançamos, que vale mais! - Muito ganhamos coa empresa audaz que honra nos traz! Quando chegarmos à Lua, hei de, olé! me divertir! Tomarei uma perua! Muito havemos nós de rir! TODOS - Quando chegarmos à Lua, hei de, olé! me divertir! Tomarei uma perua! Muito havemos nós de rir! MACHADINHO - Agraciados, remunerados, condecorados seremos nós! A viajar vamos honrar nossos avós! TODOS - Agraciados, remunerados, condecorados seremos nós! A viajar vamos honrar nossos avós! MACHADINHO - Receberemos mil atenções e comissões, aclamações, f'licitações, exortações, adulações animações, publicações e muitas congratulações!!... TODOS - Quando chegarmos à Lua, hei de, olé! me divertir! Tomarei uma perua! Muito havemos nós de rir! ARRUDA - Vou tratar do desenho. (Entra em casa.) CENA V MACHADINHO, LUÍS, SILVA e AUGUSTO LUÍS - O que estás fazendo? MACHADINHO - O que estou fazendo? Estou a arranjar meios e modos de levar teu pai à corte. LUÍS - Como assim? MACHADINHO - Não temos aqui fundição nem operários; é preciso irmos à corte para arranjar o foguete. LUÍS - Estás a ler; não conheces papai. Ele é capaz de estabelecer uma fundição na fazenda e mandar vir operários da Inglaterra.

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MACHADINHO - Mas a ascensão não pode ser feita senão do Corcovado! Far-se-á tudo como se fora real, à exceção da despesa. Não tocaremos no dinheiro do teu papai. (A Augusto.) Ó Augusto, tu ainda és o presidente dos Netos da Lua? AUGUSTO - À falta de homens... MACHADINHO - Eu pertenço à sociedade, mas não sei a quantas anda. AUGUSTO - Com que então é preciso meter na dança uma sociedade carnavalesca? MACHADINHO - Ouve, e cala-te: Oficia daqui à Sociedade, e diz-lhe que tens um carro de idéia. SILVA- Um carro de idéia? Ah! é a gíria... MACHADINHO - Dou-te uma idéia do carro: leva dentro o foguete que há de ser de papelão e prateado ou bronzeado, e de acordo com o desenho do nosso Arruda. O resto fica por minha conta. (A Luís, que pensa.) Compreendes? LUÍS (Pensando.) - Começo a compreender... (Pausa.) Compreendo! Ó Machadinho, ó Augusto, ó Silva, dêem-me as suas mãos. (Aperta-lhes as mãos.) Pobre Zizinha, como vais ser feliz! Romanza Dona do afeto meu, esplêndida Zizinha, em breve serei teu, em breve serás minha! Hei de levar papai de teu pai à presença... Oh! que ventura imensa! Amor c'roar-nos vai! Ligar à tua a minha sorte é quanto almejo, quanto desejo. Papai, papai, irás à corte! Tu não calculas, não, Sinhá, quanto te adoro! Se cerca-me a solidão vens-me à lembrança e choro... Ai! quem me dera estar já, entre os teus carinhos, os cândidos filhinhos nas pernas a embalar. Ligar à tua a minha sorte é quanto almejo, quanto desejo. (Durante esta romanza os outros rapazes têm feito grupo à parte e conversam entre si.) AUGUSTO - É bonito, mas é triste... MACHADINHO (A Luís.) Toma vergonha, comporta-te, meu simplório; não chores! Lembra-te que és quase um senhor bacharel em Matemáticas pela antiga Central! (Declamando com ênfase.) Um das colunas que... (Outro tom.) Não chores, ó Arruda Júnior. (Luís ri-se.) Ora graças a Deus que já te ris. LUÍS - Confio muito em você, Machadinho, mas, quando me lembro que papai é tão teimoso, receio ver por terra os teus projetos. E o velho Santos é outro! Se não levo papai à corte, pega fogo na canjica. MACHADINHO (Batendo-lhe de leve rosto, como se costuma fazer às crianças.) - Coitadinho do Lulu! Deixa estar, deixa estar, meu benzinho, que papai há de ir, e em nossa companhia. SILVA - Já falaste ao velho sobre esse casamento? LUÍS - Já, e está por tudo! MACHADINHO - Então melhor! Viva Deus! Está tudo arranjado!

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Polca cantada (2) Polca I Ser minha Juraste... Faltaste, Zizinha. A jura! Mentida, Perjura, Fingida! II Não cresta Essa face... Na festa Valsaste! Dançando Qual fada, Girando Enlevada! III Eu vi-te Passar. E o par Te cingia! Teu rosto Formoso De gozo Sorria. IV Eu triste Calado, Ralado, De dor! Que bem Te importavas, Valsavas Ó flor! V E fraco Sozinho Mesquinho, Chorei! Dizia Meu pranto O quanto Te amei.

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VI Assim Como a rosa Formosa Definha... Pra mim Feneceste, Morreste, Zizinha!... AUGUSTO - Bem, vamos mudar de fato. As moças não devem tardar. TODOS - Vamos. LUÍS - Esperem... Repetição Ligar à tua a minha sorte, é quanto almejo, quanto desejo! Papai, papai, irás à corte! TODOS - Papai, papai, irás à corte. (Saem.) CENA VI ARRUDA e um FEITOR ARRUDA - Pois aqui está, Seu Zé. Leve esta cartinha ao compadre Mané Mascate, tá ouvindo? Olhe que o home hoje tá feito Barão... Veja como trata ele. O FEITOR - Nhor, sim, patrão. ( Vai a sair.) ARRUDA - Escute cá: - Você só trate o home de seu Barão, hein? tá ouvindo? Seu Barão pr'aqui, Seu Barão pr'ali, Seu Barão pra cá, Seu Barão pr'acolá; que toma, que vira, Seu Barão, Seu Barão assim; Seu Barão assado; pé, pé, pé, Seu Barão, Seu Barão, pé, pé, pé... O FEITOR - Nhor, sim, patrão. ( Vai a sair.) ARRUDA - Psiu! Olhe cá. - De caminho para lá passe na venda do Chico Gracia e diga a ele que a besta de sua irmã dele, que andava descadeirada, já teve o seu bom sucesso, e tá pronta pra outra. O FEITOR - Nhor, sim, patrão. ( Vai a sair.) ARRUDA- Seu Zé, ó Seu Zé! Olhe! Diga a Seu Barão pr'ele vi logo que arrecebê a carta, tá ouvindo? O FEITOR - Nhor, sim, patrão. ( Vai a sair.) ARRUDA - Olhe, seu Zé. (O homem volta. Pausa.) Tá bom: vá se embora com Deus e a Virgem Maria. O FEITOR - Amém, patrão. (Sai.) ARRUDA (Saltando para fora da tranqueira e gritando.) - Dê lembranças a Sá Baronesa. Tá ouvindo? O FEITOR (De longe.) - Nhor, sim, patrão. ARRUDA (Desce à cena refletindo e, lembrando-se de alguma coisa mais, corre outra vez ao fundo e grita.) - Ó seu Zé? Psiu! Seu Zé! Quá, o home corre cumo um danado! Tem medo que chame ele outra vez! CENA VII ARRUDA (Só) [ARRUDA] (Descendo.) - Pois ou eu não me chamo Arruda, ou não dou um pulo até a Casta Diva! Hei de plantá a bandeira brasileira lá em cima. (Batendo no livro, que ainda conserva na mão.) Diz este home que aquilo por lá é uma coisa incomparave. Que home sabido! É um sábio! É um sabão! O moleque é case superiô ao Ayer! Isto! (Tirando a folhinha.) Isto também é obra! Quando ele diz que chove, é porque chove memo; já não saio de casa nem a cacete! Até o dia d'hoje não tem faiado. É aquela certeza! Entonces na Oropa, dize as foia que inda é mió. - Ora, eu tive um companheiro e amigo

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lá no Seminário...( eu já fui fromigão, deixei por não ter queda pro latinório)... esse meu dito companheiro era tão teimoso que, se tivesse aqui, era capaz de dizê que este Monsiú não foi à Lua! (Bate no livro.) Fiquemo de mal porque ele dizia que a batina do senhor reitor era de cetim e eu, que de merino. Palavra puxa palavra, e pan! fiquemo brigado. Eu peguei, deixei o dito Seminário e entonces vim pra fazenda, prometendo nunca mais vortá à corte. Nesse tempo era vivo o defunto meu pai e a defunta minha mãe, e ambos e dois me aprovou. Tenho cumprido a minha dita promessa, porque em teima ninguém me ganha. (Os negros entoam no eito o jongo da primeira cena.) Oh! a minha gente está muito adivertida! É porque mandei adistribuir uma ração de parati e roupa nova de riscado grosso. Como sou feliz, quero que a dita minha gente seje também. CENA VIII ARRUDA e O BARÃO BARÃO (Aparece no fundo e diz para dentro.) - Ó Epifano, toma vem xentido no oitro. Prende-o pola rédea. Bê lá não bá fugire. ARRUDA- Ah! é o Mané. Veio depressa, seu compadre. BARÃO (Descendo à cena.) - Ora biba e mal a obrigação. Arrexevi o seu vilhete em caminho e cá estou eu. ARRUDA - Compadre, você hoje janta com nós... BARÃO - Conosco, xeu compadre, compadre, conosco é que xe diz. - Janto xim xenhore e com muito prajere... ARRUDA - Prajere também não se diz, seu compadre. (À Parte.) Forte tolo! BARÃO (À parte) - Animale! (Alto) Boxé é muito hospitaleiro. Digo-te como digia o noxo Camões... ARRUDA - Camões? BARÃO - Er'um xujeito que nã tinh'est'olho . Como bem a propójito, encaixo-le este pidaço: - Traz bom conforto e agajalho! ARRUDA - Parabéns, seu compadre. Sei que agora está feito Barão. Você agora não negoceia mais coa caixa. BARÃO - Qual caixa nem qual carapuxa! Xexe tudo o que a muja antiga canta... Isto é do noxo Camões. (À parte.) É uma lástima a falare. ARRUDA (À parte.) - Fala má cumo que...(Ouvem-se risadas.) Aí vem a rapaziada... E o meu doutô... BARÃO (Emendando.) - Doutore, doutore, compadre! CENA IX ARRUDA, BARÃO, MACHADINHO, LUÍS, AUGUSTO, SILVA (Os rapazes entram a rir-se, e com outras roupas.) ARRUDA - Rapazes, o Seu Barão... (Ao Barão.) Barão de quê, seu compadre? BARÃO - Barão de Bal-de-bez. ARRUDA - Barão de Bal-de-bez. MACHADINHO - Deve ser de Val-de-vez. (À parte) Mais um para a coleção... ARRUDA (Apresentando Luís ao Barão.) - Seu compadre, aqui tá o meu doutô. Ainda não saiu da Academia e já ali co seu colega. (Mostra Machadinho.) aquele danado, fazer uma mánica... BARÃO - De apanhare café? ARRUDA (Dando um assovio e estalando os dedos.) - Quá! Uma mánica que não é pra Terra! Uma coisa admirave! Que há de espantá tudo. Que pega na gente e bota lá na Lua! BARÃO - Antão digo como o noxo Camões: - Xexe do xábio grego e do troiano as nabegaxões grandes que fijeram! MACHADINHO - Muito bem. AUGUSTO (A Luís.) - Apresenta-nos.

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LUÍS - Senhor Barão, apresento-lhe os meus amigos: o Senhor Augusto Soares, guarda-livros da respeitável casa comercial, correspondente de papai... Doutor Silva, Doutor Machadinho. OS RAPAZES (A um tempo.) Excelentíssimo, temos o prazer de cumprimentar Vossa Excelência; honram-nos sobremaneira as relações que com Vossa Excelência acabamos de travar. (Procuram todos ao mesmo tempo apertar a mão ao Barão, que fica atrapalhadíssimo.) ARRUDA - Oh! não fale tudo assim de uma vez! O compadre não pode respondê a tudo a um tempo, cambada! BARÃO (Conseguindo livrar-se dos rapazes.) - Mous xenhores, não poxo agradexere tanta vondade, xenão a dijere como o noxo Camões: - Cantando espalharei por toda a parte tantas aquisicências. RAPAZES (Atrapalhando-o de novo.) Bravo! Muito bem! BARÃO - Os maninos desculpem falare assim. Aprendi a lere e a escrebere, e xei de core dois libros: os Lujiadas do noxo Camões e o Código de nã xei quem, mas há de xere do mesmo Camões, porque bai como o oitro que diz, aquilo que é ovra fina. É por ixo que cando acho acasião, encaixo um pedaxinho do noxo Camões. Xou muito amante da literatura. AS MOÇAS (Aparecendo ao fundo.) - Dão licença? TODOS - As moças! Vivam! Entrem, minhas senhoras. CENA X ARRUDA, BARÃO, MACHADINHO, LUÍS, AUGUSTO, SILVA, ROSINHA, JOANINHA e moças (Os rapazes sobem ao fundo e as moças descem, saltando alegremente.) CORO DE MOÇAS Olá! com sua licença vamos entrando pra cá pois do sol a calma intensa ai! Jesus! de fogo está! ROSINHA (A Luís)- As mais gentis moças de Ubá vem lhe fazer uma visita. AS MOÇAS - As mais gentis moças de Ubá vem lhe fazer uma visita. I ROSINHA - Com custo estou que nos dirá qual é de nós a mais bonita e qual de nós mais chique está. Ah! — Nós hoje, às mil maravilhas, vamos decerto passar! Valsas, polcas e quadrilhas vamos dançar! Brincar! Folgar AS MOÇAS - Nós hoje, às mil maravilhas, vamos decerto passar! Valsas, polcas e quadrilhas vamos dançar! Brincar! Folgar! II JOANINHA - Senhores meus, hão de convir

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que estamos já civilizadas! AS MOÇAS - Senhores meus, hão de convir que estamos já civilizadas! JOANINHA - Pois também sabemos rir! Não somos, não, desajeitadas! Sabemos já nos divertir! Ah! (Repetição do Coro)- Nós hoje, às mil maravilhas, vamos decerto passar! Valsas, polcas e quadrilhas vamos dançar! Brincar! Folgar! ARRUDA - Vocês veio sozinha? ROSINHA - O Juca veio conosco; ficou atrás. LUÍS - Agradeço terem aceitado o meu convite. JOANINHA - Visitá-los era nosso dever de vizinhas... ROSINHA - O seu convite foi um excesso de delicadeza. JOANINHA - Senão uma amável repressão. BARÃO - Destarte o reio Mouro axim falaba, como dixe o noxo Camões. TODOS - Ah! Ah! Ah! MACHADINHO - Pois Camões disse isto? JOANINHA - Onde está Dona Miquelina, Senhor Arruda? ARRUDA- Tá lá dentro determinando a janta. (Chamando para dentro.) Ó Siá Miquelina? (Alguém responde lá dentro com um grito.) Ai vão as menina. ROSINHA - Com licença; vamos cumprimentá-la. AS MOÇAS - Vamos, vamos! OS RAPAZES - Minha senhoras? AS MOÇAS - Até já... Repetição - Nós hoje, às mil maravilhas, vamos decerto passar! Valsas, polcas e quadrilhas vamos dançar! Brincar! Folgar! (Saem as moças.) CENA XI ARRUDA, BARÃO, MACHADINHO, LUÍS, AUGUSTO e SILVA ARRUDA (Ao Barão.) - Venha cá, compadre; assente-se aqui e ouça. (Sentam-se ambos à esquerda e conversam baixinho durante toda a cena.) MACHADINHO - Precisamos divertir-nos. SILVA - Temos o Senhor de Val-de-vez. AUGUSTO - E as moças. LUÍS - Não falta nada. - Vou mandar preparar a música da fazenda: os negros dançarão o jongo. MACHADINHO - Não esqueçamos o nosso projeto. Está tudo assentado: levaremos o velho à corte na antevéspera do carnaval. LUÍS - Mas... MACHADINHO - Não há mas nem meio mas. O velho há de ir, asseguro. Levá-lo-emos para o Jardim Botânico e aí efetuar-se-á um jantar para festejar a nossa pretendida viagem à Lua, que será no domingo de entrudo. LUÍS - E depois?

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MACHADINHO - Tenho cá o meu plano. Obedeçam-me passivamente, e nos sairemos bem. Manda a carta que te ditei ao Secretário dos Netos da Lua, e inclui a que escrevi ao aderecista da Fênix. Isto deve ser feito hoje. LUÍS - Vou já mandá-la levar à caixa da estação. MACHADINHO - Mau! Manda-a levar por um próprio a seu destino. Não nos fiemos no Correio. LUÍS - Nesse caso, só amanhã poderá ir. Vou entender-me com o feitor a respeito da musicata, do jongo e do próprio que há de levar a carta. (Sai.) CENA XII ARRUDA, BARÃO, MACHADINHO, AUGUSTO e SILVA ARRUDA (Erguendo-se, ao Barão.) - Pois é isto, compadre: vou fazê uma grande viagem. Eu deixo vacê feito meu procuradô bastante, e há de dirigi isto por cá enquanto eu tivé fora. Se arguém me procurá... BARÃO - Encaixo-le este pedaxinho de noxo Camões: - Porém já xinxo xóis eram paxados...(Erguem-se.) ARRUDA (Dirigindo-se aos rapazes.) - O que faz vacês aí? Venhum pra dentro; vamo conversá coas moça. TODOS - Vamos lá, vamos! (Vão entrando em casa; saem as moças.) CENA XIII ARRUDA, BARÃO, MACHADINHO, AUGUSTO, SILVA, ROSINHA, JOANINHA e moças, depois LUÍS e negros, depois UM NEGRO ROSINHA - Como não quiseram honrar-nos com a sua companhia, vimos nós procurá-la. MACHADINHO (Baixo a Rosinha.) - A senhora é a rainha das belas. ROSINHA (Faceirando-se.) - Não me debique, moço. JOANINHA - Esperemos pelo jantar brincando algum jogo de prendas. AUGUSTO - Era a minha idéia. ARRUDA - O que há de ser? BARÃO - O Tempo-xerá... TODOS - Oh! (Risadas.) BARÃO - Então a caibra-xega! (Tira um lenço encarnado e tapa os olhos.) Eu xou a caibra! Eu xou a caibra! MACHADINHO (Tirando-lhe o lenço dos olhos.) - Nada... nada... BARÃO - Ai! TODOS - O que foi? BARÃO (Esfregando os olhos.) - Caiu-me rapé no olho! MACHADINHO - Não é nada. (O Barão pede a Arruda que lhe sopre o olho. Jogo de cena.) Vou ensinar-lhes um brinquedo da minha terra. Sentem-se todos e façam a roda. (Sentam-se todos, menos Machadinho.) Trata-se de organizar uma orquestra. Eu sou o regente. Toco violino. (A Rosinha.) E a senhora? ROSINHA - Flauta. MACHADINHO - O Barão, gaita de foles. O Senhor Arruda, trombone de vara. (Risadas.) A senhora? JOANINHA - Clarineta. MACHADINHO (Aos outros.) - Bumba. - Pratos. - Rabecão. - Tímbales. - Fagote. - Violeta, etc. (Distribui o nome de um instrumento a cada uma das pessoas presentes.) Quando eu imitar o meu instrumento, cada um imitará também o seu. Quando, porém, imitar gaita de foles, por exemplo, o Barão imitará o violino. O que não mudar de instrumento com a devida presteza pagará uma prenda. (Pede o rebenque do Barão e começa a imitar um regente de orquestra.) Um dois e três... Três é o sinal

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para começar... o Hino Nacional. Um, dois e três...! (Executam o hino brasileiro do modo acima descrito. O Barão atrapalha-se todo. Machadinho dá o sinal para parar. ) Senhor Barão, pague a prenda! BARÃO - Ixo é muito caro? Nã bim prebenido. (Risadas. cena viva e ruidosa.) MACHADINHO - Não é dinheiro. Dê um objeto de seu uso: logo será restituído. BARÃO - Tome lá. (Dá a japona que traz debaixo do braço. Risadas.) MACHADINHO - Isto é muita coisa! Um objeto que caiba dentro de um chapéu. BARÃO - Ahn... Tome lá um dos mous anelões. Olhe que ixo é oiro do Porto lexítimo de Vraga! (Risadas.) MACHADINHO - Agora cante cada um o que quiser. Um, dois e... três, (Confusão de vozes.) Dona Rosinha, sua prenda. (Rosinha dá-lhe uma flor e aperta-lhe a mão furtivamente.) Agora, a Chave. Um, dois e... três! (Cantam todos.) Senhor Arruda, a prenda! ARRUDA - Já sei, já sei, home. Não preciso aprendê. MACHADINHO - Não me entendeu... estou lhe pedindo a prenda. ARRUDA - Ahn... (Dá-lhe um objeto qualquer.) JOANINHA - Para não maçar, paguem todos. ARRUDA - Memo porque Siá Miquelina não tarda a chamá a gente pra janta. MACHADINHO - Paguem... paguem... (Todos dão-lhe objetos.) AUGUSTO - Vamos às sentenças. MACHADINHO (Tirando um objeto do chapéu e conservando-o fechado na mão.) - Dona Rosinha, dê a sentença. O que quer que se faça com o dono desta prenda? ROSINHA - Se for cavalheiro... (Pensa.) se for cavalheiro, servirá de banco de lavar roupa, e, se for senhora, suspirará no canto. MACHADINHO (Abre a mão e deixa ver o anel do Barão.) - É o senhor Barão. (Risadas.) BARÃO - Nã quero! Um home de minh'idade e varão a xervir de vanco de labare roupa! Nã quero! MACHADINHO - Vamos! Ponha-se de quatro pés! ROSINHA - Pois bem, recitará uma poesia. BARÃO - Ê não sou poeta... SILVA - Mas sabes o Camões de cor... AUGUSTO - Encaixe-lhe um pedacinho. TODOS - Então, então? Ora vamos, Senhor Barão! BARÃO - Pois bem. Para a xenhora que aí está tã vem axentada, bem a calhare este pedaxinho do noxo Camões: - Estabas, lind'Inês, posta em xoxego... TODOS - Fora! Não serve! BARÃO - Nã serve?! AUGUSTO - Isso é rococó! BARÃO - Pois antão... ARRUDA (Ao Barão.) - Antão, não, entonces... BARÃO - Pois antão bai isto. Canta e dança, sem acompanhamento de orquestra, ao tom da Cana Verde.) Ai, se tu fores ao mare pescare, pesca-m'uma laranjinha, ai, que x'ela fore ajeda, na tua mão é doxinha. Ai, ó, ai, ai, ó, ai! Quem escorrega, quem escorrega tamvém cai! TODOS - Ah! Ah! Ah!... Bravo! Muito bem! (Música. Luís entra precedido da banda de música da fazenda e seguido por um coro de negros do eito.) LUÍS - Interrompam a brincadeira! Lugar ao jongo! (Os brancos sobem para o alpendre.) Jongo

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CORO DE NEGROS- O vento no cafézá é forte cum'ele só; a gente fica afogada no meio de tanto pó. (Dançam batendo palmas.) MACHADINHO (Descendo do alpendre com os outros personagens.) - Atenção! Ouçam o programa dos pagodes de hoje! Final - Logo que jantarmos, pomo-nos de pé e, enquanto esperarmos, que venha o café, o S'or padre cura até noite escura havemos de jogar e palestrar AS MOÇAS - Logo que jantarmos, pomo-nos de pé e, enquanto esperarmos, que venha o café, o S'or padre cura até noite escura havemos de jogar e palestrar MACHADINHO - Mal se acendam velas para a sala, vão esticar as canelas todos que aqui 'stão. O piano usado hoje ficará bem desafinado, mais do que já 'stá! Já não estão na moda (me dirão vocês) nem fados de roda, nem cateretês; mas... deixem-se disso, e é pedir por mais! Caiam no serviço danças nacionais! Coro geral BRANCOS NEGROS Logo que jantarmos Logo que jantarem pomo-nos de pé põem-se de pé e, enquanto esperarmos e, enquanto esperarem que venha o café, que venha o café, o S'or padre cura o S'or padre cura até noite escura até noite escura havemos jogar lá irão jogar e palestrar! e palestrar! ARRUDA (Com ligeiro movimento de dança.) - Assim é que eu gosto de ver os rapazes!

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Aí, sim, Senhor! Trá lá lá! Trá lá lá! MACHADINHO (Imitando-o) - Não sabe o senhor de que somos capazes! Onde nós nos acharmos o prazer está! BARÃO (Dançando também) - Pesca-me uma laranjinha, se fores ao mar pescar... ARRUDA - Ai, que vontade esta minha! que vontade de dançar! MACHADINHO e as MOÇAS -En avant! sem mais demora En avant! ferva o cancã! Coro geral BRANCOS NEGROS Logo que jantarmos Logo que jantarem pomo-nos de pé põem-se de pé e, enquanto esperarmos e, enquanto esperarem que venha o café, que venha o café, o S'or padre cura o S'or padre cura até noite escura até noite escura havemos jogar lá irão jogar e palestrar! e palestrar! UM NEGRO (Entrando.) - Manda dizer sinhá que a janta pronta 'stá. CORO - A janta pronta está! ARRUDA - Já fortes pontadas sentia na pança! BARÃO - Que boa notícia pro pai da criança! Coro geral Já, com presteza vamos jantar Já, com presteza, vamos jantar Vamos pra mesa sem mais tardar! [Cai o pano] ATO SEGUNDO O teatro representa o exterior do botequim que se acha em frente ao portão do Jardim Botânico. À direita, o edifício, com a tabuleta Restaurant Campestre. À esquerda cerca rústica e portão com cancela. Ao fundo, bosque de bambus. Mesas e cadeiras de ferro, etc. CENA I PRIMEIRO CRIADO, SEGUNDO CRIADO e CRIADO (Os criados estão ocupados em arranjar uma mesa que está no meio da cena, repleta de acepipes, cristais, jarras com flores, etc.) CORO DE CRIADOS - Que belas iguarias!

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Não é todos os dias Que se vê tanto afã no Restaurant Vi melhor, vi pior, coisa assi' nunca vi! PRIMEIRO CRIADO (Mostrando ao segundo um peru de forno que traz num prato.) - Olá Trancoso, vem cá: vê tu como é cheiroso este peru! SEGUNDO CRIADO (Mostrando ao primeiro um presunto de fiambre que traz em outro prato.) - Sim, cheira muito, mas vê também este presunto que cheiro tem! Repetição do coro (Findo o coro, os criados, que têm acabado de arranjar a mesa, entram no botequim.) CENA II MACHADINHO e LUÍS LUÍS (Trazendo Machadinho pelo braço.) - Vem cá, vem cá... MACHADINHO - Espera... espera... (Quer voltar.) LUÍS (Trazendo-o à boca de cena.) - Mas, enfim, de que meio te serviste para fazer com que papai viesse à corte? MACHADINHO (Com volubilidade.) - Do mais simples: fiz-lhe ver que a ascensão só podia efetuar-se do Corcovado. Fiz-lhe grandes preleções sobre distâncias, etc. Ele a princípio hesitou, mas convenceu-se, afinal, de que era necessário ceder. Ainda assim impôs a condição que só viria na véspera da ascensão, e que eu partiria antes dele, imediatamente, para mandar construir o foguete. Esta conversa foi de madrugada; às seis da manhã estava eu de viagem. Ainda estavas dormindo; não quis acordar-te, e eis aí por que ignoravas em que pé estão as coisas. - Uf! que está quente hoje! (Vai a sair; Luís toma-lhe a passagem.) LUÍS - Apenas chegados ontem à noite, viemos da Estação para cá. MACHADINHO - Que é dele? LUÍS - Dorme. MACHADINHO (A meia voz) - Se visses! É um imenso foguete de papelão bronzeado, em cujo bojo existe um espaçoso compartimento, capaz de conter folgadamente seis pessoas. Tem seis janelas e uma porta, que fica na cabeça. O construtor saiu-se. Mandei fotografar o carro e o foguete. (Vai saindo) LUÍS (Retendo-o) - Para quê? MACHADINHO - Para convencer ao velho de que seu risco foi seguido à risca. Arrisquei só três mil réis com a fotografia. LUÍS - Então fostes ao Lopes? MACHADINHO - É o meu freguês. LUÍS - Pagaste? MACHADINHO - Arrisquei apenas, já disse: posso pagar ou não. - Os Netos da Lua hão de brilhar este ano! Caramba! LUÍS - Invejo este teu gênio inventivo! MACHADINHO - É para que saibas. (Vai saindo e para junto à mesa.) Este banquete foi mandado servir por ordem minha. Faz parte também do meu plano. LUÍS - Estou impaciente por ver em que dá tudo isto.

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MACHADINHO - Hás de ver. Hei de deitar um pouco de ópio no copo em que teu pai tiver de beber, o velho adormece... e verás o resto. (Vai a sair.) LUÍS - Mas, vem cá, filho: não haverá perigo? MACHADINHO - Não tenhas receio: é uma pequenina dose, que o fará dormir, só até a meia noite. (Vai a sair.) LUÍS - Onde diabo queres ir com tanta pressa?... Estás só... (Imita-o) MACHADINHO - Quero esperar essa gente. LUÍS - Que gente? MACHADINHO - Ah! Imaginas que este baltazar é só para nós três! Tinha que ver! Olha: além do Augusto e do Silva, hão de vir as repúblicas do Sousa, do Bento e do Guedes... A Sara... LUÍS - Que Sara? MACHADINHO - Aquela francesa do Hotel dos Príncipes, com quem o Fonseca anda a esbodegar a legítima materna. Vem também a Elisa, a Chiquinha, a Maroca da Rua do Senhor dos Passos... LUÍS - Ai, ai, ai! Não vá o velho desconfiar! MACHADINHO - Não desconfia não. As raparigas hão de portar-se bem. Darei as providências... (Vai a sair.) O Augusto e o Silva, coitados! andam na faina desde pela manhãzinha: estão preparando a sala da sociedade para o baile de hoje, que também entra no programa. (Vai a sair.) Ah! vi a Zizinha e dei-lhe esperanças... LUÍS - Obrigado, meu bom amigo, obrigado. MACHADINHO - Agora, é abrir vela aos tufões... e o resto à sorte! (Vai a sair, entra Arruda.) CENA III MACHADINHO, LUÍS e ARRUDA ARRUDA - Bons dia, seu doutô; cumo vai a coisa? LUÍS - A benção, papai? ARRUDA - Deus Nosso Senhor Jesus Cristo te faça santo. MACHADINHO - O foguete está pronto e já lá está no Corcovado. Temos de partir às quatro horas da tarde. Foram precisos cento e cinqüenta burros possantes para levaram-no até lá! ARRUDA - Ora não estar lá eu! E onde arranjou tantos doutô, seu burro? Oh! me descurpe, me descurpe, moço. A gente às vez se engana! (Emendando.) E onde arranjou tantos burro, seu doutô? MACHADINHO - Com a Companhia dos Bondes Marítimos. ARRUDA - Ahn... MACHADINHO - O foguete foi conduzido num carro especial que mandei construir. Invenção minha! Veja isto. (Dá a fotografia a Arruda que deita os óculos e examina-a atentamente.) - Veja como está catita! Levamos dezesseis bandeiras nacionais, hein? É isto que aqui se vê! Temos dentro uma sala e uma alcova. A importância do saque que me mandou está quase inteiramente gasta. Uf! que calor! LUÍS - Insuportável. ARRUDA - Não faz má... Sou podre de rico e quero i à Lua! MACHADINHO (Dando um documento a Luís, á parte.) - Aqui tens o saque: guarde-o. (Alto.) De hoje a dois dias estaremos na Lua, se não sobrevier no sistema planetário algum impertinente fenômeno atmosférico que desvie o foguete do seu curso! ARRUDA - Fala que nem um livro. MACHADINHO - Senhor Arruda, mandei preparar este banquete, a que só hão de assistir notabilidades científicas. Vem o sábio naturalista Flowers e sua senhora, o Barão e a Baronesa do Canal do Mangue... ARRUDA (Atalhando-o.) - Convidou o Júlio Verne? MACHADINHO (Prontamente.) - Também, também! (Gesto de Luís.) Oh! mas aquele Verne é um malandro! Virá ou não! ARRUDA (À parte.) - O diabo é se o Santos sabe que vim à corte. pega fogo na canjica. (Alto.) Ó Lulu, sobre o que nós falemo, bico, hein? Senão ponho um ovo quente na língua. LUÍS - Esteja descansado, papai. ARRUDA - Entonces tá tudo pronto, não?

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MACHADINHO - Tudo. ARRUDA - Ora viva Deus! Canto Zás! Trás! Vou viajar. Trás! Zás! pelo ar! Que prazer eu vou ter! Zás, trás, zás! (Durante o canto entram Augusto e Silva) TODOS - Zás, trás! Que prazer Trás, zás! vamos ter! CENA IV MACHADINHO, LUÍS, ARRUDA e SILVA ARRUDA - Sejem bem aparecido! (Apertos de mão.) MACHADINHO - Então já? SILVA - Viemos de carro... Encontramos no caminho uma troça... MACHADINHO (Tossindo.) - Sim... sim... o Barão e a Baronesa... o Verne... (Sinais de inteligência.) Estão se demorando! AUGUSTO - O bonde estava descarrilhado. (A Arruda.) Vimos despedir-nos. SILVA - Vamos deixá-los ao bota fora. LUÍS - Obrigado. AUGUSTO - Mas como está hoje o dia quente! MACHADINHO (A Arruda.) E isso é uma vantagem para a nossa viagem. ARRUDA - Tá bom, tá bom... Fiquin conversando. Eu vou dá um giro. Quero vê estas parage. (Sai) CENA V MACHADINHO, LUÍS, AUGUSTO e SILVA TODOS (Menos Luís.) - Viva a pândega! MACHADINHO - Somos uns danados! AUGUSTO - Sabe que as meninas de Ubá mandaram-nos um "nós, abaixo assinados", pedindo para nos demorarmos mais alguns dias? Como era para a felicidade daquele povo, ficamos. SILVA - A Dona Rosinha mandou-te muitas lembranças. Falando seriamente, aquela moça está extraordinariamente apaixonada por ti. MACHADINHO - Deixa-te de pilhérias. SILVA - É verdade ou não é. Luís? LUÍS - Pelo menos parece. MACHADINHO - O que parece é que vocês querem se divertir à minha custa! TODOS - Oh! AUGUSTO - Somos incapazes. MACHADINHO - Está bem, está bem! (Ouve-se rodar um bonde.) Aí chega o bonde. (Consultando o relógio.) Como vem atrasado.

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CENA VI MACHADINHO, LUÍS, AUGUSTO, SILVA, SARA, CHIQUINHA, FONSECA, cocotes, estudantes. (Os recém chegados entram às gargalhadas, apontando para Fonseca que vem todo sujo de lama e com o chapéu amarrotado.) Arieta SARA -'Stou furiosa, muito nervosa- pudera não! De estar zangada, desesperada tenho razão. Três horas - onde? - dentro de um bonde! Oh! nunca mais. (A Fonseca) - De cá os sais! (Fonseca dá-lhe um vidrinho de sais que ela aspira.) De mais a mais, o meu Fonseca caiu no chão. Que trambolhão! Apareceu-me uma enxaqueca! Ó sapristi! Que dor aqui! (Leva a mão à cabeça.) Ah! 'Stou furiosa, etc. MACHADINHO (A Fonseca.) - O que foi isso, ó meu calouro? FONSECA - Que viagem, meu amigo, que viagem! O diabo do bonde descarrilhou três vezes, e, se não fosse isso, chegávamos mais cedo. A terceira vez, desci para ajudar os homens que estavam a querer deitar o carro nos trilhos... e, quando ia subir, escorreguei e caí... fiquei neste estado. TODOS - Ah! Ah! Ah! SARA - Pauvre Petit! (À parte, beliscando-o.) taisez-vouz done; voyez qu'on se moque de vouz! FONSECA - En bien... Ne te fâche pas. SARA (A Luís.) - Recebi o seu bilhete... et me voilá! O Machadinho disse-me que você instava pela minha vinda. MACHADINHO - Fazia questão de gabinete. (Trepando a uma cadeira.) Minhas senhoras e meus senhores, atenção! TODOS - Hum... hum.... MACHADINHO - Pior! SILVA - O assunto é grave! AUGUSTO - O negócio é sério! TODOS - Atenção! MACHADINHO - Não levem o negócio de flauta. É muito sério o que lhes vou dizer. Vocês todos, rapazes, sem exceção de um só, são notabilidades científicas! Respondam pelos nomes que eu lhes der. E vocês, meninas, são as senhoras destes senhores. Todos vocês são bastante inteligentes para me não deixar ficar mal. Ó Fonseca, tu és o Barão do Aterrado. FONSECA - Está dito. (A Sara.) En ce cas, tu es la Baronesse. SARA - Oh! Mon Dieu, quel français que tu me chantes lá! CHIQUINHA - Eu o que sou? MACHADINHO (Descendo da cadeira.) - Logo saberás. CHIQUINHA - Eu quero ser condessa. MACHADINHO - Está bem, está bem... Tomem sentido nos nomes pelos quais forem apresentados. FONSECA - Apresentados? A quem? MACHADINHO - Ao Senhor Arruda! SARA - Qu'est-ce que c'est ce Senhor Arruda?

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MACHADINHO - Verão... verão...(A Fonseca.) Ó Barão, não vá entornar o caldo... Tenho medo de você... FONSECA - Não há novidade. Pas de nouveauté! MACHADINHO - Agora o riso e o prazer! SARA - Et pour commencer... (Chamando) Garçon, du champagne! LUÍS (A Machadinho.) - Olha que papai pode vir... MACHADINHO - Vou prevenir que nos previnam. (Um criado traz champanha, Machadinho fala-lhe baixinho.) SARA - Encham os copos! TODOS - Viva! (Enchem-se as taças de champanha.) MACHADINHO (De taça em punho.) - Um brinde! TODOS (No mesmo.) - Viva! MACHADINHO - Ao nosso anfitrião! E há de ser recitado! TODOS - Apoiado. MACHADINHO (Recita.) - Quando a taça espumante transborda, a nossa alma remonta-se ao céu! Quem viveu sem tomar uma mona foi um odre que nunca se encheu! TODOS - Não serve! Não serve! A cantora! Coro Geral CORO GERAL - Esqueçamos e bebamos! Beber! Felizes sejamos e toca a beber! SARA - É nisso que consiste o prazer! CORO - Beber! SARA -Amigos, a taça rechaça a desgraça! CORO - Beber! MACHADINHO - Beber até cair! Beber até dormir! CORO - Beber! Esqueçamos e bebamos! Beber! Felizes sejamos e toca a beber! MACHADINHO - Agora, submeto à casa uma proposta! SARA - Voyons! MACHADINHO - Um passeio na lagoa antes de jantar. Quem rema? Temos um escaler. AUGUSTO - Todos nós remamos! TODOS - Apoiado! Todos nós! Vamos! Repetição do coro. (Saem todos pelo fundo.) CENA VII ARRUDA, [SARA e CORO] (Durante as cenas que se seguem os criados deitam o jantar na mesa.) ARRUDA (Entrando.) - Pois, senhores, o Jardim Botânico é isto? Uma coisa tão falada nas foia? É com aquilo que se gasta tantos cobre? Lá na fazenda há muito capim mió que aquele rasteiro que tem

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ali! Tíbio! Eu pensei que era outra coisa! Vi umas erva-de-santa-maria, umas flor...(Tomando um periódico que está sobre a mesa.) Vamos a vê que as foi diz de novo. (Lê, deitando os óculo. Ouve-se fora o seguinte:) Barcarola SARA -Minha barquinha dourada, que vento queres levar? De dia, vento da terra; de noite, vento do mar. CORO - -Minha barquinha dourada, que vento queres levar? De dia, vento da terra; de noite, vento do mar. ARRUDA (Lendo com dificuldade.) - Certa sociedade carna... carnavalesca... (Não sei o que é) prepara um chistosa crítica à célebre Viagem à Lua! (Zangado, arremessando o periódico.) Que desaforo! É inveja! É inveja só! CENA VIII ARRUDA e LUÍS LUÍS - O que é que tem, papai? ARRUDA - Lê. Preparum uma crítica à nossa viaje! Vão criticá o diabo que os carregue, cambada! Eu só queria sabê quem foi! LUÍS- Não pense nisso, os seus convidados já chegaram. ARRUDA - Que dê eles? LUÍS - Vossemecê não estava. Enquanto se deitava o jantar, foram dar um passeio pela lagoa. Vá Vossemecê vestir a casaca. É de etiqueta. ARRUDA - Com este calô... Enfim... (Vai saindo e volta.) Havemo de mostrá a esses biltre das foia que vamos à Lua! (Sai) CENA IX LUÍS [só] [LUÍS] Está a chegar o desenlace desta farsa, e, no entanto, tremo! Não quis acompanhar esses rapazes, para poder combater algum obstáculo imprevisto! Oh! papai, perdoa! Tu eras capaz de fazer o mesmo a vovô por via de mamãe! Coplas I Capaz de tudo sou por ela, por Zizinha, meu doce bem; inda não vi, nem viu ninguém mulher assim, mulher tão bela! Seus olhos têm da noite a cor, mas brilham como o sol sereno... Para conter tamanho amor, Cuido que meu peito é pequeno! Ah! meu pai, meu bom papai, os meus embustes perdoai! II Os meus suspiros são tamanhos quando me ponho a imaginar, que pra com ela me casar é só mandar correr os banhos! Eu de ventura hei de morrer

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no dia em que sair da igreja levando assim... (Menção de dar o braço.) Minha mulher, rubra, da cor de uma cereja! Ah! meu pai, meu bom papai, os meus embustes perdoai! CENA X LUÍS, MACHADINHO, AUGUSTO, SILVA, FONSECA, SARA, CHIQUINHA, estudantes, criados e cocotes MACHADINHO - Esplêndido passeio! SARA - Magnifique... Uf! mais il fait chaud! AUGUSTO - A mesa está posta. SILVA - Tenho uma fome! MACHADINHO - Esperemos pelo Senhor Arruda. Ah! ele aí vem... CENA XI OS MESMOS e ARRUDA ARRUDA (Entrando.) - Senhoras donas... senhores... MACHADINHO - Apresento-lhes o nosso anfitrião! ARRUDA - Não me mude o nome, seu moço. Manuel Arruda, criado de Suas Senhoria...(Cumprimentam-no; atrapalham-no.) TODOS - Senhor Arruda! - Viva! - Folgo de conhecê-lo! - Sou seu criado! - etc. ARRUDA (Satisfeito.) Obrigado, minha gente. MACHADINHO (Apresentando-lhes Fonseca e Sara.) - Sua Excelência, o Senhor Barão do Aterrado e Sua Excelentíssima Senhora Baronesa. (Grandes mesuras de Fonseca e Sara.) O célebre Flowers, de quem já tive a honra de falar-lhes... A Senhora Condessa... CHIQUINHA - Marquesa... Marquesa... MACHADINHO - Ah! é verdade. Foi promovida esta noite... A Senhora Marquesa da Cochinchina. ARRUDA - Da Cochinchina? Tenho lá na fazenda muito boas galinha da sua terra. MACHADINHO (Apresentando-lhe um estudante baixo.) - El Señor Dom Ramón Oribe Fuentes Guadaquivir de la Trindad Consuelo, Ministro de la Patagonia! ARRUDA - O nome é mais comprido que o dono; Vacê memo tem esse nome todo! Safa! Mas por que é que a gente tá assim em pé? Vamos comer... (Sentam-se todos à mesa.) Eu quero falá! TODOS - Fale! Fale! Pois não!... ARRUDA (Erguendo-se.) Eu sinto que não posso dizê o que tenho pra dizê porque as coisa...(Mudando de tom, ao suposto Ministro da Patagônia.) Vacê memo tem esse nome tão comprido? Eu não! Eu cá sou o Manuel Arruda só; cando eu nasci, era muito pequenino; por isso meu pai não quis me dá nome comprido. TODOS - Ah! Ah! Ah! - Volte ao assunto! - Entre na matéria! - Não admito! ARRUDA - Isto foi para me sarvá, porque eu tinha me atrapaiado todo. (Outro tom.) Minha gente... (A Machadinho.) Ah! é verdade: O Júlio Verne veio?... MACHADINHO - Ainda não reparei! Está por aí o Júlio Verne? Oh! Júlio Verne! (Gargalhadas.) Qual! Não veio! Aquilo é um malandro! (Dizendo isto tem deitado ópio no vinho de Arruda.) ARRUDA - Lulu, expilica essas coisa a esta gente. LUÍS - Minhas senhoras e meus senhores, papai... MACHADINHO - Não! Falo eu! ARRUDA - Vacê tá fechando a boca do rapaz! SARA - Ah! qu'il fait chaud! ARRUDA - Fechou, sim senhora, e o Lulu não pôde falá. (À parte.) É bem boa... MACHADINHO - O Senhor Arruda, o Luís e eu agradecemos o terdes honrado... ARRUDA - Ter desonrado! A quem? (Risadas.)

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MACHADINHO -... o terdes honrado este banquete com as vossas presenças. ARRUDA - É tal e quá! Muito bem! MACHADINHO - Na hora em que a pátria vai ser nobilitada pelo arrojado cometimento de um de seus filhos, vós, que não vos alistastes nas fileiras dos incrédulos, vinde dar palmas ao talento. Eu brindo, em nome do Senhor Arruda, o ilustrado auditório! TODOS - Hip! Hip! Hurra!... SARA - Ah! qu'il fait chaud! ARRUDA - Sinto-me um pouco pesado... MACHADINHO - Oh! mas é verdade!... Está um calor insuportável! Estou alagado! AUGUSTO - Uf! Quem pode comer assim?... MACHADINHO - Interrompamos o banquete; talvez refresque o tempo. (Levantam-se todos da mesa e descem à cena. Arruda levanta-se com custo; está a cambalear de sono.) Final CORO - Fiquemos em colete, e, co calor que está, deixemos o banquete! Logo reviverá! (Durante o coro, todos, menos Arruda, tiram os casacos.) MACHADINHO (Recebendo de um criado um maço de ventarolas fechadas.) - Atenção. CORO - Atenção! MACHADINHO (Distribuindo as ventarolas pelos personagens.) - Amigos meus, o calor pressentindo... ARRUDA - Estou quase caindo... MACHADINHO - ... trouxe estas ventarolas. Mágicas são toquem nas molas que nos cabos estão; incontinenti abrir-se-ão! (Todas as ventarolas, que são comicamente exageradas, abrem-se como por encanto.) ALGUNS - Oh! meu Deus! que calor! Que horror! Que tempo abrasador! LUÍS (À parte.) - Coitado de papai... ARRUDA - Meus senhores, estou cai não cai! SARA - Ah! qu'il fait chaud! ALGUNS - Tudo alagado está! Eu alagado estou! ARRUDA - Mas esta não é má! Não há que vê: tou pronto! Não bebi quase nada e já me sinto tonto! CORO - Que grande calor! Que forno, Senhor! MACHADINHO - Fa caldo ! Ai, que calor abrasador! Escaldo! Isto é, talvez, noventa e três! CORO - Fa caldo ! Ai, que calor abrasador! Escaldo!

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Isto é, talvez, noventa e três! I MACHADINHO - É pra dar cavaco! Pois da festa no melhor o calor, que é velhaco, nos vence pelo suor! Mas mal o tempo mude, vamos pra mesa outra vez! Olá! Deus nos ajude! Caramba! é noventa e três! Oh! que calor abrasador! CORO - Uf! Uf! Fa caldo ! Ai, que calor abrasador! Escaldo! Isto é, talvez, noventa e três! ARRUDA - Com sono pra cá não vim; já dono não sou de mim! II MACHADINHO - Graças às ventarolas, com alguma viração... Este calor é um bolas! Oh! que maldita estação! Nem mesmo alguns sorvetes se encontram no restaurant. Calor, tu nos derretes, se duras até amanhã! Oh! que calor abrasador! CORO - Uf! Uf! Fa caldo ! Ai, que calor abrasador! Escaldo! Isto é, talvez, noventa e três! ARRUDA - Tragam-me já uma cadeira! De sono tou mesmo a caí! (Trazem-lhe uma cadeira, na qual ele cai sentado.) CORO - De sono está mesmo a cair! ARRUDA - Que vinho mau! Que brincadeira! Quero dormi! Quero dormi! CORO - Pode dormir! Pode dormir! (Arruda adormece.) Uf! Uf! Fa caldo !

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Ai, que calor abrasador! Escaldo! Isto é, talvez, noventa e três! [Cai o pano] ATO TERCEIRO O teatro representa a sala da sociedade carnavalesca Netos da Lua, no domingo gordo. Mobília suntuosa, piano, lustre, jarras, flores, bandeiras, etc. Três janelas de sacada ao fundo, deitando para a Rua do Visconde do Rio Branco. Na primeira porta da esquerda, um escudo azul e branco, tendo no centro, em diagonal as iniciais N. L., e encimado por duas carrancas enlaçadas com um pano verde. CENA I AUGUSTO, SILVA, DOUTOR CÁBULA, FONSECA, SARA, CHIQUINHA, e máscaras, depois MACHADINHO e LUÍS (Ao levantar o pano, todos os que se acham em cena dançam freneticamente uma valsa, acompanhada pela orquestra. Ardem fogos-de-bengala nas sacadas. O Doutor Cábula é o único que não se acha fantasiado e mascarado.) TODOS (Depois da valsa, extenuados e tirando as máscaras.) - Vivam os Netos da Lua! Vivam! Vivam! DOUTOR CÁBULA (Subindo a uma cadeira.) - Meus filhos e filhas! (Bate palma.) Atenção! (Faz-se silêncio.) Nas lutas, nas terapêuticas polares e essenciais dos sentimentos aquosos, nas nevroses contemplativas das explosões hodiernas, retumbam os desmoronados cimentos das convulsões que produzem os infinitos cataclismas sociais. Et ego vacueretes mea tibi ajaceo. Santo Agostinho, capítulo terceiro, título quarto, artigo nono. (À parte.) Que chorrilho! (Alto.) Nas idéias principais à absorção conscienciosa dos raios solares, cifram-se os tríduos confidenciais dos conciliábulos meditabundos dos desenvolvimentos gerais, das magnitudes do nosso partido. - Não! não há partidos! a banca é lisa! TODOS - Entre na questão! DOUTOR CÁBULA - Moderai os ânimos esquentados, meus filhos: ira perturbere regulamentum mente in aquare vobis. Santo Inácio de Loiola, capítulo sétimo, parágrafo décimo do Regulamento dos Bondes da Vila Isabel! TODOS - Muito bem! Ah! Ah! Ah! DOUTOR CÁBULA (Sempre com extrema volubilidade.) - A decrepitude senil de meu crânio vetusto resolve a algidez dos rijos materiais à contradição palpável dos princípios imutáveis e perenes da indústria manufatureira dos abacaxis. TODOS - Ah! Ah! Ah! Bravo! DOUTOR CÁBULA - Ride, ride...risum est apetitum carnivoros comedere. (Isto é meu) A aurora dos tempos sublimes dos areópagos indefiníveis... AUGUSTO - Não sejas amolador, ó Cábula! Sai daí. (Dá um pontapé na cadeira e o Doutor Cábula cai no chão.) DOUTOR CÁBULA (Erguendo-se.) - Que cábula! SILVA (Saindo de uma das sacadas, onde tem estado desde que terminou a valsa.) Aí vem o Machadinho: conheci-o pelo andar. TODOS - O Machadinho! -Ainda bem! - Já tardava! - etc. CORO - Oh! que prazer! Ele aí vem! Nós vamos rir, pois jeito tem pra divertir! vamos todos sem demora

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o amigo receber agora. AUGUSTO - Que novidade nos trará? DOUTOR CÁBULA - Aposto que rir nos fará! AUGUSTO - Temos panos para mangas. DOUTOR CÁBULA - Frandulagens, bruzundangas. CORO - Eis que ele aí vem, Luís também! (Entram Machadinho e Luís fantasiados também.) Rondó e Coro MACHADINHO - Meus folgazões, meus foliões, finalmente aqui nos tem! Vamos ver hoje quem tem garrafas pra vender! Ouvi, meus amigos, da festa os artigos: Primo: quem deixar de rir e folgar levará sopapos; em papos, em papos de aranha andará; suspenso será! Secundo: é vedado brincar mascarado; intrusos então se introduzirão. Tércio: mui respeito se deve ao sujeito velhote que está dormindo acolá. Quem estes artigos infringir! castigos severo terá; punido será. É bom haver ordem, pois qualquer desordem não pode abonar quem a praticar. - Meus folgazões, meus foliões, finalmente aqui nos tem! Vamos ver hoje quem tem garrafas pra vender! CORO - Os folgazões, os foliões, finalmente aqui os tem! Vamos ver hoje quem tem garrafas pra vender!

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MACHADINHO - Toca para a sala de jantar. Está posta a ceia. Aviem-se que preciso de vocês. TODOS - Viva o Machadinho! DOUTOR CÁBULA (Ao Machadinho.) - Eu te abençôo do fundo do meu estômago. (Saem todos menos Machadinho e Luís. Música na orquestra durante a saída.) CENA II MACHADINHO e LUÍS MACHADINHO (A Luís, que entrou no gabinete da direita e saiu logo.) - O velho? LUÍS - Ainda dorme. Está ali. MACHADINHO - No Necrotério, sei. LUÍS - Necrotério? MACHADINHO - Necrotério aqui é o lugar em que se cozem as monas. LUÍS - Mas papai não é precisamente uma mona! MACHADINHO - Ninguém disse tal. LUÍS - Coitadinho de papai. MACHADINHO (Arremedando-o.) - Coitado de papai! (Naturalmente.) Então, rapaz? Queres chorar? LUÍS - Não, mas quando me lembro que o metemos nestes assados sem consciência sua... MACHADINHO - Ora, ora, que novidade! Se ele soubesse de tudo cá não vinha. Bem sabes que era preciso fazer o que se fez. O velho acorda aqui, em pleno baile carnavalesco. O carnaval é coisa nova para ele. Supõe-se, fazemo-lhe supor-se, na Lua. Nada receies: eu me encarrego de desculpar-te. LUÍS - Perdoará ele o havermo-lo enganado? abusado de sua boa fé? MACHADINHO - Deixa-te de asneiras! Olha que és um maricas! Como diabo, a não ser assim, havíamos nós de carregar com teu pai para a corte e colocá-lo em frente do velho Santos, seu futuro sogro? Ah! escreveste-lhe? LUÍS - Escrevi. Pedi-lhe que se achasse à meia noite aqui, e fantasiado. (Entra o Doutor Cábula.) MACHADINHO - Quem levou essa carta? LUÍS - O Cábula. CENA III MACHADINHO, LUÍS e DOUTOR CÁBULA DOUTOR CÁBULA - Falavam de mim? MACHADINHO - Entregaste a carta do Luís? DOUTOR CÁBULA - Em mão própria. O tal teu futuro sogro é um velho bem cabuloso. Enquanto lia a carta, deu-me uma dúzia de palmadinhas na barriga. Mas dei-lhe os contras. LUÍS - Obrigado, meu bom amigo, ser-te-ei eternamente grato. MACHADINHO (À parte.) Temos facada com certeza. DOUTOR CÁBULA (À parte.) - Vou dar-lhe o plano. (Alto.) Ó Luís, és homem para trinta mil-réis? Quero fazer uma vaca de sessenta... MACHADINHO (À parte.) - O que dizia eu? LUÍS (Dando dinheiro ao Doutor Cábula.) - Aqui tens. DOUTOR CÁBULA - Obrigado. Em quanto estamos? LUÍS - Nós temos contas. DOUTOR CÁBULA - Então dá cá mais vinte, para fazer cinqüenta... LUÍS - Pois não. (Dá-lhe mais dinheiro.) DOUTOR CÁBULA (À parte.) - Estou arrependido de haver pedido tão pouco. (Alto.) Toma nota! Cinqüenta mil réis! Depois não quero dúvidas no pagamento... Vou levar a banca à glória em três relances e meio. (Vai saindo.) Olha, depois não andes a te esconder de mim, para evitar o pagamento, hein? (Sai. Durante a cena que se segue, ouvem-se vozerias, brindes, etc.)

