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Teatro - tnsj.pt Os Desastres do Amor.pdf · que eu julgava que tínhamos vindo a abrir, se tinham tornado em parques de estacionamento ou auto ‑estradas. Assim não gostava. Ou

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Teatro Nacional São João

15–24 Mar 2013

adaptação e colagem das seguintes peças e textos de Pierre de Marivaux L’Amour et la vérité (1720)Le Chemin de la fortune (1734)La Réunion des amours (1731)Félicie (1757)Le Cabinet du philosophe (1734)

tradução dos textos originais Luís Lima Barreto Luis Miguel Cintracolaboração para as traduções dos trechos em castelhano e italiano Sergio Adilloadaptação Luis Miguel Cintra

cenário e figurinos Cristina Reisdesenho de luz Daniel Worm d’Assumpção

interpretaçãoRita Blanco Felícia, uma viúva de meia ‑idade Sergio Adillo Amore, um deus descido à terra Luís Lima Barreto Senhor Verdura, novo hóspede a quem passam a chamar Plutão Nuno Nunes Dimitri, um ucraniano, jardineiro do parque José Manuel Mendes Senhor Escrúpulo, porteiro do Hotel Fortuna Palace, a quem chamam Mercúrio

Teresa Madruga A Doutora, madrinha de Felícia, dona do Fortuna Palace, a quem às vezes chamam Virtude e Diana e Fortuna Rita Durão Modéstia, rapariga séria, ao serviço da Doutora Luis Miguel Cintra Dom Cupidom, um hóspede permanente que se crê Cupido; Redondinho, outro trabalhador eventual do Fortuna PalaceVítor D’Andrade Apolo, nick name de um escort de luxo no Fortuna PalaceSofia Marques Dona Minerva, rececionista e gerente do Fortuna Palace

OS DESASTRES DO AMOROS DESASTRES DO AMOR Ou FORTunA PAlAcE

a partir deMARivAuxencenaçãoLuiS MiguEL CinTRA

assistência de encenação e contrarregra Manuel Romanoassistência de cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira Luís Miguel Santosdireção técnica Jorge Estevesconstrução e montagem de cenário João Paulo Araújo Abel Duartemontagem e operação de luz e som Rui Seabraguarda ‑roupa e conservação do guarda ‑roupaMaria do Sameiro Vilelacostureiras Maria do Sameiro VilelaTeresa Balbicolaboração musical para canção napolitana Eurico Carrapatosocolaboração para as canções e para o sotaque ucranianos Olga Pachenko Nina Guerraassistência de produção Tânia Trigueirossecretariado da companhia Amália Barriga

O espetáculo integra trechos de vários temas de Nino Rota, o prelúdio de La Traviata de Giuseppe Verdi e alguns antigos jingles publicitários. Sergio Adillo toca e canta a canção napolitana “Dicitencello vuje” de Roberto Murolo, com arranjo de Eurico Carrapatoso, e Luis Miguel Cintra cantarola “É o Amor” de Zezé Di Camargo e Luciano.

produção Teatro da Cornucópia

estreia 1Nov2012 Teatro do Bairro Alto (Lisboa)

dur. aprox. 2:20 com intervaloM/12 anos

qua‑sáb 21:30 dom 16:00

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Talvez secreto, talvez bem legível para quem analisa os seus Diários e as suas Obras Diversas, há um tema que habita o pensamento de Marivaux: que se pode apreender a realidade, ou melhor, a vida, ou melhor, a natureza, ou até mesmo o amor apenas até certo ponto, e que para lá disso erra ‑se. “Pintai a natureza até certo ponto, mas renunciem a apanhá ‑la no que ela tem de mais escondido, senão parecerá que ides para além dela ou que a perdeis.”Em primeiro lugar, acontece ‑lhe contar sonhos ou visões, nos quais visita palácios, jardins, regiões divididas em duas partes contrastadas. Por exemplo, um viajante visita a moradia da Beleza; ela é cheia de simetrias e é muda (Le Cabinet du philosophe). Depressa fatigado, chega à casa de Não sei quem, onde tudo está em desordem e ao acaso; circulam por ali mil graças sem cessar, ele procura em vão o Não sei quê, que sem cessar diz: aqui estou.

françois regnaultIn Le Spectateur. Paris: Beba, 1986.Trad. Luís Lima Barreto

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ESTE ESPECTÁCuLO

luis miguel cintra

criador. Fiquei de joelhos a ver se aprendia. Genet, sobretudo, é um dos meus santos. Mas a vontade de filosofar explicitamente foi patente em cada uma dessas montagens e no amor por Genet e Claudel… Comecei a botar discurso com uma arrogância que nem todos, espero, me perdoarão.

Não me arrependo, mas tenho ‑me perguntado porque me ando a portar assim. Acho que já sei. Preciso do teatro como do pão para a boca. Para pensar. E sobretudo estar com os outros. Um espaço pelo qual neste momento já é preciso lutar. É no teatro que tenho tentado aprender a viver e, com tanta peça de todas as épocas que estudei, tenho vivido em permanente estado de reflexão sobre os seres humanos e sobre a evolução das sociedades. Com palavras antigas ou modernas, inseridas em cenários e jogos de actuação que elas não previam, fui muitas vezes pensando que passava um discurso paralelo que era um diálogo com o público. Já ia tentando botar discurso sem palavras, com as linguagens de que o palco se serve para falar. Nunca esqueci o que tenho dito e que no cinema de Oliveira é um pressuposto explícito: um filme ou um espectáculo é um acto político, uma tomada de posição.