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CENA IV MACHADINHO e LUÍS MACHADINHO - Eu sabia que aquilo era tiro pronto. LUÍS - Não importa; é um aliado poderoso que compramos por bem pouco. MACHADINHO (Consultando o relógio.) - Faltam apenas dez minutos para a meia-noite. Sangue frio, meu amigo. Mune-te de bastante sangue frio, embora o tenhas de ir buscar a algum açougue. LUÍS - Bem; eu vou... MACHADINHO (Marchando vivamente.) - Ao açougue? LUÍS - Não... MACHADINHO (À parte.) - Capaz era ele disso! LUÍS - Vou esperar o Santos à porta da rua. Toma sentido que os rapazes não façam alguma com o papai. MACHADINHO - Vá descansado. CENA V [MACHADINHO e DOUTOR CÁBULA] [MACHADINHO] - É muito tolo, coitado, mas afinal de contas é uma pérola! Que culpa tem ele que nascesse Arruda? Outro qualquer não consentiria que a seu pai fizessem tanto, mas julga naturalíssimo estar tudo por amor da sua Zizinha. Mas eu, que não sou da família, não tenho escrúpulos: trato de divertir-me o mais que posso e, ao mesmo tempo, auxiliar a realização dos sonhos dourados de um amigo. (Dá meia-noite.) São horas. (Chamando.) Ó Cábula! Cábula! Augusto! Silva! DOUTOR CÁBULA (Dentro) - Não me encabules! MACHADINHO - Venham cá. (Entra, Augusto, Silva e o Doutor Cábula.) CENA VI MACHADINHO, AUGUSTO, SILVA e DOUTOR CÁBULA DOUTOR CÁBULA (Entrando por último.) - Ora sebo! Lá se foram a vaca, os bezerros e tudo quanto Marta fiou. Estou reduzido a uma fichinha de duzentos e cinqüenta réis. Um maço de cigarros. Nunca chamem por mim quando eu estiver acompanhando alguma costela, porque é tiro e queda! Ela quebra logo. COPLAS I Voto de não jogar já fiz; mas, ó razão, de mim te apartas! Convicto estou: não sou feliz... Vício fatal! Malditas cartas Fico maluco por um triz, se alguma coisa apanho; perco outra vez; peço ao Luís... Perco o que ganho e o que não ganho! Mas, agora? Nunca mais! Desta vez prometo: noutra não me meto! Nunca mais! Sim! Dito está! Não jogarei jamais! II Quando o parceiro as cartas deu, na mesa estava uma remissa; joguei... e o meu dinheiro, ó Céu! foi - fogo viste lingüiça! -

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Mas um consolo tenho eu (Pobre de mim sem tal consolo!): Não jogo nunca o que é meu, mas do Luís, qu'inda é mais tolo... Mas, agora? Nunca mais! Desta vez prometo: noutra não me meto! Nunca mais! Sim! Dito está! Não jogarei jamais! (Consigo.) Mas se eu tentasse a desforra? (A Machadinho, Augusto e Silva, que conversam entre si.) Qual de vocês aí é homem para cinco bodes? MACHADINHO - Nenhum. AUGUSTO - Ora vai-te catar! DOUTOR CÁBULA (a Silva.) - Não tens aí dois pelintras disponíveis. (Silva vai para dar-lhe dinheiro; Machadinho pega-lhe no braço.) MACHADINHO - Não estejas a alimentar vícios! DOUTOR CÁBULA - Não impeças uma boa ação, menino! MACHADINHO - Venham daí. Ajudem-me a conduzir para aqui o pai do Luís. (Entra no quarto da direita, acompanhado por Augusto e Silva.) DOUTOR CÁBULA (Refletindo.) - Decididamente não jogo mais! Mas... mas deixem lá que uma desforra tem seu sabor! Onde o diabo hei de arranjar dez tostões? (Os rapazes voltam, trazendo Arruda a dormir sentado em uma poltrona e vestido de bombeiro de Nanterre.) MACHADINHO - Bem. Agora Silva, tu coloca-se àquela porta e, tu, Augusto, àquela outra. Não deixem entrar ninguém, sem que lhes dê sinal, e sobretudo não apareçam. O velho pode conhecê-los. O sinal é um assobio. AUGUSTO e SILVA - Entendido. (Vão colocar-se, um à direita, outro à esquerda e desaparecem no correr da cena. Machadinho tira do bolso um cortiça queimada, vermelhão, etc. e pinta o rosto de Arruda, ajudado pelo Doutor Cábula.) DOUTOR CÁBULA - Que cara cabulosa! MACHADINHO - Estes bigodes e estas sobrancelhas dão-lhes uma graça! DOUTOR CÁBULA - Isto é uma cara de azar. MACHADINHO - Pronto! (O Doutor Cábula com um pedacinho de papel enrolado faz cócegas no nariz de Arruda.) Mais respeito! É o pai de um amigo! DOUTOR CÁBULA (Com solenidade cômica.) - Respeitemos o nariz da cara do pai de um amigo! MACHADINHO - Agora, atenção! Vou despertá-lo... DOUTOR CÁBULA - Cuidado... MACHADINHO - Não vás dizer alguma tolice. Estás a par da situação. Tento na boca! (Tira um vidrinho da algibeira e faz com que Arruda lhe aspire o conteúdo.) ARRUDA (Desperta, esfrega os olhos, espantado em redor de si.) - A mode que senti uma infulenização no sangue! Onde estou? MACHADINHO - Estamos na Lua! ARRUDA (Dando um pulo.) - Hein? Entonces sempre é verdade? (Encaminhando-se para uma das janelas.) Que rua é esta? DOUTOR CÁBULA - É a Rua do Visconde do Rio Branco. MACHADINHO (Baixo ao Doutor Cábula.) - Então, foi abrires a boca e dizeres asneira! DOUTOR CÁBULA - Não... é... é... ARRUDA - Entonces! O Paranho já é conhecido na Lua! MACHADINHO (Tomando o braço de Arruda.) - Não chegue à janela, Senhor Arruda! ARRUDA (Reconhecendo-o.) - Ah! é vacê, seu doutô? Mas não chegue à jinela por quê? MACHADINHO (Mostrando-lhe o traje, misteriosamente.) Pois não vê? ARRUDA (Extremamente surpreso por se ver vestido de bombeiro.) - Que vestimenta é esta? Eu não sou sordado! Quem me vestiu assim? Mangarum comigo! MACHADINHO - Eu lhe explico. Não mangaram tal. O nosso foguete caiu num quartel de bombeiros da Lua, e os trajes que trazíamos foram todos confiscados para o museus da pálida Diva.

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ARRUDA - Entendo... entendo... e me botarum esta vestimenta pra sarvá as conveniência sociá... Ah! Ah! Ah! Quê dê Lulu? MACHADINHO (Com mistério.) - Chut! DOUTOR CÁBULA (Que tem acompanhado todos os movimentos de Machadinho no mesmo.) - Chut! ARRUDA (Mistificado.) - Que diabo de especulação é esta? MACHADINHO - O Lulu agora é o rei da Lua e eu sou o seu primeiro ministro. O senhor é o pai de Dom Luís I. (Doutor Cábula faz grandes cortesias a Arruda.) ARRUDA (Passado o grande pasmo que lhe causaram as palavras de Machadinho e as cortesias do Doutor Cábula.) - Quê dê Lulu? MACHADINHO - Sua Majestade está no Observatório conversando com as estrelas; não pode receber nem mesmo seu próprio pai. ARRUDA - Iremo logo mais. (Coordenando as idéias.) Mas... que diabo! parece que vim dromindo! Não vi memo a viaje. MACHADINHO - O Senhor Arruda tem uma natureza fraquíssima. Quando embarcou, parece que algumas gotas de vinho que bebeu no Restaurant do Jardim Botânico lhe havia subido à cabeça, e depois a rarefação do ar nas camadas interplanetárias causou-lhe uma síncope, cujo fenômeno as ciências naturais explicam muito facilmente. Chegamos há três horas, depois de dois dias de viagem, e só agora eu e este senhor, nosso companheiro de viagem, conseguimos despertá-lo1 ARRUDA (Ao Doutor Cábula.) Ah! vacê veio com nós? DOUTOR CÁBULA - Acidentalmente. MACHADINHO - Este é o célebre professor aeronauta elétrico... (Cortesias do Doutor Cábula.) ARRUDA - Ahn... Conheço muito! A roupa dele não foi pro museu. MACHADINHO -... o muito sábio Doutor Humboldt Agassis Levington Lesseps X.P.T.O. London... ARRUDA - Vacê só me apresenta gente cum nome de légua e meia! MACHADINHO (Continuando a apresentação, enquanto o Doutor Cábula desfaz-se em exageradas mesuras.) - ...Ilustre americano muito conhecido em todo o Universo por seus inúmeros e importantes descobrimentos! ARRUDA - Pois seu Assis... Assis foi único nome que entendi... DOUTOR CÁBULA (Com exagerada amabilidade.) - Agassis... Agassis... ARRUDA - Aguassis... Estimo conhecê-lo... Lá estamo às orde... (Não sabendo para que lado apontar, para iniciar a situação da sua fazenda.) ... lá...Espere! Para onde fica a fazenda? Pra que lado fica Ubá?... Ah! Deve ser pra baixo! (Apontando para o chão.) Lá estamo às orde de Sua Senhoria.. lá em baixo, em Ubá! DOUTOR CÁBULA - Muito obrigado. (Com volubilidade.) Andava eu no meu balão, fazendo uma viagem de recreio à roda desse pequeno planeta que se chama Terra, quando senti que o aparelho era atravessado por um foguete descomunal, que à primeira vista tomei por um bólido. O tafetá do bojo solidificado pela guta-percha resistiu: ficou o balão pendurado no seu foguete que não diminuiu de velocidade, e, assim, tranqüilamente, deitado no funda da minha barquinha feiticeira, vim para, com Vossas Senhorias, a Lua. É um episódio interessantíssimo, que há de fazer furor no Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iorque, se eu tiver a felicidade de voltar à Terra. ARRUDA - Voltaremo noutro foguete. Fique descansado, Seu Eguassis. Se isto não me agradá, cá não fico. (Ouvem-se brindes, etc.) O que é isto? MACHADINHO - Isto é um baile que dá a estrela Vênus por ver um regente no trono, que estava acéfalo desde que lhe morreu o pai. O baile é oferecido ao Rei Luís , seu filho, para festejar as suas ascensões: à Lua e ao trono. (Assobia.) DOUTOR CÁBULA (À parte.) - É de muita força este menino! ARRUDA - Mas o que me admira é eles falá a língua que nós falamo. DOUTOR CÁBULA (À parte.) - Mas o velho é de mais força! MACHADINHO - Isso é gente de uma memória e habilidade espantosas. Demais, moram no Céu: não admira que saibam tudo. (Rumores fora.) Atenção, Senhor Arruda! Aí vem Vênus e seu rancho.

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CENA VII MACHADINHO, DOUTOR CÁBULA, ARRUDA, AUGUSTO, SILVA, FONSECA, SARA, CHIQUINHA e máscaras. CORO GERAL - Viva o carnaval! Viva o bacanal! Viva o saturnal! Nesta noite festival, tudo é feliz, jovial! Contentes vamos dançar, brincar, saltar e folgar! ARRUDA - Que gente é esta? Na Lua, vejo, há grande festa! MACHADINHO - Pois não disse-lhe já, Senhor Arruda que o seu Lulu no trono se grudou? Pois Vênus, que é quem gruda, esta festa ordenou. CORO - Pois Vênus, que é quem gruda, esta festa ordenou. (Dança geral e desordenada.) Viva o Carnaval! DOUTOR CÁBULA (A Machadinho.) - Vou ter com o Luís. MACHADINHO - Vá, dize-lhe que já é tempo. Não lhe peças dinheiro emprestado. DOUTOR CÁBULA - És um monstro. (Sai.) CENA VIII MACHADINHO, ARRUDA, AUGUSTO, SILVA, FONSECA, SARA, CHIQUINHA e máscaras. (Sara tem se apegado a Arruda, que parece impressionado. Ciúmes de Fonseca.) MACHADINHO (A Sara.) - Não o deixes; olha que isto é mina de caroço. SARA (A Machadinho.) - On fera ce qu'on pourra. ARRUDA (Entusiasmado.) Não saio mais da Lua. Mando vendê fazenda, negro, tudo o que tenho lá em baixo. (Aponta para o chão.), e venho de vez pr'aqui. (A Sara.) Sua Senhoria se parece muito cuma madama qu'eu vi no Jardim Botânico no dia em que vim cá pr'arriba. Cara duma, focinho doutra. SARA (Baixinho. Grupos diversos.) - C'etait moi... mon bibi... c'etit moi même... ARRUDA - Não fale língua da Lua, dona madama, Sua Senhoria fale língua brasileira, que é a que me ensinaram... SARA - Esta mulher que vias na Terra... era eu... ARRUDA - A Baronesa? SARA - Era eu. Amo-te... Tenho-te seguido por toda a parte! FONSECA (Inflamado.) - Madame Sara, vous êtes une cynique... notre rélations sont brisées par toujours... vous voulez me place à perdre... SARA (Repreeensiva.) Meu bem... FONSECA (Dando-lhe um dedo.) - Mordez ici (Sara morde-lhe o dedo.) Ai! ARRUDA - Seu Barão, descurpe a muié... ela não tem curpa de me tê amizade... FONSECA - Deixe-me senhor! Ne compt pas avex moi, perfide! Adieu pour jamais! TODOS (Que tem presenciado a rir-se, rompem numa gargalhada.) Ah! Ah! Ah! (Fonseca sai.) MACHADINHO - Deixem esse idiota! Que vá falar francês na casa do avô torto. (Música na orquestra. Queimam-se fogos-de-bengala nas sacadas. Dentre as mulheres sai uma andaluza, de meia máscara de seda e executa um bailado. Findo o bailado, Machadinho apresenta Arruda à sociedade.) CENA VIII MACHADINHO, ARRUDA, AUGUSTO, SILVA, SARA, CHIQUINHA e máscaras, no fim da cena FONSECA .

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MACHADINHO - Meus amigos e amigas, apresento-lhes o pai de Sua Majestade. TODOS - Viva o pai de Sua Majestade! (Forma-se de repente um cortejo, que desfila pela frente de Arruda, que está cheio de si, e visivelmente embeiçado por Sara.) Marcha e coro Salve o progenitor do nosso rei recente Por nós serás, senhor, amado eternamente! MACHADINHO (Apresentando diversos indivíduos a Arruda.) - A Estrela d'Alva! - Vésper! - Saturno! - Mercúrio! ARRUDA - Conheço uma pomada de sua invenção. MACHADINHO - Tem muitas outras invenções: o bacará, o trinta e um... o marimbo.. ARRUDA - Isso é jogo... MACHADINHO - Parece. ARRUDA - Ah! aqui na Lua também há disso? (De repente, a Sara, que o encara meigamente.) Ó ladrãozinho, tu me mata! FONSECA (Reaparecendo.) - Quem vem ao chocolate? TODOS - Vamos! Vamos! Ao chocolate! (Saem todos em confusão. Arruda é arrastado por Sara no meio do tumulto geral.) CENA X DOUTOR CÁBULA, LUÍS E SANTOS SANTOS (Metido num dominó.) - Ora, senhores, eu! um homem sério! um pai de família! um funcionário público! metido num dominó, e obrigado a embarafustar por uma casa destas! - Mas não importa! trata-se de quebrar a castanha na boca de seu pai! Faço idéia da cara com que ele vai ficar. LUÍS - Agradeço-lhe a oportunidade! SANTOS - E há de quê... e há de quê! Ora, meu Deus! um homem com vinte e três anos e quatro meses de bons serviços ao Estado! DOUTOR CÁBULA (À parte.) - Já voaram cinco bancas, e eu sem armação! Se este Santos espirasse... LUÍS - Vem gente. É ele. Venha para cá. (Vão todos os três para uma das sacadas do fundo, cujas cortinas Luís faz descer.) CENA XI DOUTOR CÁBULA, LUÍS, SANTOS escondidos, e ARRUDA que entra de braços dados com SARA SANTOS (À parte, deitando a cabeça fora da cortina.) - É ele! Reconheço-o como se não o visse há quinze dias, e, no entanto, já lá vão trinta anos. (Dando com Sara.) Ela! Olé! Foi bom eu vir aqui. Deixa estar, que não me apanhas mais vintém! ARRUDA (Rendido, a Sara.) - Tu é muito bonitinha, ladrãozinho. Quando eu te vi, seu bem, meu coração pegô a batê zuque, zuque, zuque; com uma força iguá à da engenhoca d'água da comadre Inclementina. (Senta-se.)Tu não conhece a Inclementina? Aquela do Juiz de Fora!... Home é tão conhecida! Vacês aqui na Lua diz que sabe de tudo! - Ah! seu ladrão! Eu posso fazê a tua felicidade. Sou podre de rico! SARA - Sei que é muito rico: tens fazenda em Ubá, em Maçambará... ARRUDA - É... é... Como ela sabe de tudo home! SARA - Bebê, fica... fica aqui comigo... ARRUDA - Ela não saberá que eu sou casado? SARA - Sei que és casado, mas... ARRUDA (À parte.) - Ai, ai,... SARA - Mas se quisesses? ARRUDA - Casar outra vez? Dueto

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DOUTOR CÁBULA (Saindo da sacada e aproximando-se.) - Então, meu caro Senhor Arruda, está melhor aqui do que na Terra, hein? ARRUDA - Ah! vacê tava aí? Me farte a luz na hora da morte se eu lhe vi... Home, vacê qué que eu fale? DOUTOR CÁBULA - Com franqueza. ARRUDA - Pois home; Seu Assis, diabos a Terra! Aqui os are são mió. (Santos sai também da sacada e se aproxima.) Quem é este frade? Na Lua também há disto? SANTOS - Ora, senhores! Um homem sério!... Um funcionário quase aposentado e pai de cinco filhos!... ARRUDA - Pra que é essa coisa que vacê traz na cara? DOUTOR CÁBULA - É da Ordem... é da Ordem... SARA (À parte.) - Eu conheço aqueles olhos... Mas, qual! é impossível! Ele não freqüenta sociedades carnavalescas.. SANTOS (À parte.) - É ela mesma. Não me apanha mais vintém. LUÍS (Saindo por sua vez da sacada e descendo a cena.) - Não prolonguemos por mais tempo esta cena. É demais! Vamos, Senhor Santos... ARRUDA - Senhô Santos! Meu filho, Vossa Majestade disse - Senhô Santos? LUÍS - Tire a máscara. SANTOS (Tirando a máscara e avançando para Arruda.) - Então, você não disse que não vinha mais à corte? ARRUDA (Assombrado.) - O Santos!... SANTOS - Veio ou não veio à corte? ARRUDA - Que corte, home! Lua não é corte! SANTOS - O que diz ele? (Aparece Machadinho.) DOUTOR CÁBULA - Que cábula! SARA (Embaraçada desde que Santos tirou a máscara, à parte.) - Me voila pincée. CENA XII DOUTOR CÁBULA, LUÍS, SANTOS, ARRUDA, SARA e MACHADINHO MACHADINHO (Aproximando-se.) - Senhor Santos, Senhor Arruda, eu explico o caso.. o Senhor Arruda supõe que fez uma viagem à Lua, ao passo que a viagem que fez foi apenas de sua fazenda à corte, onde está. ARRUDA - Na corte! Eu tou na corte! Ué! Eu não esperava isso de Sua Senhoria, seu doutô (Puxando as orelhas de Luís.) Venha cá, seu rei da Lua, então vacê mangou de seu pai... LUÍS - Papai... MACHADINHO - Perdão, o autor do quiproquó foi este seu criado. Eu sabia da divergência que há entre o senhor e o Senhor Santos, e da promessa que o senhor havia feito de não por os pés na corte. O Senhor Santos só consentia no casamento de Luís com Dona Zizinha com a condição que o senhor viesse ao Rio de Janeiro. Por amizade a seu filho e aproveitando o desejo que o senhor tinha de ir à Lua... ARRUDA - Que bonita figura fiz eu, sim senhô, não tem que vê! SANTOS - Já que está, consinta no casamento daqueles dois pombinhos... ARRUDA (De maus humor.) - Já consenti! LUÍS - Obrigado, papai. (Beija as mãos do pai.) ARRUDA - Saía daqui, filho de um burro! MACHADINHO - Agora, um favor, Senhor Arruda, estenda a mão ao seu ex-condiscípulo, e o passado, passado. SANTOS e ARRUDA - Ele que estenda {primeiro { premero DOUTOR CÁBULA - Eu concilio tudo, apesar de não ser da família. (Toma as mãos de ambos e une-as.) Ego conjugo vobis. SARA - Tableau! SANTOS e ARRUDA - Eu sempre gostei dele, mas é muito teimoso. ARRUDA - Mas, enfim, onde estamo nós? MACHADINHO - Deixe para mais tarde as minudências... logo saberá de tudo... (A Luís.) Hás de ser o único de ir à lua... à lua de mel! (A Arruda.) O saque está em mão do Luís; não tocamos em um real. ARRUDA - Pois guarda ele, Lulu: é teu dote.

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SANTOS (Dirigindo-se a Sara.) - Contigo é que não faço as pazes... Não me apanhas nem mais um vintém. SARA - Mas... SANTOS - Psiu... (Consigo.) - Um funcionário público, meu Deus! ARRUDA - Não leio mais novelas do tal Seu Júlio Verne. MACHADINHO - Hei de oferecer-lhe um livro de Vítor Hugo: A arte de ser avô. SARA (A Santos.) - Est-ce que tu va rester fâchê comm'ça? SANTOS - Veremos... Um pai de família... com cinco filhos e vinte e cinco anos e quatro meses de serviços públicos. (Deixa-se enlaçar por Sara.) ARRUDA (Com uns longes de zelos, à parte.) - As muié são mesmo assim: farsa como elas só. (Entra Fonseca, de braço dado com Chiquinha, acompanhados de todos os personagens.) CENA XIII DOUTOR CÁBULA, LUÍS, SANTOS. ARRUDA, SARA, MACHADINHO, FONSECA, CHIQUINHA, AUGUSTO, SILVA e máscaras. OS RECÉM-CHEGADOS - Ó Machadinho! Vem apreciar os novos amores do Fonseca! ARRUDA (Admirado e tapando os ouvidos.) - Que matinada! SANTOS (Sempre abraçado por Sara.) - Um homem sério! FONSECA (Com Chiquinha pelo braço, a Sara.) - Tu ne me donnais pas de considération: tu ne faisais cas de moi; je me suis épris de Chiquinhe! TODOS - Ah! Ah! Ah! ARRUDA - Mas ói que a batina do reitô era de ceteim! Final MACHADINHO - Na forma agora de costume Vou, por precaução, pedir do povo a proteção. SARA (Ao público.) - Vossa proteção! MACHADINHO - Oh! não vos farteis de aplaudir, sem resmungar, nem redargüir, quem voz fez rir ou fez dormir! MACHADINHO e SARA - Quem fez rir ou fez dormir aplaudir sem redargüir! CORO - Sem resmungar, sem redargüir, aplaudi quem vos fez rir! MACHADINHO - Agora, galopemos! Saltemos e pulemos! Pulemos e saltemos! E não há que refletir! CORO - E não há que refletir! (Galope geral. Quadro animadíssimo.) Oh! não vos farteis de aplaudir, sem resmungar, sem redargüir, quem vos fez rir, ou fez dormir! [Cai o pano] (1) - A música deste jongo, bem como a da barcarola do segundo ato, foi composta por obséquio aos autores, pelo eminente professor Doutor Henrique Mesquita. (Nota do autor.) (2) É a polca Zizinha, que composta e impressa o ano passado, obtém tão franco sucesso nos salões fluminenses. (Nota do Autor.)

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A JÓIA DRAMA EM TRÊS ATOS Em versos PERSONAGENS VALENTINA JOAQUIM CARVALHO JOÃO DE SOUSA GUSTAVO UM JOALHEIRO UM SUJEITO Rio de Janeiro, 1874 ATO PRIMEIRO Sala de visitas em casa de Valentina. Duas portas de cada lado e duas janelas de sacada ao fundo. À esquerda do espectador, sofá; ao lado deste, poltrona. À direita, escrivaninha, com preparos para escrever. Cadeiras, consolos com porta-jóias, estatuetas, quinquilharias, etc. Nos intervalos das portas, gravuras ricamente emolduradas. Reposteiros de lã em todas as portas e cortinas de rendas às janelas. Piano. Tapete. Lustre de gás. É dia. CENA I VALENTINA, UM SUJEITO (Valentina está sentada na poltrona, de penteador branco. O sujeito de pé, pronto para sair, de chapéu na cabeça, tem uma das mãos entre as dela.) VALENTINA - Adeus. De mim não se esqueça Nem do número da porta. O SUJEITO - Não. VALENTINA - Se, de saudades morta Me não quer ver, apareça. O SUJEITO (Aborrecido.) - Adeus. VALENTINA - Adeus. (Ele vai saindo.) Até quando? O SUJEITO (Parando.) - Prometo voltar bem cedo. VALENTINA - Não minta. O SUJEITO - Não tenhas medo! Pois eu vivo em ti pensando. (Sai.) CENA II VALENTINA, só [VALENTINA] - Pensando em mim!... Na verdade, o tempo emprega bem mal, (Abrindo o envelope que o sujeito lhe tem deixado nas mãos.) Sim senhor, foi liberal. Quanta generosidade!... (Erguendo-se, e como que dirigindo-se ao sujeito que acaba de sair.) Bem! cá fica arquivado no livro dos preciosos... (Tirando três cédulas do envelope.)

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Que três bilhetes formosos! Fazem-lhe falta... Coitado... Sei de dois credores seus que a porta não lhe abandonam, e sei também que tencionam mandar citá-lo... (Outro tom.) Ora, adeus! Deixemos estas lembranças... Fechemos a porta à chave... (Vai fechar a porta da esquerda, segundo plano, e voltando à cena, vai abrir uma das gavetas da secretária.) E, nesta solidão suave, vamos tratar de finanças. Esta semana rendeu! A receita, com certeza, cento por cento a despesa nestes dias excedeu. (Senta-se à secretária, donde tira um monte de notas de banco, que põe-se a contar.) Dez, vinte, trinta, quarenta, cento e quarenta, duzentos, trezentos, e quatrocentos, quinhentos e cinqüenta, seiscentos... - Que nota antiga! Não estará recolhida? (Guarda pressurosa o dinheiro, por ouvir bater à porta.) Quem está aí? GUSTAVO (Fora.) - Sou eu, querida! VALENTINA (Erguendo-se.) - Gustavo? GUSTAVO (Fora.) - Sim, minha amiga. (Valentina vai abrir a porta a Gustavo, que entra.) CENA III VALENTINA GUSTAVO VALENTINA (Apertando-lhe a mão) - Não te esperava já, palavra de honra! GUSTAVO - Já? Querias que eu ficasse eternamente lá? VALENTINA - Deste-te bem? GUSTAVO - Então? Não vês como estou nédio? Para o blazé não há mais eficaz remédio do que passar um mês de vida regular onde os prazeres são difíceis de encontrar. O físico e o moral a roça purifica: tens precisão também da roça, minha rica. (Repoltreando-se na poltrona.) Dize-me cá: tem vindo o deputado? VALENTINA (Encostando-se ao espaldar da poltrona.)- Tem. GUSTAVO - O João Ramos? VALENTINA - E o Pimenta? VALENTINA - Também. GUSTAVO - Que bons amigos tens! Sou eu que tos arranjo! Em consideração deves tomar, meu anjo... VALENTINA (Descendo à cena.)

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- Pois queres mais dinheiro?! És exigente. GUSTAVO - Sou; mas vê lá também a roda que te dou! VALENTINA (Sentando-se à direita.) - Não trouxeste o melhor dos que aqui vêm agora. GUSTAVO - Quem é? Não é segredo? VALENTINA - Um tipo que me adora! Um fazendeiro rico e velho que supõe ser ele só que os pés em minha casa põe. GUSTAVO (Com interesse.) - E onde foste encontrar esse tesouro raro? VALENTINA - No Prado Fluminense. Eu vi-o, deu-me o faro, sorri-lhe, ele sorriu-me... Eu dei-lhe o meu cartão.. Veio. Adora-me e... crê que tenho coração. GUSTAVO - Um fazendeiro é mina; e quanto mais se explora, mais ouro dá!... Pois bem, caríssima senhora, - não é por me gabar - acredito que o seu é muito bom, mas tenho um ótimo! VALENTINA - Tu? GUSTAVO - Eu. VALENTINA (Erguendo-se.) - Onde ele está? GUSTAVO (Idem.) - Depois... depois nós falaremos... VALENTINA - Mas que custa dizer? GUSTAVO - Tempo de sobra temos. VALENTINA - Mas dize-me... GUSTAVO - Não posso agora; logo mais voltarei. VALENTINA -'Stás com pressa? GUSTAVO - Estou. VALENTINA - Aonde vais? GUSTAVO - Subi só por te ver. Espera-me um amigo que convidado está para almoçar comigo. VALENTINA - Bem; vai e volta. GUSTAVO - Dá-me uns cinqüenta mil-réis. VALENTINA (Vai à secretária e conta o dinheiro.) - Com muito gosto. É já... Dois, quatro, cinco, seis... Dez e dez vinte, e trinta... Ah! Cinqüenta... Pega! (Dá o dinheiro a Gustavo que o guarda.) GUSTAVO - Obrigado. Até logo! (Sai por onde entrou.) VALENTINA - Adeus. (Só.) Supõe-me cega... Com tal balela quis uns cobres me apanhar! (Fechando a porta.) Enfim... Vamos a ver... Bem posso me enganar. CENA IV VALENTINA, só (Senta-se de novo à secretária, abre-a e recomeça a contar dinheiro.) [VALENTINA] - Terminemos esta conta... Três contos... quatro e quinhentos... e seiscentos... setecentos... Quase a cinco contos monta desta semana a receita! Vamos conferir... (Toma a pena.) O Ramos

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deu-me na quarta... - Escrevamos - oitocentos de uma feita... (Escrevendo.) "Oitocentos". (Pensa.) O Pimenta aquele broche me deu que há três dia me rendeu trezentos e cinqüenta... Entregou-me o deputado todo o subsídio. Que bolo!... É justo: um fútil, um tolo, que só diz "muito apoiado" e ganha um conto e quinhentos. (Escreve.) Deu-me no dia seguinte Mais quatro notas de vinte... O Sá tem dado trezentos... O fazendeiro... (Batem à porta.) Quem é? Já lá vou! (Guardando o dinheiro que estava espalhado.) Deve estar certo... Levo isto ao Banco, que é perto, daqui a pouco. (Batem de novo.) Olé! Olé! Com que pressa está! O JOALHEIRO (Fora.) - Estou! Não se acha em casa a senhora? VALENTINA - Se quer, espere! O JOALHEIRO (Fora.) - A demora é pequenina. VALENTINA - Lá vou. (Vai abrir a porta: entra o joalheiro com uma caixa de jóias na mão.) CENA V VALENTINA, O JOALHEIRO VALENTINA - Ah! é o senhor! O JOALHEIRO (Abrindo a caixa, deixa ver um formoso par de bichas de brilhantes.) - Ora veja! VALENTINA - Vem aqui tentar-me, aposto! O JOALHEIRO - Não tentei nunca, nem gosto de tentar quem quer que seja. (Entregando a jóia a Valentina que a examina.) Venho mostrar-lhes uns brilhantes como os Farâni não os tem; Se os quer comprar, muito bem! Se os não quer, passo adiante. Não tento... não sei tentar... Apenas lhos ofereço... Nem sequer os encareço... Isto é pegar, ou largar! Veja bem que são granditos! Sem jaça... veja... sem jaça... Examine... veja... faça O que quiser. VALENTINA - São bonitos!

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O JOALHEIRO - 'Stou a vendê-los disposto: se lhos vim mostrar agora, é porque sei que a senhora pode comprar, e tem gosto. Não tento... tentar não vim... VALENTINA (Fechando ao caixa.) - E baratinho mos vende? O JOALHEIRO - Ora, a senhora compreende que dois brilhantes assim... de dez quilates!... É boa! VALENTINA (Abrindo de novo a caixa.) - Dez quilates? O JOALHEIRO - Está visto! VALENTINA - Porém quanto valem? O JOALHEIRO - Isto não são brilhantes à toa! VALENTINA - Bem vejo! Que tentação! (Vai ao espelho e chega uma das bichas à orelha.) O JOALHEIRO - Não são jóias de mascates, brilhantes de dez quilates... sem jaça... como estes são!... VALENTINA - Mas o preço? O JOALHEIRO - Ora, avalie... A senhora os tem comprado... VALENTINA (Descendo.) - Quatro contos! O JOALHEIRO (Tomando a jóia.) - Obrigado! Por favor não calunie os meus brilhantes! (Mostrando-lhos.)Repare! Cravados em dois anéis, davam dez contos de réis! Ambas as pedras compare: são iguais... não vale a pena separar...(Fecha a caixa.) Dou-lhe os marrecos... VALENTINA - Por quanto? O JOALHEIRO - Por seis contecos. A diferença é pequena... VALENTINA - Não tenho dinheiro agora; leve os brilhantes. Adeus! (Vai sentar-se à direita.) O JOALHEIRO - Ora por amor de Deus! Que não mos pague a senhora, mas algum... CENA VI VALENTINA, O JOALHEIRO, JOAQUIM CARVALHO (Joaquim Carvalho entra pela esquerda, segundo plano, sem reparar no joalheiro que, de costas voltadas para ele, limpa as bichas com o lenço.) CARVALHO - Cá vou entrando. (Tomando as mãos ambas de Valentina.) Como estás? VALENTINA - Bem, obrigada. Mas de saudades ralada... e você nem se lembrando talvez que existo! CARVALHO (Protestando.) - Ó minha...

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(Vendo o joalheiro interrompe-se.) Quem é aquele senhor? VALENTINA - Um caixeiro. CARVALHO - Manda-o pôr a panos. VALENTINA - Uma continha vem receber, e não há com que pagar... CARVALHO - Não me espanta! Gastas tanto, minha santa! Queres dinheiro? (Tirando a carteira.) Aqui está. Quanto lhe deves? VALENTINA - Pouquito: oitenta mil réis. CARVALHO - É pouco. (Dando-lhe uma nota de cem mil réis.) Paga, e fica tu com o troco, enquanto eu leio o Mosquito. (Senta-se à direita e lê um periódico de caricaturas que vai buscar sobre a secretária. Valentina dirige-se ao joalheiro.) O JOALHEIRO (A meia voz.) -'Stá terminado o negócio? VALENTINA (Idem.) - Vá para casa, que em breve alguém procurá-lo deve. O JOALHEIRO - Se não estou eu, está meu sócio. Se uma decisão dar pode... VALENTINA - Irei eu mesma em pessoa em meia hora! O JOALHEIRO - Essa é boa! Não quero que se incomode, nem tenho mais pretendentes... VALENTINA - Em meia hora lá estou. O JOALHEIRO - Bem! bem! descansado vou. VALENTINA - Até logo1 (O joalheiro sai por onde entrou.) CENA VII VALENTINA, JOAQUIM DE CARVALHO CARVALHO (Deixando periódico.) - Impertinentes são estes credores! VALENTINA - São por isso é que me coíbo de dever muito; CARVALHO - E o recibo? Pediste-lho? VALENTINA - E por que não? (Aproximando-se de Carvalho e passando-lhe o braço em volta do pescoço.) Por que não vieste esta noite? Ai, que saudades eu tive! Para a mísera que vive de teu amor, fero açoite é tua ausência! Sozinha a noite inteira passei... Lembrei-me tanto... Nem sei mesmo por quê...

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CARVALHO - Coitadinha! VALENTINA (Sentando-se num tamborete, aos pés do Carvalho.) - Porém. vamos lá saber: e tu?... tu como passaste? CARVALHO - Assim... VALENTINA - De mim te lembraste? CARVALHO - De ti me posso esquecer? E tu? VALENTINA - Muito despeitada... CARVALHO - Por que, meu bem? VALENTINA - Faze idéia: desejar uma tetéia e não poder... Que maçada! CARVALHO - Não poder o quê? VALENTINA - Comprá-la. CARVALHO - Por que comprá-la não podes? VALENTINA - Pois pensa que a dão de godes? CARVALHO - Se é muito cara, deixá-la! VALENTINA - É difícil esquecer! CARVALHO - Dificuldades não vejo... VALENTINA (Erguendo-se.) - Sufocar o meu desejo! Matá-lo logo ao nascer! Esquecer! Fora um suplício! Pois desejar hei de em vão! (Batendo o pé.) Oh! não! não!... Mil vezes não!... CARVALHO (Erguendo-se.) - Mas eu não digo... VALENTINA (Evitando-o.) - Outro ofício! CARVALHO - Menina, não te exacerbes! Se queres a tal tetéia, não me faças cara feia, que dentro em pouco a recebes! (Tomando o chapéu que deixou na cadeira perto da secretária.) Dize-me o que é que num salto, vou buscá-la. Dize! o que é?... VALENTINA (À parte.) - Parece estar de maré... Preparemos este assalto!... CARVALHO - Algum chapéu enfeitado pras corridas de amanhã? Algum vestido de lã? VALENTINA (Com desprezo.) - Lã. CARVALHO - Ou seda. VALENTINA - 'Stá enganado. É um capricho. CARVALHO (Deixando o chapéu.) - Ah! caprichas? VALENTINA - Procure. CARVALHO - É coisa que enfeita? VALENTINA - É uma cosa que se deita nas orelhas! CARVALHO - Umas bichas? VALENTINA - Tem talento: adivinhou! (Senta-se no sofá.) CARVALHO - Nas orelhas... Pois quem julga não sejam bichas? (À parte.) Coa pulga

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atrás das minhas estou. De que são as bichas? VALENTINA - Ora! CARVALHO (À parte.) - Estes caprichos aleijam... VALENTINA (Erguendo-se.) - Pois há bichas que não sejam de brilhantes? CARVALHO - Sim, senhora: há bichas de coralina; há de esmeralda, safira, de pingos d'água... VALENTINA - Mentira! CARVALHO - Não me desmintas, menina! Aos teus desejos conforme 'stou, mesmo quando caprichas; mas entre tetéias e bichas há uma diferença enorme! VALENTINA - Em quê? CARVALHO - No preço: a tetéia é sempre coisa miúda, e as bichas, Deus nos acuda! VALENTINA - Nem tanto assim! CARVALHO - Faço idéia que essas, que desejas tanto, custam dois contos! VALENTINA (Irônica.) -Ou três! Sem os brilhantes talvez... CARVALHO (Benzendo-se.) - Padre, Filho e Esp'rito Santo! VALENTINA - Valem dez contos de réis; o dono, que é meu amigo, além de freguês antigo, deixa-as... CARVALHO - Por quanto? VALENTINA - Por seis. CARVALHO - Seis contos! VALENTINA - Então não valho seis contos, meu... Que chalaça! Não me lembra a tua graça! CARVALHO (Sombrio.) - Joaquim dos Santos Carvalho. VALENTINA - Meu Quincas, meu Carvalhinho, meu primeiro amor! CARVALHO (À parte.) - Tramóias. VALENTINA - Uma mulher que quer jóias é o mesmo que o nenezinho que quer balas! CARVALHO (À parte.) - Não sou zebra, que, se quer balas alguém, compra-as a três por vintém; e recebe uma de quebra. (Alto.) Menina, deixa os brilhantes para essas escandalosas que contam dúzias e grosas de indiferentes amantes. Tu, meu bem, que não és destas,

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que só me tens, que não vives para prazer dos ouvires, compra umas bichas modestas... VALENTINA (Desdenhosa.) - Modestas... CARVALHO - Iguais a umas que comprei para a Qué-qué... VALENTINA (Arrebatadamente.) - Oh! essa Qué-qué, quem é? Quero saber! CARVALHO - Não presumas que seja alguma cocote: é minha mulher. VALENTINA - Se acaso me mentes, vai tudo ao raso! CARVALHO - Eu, nem mesmo em rapazote Nunca menti. VALENTINA (Acariciando-o.) - Ó meu Quincas! (Desatando a chorar.) Mas ah! que não me conheço! Imploro... peço... Pareço uma mendiga! CARVALHO (Tomando-a nos braços com interesse.) - Tu brincas! VALENTINA - E quem me avilta? É este homem que tanto amor me inspirou! Que mais me resta? Que sou? Minhas ilusões se somem, e para sempre! Não voltam! Cruéis desenganos surgem! Contra mim os céus de insurgem e os infernos se revoltam! Amor! qual amor! É peta! (Soluçando.) E eu, desgraçada! que adore... (Senta-se no sofá.) CARVALHO (Aproximando-se dela com mimo e bonomia paterna.) - 'Stás tal e qual a Ristóri na Maria Antomieta VALENTINA (A fingir um ataque de nervos.) - Ah! Ah!.. CARVALHO - Meu Deus! o que é isto?! VALENTINA (A espernear.) - Socorro!... CARVALHO (Percorrendo a cena.) - Jesus! VALENTINA - Socorro! Eu morro! CARVALHO (Atarantado.) - Qual morres! VALENTINA - Morro! Quem me acode? CARVALHO - Jesus Cristo!... Que devo fazer? Eu vou... Queres médico? VALENTINA - Decerto. CARVALHO - Há doutor por aqui perto? Corro a chamá-lo! (Na ocasião em que toma o chapéu, Valentina ergue-se.) VALENTINA - Passou. CARVALHO (Deixando o chapéu.) - Pois os médicos da corte são bens bons; basta fazer tenção de os chamar, pra ver

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o doente livre da morte! VALENTINA (Depois de alguns momentos, angustiada.) - A provação foi atroz... Foi cruel o sofrimento... Porém, desde este momento não há mais ente nós. (Sai pela direita, segundo plano.) CENA VIII CARVALHO, só [CARVALHO] (Depois de alguma pausa.) - Se eu não fosse um covarde, que bela ocasião para me por a andar... (Pegando o chapéu,) Ainda não é tarde! Nem um momento mais eu devo aqui ficar! (Dispõe-se a sair, e para, olhando para a porta por onde entrou Valentina.) Encerrou-se na alcova! 'Stá soluçando a triste... o seu amor maldiz... Oh! que eloqüente prova de que ela me estremece e de que sou feliz! (Colocando o chapéu sobre uma cadeira e o sobretudo nas costas da poltrona. Resoluto.) Não! não sairei! Fico!... Mas a colheita?... a safra? os filhos e a mulher? Eu sou bastante rico e posso demorar-me o tempo que quiser! Fui sempre ótimo pai, fui ótimo marido: é muito que um momento eu me esqueça de mim? Hei de voltar melhor assim fortalecido... Oh! maldito o momento em que a cidade vim! (Pausa.) E se eu pilhado for coa boca na botija? Não me posso entender! Não sei para que lado os passos meu dirija!... sou preso por ter cão e preso por não ter! (Dirigindo-se à porta por onde saiu Valentina.) Ela está mal comigo... as pazes fazer vamos... Prometo dar-lhe a jóia; e, quando a vir, direi que é muito cara... e tal... Depois nós combinamos! E uma jóia barata então lhe comprarei... (Ajoelha-se à porta.) Vamos lá... vamos lá... Meu anjo... Valentina... dentre os soluços teus soluça o meu perdão Não zangues-te, meu bem; não chores mais, menina... Abre-me a porta, já... Vem cá, meu coração! CENA IX CARVALHO e VALENTINA (Valentina está pronta para sair. Tem os olhos vermelhos. Dirige-se à secretária e guarda em uma bolsa que traz na mão as notas de banco, que tira da gaveta sem que Carvalho veja.) CARVALHO - Menina, dos calcanhares olha que não me levanto nem mesmo a cacete, enquanto teu perdão me não lançares!

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(Valentina acaba de guardar o dinheiro e desce à cena, fingindo que chora, mas rindo-se à socapa. À parte.) Coitadinha! que lamúria! VALENTINA - Sei que não tenho o direito de exigir nenhum respeito, de perdoar uma injúria... Vocês têm razão: enxerguem na mulher que cai somente a meretriz impudente, que nem as lágrimas erguem. Tem graça o perdão! De rastros, sou eu que devo alcançá-lo! (Ajoelha-se também. Ficam ajoelhados defronte um do outro.) Sou perdida e quis amá-lo! Sou lama: quis ir aos astros! CARVALHO - Um astro és! És minha lua, és minha lua querida! VALENTINA - Sua sombra, refletida num charco imundo da rua, serei... (Ergue-se e vai sentar-se na poltrona.) Meu pobre passado! Tu onde estás? onde fostes? - Dá licença que me encoste ao seu capote? - Obrigado. Eu tive a flor dos maridos... Que quer? Não havia meio de amá-lo! Um dia deixei-o. deu um tiro nos ouvidos! Como mariposa inquieta, pousei aqui e ali... Amar jamais consegui... mas encontrei-te... poeta!... (Vai arrebatadamente colocar-se outra vez de joelhos, defronte de Carvalho.) CARVALHO (Admirado.) - Poeta!... VALENTINA - Poeta, repito! A ti não parecia; mas tinhas tanta poesia!... Escuta: não és bonito... já não és novo, sequer... És calvo, tens nariz grande; mas nisso mesmo se expande meu coração de mulher. Não sou vulgar... amo o horrível, e és horrivelmente belo! Ao teu carão amarelo meu coração foi sensível... Um instante me pareceu - mas, ai de mim, me enganara - que tu, com tão feia cara, deverias ser só meu! (Erguendo-se.) Sim, o velho mundo espante-se e belas razões deduza:

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seis contos você recusa a tanto afeto! - Levante-se! CARVALHO (Erguendo-se.) - És um anjo! VALENTINA - E você é... CARVALHO - Teu escravo! VALENTINA - É um verdugo! Entretanto, Victor Hugo disse: Oh! n'insullez jamais... CARVALHO - Então? Estou perdoado? VALENTINA - Estás, que tudo se esquece. (Vendo que Carvalho limpa os olhos.) Choraste? CARVALHO - Se te parece! Falas como um advogado! Onde é que as bichas se vendem? Vou buscá-las. VALENTINA (Mudando inteiramente de tom.) - Meu amigo, o ouvires vem ter contigo e vocês dois cá se entendem. CARVALHO - Quem o manda? VALENTINA - Eu. CARVALHO - Deveras? VALENTINA - Eu fiquei de lá ir. (À parte.) Como tenho de ir ao banco, tomo um carro e vou lá. (Alto.) Esperas? CARVALHO - Espero. VALENTINA (Beijando-o.) - Adeus. CARVALHO - Sedutora! (Saída falsa de Valentina, pela esquerda, segundo plano.) Se eu não puder arredar-me, conto que hei de desforrar-me pela colheita vindoura. (Senta-se no sofá.) VALENTINA (Voltando.) - Outra bicota. (Beija-o.) Mais duas! A chama do amor me abrasa! Ainda não saí de casa, já tenho saudades tuas! (Vai saindo e para.) Não queres ler um pouquinho? CARVALHO - Quero, sim. VALENTINA - Olha, aqui tens... (Dá-lhe o Mosquito e dirige-se para a porta da esquerda, segundo plano.) CARVALHO (Deitando-se.) - Enquanto tu vai e vens, eu fico lendo o Mosquito. [Cai o pano] ATO SEGUNDO A mesma decoração CENA I CARVALHO, só [CARVALHO] (Está ainda deitado no sofá; dorme e sonha alto, muito agitado. O Mosquito está caído a seus pés.)

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- Ai! o que é isto? O que é? Não me agarrem!... Não me puxem!... Que mais querem!... Desembuchem!... Não creias nisso, Qué-qué! (Levanta-se do sofá e desperta, atônito.) Hein? Que foi?... Ah! era um sonho Um sonho... não há que ver... Já me lembro: estava a ler o Mosquito... Foi medonho o pesadelo! Primeiro, sonhei que havia chegado à fazenda, e visitado senzala, alpendre, chiqueiro, horta, engenho, etcet'ra e tal. Depois fui ter coa patroa... Os sonhos são coisa à toa, pois que não é natural que eu, se à fazenda chegasse, do que à madama, primeiro senzala, alpendre, chiqueiro, horta e pomar visitasse. No momento justamente em que os meus lábios se uniram aos lábios dela, surgiram, donde não sei, de repente, mulheres assim... assim... (Gestos indicando que eram muitas.) Altas, baixas, magras, cheias; belas umas e outras feias, que se acercaram de mim! Contei dez... mais dez... mais dez! Saía uma por uma do teto... do chão... Em suma, a alma caiu-me aos pés! Pr'agravar o pesadelo, dessa tropa feminina vinha à frente Valentina, em desalinho o cabelo, e às outras dizia assim: " - Segurem-me esse tratante! Não sabem que é meu amante e que se afastou de mim?..." E as outras me carregavam! Davam-me beijos... abraços... Disputavam-me nos braços; aos trambolhões me levavam! "- Levem-no; tenho o direito de disputar o seu amor, pois amo-o... amo-o!..." Senhor! que pesadelo! No leito a Qué-qué se revolvia... Teve mais um faniquito! Dava gritos! Cada grito

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que um surdo despertaria! Nisto acordei; já de pé, protestos inda fazia, e à pobre Qué-qué dizia: "- Não creias nisso..." (Batem à porta da esquerda, segundo plano.) Quem é? O JOALHEIRO (Fora.) - Um criado de Vossa Senhoria CARVALHO (Consigo.) - É o sujeito das bichas. (Alto.) Pode entrar. CENA II CARVALHO, O JOALHEIRO O JOALHEIRO - Com licença, senhor. Muito bom dia. CARVALHO - Bom dia. Faz favor de se sentar. (Senta-se e indica-lhe uma cadeira.) O JOALHEIRO - Estou a gosto. CARVALHO - Sente-se. O JOALHEIRO (Sentando-se.) - Obrigado. CARVALHO (À parte.) - Olho vivo! Tem cara de judeu.. As bichas, o senhor.... O JOALHEIRO (Erguendo-se.) - Um seu criado... CARVALHO - ... é que vem... O JOALHEIRO - Sim, senhor... CARVALHO - ... mostrar? O JOALHEIRO - Sou eu. CARVALHO - Queira sentar-se. Faz favor de dar-mas? O JOALHEIRO (Tirando a caixa do bolso e abrindo-a. Senta-se) - Aqui as tem. Perdão! (Limpa-as mais uma vez.) CARVALHO (À parte.) - Vejam com o tratante apronta as armas! (O joalheiro entrega-lhe a jóia, que ele examina com atenção.) O JOALHEIRO - São bonitos, não acha? CARVALHO - Acho que são; mas também acho exorbitante o preço. O JOALHEIRO - Exor... Meu caro, por amor de Deus! que preço lhe disseram? CARVALHO - Seis! O JOALHEIRO - Não desço um real. Veja bem! CARVALHO (À parte.) - Estes judeus! O JOALHEIRO (Erguendo-se.) - Que me conste, até hoje aqui não houve dois brilhantes assim! Donos deles fazer-me aos céus aprouve; porém... pobre de mim! Muitos há que desejam possuí-los; mas seu valor não dão... E na vidraça os míseros tranqüilos por muito tempo permanecerão! (Pausa durante a qual Carvalho continua a examinar os brilhantes, mas com indiferença.) Estes brilhantes tinham mais preço em dois grandes anéis; mas não nos quero separar. O preço

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sãos seis contos de réis. Se não achar de todo nesta terra quem os queira comprar, vou vendê-los à c'roa de Inglaterra que os não há de enjeitar. (Toma os brilhantes, coloca-os nas orelhas e passeia pela sala como uma senhora.) Veja que belos são! De conta faça que uma senhora sou: Veja que alvura!... que ladrões sem jaça! CARVALHO - Por quatro contos dá-lo quer? O JOALHEIRO - Não dou; CARVALHO - Então, amigo, não fazemos nada: perde o seu tempo e perde o seu latim... (À parte.) Se eu me livrar puder desta rascada, hei de um terço rezar a São Joaquim, meu glorioso patrono. O JOALHEIRO (À parte, embrulhando a caixa.) - A sirigaita disse-me que o velho dava-me os seis paus; ela supõe que berimbau é gaita... Não se lembra que os tempos vão tão maus... Hei de sempre falar-lhe... talvez queira... (Alto, guardando a jóia.) Até mais ver, senhor. CARVALHO - Passasse bem! O JOALHEIRO - A palavra já disse derradeira! Não dá mais nada, não? CARVALHO - Nem mais um vintém. (O joalheiro cumprimenta e sai por onde entrou.) CENA III CARVALHO, só [CARVALHO] - Seis contos! seis contos! Irribus! É mesmo muito dinheiro! Trabalho um semestre inteiro para seis contos ganhar, e devo sem mais preâmbulos gastá-los com Valentina? Sai muito cara a menina; não devo continuar... mas serei bastante enérgico pra fugir desta voragem? Bater a linda plumagem, ir para junto dos meus? Lembrar-me dos meus negócios? dos meus compromissos tantos? de Valentina aos encantos dizer pra sempre adeus?... Seis contos! São seis apólices pra garantir o futuro: de cinco por cento ao juro hão de trezentos render! No fim de quinze anos, chega-se,

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com juros acumulados, a ter dez contos guardados para o que der e vier. Seis contos! compra-se um prédio, que se aluga a dez por cento! E, afinal, num bom momento dez contos por ele dão! Cinco bons escravos mandam-se vir do Norte de encomenda, que, a trabalhar na fazenda, vinte por cento darão! Eu bem sei que a jóia, cáspite! por seis contos não 'stá cara; é de uma beleza rara: o homem no preço está. Of'reci-lhe uma miséria, e muito acertadamente; por quatro contos somente jóias dessas ninguém dá. (Senta-se na poltrona junto da secretária e fica a meditar com a cabeça entre as mãos e os cotovelos fincados nas coxas. Aparecem à porta da esquerda, segundo plano, Valentina e o joalheiro, que não são pressentidos por Joaquim Carvalho.) CENA IV CARVALHO, VALENTINA, O JOALHEIRO VALENTINA (A meia voz.) - Ele ali está!... Psiu... sentido! Vá pra sala de jantar... (Encaminha-o na ponta dos pés, para a porta da esquerda, primeiro plano.) Queira um instantinho esperar, enquanto a questão decido. O JOALHEIRO (A meia voz.) - Senhora, se acha isso caro... Não tento... Tentar não vim... VALENTINA (No mesmo tom.) - Entre e espere. É já. (O joalheiro desaparece.) Enfim! (Logo que o joalheiro desaparece, Valentina machuca o chapéu e desmancha um pouco o penteado.) É preciso este preparo... (Desde à cena fingindo estar desesperada, e falando em voz muito alta.) Desaforo! Não se atura Tamanha pouca vergonha! CARVALHO (Arrancado de súbito de sua meditação.) - Valha-me Deus! vem medonha. VALENTINA (Passeando de um lado para o outro.) - Fiz uma bela figura! CENA V CARVALHO, VALENTINA CARVALHO (À parte.) - Ele já sabe de tudo... Temo-la travada! VALENTINA (Na mesma agitação, senta-se na poltrona e amarrota e rasga o lenço.) - Inferno!

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CARVALHO (À parte.) - Está tão zangada, que incontinente me mudo... (Pega no chapéu e dispõe-se a sair sorrateiramente.) VALENTINA (Levantando-se rapidamente.) - Faça favor!... CARVALHO - Valentina... VALENTINA (Imperiosamente.) - Venha cá! CARVALHO (Aproximando-se timidamente.) - Cá estou VALENTINA - Aqui! Como o senhor nunca vi homem tão tolo e sovina! Vá-se embora, se quiser, nem mais um segundo tarde! Mas saiba que é de um covarde maltratar uma mulher! Pois se é tão pobre o senhor, que meia dúzia de contos não tem na carteira prontos, e deles possa dispor, por que razão prometeu dar-me uma jóia?... CARVALHO - Eu te digo... VALENTINA (Passeando agitada.) - Supu-lo tão meu amigo... CARVALHO (Acompanhando-a.) - E eu não sou amigo teu? VALENTINA - Encontrei ali na esquina o joalheiro! Se ouvisse as coisas que ele me disse! CARVALHO (No mesmo.) - Mas ouve cá, Valentina... VALENTINA - Julga o senhor por acaso que eu não tenho quem me dê seis... vinte contos?! não vê! Sou eu que não faço caso de muitos banqueiros que andam a fazer-me roda!... Ontem (deixá-los que desapontem: não recebo o que me mandam!) um lá da Rua Direita que fez fortuna a galope, mandou-me num envelope um conto! Fiz-lhe a desfeita de não querer: devolvi-lho! CARVALHO - Ele não te conhecia? VALENTINA - Não senhor. CARVALHO - Foi covardia: maltratou-te! Ai, que se o pilho! VALENTINA - Covardia foi a sua! Uma covardia enorme! CARVALHO - Mas ouve, afinal! VALENTINA - Expor-me ao ridículo na rua! Escute, senhor... Seu nome? Sempre me esquece!... CARVALHO - Carvalho Pra evitar este trabalho,

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aqui tem um cartão. (Dando-lhe.) Tome. VALENTINA - Escute: se o senhor fosse um pobretão, um mendigo; se não trouxesse consigo os contos de réis que trouxe, o mesmo afeto lhe tinha, a mesma atenção lhe dava, o mesmo agrado mostrava, o mesmo gosto mantinha! Mas o senhor está bem... Antes o não estivesse... CARVALHO (À parte.) - Esta agora! se eu soubesse não tinha gasto vintém... VALENTINA - Em minha casa que paga julga o senhor, porventura, a amizade santa e pura desta infeliz que o afaga? Pois saiba que o seu dinheiro, se o gasta, não é comigo! CARVALHO - Pois eu não gasto contigo? VALENTINA - Não, senhor. Ouça primeiro e depois fale à vontade. (Fazendo-o sentar-se à força na poltrona.) Sente-se... Vamos! convenha... Acha provável que tenha mais doce comodidade em qualquer outra poltrona? CARVALHO - Não acho, não, certamente que este cômodo excelente nenhuma outra proporciona. VALENTINA - Bem! agora venha cá. (Fá-lo erguer-se da poltrona e deitar-se no sofá.) Deite-se... deite-se! Assim! CARVALHO (Deitado.) - Mas que queres tu de mim? VALENTINA - Que tal acha este sofá? Diga... Diga! CARVALHO - É uma obra prima! É o melhor sofá do mundo! A gente vai para o fundo e depois volta pra cima! Hoje - não te digo nada - fiz uma bela soneca! VALENTINA - Levante um pouco a careca, e chegue mais a almofada. CARVALHO (Depois de obedecer.) - Estou no sétimo céu! VALENTINA - Pois bem: venha ver o oitavo! Erga-se! siga-me! (Leva-o à porta da direita alta.) CARVALHO (Olhando para dentro.) - Bravo Que belo sobrecéu! que cortinado bonito! VALENTINA - E a cama? CARVALHO - A cama conheço...

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VALENTINA - Que tal? CARVALHO - Um traste de preço, de um gosto muito esquisito pouco mais alta que o chão... VALENTINA - É moda agora... CARVALHO - Sei... sim... A gente, se faz assim, bate nas esteira coa mão Minha cama na fazenda é deste tamanho... VALENTINA - É alta! CARVALHO - Ninguém para cima salta sem que a dar um pulo aprenda! Por causa disto a madama viu-se muito embaraçada: muito depois de casada, não se deitava na cama, sem subir por uma escada! Hoje pula como um gato! VALENTINA (Apontando sempre para o quarto.) - Veja que lindo tapete! que magnífica toalete! que guarda-roupa! CARVALHO - É exato. VALENTINA - Peanhas, estatuetas, ondinas de biscuit! (Percorrendo a cena e mostrando a sala, trazendo Carvalho pela mão.) Veja: nada falta aqui! Chinoiseries, bocetas, e reposteiros de rendas! Espelhos, lindas gravuras em suntuosas molduras! CARVALHO - Sim, tens aqui muitas prendas. VALENTINA (Descendo à cena.) - Muito dinheiro enterrado está aqui! CARVALHO - Tens gosto. Toca! VALENTINA (À Parte.) - Na Rua da Carioca tem sido tudo comprado... CARVALHO - O que te digo é que há trastes que com o dono parecem! Teus olhos tudo merecem; que importa que tudo gastes? VALENTINA (Aproximando uma cadeira.) - Meu caro, agora expliquemo-nos. Os cobres que me tem dado emprego... tenho empregado em tudo isto... CARVALHO - Sei. VALENTINA - Sentemo-nos. CARVALHO - Sim... tanto se paga em pé como sentado. (Senta-se.) VALENTINA - O senhor não traz o meu puro amor

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dentro do porte-monnaie Paga poltrona macia, leito fofo e perfumado, suntuoso cortinado, custosa tapeçaria. Os carinhos de uma amante com beijos se restituem: eles nãos se retribuem com sujo metal sonante. Este rifão acertado sempre na memória traga: amor com amor se paga... CARVALHO - É muito velho o ditado porém não menos o é o que diziam meus tios... VALENTINA - Qual é? CARVALHO - Dois sacos vazios não se podem ter de pé. E há mais outro... VALENTINA - Ouça primeiro: o senhor gosta do luxo; pois bem: agüente o repuxo, uma vez que tem dinheiro. Eu, para estar de harmonia com o luxo que vejo em roda de mim, devo andar à moda, ter preciosa pedraria. Quer que lhe tenha paixão, sem que lhe custe brilhantes? Vivamos quais dois amantes dos tempos que já lá vão. Pr'algum romance ou comédia terão assunto depois! Carvalho! sejamos dois amantes da Idade Média! Lá, numa ilha deserta, longe da vista mundana, vivamos numa choupana de verdes folhas coberta! Deixa tudo quanto tens, esposa, filha, fortuna! Nada disso se coaduna coa vida que viver vens. Sim ou não? Responde, enfim! (Erguendo-se.) Mas nos teus olhos eu leio a hesitação, o receio... É que só me amas assim! Se por acaso me visses magra, suja, maltrapilha... CARVALHO (Levantando-se.) - Onde, meu Deus?... VALENTINA - Na tal ilha... ... duvido que tu sentisses a caridade vulgar,

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sequer, por esta a quem hoje o dinheiro foge, foge, porque quer decente andar. Se me amas porque sou bela, mais bela faze-me ainda: verás como fico linda com os tais brilhantes! CARVALHO (À parte.) - Cautela! (Conduz Valentina para o sofá e sentam-se.) Agora atenção me presta? Pois não me interrompa, e ouça! Arre! que nunca vi moça mais exaltada que esta! Eu quero dar-te as tais bichas: tomo o céu por testemunha! Mas tomas o pião à unha e desejas que haja rixas onde amor só deve haver! - É um refinado tratante, (acredita!) o meliante que as tais bichas quer vender. Conheço aquele menino! e juro, por Quem nos ouve, que até esta data, não houve quem me enganasse... sou fino. VALENTINA - Muito fino! És um portento! CARVALHO - As bichas são muito belas; mas ele pede por elas mais cinqüenta por cento do que deve! O maganão quer roubar duma assentada dois contos! Que vá pra estrada, de bacamarte na mão! Já fiz ver ao tal sujeito: por quatro coas bichas fico. E não abro mais o bico a semelhante respeito. (Ergue-se e passeia pela sala, com as mãos nas costas. Pausa.) VALENTINA (À parte.) - Que idéia! (Levanta-se. Alto.) Bem pouco entendo de jóias. CARVALHO - Entendo eu! Por isso o preço ao judeu fui logo, logo dizendo. VALENTINA - Não sei se estás a iludir-me; se as bichas valem somente o preço que dás... CARVALHO - Ó gente! Outro ouvires que o confirme! (À parte.) Se ela indaga, estou perdido! VALENTINA - Pode bem ser que não queiras dar-me os seis contos e... CARVALHO - Asneiras!

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Não quero é ser iludido! Faze-me mais um discurso! vem-me com outras cantigas!... mas olha que não me obrigas a fazer figura de urso! VALENTINA - Não queres gastar, mau, feio! Tens um meio extraordinário para provar-me o contrário. CARVALHO - Vamos lá ver esse meio. VALENTINA - Vou falar já com o ouvires, se o valor a jóia tem que dás, ele cede... CARVALHO - Bem! VALENTINA - Mas, para que não te prives do gosto de me of'recer os seis contos por inteiro... CARVALHO (À parte.) - Aí! que aí volta o pampeiro! (Alto.) Mais eu não posso entender... VALENTINA (Afagando-o.) - Não te contrario: assim bem mostro que te idolatro: se a jóia compras por quatro dar-me-ás os dois para mim. CARVALHO (À parte.) - Ai, ela agora filou-me! VALENTINA (Largando-o.) - Hesitas? Eu logo vi! CARVALHO (Titubeando.) - É que... tu sabes... mas... se... (À parte.) 'Stou arranjado! apanhou-me! VALENTINA - Senhor, supus... CARVALHO - Não te excites; eu vou buscar o dinheiro... manda chamar o joalheiro. (Tomando o chapéu.) Mas ouve, e não te arrebites: se ele der por quatro, é tua e tens mais dois. Se não der por isso, não hás de ter nem jóia nem... (Sinal de dinheiro.) VALENTINA - Anda! Rua! (Carvalho sai.) CENA VI VALENTINA, depois O JOALHEIRO VALENTINA (Dirigindo-se à porta por onde saiu Carvalho.) - Tu queres fazer-te de esperto... Oh! mais esperta sou eu! O JOALHEIRO (Pondo a cabeça fora da porta.) - Entrar já posso? VALENTINA - Decerto. O JOALHEIRO (Descendo à cena.) - Tolo! chamar-me de judeu e tratante! Eu tudo ouvi por trás daquela cortina! VALENTINA -Viu que o maldito sovina diz que não valem... O JOALHEIRO - Vi... vi....

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Quem lhe dera que valesse tanto quanto os meus brilhantes! Mas olhem que estes amantes... VALENTINA - Todos eles são como esse! Já homens eu não descubro. Ora, imagine que há meses, e isso se dá muitas vezes, em que as despesas não cubro! O JOALHEIRO - Também me queixo um bocado, pois o negócio vai mal, tudo o que vendo é fiado e não recebo um real! Mas vamos; em que ficamos? Olhe: tentá-la não quero... VALENTINA - Uma idéia tenho; espero que há de aprová-la. O JOALHEIRO - Vejamos... VALENTINA - Disse ele que, se comprar por quatro contos a jóia, dá-me dois contos, e foi à casa o dinheiro buscar. O JOALHEIRO - Sei tudo e não peço bis, graças àquela cortina. Saiba, Dona Valentina, que é uma primorosa atriz! Sei o que quer: que lhe entregue a jóia por quatro agora, para receber da senhora os outros dois: pois sossegue: estou por tudo, na 'sp'rança de que os seis contos receba. VALENTINA - Mas ele que não conceba a menor desconfiança! O JOALHEIRO - E os dois contos? Onde estão? VALENTINA - Dar-lho-ei quando os tiver. O JOALHEIRO - Como assim? VALENTINA - Quando mos der o fazendeiro. O JOALHEIRO - Isso não! VALENTINA - Dúvida de mim? O JOALHEIRO - De tudo! Ai, minha rica senhora, não me dizia inda agora que este tempo anda bicudo? Desculpe... que quer? Sou franco... VALENTINA - 'Stá bem. 'Stá bem! Não insisto: é justo. (Tirando papéis do bolso.) Sabe o que é isto? O JOALHEIRO - Olé! São cheques do banco! VALENTINA - Que horas tem? O JOALHEIRO (Vendo o relógio.) - É meia hora. VALENTINA - Pois vou buscar o dinheiro. Quando vier o fazendeiro...

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O JOALHEIRO - Vá descansada a senhora: julguei que só mo daria quando lho desse o sujeito. Há de encontrar tudo feito, quando voltar coa quantia. VALENTINA (Pondo o chapéu.) - Posso fazer um bom gancho... O JOALHEIRO - Quatro contos arrecada; mas se está contrariada, todo o negócio desmancho: não tento... VALENTINA - Espere-o. Adeus (Sai.) O JOALHEIRO - Vá descansada. CENA VII O JOALHEIRO, só [O JOALHEIRO] - É barato; mas o lucro imediato é bem bom, graças a deus! Daqui a dez dias talvez a jóia não seja dela: por cinco me há de vendê-la; por sete a vendo outra vez. (Desembrulha a caixa da jóia, que tira da algibeira, abre-a, e contempla-a com ar compassivo.) Alvos brilhantes, peregrina jóia, vou brevemente me ausentar de vós! De vendedor não julgueis ser tramóia este elogio que vos teço a sós! Ninguém nos ouve nem nos vê; portanto não é suspeito o cândido louvor. Sinto nos olhos da saudade o pranto, sinto no peito a languidez do amor! Durante o tempo em que tu foste minha, prenda formosa, prenda sem rival, todos os dias à minh'alma vinha lástima prévia... Adivinhava o mal! Adivinhava enfeitarias breve o corpo impuro que te apeteceu; foi rara jóia de valor que teve melhor destino que o destino teu. Ai, se eu te visse envelhecida, gasta... toda arranhada... não fazia mal... Mas nas orelhas de uma esposa casta... prenda formosa, prenda sem rival!

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CENA VIII O JOALHEIRO, CARVALHO CARVALHO (Entrando.) - Ora viva! (À parte.) Ele por cá! É mau sinal... (Vendo a jóia.) E os brilhantes... O JOALHEIRO - 'Stava aqui há alguns instantes a sua espera. CARVALHO - Onde está Valentina? O JOALHEIRO - Saiu; tinha algumas voltas que dar. CARVALHO - E o senhor vem cá buscar o quê? O JOALHEIRO - Eu lhe digo... eu vinha... CARVALHO - Para que voltou aqui? O JOALHEIRO - Saiba Vossa Senhoria... CARVALHO - Uma ridicularia pela jóia ofereci. Não quer decerto vendê-la por quatro contos... O JOALHEIRO - A instâncias das minhas circunstâncias, sou obrigado a cedê-la. (Dando-lhe a jóia.) Aqui tem. Tudo isto é seu. De não vendê-la com medo a qualquer outro, é que a cedo pelo que me ofereceu. CARVALHO (Sem aceitar a jóia.) - O quê? Pois por quatro contos quer ma ceder?... Vale seis! O JOALHEIRO - De quatro contos de réis nós precisamos de pronto. Se inda agora não cedi, foi porque tinha contado com eles por outro lado.. É sua jóia: ei-la aqui! (Entrega-lha.) É pechincha! Mas... que quer? Tenho uma letra a vencer-se... (Vendo o relógio.) E não me dá que converse vinte minutos sequer. CARVALHO - Se Valentina tivesse dinheiro acaso, diria que entre o senhor e ela havia combinação. O JOALHEIRO (A meia voz.) - Mas, se houvesse, eu, muito em particular, Tudo diria. CARVALHO - Acredito (À parte.) Outro remédio - bonito - não tenho senão pagar! O JOALHEIRO - Veja que esplêndidos são! Veja que são opulentos!

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CARVALHO (deita a caixa da jóia sobre o sofá, tira do bolso a carteira e dá notas do banco ao joalheiro.) - Oito notas de quinhentos! O JOALHEIRO (Depois de conferir e guardar o dinheiro.) - Da nossa casa o cartão aqui tem. CARVALHO - Faça favor... Traz estampilha? O JOALHEIRO - Sim, trago... CARVALHO (Apontando para a secretária.) - Diga-me ali que está pago. O JOALHEIRO - Pois não; é pouco trabalho. (Senta-se à secretária, toma papel e pena.) Seu nome? - Que bom papel! CARVALHO - O Tenente-coronel Joaquim dos Santos Carvalho. (O joalheiro escreve. Á porta da esquerda, segundo plano, aparece João de Sousa.) CENA IX O JOALHEIRO, escrevendo, CARVALHO, O JOALHEIRO, JOÃO DE SOUSA CARVALHO (Admirado, vendo Sousa.) - Ó compadre João de Sousa! SOUSA (Também admirado.) - Ó compadre! (Correm um para o outro e abraçam-se com efusão.) O JOALHEIRO (Parando de escrever, consigo.) - Me enternecem! (Aproximando-se dos dois, que novamente se abraçam em silêncio.) - Uma vez que se conhecem, mandem vir alguma coisa. [Cai o pano] ATO TERCEIRO A mesma decoração CENA I JOÃO DE SOUSA, JOAQUIM CARVALHO (Este sentado na poltrona, aquele de pé.) SOUSA - Agora, caro compadre, que boas novas te dei dos pequenos, da comadre, que de saúde deixei, explica a tua presença aqui CARVALHO - É bem natural. SOUSA - Se me concedes licença, direi que começa mal: meter aqui o bedelho homem casado não vem! E além de casado, velho! De natural nada tem... CARVALHO - E você? como é que explica sua presença? Ande lá!... SOUSA - A minha só significa

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que sou bom pai: aqui está! Na casa em que estou agora não era capaz de entrar, me pagassem muito embora! CARVALHO (À parte.) - E eu entro para pagar... SOUSA - Fui obrigado a fazê-lo... Hei de contar-te depois. Mas, tu, compadre! Um modelo! CARVALHO - Ouve, e fique entre nós dois... Porém, agora reparo que não te queres sentar! SOUSA - Eu tenho um caráter raro, tenho uma alma singular! Sentar-me nestas cadeiras! Livre-me Nosso Senhor! (Escarra e cospe.) Cuspir nas escarradeiras farei... por muito favor. Da morte embora nas ânsias, sentar-me... Oh! Não sou capaz! Eu não venço as repugnâncias que esta miséria me faz! Este luxo deslumbrante é vil, é mais do que vil: produto negro, infamante, do falso amor mercantil! Não sei que nome lhe quadre, não sei seu nome qual é... (Outro tom.)Você desculpe, compadre, mas hei de ouvi-lo de pé. CARVALHO - És rigoroso, contudo... SOUSA - Eu penso assim... CARVALHO - Pensas bem. (Erguendo-se.) E para dizer-te tudo, eu me levanto também. (Depois de alguma pausa.) Como sabes, compadre, vim à corte vender uma partida de café; era gênero de primeira sorte; nos comissários não fazia fé. Fiz bom negócio. Efetuada a venda, as malas a arrumar me decidi. Os deveres chamavam-me à fazenda... Infelizmente Valentina vi... Encontrei-a no Prado Fluminense; ela, a sorrir, mandou-me o seu cartão... Um pecador que se já não pertence tornei-me desde aquela ocasião. Vivemos sós. Aqui ninguém mais entra. Neste retiro sinto-me feliz. E a minha f'licidade se concentra no que ela pensa, ordena e diz!

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Forçoso é dar um paradeiro a isto! Lá na fazenda espera-me o dever! É grande a sedução, mas eu resisto: e posso me ausentar quando entender! Com parcimônia me regrado tenho; só um conto gastei; nem mais um vintém. Só hoje é que quatro gastar venho co'estes brilhantes que lhe dei. SOUSA (Pega na jóia; depois de examiná-la com indiferença.) - Pois bem. (Deixa a jóia onde estava. Pausa.) Compadre, vou expor-te: apareceu lá na roça, em minha casa... na nossa... um rapaz aqui da corte. Foi há seis dias... e meio. Como pelo meu cunhado me fora recomendado, em minha casa hospedei-o. - Era muito divertido; conversa muito bem; finalmente, que haja alguém mais simpático duvido. Descobri (sabes, meu rico, que não há quem me embarrele) que entre minha filha e ele havia seu namorico. Tu sabes: eu sou pão-pão. queijo-queijo; sabes? CARVALHO - Sei. SOUSA - Por isso lhe perguntei qual era sua intenção. Era casar. Ela quer... Eu não sou dos mais incautos, pois não estive pelos autos... e disse à tua mulher: "Vamos ver se ele a merece. Não é seguir boa trilha entregar um pai a filha a um homem que não conhece." - Portanto, a missão que trago é indagar; tu bem compreendes que, se a filha me pretendes e eu não te conheço, indago. CARVALHO - Ele é só? SOUSA - Tem uma irmã viúva e muito bonita, que nesta cidade habita. CARVALHO - Tu viste-a? SOUSA - Certa manhã

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vi-lhe o retrato: é bonita Ele ficou de voltar para saber da resposta; minha filha está disposta a se esquecer, ou casar. Minha medida acertada não achas? CARVALHO - Acho. SOUSA (Inflamando-se.) - Pois bem; sabes, compadre, com quem casava a tua afilhada, se eu não fizesse este exame? CARVALHO (Intrigado.) - Com quem? SOUSA (indignado.) - Com um homem nojento, um tipo asqueroso, odiento, maroto, velhaco, infame! CARVALHO (Benzendo-se.) - Valha-me Nossa Senhora! SOUSA - Esse covarde, esse réu de polícia, é chichisbéu da sujeita que aqui mora!... CARVALHO - De Valentina?! Não!... Qual!... Enganaram-te compadre... Pintaram contigo o padre... Aqui não entra um mortal! SOUSA - Não entra! Digo-te mais: esse miserável homem. qual outros que á custa comem destas harpias sensuais, pelas famílias malditas, é quem às compra lhe vai, quem com ela às vezes sai... É quem lhe traz as visitas!... CARVALHO - E tu, por mais que me digas, compadre, estás enganado. SOUSA - 'Stou muito bem informado: é seu chichisbéu! CARVALHO - Cantigas! SOUSA - Tens uma venda nos olhos, pois deixa que hei de arrancar-ta enquanto é tempo, te aparte destes ásperos abrolhos. Não seja o tipo eterno do ridículo matuto, o lorpa, o simples, o bruto, sem juízo, sem governo! a quem já nem mesmo importa mulher ou filha, se topa um desses demos que a Europa todo os dias exporta! - Como vês, compadre, aqui, a este lupanar lascivo, me trouxe melhor motivo que o mau que te trouxe a ti.

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Meu espírito recua em frente desta desonra: mas venho salvar a honra... e tu vens perder a tua... - Que mal vos fazem, serpentes - víboras vis, - não direi homens assim (Aponta para Carvalho.) que bem sei vos procuram imprudentes; porém a esposa, que vive da confiança do esposo, e perde da alma o repouso ao mais ligeiro declive da sua felicidade?! É o filho, cujo futuro 'stá no respeito seguro do pai pela sociedade?... - Tua mulher nunca teve brilhantes. Nunca lhos deste, e contudo os dá a peste que na corte te reteve, enquanto lá na fazenda o obrigação te esperava e ao deus-dará tudo andava!... - Que o que digo não te ofenda; mas o teu procedimento, compadre, não tem desculpa! Não lava tão grande culpa sincero arrependimento! - Vamos! nem mais estejamos em casa desta mulher! Amanhã, se Deus quiser, o trem de ferro tomamos. (Pegando na jóia.) A jóia! ninguém a pilha!... Sou eu que a quero guardar. (Abrindo a caixa.) Olha, isto fica a matar na orelha de tua filha... (Guarda a jóia na algibeira.) Como hás de ficar contente - parece-me estar a ver - quando Laura agradecer um tão bonito presente. Ouve os meus conselhos sábios: de Laura os beijos na testa, certo valem mais que o que esta mendiga te dá nos lábios. Vamos! Anda! (Dá-lhe o chapéu e o sobretudo.) CARVALHO (Vestindo o sobretudo e pondo o chapéu.) - Não discuto sobre a verdade dos fatos, que não sei se são exatos, nem mentirosos reputo. Vamos embora, mas quero que, antes de irmos, te convenças

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desses boatos que ofensas me parecem. SOUSA - Pois espero Nós aqui, com alguma arte, tudo havemos de descobrir; tomara que eu possa rir de maneira que me farte. (Dispondo-se a sair.) Espera-me alguns instantes, Em casa desta jibóia não há de ficar a jóia. Confia-me os teus brilhantes. (Sai) CENA II CARVALHO, só [CARVALHO] - Zombaram do compadre! Aquele coração não pode alimentar tamanha perversão! Valentina é um anjo: as lágrimas que chora não se podem fingir. Não digo que me adora, mas ama-me, decerto. Um anjo, que me diz: "Se tu não fosses rico, eu era mais feliz!" Eu não lhe pago o amor; apenas eu lhe pago as cadeiras, o leito, o canapé que estrago e os quadro que desfruto. O mal, o grande mal foi vê-la e gostar dela. É muito natural que um velho feio, achando uma mulher que o ame que, sem saber se é rico, o seu amor reclame, sinta que lhe desperta o morto coração. (Pausa.) Mas o compadre... Não! Não é possível! não! O compadre... Ora adeus! Até causou-me tédio! Vamos, Joaquim Carvalho: o que não tem remédio remediado está. É preciso sair! Mas não como ele quer; sair e não fugir! A ingratidão não está na minha natureza. As bichas hão de ser a última despesa... CENA III CARVALHO, GUSTAVO GUSTAVO (Entrando sem cerimônia, sem reparar em Carvalho, pela esquerda, segundo plano.) - Valentina (Vê Carvalho e tira o chapéu atrapalhado.) - Perdão... perdão... CARVALHO - Quem é? GUSTAVO - Senhor, eu vinha procurar... o doutor... o doutor... CARVALHO - O senhor, ao entrar, exclamou: - Valentina! Pois é quem mora aqui. Que quer dessa menina? GUSTAVO - Não! Vossa Senhoria enganou-se... CARVALHO - Ora qual! Ouvi distintamente o seu nome. GUSTAVO - Ouviu mal. CARVALHO - Pior é essa! Ouvi - Valentina!

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GUSTAVO - Eu procuro o doutor... Perdigão... CARVALHO - Ai, mau! GUSTAVO (À parte.) - Não acho furo! (Alto.) Julguei que aqui morasse o Doutor Perdigão: É Vossa Senhoria? CARVALHO - Ai, mau! GUSTAVO (À parte.) - Que entalação! CARVALHO - Antes de entrar aqui, devia bater palmas! Nesta população de quinhentas mil almas só o senhor assim procede! GUSTAVO - Mas, senhor, eu vinha procurar o doutor... CARVALHO - Que doutor! A senhora que aqui reside não é dessas... Vá lá! Não continue! Sai-lhe o trunfo às avessas! GUSTAVO - Pois bem, adeus; perdoe um desalmado! CARVALHO - Bem! (Enquanto Gustavo sai por onde entrou.) Aqui não se costuma a desmentir ninguém. CENA IV CARVALHO, só [CARVALHO] - Que grandíssimo idiota! Talvez que também suponha... É muito pouca vergonha... (Depois de dar alguns passos pela sala, para, como ferido por uma idéia súbita.) Esperem! Este janota será o tal chichisbéu de quem falou inda há pouco o meu compadre?.. Estou louco! Não pode ser. Deus do céu! Porém verdade, verdade, não deve entrar um estranho assim com tanto arreganho, com tamanha liberdade em casa e uma pessoa que não conhece! Ele entrou, e "Valentina" gritou! Havia de entrar à toa sem que por ela estivesse autorizado? Não vê! Ah! compadre, que você, se não tem razão, parece... (Fica pensativo. Senta-se no sofá.) CENA V CARVALHO, SOUSA SOUSA (Entrando pela esquerda. segundo plano, e indo a Carvalho.) - Donde estão os teus brilhantes nem mil mulheres os tiram! (À parte.) Do bolso meu não saíram;

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é bom que os julgues distantes pelas dúvidas... (Alto.) Então? Que tens, que estás pensativo?... dessa tristeza o motivo ou motivos quais são? Dar-se-á caso que o remorso dos teus negros pecadilhos contra a esposa e contra os filhos se te escarranchasse ao dorso? Serão saudades pungentes daqueles que tanto adoras? Como eles choram, já choras? O que eles sentem já sentes? Ou simplesmente suspeitas são de que verdade era quanto disse da megera por quem a perder te deitas? CARVALHO (Erguendo a cabeça.) - Não é nada. SOUSA - Dentro em pouco sucede à melancolia, que o teu semblante anuvia um contentamento louco! (Aproximando-se de uma das janelas e entreabrindo a cortina com a bengala.) A recrudescer começa o movimento das ruas.(Consultando o relógio.) Já passa um quarto das duas. (Olhando para a rua.) Compadre, vem cá depressa! CARVALHO (Erguendo-se e aproximando-se de Sousa.) - O que é? SOUSA (Apontando para a rua.) - Vês ali parado aquele sujeito... Aquele...? Pois é o chichisbéu! CARVALHO (Como reconhecendo.) - É ele!... SOUSA - Vais ver se estou enganado, ou se é certo o que te disse! Há de ficar cuma cara... CARVALHO (Olhando para a rua.) - Lá vem Valentina; para; conversa com ele; ri-se! Parece que ele lhe conta a aventura de inda há pouco... SOUSA - Que aventura?... CARVALHO - Que descoco! Para este lado ele aponta. SOUSA (Que tem observado;) - Espera! Se não me engano é a senhora do retrato! CARVALHO - Quem? Aquela? (Aponta.) SOUSA - Exato! Exato! CARVALHO - Que é Valentina te digo! SOUSA - Valentina! Valentina! Ela chama-se Joaquina e é mana do tal amigo. (Tirando Carvalho pelo braço.) Depressa! Esconde-te cá

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Por detrás desta cortina, se é Joaquina ou Valentina, verás! (Faz com que Carvalho se coloque atrás da cortina da outra janela. Olhando para a rua.) - Eles aí vem já! (Indo para a outra janela.) Eu aqui também me escondo. Não faças rumor! CARVALHO (Escondido.) - Descansa. SOUSA - Deixa, que a nossa vingança há de aqui fazer estrondo! CARVALHO (Pondo a cabeça para fora.) - Mas que queres tu que eu faça? SOUSA - Se ver tudo não puderes, ao menos ouve! CARVALHO - Ah! mulheres!... SOUSA (Abrindo a cortina com repugnância.) Pegar nisto! Que desgraça! CARVALHO - É preciso ser malvada, para que esta moça me iluda: tantas provas dei... SOUSA - Caluda! que sinto passo na escada. (Desaparecem ambos.) CENA VI CARVALHO, SOUSA, escondidos, VALENTINA, depois GUSTAVO VALENTINA (Entra pela esquerda, segundo plano, e começa a procurar Carvalho.) - Carvalho! Joaquim Carvalho! Quincas! Quincas! Carvalhinho! (Entra, procurando sempre, na direita, primeiro plano.) CARVALHO (A meia voz, pondo a cabeça para fora.) - Que diz a isto, ó vizinho? SOUSA (No mesmo.) - É preciso tempo; dá-lho. (Escondem-se.) VALENTINA (Volta e convencida que está só, vai à porta da esquerda, segundo plano, e diz para fora.) - Podes vir, que foi-se embora. (Vem sentar-se.) Fecha a porta à chave. (Gustavo entra.) CARVALHO (À parte.) - É ele. GUSTAVO - Então foi-se embora aquele 'stúpido? CARVALHO (Na janela, à parte.) - Hein? VALENTINA - Foi-se. GUSTAVO - Inda agora estava ele aqui. VALENTINA - Já sei... já me disseste... Mas vamos... GUSTAVO - Lá vou. VALENTINA - Tempo não percamos. GUSTAVO (Sentando-se em uma cadeira.) - Numa vila em que eu andei, hospedou-me um fazendeiro que se chama João de Sousa;

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tipo que deve ter coisa de cem contos em dinheiro. Tem uma filha bem boa; tivemos logo um derriço pequeno... VALENTINA - Não passou disso? GUSTAVO -Nada! Há coisa que mais doa que uma carga de pau? - O pai, que não é simplório, deu-me a entender que o casório não tinha nada de mau. Não refleti um momento... SOUSA (À parte.) - Mas eu é que refleti. GUSTAVO - Sem mais nem menos, lhe pedi a pequena em casamento... VALENTINA - Mas isso não vem ao caso... GUSTAVO - Do resto vou por-te ao fato: eu levava o teu retrato comigo, por mero acaso. O velhote estava um dia a meu lado, e viu nas malas... (Eu estava a desarrumá-las..) ... a tua fotografia. Quis saber logo quem era! Imagina o que lhe disse - fora de certo tolice falar verdade. VALENTINA - Pudera! Na tua situação! GUSTAVO - Que eras minha irmão viúva... VALENTINA - Tira o cavalo da chuva! Pois lhe disseste isso?... SOUSA (À parte.) - Cão! GUSTAVO - O velho achou-te uma flor! Muitos elogios fez-te! Enfim, nunca tiveste mais sincero admirador! VALENTINA - Finalmente... o que concluis? GUSTAVO - Que concluo? Ora essa é boa? Que do velho na pessoa raro tesouro possuis! Armamo-lhe um forte logro! Ele supõe que és honesta: casa-se contigo. CARVALHO (À parte.) - E esta?... GUSTAVO - Por esse tempo é meu sogro. Liquidamos o que houver (Ação de furtar.) e fugimos para a América! - Que tal esta idéia? VALENTINA - Homérica! GUSTAVO - É um país. como se quer, a América! De lá passamos à Itália, à França, à Alemanha,

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à Suíça, à Áustria, à Espanha! Todo mundo visitamos! quando voltarmos, ninguém de nós se lembra, descansa... VALENTINA - Só de ser rica a lembrança, não sei por quê, faz-me bem. CARVALHO (À parte.) - Custa-me a crer! GUSTAVO - Mas que dizes? Se tomas conta do pai e a filha nas mãos me cai, seremos muito felizes! Eu, que desveladamente faço a tua f'licidade, batendo toda a cidade, buscando quem te freqüente, venho trazer-te a ventura, a independência talvez! VALENTINA - Mas trata-se desta vez de uma arriscada aventura! GUSTAVO - Que tem que seja arriscada? Somos alguns trapalhões? Já pensei nas precauções que exige a empresa arrojada. Minha irmã viúva morreu: podes bem passar por ela, e o marido que foi dela passa por marido teu. Mudas de nome, isso sim! Em lugar de Valentina, tu ficas sendo Joaquina. Ela chamava-se assim. (Batem à porta da esquerda, segundo plano.) VALENTINA - Quem bate? (A Gustavo.) Vai para a sala de jantar. Já lá vou ter. (Gustavo saí pela direita, segundo plano. Valentina abre a porta. Entra o joalheiro.) Ah! é o senhor! CENA VIII CARVALHO, SOUSA, escondidos, VALENTINA, O JOALHEIRO O JOALHEIRO - Vim trazer o seu recibo. Esperá-la não pude, que o fazendeiro estava aqui. VALENTINA - Bem, dê cá. (O joalheiro dá-lhe o recibo, que ela lê.) O JOALHEIRO - 'Stá tudo conforme? VALENTINA - Está! (Tirando um maço de notas da bolsa e dando-lhas.) Aqui tem o seu dinheiro. O JOALHEIRO (Depois de contar as notas.) - Dois contos. Está exato. (Guardando-as.) Muito obrigado. - A menina

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fez um negócio da china! Por um preço tão barato nunca brilhantes daqueles ninguém possuiu! VALENTINA - Lamento que aquele tolo e avarento não pagasse tudo. O JOALHEIRO - E eles. Os brilhantes? Já lhos deu. o fazendeiro? VALENTINA -Inda não; mas não tarda aí. SOUSA (À parte.) - Ladrão! O JOALHEIRO - Pois aproveite-o. CARVALHO (À parte.) - Judeu! O JOALHEIRO (Apertando-lhe a mão como para retirar-se.) - Se os brilhantes quer vender... VALENTINA - Por quanto? O JOALHEIRO - Por cinco contos... VALENTINA (Pensando.) - Ganho três O JOALHEIRO (Deixando de apertar-lhe a mão e batendo no bolso.) - Já cá estão prontos; se quiser, é só dizer... VALENTINA (Pensando.) - Não é má idéia, não.. (Resoluta.) Vou consultar com Gustavo... Espere um pouco... (Sai pela direita, segundo plano.) CENA VIII SOUSA, O JOALHEIRO, CARVALHO O JOALHEIRO (Que se julga só.) - Bravo! Um conto de pé pra mão! SOUSA (Saindo do seu esconderijo e tomando o braço do joalheiro.) - Passe já para cá os cinco contos. Já! Não pense! Não reflita! A jóia, ei-la aqui está ! (Tira a jóia da algibeira e arremessa-a aos pés do joalheiro.) O JOALHEIRO (Atônito, apanhando a jóia.- Mas, senhor... CARVALHO (Da cortina.) - Não recuse! Em flagrante delito por crime preso está de estelionato! (Puxando um apito, a Sousa.) Apito? SOUSA - Não apites! não! - Já cinco contos de réis! E dê-se por feliz que eu não lhe peça os seis! O JOALHEIRO (A Carvalho.) - Mas Vossa Senhoria há de passar recibo! (Dá o dinheiro a Sousa.) CARVALHO Eu dou-lhe o seu, cá está! (Dá-lho.) SOUSA (Tendo verificado o dinheiro.) - E saiba que o proíbo de estar mais tempo aqui! Já! Rua! (O joalheiro sai pela esquerda, segundo plano.) CARVALHO - Muito bem! SOUSA - Esconda-se, compadre: os ladrões aí vem.

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CENA IX CARVALHO, SOUSA, escondidos, VALENTINA, GUSTAVO VALENTINA (Entrando pela direita, segundo plano, acompanhada por Gustavo.) - Já cá não está, GUSTAVO - Foi-se embora? VALENTINA - Arrependeu-se talvez... GUSTAVO - Pois olha: mesmo por três é negócio. SOUSA - Nós agora! (Salta do esconderijo e agarra Gustavo pelo pulso.) Ai, grandíssimo cachorro! CARVALHO (O mesmo com Valentina.) - Canalha! corja! canalha! SOUSA (Agitando a bengala.) - Vais ver como isto trabalha! CARVALHO - Pede já perdão! VALENTINA (Caindo de joelhos.) - Socorro!... CARVALHO (Cruzando os braços.) - Pois lucrei com a minha vinda aqui! SOUSA - Com que tua irmã é uma torpe barregã, e tu és mais torpe ainda! Apanha! (Dá-lhe com a bengala.) GUSTAVO (Esquivando-se) - Senhor! SOUSA (Perseguindo-o e dando-lhe.) - Apanha! Toma! Toma! GUSTAVO (No mesmo.) - Ai! Quem me acode? SOUSA - Toma, patife! GUSTAVO - Não pode! (O joalheiro entra pela esquerda, segundo plano e interpõe-se.) CARVALHO - Pouca vergonha tamanha nunca se viu! O JOALHEIRO (Apartando Sousa e Gustavo.) - Mas que é isto? SOUSA - Deixe matar este cão! CARVALHO (A Gustavo.) - Que é do doutor Perdigão? O JOALHEIRO - Que fez o pobre de Cristo? VALENTINA (Como ferida por uma idéia súbita.) - E a jóia? (Cai desmaiada em uma cadeira; Sousa e Carvalho dão-se o braço e descem à cena. Gustavo corre para Valentina, e vendo que está desmaiada, sai pela direita, primeiro plano. Saída falsa. O joalheiro fica ao fundo como que apreciando.) SOUSA (A Carvalho.) - 'Stá satisfeita de todo a nossa vingança! Partamos sem mais tardança! CARVALHO - É compadre, a conta feita, saio com o cobre que trouxe. SOUSA - Eu sinto um prazer estranho; mas hei de tomar um banho quando sair deste alcouce. GUSTAVO (Volta com um frasquinho, que faz aspirar Valentina.) - Valentina!

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SOUSA (Ao público.) - O exemplo importa da estranha aventura nossa, não só aos tolos da roça como aos espertos da corte. [CAI O PANO]

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OS NOIVOS Opereta de Costumes em 3 atos Música de F. de Sá Noronha Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro no Teatro Fênix Dramática, em 12 de outubro de 1880 A seu sogro e bom amigo, o Ilmo. Sr. Henrique Cardoso de Morais, oferece, em sinal de muita gratidão, respeito, amizade e simpatia Artur Azevedo. Não quero fechar este folheto, sem deixar público o meu eterno agradecimento a Emília Adelaide, a festejada atriz, empresária do São Luís, pelo delicado acolhimento que se dignou a fazer a Jóia, e aos generosos e distintos artistas que tomaram parte na representação pela boa vontade com que se houveram no desempenho dos respectivos papéis. A.A. PERSONAGENS O TENENTE-CORONEL FREDERICO PASSOS PEREIRA O DOUTOR PINHEIRO RAIMUNDO O VIGÁRIO O MESTRE ESCOLA CLORINDO LEONOR FRANCELINA DONA MARIA SALUSTIANO FABRÍCIO UM ESCRAVO Escravos, escravas, convidados, rapazes da escola. A cena passa-se no interior da província do Rio de Janeiro, na fazenda do Tenente Coronel. Atualidade. ATO PRIMEIRO Varanda. À esquerda um oratório iluminado, colocado sobre uma cômoda. Ao fundo, tábua de engomar. Do teto pende um lampião. Cadeiras de pau. Ao fundo, parapeito. Além, campo, em perspectiva. CENA I O TENENTE-CORONEL, de pé, junto ao oratório; ajoelhadas a seu lado LEONOR e DONA MARIA ; mais afastados, e ajoelhados também, escravos e escravas. Rezam. AVE MARIA CORO - Ave Maria, cheia de graça! Ave Maria, cheia de amor! Nossos pecados gentil perdoa, Mãe adorada do Redentor! Ave Maria, cheia de graça!

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Ave Maria, cheia de luz! Ave Maria, pomba divina! Ave Maria, mãe de Jesus! (Continua a música na orquestra. Erguem-se todos silenciosamente.) OS ESCRAVOS - A benção, sinhô? A benção, sinhá? O TENENTE-CORONEL - Adeus. LEONOR - Adeus. (Vai encostar-se pensativa à cômoda.) O TENENTE-CORONEL - Tomem a benção à Senhora Dona Maria! OS ESCRAVOS - A benção, sinhá velha? DONA MARIA (À parte.) - Sinhá velha! Desavergonhados. (Alto.) Boa noite. (Os escravos retiram-se, entoando um motivo da Ave-Maria. As vozes perdem-se ao longe.) CENA II O TENENTE-CORONEL, LEONOR. DONA MARIA O TENENTE-CORONEL (Apagando as velas que iluminam o oratório e fechando-o.) - Boa noite. DONA MARIA (Sentando-se.) - Boa noite, Senhor Tenente Coronel. LEONOR - A benção, dindinho? O TENENTE-CORONEL - Deus te faça santa. (Indo dar-lhe a mão a beijar.) Deus te faça santa. (Fazendo baixar o lampião e acendendo-o com um fósforo.) Ainda está bastante claro, mas fica feito o serviço. Neste tempo, quando menos se espera, é noite fechada. (Indo sentar-se junto de Dona Maria.) Tem-se aborrecido muito na fazenda, não é assim, Senhora Dona Maria? DONA MARIA - Eu? Pelo amor de Deus, Senhor Tenente-coronel! Há oito dias que aqui estou e não tenho vontade alguma de voltar para a vila. Aquilo anda por lá muito civilizado. Ou viver na roça, mas na roça propriamente dita, ou corte; eu sou pelos extremos. O TENENTE-CORONEL - Ainda bem! DONA MARIA - Estou aqui tão bem como se estivesse em casa de minha irmã das Laranjeiras. O TENENTE-CORONEL - Faça de conta que está em sua casa. Vou dar uma volta pelo terreiro. Até já, Senhora Dona Maria. DONA MARIA - Até já, Senhor Tenente-coronel. O TENENTE-CORONEL - Até já, menina. Você anda triste; o que é isso? LEONOR - Nada, dindinho. O TENENTE-CORONEL (Arremedando-a.) - Nada, dindinho. - Quem bem nada não se afoga. (Sai pelo fundo.) CENA III LEONOR, DONA MARIA DONA MARIA - Seu padrinho tem razão, a senhora não tem estado no seu natural. Pois olhe, não parece que haja motivo... é tão feliz... (Leonor chora.) Então? O que dizia eu? Está chorando... LEONOR - Não é nada... DONA MARIA - Vamos... diga-me... Confie-me as suas mágoas. Quem sabe se não lhe poderei dar remédio? Donde não se espera, daí é que vem. (Toma-a pela mão, fá-la sentar-se ao seu lado.) Conte-me tudo. LEONOR (Lacrimosa.) - A senhora lembra-se do Frederico? DONA MARIA - Do filho do seu padrinho? Perfeitamente. E daí? LEONOR - Quando o Frederico veio, há dois meses, passar as férias na fazenda, disse-me que gostava muito de mim. DONA MARIA - E a senhora? LEONOR - Eu... disse-lhe que também gostava muito dele. DONA MARIA - E enganava-o? LEONOR - Não; mas enganava-me a mim própria; porque, depois que voltou para a corte, nunca mais me lembrei dele.

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DONA MARIA - E é isso motivo par andar triste? LEONOR - O motivo é que jurei pela salvação de minha'lma não pertencer a outro homem; dei-lhe a minha palavra de honra que o esperaria... DONA MARIA - Mas apareceu o Doutor Pinheirinho, o juiz municipal, e a senhora esqueceu-se. LEONOR - Do Frederico, é verdade... Oh! eu não desgosto do Frederico... fomos educados juntos por dindinho, que me recebeu em sua casa mal fiquei órfã... tendo-lhe amizade... mas ao Doutor Pinheirinho... (Ergue-se. Dona Maria ergue-se também.) Oh! ao Doutor Pinheirinho tenho o mais ardente amor! Coplas I - Eu quando o vi a vez primeira nem sei dizer o que senti; Pus-me a tremer desta maneira... tremi... tremi... DONA MARIA - Tremeu? LEONOR - Tremi! Deitar-me fui, mas não dormi... E só lá pela madrugada, É que fiquei mais sossegada... Sentia como um peso aqui. DONA MARIA - Aí? LEONOR - Aqui II Com Frederico... é diferente... Não sinto aquele mesmo ardor! É que namoro isto é somente, E o outro amor! DONA MARIA - Amor! LEONOR - Amor... Ora imagine o dissabor, se Frederico da promessa o cumprimento quer depressa! Valha-me Deus! que horror! que horror! DONA MARIA - Que horror! LEONOR - Que horror! Aconselhe-me: a senhora no meu lugar, o que faria? DONA MARIA - Sei lá! O que lhe recomendo é que - um ou outro - agarre! Agarre com unhas e dentes! A senhora tem de mais o que muitas tem de menos, mas não facilite, que dia de fartura é véspera de necessidade. No meu tempo... quero dizer: quando eu era mais criança, os pretendentes eram assim. (Gesto indicando que eram muitos.) Facilitei, e o resultado foi este que a senhora está vendo... Mais feliz foi minha irmã das Laranjeiras. - Olhe, o que posso fazer é isto: Finjo-me apaixonada pelo Frederico; ele provavelmente fica pelo beicinho e esquece da senhora. Aceita? LEONOR (Irônica.) - Aceito. É infalível. O TENENTE-CORONEL (Fora.) Ó Leonor? LEONOR - Dindinho chama-me. Com sua licença. (Saindo.) Senhor? CENA IV DONA MARIA, só [DONA MARIA] - Pois será possível que eu não ache marido? Eu, que tenho quarenta apólices da dívida pública e uma casa assobradada na vila, afora o que ainda pode vir da minha irmã das Laranjeiras? A pretexto de mudar de ares, vim passar quinze dias na fazenda, com olho no Tenente-coronel; mas qual! o diabo do homem pensa tanto em casar como eu em ficar solteira. Vou atirar o

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anzol ao filho! é um bonito rapaz e daqui a alguns tempos está senhor doutor! Há de ser um gosto! Não hei de faltar aos bailes, espetáculos, consertos, touradas, corridas e regatas!... Regatas, então! Não sei o que é, nunca vi... mas parece-me que hei de ser muito regateira. - Vou escrever a minha irmã das Laranjeiras. (Vai saindo; entra o Doutor Pinheiro.) Oh! Senhor Doutor Pinheirinho! Já... tão cedo?... CENA V DONA MARIA, o DOUTOR PINHEIRO O DOUTOR (Em traje de montar.) - Tem passado bem, minha senhora? (Aperta a mão de Dona Maria.) DONA MARIA - Não... não... Muito nervosa... muito agitada... E o senhor? Está pálido! Sucedeu-lhe alguma coisa? O DOUTOR - Sucedeu. DONA MARIA - Sim? o que foi? O DOUTOR - Faça o favor de ouvir, e, como já não é criança... e deve ter alguma experiência. DONA MARIA - Pouco mais velha serei do que o senhor... Mas, enfim... O DOUTOR - Mas enfim, há de dar-me um bom conselho talvez... Queira sentar-se... (Sentam-se.) Poucos dias antes de ser nomeado juiz municipal deste termo, caí em prometer casamento à filha de um empregado público, na corte. DONA MARIA - Deveras? (À parte.) Que coincidência? O DOUTOR - Faça a senhora idéia de que acabo de receber uma carta desse respeitável chefe de família. DONA MARIA - Sim? O DOUTOR (Dando-lhe uma carta.) - Leia. DONA MARIA - Com sua licença. (Lendo.) "Doutor, como tenho de ir até essa vila, tratar de negócios relativos ao futuro da minha filha, peço-lhe que me dê em sua casa hospedagem por dois ou três dias. De seu amigo, Passos Pereira." (Restituindo a carta.) Está visto que o tal Passos Pereira vem buscar o cumprimento da promessa. O DOUTOR - Mas ele nada sabia. DONA MARIA - A filha provavelmente disse-lho. E razão teve ela! É um meio como outro qualquer e pôr um noivo no seguro. E os noivos são tão raros, meu rico senhor doutor! Isto é: raros para umas... para outras não... Olhe, eu creio que estou resolvida... O DOUTOR (Erguendo-se.) - A casar? DONA MARIA (Com indiferença.) - A casar... Instam tanto comigo! O pretendente não lhe é estranho... O DOUTOR - A mim? (Sentando-se de novo.) Mas, vamos! o que me aconselha, Senhora Dona Maria? Eu não desgosto de Francelina... DONA MARIA - Francelina? Ah! É a filha do empregado público... O DOUTOR - Não desgosto dela... Oh! mas depois que vi Leonor... DONA MARIA (À parte.) - Tal e qual como a outra! O DOUTOR - Oh! Leonor! (Ergue-se, bem como Dona Maria.) Rondó - Ai, que o teu rosto sereno Enfeitiçou-me, Leonor! Meu coração é pequeno, Pequeno pra tanto amor! Meus olhos por teus encantos Enfeitiçados estão; Eles são tais e tantos, Que quase perco a razão! A pobre mãe, que perdeste, Amor te devera ter, Porém mais forte do qu'este

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Não to pudera of'recer. Anjo de amor, adorado Mais do que os anjos o são, Ver-me contigo casado É toda minha ambição. Se num momento maldito, Por outra o peito me arfou, O dito dou por não dito, Pois só teu... só teu... teu sou! Ai, que o teu rosto sereno Enfeitiçou-me Leonor! Meu coração é pequeno, Pequeno pra tanto amor. Mas, afinal de contas, o que me aconselha, Senhora Dona Maria? DONA MARIA - Eu lhe digo... (Entra o Tenente-coronel.) CENA VI DONA MARIA, O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL , depois UM NEGRO. O TENENTE-CORONEL - Ora viva, doutor; estava aí? (Aperta-lhe a mão. Cumprimentam-se.) Veio a propósito; tenho que lhe falar em particular. DONA MARIA (Fazendo uma mesura.) - Visto isso, Senhor Tenente-coronel!... O TENENTE-CORONEL - São duas palavrinhas só. (Dona Maria vai saindo. Entra um negro escravo com uma bandeja cheia de xícaras de café e açucareiro.) DONA MARIA - Está aí o café. (Serve-se de uma xícara, tempera e sai. Enquanto sai, à parte.) O que não me faz conta é que se desmanche o casamento do Doutor com a Leonor. Quero o Frederico livre e desembaraçado. (Desaparece. Durante o aparte, o negro tem-se aproximado dos dois, que se servem. O negro sai.) CENA VII O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL O TENENTE-CORONEL - Tanto paga de pé como sentado. (Senta-se. Cena muda. Sorvem o café. O Tenente-coronel deita os eu no pires, e esfria-o, soprando. Ao Doutor:) Está bom de açúcar? O DOUTOR - Muito bom. O TENENTE-CORONEL - Deste, aposto que não se toma na corte. O DOUTOR - Qual! Nem no Beco das Cancelas! (Vai colocar as xícaras sobre o parapeito e volta a sentar-se. À parte.) Onde vai tocar sei eu.. O TENENTE-CORONEL (Solenemente.) - Senhor Doutor Pinheirinho... ou por outra: Senhor Doutor Pinheiro... O meu compadre Chico Barbosa... ou por outra Francisco Barbosa... (Pausa.) morreu há dezesseis anos... O DOUTOR (À parte.) - É o que eu digo... O TENENTE-CORONEL - Deixou mulher e uma pequenita deste tamanho... A pequenita, porque a mulher... (Indica o tamanho.) A mulher pouco tempo sobreviveu ao dito meu compadre, e a pequenita, que é a Leonor, confiou-ma a viúva poucos momentos antes de morrer... Sou seu padrinho e tutor... A pequenita cresceu... Vossa Senhoria gostou dela; ela gostou de Vossa Senhoria... (Com resolução.) O que eu desejo saber, senhor doutor, é se esta letra está ou não está vencida! O DOUTOR (À parte.) - O que dizia eu? (Alto.) É justo, Senhor Tenente-coronel, e eu... O TENENTE-CORONEL - Ah, meu tempo! meu tempo! Em 1840, quando um rapaz deitava os olhos numa rapariga, a primeira coisa que lhe perguntava era: - Quer casar comigo? E se a rapariga respondia: - Quero, sim, senhor, - lá ia ele direitinho aos pais; e não se lhe dava dez meses para tratarem... O DOUTOR - Do casamento?

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O TENENTE-CORONEL - Nada: do batizado. Hoje a coisa é outra! Dois anos para namorar... Para namorar? Que digo eu!... para... estudar o caráter da noiva... Leva um estafermo pespegado no vão de uma janela com a namorada, a dizer-lhe toleimas de toda a espécie... O que está fazendo? Estudando o caráter... Pervertendo-o, talvez! Verdade seja que isto hoje é uma necessidade... Em 1840, oh! tempora, oh! mores oh! assombrosa versatilidade dos anos! Como dizia o Padre Antônio Vieira, os caracteres eram todos um, porque a educação era outra, e uma... Mas, como ia dizendo, dois anos para isto, um ano para preparar o enxoval, seis meses para tratar dos papéis, etc., etc., quando chega uma senhora a casar, já tem idade para criar pintos! O DOUTOR (Erguendo-se.) - Senhor Tenente-coronel, peço-lhe a mão de Dona Leonor em casamento. O TENENTE-CORONEL (Erguendo-se.) - Isso! Anda mão, enfia dedo. 1840 no caso! Deixe-me chamar a pequena. CENA VIII O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL, depois LEONOR Terceto O TENENTE-CORONEL - Leonor! Leonor! LEONOR (Entrando.) - Senhor! Senhor! (Cumprimentando.) Senhor Doutor... O DOUTOR (Idem.) - Minha senhora... (À parte.) Como ela está encantadora! O TENENTE-CORONEL (Solene) - Minha afilhada e pupila, O doutor, neste momento, Vai pedir em casamento A tua mão. LEONOR - A minha mão? O DOUTOR - A sua mão. (À parte.) Parece que ela vacila... O TENENTE-CORONEL - Por isso quero que digas Se sim ou não. LEONOR - Se sim ou não? O DOUTOR - Se sim ou não... O TENENTE-CORONEL - Em quarenta as raparigas Diziam logo que sim! No meu tempo isto era assim! OS TRÊS - No { meu } tempo era assim! { seu } O TENENTE-CORONEL - Então? que dizes, menina?... Diz qualquer coisa, sinhá! O DOUTOR (À parte.) - O que dirá Francelina? LEONOR (À parte.) - Frederico o que dirá? (Depois de alguns momentos de hesitação.) Eu considero bem feito o que dindinho fizer. O TENENTE-CORONEL - Aceitas, então? LEONOR (Com pequeno esforço.) - Aceito... O DOUTOR (Enlaçando-a.) - Queres ser minha mulher? Queres ser, Leonor divina? LEONOR (Resoluta.) - Quero, sim ora aqui está! O DOUTOR (À parte.) - O que dirá Francelina? LEONOR (À parte.) - Frederico, o que dirá?

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Juntos O DOUTOR LEONOR - Um noivo com duas noivas - Uma noiva com dois noivos! Oh! que triste posição! Oh! que triste posição! Se aparece o pai da outra, Se aparece o Frederico, Vamos ter complicação. Vamos ter complicação. O TENENTE-CORONEL - A pequena já tem noivo! Que grande satisfação! Tenho vencida uma letra! Que prazer e que alegrão! 'Stá dito então? O DOUTOR - Gostas de mim? LEONOR - Gosto, pois não! O DOUTOR - Prazer sem fim! O TENENTE-CORONEL - No meu tempo era assim! OS TRÊS - No { meu } tempo era assim! { seu } (Terminado o terceto, aparece ao fundo, no campo, Passos Pereira acompanhado por um pajem, que aponta para o doutor e desaparece. Passos Pereira bate palmas.) O TENENTE-CORONEL (Ouvindo bater.) - Quem nos honra? PASSOS PEREIRA - Um criado. O DOUTOR (Reconhecendo-o, à parte.) - O Passos Pereira! Estou perdido! O TENENTE-CORONEL - Faça o favor de entrar! CENA IX O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL, LEONOR, PASSOS PEREIRA, depois FRANCELINA, depois um pajem. PASSOS PEREIRA (Entrando.) - Queria dar duas palavrinhas ao Senhor Doutor Pinheiro. O DOUTOR - Senhor Passos Pereira! (Abraçam-se.) Recebi hoje a sua cartinha, mas só o esperava amanhã. Apresento-lhe o Senhor Tenente-coronel João Leopoldo e sua afilhada, a senhora Dona Leonor. (Passando pelo Tenente-coronel, rapidamente e baixinho.) Não lhe diga nada. O TENENTE-CORONEL (Apertando a mão de Passos Pereira.) - Folgo de conhecê-lo. PASSOS PEREIRA - Igualmente. O TENENTE-CORONEL (À parte.) - O doutor não quer que se saiba. Ah! 1840!... PASSOS PEREIRA - Minha senhora... (Mesura de Leonor.) Fomos à sua casa na vila. A sua criada disse-nos que o encontraríamos aqui. Como era perto, viemos. O senhor sabe que sou o homem dos expedientes; arranjei logo três animais. O DOUTOR - Três animais1 Pois o senhor não veio só? PASSOS PEREIRA - É verdade, ainda não lhes disse: vimos eu, minha filha e um pajem. (Movimento do doutor.) O TENENTE-CORONEL - E a senhora sua filha ficou lá fora? Pelo amor de Deus! (Sobe ao fundo.) PASSOS PEREIRA (Subindo.) - Ela aí vem. FRANCELINA (Aparecendo com o pajem, que fica ao fundo.) - Aqui estou, papai. O DOUTOR (À parte.) - Ela! Oh! meu Deus! Estou suando frio! PASSOS PEREIRA - Vê quem está cá, minha filha: o Doutor Pinheiro. FRANCELINA - Ah! O DOUTOR (Embaraçado, sem encará-la.) - Minha senhora... FRANCELINA (da mesma forma.) - Senhor doutor... PASSOS PEREIRA - Minha filha, Senhor Tenente-coronel...

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O TENENTE-CORONEL - Estimo conhecê-la, minha senhora; esteja a seu gosto. (Francelina dirige-se a Leonor, beijam-se e depois conversam baixinho.) Com licença... vou dar algumas ordens... Não façam cerimônias, hein? PASSOS PEREIRA - Deixei as cerimônias na corte; ando farto delas. O TENENTE-CORONEL - Assim é que eu gosto que me falem!... (Saindo a gritar.) Ó Tomásia! Ó Tomásia!... (Sai.) CENA X O DOUTOR, PASSOS PEREIRA. LEONOR, FRANCELINA O DOUTOR (À parte.) - Estou metido em boa. PASSOS PEREIRA (Ao Doutor, enquanto Francelina e Leonor sentam-se à direita.) - Minha mulher não me deixou sair da corte sozinho. O senhor compreende... o ciúme... Foi preciso que a menina viesse. Quando cheguei à vila e me disseram que o senhor estava nesta fazenda, estimei... Fazia-me conta chegar até aqui, e era perto... Diga-me uma coisa: este Tenente-coronel fala francês? (O doutor está visivelmente perturbado.) Deve estranhar esta pergunta... Mas o que quer? Um pai! O senhor compreende... Logo falaremos... temos tempo! (Vai ter com Leonor e a filha, e conversa com elas.) O DOUTOR (À parte.) - Estou bem arranjadinho... O homem sabe de tudo... É capaz de meter-me o petrópolis, e razão tem ele! Ora esta! (Passeia agitado.) E Francelina conversando com Leonor! Jesus! Continuo a suar frio! (Continua a passear; tenta aproximar-se do grupo dos três, mas não se atreve.) PASSOS PEREIRA (Aproximando-se dele.) - Diga-me cá: há hotel na vila? Eu tencionava ir para sua casa, mas com a menina... já agora... o senhor compreende... não é possível! CENA XI O DOUTOR, LEONOR, PASSOS PEREIRA, FRANCELINA, O TENENTE-CORONEL, um pajem. O TENENTE-CORONEL (Entrando) - Hotel!... Quem é que fala aqui em hotel?... O senhor fica em nossa casa com a senhora sua filha! Os amigos do Doutor Pinheirinho meus amigos são! Temos acomodações para todos. (Ao pajem que fica ao fundo.) Ó rapaz! leva os animais para a vila e traze as malas de teu senhor. PASSOS PEREIRA - É uma malinha só... ficou em casa do Doutor Pinheiro. (O pajem sai.) Não sei como agradecer-lhe, Senhor Tenente-coronel... O senhor é um homem que compreende as necessidades da gente! O TENENTE-CORONEL - Hão de passar mal estes dias, mas não morrerão à fome. PASSOS PEREIRA (Baixo ao Doutor.) - Então, o Tenente-coronel é seu amigo, hein? Muito bem... muito bem! O DOUTOR (À parte.) - O homem está danado! PASSOS PEREIRA (Ao Tenente-coronel.) - O senhor não contava com esta maçada, hein? O TENENTE-CORONEL - Maçada nenhuma! Comida sobra sempre; os quartos dos hóspedes estão preparados; maçada de quê? FRANCELINA (Continuando uma conversa com Leonor.) - Logo que voltar, hei de mandar-lhe o figurino. PASSOS PEREIRA (À filha.) - Menina, sabes que vamos ficar aqui em casa do Senhor Tenente-coronel? LEONOR - Aqui? Muito bem... CENA XII O DOUTOR, LEONOR, PASSOS PEREIRA, FRANCELINA, O TENENTE-CORONEL, DONA MARIA, depois O NEGRO ( Dona Maria entra gravemente, cumprimentando os recém-chegados com grandes mesuras. O Tenente-coronel apresenta-a.)

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O TENENTE-CORONEL - A senhora Dona Maria de Vasconcelos, visita de nossa casa. (Cumprimentos. Dona Maria troca um olhar de inteligência com o Doutor Pinheiro, fazendo uma grande mesura a Passos Pereira.) PASSOS PEREIRA - Minha senhora. O TENENTE-CORONEL (Levando Francelina pela mão.) - A filha do Senhor Passos Pereira, a Senhora Dona... FRANCELINA - Uma sua criada. (Dona Maria beija-a e troca outro olhar significativo com o Doutor Pinheiro.) O TENENTE-CORONEL - Ora muito bem! Mas por que não se sentam? (Puxa cadeiras. Tomam lugares. Longa pausa.) DONA MARIA (Desabridamente, a Passos Pereira.) - O senhor conhece por lá minha irmã das Laranjeiras? PASSOS PEREIRA - Não, minha senhora; a nossa casa é na Rua Larga de São Joaquim. DONA MARIA - Ela é muito conhecida lá na corte. PASSOS PEREIRA - A Rua Larga? DONA MARIA - Minha irmã. PASSOS PEREIRA - Não tenho a honra de conhecê-la... (À parte.) O Pinheiro evita o meu olhar... Estará zangado comigo? O DOUTOR (À parte.) - Francelina está desesperada! Se os seus olhos se encontram com os meus, desvia logo o rosto. FRANCELINA (À parte.) O Pinheiro já sabe de tudo... Nem me encara... LEONOR (Julgando que Francelina fala com ela.) - Senhora? FRANCELINA - Nada.. O TENENTE-CORONEL - Então? Digam alguma coisa! Estão todos tão calados! (Os personagens formam, sentados, um grupo, ao capricho do ensaiador.) Sexteto O TENENTE-CORONEL (A Passos Pereira.) - O que há de novo na cidade? O ministérios cai ou não? PASSOS PEREIRA - Se quer que lhe fale a verdade, nem os ministros sei quem são. Sou empregado público, sou empregado velho; Porém nunca em política Meti o bedelho. DONA MARIA - O Tenente-coronel É o contrário, Senhor! FRANCELINA (À parte.) - Já não me encara o doutor... O DOUTOR (À parte.) - Estou fazendo um papel... O TENENTE-CORONEL - Sou destemido! Sou decidido! Sou do Partido Conservador! TODOS -É destemido! É decidido! É do Partido Conservador! O TENENTE-CORONEL - Eu sou danado, Desabusado Sou respeitado Nas eleições! É por tamanho Ser o arreganho

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Que sempre apanho Meus pescoções! PASSOS PEREIRA - Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! LEONOR (À Parte.) - Estranho o doutor: Tamanho Palor Não é natural. PASSOS PEREIRA -Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! O DOUTOR (À parte.) - O Passos ri-se: é bom sinal. PASSOS PEREIRA -Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! (Ergue-se, rindo tanto, que os outros erguem-se também e vão se aproximando num crescendo de gargalhadas.) TODOS - Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! PASSOS PEREIRA - Ai, sempre ganha Seus pescoções, Quando se apanha Nas eleições! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! LEONOR (Timidamente.) - Doutor, zangado está comigo? O DOUTOR - Por que me faz pergunta tal? LEONOR - Por que me foges, ó meu amigo? PASSOS PEREIRA - Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! O DOUTOR (À parte.) - O Passos ri-se: é bom sinal... Concerto FRANCELINA(À parte.) PASSOS PEREIRA (À parte.) Dar-se-á caso que o doutor, Quero apanhar o doutor Por despeito, por despeito, Muito a jeito, muito a jeito; Finja ter sincero amor Pai que muito bom pai for À matuta da Leonor? Deve ser indagador. LEONOR (À parte) O TENENTE-CORONEL (À parte.) Não me procura o doutor! Que silêncio em derredor! Já suspeito, já suspeito, Não tem jeito, não tem jeito! Que me perdeu todo o amor Tão calado está, doutor! Que me tinha com fervor Diga lá, seja o que for! DONA MARIA (À parte.) O DOUTOR (À parte.) Que diabruras faz amor! Já estou banhado em suor! Mas, com jeito... mas, com jeito Mas, com jeito... mas, com jeito... Deve-se sair-se o doutor Hei de, seja como for, Disto; seja como for. Sair disto pra melhor. O NEGRO (Entrando depois do forte com que termina o concerto.) Canjica tá na mesa. (Sai o negro. A orquestra conserva alguns compassos de música até, o canto seguinte.) O TENENTE-CORONEL - Vamos à canjica! O DOUTOR (Oferecendo o braço a Leonor.) - O seu braço? (Vivamente a Francelina, que olha para ele.) O seu braço? (Dá o braço a ambas.) O TENENTE-CORONEL - Eu rompo a marcha! (Vai saindo, na frente do doutor, Leonor e Francelina.) PASSOS PEREIRA (A Dona Maria.) - O seu braço, minha senhora?

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DONA MARIA (Dando-lhe o braço.) - Agradecida. (À parte.) - Este Passos será viúvo? PASSOS PEREIRA - Vamos! DONA MARIA - Que pena o senhor não conhecer minha irmã das Laranjeiras! (A cena fica vazia por alguns momentos. O fundo escurece completamente.) CENA XIII FREDERICO, depois RAIMUNDO FREDERICO (Entrando pelo fundo. Vestuário de montar.) Recitativo Eis-me, afinal, em casa de meu pai! Em júbilo nadar tudo aqui vai! Coplas I Não quis esperar as férias, Mais tempo esperar não quis; Promessas não são pilhérias, E então daquelas que eu fiz! O prometido Diz que é devido; Rifão sagaz; Quero com jeito, Mas com respeito, Voltar atrás... II Promessa de casamento Eu fiz à linda Leonor! Maldito seja o momento Em que jurei ter-lhe amor! Pois tal promessa Muito depressa Roubou-me a paz; Quero com jeito, Mas com respeito, Voltar atrás! Mas onde ficou Raimundo? (Indo ao fundo.) Raimundo!... Raimundo!... por aqui! (Entra Raimundo. È gago, míope, perneta, muito feio e veste exageradamente à última moda.) RAIMUNDO - Cá... cá... estou... Já me arrependi de ter vindo pas... passar uns dias em ca... casa de ... de teu pai. Este lugar é.... muito feio! É im... impossível que aqui se pos... possa arranjar um bom ca... ca... casamento! FREDERICO - Ah! maganão! Você anda à procura de um bom casamento, hein? RAIMUNDO - Não com... compreendo que se venha à... à.. roça para outra coi... coisa! FREDERICO - Não perca as esperanças! RAIMUNDO - Mas onde está teu... teu pai? Que... fi... filho é este que em vez de... de... procurar a fa... fa... família, põe-se a ta... a taga... a tagarelar na sala? FREDERICO - Estou com um receio enorme de apresentar-me. Vê que não me animei a vir sozinho! RAIMUNDO - Ora... ora essa! Por quê? FREDERICO - Por quê? Vem cá... (Sentam-se.) Trata-se mesmo de casamento. Ouve e dá-me um conselho... RAIMUNDO (Admirado.) - Um con... conselho!... (Erguendo-se e apertando-lhe a mão com efusão.) Obri... Obridado! mui... muito o... obrigado! FREDERICO (Admirado.) Por quê?

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RAIMUNDO (Modestamente.) - É a primeira vez que... que me pedem um con... conselho... (Senta-se.) Vam... vamos lá! FREDERICO - Antes de sair de cá, prometi, sob palavra de honra, casamento a Leonor. RAIMUNDO - Quem... quem é? FREDERICO - A afilhada de meu pai. RAIMUNDO - Ah! FREDERICO - Estimava-a muito; no entanto... RAIMUNDO - No entanto, viste a fi... a filha do Pas... Pas... Passos Pe... Pe... Pereira e ... FREDERICO - E fiz-lhe a mesma promessa. RAIMUNDO - Também sob pa... pa... pa... FREDERICO - Sim! Também sob pa... palavra de honra! - O que me aconselhas tu?... RAIMUNDO - Eu te ... te digo. (Reflete.) Qual de... delas é mais... mais?... (Faz sinal de dinheiro.) Ca... casa-te com a mais ri.., rica! FREDERICO (Erguendo-se.) - Ora! Também a que porta fui bater! RAIMUNDO - E se ambas o... o forem... le... leva-as pa... pa... para a Turquia e ca.. ca.. casa-te com ambas! (Ergue-se.) FREDERICO - Meu Deus! como hei de aparecer a Leonor? Como hei de voltar atrás? O TENENTE-CORONEL (Fora.) - O que estás dizendo, negro, Frederico está aí? FREDERICO - Ah! aí vem... Jesus! Está gente de fora! CENA XIV FREDERICO, RAIMUNDO, O TENENTE-CORONEL, depois PASSOS PEREIRA, DONA MARIA, depois O DOUTOR, FRANCELINA, LEONOR, depois os escravos. O TENENTE-CORONEL (Entrando.) - Meu filho! (Dá-lhe a benção. Abraçam-se.) Que agradável surpresa! (Correndo ao fundo.) José! Matias! Simplício! Já um jongo aqui na varanda, que sinhô moço chegou! PASSOS PEREIRA (Entrando com Dona Maria.) - Senhor Frederico... FREDERICO (Pasmo.) - Ah! (Vendo entrar Francelina.) Oh! LEONOR, FRANCELINA, (À parte.) - Ele! (Deixam vivamente o braço do doutor.) FREDERICO (À parte.) - Nem Leonor, nem Francelina olham para mim! Já sabem de tudo! LEONOR, FRANCELINA (À parte.) - Ele nada ignora! O TENENTE-CORONEL (Voltando e dando com Raimundo.) - Oh! (Ao filho.) É também estudante? RAIMUNDO - Sim... sim senhor... DONA MARIA (À parte.) - Em que ano está? RAIMUNDO - No pri... no primeiro! O TENENTE-CORONEL, DONA MARIA, PASSOS PEREIRA - Oh! RAIMUNDO - Há mui... muito tempo. Pa... para bem dizer, es... estou no... no quinto. O TENENTE-CORONEL - Meu filho, apresento-te.... Ah! aí vêm os negros! Ficam as apresentações para depois! Comece o jongo! Final TODOS - O jongo! O jongo! O TENENTE-CORONEL (A Frederico.) - Senta-te ali. (A Passos Pereira.) O senhor aqui (A Francelina.) Fique aqui com Leonor (A Dona Maria.) A senhora aqui Ao pé de mi. (Grupo. estão todos sentados nos lugares indicados pelo Tenente-coronel.) LEONOR, O DOUTOR, FRANCELINA, FREDERICO (À parte.) - Que amargo instante! Que situação!

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{ ele Olhar para{ { ela Não ouso não! (Entrada ruidosa do coro de escravos e escravas que, depois de mesuras aos primeiros compassos do jongo, entoam-no dançando durante o canto.) Jongo Trabaia, negro, trabaia Na roça do teu sinhô (Com um movimento de braços e ombros.) Um... um... um... Passarinho já não canta; O só não tarda a se pô! Um... um... um... um... Dá-lhe de enxada, Panha café; De teu trabaio Não reda pé! Trabaiadô Trabaia, negro Pro teu sinhô! (No fim do canto.) Viva sinhô moço! TODOS (Erguem-se e respondem.) - Viva! [Cai o pano] ATO SEGUNDO Sala e visitas na fazenda do Tenente-coronel. Piano. Mobília modesta, mas decente. Iluminação. Sarau. CENA I FREDERICO, DONA MARIA, RAIMUNDO, FRANCELINA, O TENENTE-CORONEL, LEONOR, O DOUTOR, PASSOS PEREIRA, O MESTRE-ESCOLA, O VIGÁRIO, convidados de ambos os sexos, depois um negro. (Ao levantar o pano, quatro músicos estão sentados a um lado, tocando. Entre eles o Mestre-escola e o Vigário: este toca violão, aquele rabeca. Dança-se uma quinta contradança ruidosa. Frederico dança com Dona Maria, que se requebra comicamente. São vis-a-vis de Raimundo, que dança com Francelina. O Tenente-coronel dança com a afilhada: é vis-a-vis do Doutor, que dança com uma moça qualquer. Passos Pereira dança também com uma figurante. Raimundo é mestre-sala e grita as marcas da contradança, gaguejando sempre.) CORO (Durante a contradança.) - Nós hoje às mil maravilhas Vamos decerto passar! Valsas, polcas e quadrilhas Vamos dançar! Brincar Folgar (Num momento dado, Raimundo bate palmas: finda a contradança. Uns cavalheiros oferecem cadeiras a seus pares. Outros saem de braço dado. Alguns pares passeiam.) RAIMUNDO (A Frederico.) - Parabéns, Frederico... é um.... um baile di... digno de ti. (Senta o seu par e vai conversar com o Mestre-escola.) FREDERICO (Passeando com Dona Maria.) - É singular! Nem Leonor nem Francelina me encaram! O DOUTOR (Sentando o seu par.) - É célebre! Nem Francelina nem Leonor olham para mim! LEONOR (Sentando-se junta de Francelina.) - O doutor não veio sentar-se ao pé de mim!

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FRANCELINA (À parte.) - Frederico não se chegou ainda para o meu lado! OS QUATRO (À parte.) - Já sabe de tudo! DONA MARIA (A seu par.) - Vamos dar um giro lá fora, Senhor Frederico? FREDERICO - Pois não, minha senhora! DONA MARIA - Ai, Senhor Frederico! FREDERICO - Por quem suspira, minha senhora? DONA MARIA - Não sei, Senhor Frederico, não sei... FREDERICO - Julguei que fosse por sua irmã das Laranjeiras. (Saem.) RAIMUNDO (Continuando uma conversa com o Mestre-escola.) - É por quan... quantos a... alunos é frequenta... da a sua es... esco... escola? O MESTRE-ESCOLA - Eu tenho uns vinte aluno... estão todos adiantado... No ano passado, cinco fez exame. .. Os pai estão satisfeito. RAIMUNDO (À parte.) - Os... os ss é que.... não devem es... estar. O MESTRE-ESCOLA - Eu ensino gramática, doutrina cristão e música. Eu há de ensiná francês, mas porém, premeiro é perciso aprendê.(Continuam a conversar baixo.) O VIGÁRIO (Continuando uma conversa com o Tenente-coronel, de quem se tem aproximado.) - Está enganado, Tenente-coronel! Está muito enganado. O João Cobó vota com o Raposo! O TENENTE-CORONEL - Não vota, seu Vigário, não vota! Quer Vossa Reverendíssima dizer-me a mim o que é o João Cobó! O VIGÁRIO - É um troca-tintas! Ainda me deve dez mil réis de uma encomendação... Desde que lhe morreu a sogra... E encomendações de sogra devem pagar-se dobrado. (Continuam a conversar.) FRANCELINA (Continuando uma conversa com Leonor, ao pé da qual está sentada.) - É verdade... Imagine a senhora ter uma moça prometido casamento a dois rapazes e ver-se em presença de ambos! LEONOR (À parte.) - É uma indireta, não há dúvida... (Alto.) mas... (Continuaram a conversar baixinho.) O TENENTE-CORONEL (Deixando o Vigário e indo ter com o Doutor.) - Então o que é isso, Doutor? Parece-me amuado! O DOUTOR - Eu?! Pelo contrário, Senhor Tenente-coronel... Eu... Ora que lembrança! O TENENTE-CORONEL (Levando-o pela mão.) - Venha cá, homem de Deus, o seu lugar é aqui! (Leva-o para junto de Leonor e fá-lo sentar-se ao lado dela. Depois vem à boca e canta a seguinte copla.) Copla De um pai que o saiba ser, olé! É grande a trabalheira! Faz má figura e serve até De pau-de-cabeleira! (Vai conversar outra vez com o Vigário, que se tem ocupado em afinar o violão.) PASSOS PEREIRA (Indo ao encontro de Frederico, que volta com Dona Maria.) - O senhor anda arredio! Vá conversar um pouco com a pequena, ande! (Toma-o pelo braço, deixando Dona Maria no meio da sala e fá-lo sentar-se junto de Francelina. Depois desce à boca da cena e canta a meia voz a mesma copla cantada pelo Tenente-coronel.) Copla De um pai que o saiba ser, olé! É grande a trabalheira! Faz má figura e serve até De pau-de-cabeleira! (Ao voltar-se, encontra Dona Maria, que lhe toma o braço.) DONA MARIA - O seu braço? Vamos dar mais uma volta? PASSOS PEREIRA - Pois não, minha senhora: é a vigésima que damos hoje. DONA MARIA (Saindo com Passos Pereira, à parte.) - Este homem será viúvo? (Saem. Entra o negro com a bandeja de café.)

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RAIMUNDO (Indo ao encontro do negro e distribuindo xícaras de café pelos circunstantes.) - Já tar.. tardava! Já hoje to... tomei doze xícaras de ca... café. (Tomando.) Não se vai a par... parte alguma em que... que não se... se tome café! Fui ontem fa... fazer a barba na vila... e o bar... barbeiro mandou-me um xí... xícara de ca... café pelo a... aprendiz! O TENENTE-CORONEL (Sorvendo o seu no pires.) - O que vale é que este é superior, hein? RAIMUNDO (Apreciando.) - Um... Torra... torradinho de fresco e... e... com manteiga... (Acabam todos de tomar café. O negro reúne as xícaras na bandeja e sai. Raimundo acende um cigarro. Os namorados estão sentados ao lado uns dos outros na seguinte ordem: Frederico, Leonor, Francelina, o Doutor: mas sem se falarem e olhando todos os quatro para o chão.) O TENENTE-CORONEL (Que tem deixado o Vigário.) - O Doutor não dá a palavra a Leonor! O que será aquilo. Preciso de uma explicação. (A Raimundo.) Venha um cigarrinho dos seus. RAIMUNDO (Dando-lhe o cigarro e depois o fogo.) - Pro... proponho um jo... jogo de... pren... prendas na... va... varanda! va... valeu?! TODOS (Menos os namorados.) - Valeu! Vamos! (O Tenente-coronel dá o cigarro de Raimundo a Passos Pereira, que fuma maquinalmente. Saem todos, Raimundo em frente, menos o Mestre-escola, o Vigário e os namorados.) O MESTRE-ESCOLA (Indo ter com o Vigário.) - Diga-me uma coisa, seu Vigário? Vossa Reverendíssima pode me dizê duas missa depois de amenhã? (Bate-lhe no ombro.) O VIGÁRIO (Que tem estado a cochilar, abraçado ao violão, despertando e com ímpeto.) - Não vota, já lhes disse! João Cobó não vota, Tenente-coronel! (Ergue-se) O MESTRE-ESCOLA - Não é disso que nós tratemo. Quero duas missa! O VIGÁRIO (Sem reparar com quem fala e saindo zangado.) - Não vota! É boa! Desde 68 que está com os liberais! Não faltava mais nada! (Sai) O MESTRE-ESCOLA (Acompanhando-o) - Não é disso que nós tratemo... Ó seu Vigário! seu Vigário! (Sai.) CENA II O DOUTOR, FREDERICO, LEONOR (Cena muda. Levam muito tempo sentados, olhando para o chão. De repente, Leonor, vendo que todos se têm retirado, levanta-se muito envergonhada e sai vivamente. Francelina imita-a. Ficam sós o Doutor e Frederico que, depois de se olharem por algum tempo, desatam numa gargalhada, retomando logo o seu sério, e como que censurando assim a gargalhada um do outro.) CENA III O DOUTOR, FREDERICO AMBOS (A um tempo.) - De que se ri? - Como? - Tivemos a mesma idéia. - Assim falarem os dois a um tempo não podemos compreender! FREDERICO - De que se ri o doutor? O DOUTOR - Eu rio-me de mim próprio. E o senhor? FREDERICO - Eu rio-me de mim mesmo. O DOUTOR - Oh! mas o senhor não está na minha situação! FREDERICO - Não sei; mas acredite que a minha situação é perfeitamente cômica. O DOUTOR - Qual é a sua situação? FREDERICO - Diga primeiramente qual é a sua. O DOUTOR - Quero ceder-lhe a primazia. FREDERICO - E eu. O DOUTOR - Nesse caso, ouça... (Entra o Tenente-coronel.) CENA IV O TENENTE-CORONEL, FREDERICO, O DOUTOR, depois DONA MARIA

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O TENENTE-CORONEL - Oh! meu rico senhor Doutor Pinheirinho! Ainda bem que o encontro. (O Doutor e Frederico erguem-se.) Meu filho, deixa-nos a sós por alguns momentos. O DOUTOR (À parte.) Ai, ai, ai! FREDERICO (Saindo, à parte.) - Como hei de me sair desta alhada? (Vai saindo e encontra Dona Maria, que vem entrando.) DONA MARIA - Senhor Frederico, andava à procura do seu braço! FREDERICO - Aqui o tem, minha senhora! (Saem ambos de braço dado.) CENA V O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL, depois PASSOS PEREIRA, depois DONA MARIA O TENENTE-CORONEL (Depois de alguma pausa, gravemente.) - Senhor Doutor Pinheirinho... ou por outro: Senhor Doutor Pinheiro... (Pausa.) Sentemo-nos. (Sentam-se.) O meu compadre Chico... ou por outra: Francis... eu creio que já lhe disse isto mesmo. (Pausa.) Enfim, Senhor Doutor... Homem. Vossa senhoria é um homem formado, e eu nem no Congresso Agrícola falei... Dê o desconto... (Em outro tom, escolhendo as palavras.) Sou pai, isto é, pai adotivo... É a mesma coisa! É mais! Um pai adotivo é pai e mãe. O Padre Antônio Vieira, no sermão de Nossa Senhora do Carmo, diz que os filhos naturais se amam porque são filhos, e os filhos adotivos são filhos porque se ama... PASSOS PEREIRA (Entrando.) - Ó Senhor Doutor Pinheiro! Senhor Dout.. (Estacando.) Era segredo? O TENENTE-CORONEL (Levantando-se.) - Não... não... falávamos.. O DOUTOR (Vivamente, erguendo-se.) - Do Padre Antônio Vieira. O TENENTE-CORONEL (À parte.) - Fica para outra vez. PASSOS PEREIRA (Ao Doutor.) - Desejava falar-lhe em particular. O DOUTOR (À parte.) - Bom! Agora o outro! O TENENTE-CORONEL - Deixo-os. (Ao Doutor.) Logo falaremos. (Vai saindo e encontra-se com Dona Maria, que vem entrando.) DONA MARIA - Senhor Tenente-coronel, andava à procura de seu braço! O TENENTE-CORONEL - Aí o tem, Senhora Dona Maria! DONA MARIA (Saindo de braço dado ao Tenente-coronel, à parte.) - Por que não se quer casar este homem, meu Deus? (Saem) CENA VI O DOUTOR, PASSOS PEREIRA. depois RAIMUNDO, depois DONA MARIA PASSOS PEREIRA - Senhor Doutor Pinheiro, o assunto é grave... Aqui tem uma cadeira. Sentemo-nos. (Sentam-se.) O DOUTOR (À parte.) - Eu devo estar com uma cara... PASSOS PEREIRA (Depois de uma grande meditação, rompendo desabridamente o que assusta o Doutor.) - O casamento, Senhor Doutor, é uma condição, por bem dizer, fatal da existência humana. Abalizados sociologistas... ou sociólogos, como queira... têm dado sobre a matéria a última palavra... Um pai educa uma filha, com todos os esmeros sugeridos pelo seu bom espírito e seu bom coração... Dói-lhe a alma de vê-la depois entregue a carinhos de outra espécie; mas, ah! - infelizmente têm que se submeter ao regime comum da sociedade... Mas essa submissão, Senhor Doutor, não pode, não deve ser inteiramente passiva... Tenho para mim que um pai, digno desse nome sublime, é obrigado a desenvolver tal ou qual atividade, no intuito de atenuar os maus caprichos que por ventura estejam reservados pelo destino a seus filhos. Concorda? O DOUTOR - Inteiramente. PASSOS PEREIRA (À parte.) - Veio decorado de casa. (Alto.) O senhor, quando for pai... (Com certa autoridade,) o que há de ser! O DOUTOR (À parte.) - Meu Deus!

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PASSOS PEREIRA - O senhor, quando for pai, concordará melhor. - Pois bem, Senhor Doutor, eu não espero por informações: venho ao encontro delas! Por isso, aqui estou! RAIMUNDO (Entrando e tomando o braço de Passos Pereira.) - Ó Se... Senhor Passos Pe... Pe... Pereira! as mo... moças mandaram cha... chama-lo à va... varanda pa... para o jogo de pren... prendas. PASSOS PEREIRA (Erguendo-se contrariado.) - Que jogo? RAIMUNDO - O se.. senhor ab... abade O DOUTOR (Erguendo-se com interesse. - Ah! Um chamado de senhoras! Não pode recusar! A conferência fica para depois. PASSOS PEREIRA - Tem razão, tem razão. Logo mais falaremos! Vou já! (Encontra-se com Dona Maria, que vem entrando.) DONA MARIA - Senhor Passos Pereira, andava à procura de seu braço! PASSOS PEREIRA - Está ao seu dispor, minha senhora. DONA MARIA (Saindo de braço, com Passos Pereira, à parte.) - Ai! ai! Este homem será viúvo? CENA VII O DOUTOR, RAIMUNDO RAIMUNDO - Tenho me re... rega... galado... de rir à custa do ... do Fre... Frederico. O DOUTOR - Por quê? RAIMUNDO - Também quem... quem lhe... mandou prometer ca... casamento a duas? O DOUTOR (À parte.) - Este também já sabe! RAIMUNDO - A le... levianda... de po... pode... perder um homem. Coplas I A gente faz o que deve, Se um beijo de amor furtar, Se um dedo apertar de leve, Ou se um pezinho pisar. A gente a mais se atreve, Quando é grande ladino; Mas o casório... Ce... cebolório! Fia mais fino! II Se meigos olhares bispo Em ternos olhos assim... Os meus escrúpulos dispo, Cuidando logo de mim. Eu nada mando ao bispo, Pois sou grande ladino... Mas o casório... Ce... cebolório Fia mais fino! O DOUTOR - Já todos sabem aqui do meu ignóbil procedimento! Estou bem arranjado1 RAIMUNDO - Eu an... ando à pro... procura de... de ... de um ca... casamento; mas creia que... que... pro... promes... sas não fa... faço sem ter cer... certeza de po... podê-las cumprir. O DOUTOR - Mas quem lhe disse que prometi casamento a duas? RAIMUNDO - O Dou... o.... Doutor? O Fre... Fre...derico. O DOUTOR - Foi o Frederico? Quem lhe diria a ele? RAIMUNDO - A ele... o... o quê? O DOUTOR - Quem lhe diria isso?

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RAIMUNDO - Is... Is... isso o quê? Tenha... pa... paciência! não sei se... se... se já no... notou.... que.... que... que sou um... pou... pouco ga... ga.... gago! O DOUTOR - Ora! não se pode conversar com o senhor! RAIMUNDO - O se... senhor é que... que... atra... atrapa... pa... palha tudo! CENA VIII O DOUTOR, RAIMUNDO, O TENENTE-CORONEL, depois DONA MARIA O TENENTE-CORONEL (Ao Doutor.) - Podemos continuar a nossa conferência? O DOUTOR - Pois não... pois não... O TENENTE-CORONEL - Dá licença? Vá jogas as prendas... Quero dar duas palavrinhas ao Doutor. RAIMUNDO - Ora... essa! (Vai saindo; encontra Dona Maria.) DONA MARIA - Andava à procura de seu braço. RAIMUNDO - Oh!... oh!... mi... minha se... senhora! DONA MARIA (Saindo de braço dado a Raimundo, à parte.) - Este, afinal de contas, à falta de outro... (Saem) CENA IX O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL, depois O VIGÁRIO, depois DONA MARIA O TENENTE-CORONEL - Senhor Doutor Pinheirinho... ou por outra: Senhor Doutor Pinheiro... sentemo-nos. (Sentam-se.) Vossa Senhoria pediu-me hoje em casamento a mão de minha afilhada e pupila Dona Leonor dos Santos Barbosa; eu, reconhecendo em Vossa Senhoria todas as qualidades desejáveis para um marido, anuí jubiloso ao pedido e... O VIGÁRIO (Entrando, insuflado.) - Ó Tenente-coronel, diga-me uma coisa: O Florentino não foi progressista em 64? O TENENTE-CORONEL (Erguendo-se com interesse.) - Pois não! Pois não! progressista dos quatro costados logo que apareceu em Mambucaba! gabava-se até da amizade particular do Zacarias... E quando vocês caíram em 68, passou para o nosso lado com armas e bagagens. O VIGÁRIO - Então?(Gritando para dentro.) Está ouvindo, comendador? Progressista em 64! Que homem teimoso! Quer-me dizer a mim quem é o Florentino! O TENENTE-CORONEL - Pois não! Foi progressista e bem progressista! O VIGÁRIO - Então? Eu quando digo... Obrigado, Tenente-coronel. (Vai saindo, encontra Dona Maria que vem entrando.) DONA MARIA - Andava à procura do braço de Vossa Reverendíssima. O VIGÁRIO - Pois não minha senhora. (Dá-lhe o braço.) DONA MARIA (Saindo com o Vigário.) - Este não pode casar... É pena!... Toca tão bem violão. CENA X O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL, depois O MESTRE-ESCOLA, depois DONA MARIA O TENENTE-CORONEL - O Florentino é um vira-casaca! Quando cairmos, há de ver que passa para os liberais. A sua única virtude é ser danado nas eleições, mas também não me fio muito nisso, porque a arrogância nos robustos é maior que a valentia, como diz o Padre Vieira. (Outro tom.) Senhor Doutor Pinheiro. (Sentando-se.) Onde estávamos? Ah! (Outro tom.) Eu reconhecendo em Vossa Senhoria todas as qualidades desejáveis em um marido, anuí ao pedido, depois de consultar minha pupila e afilhada. Ora, vendo que Vossa Senhoria, no mesmo dia em que foi tratado o seu casamento com ela, como que a evita e nem sequer a olha... O MESTRE-ESCOLA (Entrando a correr e agarrando o Doutor.) - Seu Doutô! Seu Doutô! O TENENTE-CORONEL (Erguendo-se.) - O que é isto?... O MESTRE-ESCOLA - Como eu tinha pagado prenda no jogo do senhô abade me saiu e sentença vi buscá seu Doutô Pinheirinho e levá ele pra varanda.

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O DOUTOR (À parte.) - Felizmente. (Ao Tenente-coronel.) Já vê que não há remédio... O TENENTE-CORONEL - Fica para outra vez! O MESTRE-ESCOLA - Vamo, que eles lá dentro já está cansado de esperá. O DOUTOR - Vamos! Vá adiante... Não é preciso agarrar-me! (Sai o Mestre-escola, dando um encontrão em Dona Maria. A Dona Maria:) Já sei, minha senhora: anda à procura de meu braço. Aqui o tem! (Dá-lhe o braço e sai com ela.) CENA XI O TENENTE-CORONEL O TENENTE-CORONEL - E nada de explicações! Quando vamos chegando a fala, somos interrompidos! No entanto, preciso... quero saber que explicação tem tudo isto! ah! uma pupila! Coplas I Resgata os nossos muitos pecados Uma pupila do nosso amor; Se um pai zeloso tem mil cuidados, Os tem maiores um bom tutor. Constantemente metido em danças, Este, coitado, tem que se achar; Ditos, motejos, desconfianças Tem costas largas para agüentar. II Não tem vontades, não tem direitos, Um desgraçado, pobre tutor; Os seus afetos estão sujeitos Ao juiz d'órfãos e ao curador. E, todavia, queira ou não queira Pai como aqueles que mais o são; 'Stou convencido que o Padre Vieira Tinha, oh! se tinha! muita razão. (Entram todas as senhoras, menos Francelina e Leonor, perseguidas pelos homens, que trazem à sua frente Raimundo. A música das coplas prende-se à do coro.) CENA XII O TENENTE-CORONEL, O DOUTOR, FREDERICO, PASSOS PEREIRA, RAIMUNDO, O VIGÁRIO, O MESTRE-ESCOLA, DONA MARIA, convidados de ambos os sexos. HOMENS (Empurrando Raimundo e perseguindo as senhoras.) Há de beijá-las! Há de abraçá-las! Peça licença: Cumpra a sentença! AS SENHORAS (Fugindo.) Não me beijará! O quê! O quê! Não vê! Não vê! OS HOMENS - Há de abraças! AS SENHORAS - Não me abraçará! OS HOMENS - Há de beijar! AS SENHORAS - Não há de beijar! O TENENTE-CORONEL - Que bulha, ó Cristo! Pra que gritar? Expliquem-me isto,

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Sem mais tardar! RAIMUNDO - Vou lhe explicar... O TENENTE-CORONEL - Tenha a bondade. RAIMUNDO - No jogo do "senhor abade" Mui... mui... mui... muitas prendas pago, Porque sou gago; Tive esta sentença, Que procuro cumprir sem detença... PASSOS PEREIRA - Abraçar E beijar As moças uma por uma, Seja por bem ou por mal. RAIMUNDO - Em cumprir sentença tal, Não sinto re... Não sinto re... Não sinto repugnância alguma. Olé! CORO - Não sente re... Não sente re... Não sente repugnância alguma Olé! DONA MARIA - Os beijos abraços Por todas terei! Eu abro-lhe os braços: Zangar-me não sei! OS HOMENS - Não serve! Não serve! Há de abraça-las! Peça licença: Cumpra a sentença! AS SENHORAS - Não me abraçaras!, etc. (Saem os homens perseguindo as senhoras. O Doutor, ao sair, é agarrado pelo fato pelo Tenente-coronel.) CENA XIII O TENENTE-CORONEL, O DOUTOR, depois LEONOR, todos os personagens do ato, e alguns negros. O TENENTE-CORONEL - Nada, senhor Doutor! Desta vez havemos de chegar à fala! O DOUTOR (À parte, resolutamente.) - Acabemos com isto. (Alto.) Pois bem! sentemo-nos! (Sentam-se.) Quero ser franco com o Tenente-coronel. LEONOR (Vindo do fundo à parte.) - Uma conferência? O que será?... O DOUTOR - Senhor Tenente-coronel, eu prometi casamento à filha do Passos Pereira... LEONOR - Ah! (Cai numa cadeira com um ataque de nervos.) O TENENTE-CORONEL (Erguendo-se sobressaltado, bem como o Doutor.) - Meu Deus! ... O que é isto! Minha filha! acudam! (Entrada ruidosa de todos os personagens.) Final Coro geral - Oh! céus! oh1 céus! Que sucedeu!? Valha-nos Deus!... Que aconteceu? O que terá Dona Leonor?

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Alguma dor Será?! O que lhe dói? Que foi? Que foi? Que aconteceu?! Que sucedeu?! O TENENTE-CORONEL (Desesperado ao pé da filha, que esperneia.) - Tragam vinagre! O caso é grave! (A um negro, dando-lhe uma chave.) Trá-lo do armário: aí tens a chave! (Durante o coro, o escravo volta com um galheteiro. O tenente-coronel dá a cheirar o vinagre a Leonor, que volta a si aos poucos. Enquanto todos estão ocupados com Leonor, Passos Pereira traz Frederico à boca da cena; Francelina acompanha este movimento.) PASSOS PEREIRA - A sua explicação deve ser dada já! FREDERICO - Eu tudo explicarei! FRANCELINA (À parte.)- O que é que explicará? FREDERICO - Prometi casamento a Leonor... FRANCELINA - Ah! (Cai numa cadeira com um ataque de nervos. Desespero de Passos Pereira. Todas as atenções voltam-se para Francelina.) CORO - Bonito! Bonito! Agora é por cá!.. Mais um faniquito! Contágio será? PASSOS PEREIRA - Tragam vinagre. O caso é grave! (O Negro tem já levado o galheteiro e restituído a chave ao Tenente-coronel que lha entrega de novo.) O TENENTE-CORONEL - Trá-lo do armário: aí tens a chave. (Durante o coro, Francelina volta a si, aspirando o vinagre que o negro traz.) DOUTOR , FRANCELINA (Vindo ao proscênio.) - Perjuro, pérfido. Que amei tanto, Desprezo indômito Mereces bem! Meu Deus! num ápice Quebrou-se o encanto Ingrato, voto-te Fero desdém! O TENENTE-CORONEL - Que trapalhada! Que confusão! Pede a charada Decifração! Juntos FREDERICO, O DOUTOR DONA MARIA 'Stá despeitada Realizada Pudera não! Pudera não! De estar zangada Verei, casada, Tem bem razão Minha ambição! OS OUTROS E CORO - Que trapalhada! Que confusão! Pede a charada Decifração!

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O VIGÁRIO (Agarrando o violão com energia.) - Atenção Prá que finde este zun-zum, Vou cantar ao violão Um buliçoso lundum De minha composição! TODOS - Venha a lundum! ( O vigário senta-se e afina o instrumento. Prestam-lhe todos muita atenção.) Lundum I O VIGÁRIO - Toda gente Logo sente Nos malditos Faniquitos, Diabruras, Travessuras De Cupido Destemido! Dorme em paz, meu coração Ai! Dorme em paz meu coração, Que as Marocas E Xandocas E Bicotas E Nicotas Tiranas são, ai, sim, tiranas são! CORO - Que as Marocas E Xandocas E Bicotas E Nicotas Tiranas são, ai, sim, tiranas são! O VIGÁRIO - Namorados Irritados São amantes São contantes, Só desejo, Quando os vejo Copiá-los, Imitá-los! Dorme em paz, meu coração, Ai! Dorme em paz meu coração Que as Marocas E Xandocas E Bicotas E Nicotas Tiranas são, ai, sim, tiranas são! (O coro repete o estribilho e aplaude o cantor com ruidosa salva de palmas.) [Cai o pano] ATO TERCEIRO

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Terreiro da fazenda; À esquerda, a casa com alpendre. Cerca e tranqueira aberta. Em perspectiva, a senzala e morros, com plantações de café. À direita uma grande árvore, à sombra da qual está um banco de jardim. Instrumentos aratórios, etc. Ao levantar o pano a cena está vazia. Ouve-se ao longe o coro que termina o primeiro ato, que se supõe entoada pelos escravos no eito. Raimundo sai de casa. CENA I RAIMUNDO, depois O TENENTE-CORONEL RAIMUNDO - Dor... dor... minhocos! Não sabem go... gozar a fres... fresca da manhã! (Sai pela tranqueira. Aparece o Tenente-coronel da esquerda e grita para dentro.) O TENENTE-CORONEL - Olá! ó moleque! não vês que a porta do chiqueiro está aberta, e que daqui a nada os porcos estão fossando na horta, excomungado! Vai fechar a cancela, moleque! E de caminho, muda aquela água da gamela, diabo! (O Vigário tem entrado da direita.) CENA II O TENENTE-CORONEL, O VIGÁRIO O VIGÁRIO - Não fale do diabo, que é pecado! O TENENTE-CORONEL - Olá, Reverendo... desculpe... Aquilo é uma gente danada! E então depois da lei de 28 de setembro! (Apertando a mão do Vigário.) Como vai essa católica? Eu estava à espera de Vossa Reverendíssima. O VIGÁRIO - Estou às suas ordens. Não me fiz esperar. (Senta-se no banco.) O TENENTE-CORONEL - Desculpa o sacrifício que o obriguei a fazer. O VIGÁRIO - Qual sacrifício! Eu gosto de levantar-me cedo e ver despontar a aurora. O TENENTE-CORONEL - A aurora é o riso do céu, a alegria dos campos, a respiração das flores, a harmonia dos ares, a vida e o alento do mundo, como diz o Padre Vieira. - Mas vamos ao que serve. O VIGÁRIO - Negócio político? O TENENTE-CORONEL - Qual negócio político! Trata-se mesmo disso! O VIGÁRIO - Recebeu jornais da corte? O TENENTE-CORONEL - Recebi o Jornal do Commércio e o Mequetrefe, que traz o meu retrato. O VIGÁRIO - Viu aquele artigo contra o Benício? O TENENTE-CORONEL - Ah! sim... uma mofina... O VIGÁRIO - Que tal achou? O TENENTE-CORONEL - Passei os olhos... não li. O VIGÁRIO - Não leu? (Tirando da algibeira um número do Jornal do Commércio.) Pois ouça... (Lendo.) "O infeliz município de... O TENENTE-CORONEL (Interrompendo.) - Não! Agora não, Reverendíssimo. Não se trata de Benício. Tomei a liberdade de mandar chamá-lo para tratarmos de um assunto mais sério... O VIGÁRIO - Mas... O TENENTE-CORONEL - Demais, eu sou franco: não gosto de descomposturas anônimas... O homem deve dizer o que pensa sob sua imediata e absoluta responsabilidade... e de frente; isto de andar a insultar os outros de máscara no rosto e a seis vinténs por linha, não me parece decente. O VIGÁRIO - Pois você queria que eu, um vigário, assinasse isto? O TENENTE-CORONEL - Ah! Perdão! eu não sabia que o artigo era de Vossa Reverendíssima. O VIGÁRIO - É que não está ao fato da maroteira que o Benício praticou comigo! Pediu-me que protegesse a sua eleição, que me empenhasse com os nossos correligionários... fiz-lhe o que não se faz a um filho... Cheguei a ponto de pedir uma vez aos meus paroquianos, em uma prática depois da missa, que votassem nela! Bem! pilhas-me na corte... Escrevo-lhe uma carta pedindo um emprego para meu sobrinho Ezequiel, filho de meu irmão Custódio... um emprego no Correio para um primo de minha cunhada... um lugar na Estrada de Ferro para um parente, que é alferes honorário do Exército e tem serviços de campanha... que arranjasse na Instrução Pública...

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O TENENTE-CORONEL - Vossa Reverendíssima pediu tanta coisa um só tempo! O VIGÁRIO - Não o defenda, Tenente-coronel, não o defenda. Aquilo é um cão! (Levantando-se e querendo ler o artigo.) "O infeliz município de ..." O TENENTE-CORONEL (Tomando-lhe o jornal.) - Depois... depois... Deixemos por um momento a política e ouça! O VIGÁRIO (Contrariado.) - Vamos lá... o que deseja você? O TENENTE-CORONEL - Vossa Reverendíssima assistiu a todo aquele escândalo de ontem, não? Chamei-o para fazer o favor de dizer-me de tudo aquilo e ajudar-me com os seus conselhos; O VIGÁRIO - Assisti, é verdade... mas não compreendi... Vi que sua afilhada teve um faniquito... que a filha do tal Passos Pereira teve outro... Entre parêntesis: Não simpatizo muito com o tal Pereira... Um sujeito sem opiniões políticas, homem! Não é cidadão brasileiro! O TENENTE-CORONEL - E Vossa Reverendíssima a dar-lhe com a política! O VIGÁRIO - Vi que entre seu filho, sua afilhada, a filha do Pereira e o Doutor Pinheirinho havia qualquer coisa... o que, aliás, foi notado por todos... mas, com franqueza, não pude perceber o que era! O TENENTE-CORONEL - Nem eu. Era uma salsada que ninguém entendia... Mas o que me aconselha, padre-mestre? Vossa Reverendíssima compreende que é preciso tirar esse negócio a limpo. O VIGÁRIO - Onde estão eles? O TENENTE-CORONEL - Todos recolhidos ainda. O VIGÁRIO - Reuna-os, e que se expliquem! É facílimo!- Aí vem o homem sem opiniões políticas! (Passos Pereira tem saído de casa.) CENA III O TENENTE-CORONEL, O VIGÁRIO, PASSOS PEREIRA PASSOS PEREIRA - Ora muito bom dia! O Senhor Tenente-coronel madrugou! Já por cá, Reverendíssimo? O VIGÁRIO (Apertando-lhe a mão.) - Como vê. O TENENTE-CORONEL (Apertando a mão de Passos Pereira.) - Passou bem a noite? PASSOS PEREIRA - Foi um sono só. (À parte.) Não preguei olho... (Alto.) E o senhor? O TENENTE-CORONEL - Perfeitamente. (À parte.) Passei a noite em claro.) PASSOS PEREIRA - O que me diz dos acontecimentos de ontem? O TENENTE-CORONEL - Precisamos conversar a esse respeito. O VIGÁRIO - Nesse caso, com sua licença... Ainda não se toma café cá por casa? O TENENTE-CORONEL - Há que tempo! Entre. A Tomásia lá está para servi-lo. (Gritando para casa.) Ó Tomásia, serve aí o Senhor Vigário! O VIGÁRIO (Encaminhando-se para casa.) De café, Tomásia, de café. - Até já. (Sai) CENA IV O TENENTE-CORONEL, PASSOS PEREIRA, depois DONA MARIA PASSOS PEREIRA - Senhor Tenente-coronel, minha filha teve a honra de ser pedida em casamento por seu filho. O TENENTE-CORONEL - Deveras? E o maroto não me dizia nada! PASSOS PEREIRA - Esta circunstância explica minha presença aqui... Vim tomar informações com o Doutor Pinheiro... O senhor também é pai, e compreende perfeitamente...(Com ares de orador.) que a responsabilidade moral pelo futuro dos filhos pesa imediatamente sobre as costas desses novos Anteus, que se chamam pais. O TENENTE-CORONEL - Apoiado! - Mas isso não justifica os faniquitos... PASSOS PEREIRA - Definamos as situações, Senhor Tenente-coronel, definamos as situações! Seu filho não dirige uma palavra à noiva... não se senta ao seu lado... não olha para ela... O que quer isto dizer? O TENENTE-CORONEL - Não sei... mas é fácil sabê-lo... Há de ser tudo posto em trocos miúdos... Se meu filho prometeu casamento a sua filha, há de cumprir por força a sua palavra! por força! Vou

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mandar chamá-lo. (Para o fundo.) Ó Simplício! vai lá dentro dizer a senhor moço que o espero aqui no terreiro. (Um negro atravessa a cena e entra na casa, donde sai algum tempo depois.) PASSOS PEREIRA - Tenho andado apoquentadíssimo... Quero muito bem a esta menina... O senhor compreende... A pobrezinha não tem mãe... O TENENTE-CORONEL - Ah! o senhor é viúvo? PASSOS PEREIRA - Sou, mas tornei a casar, para dar-lhe segunda mãe. (Aparece Dona Maria à porta da casa.) Francelina tinha cinco anos quando enviuvei... DONA MARIA (À parte, descendo.) - Quando enviuvou! Ah! ele é viúvo, meu Deus, ele é viúvo!... O TENENTE-CORONEL (À parte, vendo Dona Maria.) - Bom! começa a amolação! DONA MARIA (Aproximando-se.) - Senhor Tenente-coronel, muito bom dia... Bom dia, Senhor Passos Pereira... O TENENTE-CORONEL - Dona Maria... PASSOS PEREIRA - Minha senhora... Passou bem a noite? DONA MARIA - Não... não... Muito agitada... muito nervosa... Sonhei toda a noite... PASSOS PEREIRA - Com sua irmã das Laranjeiras? DONA MARIA - Não! Coitada da minha irmã! (O Tenente-coronel vai sentar-se de mau humor no banco... À meia voz.) Sonhei com um homem... PASSOS PEREIRA - Um homem? DONA MARIA - Fale baixo. - Um viúvo. PASSOS PEREIRA - Ah! DONA MARIA (À parte)- Não percebeu... Oh! os homens são cegos! (Alto) Dê-me o seu braço, Senhor Passos Pereira; vamos até a horta... PASSOS PEREIRA (Contrariado, dando-lhe o braço e saindo com ela.) - Pois não, minha senhora. - Tenente-coronel, eu volto já... O TENENTE-CORONEL (Depois que saem, erguendo-se furioso.) - Esta mulher é como a lavoura: está sempre a pedir braços! (Entra Frederico, vindo de casa.) CENA V O TENENTE-CORONEL, FREDERICO, FREDERICO - A benção, meu pai? O TENENTE-CORONEL (Dando-lhe a mão a beijar, sombrio.) - Santinho. FREDERICO - Mandou chamar-me? O TENENTE-CORONEL - Mandei, sim, senhor... Venha cá... (Levando-o para o banco e sentando-se ao lado dele.) Sente-se aqui... Estou muito zangado com você... FREDERICO (À parte.) - Agüenta-te no balanço, Frederico! O TENENTE-CORONEL - Então acha você que isto de casamento é brincadeira de criança, hein? FREDERICO (À parte.) - Leonor queixou-se... (Alto.) Foi uma leviandade, meu pai... uma criançada de que tenho me arrependido e deveras... O TENENTE-CORONEL - Vem tarde o arrependimento... Demais, ela é digna de você... FREDERICO - Digníssima! Oh! mas depois que vi a outra! (Erguem-se ambos.) O TENENTE-CORONEL - A outra? Temos outra! Duetino FREDERICO - A outra é muito mais graciosa, Tem mais encantos para mim; Nunca vi moça mais garbosa, Não, nunca vi mulher assim! A outra é bela entre as mais belas, É gentil entre as mais gentis! Convicto estou que de ambas elas A outra só far-me-á feliz. O TENENTE-CORONEL - Este mundo velho

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De catrâmbias vai: Fala assim'um fedelho Nas barbas do pai! Que bonita história: Que bonito angu! De uma palmatória Precisavas tu! FREDERICO - Por ela suspiro de noite e de dia! O TENENTE-CORONEL - Do que precisavas, velhaco, bem sei! FREDERICO - Amor dos amores Minha alma inebria! O TENENTE-CORONEL - O tempora! o mores! Nada mais direi. FREDERICO -Por ela suspiro de noite e de dia! Que exista outro afeto mais puro não sei! Amor dos amores Minha alma inebria! Por ela de flores A vida terei O TENENTE-CORONEL - Por ela suspira de noite e de dia Do que precisavas, velhaco, bem sei! Amor dos amores, Sua alma inebria! O tempora, o mores! Nada mais direi. O TENENTE-CORONEL - A outra? Qual outra? Valha-me Deus, pois lembra-te de outra, quando sabes que o pai... FREDERICO - Qual pai? Ela não tem pai! Só se é vossemecê. O TENENTE-CORONEL - Eu? Então eu sou pai da filha do Passos Pereira, rapaz? FREDERICO - A outra é filha dele. O TENENTE-CORONEL - Que trapalhada, santo Deus! A outra é; e a outra quem é? FREDERICO - Expliquemo-nos: eu prometi casamento a duas. O TENENTE-CORONEL - Mas quem é a outra? FREDERICO - A filha de Passos Pereira. O TENENTE-CORONEL - Essa é uma; e a outra? FREDERICO (Naturalmente.) - Leonor! O TENENTE-CORONEL (Admirado.) - Leonor!... CENA VI O TENENTE-CORONEL, FREDERICO, O VIGÁRIO, depois PASSOS PEREIRA, DONA MARIA O VIGÁRIO (Acariciando o abdômen.) - Agora sim! Entrei num bolo de milho, que não lhe achei espinhas nem ossos! O TENENTE-CORONEL (A Frederico.) - Então não cumprimentas o Senhor Vigário? FREDERICO - Já nos falamos lá dentro. O TENENTE-CORONEL - Urge desembrulhar esta meada. Aquela maldita Dona Maria carregou com o Passos Pereira para a horta. O VIGÁRIO - Esta Dona Maria não me parece ter lá muito juízo! Está sempre a pedir-me o braço... sempre a dizer que toco bem violão! FREDERICO - Eles aí vem. (Entram Passos Pereira e Dona Maria de braços dado.) O TENENTE-CORONEL - O Doutor Pinheirinho está fazendo falta... DONA MARIA - Então! tomou o seu café, Senhor Vigário?

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O VIGÁRIO - É verdade, minha senhora... e com um bolo de milho... DONA MARIA (Deixando o braço de Passos Pereira e indo apertar a mão de Frederico.) - Como passou a noite? FREDERICO - Um sono só. (À parte.) Não preguei o olho. (Alto.) E a senhora? DONA MARIA - Muito agitada... muito nervosa... Sonhei toda a noite... (Baixinho.) com um moço... FREDERICO - Um moço? DONA MARIA - Fale baixo. - Um moço solteiro... estudante... FREDERICO - Ah! (À parte.) Dir-se-ia uma declaração! O TENENTE-CORONEL (De mau humor, apontando para Dona Maria.) - Decididamente aqui não arranjamos nada! Senhor Vigário, Frederico, Senhor Passos Pereira, vamos para a sala de visitas... FREDERICO - Vamos (À parte.) Devo estar com uma cara... OS QUATRO - Com licença, Senhora Dona Maria. (Entram em casa.) CENA VII DONA MARIA, depois RAIMUNDO DONA MARIA (Só.) - Anda uma balbúrdia nesta casa, que só Deus sabe... O que eu desejo, no meio de tudo isto, é não ficar sem casamento... Arre, que não é sem tempo! (Tirando um livro do bolso.) Vou ler este romance, que me mandou da corte minha irmã das Laranjeiras... As mulheres de bronze... Ah! de bronze é que eu queria ser! (Senta-se no banco e abre o romance. Aparece ao fundo Raimundo, montado num burro.) RAIMUNDO - Eh! eh! Olá! (Apeia-se e entrega o animal a um negro que aparece.) Vai guardar... o... outro/! (O negro sai, levando o animal pela rédea. Raimundo desce à cena.) DONA MARIA - Já de volta de seu passeio, Senhor Mundico. (À parte.) Este, à falta de outro... RAIMUNDO (À parte.) Gos... gostei do... Mundico. (Alto.) É ver... verdade, mi... minha senhora. Esta gen... te a... aqui não sabe go... gozar... e fica na ca... na cama até que... que horas! (Indo apertar-lhe a mão.) Como pa... passou a... a noite? DONA MARIA - Mal... muito agitada... muito nervosa... Sonhei toda a noite com um ... moço... RAIMUNDO - Um mo... moço? DONA MARIA - Fale baixo. - Um moço gago... RAIMUNDO (À parte.) - A velha es... está me fa... fazendo uma de... decla... declaração!... DONA MARIA - Vamos dar um passeio até a horta? RAIMUNDO - Pois não! (À parte.) Eu pre... preferia uma xí... xícara de café... (Dá-lhe o braço.) DONA MARIA (Saindo com ele.) - Ai, ai, Senhor Mundico. (À parte.) Deixem lá... ele não é tão feio... RAIMUNDO - Pa... pa... pa... (Saem. Não se ouve o resto.) CENA VIII LEONOR, só LEONOR (Que sai de casa.) - Não me posso esquecer de sua perfídia! Mas não sou eu igualmente culpada? O que ele praticou não pratiquei também? Tenho acaso o direito de queixar-me? Que horrível situação, meu Deus, que horrível situação! Rondó-valsa Que situação O direito não ter de acusá-lo! Duplo perdão Deve ser de nós ambos regalo! Tremendo estou, Pois não sei se faremos as pazes! Quem me mandou Terno amor jurar a dois rapazes?

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Eu tremo... tremo, Soluço e choro, Soluço e gemo, Pois que o adoro Com tanto extremo De amor... de amor, Que, se perdesse Fortuna tanta, Ó Virgem Santa, Talvez morresse... De dor... de dor! Esta triste aventura, Que aliás, faz rir, De lição, porventura Poderá servir! Que situação O direito não ter de acusá-lo! Duplo perdão Deve ser de nós ambos regalo! Tremendo estou, Pois não sei se faremos as pazes! Quem me mandou Terno amor jurar a dois rapazes? CENA IX LEONOR, O DOUTOR PINHEIRO O DOUTOR (Depois de alguma pausa.) - Leonor... é preciso haver entre nós uma explicação clara e positiva... LEONOR - Não quero outra coisa. (Indo sentar-se no banco. Pausa.) O senhor ama-me? O DOUTOR - E mo pergunta? LEONOR (Com simplicidade.) - Eu amo-o também. Casemo-nos... Não sei para que mais explicações... O DOUTOR - São ociosas... são. LEONOR - Eu já me esqueci o que o senhor me fez... O DOUTOR - Esqueceste? Ah! estou perdoado! LEONOR (Um tanto admirada.) - Está. O DOUTOR (Caindo-lhe aos pés.) - Obrigado, Leonor... Obrigado! (Beijando-lhe ardentemente as mãos.) Tiraste-me do coração um peso de seis arrobas! LEONOR (Timidamente.) - Agora espero que me perdoará também... O DOUTOR (Sempre de joelhos.) - Que te perdoarei? O quê?... (Perplexo. Levanta-se lentamente.) LEONOR (À parte.) - Ai! ele de nada sabe! Ainda bem! (Alto.) Perdoar-me... não o ter perdoado há mais tempo... O DOUTOR - Não falemos mais nisso. O que deves é ajudar teu noivo a ver-se livre do Passos Pereira. LEONOR - O que tem o Passos Pereira? O DOUTOR - Vem buscar o cumprimento da promessa de casamento que eu fiz à filha... LEONOR - Ela aí vem... Deixa-nos sós... Hei de desenganá-la. O DOUTOR - Desengana... desengana... (À parte.) Que papel estou eu representando, meu Deus do céu!

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CENA X LEONOR, FRANCELINA FRANCELINA (Friamente.) - Bom dia, Dona Leonor. LEONOR (No mesmo.) - Bom dia, Dona Francelina. FRANCELINA - Passou bem a noite? LEONOR - Perfeitamente, obrigada. (À parte.) Em claro. (Alto.) E a senhora? FRANCELINA - Bem obrigada... (À parte.) Não dormi cinco minutos. (Vai sentar-se no banco.) LEONOR (Depois de um momento de silêncio.) - Estava morta por vê-la. FRANCELINA - Sim? Por quê? LEONOR - É preciso que... que nos expliquemos. FRANCELINA - A respeito de... LEONOR - Sim, senhora: a respeito de... FRANCELINA - Com mil vontades. LEONOR (Indo sentar-se ao lado dela e ameigando a voz.) - Dona Francelina... a senhora não se zangue conosco... mas... ele não a ama! FRANCELINA (Erguendo-se vivamente, à parte.) - Ele! Frederico! (Alto.) Como não me ama, se me pediu em casamento? LEONOR (Erguendo-se.) - Foi uma leviandade... Também me pediu a mim... E ontem... FRANCELINA - A mim já me havia pedido há muito mais tempo! Tenho o direito de antigüidade. LEONOR - Os últimos são os primeiros. Demais, eu não quero saber se a senhora é mais antiga do que eu... FRANCELINA - Mais antiga, não! Olhe lá, hein?! LEONOR - O que sei é que ainda agora mesmo, nesse lugar em que a senhora está, acabou ele de confessar que me ama. FRANCELINA (À parte.) Oh! pérfido! (Alto.) Vou dizer tudo a papai... porque, minha senhora, estes negócios devem liquidar-se entre os homens! LEONOR - Mas que teima de moça! Ele não gosta da senhora!... FRANCELINA - Mas eu gosto dele, está! Não cedo! (À parte.) Era o que falatava1 O meu Frederico! LEONOR - Nem eu tampouco, ouviu?... ouviu??... (À parte.) Tínhamos que ver! o meu Pinheirinho! Duetino FRANCELINA - Não cedo! não cedo! não cedo! Não me faltava mais nada! Não vê! não vê! LEONOR - Não tenho medo, Nem de você, Nem doutra mais pintada! FRANCELINA - Não seja malcriada! LEONOR - Não seja arrebitada! E escute lá; Talvez não saiba o que aqui está! I Como uma princesa Tive educação, Língua portuguesa Sei com perfeição; Toco bem piano, Danço muito bem, E a cortar um pano Não me ganha alguém! Sei ler, Escrever,

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Somar e diminuir Multiplicar e repartir. II Que até sou pacata Ninguém negará; Moça mais cordata Cuido que não há; Mas, quando a mostarda Chega-me ao nariz, Faço uma bernarda, Mato por um triz! Sei dar, Esmurrar, Aplicar cem pescoções E quatrocentos bofetões! CENA XI LEONOR, FRANCELINA, O DOUTOR (Francelina e Leonor vão engalfinhar-se, quando se mete de permeio o Doutor, que apanha de ambas) O DOUTOR - O que é isto? o que é isto? LEONOR - Chegou à propósito. (A Francelina.) Ele aqui está; explique-mo-nos! O DOUTOR (Timidamente a Leonor.) - Então é assim que a desenganaste? FRANCELINA - Mas não é este... LEONOR - Não é este?... FRANCELINA - Não! É o Frederico!... LEONOR, O DOUTOR - Ah! é o Frederico que!... CENA XII LEONOR, FRANCELINA, O DOUTOR, O TENENTE-CORONEL O TENENTE-CORONEL (Aparecendo à porta da casa.) - Ó Leonor! Dona Francelina! Doutor! (Sacudindo-lhe a mão.) Como passou a noite? O DOUTOR - Bem, obrigado. (À parte.) Passei-a em claro. O TENENTE-CORONEL - Venham todos explicar-se à sala de visitas... Lá temos estado - o Vigário, o Senhor Passos Pereira e eu... Mas quanto mais nos explicamos, mais embrulhamos a meada. A presença de vocês três é indispensável. Venham! TODOS - Vamos! O DOUTOR (À parte.) - O Frederico... como diabo?... Estou fazendo uma bonita figura! Venham! (Entram todos na casa. A cena fica um instante vazia.) CENA XIII O MESTRE-ESCOLA, depois meninos da escola, CLORINDO, SALUSTIANO O MESTRE-ESCOLA (Entrando cautelosamente.) - Ninguém! Nós entremo pelo terreiro, para a sorpresa sê mais maió. Foi uma boa lembrança. Venho com todos os menino da escola comprimentá o Tenente-coroné pela chegada de seu filho Ferderico. (Para fora) Psiu! Venhum tudo! (Música. Entrada de um coro de rapazes de seis até quinze anos, fazendo uma escada. Entre eles, Salustiano e Fabrício. Depois do mais pequenino, está Clorindo, adulto e barbado. Cada um traz um ramalhete na mão.) CORO DE RAPAZES -Menino da escola semos

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E mais que o mestre sabemos, Pois todos este menino Sabe a cartilha de có, Tanto os pequenino Como os mais maió! O MESTRE-ESCOLA (Ao público.) - É um gostinho! Querem vê? (Aos rapazes.) - Digam lá o a b c! OS RAAPAZES - A, B C, D E, F, G, H I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Y, Z. Coplas I O MESTRE-ESCOLA - Este belo município É-me muito devedô: Dos progresso das ciência Sempre na vanguarda tou Por isso da Rosa o Hábito Em breve recebê vou! CORO - Ai! ai! II O MESTRE-ESCOLA - Quando eu tivé a tetéia. Hei de dá um bom jantá; Os juiz e seu vigário Convidadinho será E, durante um mês da pândiga Tudo aqui ondem falá! CORO - Ah! ah! E, durante um mês da pândiga Tudo aqui ondem falá O MESTRE-ESCOLA - Vamo! vamo fazê mais um ensaio do descurso! Salustriano, diga lá. SALUSTIANO (Aproximando-se e declamando.)- Senhô Tenente-croné, se bem que sejamos... O MESTRE-ESCOLA (Emendando.) - Que séjamo, Salustriano, que séjamo! Prencipia outra vez do prencípio. SALUSTIANO - Senhô Tenente-croné, se bem que sejamos... O MESTRE-ESCOLA - Ah! É assim? (Tira uma férula da algibeira e dá duas palmatoadas em Salustiano.) Dá cá o descurso! Leia você, Fabrício... FABRÍCIO - Eu não sei, não senhô! (Desata a chorar. O Mestre-Escola procura outro com os olhos.) OS MENINOS (Chorando.) - Nem eu, não senhô! O MESTRE-ESCOLA - Clorindo, tu é que vai sarvá a situação, meu véio!...(Dá-lhe o discurso.) CLORINDO (Lendo como nas escolas, soletrando e cantando.) - "Senhor Tenente... c o co, r o ro... Senhor Tenente-cronel... O MESTRE-ESCOLA - Croné... croné... CLORINDO (Continuando.) - "Senhor Tenente-croné, se bem que s e se..." O MESTRE-ESCOLA - Séjamos! Essa palavrinha tá difice, tá! Dá cá, deixa emendá. (Tira um lápis e emenda.) Se bem que semos... Prencipia de novo do prencipio.

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CLORINDO (no mesmo.) - Senhor Tenente-croné, se bem que semos cri... a n an... crianças... (Chorando.) Mas, seu professô, eu não sou criança... Eu sou menino de escola, mas não sou criança... O MESTRE-ESCOLA (Tomando-lhe o discurso.) - Vacês o que é sei eu... Dê cá isto, que eu memo leio! CENA XIV O MESTRE-ESCOLA, CLORINDO, rapazes da escola, RAIMUNDO, DONA MARIA RAIMUNDO (Entrando.) - Oh! que ba... que ba... ba... ba... talhão! DONA MARIA (Ao Mestre-escola.)- Bons dias, senhor professor. (À parte.) Este não serve. É tão estúpido... (Vai sentar-se no banco.) O MESTRE-ESCOLA - Bons dia! RAIMUNDO - Então o que anda fazendo com a ra... pa... pa... paziada? O MESTRE-ESCOLA - Nós viemo felicitá o Tenente-croné pela chegada do filho dele. DONA MARIA - Ah! são os seus discípulos? O MESTRE-ESCOLA - Sim, senhora; mas veio só os mais inteligente; os mais burro ficou. DONA MARIA - Aquele barbado também é? O MESTRE-ESCOLA - Também, sim, senhora. DONA MARIA - Credo! que já tem idade para casar! Deve estar bem adiantado! O MESTRE-ESCOLA - Clorindo, chegue-se ali à Senhora Dona Maria e dê umas amostrinha de sua habilidade. CLORINDO (Aproxima-se de Dona Maria e vai a sentar-lhe no colo.) - Sim, senhor. DONA MARIA - O que é isto? RAIMUNDO - Que... que... que tal? O MESTRE-ESCOLA - Desculpe ele... é costume... DONA MARIA - Pensando bem... que mal havia? O MESTRE-ESCOLA (A Clorindo.) - Vá! CLORINDO Declamando como na escola.) - "As arma e os barões assinalado, Por mares nunca dantes navegado Passaram inda além da Taporbona, Em perigos e guerra esforçado, Mais do que permitia as forças humanas, Entre gente arremota edificárum Novo reino que tanto assublimárum!" DONA MARIA - Muito bonito! Esse versos foram escritos pelo menino? RAIMUNDO - Oh! CLORINDO - Não, senhora! Quem me ensinou eles foi seu professô. O MESTRE-ESCOLA - São de Camãos, siá dona. CENA XV O MESTRE-ESCOLA. CLORINDO, rapazes da escola, RAIMUNDO, DONA MARIA, O VIGÁRIO O VIGÁRIO (Entrando.) - Uf! Deixei-os lá a raspei-me! Nada, que o negócio cada vez mais se complica! Falam todos a um tempo! Ora que o Vigário tinha que ser ouvido e cheirado em quanta questão de família apareça na freguesia! Dona Francelina já teve um faniquito... Dona Leonor dois... (Vendo os circunstantes.) Olé! por cá? O que é isto? A que vem o regimento? RAIMUNDO - Uma fe... fe... fe... feli... O VIGÁRIO - Felicitação... RAIMUNDO - Ao Te... te... te... nente co... co... O VIGÁRIO - Ao Tenente-coronel... O MESTRE-ESCOLA - Pela arribação de seu Ferderico. O VIGÁRIO - Ah!

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DONA MARIA (Que tem levado a fazer festas a Clorindo.) - Sim, senhor; disse muito bem os seus versinhos. RAIMUNDO (À parte.) - Versinhos, os Lu... Lu... Lusia... a... das. O VIGÁRIO - Quem, este machacaz? (Clorindo beija-lhe a mão.) Isto é um idiota! já diz versinhos, e a apostar em como não sabe a Ave-Maria de cor! CLORINDO (Muito lampeiro) - Sei, sim, senhô.. O VIGÁRIO - Pois dize lá! CLORINDO - "Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita... bendita... O MESTRE-ESCOLA - Anda, burro! CLORINDO (Continuando.) -... sois vós, bendito é o fruto de vosso ventre, amém, Jesus." RAIMUNDO (Batendo palmas.) - Bra...vo! bravo! (Clorindo vai para o seu lugar.- A Dona Maria.) Não lhe... lhe pergunta se... se... aquilo é fei... feito por ... por ele? (Dona Maria sorri. Entra o Tenente-coronel.) CENA XVI O MESTRE-ESCOLA, RAIMUNDO, DONA MARIA, O VIGÁRIO, CLORINDO, rapazes da escola, O TENENTE-CORONEL, depois PASSOS PEREIRA O TENENTE-CORONEL - Ora graças que está tudo líquido! Arre! Custou! O VIGÁRIO - Ainda bem! Chegaram-se todos às boas, hein? O MESTRE-ESCOLA (Que tem se aproximado, lê com ênfase o seu discurso;) - "Se bem que séjamos crianças..." O TENENTE-CORONEL (Sem reparar.) - Houve um quiproquó... O Pinheirinho supunha que o Passos Pereira... O MESTRE-ESCOLA (Que tem mudado de posição, aos ouvidos do Tenente-coronel.) - "... sabemo compreendê perfeitamente os sentimento parterná!" O TENENTE-CORONEL (Que tem se assustado.) - O que é isto? O MESTRE-ESCOLA (Continuando.) - "Todo aquele cujo este não soubé compreendê estas coisa não é home; por isso não podemo nos furtá ao prazê de vi cumprimentá Vossa Senhoria, Senhô Tenente-croné, que neste dia vê restituído nos seus braço o filho que outrora concebeu; por isso aceite Vossa Senhoria, Senhô Tenente-croné..." PASSOS PEREIRA (Saindo de casa a gritar.) - Ora até que afinal nós.. TODOS (Impondo-lhe silêncio para não interromper o discurso.) - Psiu! (Dona Maria chama para junto de si Passos Pereira, que obedece.) O MESTRE-ESCOLA (Sem perturbar-se.) -"... um ramo de fulô de cada um de nós por este dia. (Música na orquestra. Pequena desfilada dos rapazes, que, a um gesto do Mestre-escola, vão entregar, um a um, o seu ramalhete ao Tenente-coronel, que fica atrapalhado com tantas flores.) O TENENTE-CORONEL (Depois da desfilada.) - Agradeço comovido esta manifestação, e convido-os para almoçarem todos comigo. (Gritando para a casa.) Prepara o almoço pa-mais... uma... duas... três... etc; (Conta quantos são os meninos e diz: "para tantas pessoas." - depois retoma a atitude de orador.) Ficará gravado eternamente em meu coração este discurso, onde, imerecidamente, sou mais honrado que a língua nacional. RAIMUNDO - A... po... poiado! O MESTRE-ESCOLA (À parte.) - Não entendi este final. (O Tenente-coronel dá um ramalhete a Dona Maria, e entrega os outros a um negro que os leva para casa.) DONA MARIA (Continuando uma conversa com Passos Pereira, a quem dá uma flor do ramalhete.) - Mas por que não se quer casar? PASSOS PEREIRA (Pregando a flor numa casa do casaco.) - Eu minha senhora? Por uma razão muito simples... DONA MARIA - Qual? PASSOS PEREIRA - Porque sou casado! DONA MARIA (Erguendo-se e deixando cair o ramalhete.) -Pois é casado? PASSOS PEREIRA - Duas vezes, minha senhora.

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DONA MARIA (Passando à esquerda.) - Ah! Aqui o Senhor Tenente-coronel enviuvou e... (Passos Pereira dá o ramalhete ao Mestre-escola. O ramalhete anda de mão em mão até voltar, a seu tempo, às de Dona Maria.) O TENENTE-CORONEL - E não me quis casar... Para cuidados bastam os que já tenho! A senhora sim, é que deve casar... não está muito velha... DONA MARIA - E tenho vontade, Senhor Tenente-coronel; confesso: tenho muita vontade! O TENENTE-CORONEL - E depois... tem um dote! RAIMUNDO - Hein? DONA MARIA (Desdenhosamente.) - Quarenta apólices da vida pública. O TENENTE-CORONEL (Frisando.) - Uma casa assobradada na vila... RAIMUNDO - Hein? DONA MARIA - Afora o que ainda pode vir da minha irmã das Laranjeiras! O VIGÁRIO (Notando a alegria de Raimundo.) - Olhe... aqui o Senhor Raimundo é que... Não toca violão... Toca? RAIMUNDO - Não Se... Senhor. O VIGÁRIO - Não toca violão, mas é um excelente moço. Casem-se. DONA MARIA - O quê? Pois?... RAIMUNDO (Dando a Dona Maria o ramalhete que lhe tem chegado às mãos, já escangalhado.) - Con... con.., consente? DONA MARIA - Mundico! (Desmaia nos braços do Vigário, que a quer passar ao Tenente-coronel.) O TENENTE-CORONEL (Esquivando-se.) - Está muito bem nos braços da Igreja! O VIGÁRIO (Passando Dona Maria ao Mestre-escola, e baixo a Raimundo.) - Case-se e meta-se na política; mas não vá com os conservadores. O MESTRE-ESCOLA (Passando Dona Maria a Passos Pereira.) - Pesa como um pecado. (Passos Pereira atira-a nos braços do Tenente-coronel.) O TENENTE-CORONEL (Passando-a a Raimundo.) - Tome, que isto é seu. (À parte.) Está livre de uma penhora! DONA MARIA (Tornando a si.) - Onde estou? RAIMUNDO - Nos... nos... nos meus braços. DONA MARIA (Limpando a cara com o ramalhete, pensando que é um lenço.) - Não é um sonho, Mundico? RAIMUNDO (Limpando-a com seu lenço.) - Não... não... CENA XVII O MESTRE-ESCOLA, RAIMUNDO, DONA MARIA, O VIGÁRIO, os rapazes da escola, O TENENTE-CORONEL, PASSOS PEREIRA, FREDERICO de braço dado a LEONOR, O DOUTOR PINHEIRO de braço dado a FRANCELINA, depois os negros. O VIGÁRIO - Ah! aqui estão os namorados! mas... expliquem-me! FREDERICO - Muito facilmente: eu tinha prometido casamento a Leonor... LEONOR - E eu a Frederico. O DOUTOR - E eu a Dona Francelina. FRANCELINA - E eu ao Doutor Pinheiro. FREDERICO - Mas vi Francelina... LEONOR - Mas vi o Doutor Pinheirinho... O DOUTOR - Mas vi Leonor... FRANCELINA - Mas vi Seu Frederico... OS QUATRO (Ao mesmo tempo, dando uma volta.) - E virei! (O Tenente-coronel dá ordens a um negro, que se retira.) PASSOS PEREIRA - Acharam-se juntos... O TENENTE-CORONEL (Voltando.) - Envergonharam-se. FREDERICO - Eu julguei que Leonor estivesse ressentida... LEONOR - Eu, que Frederico me recriminasse...

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O DOUTOR - Eu, que o Senhor Passos Pereira vinha buscar o cumprimento da minha promessa. FRANCELINA - Eu que o Doutor Pinheiro me tivesse atravessada na garganta... OS QUATRO - E embatuquei! O TENENTE-CORONEL - Mas perceberam agora que os desvio de suas promessas... era um deslumbramento; que o amor verdadeiro tem obrigação de ser eterno, como diz o Padre Vieira, e casam-se: Leonor com Frederico e Dona Francelina com o Doutor Pinheirinho...Reviraram. (Dão todos uma volta.) OS NOIVOS (Abraçando-se.) - Com muito prazer O MESTRE-ESCOLA - Não entendo... O VIGÁRIO - Também não é preciso... Os três casamentos far-se-ão no mesmo dia... FREDERICO - Três! Qual é o outro? RAIMUNDO (Apresentando Dona Maria.) - O nos... nosso. DONA MARIA - Eu e Mundico. (Abraços, apertos de mão, parabéns, etc.) O VIGÁRIO - Três casamentos, noventa mil réis. DONA MARIA - Vou escrever à minha irmã das Laranjeiras. (Volta o negro trazendo um violão, que entrega ao Vigário, e uma rabeca, que entrega ao Mestre-escola.) O TENENTE-CORONEL - Vamos a um cateretê? (Os rapazes da escola fazem uma roda. Entram os negros e fazem outra roda. O Mestre-escola trepa no banco para tocar rabeca. O Vigário ao lado, com uma perna sobre o banco, toca o violão. Os outros personagens formam uma nova roda no proscênio.) CORO FINAL - Quem tem coqueiros tem cocos, Quem tem cocos tem coquinhos,. Quem tem amores tem zelos, Quem tem zelos tem carinhos; Ai, amor, Tens mais perfumes que uma flor! LEONOR (Vindo ao proscênio, ao público.) Vou lhes dizer um segredo Que não devem divulgar. Se não gostaram da peça, Um conselho hão de aceitar: Saltem ligeiros, Saltem para cá; Entrem na dança! Então! Vá lá! Pois que não deixa De ter seu quê Um requebrado Cateretê! (Dançado característico, executado por quantos estão em cena.) [Cai o pano]

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O CALIFA DA RUA DO SABÃO Inverossimilhança lírico-burlesca em 1 ato e diversos idiomas imitada de uma farsa de Labiche Música de Francisco de Sá Noronha PERSONAGENS NATIVIDADE NEGOCIANTE CUSTÓDIO, guarda-livros. O primo ALFERES JOSÉ, moço de hotel. JOSEFINA, modista francesa. DONA SIMPLÍCIA (A ação se passa no Rio Janeiro. Atualidade.) CENA I CUSTÓDIO (Só, sentado no divã, de chapéu na cabeça e com as mãos apoiadas num grande guarda chuva.) [CUSTÓDIO] - Não sei o que pensar de tudo isto! Ainda ontem era eu guarda-livros em casa do Senhor Natividade, à Rua da Alfândega... quando o patrão, que na véspera, chegara da Turquia, onde tinha ido buscar um bonito sortimento de artigos turcos, pôs-me no olho da rua, pelo simples fato de eu ter deixado cair do nariz no varão, um pequeno pingo de tabaco. (Erguendo-se.) O Senhor Natividade devia lembrar-lhe que há dezessete anos sou guarda-livros e é o primeiro pingo de tabaco que me cai na escrituração. Verdade seja que há apenas um mês que eu gasto. Não me quis atender o bárbaro! E disse-me com um gesto de Grão-turco: - Saia, Senhor Custódio, saia! Tomei então o meu guarda-chuva e o bonde, e fui para casa desconsolado e murcho! Mas ontem à noite, recebi do meu ex-patrão este misterioso bilhete: (Lendo.) "Custódio, esteja amanhã às nove horas da manhã, no quarto andar da casa da Rua do Sabão, número tal. O primeiro que chegar espere pelo outro. Mistério! Mistério!! Mistério!!!" Repito, não sei o que pensar de tudo isto! Aqui estou no quarto andar, fazendo quarto, e como são nove horas e um quarto, e o ex-patrão não aparece, vou por os quartos na rua. (Dispõe-se a sair, quando Natividade entra misteriosamente pelo fundo.) CENA II CUSTÓDIO, NATIVIDADE Duetino NATIVIDADE - Psit! Psit! (3 vezes.) CUSTÓDIO - O patrão! (3 vezes.) NATIVIDADE - Psit! Psit! Cala a boca Pois é pouca Toda a tua discrição! CUSTÓDIO - Temos mistério1 (Bis) NATIVIDADE - Mas muito sério! Ninguém deve Nem de leve O que vim fazer Saber! Psit! Psit!

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Mas muito sério. JUNTOS - Ninguém de leve { vim o que { fazer { veio Saber. NATIVIDADE - Eu tomei três tílburis, Dobrei mil esquinas, Abaixei cortinas E afinal cá estou; Ai, meu bom Custódio, Serás surdo e mudo, Senão lá vai tudo Quanto Marta fiou! CUSTÓDIO - Tanto mistério, patrão, patrão, Trata-se acaso de um crime?... de um crime? NATIVIDADE - Adivinhaste: de um crime! CUSTÓDIO (Querendo desmaiar.) - Segura-me, eu caio De ventas no chão! NATIVIDADE - Cala, cala, Pois é pouca Toda a tua descrição! JUNTOS - Ninguém deve Nem de leve Saber desta reunião, Ninguém deve Nem de leve Saber desta reunião! reunião! reunião! CUSTÓDIO (Amedrontado.) - Um crime, patrão! NATIVIDADE - Silêncio! Um crime, é verdade... CUSTÓDIO (Correndo.) - Ó da guarda! NATIVIDADE (Agarrando-o pelo fato.) - Vem cá. Não te precipites! Um crime que não é previsto pelo Código. Trata pura e simplesmente de trair a minha fé conjugal. CUSTÓDIO (Repreensivo.) - Oh! patrão! NATIVIDADE - Que queres? fraquezas da humanidade. CUSTÓDIO - E a patroa, a Senhora Dona Simplícia? NATIVIDADE - Custódio, se és meu amigo, não me faleis da Simplícia. Não imaginas o que é a minha vida privada! CUSTÓDIO - Deveras? NATIVIDADE - Já chegamos ao ponto de não nos falarmos senão no dia primeiro, que é quando caio com os cobres para a despesa da casa... e ainda, sempre acabamos brigando! Resolvi, portanto, fazer outra família à parte. CUSTÓDIO - Patrão! Patrão! NATIVIDADE- Foi uma idéia que me ocorreu há dois meses, em Constantinopla. Disse comigo: - Natividade, eis-te na pátria das huris, na terra das formosas escravas. CUSTÓDIO - Hein? Comprou uma mulher? NATIVIDADE - Eu nunca fui abolicionista, e há muito desejava realizar esta transação oriental! Vesti-me de turco e dirigi-me... CUSTÓDIO - A uma casa de comissão. NATIVIDADE - A um bazar, para efetuar minha compra. Tomou-me a passagem o caminho um respeitável muçulmano, que me disse em muito bom francês: -Monsieur, j'ai une occasion magnifique, une circassienne superbe! Levou-me à sua tenda, bateu três vezes numa portinha, e a formosa Zetublé apareceu, envolvida em gazes!

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CUSTÓDIO - Transparentes? NATIVIDADE - Maganão! Não regateei... O turco pediu-me cinco mil francos: dei-lhe dois mil quinhentos. CUSTÓDIO - Barata feira! NATIVIDADE - Dois mil e quinhentos francos, entenda-se. CUSTÓDIO - Ah! NATIVIDADE - E mais três quilos de tabaco de Goiás... Nesse mesmo dia, parti para Marselha com a minha esplêndida cativa. (Mostrando a porta do primeiro plano à direita.) Ele está ali... naquela alcova... envolvida nos seus gases, quero dizer, nas suas gazes. CUSTÓDIO - Pode-se entrar? NATIVIDADE - Maganão! E aqui tens o meu serralho. CUSTÓDIO - Na Rua do General Câmara! NATIVIDADE - Antiga do Sabão, é verdade. CUSTÓDIO - Mas permita uma observação, Senhor Natividade, no Brasil já não há escravas. NATIVIDADE - E que tem isso? CUSTÓDIO - Ela é livre, se quiser passar o pé... NATIVIDADE - Então eu caio de cavalo magro? Primeiro que tudo, ela não sabe que está no Rio de Janeiro! CUSTÓDIO - Homessa! NATIVIDADE - Quando chegamos a Marselha, ela achava-se bastante incomodada pelo enjôo do mar. CUSTÓDIO - Pobre huri! NATIVIDADE - Logo no dia seguinte, estávamos à bordo do navio que nos trouxe para cá... Desembarcamos à noite, meti-a num carro fechado, trouxe-a para este quarto andar, fechei a porta, abri aquela janela, e disse-lhe, apontando para o zimbório da Candelária: - Estamos em Túnis! Ali está a grande mesquita... CUSTÓDIO - Em Túnis! E ela engoliu a pílula? NATIVIDADE - Ora essa. Se eu lhe dissesse Chapéu D'Uvas, engoli-la-ia da mesma forma. As circassianas não sabem geografia. CUSTÓDIO (À parte.) - Este patrão é de força! (Alto.) Mas o que não vejo, é para que me mandou chamar! Em que lhe poderei ser útil? NATIVIDADE - Custódio, tu és um bom velhote. Presta-me toda a atenção. (Vão sentar-se no divã.) CUSTÓDIO - Sou todo ouvidos. NATIVIDADE - Tu, como guarda-livros, és bananeira que já deu cacho. CUSTÓDIO - Mas... NATIVIDADE - Pus-te no andar da rua... para dar-te outro emprego. CUSTÓDIO - Deveras? NATIVIDADE - Uma sinecura, não te digo mais nada. Casa, comida, cem bagarotes por mês, para não fazer nada. CUSTÓDIO - Oh! Senhor Natividade! Não sei como lhe agradeça... Mas, o que vem a ser o tal emprego? NATIVIDADE - Mau velho, na Europa é costume fazer uns bonecos de palha, que se colocam as cerejeiras... CUSTÓDIO - Sim, senhor, na minha terra chama-se espantalhos. NATIVIDADE - É isso mesmo. Discretos ao último ponto, esses manequins são incapazes de tocar nas cerejas, mas espantam os passarinhos que tentam aproximar-se delas. CUSTÓDIO - Mas não atino... NATIVIDADE - Vais atinar... Nos serralhos há uma classe de funcionários... espantalhos, incumbidos de vigiar as cerejas do sultão. CUSTÓDIO (Levantando-se vivamente.) - Alto lá, não sou de palha! NATIVIDADE - És o homem que me convém. Tomarás conta do teu novo emprego hoje mesmo. (Consultando o relógio.) São dez horas... Começas a vencer o ordenado.

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CUSTÓDIO (À parte.) - Ora esta, que bonito emprego para um cidadão que ainda gosta de cerejas! NATIVIDADE (Abrindo a primeira porta da esquerda.) - É este o teu quarto... Ali encontrarás uma vestimenta de turco, um alfanje e umas barbas. CUSTÓDIO - É preciso que eu me disfarce em turco? NATIVIDADE - Pois se estamos em Túnis! CUSTÓDIO - Mas se eu não sei uma palavra da língua turca. NATIVIDADE - Nem eu. CUSTÓDIO - Nesse caso a Zetublé percebe logo que... NATIVIDADE - Não percebe tal, ela só sabe o idioma da Circássia. Podes falar-lhe todas as línguas! Ah! é verdade, não te esqueças de que eu me chamo Ben-Cid-Natividade. CUSTÓDIO - Tem graça, tem... mas eu também precisava de um nome oriental. NATIVIDADE - Tu chamas-te Omar; CUSTÓDIO - Custódio Omar! Não soa mal. Custódio Omar. NATIVIDADE - Vai, vai mudar de fato. Preciso apresentar-te a Zetublé. CUSTÓDIO (À porta da esquerda.) - Hein! O meu quarto está cheio de sacos!! NATIVIDADE - Já disse ao senhorio que mandasse tirar esses sacos de rolhas, aqui deixadas por um sujeito que aqui morou. CUSTÓDIO - Daqui a pouco levo-as para o corredor. (Natividade toma-o pela mão, trá-lo ao proscênio e cantam ambos misteriosamente o último motivo do dueto. Cantam.) NATIVIDADE - Cala, cala, JUNTOS - Cala a boca, (Bis.) Pois é pouca Toda a tua discrição! Toda a minha discrição! NATIVIDADE - Psit! Psit! ninguém deve JUNTOS - Ninguém deve Nem de leve Saber desta reunião, desta reunião, desta reunião. (Custódio sai pela esquerda.) CENA III NATIVIDADE, depois JOSEFINA NATIVIDADE (Consultando o relógio.) Dez horas e um quarto... São horas de vestir-me de califa. (Toma a vestimenta que está pendurada e veste por cima de suas roupas. Arma-se com enorme alfanje. Enquanto se veste.) O bonito é que fiquei de estar com minha mulher, às dez horas, na Rua Direita, ao pé do Correio, para irmos juntos ver uma casa que, durante a minha ausência ela comprou não sei em que bairro. Ora! Irá com o primo, um primo alferes, que sempre me substitui nestas estopadas. Por isso disse-lhe que fosse ter com ela à Rua Direita... e o rapaz é de uma condescendência, coitado! (Deitando na cabeça um enorme turbante.) São horas de irmos ter com a nossa fantástica Zetublé. (Chamando.) Zetublé! Ó Zetublé! Não responde... Chamemo-la com uma serenata bem apaixonada. (Canta fazendo do alfanje guitarra.) I Doce filha da Circássia, Branca per'la do Oriente Vem ouvir a voz plangente De teu senhor; (Bis.) Quero estreitar-me em meus braços, Quero gozar-te as carícias E as inefáveis delícias De teu amo! (6 vezes.) Ah!

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Ó Zé... Zé... Zé... Ó Zetublé, Vem cá, Vem já, Vem cá, Vem fazer-me cafuné! Ó Zé... Zé... Zé... Ó Zetublé, Vem cá, Vem já, Vem fazer-me cafuné. Vem cá, Vem fazer-me cafuné. II Não, não tardes, minha amada, Circassiana flor bonita, Que por ti palpita Meu coração (Bis.) A nívea face mimosa Quero cobrir-te de beijos, Vem saciar os desejos De teu sultão (6 vezes.) Ah! Ó Zé... Zé... Zé... Ó Zetublé, Vem cá, Vem já, Vem cá, Vem fazer-me cafuné! Ó Zé... Zé... Zé... Ó Zetublé, Vem cá, Vem já, Vem fazer-me cafuné. Vem cá, Vem fazer-me cafuné (Abre-se a porta da direita e Josefina aparece vestida à circassiana, e envolta num véu. Ei-la. (À parte.) É uma estrela! (Alto.) Vou fingir que falo turco. (Com um tom de voz muito suave.) Hoc opus hic labor est. Guarapuava. JOSEFINA - Miau trá lá cá dá cá. NATIVIDADE (À parte.) - Que idioma1 É um regalo de mel serpeando suavemente numa planície de veludo! (Alto.) I am very glad, very well! Titire, tu patulé recubans sub tegmine fagi. JOSEFINA - Miau trá dá cá dá cá. NATIVIDADE (À parte.) - Miau trá dá cá dá cá... Diz sempre a mesma coisa... Isto aposto que significa... Eu te amo. Declaremo-nos. (Alto. Com ímpeto.) Ó Istambul! Cabul! Liverpool! (Com explosão.) Rio Grande do Sul! JOSEFINA - Miau trá dá cá dá cá. NATIVIDADE (À parte.) - Já amola! Hei de dizer ao Custódio que lhe vá ensinando o português nas horas vagas. Se almoçássemos? Um calicezinho de champanha talvez... quem sabe? (A Josefina, fazendo gestos de comer.) Usted mangiare! JOSEFINA - Cuic! Cuic!

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NATIVIDADE (À parte.) - Ela disse cuic! É o oui das circassianas! (Consentimento.) Ah! Quando me dará o seu cuic? Vou ao hotel ali defronte encomendar um almoço. (Sai pelo fundo, fazendo a Josefina um sinal que espere.) CENA IV JOSEFINA, só JOSEFINA - Ah! Voilá un chinois de turc qui me embête. (Apresentando-se.) Josefina Bataille; ex-modista no Rio de Janeiro e ex-artista em Constantinopla. Não sou circassiana, mas parisienne! No Rio de Janeiro apaixonei-me por um garçon d'hotel: José, o meu José! Enganada por ele, resolvi expatriar-me. Em Paris, deu-me a mosca e fui para Constantinopla em companhia de uma companhia de zarzuela-buffe. Ferraram-nos a mais tremenda pateada. Ficamos todos a tocar leques por bandurra. Mas um dos nossos atores, um espertalhão, descobriu um turco que, tendo de embarcar daí a dias para o Rio de Janeiro, pretendia levar consigo algumas escravas. Disse comigo: estou arranjada! O homem paga-me a passagem, e logo que chegarmos ao Rio de Janeiro tomo às de vila-diogo. Agradei-lhe, e ele comprou-me por dois mil e quinhentos francos, que embolsei. Embarcamos... chegamos..., e no momento em que eu me dispunha a passar-lhe o pé, abre esta janela e diz-me: - Estamos em Túnis! O animal mudara de resolução? Estamos em Túnis, de baixo do pavilhão maometano, e pela lei, sou sua escrava! Que posição! E o diabo é que o diabo torna-se exigente como o diabo! Já começa a agitar o lenço. (Remonta.) CENA V JOSEFINA, CUSTÓDIO, depois NATIVIDADE CUSTÓDIO (Entra pela primeira porta da esquerda. Está vestido de turco, grande e alto toucado de eunuco. Não traz barbas. Um grande sabre, chinelas turcas.) - Esta roupa é quente como os demônios, e este chanfalho é muito incômodo. JOSEFINA (À parte.) - Olá! outro turco... Algum amigo. CUSTÓDIO (À parte.) - A sultana! Oh! que é esplêndida e robusta. Aí está, é das mulheres que aprecio. JOSEFINA (À parte.) - Como é feio! CUSTÓDIO (À parte.) - Vou fingir que falo turco. (Aproximando-se dela, e cumprimenta dizendo.) - Trum, trum, trum! JOSEFINA (À parte.) - Que estará ele dizendo? CUSTÓDIO (À parte.) - Decididamente inda gosto de cerejas. (Fazendo festas a Zetublé.) Trum, trum, trum! JOSEFINA - Que tipo! Ah! Mais est-ce qui'il ne va pas finir ce vieux debardeur. NATIVIDADE (Entrando, pelo fundo, á parte.) - Está encomendado o almoço. (Alto a Custódio.) Omar, vil escravo, aproxima-te! CUSTÓDIO (Que tem tomado a extrema, aproximando-se.) - Aqui estou grandeza do sol! NATIVIDADE (Indicando-lhe o fundo.) - Vai para a sala dos eunucos. CUSTÓDIO (À parte.) - Para o corredor. NATIVIDADE - De cimitarra em punho! Degolarás todo aquele ou aquela que pretenda entrar ou sair! JOSEFINA (À parte.) - Saprelotte. NATIVIDADE - Estás nomeado eunuco mor do harém! JOSEFINA (À parte.) - Eunuco? (Alto.) Isto é demais! NATIVIDADE e CUSTÓDIO - Hein? NATIVIDADE - Ela fala português! CUSTÓDIO - Mas tem sotaque turco. NATIVIDADE - Ah! aqui vão se passar coisas extraordinárias. (A Custódio.) Retira-te e retira da bainha a tua cimitarra. (Cantam.) Juntos

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NATIVIDADE - Ela disse: isto é demais, Ela falou português! Explicar-me a coisa vais Em minutos dois ou três! (Bis.) CUSTÓDIO - Ela disse: isto é demais, Ela falou português! A pequena é das tais, Hei de ter a minha vez! (Bis.) JOSEFINA - Sim eu disse: isto é demais, Sim que falo português! E se daqui saio, jamais No oriente ponho os pés. (Bis.) (Repetem 3 vezes, na terceira, duas vezes. Custódio sai.) CENA VI JOSEFINA, NATIVIDADE NATIVIDADE - Fala! Quem te ensinou a falar a língua de Camões? JOSEFINA - Foi meu pai, que esteve muitos anos em Portugal. NATIVIDADE - Pois ainda bem, assim nos poderemos entender melhor. JOSEFINA - Quero pedir-te dois favores, trono de esplendor! pirâmide de sabedoria! NATIVIDADE - Fala, andorinha da minha primavera! JOSEFINA - Dispensa o eunuco. NATIVIDADE - O meu fiel Omar! E depois? JOSEFINA - Empresta-me uns cobres para ir comprar um par de ligas? NATIVIDADE - Queres sair?! Pela couraça de Maomé! Proíbo-te! JOSEFINA - Então hei de levar todo o santo dia metida entre estas quatro paredes? NATIVIDADE - Recalcitras? JOSEFINA - Recalcitro! NATIVIDADE - Vou mandar-te açoitar! JOSEFINA - Não, não! Já cá não está quem falou! NATIVIDADE (À parte.) - Hein! O que é a mulher no oriente! (Alto.) Pois não sabes, ó desgraçada, que se um homem se atrever a olhar para ti, estou no meu direito de degolá-lo? JOSEFINA - Oh! NATIVIDADE - E de coser-te ali num saco, como um macaco, um galo, uma serpente, e um coelho e de lançar-te ao mar! Hum! JOSEFINA (À parte.) - Ora esta! NATIVIDADE - Agora sorri! JOSEFINA - Mas... NATIVIDADE - Ordeno-te que sorrias! JOSEFINA (Sorrindo.) - Pronto! NATIVIDADE - Ah! Ah! Ah! CENA VII Os mesmos e CUSTÓDIO CUSTÓDIO (Entrando pelo fundo, de cimitarra em punho.) - Montanha de cortesia! NATIVIDADE - Que há? CUSTÓDIO (Baixo.) - O inquilino do terceiro andar diz que está aí a nova proprietária, que vem examinar o prédio.

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NATIVIDADE (A Josefina.) - É o cadi que me vem visitar... Vai para o teu quarto. JOSEFINA - Obedeço, cornija da abóbada celeste. (Sai pela direita, primeiro plano.) CENA VIII NATIVIDADE, CUSTÓDIO, depois SIMPLÍCIA e o primo ALFERES ALFERES (Dentro.) - A casa é bem boa! SIMPLÍCIA (Dentro.) - Construção muito sólida! NATIVIDADE (Que subiu, olhando para o fundo.) - Céus! Minha mulher! CUSTÓDIO - A patroa! NATIVIDADE - Com o primo Alferes. CUSTÓDIO - Vão ver-nos vestidos de turcos! Onde nos devemos meter? NATIVIDADE - Prudência! estas vestimentas podem salvar-nos! (Fazendo Custódio sentar-se à turca no divã da esquerda.) Senta-te aí... cruza as pernas... fuma neste cachimbo! (Dá-lhe um grande cachimbo turco, que vai tirar do cabide.) CUSTÓDIO - Mas eu não fumo. O tabaco faz-me mal!... NATIVIDADE - Tanto melhor! (Sentando-se num coxim, do outro lado.) E eu aqui... e bico! (Cruza as pernas e acende um cachimbo. Simplícia aparece ao fundo, seguida pelo primo Alferes, que está fardado.) Quarteto SIMPLÍCIA - Olé! Dois turcos! dois! ALFERES - Dois turcos, é verdade! SIMPLÍCIA - Isto pra mim é novidade! Eu não sabia que os meus inquilinos Fossem turcos! ALFERES - São turcos genuínos! SIMPLÍCIA e ALFERES CUSTÓDIO e NATIVIDADE Oh! que tipos Para ver-me Que tipões, Nos sertões, Me parecem Dava agora Dois sultões (Bis.) Dez tostões (Bis.) SIMPLÍCIA (Aproxima-se.) - Sou sua senhoria! NATIVIDADE (Falando.) - Mamamut, mamamut, mamaut! ALFERES - Jesus! Que algaravia. NATIVIDADE - Trombuctu, trombuctu. (Bis.) SIMPLÍCIA - Não sabem o português. ALFERES - Talvez saibam francês... Elle est la propriétaire. CUSTÓDIO - Mamamut, mamamut, mamamut, mamamut. SIMPLÍCIA - Nous ne pouvon rien faire! CUSTÓDIO - Tombuctu, tombuctu, tombuctu, tombuctu! ALFERES - Não sabem o francês. SIMPLÍCIA - Inglês sabem talvez. I am the proprietary. NATIVIDADE - Mamamut, mamamut, mamamut! ALFERES - Não sabe o que é proprietary! CUSTÓDIO e NATIVIDADE - Tombuct, tombuctu, tombuctu! TODOS - Mamamut! Tombuctu!

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SIMPLÍCIA e ALFERES CUSTÓDIO e NATIVIDADE Mamamut, tombuctu É língua de zulu, Mamamut, tombuctu Mamamut, tombuctu; Mamamut, tomboctu É língua de zulu, Tom, tom, tom, tombuctu! É língua de zulu! ALFERES - Não sabem português... podemos falar sem receio. Prima Simplícia, eu continuo a amá-la com todas as forças de minha alma! CUSTÓDIO e NATIVIDADE - Hein? ALFERES e SIMPLÍCIA (Voltando-se.) - O que é? NATIVIDADE - Mamamut CUSTÓDIO - Tombuctu! ALFERES - Lembra-se daquela vez... seu marido estava na Europa... em que jantamos juntos no Bragança, em tête-a-tête... num gabinete que dava para a Rua do Cano? SIMPLÍCIA - Cale-se. NATIVIDADE (À parte.) - E esta? ALFERES - À sobremesa, a prima Simplícia sempre vigorosa, não me quis atender; pôs a capa e o chapéu e... SIMPLÍCIA - Tinha-me esquecido de fechar as gavetas, e não me fio em criados. NATIVIDADE (À parte.) - Felizmente. ALFERES - Para a outra vez, não se esqueça de fechar as gavetas, sim, prima Simplícia? SIMPLÍCIA - Cale-se! ALFERES - Outro cálice! A prima Simplícia hoje está inesgotável! (Beija-lhe a mão.) NATIVIDADE - Mamamut! Mamamut! CUSTÓDIO - Tombuctu! Tombuctu! SIMPLÍCIA - Que tipos, vamos ver o resto da casa. ALFERES - Às suas ordens, prima Simplícia. (Dirigindo-se à porta da direita.) Uma alcova... Oh!... SIMPLÍCIA - O que foi? ALFERES (Disfarçando.) - Nada! Apertei o dedo na porta! (À parte.) Uma odalisca! Um harém ali dentro! SIMPLÍCIA (Que tem pegado na bengala de Natividade, dá-lhe com ela.) - Ah! ALFERES - O que é? SIMPLÍCIA - Nada. (À parte.) - Dir-se-ia a bengala de meu marido! Hei de cá voltar... ALFERES (À parte.) - Vou e volto! SIMPLÍCIA - Vamos, primo Alferes? ALFERES - Às suas ordens, prima Simplícia. (Saem.) CENA IX NATIVIDADE, CUSTÓDIO, depois JOSÉ NATIVIDADE (Levantando-se.) - Foram-se. CUSTÓDIO (Idem.) - Há muito tempo. Já estou tonto de tanto fumar! NATIVIDADE - Instalei Zetublé na casa que minha mulher comprou na minha ausência. Amanhã mudamo-nos. CUSTÓDIO - E o priminho a fazer o seu pé-de-alferes! NATIVIDADE (Muito sério.) - Custódio, eu não sou homem de preconceitos... mas vou fechar a porta ao tal priminho. (Entra pela fundo José, vestido de moço de restaurante, com um almoço servido numa mesinha, deixando ficar perto da porta da esquerda uma cesta com vinho.) NATIVIDADE - Ah! bem! bem! (Chamando.) Zetublé, Zetublé! CENA X Os mesmos e JOSEFINA

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JOSEFINA (Entrando) - Chamou-me? NATIVIDADE - Para almoçarmos. JOSÉ (A Natividade.) - Não deseja mais nada? JOSEFINA (À parte.) - Ah! Meu Deus! esta voz! (Reconhecendo.) José?! JOSÉ - (À parte, estupefato.) - Josefina! NATIVIDADE - O que tem você, homem? JOSÉ (Palpitante.) - Nada! NATIVIDADE - Então, deixe-nos. (Sai José pelo fundo, olhando para Josefina.) JOSEFINA (À parte.) - José em Túnis? NATIVIDADE (A Josefina.) - Senta-te a minha direita. (Sentam-se à mesa.) CUSTÓDIO (Procurando lugar para sentar-se.) - E então eu? JOSEFINA (Dando-lhe o prato de arroz.) - Tome; vá para o seu quarto. CUSTÓDIO (Consigo.) - Vá lá! cá levo o champanha para digerir o arroz. (Toma, sem ser visto, um cesto de garrafas que José tem posto, ao entrar, perto da porta da esquerda, primeiro plano. Sai por essa porta.) CENA XI NATIVIDADE, JOSEFINA, depois JOSÉ NATIVIDADE - Finalmente estamos sós... sozinhos! JOSEFINA - É verdade. (À parte.) Como é feio! NATIVIDADE (Com ímpeto.) - Ô Zé, Zé! JOSEFINA (Friamente, erguendo-se.) - O que há? NATIVIDADE (Acompanhando-a.) - Fala-me, dize-me coisas açucaradas... Canta-me uma cantiga da tua terra! JOSEFINA - Ah! quer que lhe cante uma cantiga! Então lá vai! Os dois pombinhos. (À parte.) Vou impingir-lhe um couplet do repertório da ópera-bouffe. NATIVIDADE - Vamos lá: I JOSEFINA - Conheci dois namorados, Cada qual mais discreto, Quem os via tão chegados Invejava aquele afeto A trocarem mil carinho, mil carinhos, Pareciam dois pombinhos, dois pombinhos! E até diziam Que assim faziam (Bis.) Quando sozinhos (Rolando.) Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! NATIVIDADE - Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! JOSEFINA - Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! NATIVIDADE - Rucutucu! Rucutucu! Rucutucu! Rucutucu! JOSEFINA - Pombo gentil, gentil pombinha, Hás de ser meu, hás de ser minha! Hás de ser meu! II Mas depois de bem casados, Adeus, minhas encomendas! Eram só por seus pecados, Discussões e mil contendas, Dele um murro, dela um soco, Não ficava sem ter troco,

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E assim diziam, Já não faziam (Bis.) Muito nem pouco (Rolando.) Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! NATIVIDADE - Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! JOSEFINA - Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! NATIVIDADE (Tomando-a pela cintura com explosão.) - Ó Zé, ó Zé, ó Zé, ó Zetuble! JOSÉ (Aparecendo ao fundo.) - O senhor chamou? NATIVIDADE - Vai-te embora, garçom! Não me esfries a cena! JOSÉ - Parece-me que tinha ouvido: Ó Zé! (Sai.) JOSEFINA (À parte.) - E nunca foi tão bonito! NATIVIDADE - Em que pensas? JOSEFINA (Sentando-se à mesa.) - Penso que... que estou com o estômago a dar horas. NATIVIDADE (À parte, sentando-se.) - Pois, senhores, a pequena fala o português como Fernão Mendes Pinto. (Com explosão.) Ó Zé... tublé! JOSEFINA - Quieto! JOSÉ (Entrando.) - O senhor chamou? NATIVIDADE - Deixa-nos por Maomé! (José sai.) Este garçom é insuportável! Huri do meu coração, uma taça de champanha, vai? JOSEFINA - Duas ou três, se quiser. NATIVIDADE (Procurando as garrafas.) - Ora esta! Onde diabo está o champanha? JOSEFINA - Chame o garçom. NATIVIDADE - Qual garçom! Estou farto do tal garçom! Provavelmente Omar levou as garrafas para o seu quarto! Vou buscá-las. Volto já! (Enviando-lhe um beijo.) Volto já! ... (Entra no quarto de Custódio.) CENA XIII JOSEFINA, JOSÉ e depois NATIVIDADE JOSÉ (Aparecendo.) - O senhor chamou JOSEFINA - José!! JOSÉ - Josefina! Estás só? JOSEFINA - Oh! leva-me daqui! leva-me daqui! JOSÉ - Para onde? JOSEFINA - Para onde quiseres! Para o inferno! Ainda me amas? JOSÉ - Oh! sempre! (Ajoelha-se ao pés. Natividade entra.) NATIVIDADE - Aqui está o champ... (Vendo-os, com um grito.) Oh! (Arrolha o champanha que salta com a explosão.) Tercetino NATIVIDADE - Que vejo! (Bis.) JOSEFINA e JOSÉ - Nós fomos apanhados Coa boca na botija! NATIVIDADE (Puxa o alfanje.) - Oh! desgraçados, É natural que disto explicação exija! Por Maomé! JOSEFINA (Protegendo José.) - José! Meu José! NATIVIDADE (Avançando para eles.) - Zetublé! JOSÉ - Zetublé? Eu não me posso ter em pé! JOSEFINA - Meu José, meu José! Dá neste turco um pontapé! NATIVIDADE - Maomé! (Bis.) Eu vou matar este José!

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(A Josefina.) Sem mais demora Para o meu quarto Vá senhora (Empurra Josefina para o quarto, depois avança para José. Tragicamente.) E nós, agora!... (Vai como que cantar uma grande ária, avançando para José, que se defende, levantando a mesa. A orquestra para subitamente interrompendo o ritornello da ária, que deve ser a Tosca.) CENA XIV NATIVIDADE, JOSÉ, depois CUSTÓDIO NATIVIDADE (Muito calmo.) - Não sejas tolo... não te quero mal... (Dando-lhe uma nota.) Aqui tens cinco bagarotes. JOSÉ (Admirado.) - Não percebo... NATIVIDADE - Solta um grande grito... Assim como se te estivessem matando! JOSÉ - Está doido? NATIVIDADE - Solta um grito! (Lembrando-se.) Ah! espera lá! (Dá-lhe um pontapé. José solta um grito e foge pelo fundo.) Pronto! CUSTÓDIO (Entrando com um grande saco às costas.) - Cá vou deitar no corredor o primeiro saco de rolhas! CENA XV Os mesmos e JOSEFINA JOSEFINA - Ouvi um grito... Mon Josef!... Vendo o saco às costas de Custódio, solta um grito de pavor.) Ah! ele está naquele saco! Assassinado! (Custódio tem saído pelo fundo.) NATIVIDADE - Fiz justiça! (Para fora.) Omar, manda lançar esse cadáver ao mar! JOSEFINA - Assassino! Malvado! Odeio-te! Detesto-te! NATIVIDADE (Tomando-a pela cintura.) - Façamos as pazes, louquinha! JOSEFINA - Não te aproximes de mim. Eu mordo-te! NATIVIDADE - Fica assim! És sublime nas tuas fúrias! (Excitando-a.) Kis! Kis, enfurece-te mais, e vez em quando hei de mandar matar um garçom, para te ver assim furiosa! (Com graça.) Até logo, alma da minha vida, até logo! (Sai pela direita.) CENA XVI JOSEFINA, depois o ALFERES JOSEFINA - Oh! Jé comprendo Judith et Olofernes! ALFERES (Entrando cautelosamente.) - Entrei pela outra porta, de que tenho uma chave! Oh! a sultana... JOSEFINA (À parte.) - Um militar! ALFERES - Fala português? JOSEFINA - Falo! (À parte.) Aqui em Túnis, muito se fala o português! ALFERES (Caindo-lhe aos pés.) - Nesse caso, amo-a! JOSEFINA - Senhor! ALFERES (Com volubilidade.) - Eu nunca tinha visto sultana senão nas mágicas... Desde a primeira vez que tive a ventura suprema de vê-la, senti circular-me nas veias um fogo estranho, eu... JOSEFINA (Atalhando.) - Desgraçado, pois não sabe? ALFERES - O quê? JOSEFINA - Nessa casa corta-se a cabeça de um homem... ALFERES - Virgem Maria!... JOSEFINA -... com a mesma facilidade com que a uma galinha!

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ALFERES - Valha-me Deus! (Cai sentado. Natividade e Custódio, que aparecem, soltam ambos um grande grito ao dar com ele. Forte na orquestra. O Alferes foge pela esquerda, primeiro plano.) CENA XVII JOSEFINA, NATIVIDADE e CUSTÓDIO NATIVIDADE (Solene.) - Omar? CUSTÓDIO - Patrão! (Emendando.) Ben-Cid-Natividade? NATIVIDADE - Desembainha o teu alfanje, vai ao encalço desse Alferes, e corta-lhe a cabeça. CUSTÓDIO - Sim, fonte de suavidade! (Sai pela esquerda, primeiro plano.) JOSEFINA - Perdão, perdão para ele! Eu não o conheço! Juro-lhe que está inocente! NATIVIDADE - Pelo bigode do Profeta. Não o defendas, mulher! (Custódio reaparece com outro saco às costas e sai pelo fundo.) Ali vai o saco do Alferes. JOSEFINA (Com um grito.) Outro! Dois homens perderam a cabeça por meu respeito. (Vai desmaiar. Natividade sustém-na.) NATIVIDADE - Como és bela assim! Deixo-te entregue às suas reflexões... Mas pelo umbigo de Maomé! Não recebas visita. se é que a espécie humana te merece alguma consideração! Vou encomendar mais sacos! (Sai pelo fundo e fecha a porta. Simplícia aparece no segundo plano, esquerda.) CENA XVIII JOSEFINA e SIMPLÍCIA JOSEFINA - Estamos num belo país, não há que ver. SIMPLÍCIA (À parte.) - Aqui anda coisa... Aquela bengala! JOSEFINA - Uma senhora! SIMPLÍCIA - Uma turca! Josefina, que foi minha costureira! JOSEFINA - Oh! Uma freguesa fluminense! E esta! SIMPLÍCIA - Que faz você aqui? E assim vestida? JOSEFINA - Estou em poder de dois tigres... dois turcos! dois degoladores! SIMPLÍCIA - Meu Deus! JOSEFINA - Salve-me, madama, salve-me das garras de Ben-Cid-Natividade! SIMPLÍCIA - Hein?! Chama-se Natividade? JOSEFINA - E o outro Custódio... Custódio Omar. SIMPLÍCIA - O guarda-livros. JOSEFINA - Não é essa precisamente a sua profissão! SIMPLÍCIA - Ah! desavergonhados! tratantes... Sossegue, que arrancá-la-ei do jugo dos seus algozes! Ouvi rumor, esconda-me... esconda-me que ele vai ver o bom e o bonito! JOSEFINA - No meu quarto, ali... SIMPLÍCIA - Nem uma palavra, e conte comigo! Ah! Maroto! (Entra no quarto de Josefina.) JOSEFINA - Mas como diabo... CENA XIX JOSEFINA, JOSÉ, depois o ALFERES JOSÉ - Psit! Psit, Josefina, Aqui estou mulher divina! Pois que adorar-te é meu fraco, JOSEFINA - Pois não estás no saco? ALFERES - Psit! Psit, ó menina! Aqui estou, huri divina! Pois adorar-te é meu forte! JOSEFINA - Também escapou à morte?

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(Assustando-se.) Escondam-se! ALFERES e JOSÉ - Oh! (Desaparecem ambos. Forte na orquestra.) JOSEFINA - Vivants tous deux, ces farceurs de turcs m'ont fait poser! (Entra Custódio um pouco embriagado.) JOSEFINA, CUSTÓDIO, depois NATIVIDADE CUSTÓDIO - O champanha é bom, mas é velhaco. Fiz como o patrão, tomei uma turca. (A Josefina) Meu amo, o décimo terceiro raio do sol, mandou dizer a vossemecê que... (Procurando lembrar-se.) O que o diabo mandou ele dizer? Ora esta? JOSEFINA - Durma um poucochinho. CUSTÓDIO - Isso não! Não posso dormir ao pé de um prato de cerejas. JOSEFINA - Pobre turco! CUSTÓDIO (À parte.) - É esplêndida! (Toma-lhe a mão e beija-a.) Tombuctu1 Tombuctu! JOSEFINA - O quê? Ah! Quer a outra! (Dá-lhe a outra mão, Custódio beija-a.) Pobre mamamuth!... NATIVIDADE (Entra pelo fundo com o turbante enviesado.) - Não sei o que tenho... Eu não sou turco, mas também parece-me que não estou lá muito cristão! (Alto.) Omar, sola dos meus sapatos! (Toma-lhe o braço e encostam-se um ao outro rindo.) Que a minha vontade seja a tua lei! (Tirando um lenço da algibeira.) Chegou o momento. Leva esta mensagem à sultana! JOSEFINA -Rigri... et demande l'addition!... CUSTÓDIO (À parte, com o lenço na mão aproximando-se de Josefina, a cambalear.) - Estou com vontade de lhe dar também o meu. (Tira da algibeira um lenço de tabaco e , dobrando o joelho, apresenta os dois lenços a Josefina.) Branca filha da branca Circássia... aceita este testemunho de consideração e respeito com que somos de... Vossa Senhoria... atentos, veneradores e criados... JOSEFINA - Dois lenços! eu não estou endefluxada! NATIVIDADE (Aproximando-se desta com amor.) - Preciso dizer-te tantas coisas! JOSEFINA - Permite-me, grande luz, que eu vá vestir os meus vestidos de gala. NATIVIDADE - Que te acompanhem as graças e te conduzam amores. Tem três minutos para mudar a fatiota. (Josefina sai pela direita média.) CENA XXI NATIVIDADE e CUSTÓDIO CUSTÓDIO - É pena que o patrão só tivesse comprado uma. NATIVIDADE - Omar! CUSTÓDIO (Sem dar-lhe ouvidos.) - Se ele ma quisesse ceder pelo custo... NATIVIDADE - Omar!... CUSTÓDIO - Patrão!... NATIVIDADE - Inunda-me de perfumes. Quero embriagá-la. CUSTÓDIO - Perfumes? Então, com licença: vou até os Dois Oceanos. NATIVIDADE - Quais Dois Oceanos! Toma! (Tira da algibeira dois vidros de perfumarias.) Derrama-me essas águas nos cabelos... no pescoço... CUSTÓDIO - Eu também sou filho de Deus! (Derrama um vidro sobre Natividade e outro sobre si.) NATIVIDADE - Derrama... Nos olhos não, desgraçado! (Tendo-se acabado a perfumaria, derrama Custódio sobre Natividade o champanha de uma garrafa que trouxe debaixo do braço.) CUSTÓDIO - Acabou-se. (Desfaz-se da garrafa e dos vidros.) NATIVIDADE - Escravo, é a festa dos mirtos! Vai buscar a formosa Zetublé. CENA XXII NATIVIDADE, CUSTÓDIO, SIMPLÍCIA, depois JOSÉ, ALFERES, E JOSEFINA

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(Música na orquestra. Dona Simplícia aparece vestida de circassiana e com o rosto coberto por um véu. Custódio toma-a pela mão, e leva-a solenemente para junto de Natividade.) NATIVIDADE - Aproxima-te, sol das minhas noites! (Beija-lhe a mão) CUSTÓDIO (Beijando-lhe a outra mão.) - Lua dos meus dias. SIMPLÍCIA (Afastando o véu.) - Vocês são dois patifes! NATIVIDADE (Recuando.) - Minha mulher! CUSTÓDIO - A patroa! (Josefina, Alferes e José aparecem.) SIMPLÍCIA (Tirando um lenço do bolso.) Então foi para isto que lhe marquei duas dúzias de lenços. (A Josefina.) - Venha, Josefina! JOSEFINA - Josefina! SIMPLÍCIA - Minha ex-modista. NATIVIDADE - Pois não é circassiana? JOSEFINA - Parisiense! NATIVIDADE - Parisiense? Passe para cá os meus dois mil e quinhentos francos. SIMPLÍCIA - É o seu dote, porque vai casar. JOSÉ (Tomando a mão de Josefina.) - Comigo. Ah! Eu já estava para atirar-me (Aponta para a janela.) ali do zimbório da Candelária abaixo. [Cai o pano]

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A PRINCESA DOS CAJUEIROS Ópera cômica em 1 prólogo e dois atos Música de Francisco de Sá Noronha Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro Teatro Fênix Dramática em 6 de março de 1880 A JACINTO HELLER oferece o Autor PERSONAGENS DO PRÓLOGO EL-REI CAJU DOUTOR ESCORREGA, médico do paço NHECO, mestre de cerimônias MARCOS, pescador VIRGÍNIA, uma mulher do povo. UM PAJEM UMA ENFERMEIRA Conselheiros, ministros, fidalgos, cortesãos, damas do paço e amas de leite. PERSONAGENS DOS DOIS ATOS PRINCESA DOS CAJUEIROS PAULO, pescador DUQUESA DA GUARDA-VELHA PETRONILHA } } mulheres do povo TERESA } EL-REI CAJU BARÃO DO BOM SUCESSO, médico do paço NHECO, mestre de cerimônias MARCOS, pescador O ADVOGADO DA DEFESA O ADVOGADO DA ACUSAÇÃO 1º MINISTRO 2º MINISTRO 3º MINISTRO 4º MINISTRO UM LACAIO Professores, gondoleiros, fidalgos, damas, lacaios, etc. A cena passa-se na Ilha (imaginária) dos Cajueiros, os dois últimos atos vinte anos depois do prólogo PRÓLOGO Sala de gosto antigo e esquisito. Duas portas à direita e duas à esquerda. No fundo, um arco em toda a largura da sala. Depois do arco, uma grade, aberta no centro, para dar passagem para um bosque por uma escada que não se vê. À esquerda, um sofá.

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CENA I Cortesãos, depois o DOUTOR ESCORREGA, depois UM PAJEM, depois EL-REI CAJU e sua comitiva. INTRODUÇÃO CORO DE CORTESÃOS - Contentes, contentes nós vamos ficar! Ferventes, ferventes, Sabemos amar A bela rainha Que o céu Nos deu, E que, coitadinha 'Stá pra dar a luz Um filho que há de ser um príncipe de truz! O DOUTOR (Aparecendo à porta dos aposentos da rainha, à meia voz.) - Senhores, não façam tamanho barulho, Que nada de novo por ora não há... CORO (À meia voz.) - Pois bem, não façamos tamanho barulho Que nada de novo por ora não há... O DOUTOR - Senhores, estamos a quinze de julho; Há já nove meses que... trá lá rá lá! CORO - Trá lá rá lá! Trá lá rá lá! Há já nove meses que... trá lá rá lá! O DOUTOR (Descendo à cena.) Coplas I Eis o Doutor Escorrega, Do paço médico mor, Que os doentes se encarrega De mandar para melhor. Eis o Doutor Escorrega! No bem da humanidade dos dias seus emprega! CORO - Eis o Doutor Escorrega No bem da humanidade os dias seus emprega! II O DOUTOR - Há quatro meses somente Da Academia sai: Já matei radicalmente Cinco ou seis tipos daqui! Eis o Doutor Escorrega! No bem da humanidade dos dias seus emprega! (Declamando.) Viram o médico do paço? Vejam agora o passo do médico! (Dança um burlesco sapateado durante o seguinte coro:) CORO - Ah! Ah! Ah! Quem mais burlesco, Quem mais grotesco Será? Será? Passo indecente! De rir à gente Vontade dá!

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Ah! Ah! Ah! (Findo o coro, entra o pajem a correr.) PAJEM - Limpem fatos E sapatos, Que aí vem El-rei! (Cada um dos cortesãos tira uma escova do bolso: limpam-se uns aos outros.) CORTESÃOS - Zás! Trás! Zás! Trás! Zás! Trás! Fatos limpos e sapatos! Que aí vem El-rei! PAJEM - Vim prevenir-vos depressa, Mal que o avistei! CORTESÃOS (A escovarem-se.) - Pressa! pressa! pressa! pressa! Que aí vem El-rei! (Aparece ao fundo numerosa e luzida comitiva, que precede El-rei que vem acompanhado de coiteiros, trazendo petrechos de caça.) MARCHA E CORO GERAL - Praça! Praça! Praça! porque aqui está El-rei que vem da caça! Toca trombeta: trá lá rá! EL REI (À boca de cena.) Coplas I Eu sou o rei mais pândego. Um rei sou de mão cheia! Pareço um rei de mágica, Por ser original Por isso os meus bons súditos Não fazem cara feia... Pra rei de ópera-cômica Não estou de todo mal! Tur lu tu tu, Tur lu tu tu Ora aqui está El-rei Caju! II No meu país esplêndido É tudo monarquista! Ninguém fala em república Ninguém diz mal de mim! Se acaso algum sacrílego Quiser meter-me a crista, Irá para o patíbulo, Pois ... eu cá sou assim! Tur lu tu tu, Tur lu tu tu Ora aqui está El-rei Caju! CORO - Tur lu tu tu, Tur lu tu tu Ora aqui está El-rei Caju! EL-REI (Aos cortesãos, que desde a sua entrada têm-se inclinado bastante.) - Levantar cabeças! (Perfilam-se.) Doutor, dou-te a honra de dizer que venho da caça. O DOUTOR - A caça é o rei dos prazeres e o prazer dos reis!

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EL-REI - Foi uma caçada real! O DOUTOR - O que matou? EL-REI - Um veado. O DOUTOR - Teve medo? EL-REI - Não. Estou satisfeitíssimo com os meus coiteiros! (À comitiva.) Na próxima fornada, hei de fazer-vos barões, marqueses, conselheiros, coronéis da Guarda Nacional, etc. Sois ótimos caçadores! (Inclinam-se.) Levantar cabeças! (Perfilam-se.) Que novas me dás do estado de Sua Majestade, a Rainha, ó Doutor? O DOUTOR - O estado de vossa real esposa é o mais satisfatório possível. Há todas as probabilidades de um parto feliz. Conto que dentro de meia hora terá vindo à luz do dia o dono ou dona desta prenda! (Pega na coroa do rei.) EL-REI (Zangado.) - O dono ou dona? (Naturalmente.) Dá cá a coroa, Doutor... (De mau humor, deitando a coroa.) Pois não tens certeza de que a criança é do sexo feminino? Há nove meses te ordenei que empregasses toda a tua ciência, a fim de que não seja varão, e sim varoa, a primícia do meu feliz matrimônio! O DOUTOR - Supus que fosse gracejo... EL-REI - Gracejo! Pois eu gracejo com os meus vassalos! O DOUTOR - Relevai vos diga que a ciência, por isso mesmo que é a ciência, submete-se aos fenômenos comuns da natureza. EL-REI - Fala claro. O DOUTOR - Se o filho não tiver de ser uma filha, nem Vossa Majestade, nem eu, nem a ciência em peso... EL-REI - Então para que se inventaram as invenções? Para que diabo cursaste dez largos anos a Universidade, donde saíste há quatro meses somente?... O DOUTOR (Cantando sem música.) - Há quatro meses somente da Academia sai... TODOS (Idem) - Já matou radicalmente Cinco ou seis tipos daqui ! EL-REI - Silêncio (Inclinam-se.) Levantar cabeças! - Pois nãos podes arranjar uma droga que tenha o desejado efeito? O DOUTOR - Vossa Majestade pede... EL-REI - Não peço: mando! O DOUTOR - Manda um impossível! EL-REI - Quero, mando e posso! O DOUTOR - Mas... EL-REI - Mando, posso e quero! O DOUTOR - Desta vez, Vossa Majestade pode querer, pode mandar, mas não pode poder! EL-REI - Olha que sou teu rei! O DOUTOR - E eu o mais respeitoso dos vossos súditos! EL-REI - Obrigado. O DOUTOR - Não há de quê... O nascimento, real senhor, é questão de mero acaso; nós nascemos homem, porque não nascemos mulheres... EL-REI - Boa dúvida! - Não sei onde estou... O DOUTOR - Estais em vossa casa... EL-REI - Não sei onde estou, que não te esmurro... O DOUTOR - Isso é mais fácil! EL-REI - Senhores, atenção! Vou deitar decreto! Decreto verbal! (Inclinam-se todos. El-rei sobre ao sofá.) Sua Majestade El-rei Caju há por bem decretar ao médico de seu paço real, Doutor Escorrega, que, empregando os meios postos ao seu alcance por dez anos de Universidade, faça com que sua Majestade, a rainha, dê à luz uma criança do belo sexo. Se suceder que a criança pertença ao sexo barbado, morra por ele o referido Escorrega (Movimento do Doutor.) que assim o tenha entendido. Assinado: Eu! (Descendo.) Levantar cabeças! O DOUTOR - Refleti, senhor...

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EL-REI - Já refleti maduramente. - Ah! (Trepando ao sofá e batendo palmas.) Post-scriptum! Post-scriptum! (Silêncio. Inclinam-se.) Se for macho, enforque-se o Doutor; se for fêmea, faço-o barão de qualquer coisa! O DOUTOR - Senhor! EL-REI - Assim o tenhas entendido! E bico! Levantar cabeças! O DOUTOR - Com que então, desejais que o fruto do vosso amor... EL-REI - O fruto não: deve ser a fruta! O DOUTOR - O fruto é proibido: vá Vossa majestade descansado. EL-REI - Bem. Assim é que gosto que me falem. Toca lá estes ossos. (Apertando-lhe a mão.) Vê lá: um título ou cadafalso! (Aos cortesãos.) Rua! rua! Fazeis muita algazarra, e convém que minha augusta esposa esteja em completo sossego. - Doutor, uma princesa, ou... (Repetição do estribilho.) - Tur lu tu tu Tur lu tu tu Verás quem é El-rei Caju! (Aos cortesãos.) - Marche! - Vou ver a rainha. (Entra no quarto da rainha.) CORO - Tur lu tu tu Tur lu tu tu Oh! que é ratão El-rei Caju! (Os cortesãos saem pela esquerda alta. A comitiva do rei sai pelo fundo.) CENA II O DOUTOR [só] [O DOUTOR] - Bonito. Ou uma princesa ou... tur lu tu tu! Estou metido em boa! Não há o que ver! o meu soberano é soberanamente tolo! Tão tolo, que aí pela ilha, quando alguém faz uma tolice, diz-se: - É uma cajuada! Persuadir-se o enxovedo que é a coisa mais natural do mundo a realização do seu originalíssimo desejo! O que hei de fazer? Isto de morrer enforcado aos trinta anos não lembra ao diabo! E o pior é que a rainha vai dar a luz a um menino! Se fosse menina, a mãe seria acometida de dores de dentes: não foi. Na Academia ensinaram-me que, quando uma senhora de esperanças, ao subir uma escada, deita sempre em primeiro lugar o pé direito, tem uma criança do sexo feminino... Ora, acontece que sua majestade deita sempre no primeiro degrau o pé esquerdo... Estou aqui, estou enforcado! CENA III O DOUTOR, MARCOS MARCOS (Aparecendo ao fundo.) - Doutor... O DOUTOR - Hein? MARCOS - Uma palavrinha... O DOUTOR - Ah! és tu, Marcos? O que queres? Como pudeste penetrar aqui? MARCOS - Pelo jardim... Quero... O DOUTOR - Escolheste mau lugar e má ocasião. MARCOS - Mas é tão urgente... O DOUTOR - Fala. MARCOS - O outro dia morreu o Belisário... Nós, os outros pescadores, por espírito de classe, fizemos-lhe o enterro e oferecemos uma quantia à viúva, à boa Teresa, que a despendeu inteiramente com a moléstia do filhinho. O DOUTOR - Um filhinho? De que idade? De que sexo? MARCOS - Um menino de três meses (Decepção do Doutor.) que acaba de lhe morrer nas mãos! O DOUTOR (Mais despeitado.) - Ora! Mas, afinal, o que queres? MARCOS - Encarreguei-me de pedir a algumas pessoas que concorressem para o enterro da pobre criança; e como o Doutor é das que conheço... e se acha no caso... não hesitei em introduzir-me no jardim e...

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O DOUTOR - Fizeste bem. Toma, e deixa-me. (Dá-lhe o dinheiro.) MARCOS - Agradeço-lhe por mim e por aquela desgraçada! (Vai saindo pelo fundo.) O DOUTOR - Oh, que idéia! Marcos! (Marcos volta) És ainda homem em quem a gente se possa fiar? MARCOS - Conhece-me de criança. O DOUTOR - Trata-se talvez da felicidade desta mulher. MARCOS - De Teresa? Ainda bem, pois bem que o merece, coitada! O DOUTOR (Dando-lhe mais dinheiro.) - Com o que já lá tens, deve dar para o enterro. Leva-lhe esse dinheiro e volta. (Conduzindo-o ao fundo e apontando para o bosque.) Logo que voltares, posta-te junto àquele cajueiro; em te eu chamando, vem cá. Não digas nada à mulher. MARCOS - Está dito! Até logo. (Sai pelo fundo.) CENA IV O DOUTOR [só] [O DOUTOR] - Trata-se agora de arranjar uma menina, e substituir por ela o príncipe, que será confiado à tal Teresa. É patifaria grossa, mas não o é mais fina mandar-me enforcar! Vamos arranjar uma princesa; não há tempo a perder. (Vai a sair; entra o pajem pela esquerda.) CENA V O DOUTOR, o PAJEM PAJEM - Diversas amas-de-leite esperam ordem para entrar. O DOUTOR - Que contratempo! PAJEM - Inscreveram-se todas para o concurso anunciado. O DOUTOR - E sou que lhes devo examinar a qualidade do leite, e escolher o melhor! Isto leva um tempo! Podia ficar para depois que sua Alteza nascesse! Enfim, mande entrar: esperarão na antecâmara. PAJEM - Tomo a liberdade de observar que cada uma das amas-de-leite traz uma criança... e isto pode perturbar... O DOUTOR (Vivamente.) - Traz cada uma uma criança? Mande entrar tudo! Mande entrar tudo! (A um sinal do pajem que sai, entra pela esquerda um coro de amas-de-leite, cada uma com a sua criança nos braços.) CENA VI O DOUTOR, as amas-de-leite, depois VIRGÍNIA CORO DAS AMAS - As amas-de-leite, De leite, de leite, Vêm-se apresentar A ver qual se aceite, Ou qual se rejeite Pra dar de mamar. O DOUTOR - Deleite, deleite, É ouvi-las cantar! Quanta criança! Quanta esperança! Deixem-me ver se estes pequenos Gordos estão, pois, se não estão, Lógico é que não convém-nos As mães... AS AMAS - Pois não! Pois não! Pois não! O DOUTOR (Examinando as crianças uma por uma, à parte.)

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- Este é rapaz - que o leve a breca! Este é rapaz! - Rapaz! - Rapaz! Este também! Também! que seca! Idem, idem, idem, idem! 'Stou danado, não duvidem! De alguém morder sou capaz! AS AMAS - 'Stá danado, não duvidem: De alguém morder, é bem capaz! VIRGÍNIA (Entrando com uma criança nos braços.) - Licença para dois! AS AMAS - Ainda uma! O DOUTOR - Quem sois? VIRGÍNIA - Senhor, também desejo, Sem mais tirte, nem mais guarte Do concurso fazer parte AS AMAS - No concurso tomar parte. O DOUTOR - Deve inscrever-se... (Reconhecendo Virgínia, que levanta o véu e encara-o.) Oh! céus! que vejo! Virgínia! VIRGÍNIA (Fazendo mesura.) - Para o servir. O DOUTOR - Grande escândalo antevejo No que daqui vai sair... (Às amas, apontando-lhes a porta da esquerda baixa.) Senhoras, entrai! A decisão em pouco vai! AS AMAS - As amas-de-leite, De leite, de leite Lá vão esperar, A ver qual se ajeite, Se ajeite, se ajeite Pra dar de mamar (Saem pela esquerda baixa.) CENA VII O DOUTOR, VIRGÍNIA (Virgínia, durante o coro, tem acomodado no sofá, a criança que trazia.) VIRGÍNIA - Finalmente! O DOUTOR - Tua presença assusta-me! Será possível que, afrontando tudo, penetrasses no paço real, para dar-me de viva voz novas edições de teus queixumes? VIRGÍNIA (Em tom dramático.) - Pérfido! Há três anos eras um pobre estudante, que não tinhas onde cair morto. Onde cair morto! Que digo eu? Onde cair vivo! O DOUTOR - Filha, olha que tenha mais que fazer. Adeus! VIRGÍNIA (Agarrando-o pelo fato.) - Espera! vais livrar o pai da forca? O DOUTOR - Vou me livrar a mim mesmo, o que é mais sério! VIRGÍNIA - Nesse caso, fica. - Meu pais, honrado velho, vendo que tu nem casa tinhas para morar, e dormias ao relento como um cão sem dono, ofereceu-te uma alcova em nossa casa e um talher à nossa mesa. Aceitaste a generosa oferta. Daí por diante, as tuas olheiras, que as levaras fundas como as de um condenado, começaram a desfazer-se. As cores rosadas da infância voltaram-te às faces, cuja palidez cadavérica dissiparam. É que às horas que te sobravam de orgias torpes, sucederam as noites bem dormidas no côncavo tépido de um colchão honesto. O DOUTOR (À parte.) Esta rapariga tem muita leitura; foi o que a perdeu.

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VIRGÍNIA - Ao cabo de três meses, disseste-me uma dia... O DOUTOR - Disse-te... VIRGÍNIA - Disseste-me: - Amo-te. E o teu amor, mentido num olhar estudado, encontrou uma porta escancarada onde deverá encontrar um baluarte inacessível: amei-te. O resto, tremo de repeti-lo... Meu pai observou-nos e murmurou: - Aqui há coisa... Chamou-me de parte... O DOUTOR - E disse-te... VIRGÍNIA - E disse-me: - Filha, os teus requebros e medeixas pelo Escorrega que, ente parêntesis, é um farroupilha, podem passar despercebidos a outros olhos que não sejam os de teu pai. Lembra-te de que já não tens mãe, e és o único penhor de minha felicidade nesta vida. Esquece-te dele e casa com teu primo Bernardino, para quem te destinei de pequena. O DOUTOR - Estás a perder tempo; sei disso tão bem como tu . VIRGÍNIA - Eu quisera que uma voz misteriosa te repetisse a todo momento essa história de lágrimas. - Quando sai do quarto do meu pai... O DOUTOR - Eu disse-te... VIRGÍNIA - Disseste-me: - Espera-me no jardim. (Com exagerado lirismo.) E foi lá, ao ciciar da brisa, ao brilho trêmulo da lua, que te repeti as palavras de meu pai... O DOUTOR (À parte.) - Estou aqui, estou enforcado... VIRGÍNIA - Nesse instante, parece que o demônio te inspirou estas palavras: - Amo-te! Virgínia! Lutar contra a vontade de teu pai, será malhar em ferro frio! Fujamos! Arranjarei um emprego qualquer! Casar-nos-emos! Uma dia voltaremos à casa de teu e pedir-lhe-emos a sua benção! O DOUTOR - Que noite aquela! VIRGÍNIA - Fugimos!... Não conseguiste... não procuraste o emprego e eu achei quem me desse roupa para lavar e engomar. Era daí que eu tirava a subsistência de nós ambos. Todos os dias eu te falava no nosso casamento, e esta palavra - Veremos - vinha morrer aos meus ouvidos como uma condenação. Um dia, poucos meses antes da tua formatura, saíste de casa e não apareceste mais; mas, ó desgraçado! o que não sabes é que me deixavas no seio o fruto da tua paixão maldita! O DOUTOR - O que ouço!... Essa criança... (Corre para a criança.) VIRGÍNIA (Interpondo-se.) - É tua filha!... O DOUTOR - Minha filha!... (Querendo tomar a criança.) A que sexo pertence? É menina? Deixa-a ver! VIRGÍNIA (Interpondo-se ainda.) - Ouve o resto: há um mês que veio ao mundo essa pobre criança... O DOUTOR - Oh! não calculas o interesse... VIRGÍNIA - Mentes tu! O DOUTOR - E onde estavas tu? VIRGÍNIA - Em casa da Rosa... uma pobre mulher, que se compadeceu do meu estado. - Dois dias depois do nascimento dessa pobre criaturinha, meu pai me apareceu em companhia do meu primo Bernardino... O DOUTOR - E disse-te... VIRGÍNIA - E disse-me: - Minha filha, eu sei o que são as mulheres e sei o que são os homens... O Escorrega seduziu-te, e tu, com a fraqueza própria do teu sexo e da tua índole romanesca, escorregaste... Eu te perdôo... Aqui te trago o primo Bernardino, que já de muito te perdoou também. O DOUTOR - Bravo! Bravo! E o que te disse o primo Bernardino? VIRGÍNIA - Disse-me: - Virgínia, o Escorrega, à vista desta criança, não hesitará em dar-te a mão de esposo. O DOUTOR - Hein? VIRGÍNIA - Nunca! respondi eu... O DOUTOR - Ah! respondeste bem... VIRGÍNIA - Prefiro o seu desprezo, meu primo; a sua maldição, meu pai; prefiro a minha desgraça... Foi nesse instante que o primo Bernardino, iluminado pela auréola sublime da piedade, balbuciou com a voz entrecortada pelos soluços: - Virgínia, eu sou o mesmo que dantes era! Põe-te fina e tens marido. Amanhã vou mandar correr os banhos!... O DOUTOR - Sublime! sublime!

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VIRGÍNIA - Tu, que tens o coração de pau, não imaginas que cena! Meu pai chorava; eu chorava; Bernardino desviava os olhos para lhe não trairmos o pranto... a criancinha chorava... O DOUTOR (Rindo-se.) - Só eu é que não choro, porque já não tenho lágrimas... VIRGÍNIA - Hoje, logo ao amanhecer, o primo Bernardino foi ter comigo... O DOUTOR - E disse-te... VIRGÍNIA - E disse-me:- Minha adorada noiva, já podes sair à rua; estás pronta para outra! Pega essa criança e vai levá-la ao pai. Há um bom pretexto para entrares no paço e falares ao Escorrega: o concurso para o lugar de ama-de-leite do príncipe ou princesa que está para nascer. O DOUTOR - Dá-me! dá-me essa criança!... VIRGÍNIA (Vai buscar a criança.) - Aqui a tens. (Vai entregá-la, como que se arrepende e abraça a filha.) Romanza I Que vás, ó penhor querido, A sorte o quer, cruel, fatal! Vai, que me deixas partido O coração meu maternal... Adeus, amores meus, Talvez para sempre adeus... Adeus!... II Crescendo, tu não afagues Desejos bons de ver-me, oh! não! Por tu mãe não indagues, Pois quem fui eu, não te dirão... Adeus, amores meus, Talvez pra sempre adeus... Adeus!... (Entrega a criança ao Doutor que a examina.) O DOUTOR - Uma menina!... Oh! céus! que felicidade!... Virgínia, Virgínia!... Deixe beijar-te os pés! (Ajoelha-se aos pés de Virgínia.) CENA VIII O DOUTOR, VIRGÍNIA, EL-REI Terceto EL-REI (Aparecendo à porta dos aposentos da rainha.) - Bravo, Doutor! Gostei! O DOUTOR (À parte.) - Ora bolas, El-rei!... (Ergue-se e deita a criancinha no sofá.) VIRGÍNIA (À parte.) - El-rei!... O DOUTOR - Vossa Majestade, malícia não deite Em ver-me ajoelhado desta moça aos pés: Ia examinar-lhe... EL-REI - O quê? VIRGÍNIA - O quê O DOUTOR - O leite... VIRGÍNIA (À parte.) - Que diz ele? EL-REI - Serve? O DOUTOR - É a melhor das dez. EL-REI (A Virgínia.) - Já que ser a ama da pequena vai,

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Escute o programa Que lhe traça o pai: Três vezes são quantas De dia dará de mamar, E à noite são tantas Quantas a pequena chorar. Ao ter a pequena Quatro meses já, Papas de maisena Preparar-lhe-á. O DOUTOR - Papa de araruta Não lhe fará mal, Sendo bem enxuta, Tendo pouco sal. EL-REI (À parte, depois e olhar muito para Virgínia.) - Que mulher tão galantinha! Ai, como olha para mim! Quem me dera que a rainha Tivesse uns olhos assim! Juntos EL-REI - Que mulher tão galantinha! Ai, como olha para mim! Quem me dera que a rainha Tivesse uns olhos assim! VIRGÍNIA - Oh! que cara de fuinha! Como ele olha para mim! Saberei, por vida minha, Tudo, tintim por tintim. O DOUTOR (À parte.) - Esta pobre criancinha Que dorme neste coxim, Veio salvar a vida minha, Teve compaixão de mim! EL-REI (Ao Doutor.) - As outras amas já não são Precisas, não! Manda-as embora, Sem mais demora! VIRGÍNIA (Protestando.) - Então? Então? O DOUTOR (Baixo.) - Amor, sossega: De ti depende a salvação Do pai da filha do Escorrega! EL-REI - Então, Doutor? O DOUTOR - Lá vou, senhor! (À porta da esquerda baixa.) Sem mais demora, Vinde para fora! Sai Daí!... EL-REI - Vão já se embora, Tumultuárias, Que necessárias Não são aqui!

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CENA IX O DOUTOR, VIRGÍNIA, EL-REI, as amas-de-leite (As amas saem a correr uma atrás da outra, passando por entre os três personagens que se acham em cena, e vão alinhar-se ao fundo.) AS AMAS -Há muito mais tempo podiam ter dito: A gente escusava de estar a esperar! Juntos AS AMAS -Há muito mais tempo podiam ter dito: A gente escusava de estar a esperar! VIRGÍNIA - Que caso esquisito! Que caso inaudito! Ao príncipe novo vou dar de mamar! O DOUTOR e EL-REI - Meu Deus, quanta bulha! meus Deus! quanto grito! Tão alto, senhoras, não devem falar! EL-REI - Leva de rumor! Isto para quem doente Se sente, É maçador! VIRGÍNIA - Aqui anda algum mistério! EL-REI - O Doutor pálido está! O DOUTOR - El-rei parece-me sério! OS TRÊS - Hei de ver o que será!... (As amas-de-leite descem em linha, à boca de cena e cantam à meia voz.) AS AMAS - As amas-de-leite Ao príncipe novo não dão de mamar... Estavam preparadas com estes brinquedos... (Tira cada uma a sua gaita de sopro.) Que o príncipe novo devia estimar. (Cada uma tira um acorde da gaita, e saem todas.) CENA X O DOUTOR, VIRGÍNIA, EL-REI EL-REI - Como sabes, Doutor, não sou homem de ciência. Mas deixa dizer-te: Sua Majestade, a rainha, parece-me que vai dar-me um rapaz! O DOUTOR - Por quê, real Senhor? EL-REI - Aquele volume... O DOUTOR - Não quer dizer nada, senhor: o que pode acontecer é que Sua Majestade dê à luz uma pequena grande! EL-REI - Pequena grande! O DOUTOR - Vossa Majestade é um homem robusto... Sua Majestade, a rainha, é uma mulheraça... EL-REI - Mulheraça? O DOUTOR - A menina, quando de nascer, há de parecer que já tem para mais de um mês! EL-REI - Olha que a minha ameaça está de pé! Não revogo o decreto! Se nascer uma princesa serás comendador... O DOUTOR - Perdão, mas Vossa excelência havia me prometido um baronato. EL-REI - Vá pelo baronato. - E se for um príncipe, será queimado vivo. VIRGÍNIA - Ai! O DOUTOR - Vossa majestade havia dito que mandava enforcar. EL-REI - Bem, bem: não havemos de brigar por isso. Escolherás a morte. Que morte preferes?

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O DOUTOR - Prefiro morrer de velhice. EL-REI - Escolhe outra, não faça cerimônias. - A falar em cerimônias, é bom prevenir o mestre delas. Desejo que a augusta cara metade tenha o seu bom sucesso com todas as formalidades prescritas. Vou dar uma volta pelo jardim. Adeus, ó Doutor. (À Virgínia.) Até logo ó... Como te chamas? VIRGÍNIA - Virgínia, uma sua criada. EL-REI - Minha ama... quero dizer: de minha filha. Ai, gentes! (À parte.) Que olhos (Alto.) Adeus, Virgíninha! (Ao Doutor, que se inclina.) Levantar cabeça! (Desce a escada do fundo, cantarolando.) Tur, tu, tu, tu (Desaparece.) CENA XI VIRGÍNIA, O DOUTOR VIRGÍNIA - Vamos! ergue a ponta do véu... Tu sabes que a curiosidade sempre foi o meu fraco... Estás envolvido em alguma conspiração? E a minha filha, minha pobre filha, arriscada a ficar sem pai?! Olha que não é por ti, miserável; não é por ti que temo: é por ela, ouviste? É só por ela! O DOUTOR - Reveste-te de todo o sangue frio e escuta. VIRGÍNIA - Fala. O DOUTOR - Sou um miserável, dizes tu. Pois bem: não receias que esse miserável não possa dar uma boa educação à tua filha? VIRGÍNIA - Tanto receio, que só as exigência do primo Bernardino me obrigam a confiar-te em depósito sagrado. O DOUTOR (Tomando-lhe o pulso.) - E o que dirias tu... VIRGÍNIA - Olha que não tenho febre! O DOUTOR - Não! Tomo-te o pulso para fazer mais efeito... E o que dirias tu, se, em vez de ser a pobre rapariga, filha do acaso e da ocasião, ela se tornasse a moça mais prendada e a mais rica de toda a ilha dos Cajueiros? (Inflamando-se.) Crescesse coberta de ouro e prata, de sedas e veludos, rodeadas de inúmeros vassalos, a disputar entre si a honra de lhe beijar os pés?! VIRGÍNIA - Enlouqueceste! Fora mister que a minha filha houvesse nascido princesa! O DOUTOR - O nascimento não quer dizer nada, aqui estou eu, que não nasci doutor. VIRGÍNIA - Explica-te. O DOUTOR - Em duas palavras: como sabes, sua Majestade El-rei Caju é estúpido como uma porta... VIRGÍNIA - Como duas portas... O DOUTOR - Como três, e não falemos mais nisso. - Imaginou que a Medicina pudesse fazer com que a criança que está para vir pertencesse ... VIRGÍNIA - Já sei: ou é uma menina, ou morres... O DOUTOR - Morro, não: matam-me. - O meu plano é este: tu és a ama escolhida para amamentar o real pimpolho; eu sou o médico parteiro. Combinamos, e na ocasião do parto, trocamos as bolas! VIRGÍNIA - Que bolas? O DOUTOR - As crianças. VIRGÍNIA - Ah! O DOUTOR - Que te parece? VIRGÍNIA - Mas El-rei não tem que assistir ao parto? O DOUTOR - El-rei é míope: grau cinco; não vê nada sem luneta; farei com que a perca. VIRGÍNIA - Mas o primo Bernardino reclama-me. O DOUTOR - Logo que houver nascido o menino... VIRGÍNIA - Como sabes que é um menino? O DOUTOR (Gravemente.) - Eu sou médico, senhora. VIRGÍNIA - Bem sei. O DOUTOR - Logo que houver nascido, darás parte de doente e serás substituída... VIRGÍNIA - Mas...

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O DOUTOR - Tu vais casar-te; se nossa filha ficasse em meu poder, a sociedade obrigar-te-ia a esqueceres dela. Reflete bem: assim como assim, não seria melhor que a tua filha fosse antes a filha do Rei Caju? Em vez da pobre moça sem mãe, a poderosa Princesa dos Cajueiros?... VIRGÍNIA - Mas.. é um esbulho! O DOUTOR - Esbulho é enforcarem-me! VIRGÍNIA - O que se há de fazer do príncipe real? Quando digo o príncipe real, quero dizer: o que na realidade é príncipe. O DOUTOR - Queres ver? (Vai à grade do fundo e acena para o jardim.) VIRGÍNIA - O que fazes? O DOUTOR - Vais ver. CENA XII O DOUTOR, MARCOS, VIRGÍNIA MARCOS (Ao fundo.) - Cá estou. (Dirigindo-se ao Doutor.) Teresa ignora... (Cala-se, vendo Virgínia.) O DOUTOR - Podes falar... esta senhora não é demais. MARCOS - Teresa ignora de onde lhe veio o dinheiro... Eu disse-lhe que era produto de uma subscrição. O DOUTOR - Bem (Tirando um lápis e uma folha da carteiras.) Espera (Escreve. Música na orquestra.) "Teresa. Faze de conta que esse menino é o filho que perdeste; circunstâncias de força maior me obrigam a ocultar-lhe o nascimento. Dá-lhe o nome que quiseres: Paulo, Sancho ou Martinho. Mando-te uma bolsa: é para as primeiras despesas. Todos os meses ser-te-á remetida uma quantia com que possam, tu e teu filho adotivo, viver ao abrigo de toda e qualquer necessidade. Educa-o bem." (Declamando ) É quanto basta. (Escrevendo.) Misture e mande. (Riscando.) Ora esta! julguei que estivesse fazendo uma receita. (Ergue-se; cessa a música.) Toma este bilhete, ó Marcos. (Leva Marcos até a grade do fundo; desce alguns degraus da escada com ele e aponta para a direita.) Vai colocar-te junto à segunda janelinha azul que se vê daqui e espera. Tenho de entregar-te uma criança, que depositarás com este bilhete e esta bolsa na porta de Teresa. MARCOS - Um enjeitado! O DOUTOR - Cuidado! Trata-se de um grande segredo. O teu silêncio será largamente remunerado. MARCOS - É quanto manda? O DOUTOR - Todos os meses virás ter comigo; dar-te-ei uma quantia que farás chegar misteriosamente ás mãos de Teresa. MARCOS - Sim, senhor. O DOUTOR - De forma alguma deve ela saber a origem... MARCOS - Fique sossegado. (Querendo descer.) É quanto manda? O DOUTOR - É. (Marcos desce um degrau.) Ah! (Detém-se.) Sabes quem vem ali? (Aponta para baixo.) MARCOS - El-rei... O DOUTOR - Aproxima-te dele sem que te pressinta e arrebata-lhe a luneta! (Movimento de Marcos.) Não te assustes: sem luneta El-rei não vê coisa alguma: é míope: grau cinco. MARCOS - Nesse caso, é facílimo. (Desce um degrau e para, para perguntar.) Assegura-me que posso fazer tudo isto sem correr perigo? O DOUTOR (Que já tem voltado à cena.) - Asseguro. (À meia voz.) Trata-se de salvar a honra de uma donzela de honor. MARCOS - Bem, (À parte, referindo-se à Virgínia.) Deve ser aquela: tem cara de resguardo. (Desaparece,) CENA XIII

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O DOUTOR, VIRGÍNIA, a enfermeira ENFERMEIRA (Saindo dos aposentos da rainha.) - Senhor Doutor! Senhor Doutor! O DOUTOR - Já?! ENFERMEIRA - Já. O DOUTOR - Bem, Vá prevenir o mestre de cerimônias. Os seus serviços são desnecessários ali. (A enfermeira sai.) VIRGÍNIA - São horas? O DOUTOR - São. Vamos, entra. Vou apresentar-te à rainha; traze a menina... Vou pô-la à mão... (Virgínia pega a criança e entra para o quarto da rainha.) Decididamente sou um homem feliz! Sem arredar pé desta sala, arranjei tudo! (Acompanha Virgínia.) CENA XIV NHECO, cortesãos, damas do paço, depois O DOUTOR, depois EL-REI (Entram pela esquerda, segundo plano, precedidos por Nheco.) CORO - Cautos, cautos, E precautos, Vamos todos esperar Que a rainha, Coitadinha! Dê a luz a criancinha Que um dia há de governar. NHECO - Eu cá de cerimônias mestre da corte sou! Do São Fulgêncio ao São Silvestre Suado estou! Entra semestre e sai semestre. E eu sempre a pé! Mestre encontrar que não palestre Difícil é! Quando eu morrer, estátua eqüestre Terei, olé! O DOUTOR (Aparecendo) - Nheco, nesses aposentos A ninguém conceda ingresso! NHECO - Isso está já por momentos? O DOUTOR - Vai-se dar o bom sucesso... CORO - Bom sucesso! Vai-se dar o bom sucesso! NHECO - Já lá está de leite a ama? O DOUTOR - Já lá está! NHECO - Tudo que manda o programa? O DOUTOR - Lá está já! NHECO -E a madama? O DOUTOR - Que madama? NHECO - A parteira, meu amigo! O DOUTOR - Este seu criado é. NHECO - Isso agora é brincadeira! Doutor, quer mangar comigo?! O DOUTOR - Do riscado entendo, olé! CORO - Olaré! Olaré!

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Do riscado entende, olé? O DOUTOR - Onde está El-rei Caju? NHECO - É verdade: El-rei Caju? CORO - Onde está tu, El-rei Caju? EL-REI (Vindo do fundo, a tatear, sem luneta.) - Cá estou! cá estou! Por Belzebu! Estava eu lá - parece incrível! A passear pelo jardim, Quando uma sombra horrenda, horrível, Cai do ar por cima de mim! Era um fantasma Deste tamanho!... Oh! se te apanho, Faço-te assim... CORO - Era um fantasma É caso estranho, Que a todos pasma! EL-REI - Quero apanhá-lo, Vou segurá-lo, Mas o ratão Pisa-me um calo! Eis que resvalo... Bumba! no chão... Perco a luneta E o sangue-frio! Parece peta! Que corrupio! Caio aqui, caio acolá! Acho-me cego! Negro qual prego Tudo em meu redor está!... Era um fantasma Deste tamanho!... Oh! se te apanho, Faço-te assim... CORO - Era um fantasma É caso estranho, Que a todos pasma! O DOUTOR - Real senhor, não há um momento a perder! EL-REI - Quem vai ao meu quarto buscar outra luneta! (Sai um cortesão à direita, segundo plano.) O DOUTOR - Senhor, senhor! Vede o que prescreve a Constituição! EL-REI (Zangado.) - Ora! a Constituição! O DOUTOR - Venha, venha, real senhor! (Fá-lo entrar à força para os aposentos da rainha e entra também. Fecha a porta por dentro.) NHECO (Aos cortesãos.) - Que vida trabalhosa a minha! Hão de crer que, desde que estou ao real serviço de sua Majestade, ainda não tive tempo e tomar um banho! TODOS - Oh! NHECO - É o que lhes digo... Ainda agora ia descendo para o banheiro, quando a enfermeira veio prevenir-me... Vamos a isto. (O cortesão que tinha ido buscar a luneta do quarto do Rei, volta com ela.)

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CENA XV NHECO, fidalgos, fidalgas, os ministros, depois os conselheiros de estado, depois a bailadeira da paço, depois EL-REI Final NHECO - Agora é já, sem mais tardar, A porta selar. (Um pajem tem trazido lacre, luzes e carimbos em uma bandeja de ouro. Dois cortesãos lacram e selam as portas do aposento da rainha.) NHECO - Agora é já, sem mais tardar, Lacrar, selar Selar, lacrar!... Nesta sala esperar deve Segundo a Constituição Prescreve, Todo o Conselho de Estado, E o ministério - pois não! Fardado. CORO - Eis o Conselho de Estado Respeitável, respeitado! (Entrada de meia dúzia de conselheiros muito velhos, a dançar de mãos dadas uns aos outros.) Tur lu tu tu, Tur lu tu tu! Tem bom Conselho El-rei Caju! Eis que chega o ministério, Muito sério, muito sério... (Entrada de meia dúzia de ministros com suas respectivas pastas, a marchar uns atrás do outros.) Tur lu tu tu Tur lu tu tu!... Ministros são d'El-rei Caju!... CORO - Cautos, cautos, E precautos, Vamos todos esperar Que a rainha, Coitadinha! Dê a luz a criancinha Que um dia há de governar. NHECO - Agora exijo Que dance um passo Em sinal de regozijo A bailadeira do paço! (Entra uma bailadeira.) Passo de dança. (Findo o passo de dança, abre-se violentamente a porta lacrada, e entre El-rei Caju, trazendo nos braços uma criança, envolvida num rico manto bordado a ouro.) EL-REI - A luneta! a luneta! Quero ver a principeta!... (Colocam-lhe a luneta no nariz.) Que linda está! CORO - Que linda está A CRIANÇA (Chorando.) - Ah! Ah! Ah!... EL-REI - Que linda é!

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CORO - Que linda é! A CRIANÇA - Eh! Eh! eh! eh! EL-REI - Mais nunca vi! CORO - Mais nunca vi! A CRIANÇA - Ih! ih! ih! ih! EL-REI - Linda ela só! CORO - Linda ela só! A CRIANÇA - Oh! oh! oh! oh! EL-REI - Que linda és tu! TODOS (Imitando a criança.) - Uh! uh! uh! uh! EL-REI - Nheco, vê que já se ri... Dez minutos tem de idade! NHECO - Não admira, Pois é filho de Vossa Majestade! (Espalha-se pela sala dos espectadores um cheiro de alfazema) EL-REI - Que cheiro de alfazema! NHECO - Oh! que cheiro de alfazema! TODOS (Aspirando.) - Um! um! um! um! Que boníssimo sistema O de queimar alfazema, Se ao mundo vem Gentil nenen!... EL-REI - Estou louco de amor E de prazer possesso! Nomeio o meu Doutor, Barão do Bom Sucesso!... (À boca de cena) Tur lu tu tu, tur lu tu tu! 'Stá satisfeito El-rei Caju! TODOS - Tur lu tu tu! 'Stá satisfeito El-rei Caju! [Cai o pano] ATO PRIMEIRO Praia. Ao fundo, o mar. À esquerda, uma cabana. À direita uma grande árvore, cujas ramagens, prolongando-se, formam as bambolinas. CENA I MARCOS, pescadores, depois criadas. (Ao erguer-se o pano, a cena está vazia.) INTRODUÇÃO CORO (Ao longe.) - Do mar ao remanso Lá vou, Que a vez do descanso Chegou! (Chegam à praia duas canoas tripuladas por Marcos e pescadores, que saltam para terra, trazendo cestos de peixe.) CORO - Que viver folgado,

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Pesar de arriscado, Viver a pescar! Não há quem se queixe De haver pouco peixe No fundo do mar. MARCOS - Tocai as buzinas, E venham, meninas, O peixe comprar! (Toque de buzina pelos pescadores.) TODOS - Ao som das buzinas Vão vir meninas O peixe comprar! (Entra um grupo de criadas, munidas de cabazes.) CRIADAS - A noite começa, Começa a cair, Por isso, depressa Nos devem servir. PESCADORES - A noite começa, Começa a cair, Por isso, é depressa Que as vamos servir. (Durante este coro as criadas enchem os seus cabazes de peixe que compram e pagam aos pescadores.) AS CRIADAS - Adeus! Adeus! MARCOS - Um momento! Que minha voz vou soar ao vento! Barcarola I - Minha barquinha ligeira, Feiticeira, Leva-me longe daqui! Singra esse mar docemente, Suavemente... Eu todo me entrego a ti! Ai, ló, lé! Ai, ló, lé! Ao largo, que enche a maré! TODOS - Ai, ló, lé! Ai, ló, lé! Ao largo, que enche a maré! MARCOS - A lua triste e formosa Surge airosa, Surge airosa lá nos céus! E a brisa que ajuda o leme Chora e geme Passando nos mastaréus Ai, ló, lé! Ai, ló, lé! Ao largo, que enche a maré! (Às criadas.) - Estou satisfeito. Podem ir embora. AS CRIADAS - Adeus, adeus! (Saem por diversos lados, como entraram.) MARCOS - Bem. Desta vez os cestos ficaram vazios. - Rapazes, a noite parece que é boa... Vão tratar da vida, que a morte é certa.

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OS PESCADORES - Até amanhã, Marcos! (Entram para as canoas.) MARCOS - Até amanhã. CORO DE PESCADORES - Do mar ao remanso Lá vou Que a vez do descanso Chegou! (As canoas afastam-se e as vozes perdem-se ao longe.) CENA II MARCOS, só [MARCOS] - A ocasião é excelente. A tia Teresa esta sozinha em casa e Paulo erra nos mares, a pescar sardinhas e a entoar barcarolas. Vamos lá deixar a mesada. (Tirando uma bolsa e vai deitá-la por baixo da porta de Teresa.) Pronto! E dizer que faço isso há vinte anos! Toca a safar! (Vai saindo. Teresa abre sua porta.) CENA III MARCOS, TERESA TERESA (Vendo-o.) - Adeus, ó Marcos! (Dando com a bolsa.) Ah! cá está... cá está... MARCOS (Voltando.) - Olá Tia Teresa!... (À parte.) Se me viu... TERESA - Que novas me dá de Paulo? Viste-o por aí? MARCOS - Vi-o a pescar. TERESA - Sai de casa pela madrugada... vai cair a noite, e nem sinal! É incorrigível! Só a minha paciência! MARCOS (Que tem deitado fumo no cachimbo.) - Na verdade, dão muito que falar os modos misteriosos de seu filho. TERESA - Meu filho... Antes o fosse! MARCOS - Mas é como se o fosse: vive em sua companhia desde a tenra idade. TERESA - Quando veio para minha companhia, há vinte anos, poderia ter poucas horas de nascido. Foi uma época terrível para mim... Meu marido e meu único filho haviam morrido... e eu estava reduzida à mais negra miséria... MARCOS - Mas Paulo foi seu anjo bom; não é assim? TERESA - Dizes bem: foi o meu bom anjo. Enjeitaram-no à minha porta, é verdade; mas, ao mesmo passo que me sobrecarregavam com a pensão de educá-lo, substituíram meu filho e garantiram-me a subsistência honrada. MARCOS (À parte.) - A quem ela o diz... TERESA - Entre os panos que o envolveram, achei uma bolsa recheada e uma carta que assim dizia: (Recita a carta escrita pelo Doutor no Prólogo. A mesma música na orquestra.) MARCOS - E a tia Teresa, justiça se lhe faça, cumpriu religiosamente a misteriosa incumbência. TERESA - Cumpri. Dei ao menino o nome de Paulo, que, dos três apóstolos, foi o que melhor me pareceu. Recebeu uma educação de príncipe. MARCOS - De príncipe? TERESA - Isto é um modo de falar. MARCOS - E todos os meses é infalível o dinheiro? TERESA (Mostrando-lhe a bolsa.) - Vês? Agora mesmo acabo de encontrar, metida por baixo da porta, a mesada correspondente ao mês que hoje principiou. Graças a esse dinheiro a nossa existência tem sido descansada e feliz. O que me dá a pensar é a negação absoluta que Paulo, desde os mais verdes anos, revelou pelo trabalho. Quando soube do mistério em que se acha envolvido o seu nascimento, e da mesada certa que eu percebia, disse: - Bem! esse dinheiro chega-nos: não é preciso trabalhar.

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MARCOS - Nasceu para fidalgo... TERESA - Nasceu fidalgo, deves dizer. O seu prazer é andar pelos bosques ou pelo mar: quem lhe tirar a caça ou a pesca, tira-lhe tudo. MARCOS - E, segundo me consta, é outro esquisitão a respeito de mulheres... TERESA - Não fazes idéia, Marcos! Nunca ninguém lhe conheceu namorada! A Petronilha...sabes? MARCOS - Sei, tia Teresa... TERESA - Pois bem: a Petronilha gosta dele... Estou mesmo convencida que o ama deveras... e...não há meio! MARCOS - Deixe lá, tia Teresa. Paulo não é nenhum santo; aquilo é que as faz pela calada. - Olhe, se não me engano, é ele que ali passa ao largo. TERESA - É ele... é... MARCOS - Deixa-se levar pela correnteza... (Paulo passa pelo fundo, sentado à proa de uma canoa, que desliza suavemente nas águas, e canta o seguinte.) Barcarola [PAULO] - O mar que ruge raivoso Medo nunca me causou! As minhas velas às brisas! Às brisas soltar vou. Meu Deus, como se parecem, Quando a noite é de luar, Os pirilampos da terra Co'as ardentias do mar. (Desaparece no lado oposto.) MARCOS - Bom. Vai longo o palanfrório. Adeus, tia Teresa. TERESA - Vou contigo. Tenho que dar uma voltas. Deixa-me dar uma à chave. MARCOS - Uma! o quê? TERESA - Uma volta. (Tira a chave e mete-a por baixo da porta.) Cá fica por baixo da porta. Paulo já sabe onde a deve encontrar. MARCOS - Vamos, tia Teresa. (Saem.) CENA IV PETRONILHA, só (Entra arrebatadamente pelo lado oposto àquele por onde saíram Marcos e Teresa.) Coplas I [PETRONILHA] - Eu sou Petronilha, Moça original. Que não tem rival Em toda esta ilha; Ninguém pelos campos Me apanha a saltar; E lá recuar Nem chuva, relampos Coriscos E riscos Que sempre formigam, Me obrigam! - Eu sou Petronilha, Moça original. Que não tem rival Em toda esta ilha;

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II - Como eu quem maneja Qualquer varapau? De faca e calhau Não sei quem mais seja! 'Stou doida de amores: Meu fraco aqui está; Mas olhem que lá Cabelos e flores, E cousas, E lousas Que as outras empregam, Não pegam! - Eu sou Petronilha, Moça original. Que não tem rival Em toda esta ilha; - Paulo já deve estar de volta. (Batendo à porta.) Paulo! Paulo! Dar-se-á caso que não voltasse ainda?... (Bate.) A tia Teresa, essa não está que a vi ir daquele lado em companhia de Marcos. (Batendo.) Paulo! Paulo! Aposto que não quer abrir, porque já me reconheceu a voz! E não é outra coisa! Pirracento! (Bate.) Qual! (Desce à cena.) E dizer que me entrou este amor, no coração como uma praga! Amo-o, adoro-o, e ele despreza-me, como se eu não fosse digna de seus cuidados! - Ah! mas agora resolvi mudar de tática, e exigir o seu amor, como os salteadores exigem a bolsa ou a vida dos viandantes na estrada. A mulher está no seu direito, deixando de corresponder a este ou àquele afeto, mas o homem... Faça-me o favor! Nada! há de ir por aqui, se por aqui o mandarmos. Era o que faltava: estar eu agora à mercê dos caprichos do Senhor Paulo! Ou ele ama-me, ou deito-me a perder! (Vai bater à porta.) Paulo! Paulo! Abre, ou deito ombros à porta! Ah! não ouves? não queres abrir? Lá vai! (Tenta arrombar a porta. Durante a última parte deste monólogo, Paulo tem entrado pelo fundo e observado.) CENA V PETRONILHA, PAULO PAULO (Do fundo.) - Ó mulher, não me escangalhes a porta! PETRONILHA (Puxando-o pelo braço, à boca de cena.) - Há duas horas que estou a bater! PAULO - E que culpa tenho eu disso? PETRONILHA - Não podias ter dito que não estavas em casa? PAULO - Vamos saber: o que deseja a senhora? Se ainda vem oferecer o seu amor, o melhor é calar-se, porque a esse respeito, resolvi pôr em prática o adágio: orelhas moucas a palavras ocas! PETRONILHA - Sim, senhor: trata-se de amor, mas note bem: não lho venho oferecer: venho impor-lho; entende? Arrebatá-lo, arrancá-lo à força desse coração de pedra. PAULO - Ora ouve, e deixa-te e desatinos! PETRONILHA - Vamos lá! Coplas I PAULO - Mal empregas esse afeto: Vê se o empregas melhor; Vai procurar outro objeto Para o teu férvido amor. Se te causo algum desgosto, Bem mereço o teu perdão, Pois amor não é imposto,

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Lançado no coração PETRONILHA - Se eu fosse de faniquitos, Tremiliques, tremilaques, Dava agora quatro gritos, Tinha agora três ataques!... II PAULO - A correnteza de um rio Se alguma pedra topar, Há de tomar um desvio, Há de outro rumo tomar; Faze tu como o regato, Essa pedra, ei-la aqui está... Tão bom conselho e sensato Ninguém te deu nem te dá. PETRONILHA - Se eu fosse de faniquitos, Tremiliques, tremilaques, Dava agora quatro gritos, Tinha agora três ataques!... PAULO - Que queres que eu te faça? Reconheço que és uma excelente rapariga, que nada deixa a desejar: bonita, virtuosa, trabalhadeira... PETRONILHA - E apatacada. PAULO - Isso é o menos; mas enfim... és uma mulher como se quer. Feliz do homem que se fizer teu marido! PETRONILHA - Então? O que mais queres tu? Amo-te, porque te distingui de todos os pintalegretes da ilha, e tu desprezas tão generoso afeto! PAULO - O meu coração não foi feito para o amor. Adeus, minha amiga, não me queiras mal; ofereço-te uma amizade de irmão, como nos romances. Aceitas? Se aceitas, muito bem; se não, viva! PETRONILHA - Nada! não quero assim! Desejo que me ames para casar. PAULO - Isto é o que se chama a faca aos peitos! PETRONILHA - Vamos: faze-me a vontade. PAULO - Não está em minhas mãos. PETRONILHA - Mas está em teu coração; procura bem, que acharás. PAULO - Não tenho coração. PETRONILHA - Anda, dá cá um beijo, e eu te mostro se tens ou não tens coração... PAULO - Estás doida! Eu dou lá beijos no meio da rua! (A cena vai ficando escura pouco a pouco.) PETRONILHA - Então entremos... Onde está a chave? PAULO - Tu enlouqueceste, mulher! PETRONILHA - Vai, pedaço d'asno! A culpada sou eu, que me não devia apaixonar por um enjeitado! PAULO - Se sou o enjeitado da família, tu és a enjeitada do amor. Ela por ela! PETRONILHA - Olha que te esmurro! PAULO - Pois esmurra! (Procurando a chave.) Nem assim conseguirás que eu te ame! (Abre a porta, entra e fecha-se.) PETRONILHA - Paulo! Paulo! PAULO - Adeus! Adeus!

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CENA VI PETRONILHA, só [PETRONILHA] - Aqui anda coisa... Quem não come é porque já comeu, dizia meu avô. Mas digo eu: quem não come está para comer. deixa estar, que não te perco de vista. (Olhando para dentro.) Quem vem ali?! Uma mulher com o rosto inteiramente encoberto por um véu! Quem sabe se... Escondendo-se atrás da árvore.) Observemos. CENA VII PETRONILHA, escondida, a PRINCESA, ao fundo, PAULO, que sai da cabana cautelosamente. PAULO - São horas de chegar a minha misteriosa amante. Custei a ver-me livre daquela maldita Petronilha! PETRONILHA (À parte.) - Obrigada. PAULO (Vendo a Princesa.) - Ah! Era tempo! Ei-la! (Corre para a Princesa, e trá-la à boca de cena.) PETRONILHA (À parte.) - Então? Sempre há palpites... Dueto PRINCESA - Paulo PAULO - Meu anjo! PRINCESA - Aqui me tens! a tremer venho... PAULO - A tremer vens... PRINCESA - Será saudade ou ciúme O abalo que sinto aqui? A pobre rolinha implume, Ao verde ninho arrancada, Não fica tão magoada Como eu, se longe de ti! PAULO - Será ciúme ou saudade A causa desta emoção? Tristeza cruel me invade, Pungente dor me quebranta, Se tardas, ó minha santa, Se tardas, meu coração! JUNTOS - Ó meu } } amante, - Ó minha } Caro penhor, Que doce instante Do nosso amor! Amo-te muito: Ama-me assim! Amo-te muito, Meu querubim! PAULO - Mas quero enfim saber quem és, ó doce amada! PETRONILHA (À parte.) - Ah! se ela o diz, estou vingada! PRINCESA - Saber não desejes, Meu Paulo, quem sou! PAULO - Amor, não gracejes, Que sôfrego estou... PRINCESA - Saber tu não deves

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Quem sou, donde vim. PAULO - Por que não te atreves A dizer-mo a mim? PRINCESA - Segredos eu tenho... PAULO - Convenho, convenho; Mas diz-mos! PETRONILHA (À parte.) - Enfim! PRINCESA (Com mistério.) - Eu a Princesa sou dos Cajueiros! PAULO - A princesa!... Tu?! PETRONILHA (À parte.) - Tur lu tu tu Tur lu tu tu A filha! ó céus! d'El-rei Caju!... (Saindo, com gestos ameaçadores.) Vou me vingar destes brejeiros! PAULO - És a princesa! PRINCESA - E no entanto, Amo-te tanto, amo-te tanto... JUNTOS - Ó meu } } amante, - Ó minha } Caro penhor, Que doce instante Do nosso amor! Amo-te muito: Ama-me assim! Amo-te muito, Meu querubim! CENA VIII PAULO, PRINCESA PAULO - Mas tu... Vossa Alteza... PRINCESA - Qual Vossa Alteza! Trata-me por tu... Ora aí está! Por essas e outras e que eu queria guardar o incógnito. PAULO - Princesa! Filha do Rei! É impossível então que nos unamos! Nada pode haver de comum ente nós, senão o esquecimento mútuo. PRINCESA - Por quê? PAULO - Sou um pobre enjeitado... PRINCESA - Que importa! Fugiremos! PAULO - Fugir! pois há de Vossa Alteza... PRINCESA - Trata-me por tu, sim? PAULO - Desprezarás as honras que te cercam, o cetro de ouro que te aguarda, para seguir um miserável, sem passado, sem presente e sem futuro?! PRINCESA - Deixa dizer-te, e acredita: o viver da corte me enfastia, faz-me mal aos nervos. Depois que morreu minha mãe, e já lá vão tantos anos, apoderou-se de mim um desapego tal pela corte... O que deu motivo a tanto azedume? Não sei... Não sei... O que é certo é que não me sinto Princesa... Os meus instintos são todos burgueses e triviais. Quisera viver tranqüila, ao lado de uma maridinho como tu... a pontear meias, marcar lenços... PAULO - Eu, o inverso, senhora! Por isso mesmo que nasci sem pai nem mãe; por isso mesmo que sou o ínfimo dos homens, sinto-me talhado para as regiões supremas do poder! Ah! que se eu pudesse mandar cortar uma cabeça... ou duas... ou todas, como Caligula! Por ser o menor, desejava

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tornar-me o maior... Para quê? Para vingar-me talvez! Para ter ocasião de desprezar os que me desprezam! PRINCESA - Admiras-te de me ver aqui! O amor tinha para mim irresistível encanto. Eu não o conhecera nunca, mas adivinhava-o. PAULO - Não o conhecias? PRINCESA - Não ligava o nome... Quem se atreve na corte a levantar os olhos para a infanta? O amor é-lhe interdito. Um dia, mandam o meu retrato a um príncipe de outro reino, e dizem-lhe, ao príncipe: - Aí vai a amostra, vêde se vos agrada. Se assim for, mandai buscá-la. É sacrificando as princesas que se apertam os laços entre as nações. Não nos casamos por amor: casamo-nos por diplomacia. Ah! política! política! PAULO - Meu anjo! PRINCESA - Anteontem, descobri no meu aposento uma porta secreta que dá para o jardim. Descobri no jardim outra porta secreta que dá para a rua. É hoje! disse eu comigo. E saí! Vi-te, e amei-te. Daí é que principiei a ligar o nome... PAULO - Mas... se dão pela tua ausência? PRINCESA - Não dão. Tenho por costume fechar-me por dentro. O único que poderia interromper minha solidão é meu pai; mas esse anda todo entretido com a Duquesa da Guarda Velha! PAULO - A Duquesa da Guarda Velha? PRINCESA - Uma fidalga estrangeira, que foi há dias apresentada à corte... Uma excelente senhora. Ama-me como se me conhecesse de velha data. Diz-se no paço que meu pai casa com ela. É uma felicidade! Eu não escolheria outra madrasta. (Música. Aparece no mar uma suntuosa gôndola, distinguem-se a Duquesa da Guarda Velha e o Barão do Bonsucesso.) Oh! É ela!... PAULO - Ela quem? PRINCESA - A Duquesa da Guarda Velha! O que virá fazer aqui? Ai! O barão vem com ela! Não há mais tempo! Viram-me! Estou perdida! Condenam-me à morte! PAULO - Cala-te. (Leva-a para a cabana.) PRINCESA - Ah! (Entram ambos na cabana.) CENA IX BARÃO, DUQUESA, gondoleiros e damas de companhia. Noite completa. Luar. Canto CORO GERAL - Dá Guarda Velha eis a Duquesa! Cá 'stá! Cá 'stá! Melhor senhora com certeza Não há! Não há! BARÃO (Saindo da gôndola e oferecendo a mão à Duquesa para sair também.) - Eis-vos, enfim, chegada À praia desejada. (À parte.) Não sei por quê, Nem para quê. DUQUESA - Muito obrigada. BARÃO - Não há de quê. DUQUESA (A uma dama.) - Manda embora os gondoleiros: Volto a pé. TODOS - Volta a pé! AS DAMAS - Ide embora, gondoleiros, Ide ligeiros, Que a Duquesa volta a pé! Um de seus caprichos é. GONDOLEIROS - Dá Guarda Velha eis a Duquesa! Cá 'stá! Cá 'stá!

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Melhor senhora com certeza Não há! Não há! (As gôndolas desaparecem com os gondoleiros, e as damas ficam ao fundo.) Coplas I DUQUESA - Não me foi a sorte avara, Eu não me devo queixa. BARÃO (Sempre à parte.) - Não me é estranha aquela cara, Mas não me posso lembrar. DUQUESA - A ventura bem se esconde; Mas, no entanto, a descobri. BARÃO - Não sei quando, nem onde Aqueles olhos já vi. AS DAMAS - Com é bela esta paragem! Fresca aragem Corre aqui! II DUQUESA - Da pobreza que vitória! Pois Duquesa hoje sou! BARÃO - Dou mil tratos à memória, E contudo, em branco estou... DUQUESA - 'Spero em breve ser rainha, Pois El-rei morre por mim! BARÃO - Ai, que cabeça esta minha! Nunca vi cabeça assim! AS DAMAS (Descendo à cena.) - Que lugar! que formosura! Que frescura! Que jardim! DUQUESA (Às damas.) - Afastai-vos! Ide admirar os prodígios desta natureza privilegiada. Preciso conversar a sós com sua Senhoria, o Senhor Barão do Bonsucesso. (À parte.) A casinha deve ser esta. (As damas afastam-se para o fundo, onde se dividem em grupos.) Repetição AS DAMAS (Descendo à cena.) - Que lugar! que formosura! Que frescura! Que jardim! DUQUESA - Afinal! Chegou enfim o momento! (Dirigindo-se ao Barão e fitando-o.) Olhe bem para mim! Não me conheces? BARÃO - Duquesa! DUQUESA - Desconhece-me! Não assombra! Há vinte anos que não nos vemos... as fisionomias transformam-se... BARÃO - Ah! Virgínia!! DUQUESA - Mas ouve: eu reconheci-te à primeira vista. Assim deveria ser: conservava de ti a mais dolorosa impressão. Era impossível que se me varressem da memória estes olhos, que me mentiram... esses lábios, que me mentiram... esse nariz... BARÃO - Nada! o nariz é que não te mentiu... E folgo de ver que ainda não deste de mão ao teu romantismo. DUQUESA (Em outro tom.) - Dê-me Excelência, Barão. BARÃO - Dê-me Senhoria, Duquesa... e expliquem-nos. Desde que Vossa Excelência chegou, que tenho buscado a adivinhar em suas feições a fisionomia de outra pessoa. Vossa Excelência é a Virgínia,

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minha pobre Virgínia, emendada e consideravelmente aumentada. Vossa Excelência dignar-se-á, se tanto mereço, explicar-me o modo pelo qual se operou tão estranha metamorfose. DUQUESA - Muito simplesmente, Barão: Vossa Senhoria lembra-se de que, logo depois de casada com primo Bernardino, fomos, eu e ele, a correr o mundo? Depois de andarmos por seca e meca, resolvemos firmar a nossa residência na Ilha da Guarda Velha. BARÃO - O quê? Pois foram a seca e meca e não deram um pulo até a olivais de Santarém, que é tão perto?... DUQUESA - Oito anos depois, meu marido morreu, deixando-me uma avultada riqueza. Dois anos depois da morte do meu marido, comecei a ser requestada pelo fidalgo mais poderoso da ilha, o Duque da Guarda Velha, senhor feudal em dez léguas de terreno e homem de senso prático. Casei com o Duque da Guarda Velha. Seis anos depois, enviuvei pela segunda vez. Há quatro anos que me sucedeu esta catástrofe. BARÃO - Vejam de que escapei! Se me tivesse casado com Vossa Senhoria, estava a estas horas no outro mundo! DUQUESA - Deixei passar no feudo a minha lua de mel.... BARÃO - Outra? DUQUESA - A lua de mel da viuvez. E aqui estou. Vamos ajustar contas, Senhor Barão: Vossa Senhoria sabe onde quero bater? BARÃO - Perfeitamente. Vossa Excelência quer bater àquela porta... Agora percebo por que a Duquesa me pediu que a acompanhasse a este sítio... DUQUESA - Ainda bem que o percebe. Sem querer, fui informada que é ali que vive aquele cujos direitos extorquimos por amor da cabeça de Vossa Senhoria e por amor de minha filha. BARÃO - Da nossa filha, Duquesa. DUQUESA - De nossa filha, Barão. - Pedi então a Vossa Senhoria que me acompanhasse a esta praia, para, de viva voz e em sua presença, informar-me se foram cumpridas as suas obrigações. Se assim não sucedeu, trema: Vossa Senhoria não deve ignorar que foi hoje tratado o meu casamento com El-rei Caju. BARÃO - Não, Senhora Duquesa, e esse casamento é uma grande honra para mim... porque, enfim, eu... mas lembre-se Vossa Excelência de que mesmo porque eu... in illi tempore... compreende? não pode lançar-me no abismo, sem ser arrastada na queda pelo meu corpo... DUQUESA - Enfim, viveremos como anjos, se o Barão cumpriu o que prometeu há vinte anos. Serei feliz ao lado da minha filha... BARÃO - De nossa filha, Barão. - Hei de habituá-la a dar-me o tratamento de mãe. DUQUESA - Eu é que não posso obrigá-la a chamar-me de pai... e no entanto, amo-a... DUQUESA - Sei que a ama, e agradeço-lhe... Mas... vamos... BARÃO - Não é preciso: aí vem a mulher a cujos cuidados está entregue o príncipe. Ela nos dirá... DUQUESA - Silêncio... CENA X Os mesmos, TERESA, que vai atravessando a cena para entrar em casa, depois EL-REI BARÃO (Embargando-lhe a passagem.) - Senhora Teresa... TERESA - Quem é? BARÃO - Um momento de atenção. Conhece-nos? TERESA - Ah! o médico do paço! BARÃO - Então já vê que não somos para aí quaisquer notívagos. - Esta senhora deseja tomar certas informações... TERESA - Estou às suas ordens, minha senhora. Não quer entrar? DUQUESA - Por ora não. Diga-me cá... (Toma-a de parte, e fala-lhe baixo. El-rei entra, embuçado dos pés à cabeça, sem ser pressentido pela Duquesa, e bate levemente no ombro do Barão.) BARÃO - El-rei! EL-REI - O que vieste fazer aqui em companhia da Duquesa?

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BARÃO - Sua Excelência quis admirar esta praia... Faz um luar esplêndido... Pediu-me que a acompanhasse... EL-REI - É singular! No momento em que firmamos nosso contrato de matrimônio, abandona-me, para vir admirar uma praia! Ah! Barão! quem me viu e quem me vê! Quem diria que aquele El-rei Caju, o enérgico, havia de tornar-se um babão por esta mulher! Julguei que não devia contrair segundas núpcias; mas o amor, Barão, o amor... Coplas I - Para ser livre, tinha resolvido Não mais casar-me. Que dirás, ó povo? Mas, ai! de amores, ó Barão, perdido, Caio na asneira de casar de novo. O amor de nós dá cabo! É o diabo! AMBOS - É o diabo! II EL-REI - A ninguém poupa de Cupido a seta; Ninguém se isenta de ser alvo dela: Se o mais altivo coração espeta, O mais altivo coração debela! O amor de nós dá cabo! É o diabo! AMBOS - É o diabo! EL-REI - E sabes o que aqui me trouxe. Barão? O ciúme... Ora aqui tens tu: teu rei tem ciúmes! - Quem é aquela mulher com quem conversa a Duquesa? BARÃO - Uma pobre criatura... A duquesa, sempre que lhe apresenta ensejo, da expansão ao sentimento da caridade, que é o apanágio de seu boníssimo caráter. EL-REI - Ah! DUQUESA - Muito bem. Aprecio suas virtudes, e hei de premiá-las. (Voltando-se.) Estou satisfeita, Barão. (Vendo o Rei.) Quem é? EL-REI (Desembuçando-se.) - Eu, Duquesa! TERESA (À parte.) - El-rei! Que quer isto dizer?! (Entra em casa.) DUQUESA (Perturbada.) - Vossa Majestade! Que agradável surpresa! EL-REI - Por que não me ordenou que a acompanhasse? DUQUESA - Oh! senhor... não me atrevia... EL-REI - Nada de cerimônias... Não sei estar um instante longe da Duquesa... Estou caído, estou derreado... Oh! como a amo! BARÃO (Que tem olhado para os bastidores.) - O que é aquilo? Um grupo. EL-REI - Vamos para ali. Não convém que nos reconheçam. (Reúnem-se os três às damas, que se conservaram ao fundo.)I CENA XI Os mesmos, os MINISTROS, NHECO, PETRONILHA (Os Ministros e Nheco trazem cada um a sua lanterna furta fogo na mão. Petronilha condu-los.) Final PETRONILHA - Já cá não estão! (Apontando para a cabana.) Entrem; ali os acharão! NHECO - Isto parece estranho! Há já vinte anos que não tomo banho! PETRONILHA - Não há tempo a perder!

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Os melros podem as asas bater! (Dirigem-se todos com muito mistério para a cabana.) NHECO - Vamos lá! vamos lá! NHECO e MINISTROS - Cautela! Cautela! Baixai a voz! Que a bela, Que a bela, Não dê por nós.. OS OUTROS - O que quer dizer aquilo? Que quer aquilo dizer? BARÃO - Eu não estou nada tranqüilo! DUQUESA - 'Stou a tremer! DAMAS - 'Stou a tremer! NHECO (Batendo à porta.) - Em nome d'El-rei Caju! EL-REI - D'El-rei Caju! TODOS - Em nome d'El-rei Caju!... (Abre-se a porta e entram na cabana Petronilha, Nheco e o Ministros, repetindo o coro - Cautela! Cautela! Baixai a voz! Que a bela, Que a bela, Não dê por nós.. CENA XIII EL-REI, BARÃO, DUQUESA, damas, cortesãos, depois NHECO, PETRONILHA. PAULO, PRINCESA, MINISTROS CORO DE CORTESÃOS (Entrando em confusão.) - Será possível! Não pode ser Que suceder Possa este fato; Mas, se assim for, Que espalhafato! Que horror! Que horror! OS QUE ESTÃO AO FUNDO - O que será? O que haverá? Do paço a gente toda aqui está!.. (Saem da cabana os Ministros e Nheco, segurando em Paulo e na Princesa. Acompanha-os Teresa e Petronilha. Assombro geral. Perturbação do Barão e da Duquesa.) NHECO e os MINISTROS - Cá 'stão! Precisam de uma boa lição! EL-REI - Exijo disto explicação! NHECO - Quem és tu? EL-REI- (Deixando cair a capa.)- El-rei Caju!... TODOS - El-rei caju!... NHECO - Somente vos direi Que Vossa filha está perdida. ó Senhor Rei! EL-REI - Perdida! DUQUESA - Perdida!

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BARÃO - Perdida! TODOS - Perdida! EL-REI - Por minha vida! Vais-me explicar no mesmo instante! PRINCESA - Pois não! Pois não! Eis meu amante! PAULO - Sou seu amante! PAULO e PRINCESA - Estamos perdidos! Fatal situação! E em breve metidos Em negra prisão!... Concertantes BARÃO e DUQUESA - Não posso salvar-me! Fatal situação! Vai prejudicar-me Tal complicação! EL-REI - Eu caio! Desmaio! Tombar vou no chão! Foi como que um raio! Foi um furacão! TODOS - Imóveis de pasmo Todos aqui estão! Que enorme sarcasmo! Que insulto à nação! PAULO e PRINCESA - Que desgraça infinda! Que negro sofrer! Tão novos ainda, Nós vamos morrer! Repetição do concertante EL-REI - Tudo esqueceste, tudo, Princesa!... PRINCESA - Meu pais, atenda! EL-REI - Não sou teu pai! E tremam todos! A Vossa Alteza Castigo horrendo ser dado vai! TODOS - Ser dado vai! I EL-REI - Quer como pai, quer como rei, Abuso tal castigarei! Mas conheço, Reconheço Que o amor de nós dá cabo... É o diabo!... TODOS - É o diabo! II EL-REI (A Paulo.) - E a ti, plebeu, vilão ruim, Mandarei dar na forca fim! Mas, no entanto, Não é santo! E o amor de nós dá cabo... É o diabo!... TODOS - É o diabo!... EL-REI - Senhores meus Ministros,

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Tomai ares sinistros, E os dois heróis levai! (Encarando Paulo.) - Mas agora reparo! Caso realmente raro! Este insensato Da minha mulher é o retrato!... TODOS - Justiça! Justiça! Justiça fatal! Não haja preguiça Para um caso tal! PAULO e a PRINCESA - Cruel castigo Não nos importe! É doce a morte Ao lado teu! Viver na terra Não nos é dado! Vem ao meu lado Viver no céu! CORO GERAL - Mas na verdade Na realidade, O amor de nós dá cabo... É o diabo!... É o diabo!... [Cai o pano] ATO SEGUNDO Sala do conselho no palácio d'El-rei Caju. A cena está armada para um julgamento. No centro, uma mesa coberta com veludo. Bancos em volta. CENA I Cortesãos, depois NHECO, depois os MINISTROS, depois EL-REI (Ao levantar o pano, cada um dos cortesãos está a arranjar os bancos, e a espaná-los. De vez em quando param o seu serviço e impõem-se mutuamente silêncio.) CORO - Psiu! Psiu! Psiu!... Ninguém levante a voz neste salão! Haja silêncio e discrição! Psiu! Psiu! Psiu!... (Entra Nheco. Todos se curvam.) NHECO - Oh! não façais cerimônia Com quem delas mestre está! (Recomendam-lhe silêncio, e, por gestos, pedem que lhes diga o que se tem passado.) Vós sois pessoas idôneas: Vou dizer-vos o que há. Atenção! TODOS - Psiu! NHECO (Baixo.) - Atenção! Psiu! TODOS - Haja silêncio e discrição! I

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NHECO (Com mistério.) - Caso esquisito Que é de pasmar, Fato inaudito De embasbacar, Ontem, contrito, Presenciar Fui muito aflito, Quase a chorar! CORO - Psiu!... II NHECO - Digo e repito Que é de assombrar! Nomes não cito Que se os citar, Desacredito Quem devo amar! Nomes evito Pronunciar... CORO - Psiu... III NHECO - Eu me limito Tal nova a dar; Nomes omito, Que é mau palrar... Não facilito... Sei me guardar! Tudo hei vos dito... Vou me banhar! (Vai fugindo. Os outros impedem-lhe a passagem.) OS CORTESÃOS - Não se vá! Venha cá! Do que há Nos fará Narração, Confissão! Far-nos-á Descrição! NHECO (Volta, e depois de muito mistério, irrompe alto.) - Trá lá lá lá! Metida em maus lençóis nossa Princesa está! TODOS - Trá lá lá lá! Metida em maus lençóis nossa Princesa está! Ai, que o caso é muito sério! NHECO - Eis que chega o ministério! (Arranjam-se todos a um lado da cena.) ENTRADA DOS MINISTROS - Ministros somos Do rei melhor; Chamados fomos Para compor O conselho feroz que vai julgar A princesa que deu pra namorar! NHECO (Aproximando-se.) - Na qualidade de mestre

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De cerimônias, que sou, Fazer discurso que preste Neste instante tentar vou EL-REI (Entrando.) - Silêncio! o teu discurso é natural, dispense-o Quem está como estou eu! TODOS - El-rei Caju! EL-REI - Silêncio! (Descendo à cena, sombrio.) Tor ló tó tó! Tor ló tó tó! El-rei Caju quer ficar só... TODOS (Saindo misteriosamente.) -Tor ló tó tó! Tor ló tó tó! El-rei Caju quer ficar só... NHECO (Saindo por último, ao som dos derradeiros compassos.) - Este momento apanho Para tomar um banho... CENA II EL-REI, só [EL-REI] - El-rei Caju quer ficar só... E para que quer ficar só El-rei Caju? Apenas para retardar este julgamento, porque afinal de contas, sou rei, mas também sou pai! Sou pai! e hei de passar pela sensaboria de ver subir ao cadafalso minha querida filha? Sim, que a Constituição é clara neste ponto, apesar de escura em todos os outros. (Tirando um livrinho do bolso e lendo.) "Artigo duzentos. Toda pessoa real que, esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo, der escândalo público, será julgada por um Conselho composto de quatro Ministros de estado, e, averiguado o delito, condenada a pena última". Se se pudesse sofismar este maldito artigo duzentos! Vejamos por partes: "Toda pessoa real..." Minha filha é ou não é pessoa real? É. É real. É realmente real! Mas também quem se lembra de fazer um artigo contra as pessoas reais? Vejam se, nas partes descobertas do universo, os príncipes vão ao cadafalso por causa destas ninharias!.. "que esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo..." Disto se esqueceu ela... Comeu queijo... !der escândalo público..." Escândalo foi! Lá ser, foi!... É o diabo! Não há meio de sofismar! E o Conselho não pode estar à espera! (Vai chamar o Conselho e para.) Mas, afinal d e contas, qual é o crime da minha filha? A pobre pequena passava aqui uma vida levada de todos os diabos. Um dia deu-lhe a mosca... e... psit! Isso acontece à mais pintada! E não é que o rapaz é um rapagão? Simpatizo com ele... é uma coisa esquisita! Que bonitos olhos! Parecem-se tanto com os de sua Majestade a falecida minha mulher... Que olhos! vamos lá ver essa gente... Enquanto julgam vou pensar... Hei de achar furo. (Vai à porta por onde saíram os Ministros.) Olha esse Conselho que saia! (Sai pelo lado oposto.) CENA III NHECO, os MINISTROS OS MINISTROS - Não pode ser! não há tempo! 1º MINISTRO - Com mil raios! Pois o senhor mestre de cerimônias quer abandonar-nos no momento do Conselho! 2º MINISTRO - Era o que faltava! 3º MINISTRO - Tomar banho quando serviço do Estado reclama-o! 4º MINISTRO - Incúria! NHECO - Mas, Senhores Ministros...

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1º MINISTRO - Com mil bombardas! NHECO - Há vinte e tantos anos que não tomo banho! 4º MINISTRO - Quem esperou tanto tempo, pode esperar mais duas horas! 1º MINISTRO - Vamos! Mande entrar os réus, ou fuzilo-o, com mil canhões!... NHECO - Este ferrabraz bem mostra ser Ministro da Guerra! (A um gesto seu, entram Paulo e a Princesa, escoltados por guardas, e cortesãos de ambos o sexos, ao som de uma marcha triste. Sentam-se todos. Os Ministros em volta da mesa. Os cortesãos em bancos. Os réus em bancos especiais.) CENA IV Os MINISTROS, cortesãos, guardas, PAULO, PRINCESA, depois os ADVOGADOS NHECO (Aproximando-se.) - Como mestre de cerimônias que sou, vou proceder à leitura do artigo da Constituição, que tem relação com o cargo vertente. (Tira a Constituição do bolso.) OS MINISTROS (Tirando cada um a sua Constituição.) - Nós todos sabemos. (Abrem os livros.) TODOS (Menos os réus.) - E nós! (Estão todos de livro na mão; leitura geral do artigo duzentos. Lendo.) "Artigo duzentos. Toda pessoa real que esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo, der escândalo público, será julgada por um Conselho composto de quatro Ministros de Estado e, averiguado o delito, condenada à pena última." 1º MINISTRO - Manda entrar os advogados. (A um gesto de Nheco, entram os dois advogados.) 1º ADVOGADO (Muito alegre.) - Meus senhores, minhas senhoras, bom dia. 2º ADVOGADO (Sorumbático.) - Bom dia. 4º MINISTRO - Diabo! este aposto que é o da acusação! 2º ADVOGADO - Está enganado: sou da defesa. 4º MINISTRO - Ah! 2º ADVOGADO - Mas acredite que é contra a vontade... O meu desejo era vê-la morta... TODOS - Oh!... 1º ADVOGADO (Sempre muito alegre.) - Pois eu, apesar de vir acusá-la, queria vê-la livre de culpa e pena. Que diabo! Amar nunca foi crime! TODOS - Oh! 1º ADVOGADO (Ao colega.) - Uma proposta? vá o senhor acusá-la; eu irei defendê-la. 2º ADVOGADO (Vivamente.) - Aceito. 1º MINISTRO - A seus lugares, com mil duzentas e trinta e quatro espingardas! (Os advogados tomam seus lugares. Erguendo-se.) Estão em presença deste Tribunal... porque, não sei se sabem, isto é um Tribunal, dois réus. 3º MINISTRO - Não apoiado! 2º MINISTRO - Como não apoiado? 3º MINISTRO - Não são dois réus: é um réu e uma ré. (Todos riem.) 1º MINISTRO - Silêncio! com cem cartuchos! Cumpre-me fazer uma observação... (Ao 4º Ministro, que ainda se ri às gargalhadas.) Esteja quieto, menino! (O 4º Ministro ri-se cada vez mais.) O culpado é Sua Majestade, que fez ministro um fedelho, que ainda cheira a cueiros. (O 4º Ministro fica sério.) Cumpre-me fazer uma observação. O julgamento do réu Paulo aqui presente, era da competência do júri popular; mas como o povo tem mostrado de algum tempo para cá certas tendências democráticas, julgamo-lo nós, para que não no-lo absolvam por lá. - O Conselho... o Conselho conhece a história deste processo sumário: por denúncia de uma mulher do povo, o Ministério, que se achava reunido por amor do tratado de casamento de sua Majestade, o Ministério foi encontrar a herdeira presuntiva da coroa em casa do pescador Paulo. Enquanto o rei tratava de dar uma mãe à Princesa, esta comprazia-se talvez em dar um neto ao rei. - Vossa Alteza tem que alegar alguma coisa em sua defesa. PRINCESA - Em minha defesa, não; mas na de Paulo: ele não sabia quem eu era. 3º MINISTRO - Vossa Alteza namorava incógnita? PAULO - Nego! Eu sabia perfeitamente quem era Sua Alteza! 1º MINISTRO - Tem a palavra o advogado de acusação!

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Coplas e concertante I 2º ADVOGADO (Erguendo-se.) - Há muito tempo eu não acuso Delito assim tão desmarcado! Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 2º ADVOGADO - Senhores meus, tão grande abuso Deve de ser bem castigado! Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 2º ADVOGADO - Está na vossa consciência Que a tal indecência Exemplo bom deve ser dado! Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 2º ADVOGADO - Mais não digo, Não prossigo! O que foi vós bem sabeis! Eu sé quero, Só espero Que se cumpram nossas leis! (Senta-se.) Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 1º MINISTRO - A palavra agora tem Da defesa o advogado II 1º ADVOGADO (Erguendo-se.) - O deus de amor tem uma venda; Cupido é muito endiabrado! Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 1º ADVOGADO - Eu não sei mesmo o que defenda: No'é crime amar e ser amado! Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 1º ADVOGADO - Está na vossa consciência Não ser indecência Ter a princesa um namorado! Juntos UNS - Muito apoiado! OUTROS - Não apoiado! 1º ADVOGADO -Mais não digo, Não prossigo!

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Não é crime crime tal! Um namoro Sem decoro, Nessa idade era fatal! (Senta-se.) PRINCESA (Levantando-se vivamente do lugar em que está, e vindo à boca da cena.) Tango - Amor tem fogo, Tem fogo amor; Tem fogo intenso, Devorador! Põe-nos em jogo O coração, Nosso bom senso, Nossa razão! E lavra, Palavra! Sem descansar; Começa Depressa, Custa a acabar... TODOS (Erguendo-se maquinalmente e acompanhando o canto com um ligeiro movimento de corpo.) PAULO - Todos amam: japoneses, Chineses, ingleses, Franceses, malteses, Portugueses, cordoveses, Genoveses, irlandeses, Hamburgueses, lubequeses, Islandeses, holandeses, Genebreses, escoceces! Aragoneses, Piemonteses, Dinamarqueses Cartagineses! 1º ADVOGADO - Em vez de matá-los, Casá-los pra bem! 2º ADVOGADO - Em vez de casá-los, Matá-los convém! Matá-los! 1º ADVOGADO - Casá-los! CORO - Muito apoiado! Não apoiado! (Disputa geral, animada e calorosa.) CORO GERAL - - Amor tem fogo, Tem fogo amor; Tem fogo intenso, Devorador! Põe-nos em jogo O coração, Nosso bom senso, Nossa razão! E lavra,

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Palavra! Sem descansar; Começa Depressa, Custa a acabar... 1º MINISTRO - Toca a safar! O Conselho, porque saibam que isto é um Conselho, tem que deliberar. (Os fidalgos retiram-se. Aos guardas.) Direita volver! Marche! (Os guardas saem.) 2º MINISTRO - Mas havemos de deliberar em presença dos réus? 3º MINISTRO - Passemos à sala das deliberações. Senhor Mestre de Cerimônias, fica-lhe confiada a guarda destes dois pombinhos. - Vamos! (Ao 3º Ministro.) Mexa-se. 2º MINISTRO - Também é tão gordo! Vejam que barriga! 4º MINISTRO - Pudera! É ministro das Finanças! (Saem.) CENA V PAULO, PRINCESA, NHECO NHECO - Vossa Alteza provavelmente vai morrer... Ao menos morre limpa... Eu parece que decididamente morro sem tomar banho! Faça idéia Vossa Alteza de que hoje, logo pela manhã, introdução de vossa futura madrasta, augusta noiva de vosso augusto pai. Ao meio dia, preparação da sala do Conselho. Eu pretendia tomar banho enquanto deliberavam: mas eis que me ordenam que vos guarde. E todos os dias são assim! PRINCESA - Nheco, és meu amigo? NHECO - Quem pode ver-vos sem querer amar-vos? PRINCESA - Pois bem, se te mereço piedade, deixa-nos a sós um momento. NHECO - Deixar-vos a sós. Sereníssima Princesa? Vossa Alteza não viu que me confiaram a vossa guarda? Não, isso não faço eu! O mais que posso fazer é fechar os olhos... (Cantarolando) Oh! não façais cerimônias Com quem delas mestre está... PRINCESA - Nheco, tu nunca amaste? NHECO - Nunca tive tempo de tomar banho, quanto mais de amar... PAULO - Descanse, pois não fugimos... Amamo-nos... Precisamos da solidão e do silêncio para desafogar... NHECO - Ainda se eu tivesse tempo de meter-me na água... PRINCESA - Anda... faze-nos a vontade... Antes de morrer, pedirei a meu pai que te aposente... NHECO - Com o ordenado por inteiro? PRINCESA - Sim. NHECO - Então, vá lá! Se apanho a aposentação, hei de passar os restos dos meus dias metido num tanque! - Até logo. (À parte.) Não irei para muito longe... Nada, que se fugissem... (Sai) CENA VI PAULO, PRINCESA (Correm um para o outro, abraçam-se e beijam-se ardentemente.) AMBOS - Enfim! PAULO - Que sorte nos aguardará?... PRINCESA - E fui eu que te perdi... PAULO - Tu?! Oh! não! Não falemos nisso... PRINCESA - Vivias feliz e despreocupado, em companhia dessa excelente mulher a quem tanto deves, e que a estas horas teme pelo seu destino... A caça... a pesca... era essa a tua existência descuidada! Que fatalidade nos atirou nos braços um do outro!

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PAULO - Foi uma fatalidade, foi; mas não te recrimines, porque me considero feliz na minha desgraça! Morro contigo! Estava-me reservada essa ventura suprema! PRINCESA - Meu pobre Paulo! Dueto PAULO - Que sorte funesta! PRINCESA - Que funesta sorte! PAULO - Nada mais no resta... PRINCESA - Resta-nos a morte... AMBOS - Abrem-se os céus! Nas asas de ouro, A morte vai nos conduzir! Juntos, ó meu casto tesouro, À eterna luz vamos subir! PRINCESA - Castigo não se afigura, Mas divinal, supremo bem, A doce paz da sepultura Que o fado meu trazer-me vem! PAULO - Eu morro satisfeito! Acaba a minha dor! Gelado, negro leito Encontra o meu amor! Juntos PAULO PRINCESA Eu morro satisfeito! Serenas; ó meu peito, Acaba a minha dor! Acabas, minha dor! Gelado, negro leito Gelado, negro leito Encontra o meu amor! Encontra o meu amor! NHECO (Voltando.) - Então? Vossa Alteza já desafogou? era tempo! Aí volta o Conselho!... (A música prolonga-se em surdina até o final da seguinte cena. CENA VII PAULO, PRINCESA, NHECO, MINISTROS, ADVOGADOS, Cortesãos, guardas. 1º MINISTRO - Sereníssima Senhora, o Tribunal, porque, afinal de contas, por mais que me digam, isto é um Tribunal... O Tribunal, dizia eu, usando da faculdade que lhe faculta o artigo duzentos da Constituição do reino, acaba de proferir a sentença que tem de ser cumprida tanto por Vossa Alteza como pelo indivíduo Paulo: estão ambos condenados à pena última. 2º ADVOGADO - Apelo! 1º MINISTRO - Não há apelação nem agravo! - Guardas, sentido, com três mil buchas! Meia volta à direita, e prendam! prendam! (Três guardas levam Paulo e três a Princesa. Saem todos graves e silenciosos, como entraram. A cena fica só por alguns momentos. Cessa a música.) CENA VIII BARÃO, DUQUESA, depois EL-REI (A Duquesa entra aflita; o Barão acompanha-a no mesmo estado de agitação.) DUQUESA - Não há remédio senão confessar tudo a El-rei! BARÃO - Eu perco a cabeça! E perco mesmo: isto não é figura de retórica. Vê Vossa Excelência como o demo as arma, Duquesa... DUQUESA - Estou resolvida a tudo, contanto que salve a minha filha! BARÃO - Nossa filha, Duquesa...

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DUQUESA (De mau humor.) - Nossa filha, Barão! Coplas I Por minha filha salvar Do cadafalso Mil passos pretendo dar Embora em falso... Sofrerei negra aflição Eterna mágoa Se der minha pretensão Cos burros n'água! Sou muito forte, Mas desvelada; Desesperada, Nervosa estou! Quem já viu sorte Que mais capriche? Madre infelice Mísera sou! II Para salvá-la verá Que me rebaixo, Embora o trono se vá Por água abaixo! Se não lhe alcanço o perdão... Que escaramuça! Hei de pintar o Simão De carapuça! Sou muito forte, Mas desvelada; Desesperada, Nervosa estou! Quem já viu sorte Que mais capriche? Madre infelice Mísera sou! BARÃO - Aí vem Sua Majestade. Fale-lhe, que não tenho ânimo para isso. Uf! Não me posso ter nas pernas! EL-REI (Entrando, angustiado.) - Barão, Barão! andava à tua procura meu velho amigo! Tenho te buscado por toda a parte! Onde te meteste? BARÃO - Estava receitando: Vossa Majestade sofreu um violento abalo moral: precisa medicar-se. A receita cuja confecção levou-me três horas, já foi enviada para a botica. EL-REI - Quem te fala aqui em despesa... quero dizer: em receita? O que eu quero é salvar minha filha! Põe-te em meu lugar: faze de que conta que és seu pai! Faça de conta que é sua mãe, Duquesa. - Tu, que tanto a estimas, Barão, não te lembras de algum meio? Não se pode sofismar aquele maldito artigo duzentos? DUQUESA (Irresoluta, ao Barão.) - Vai? BARÃO - Vá! Um, dois, e... três! DUQUESA (Resoluta.) - Saiba Vossa Majestade que a Princesa, se ama o pescador Paulo, não lesa a majestade, nem ofende o povo que a venera. EL-REI - Por quê? BARÃO (Consigo.) - Um, dois, e... três! (Alto.) Real Senhor, o Príncipe Paulo é vosso filho!

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EL-REI - Meu filho... BARÃO - Vossa Majestade lembra-se do que me disse há vinte anos quando vossa real esposa estava para dar à luz? - Doutor, há de ser uma menina ou... Tur, lu, tu, tu, tur, tu, tu... verás quem é El-rei Caju! Ora, como a criança que estava para nascer era um menino, levei o menino para fora. eduquei-o longe das vistas de Vossa Majestade, e a menina tem até hoje passado por vossa filha. Acontece que vinte anos depois esta trapalhada, a menina apaixona-se pelo menino, o menino pela menina, e... EL-REI (Interrompendo-o tragicamente.) - Horror! Horror! três vezes horror! As abóbadas deste palácio repercutam ainda uma vez esta palavra: Horror! e outra: Horror! BARÃO - É a mesma. EL-REI - Afinal de contas, tiveste razão. O teu dever era salvar a própria vida. isso não impede, porém, que houvesse feito uma grandíssima maroteira! BARÃO - Foi por instinto de conservação. EL-REI - Por isso é que o rapaz parece-se tanto com minha mulher! Por isso é que simpatizo tanto com ele... DUQUESA - A natureza! a natureza! EL-REI - Mas quem é o pai de minha filha? quero dizer - da suposta Princesa? Não lhe entrego nem a cacete! (Terrível.) De quem é a filha?... Responde!... Terceto BARÃO - É minha filha! Seu papai sou! DUQUESA - É sua filha! Quem tal pensou? EL-REI - É sua filha! Seu pai não sou! Cruel partilha, Desgraça pura, A sorte escura Me reservou! I BARÃO - Sob este corpo cansado Que o tempo quase vergou, Sob este corpo, coitado! Um coração já pulsou... Na flor da minha existência Todo aos estudos me dei; Namorado da ciência, Em vez de amar, estudei Por isso, Ah! Ah! Por isso, Ah! Ah! Tive somente um derriço Olá! II Cataplasmas e calmantes, Ungüentos e fricções; Laxantes e mais laxantes; Cerotos, basilicões, Sulfatos, plantas, altéias, Tudo o mais, que não direi,

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Foi com estas panacéias Que a mocidade passei! Por isso, Ah! Ah! Por isso, Ah! Ah! Tive somente um derriço Olá! EL-REI - E esse derriço foi, Barão, que te valeu A filha que passou por ser trabalho meu? (A um gesto afirmativo do Barão.) Passei por pai de quem não era! Passo por pai de quem não sou! Punido hás de ser tu, pudera! Um juramento aqui te dou! Ah! (Dá uma grande volta pela cena, parodiando os artigos líricos italianos, e vem requebrar-se perto da Duquesa.) Oh! je t'aime! je t'aime! je t'aime! Deixa, ó bela, dizer-to em francês! Vê, meu anjo, vê que a voz me treme! Oh! je t'aime! je t'aime! je t'aime! Juntos EL-REI Oh! je t'aime! je t'aime! je t'aime! Deixa, ó bela, dizer-to em francês! Vê, meu anjo, vê que a voz me treme! Oh! je t'aime! je t'aime! je t'aime! BARÃO - Que ela o ama, que o ama, que o ama, Caso é certo, mesmo sem francês! Ora, faça a vontade à madama! Ora faça, que o peço por três! DUQUESA - Oh! je t'aime, je t'aime, je t'aime, Oh! je t'aime, meu bem, como vês! Vê, meu anjo, vê que a voz me treme... Oh! je t'aime, je t'aime em francês! (O Barão e El-rei dão juntos outra volta por toda a cena, prolongando a última nota, que a Duquesa corta de súbito, tapando-lhes as bocas quando descem à cena, cantando.) DUQUESA - Pois se me adoras, Como protestas E como atestas, Meu coração, Oh! tu, que uma alma Tens, e tão boa, Meu bem, perdoa Dá-lhe o perdão! Juntos DUQUESA - Pois se me adoras, Como protestas E como atestas, Meu coração, Oh! tu, que uma alma

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Tens, e tão boa, Meu bem, perdoa Dá-lhe o perdão! EL-REI - Eu, que te adoro, Oh! pura! honesta! Mulher modesta, Meu coração, Hei de, que o pedes, Hei de lançar-lhe, Hei de atirar-lhe O meu perdão! BARÃO - Se és bom sob'rano, Como protesta E como atesta Teu coração, Oh! tu, que uma alma Tens, e tão boa, Ó Rei, perdoa, Dá-me o teu perdão! EL-REI - Mas sem castigo não desejo eu que fique este mariola!... BARÃO - É melhor que as coisas fiquem no pé em que estavam. - Vossa Majestade tem amor de pai à Princesa, não tem? EL-REI - Por força. DUQUESA - O Príncipe Paulo passará por filho de Sua Majestade, o rei da Ilha da Guarda Velha. EL-REI - O meu augusto vizinho? DUQUESA - Depois de entender-me com ele, anuirá ao meu pedido, e perfilhá-lo-á. BARÃO (À parte.) - Hum... EL-REI - Sim, podemos contar com o assentimento do colega, que nada te recusa, como já disseste. Demais, sabendo que Paulo é meu filho... BARÃO (Timidamente.) - É verdade. EL-REI - Bico, Senhor Barão. - Senhor Barão! Nada! De hoje em diante não é mais Barão! Se está feito Barão por ter nascido uma menina, estás elevado a Visconde, maroto! É o teu castigo! - Vai chamar esta súcia! (O Barão sai.) Vou anular o julgamento... e, para segurança de minhas netas, convocar uma Constituinte para revogar o tal artigo duzentos. CENA IX EL-REI, BARÃO, DUQUESA, NHECO, MINISTROS, ADVOGADOS, fidalgos, fidalgas, guardas, depois PAULO, PRINCESA EL-REI - Trazei minha filha e Sua Alteza o Príncipe Paulo para esta sala! TODOS - O Príncipe Paulo! DUQUESA - Esse que supondes um simples pescador! BARÃO - O réu. EL-REI - É um príncipe disfarçado. Tudo isto foi uma comédia. Queria experimentar-vos. Sois íntegros. 1º MINISTRO (Aos guardas.) - Direita volver! Ide buscar os réus, com trinta mil carabinas! (Saem os guardas, e voltam com Paulo e a Princesa.) Está portanto anulada a sentença proferida pelo Conselho, que, aquilo, digam o que quiserem, foi um Conselho. EL-REI (A Paulo, que entra com a Princesa e os guardas.) - Príncipe Paulo, dê cá um abraço! PAULO - Príncipe!!... BARÃO (A Paulo.) - Tudo será mais tarde explicado a Vossa Alteza. EL-REI (Depois de abraçar e beijar o Príncipe.) - Dê a mão à Princesa: é sua!

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PRINCESA - Paulo! PAULO - E Teresa? Um vez que sou Príncipe... BARÃO - Não vos dê cuidado. EL-REI - O Barão não deve ficar impune. Mas... qual deve ser o castigo. UM LACAIO (Entrando, acompanhado de dois homens que trazem grandes caixas.) - Aqui estão os remédios de Vossa Majestade, receitados pelo Senhor Barão. A botica ficou vazia. EL-REI - Leva-os para fora. (Saem o lacaio e os homens. Ao Barão.) Querias que eu ingerisse aquela farmácia? Por causa do meu abalo moral, não é assim? mas como a filha era tua e não minha, tu é que hás de tomar aquelas drogas. (À parte.) Achei um castigo. BARÃO (À parte.) - Morri. EL-REI (Tomando a mão da Duquesa.) - Apresento minha noiva à corte. (À Princesa e a Paulo.) Casar-nos-emos no mesmo dia... (Grandes mesuras dos cortesãos.) Final CORO GERAL - Viva El rei Caju! Viva o Rei Caju!... PRINCESA - É papai, do meu agrado, Seja Nheco aposentado! NHECO - Se aposentação apanho, Oh! que permanente banho! PAULO - O meu pedido é mais sério: Deito abaixo o Ministério! EL-REI - Caia, pois, o Ministério! (A um gesto seu, os Ministros caem no chão) Coplas ao público Sei que o desejo, e único Dos míseros autores, É de fazer-te rir; Assim, pois a comédia Dispensa os teus favores, E seja o Ministério O único a cair. Tur lu tu tu Tur lu tu tu Eis o que quer El-rei Caju! CORO GERAL - Tur lu tu tu Tur lu tu tu Eis o que quer El-rei Caju!... [Cai o pano.]

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O LIBERATO Comédia Oferecida ao Excelentíssimo Senhor Doutor Joaquim Nabuco Representada pela primeira vez no Teatro Lucinda do Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1881. PERSONAGENS GONÇALO DOUTOR LOPES RAMIRO MOREIRA DONA PERPÉTUA ROSINHA A cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro, em 1880. O teatro representa uma sala. Duas janelas ao fundo, duas portas de cada lado, quatro cadeiras e uma poltrona, consolos. CENA I ROSINHA, debruçada a uma das janelas; DONA PERPÉTUA, entrando da esquerda, primeiro plano; logo depois GONÇALO, da direita, segundo plano. DONA PERPÉTUA (Entrando de muito mau humor, com um vergalho na mão.) - Ora valha-me Deus! Não me faltava mais nada!... ROSINHA e GONÇALO (Descendo ao proscênio.) - O que foi? DONA PERPÉTUA - O diabo do negro - Deus me perdoe! - agora é que se lembrou de cair doente! Como até estas horas não saía do quarto, fui buscá-lo preparada com este vergalho, e encontrei-o ardendo em febre. Desavergonhado! GONÇALO (Timidamente.) - O Liberato? DONA PERPÉTUA - O Liberato, sim senhor Pois quem havia de ser? É surdo? Que inferno! Esta só a mim acontece! ROSINHA - É coisa de cuidado? DONA PERPÉTUA - Um negro nunca tem coisa de cuidado! E este diabo, se não fosse valer uns oitocentos mil réis... GONÇALO - Vou chamar o médico? DONA PERPÉTUA - Vá, homem de Deus, vá! Mexa-se, com todos os demônios! Parece estar a dormir! GONÇALO (Vai buscar o seu chapéu sobre o consolo que deve estar entre as duas janelas, e dirige-se para a esquerda, segundo plano. A Rosinha, que se dirige à porta da esquerda, primeiro plano.) - Onde vai? ROSINHA (Naturalmente.) - Vou ver o Liberato; DONA PERPÉTUA (Com autoridade.) Fique! (Rosinha volta e vai para a janela.) Por causa destas e de outras confianças, é que o demônio do negro... GONÇALO (Quase a sair, parando.) - Adoeceu? DONA PERPÉTUA - Cale-se. (Gonçalo desaparece) Agora vá lá ficar o dia inteiro, como é seu costume! Que marido! (Sai pela direita, segundo plano.)

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CENA II ROSINHA, só [ROSINHA] (À janela. Ouvindo dar horas tem um gesto de impaciência e desce ao proscênio.) - Duas horas, e primo Ramiro nada de aparecer! A que será devida esta demora? É o primeiro domingo em que não aparece logo depois do meio dia! Estará doente? (Aplicando o ouvido.) Parece que sobem a escada... Deve ser ele... É ele, é, não me engano... (Aparece Moreira da esquerda, segundo plano.- Vendo-o, despeitada.) - Ora! CENA III ROSINHA, MOREIRA MOREIRA (Entrando.) - Licença para um. (Dirigindo-se a Rosinha, com muita amabilidade.) Como tem passado, Dona Rosinha? Tem passado bem? ROSINHA (Secamente.) - Bem, obrigada. MOREIRA (Sentando-se na poltrona. Tem deixado o seu chapéu sobre o consolo que estará entre as duas portas da esquerda.) - Eu vou indo conforme Deus é servido. (Tomando uma pitada de tabaco, movimento este que repete quatro ou cinco vezes durante a peça.) Mamãe está boa? ROSINHA - Boa, obrigada. (Vai à janela, a ver se chega o primo.) MOREIRA - Não lhe pergunto por papai, porque o encontrei ali na esquina. Disse-me que ia chamar o médico para ver o negro, que caiu doente. Isto de negros, põem-se finos com duas lambadas. Lá na fazenda, tenho o Doutor Bacalhau que faz milagres! ROSINHA (Voltando da janela.) - O senhor viu por aí primo Ramiro? MOREIRA (Muito sério.) - Vi, minha senhora, e também vi seu tio! ROSINHA (Interessada.) - Onde? MOREIRA - Na tal conferência! ROSINHA - Que conferência? MOREIRA - Pois não sabe que se trama entre nós uma grande conspiração contra a propriedade particular? ROSINHA - Uma grande conspiração? MOREIRA - Que meia dúzia de rapazolas inconseqüentes, que nada tem que perder, que não possui um moleque ou uma negrinha para remédio, arvorou-se em defender a emancipação dos escravos, empunhando o facho da discórdia, e anda a proclamar urbi et orbi - pelos botequins, pelas gazetas e até pelos teatros - a dilapidação da fortuna particular?! ROSINHA - Deveras? MOREIRA - Em outra qualquer parte que não fosse o Rio de Janeiro, isto seria uma quadrilha de ladrões; aqui chama-se a isto o Partido Abolicionista! (Erguendo-se percorrendo a cena, de muito mau humor.) Pois não! Uma gente sem eira nem beira, nem ramo de figueira: uns pobres diabos, carregados de esteiras velhas, que se ralam de inveja, quando vêm um cidadão prestante como eu, que possuo cinqüenta escravos, ganhos com o suor do meu rosto! (Surpreendendo um sorriso de Rosinha.) Sim, senhora: ganhei-os com o suor do meu rosto, a trabalhar, (Gesto como se tirasse suor da testa com o polegar.) e não a dizer baboseiras no teatro... ROSINHA - E foi no teatro que se encontrou com primo Ramiro? MOREIRA - No teatro, sim, senhora: agora há comédias também de dia. E seu primo dava palmas e gritava: - Bravo! - àquela caterva de desmiolados que desejam a ruína do país! ROSINHA - Oh! MOREIRA - Do país, sim, que depositou na grande lavoura as suas esperanças. - E seu tio, o Doutor Lopes, um homem formado, que deve ter juízo, nem sequer repreendia o filho! ROSINHA - Modere-se, Senhor Moreira! MOREIRA (Esbravejando.) - A ruína do país ainda não é nada!... Mas o aniquilamento da riqueza particular? E o meu dinheiro? ROSINHA - Vejo que o senhor é um patriota...

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MOREIRA - Patriotismo é isto (Bate no ventre.) e isto. (Sinal de dinheiro.) Já não bastava a famosa lei de 28 de setembro, que me obriga a educar moleques que não são meus filhos, e que, se são meus filhos, não são meus escravos! Canalha! (Muito exaltado, e ameaçando, com os punhos cerrados, a porta da rua.) Canalhas! ROSINHA - Modere-se. MOREIRA - Tem razão; o melhor é não dar-lhes importância. (Põe-se de novo a passear pela sala, proferindo frases entrecortadas. Acalma-se pouco a pouco. Rosinha, durante este passeio, vai de novo à janela ver se chega o primo, e volta. Pausa.) ROSINHA - Com que então, o senhor tem cinqüenta escravos, hein? MOREIRA (Muito amável, pegando-lhe na mão.) - Cinqüenta escravos que serão seus no dia em que consentir que eu peça a seus pais esta mãozinha. ROSINHA (Admirada.) - Que a peça? Mas... para quem? MOREIRA - Para mim mesmo; pois para quem há de ser? ROSINHA (Retirando-lhe a mão, sorrindo.) - Neste caso, desconfio, meu caro senhor, que os seus escravos nunca serão meus. MOREIRA (Desabridamente.) - Veremos. ROSINHA - Hein? MOREIRA - Pois não é tão bom possuir cinqüenta escravos? Cinqüenta e um, porque eu serei o mais humilde, o mais cativo de todos os seus cativos. ROSINHA - Se julga que os meus pais disponham de mim com a mesma facilidade com que o senhor pode dispor de seus escravos... MOREIRA - Mas, Dona Rosinha... ROSINHA - O senhor bem sabe que meu coração já está dado, e vamos e venhamos - muito bem dado. MOREIRA - Ora o seu coração! Sei que a namora o tal primo Ramiro; mas entre o namoro de um rapaz estabanado, que vai dar palmas a discursos de demagogos de meia tigela, e o amor calmo e refletido de um homem de senso prático, deputado provincial, proprietário agrícola e senhor de cinqüenta escravos, não me parece que haja hesitação possível! ROSINHA (À parte.) - É divertido! MOREIRA - E depois, nunca ouviu falar das desastrosas conseqüências de matrimônios entre parentes consangüíneos? Quer ter filhos idiotas? ROSINHA (Baixando os olhos.) - Senhor Moreira.. MOREIRA - E eu... como não sou seu primo... ROSINHA - Não é meu primo... (Rindo-se.) mas podia ser meu avô... MOREIRA - Não exagere: eu tenho apenas cinqüenta anos. ROSINHA - Justamente o número de escravos. Nada: prefiro ter filhos idiotas a ter um marido velho. Demais, Deus é bom e misericordioso: não há de permitir que eu seja mãe de idiotas. MOREIRA - Se tiver filhos perfeitos, onde irá buscar meios para educá-los? Seu primo é um simples praticante de secretaria... ROSINHA - Amanuense, aliás. MOREIRA - Ou isso. Eu tenho talvez o dobro da idade dele, não nego; mas gozo de uma posição social definida. Tenho influência política... Não sou amanuense. Ser lavrador é tudo... ROSINHA (Atalhando.) -... neste país essencialmente agrícola, já sei... Vou prevenir mamãe de sua visita... (Vai a sair pela direita, segundo plano, e volta-se.) Diga-me cá, Senhor Moreira: seus pais eram primos? Ah! Ah! Ah!... (Sai) CENA IV MOREIRA, só [MOREIRA] - Ri-te, ri-te, minha sirigaita. Eu cá farei a cama a teu primo, que é o único obstáculo que se levanta entre nós. Era o que me faltava ver! Ser vencido por amanuense, eu, que sou senhor de trinta escravos...sim, porque, cá entre nós, só tenho trinta escravos. - Ao pai já falei... Mas o Gonçalo nada resolve por si... Felizmente a velha não morre de amores pelo tal priminho... Hei de falar-lhe hoje

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mesmo... (Depois de uma pequena pausa.) Ah, Major Gaudêncio! Major Gaudêncio! você é que é a causa destas declarações inoportunas de um amor que não sinto. - O caso é este; o Major Gaudêncio, o padrinho desta pequena, é um velho octogenário, que quebrou relações com o compadre por via das impertinências da comadre, e retirou-se para Maricá. Ora, aqui há coisa de mês e meio, o Major Gaudêncio disse-me em confiança que fizera o seu testamento e, não tendo parentes, instituíra a afilhada herdeira universal de todos os seus bens, que hão de orçar por trinta ou quarenta contos. - Estou, por conseguinte, empregando meios e modos para apanhar esta sorte grande... O diabo é que isto de primos... CENA V MOREIRA, ROSINHA, depois GONÇALO ROSINHA (Da direita, segundo plano.) - Mamãe pede-lhe que faça o favor de ir ter com ela; espera-o na sala de jantar. MOREIRA - Lá vou. (Vai saindo pela direita, segundo plano, e para.) Reflita bem: com seu primo, a miséria dos amanuenses; comigo, uma bela fazenda de café, cinqüenta escravos, meia dúzia de apólices de conto de réis e, quando quiser, um título de baronesa. (Sai.) ROSINHA (Só.) - Nem todo o ouro da terra, nem todos os títulos do mundo me fazem esquecer do meu Ramiro. (Aplicando o ouvido.) Sobem a escada... Oh! desta vez não pode deixar de ser ele! (Vendo entrar o pai da esquerda, segundo plano, despeitada.) Ora! GONÇALO - Já chamei o médico. Onde está mamãe? ROSINHA - Lá dentro, na sala de jantar. (Gonçalo vai saindo.) Está lá também o Senhor Moreira. GONÇALO (Parando.) - Ah, está lá o Moreira? (Coçando a cabeça.) Este Moreira... (Resolutamente, depois de uma pequena pausa.) Olha, minha filha, tu sabes como é tua mãe... Se ela quiser, não queiras! ROSINHA - O quê? GONÇALO - Não queiras senão teu primo. Bate-lhe o pé! Se eu estiver do lado da tua mãe, não faças caso: bate-me o pé também a mim... ROSINHA - Mas... GONÇALO - Aí vem teu primo. Amem-se à vontade. (Sai.) ROSINHA - Ele! Finalmente!... (Corre ao encontro de Ramiro, que entra como um raio, pela esquerda, segundo plano, e conserva o chapéu na cabeça.) CENA VI ROSINHA, RAMIRO RAMIRO - Prima! ROSINHA - Por que não vieste há mais tempo? RAMIRO - Hoje quase morri! ROSINHA - Credo! RAMIRO - De entusiasmo! ROSINHA - Respiro. RAMIRO - Que talentos! que idéias! que eloqüência! que mocidade! ROSINHA - Nunca te vi assim! RAMIRO - Pudera! Se eu nasci hoje! Até agora, tu, só tu enchias o meu coração; doravante tens uma rival: a liberdade! É que nunca me lembrei de que um milhão e meio de homens amargam neste país a sorte mais bárbara, o mais horrível destino! (Passando.) Oh! viva a liberdade, formosa deusa que ilumina o mundo! ROSINHA - Que entusiasmo! Não me faças tu ter ciúme da liberdade! RAMIRO - Onde está teu pai! ROSINHA - Está lá dentro, mas dize-me... RAMIRO - Onde está tua mãe? ROSINHA - Lá dentro. Mas... o que tens tu? RAMIRO - E o Liberato?

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ROSINHA - Está doente. RAMIRO - Vai chamar teu pai, vai chamar tua mãe, vai chamar o Liberato! ROSINHA - Mas se te acabo de dizer que o Liberato está doente? RAMIRO (Com piedade.) - Doente! doente!... (Outro tom.) Quero aqui reunido um conselho de família! ROSINHA - Um conselho de família! Mas o que será, meu Deus! RAMIRO - Vai, Rosinha, vai... Trago no coração um peso enorme! Meu pai não pode tardar aí. A sua presença também é indispensável. ROSINHA - Mas como estás hoje! Tira o chapéu, dá cá a bengala. (Ramiro obedece. Triste.) Nem sequer me perguntaste como passei. RAMIRO (Tomando-lhe as mãos.) - Perdoa, Rosinha, perdoa. Amo-te muito, muito, muito! És um anjo, e eu só me considerarei digno de ti, depois deste conselho de família! - vai chamar teus pais. ROSINHA - Vou já. (Sai pela direita, segundo plano, depois de ter posto a um canto a bengala e o chapéu do primo. Ramiro vai ao encontro de Lopes, que entra da esquerda, segundo plano.) CENA VII RAMIRO, DOUTOR LOPES RAMIRO - Ah, meu pai! Chega em boa ocasião! Mas por que não veio comigo? LOPES - Tinha que ir à casa consultar a lei e arranjar os quinhentos mil réis. (Batendo na cabeça.) Cá está a lei (Batendo na algibeira do peito.) e cá está o dinheiro. RAMIRO - Compreendo: o pecúlio do escravo. LOPES - Já lhes falaste? RAMIRO - Ainda não. Convoquei-os a um conselho de família, aqui na sala. LOPES - Entusiasmou-me o teu entusiasmo, e a tua humanitária lembrança me encheu de orgulho de ser teu pai. És o homem que eu sonhava, quando te acalentava ao colo. No período abolicionista que atravessamos, ser escravagista já não é mau nem absurdo: é ser ridículo. RAMIRO (Olhando para a porta da direita, segundo plano.) Eles aí vem... Eles e... e o Moreira, se não me engano. LOPES - O Moreira? Má notícia. CENA VIII RAMIRO, LOPES, ROSINHA, DONA PERPÉTUA, MOREIRA, GONÇALO DONA PERPÉTUA (Com impertinente volubilidade, enquanto Rosinha toma a benção a Lopes, e Gonçalo e Moreira, cumprimentam Lopes e Ramiro.) - Viva lá, senhor meu sobrinho! Então Vossa Excelência não se quis dar ao trabalho de entrar? Se nos queria falar, por que não foi lá ter, senhor fidalgo? Quem tem a dor de dentes é que vai ao barbeiro. Tão longe era de cá lá como de lá cá! (Vendo o Doutor Lopes) Olé! também aí está, senhor meu mano? Viva! Como vai de saúde o senhor advogado? Há de fazer o favor de me explicar que farsa é esta de conselho de família, que a Rosinha não soube dizer. Estamos todos reunidos. Diga lá o que pretende, senhor meu sobrinho das dúzias! LOPES (À parte.) - É uma máquina Marinoni a falar! MOREIRA - Perdão, mas ao que parece, sou aqui demais. LOPES (Com desembaraço.) - Na realidade, uma vez que se trata de um conselho de família... RAMIRO (Idem) - E não pertencendo o senhor Moreira à família... LOPES (Idem) - Que nos conste... DONA PERPÉTUA - Não pertence à família, mas... quem sabe? O mundo dá tantas voltas... MOREIRA - Isso é verdade, minha senhora: as voltas que o mundo dá! (Indo buscar o seu chapéu à esquerda.) DONA PERPÉTUA - Fique. (Toma-lhe o chapéu, e coloca-o onde estava.) O Senhor Moreira é pessoa de nossa amizade; pode assistir ao conselho; pode mesmo tomar parte dele. MOREIRA - Nesse caso, peço licença para representar aqui o Major Gaudêncio, que é um quase parente. DONA PERPÉTUA - Bem lembrado: representa o compadre Gaudêncio. (Moreira senta-se.)

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LOPES - A falar no Major Gaudêncio. Aqui tem, mano Gonçalo, uma carta de Maricá... Entregou-ma o carteiro, no corredor, quando eu subia. DONA PERPÉTUA (Tomando a carta que ia ser entregue ao marido.) - Dê cá. Nesta casa sou eu que abro as cartas. Lerei logo mais, não tenho aqui meus óculos. (Fica com a carta fechada na mão.) MOREIRA (Passando perto de Rosinha.) - Este mundo dá tantas voltas! RAMIRO (Que observou.) - O que lhe diria ele? LOPES - Bem, sentemo-nos. (Colocando a poltrona no centro da cena.) Este é o ligar de honra; deve ficar aqui o dono da casa, para presidir o conselho. DONA PERPÉTUA (Sentando-se na poltrona.) O dono da casa sou eu. LOPES - Perdão, mana, mas a casa é de Gonçalo. DONA PERPÉTUA (Repoltreada.) - Por isso mesmo. LOPES - A... mana manda mais que o galo. DONA PERPÉTUA (Erguendo-se de um salto.) - Observo-lhe, senhor meu mano, que eu não sou galinha. LOPES - Bem! Não val'zangar-se. (Colocando duas cadeiras de cada lado da poltrona.) Senta-te aqui Ramiro. (Fá-lo sentar-se na primeira cadeira a começar da esquerda.) Rosinha, tu aqui. (Na segunda.) O Senhor Moreira ali. (Na quarta.) e eu aqui. (Na terceira. - Estão todos sentados na seguinte ordem, a começar da esquerda: Ramiro, Rosinha, Dona Perpétua, Lopes, Moreira.) GONÇALO (De pé.) - E eu? DONA PERPÉTUA - Fica onde quiseres. Enquanto deliberamos, vai lá dentro, pega numa agulha e cose. (Gonçalo procura com a vista uma cadeira, e, não a encontrando, vai debruçar-se na sacada ao fundo, ficando de frente para a cena.) DONA PERPÉTUA - Está aberto o conselho de família. RAMIRO (Erguendo-se.) - Tomo a palavra. Reuni-os para comunicar-lhes uma idéia grandiosa que há duas horas me anda dançando no cérebro. LOPES (A uma cara de Dona Perpétua.) - Não se assuste com essa coreografia, mana. RAMIRO - Nós possuímos um escravo. DONA PERPÉTUA - Um só, infelizmente. Meu pai, teu tio, morreu sem testamento. LOPES - Ab intestato. DONA PERPÉTUA - Deixou por única herança um escravo. (Lopes ergue-se. Ramiro senta-se.) LOPES - Não houve composição entre os herdeiros: o escravo não foi à praça... Como o negro, apesar de ser coisa, não era coisa que se dividisse, sim, porque afinal de contas, eu não podia ficar com a cabeça, ali a mana com uma perna, etc., resolvemos fazer o que em direito se chama uma partilha amigável. O escravo veio prestar serviços à mana, sem deixar, ipso facto de nos pertencer a todos. (Senta-se. Ramiro levanta-se.) RAMIRO - Muito bem. Este pobre Liberato, que assim se chama o escravo... LOPES - Paradoxo batismal; RAMIRO - Esse pobre Liberato há vinte anos que nos presta muito bons serviços. DONA PERPÉTUA (Erguendo-se.) Muito bons serviços? Ora, sou sua criada, senhor meu sobrinho! Muito bons serviços! Um desavergonhado! Um preguiçoso! Um beberrão! RAMIRO (Com violência.) - Desavergonhado! E quer que tenha vergonha um miserável escravo! LOPES (Idem.) - Preguiçoso! E quer que seja ativo quem nunca viu a recompensa do seu trabalho! RAMIRO (Idem.) - Beberrão! Nunca se constou que o Liberato bebesse! (Todos se erguem e falam ao mesmo tempo. Gonçalo desce ao proscênio. Confusão geral.) RAMIRO - É uma injustiça! Sugar-lhe o sangue durante vinte anos, e, ao cabo, tratá-lo desta sorte! Isto brada aos céus! LOPES - Com isto já contava eu! E então quando a mana souber da idéia do Ramiro! O melhor é tratar já do depósito! DONA PERPÉTUA - É um preguiçoso, um beberrão, repito! Não presta para nada! Não me tem dado senão desgostos o maldito do negro! ROSINHA - Mas, meu Deus! o que é isto? Fale cada um por sua vez! Assim não se podem entender! Silêncio!

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MOREIRA - E então! Estamos na Assembléia Provincial? Entendam-se! GONÇALO - Isto parece mais a Praia do Peixe! Silêncio! Olhem os vizinhos! RAMIRO (Conseguindo falar mais alto que os outros, que se calam.) - Há dez anos, em 1870, penetrou um ladrão nesta casa. A senhora, minha tia, viu-o e deu um grito! O ladrão avançou, e matá-la-ia com um punhal, se o Liberato, interpondo-se, não o tivesse subjugado. LOPES - A mana deve a vida a esse desavergonhado, a esse beberrão! DONA PERPÉTUA - Grande coisa! Pois se o diabo tinha visto o ladrão, e se me ouvira gritar, não fez mais que o seu dever, que era salvar sua senhora! RAMIRO - Em que código está prescrito este dever? DONA PERPÉTUA - E sabe Deus se o negro não se achava ali com as mesmas intenções do ladrão... RAMIRO - Oh!... DONA PERPÉTUA - Os negros são capazes de tudo! LOPES - Você, mana, é um Clube da Lavoura... de saias... DONA PERPÉTUA - E você é um malcriado! RAMIRO - Bem, já vejo que perco o meu latim! A minha proposta está prejudicada. DONA PERPÉTUA - Mas o que nos queria propor este espirra-canivetes? RAMIRO - O quê? Ouça, mas não desmaie! LOPES - Tens razão. São necessárias certas precauções. Espera. (Batendo nas mãos.) Um... dois... e.. RAMIRO - A liberdade do Liberato. DONA PERPÉTUA (Saltando.) - O quê?... RAMIRO e LOPES - A liberdade do Liberato. DONA PERPÉTUA - Isso nem resposta tem. Sabem que mais? Não sejam tolos, seus pedaços d'asnos! (Falam todos a um tempo. Confusão geral.) DONA PERPÉTUA - Era o que me faltava! Alforriar o Liberato! mas por que cargas d'água, seus idiotas? ROSINHA - Mas que palavras são essas, mamãe? Veja que está aqui o Senhor Moreira. RAMIRO e LOPES - O que queremos é justo, justíssimo! Um pobre diabo que trabalha de graça há vinte anos, e não nos custou um real! MOREIRA (Caindo na poltrona, às gargalhadas.) - Ah! Ah! Ah!... Só esta agora me faria rir! Ora estes abolicionistas que querem abolir o que não é seu! Ah! Ah! Ah! GONÇALO (À parte.) - Eles não arranjam nada como Dona Perpétua. Oh! com quem se vieram meter! Logo com ela! Boas!... LOPES (Dominando com sua voz as demais.) - Bem, agora falo eu! A mana quer receber em dinheiro a parte que lhe toca e a sua mulher... Oh! quero dizer: a seu marido? (Moreira ergue-se.) DONA PERPÉTUA (Encarando-o com desdém e encolhendo os ombros.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos, para ler esta carta. (Sai pela direita, segundo plano, abrindo a carta. Rosinha vai para a janela.) LOPES (A Gonçalo.) - O que diz você, mano Gonçalo? GONÇALO (Coçando a cabeça.) - Eu?... Eu?.... Olhe, eu vou ver o Liberato... O médico ainda não veio e... (Sai pela esquerda, primeiro plano.) LOPES (A Ramiro, enquanto Moreira vai conversar com Rosinha, à janela.) - Esta casa é hoje a imagem perfeita do país em que vivemos. Cada instituição tem hoje aqui o seu emblema. Nós somos os filantropos: a utopia, o direito; aquele fazendeiro pedante, a lavoura, uma força; a mana e a Rosinha, a representação nacional: imposição, sofisma, sujeição; Gonçalo, o povo, indiferença e pusilanimidade. RAMIRO - E lá está o pobre Liberato, para simbolizar a escravatura. LOPES (Indo gritar à porta, por onde saiu Dona Perpétua.) - Ah! é assim que nos trata a mana? Pois é uma questão de capricho! Daqui a uma hora o Liberato está livre! (Descendo ao proscênio.) Toma! DONA PERPÉTUA (Voltando, com a carta aberta na mão.) - Hein? Como é lá isso? (A Moreira, que desce ao proscênio.) Nem me deram tempo de procurar os óculos!

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LOPES - É isso mesmo! Lei número 2040 de 28 de setembro de 1871. Artigo quarto, parágrafo primeiro. pecúlio do escravo. Quinhentos mil réis! Não lhe digo mais nada! (A Ramiro.) Vamos, meu filho, vamos buscar a guia ao juízo de órfãos, para fazer o depósito no Tesouro. RAMIRO - Vamos! (Tomam os chapéus, e saem, arrebatadamente, pela esquerda, segundo plano.) CENA IX DONA PERPÉTUA, MOREIRA, ROSINHA, à janela DONA PERPÉTUA (Atônita, de braços cruzados, depois de uma pausa.) - O que me diz a isto, Senhor Moreira? MOREIRA (Muito calmo.) - Digo, Senhora Dona Perpétua, que nunca vi coisa que me surpreendesse tanto! É o resultado das tais conferências abolicionistas! Só servem para semear a discórdia no seio das famílias! Mas que o Senhor Ramiro tenhas estas idéias, vá; até certo ponto merece desculpa... Mas seu irmão, minha senhora, o Senhor Doutor Lopes, um homem que me parecia tão bom, propor a alforria de um negro! Estou perplexo. Ter um negro, um só, e pretender libertá-lo! Eu cá, tenho sessenta e não liberto nem meio! (Aproximando-se muito dela e baixinho.) E é ao Senhor Ramiro que vão dar a mão daquele anjo? (Aponta para Rosinha, que se tem conservado na janela.) Ao Senhor Ramiro?! Mas pelo amor de Deus, Senhora Dona Perpétua! o procedimento de seu sobrinho autoriza-me a reiterar o pedido que formalmente lhe fiz ainda há pouco, lá na sala de jantar. DONA PERPÉTUA (Muito alto.) - É sua a mão de minha filha, Senhor Moreira. (Rosinha volta-se subitamente e desce ao proscênio.) Não há mais que discutir. (Com autoridade, a Rosinha.) Está ouvindo, menina? O Senhor Moreira vai ser teu marido. ROSINHA (Naturalmente) - Isso não é comigo, mamãe. (Gesto de satisfação de Moreira.) DONA PERPÉTUA - Bem sei, é comigo. ROSINHA - Também não é com vossemecê. DONA PERPÉTUA - Queres dizer que é com teu pai. Neste casa só se faz o que eu quero. ROSINHA - Não duvido, mas eu não pretendo casar nesta casa e sim na igreja. DONA PERPÉTUA - Menina! MOREIRA (A Rosinha.) - Mas, minha senhora, se isto não é com a senhora, nem com seu pai, nem com sua mãe, com quem é então? ROSINHA - É com primo Ramiro. DONA PERPÉTUA e MOREIRA - Hein? ROSINHA - Certamente. Eu dei o meu coração a primo Ramiro. Para dá-lo a outro homem, é preciso que ele mo restitua. DONA PERPÉTUA - Pois tem o descoco de falar desse modo em presença de tua mãe? ROSINHA - Quero a minha liberdade. Parece-me que não sou o Liberato! (Vai de mau modo para a janela.) DONA PERPÉTUA - Não é o Liberato! Senhor Moreira, segure-me, senão, deito-me a perder. MOREIRA (Segurando-a.) - Minha rica senhora, o mundo está perdido. A liberdade anda agora como Salsaparrilha de Bristol. DONA PERPÉTUA - Uma menina educada no colégio da Baronesa de Geslin! MOREIRA (Segurando-a sempre.) - Já ouvi dizer que é o melhor colégio da corte! ROSINHA (Voltando da janela.) - Primo Ramiro aí vem, Senhor Moreira. Peça-lhe que ceda o meu coração. Ofereça luvas. (Vai encostar-se a um consolo da direita.) CENA X DONA PERPÉTUA, MOREIRA, ROSINHA, DOUTOR LOPES, RAMIRO LOPES (Entrando com Ramiro pela esquerda.) - Sai, num estado de tal excitação que me não lembrei de que hoje é domingo e o juízo de órfãos não funciona.

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MOREIRA (Sorrindo.) - Mesmos nos dias úteis, a estas horas já deve estar encerrada a audiência. RAMIRO - Vimos ainda uma vez propor-lhes uma conciliação. Recebam os quinhentos mil réis. DONA PERPÉTUA (Vai como responder, mas arrepende-se.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos para ler esta carta. (Saindo.) LOPES - A mesma impertinência de ainda agora. MOREIRA - Não é preciso incomodar-se, Senhora Dona Perpétua: se me der licença, eu leio a carta. DONA PERPÉTUA - Por favor. (Passa-lhe a carta e Ramiro vai ter com Rosinha.) LOPES (Passeando pela sala, à parte.) - Nunca vi homem mais metediço. MOREIRA (Depois de ler a assinatura.) - A carta vem de Maricá, mas não é do Major Gaudêncio. DONA PERPÉTUA - De quem é então? MOREIRA - É do vigário da freguesia. (À parte.) O que será? DONA PERPÉTUA - Ah! o vigário é conhecido velho de meu marido. Leia. MOREIRA (Lendo.)- "Amigo e Senhor Gonçalo. Vou ter o pesar e ao mesmo tempo o prazer de dar a Vossa Senhoria duas notícias, uma boa e outra má." (Aproximam-se todos com curiosidade. Grupo.) "Deus foi servido chamar à Sua presença o Senhor Major Gaudêncio". E esta! DONA PERPÉTUA - Pois morreu o compadre?! TODOS (Consternados.) - Ah! MOREIRA (Continuando a leitura.) - "Abri hoje mesmo o seu testamento. Deixou tudo quanto possui à sua afilhada Dona Rosa, filha de Vossa Senhoria. Os escravos, porém, ficaram livres." ROSINHA - E se o não ficassem, eu libertá-los-ia. RAMIRO - Muito bem, Rosinha! DONA PERPÉTUA - Era o que havíamos de ver! - Continue, Senhor Moreira. MOREIRA (Que tem lido para si o resto da carta, disfarça, fecha-a e entrega-a a Dona Perpétua.) - É só. LOPES (Que se acha ao lado do Moreira, e tem também lido.) - Perdão, mas o senhor não leu tudo. (Toma a carta e abre-a.) MOREIRA - Ah! É verdade! Esquecia-me que tenho de jantar com um amigo político à Rua de São Clemente. Minhas senhoras e senhores, passem bem! (Toma o chapéu e sai.) ROSINHA - Na verdade, o Senhor Moreira era aqui demais: morreu meu padrinho, já não tinha a quem representar. LOPES (Que tem aberto a carta, lendo.) - "O testador impôs apenas uma condição: Dona Rosa só poderá aceitar a herança, casando com seu primo, o Senhor Ramiro Lopes.! RAMIRO e ROSINHA - Ah! (Corre um para o outro.) RAMIRO - Minha tia, agora não peço: exijo a liberdade do Liberato. A felicidade de sua filha está nas minhas mãos, CENA XI DONA PERPÉTUA. ROSINHA, RAMIRO, DOUTOR LOPES e GONÇALO GONÇALO (Entrando, fora de si.) - Sabem?... Sabem?... O Liberato... TODOS - O que tem?! GONÇALO - Morreu! TODOS - Morreu?! GONÇALO - De repente. Quando entrei no quarto, exalava o último suspiro. DONA PERPÉTUA (Desabridamente, depois da muda estupefação geral.) - E eu, que recusei os quinhentos mil réis!... LOPES - Com esse dinheiro far-lhe-emos um enterro decente. (A Ramiro.) Disseste que o Liberato simbolizava a escravatura; vês? Decididamente a morte é o único meio eficaz de emancipação. [Cai o pano]

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À PORTA DA BOTICA Esta é a segunda peça de Artur Azevedo, escrita aos 16 anos. À PORTA DA BOTICA Cena da época PERSONAGENS ANICETO - tipo da atualidade DIOGO OLIVEIRA Um rapaz de 12 anos PASSANTES CENA ÚNICA Vista de rua escura. À direita uma botica, à porta da qual vêem-se algumas cadeiras. ANICETO, depois TODOS (por seu turno.) ANICETO (Velho jarreta, entra fumando e observando as cadeiras.) - E esta! ainda ninguém! (Vê o relógio.) Pois já lá vão sete e meia! E os meus colegas não vêm Pra falar da vida alheia! Já as cadeiras estão No seu lugar competente... (Senta-se.) Como corre a viração Às portas de uma botica! Se o juízo não me mente, Quem está doente, bom fica, Fica bom quem 'stá doente... Temos bem que dar à língua Aujord'hui, meus colegas, Esta gentinha anda à míngua De meia dúzia d'sfregas... Isto de andar a falar Da vida do semelhante É gosto bem singular, Mas não será doravante: É uma necessidade Pra dar que falar ao povo, Mentira seja ou verdade, Só se quer - assunto novo! - (Levanta-se.) Os senhores já adivinham O que lhes conto? por Cristo? Ora, senhores, não tinham mais do que olhar: (Indica.) Esta casa é uma botica Que vende sempre a quem passa:

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Pastilhas de mel d'angica Cataplasmas de linhaça... O lugar é solitário. Nem mesmo tem lampião... (Confidencialmente.) - Cuidado com o boticário Que não passa dum... boticário, E o seu caixeiro, o Senhor Mário, Maluco como o patrão Eu não falo da vida alheia. Isto é só fazer idéia...(Mostra as cadeiras.) Nas cadeiras que aqui 'stão Com muita constância tem, As noites, uma reunião, Um dia sim, outro também... Aqui se fala de tudo. Tudo por aqui contado é: Sofrendo o pai do cascudo, Sofre o avô do jacaré... Se um sujeitinho lá bifa Ao patrão certa quantia, Se aquele faz uma rifa, Se um outro não anda em dia, Se um quebra, foge aos credores, Se outro ajunta depressa, Se aquele já tem amores, Mal o avô-torto começa Há que ser analisado Na porta do boticário: O pobre, o remediado, O econômico perdulário! Eu não falo da vida alheia, Isto é só fazer idéia! Falamos todas as noites No que é no que fora, Todos aqui chucham açoites, Em todos os meto a tesoura! E no que me der o cavaco, Nele mais se mete a faca, Hei de levar pro tabaco, Hei de cortar na casaca! Eu não falo da vida alheia Isto é só fazer idéia... (Entra Diogo.) DIOGO (Com um charuto apagado.) - Seu Aniceto, dá-me o seu fogo? ANICETO - Por que não, Senhor Diogo?... (Diogo, depois de acender o charuto, restitui o de Aniceto sem agradecer-lhe. Sai.) ANICETO (Só) - É impolítico o Senhor Diogo! Impolítico... malcriado! Eu servi-lhe com meu fogo, E não me disse obrigado!...

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Este sujeito é um tratante, Cautela, muita cautela, Fala dos outros bastante, E furta sem mais aquela! Ainda há três dias Queixou-se um negociante Que vendeu mercadorias A ele, qu'é um bom tratante! Ouvi dizer numa venda Que pediu a uma loureira O anel - Deus me defenda - Pra pagar a lavadeira: Eu não falo da vida alheia Isto é só fazer idéia...(Passa pelo fundo um passante.) Viram aquele sujeito? Cuidado, muito cuidado, Diz que pra cousa tem jeito, É um tratante refinado, Ou refinado tratante, Eu cá não faço questão De vogal ou consoante, De ser cachorro ou ser cão, De ser tratante ou ladrão! Me disseram qu'outro dia A firma imitou do Sousa Com uma tal maestria, Que ninguém deu pela cousa! E qu'anda co'uma donzela E um constante derriço, Subindo pela janela Sem que ninguém dê por isso! Enfim 'stou capacitado Qu'é um tratante de mão cheia; Mas olhem: este seu criado Não fala da vida alheia Isto é só fazer idéia... (Passa outro tipo.) Aquele é o tio do homem Que há pouco pediu-m'o fogo, Dizem que os cobres lhe somem Sempre na banca do jogo; Mulher e filhos não comem: A panela está no fogo, Ou - está no fogo a panela, Sem nada ter dentro dela! A filha já tem morgados E o pai inda a tem por casta: - O velho é maluco e basta!... (Entre parêntesis - não gosto Da história do tal tijolo, Por causa dele eu aposto: Se perde muito o miolo! - Mas pensem agora os senhores, Que apesar da circunstância,

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Não tenho também amores Com a Senhora Dona Amância! -) Mas voltemos à questão, Ia dar uma opinião: Enquanto o velho se abrasa, No voltarete se pega, A menina fica em casa, Pra jogar a cabra-cega! Eu não falo da vida alheia Isto é só fazer idéia... (Passa o rapaz de 12 anos largando gordas fumaças de um charuto.) Olhem pr'aquele fedelho Como gosta da fumaça! Decerto toma em conselho Como aí qualquer chalaça! Parece filho do Neves, Nada há que mais pareça... O Neves Ramos? que deve Os cabelos da cabeça? (Aponta para um sobrado.) Olhem: nesta casa moram Três ou quatro sujeitinhos: O primeiro sei que namora Uma viúva e já agora... Etcoetera e tal... pontinhos... Mas como tem bons cobrinhos, Como essa viúva é rica, Não se importa cos vizinhos. Nem com a porta da botica! O segundo é um soldado: O terceiro é um agiota, Que apesar d'haver quebrado, Não deixa d'andar janota! O quarto não sei quem é: Mas eu hei de me informar. (Isso é mais velho que a Sé.) Pra vir dele aqui falar! Sei que se chama Fernando, E trabalha, ... vadiando; Se lhe pergunto a razão Por que sempr'anda na pândega, Responde: Que admiração! Sou empregado na Alfândega! Eu não falo da vida alheia Isto é só fazer idéia... Mora naquele sobrado Uma moça que fabrica Tijolo com o namorado; E o pai não se certifica, Nem pergunta a Dona Anica O que aquilo significa, Quem é aquele rapaz, Não teme a língua dos dois, Nem a... porta da botica!

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Eu não falo da vida alheia Isto é só fazer idéia... Na outra - pegado - mora Um médico muito excelente, Da carreira inda na aurora, Já tem morto muita gente! Dizem que a cura prolonga Co'algumas drogas fatais, Para a moléstia ser longa, E os cobres renderem mais! Tem no convento um irmão De aventuras muito farto, Roubou a filha ao patrão Abandonou-a num quarto (Comovido.) Coitada! morreu de parto! Eu não falo da vida alheia Isto é só fazer idéia... (Aparece Oliveira vestido para o baile. Ao passar pelo fundo, cai-lhe alguma coisa e abaixa-se para apanhá-la.) Quem é aquele sujeito Que abaixou-se na rua?... Inda não o vi bem de jeito, E agora... escondeu-se a Lua! (Vai para junto de Oliveira e, sem que ele dê por isso, corta-lhe a aba da casaca com uma tesoura.) OLIVEIRA (Consigo.) - E esta! perdi um botão... Quem achar seja feliz... Escapuliu-me da mão... ANICETO (À parte.) - Eu não ouço o que ele diz. OLIVEIRA (À parte.) - Também o que pode valer? Custa só meia pataca O que acabo de perder! (Sai) ANICETO (À parte.) - Já lhe cortei a casaca (Desce à cena com a aba na mão.) Este sujeito é o Oliveira Ignoro o comportamento... Vejamos se na algibeira Tomo algum apontamento! (Tira um lenço da algibeira da aba.) Um lenço fino de Irlanda; Não 'stá inda pago. Uma aposta. A marca está doutra banda... Vejamos: José da Costa! Um lenço do Zé da Costa Na algibeira d'Oliveira! Ah! já vejo que ele gosta Como eu da ladroeira! Oh! descaramento imenso! Que ação negra e medonha! Roubar... roubar um lenço! É muito pouca vergonha! Conto hoje na botica O miserável atentado, Amanhã o povo fica

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Ciente... (Tirando dez tostões da algibeira da aba.) Muito obrigado. (Remexendo) Ah! inda um papel se pilha! Vejamos o que ele diz! (Vendo.) Subscritado a minha filha (Lendo.) "Joana, sou mui infeliz Como o nosso amor puro e santo; Te espero amanhã no canto, Daremos uma fugida; Joaninha, minha vida, Meu querubim, meu amor, Nem mais aqui voltaremos, Teu pai esquecer devemos, Não passa de um falador! Manda dizer por escrito, Se o pequeno, que nasceu, Está feio ou 'tá bonito Está vivo ou já morreu!" (Desespera.) Minha filha ter um filho! Minha filha desonrada! Ai, meus amigos, se os pilho... Não me faltava mais nada! Em vez de estar a vigiá-la, Pois não tem nada de feia, Eu vinha cá pra senzala Falar da vida alheia! Vou abandoná-la! um capricho: Estas cousas não consomem... Porque um gato é um bicho, E um homem foi sempr'um homem! (Saindo arrebatadamente.) Vou casá-los, vou casá-los... [Cai o pano]