Durante muitos anos acreditei desmesuradamente no poder de comunicação do teatro (falo de discussão de ideias, de provocar sentimentos, pensamentos, sensações), com um desmedido amor a tantas obras ‑primas, sobretudo do chamado teatro clássico, que ficaram como sinais de vidas de autores e de actores que lhes deram vida, e que a mim me provocam momentos de tão grande prazer. Sou actor e sei como

De há um tempo para cá, em vez de manter o respeito pelos textos que sempre defendi, tenho trocado as voltas às peças que tenho vindo a encenar. Em A Cidade, misturei pedaços de quase todas as comédias de Aristófanes. No Miserere, desrespeitei o Auto da Alma de Gil Vicente, misturando ‑lhe outros textos, e tornando ‑o num escândalo para todos os que conhecem bem o único reconhecido génio da literatura dramática portuguesa. No Schnitzler (A Cacatua Verde) meti Heiner Müller. No Fingido e Verdadeiro, fazia verdadeiras violências à peça original de Lope de Vega, metendo‑‑lhe dentro pedaços de crónicas, textos de Santo Agostinho e Tertuliano e da Flos Santorum, o que talvez tenha aliás contribuído para que em Almagro, no Festival de Teatro Clásico, o público, veemente defensor do esplendor do teatro do seu século de ouro, se revelasse uma plateia perplexa, que foi saindo até nos deixar ficar no fim apenas com uma vintena de espectadores. Em O Sonho da Razão, tive a lata de transformar alguns dos mais espantosos diálogos filosóficos do século das Luzes numa espécie de peça de boulevard. Só nos textos de Genet e Claudel não mexi, e tentei dar corpo ao meu respeito por quem, nesses casos, conseguiu ser radical e verdadeiro

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mesma cidadania que os espectáculos mais cuidados, enfim, o perigo de se esvaziar de conteúdo era tanto, que me desinteressava cada vez mais prosseguir como se nada fosse, atrás de êxitos e instalado em cego prestígio. Parecia que os pequenos trilhos de sensibilidade, que eu julgava que tínhamos vindo a abrir, se tinham tornado em parques de estacionamento ou auto ‑estradas. Assim não gostava. Ou voltava para casa ou havia que dar uma volta sobre mim próprio.

Suponho que é parecido o que sentem as pessoas que deixaram esvaziar uma relação, o companheiro ou companheira dorme com meio mundo, mas o casal continua a fingir que nada mudou. Não, isso não. Ou se divorciam ou reinventam a sua relação. Continuando com a comparação do velho casal, continuar a fazer todas as semanas o mesmo jantar fora no mesmo restaurante, dar o mesmo passeio ao domingo, começa a soar a falso. E falso era este aparente boom. Esta aparente estabilidade assentava toda num equívoco, para não dizer numa mentira. As condições de trabalho pioravam, fazíamos verdadeiros milagres de produção, mas ninguém dava por isso nem se interessava. Começaram a tirar artistas das cartolas, começaram a ter peso os CV cheios de mini ‑cursos. Enfim, tinham mudado os tempos.

Foi aí, e coincidindo talvez esta sensação com uma consciência do envelhecimento da própria companhia, e com uma nova noção de que a passagem do tempo existe, de uma mudança de idade que trouxe uma necessidade de fazer balanços, de perceber o que tinha sido a vida e uma maior exigência ao

se inventa ou reinventa vida quando se actua no teatro.

Mas de há uns anos para cá, comecei a sentir que a evolução da sociedade me começava a tolher, que me queria tramar. Se, por um lado, tinha aumentado o público, se muito mais gente ia ao teatro, se a Cornucópia tinha conquistado um prestígio inegável, o público cada vez me parecia mais cego e surdo, o mesmo acontecendo com a actuação dos actores. Afinal, pouca gente percebia o que tínhamos querido dizer com cada trabalho. E o mesmo passava a acontecer com o trabalho artístico dos outros. Passou a intrometer ‑se no nosso discurso um outro discurso feito, esse sim, só de palavras e quase sempre tão autoritárias e ocas que dificultavam a sensibilidade do espectador à comunicação que tentávamos ter. E era a linguagem da publicidade, tantas vezes escondida atrás de uma máscara de respeitabilidade cultural. O que fazíamos tinha mesmo passado a entrar num mercado de produtos culturais rotineiro, cada vez mais pré ‑formatado e classificado. A relação do público com o teatro começava a parecer ‑se com a que tinha com a televisão, normalizada, banal, europeizada, o teatro começava a ser um hábito em que tudo cabia e nada dizia. Fazer um espectáculo, ir ver um espectáculo não mudava nada a vida de ninguém. Porque as pessoas estavam condicionadas por um marketing baseado mais na aparência que na verdadeira capacidade crítica. Os programadores, ou seja, os intermediários, começaram a dominar a praça. O próprio repertório passava a ser banal. Gato por lebre. Obras ‑primas ao desbarato, feitas de qualquer maneira, passavam a ter a

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teatro como fenómeno de verdadeira comunicação, que senti vontade de radicalizar as coisas. De mais do que ao carinho, ao amor, à delicadeza (coisas difíceis nesta voragem), recorrer ao choque, à brutalidade, à surpresa. E expor ‑me pessoalmente. Dar ainda mais a cara.

O espectáculo Miserere foi o ponto de ruptura. Em boa hora, a então Direcção do Teatro Nacional D. Maria II nos convidou para fazer um clássico português. Resolvi rebentar com a encomenda, expor dúvidas profundas e até dúvidas em grande parte pessoais. Certo, aliás, de que só sendo extremamente pessoal se começa a falar mesmo com os outros. E a surpresa foi enorme. Porque vi o teatro tocar como nunca outra vez os espectadores, vi outra vez gente a chorar. Voltei a ver alguma coisa acontecer de verdade. Do repertório só me apetecia ir buscar os textos mais radicais. Foi assim que fomos dar a Genet e de certo modo a Claudel, outro gigante igualmente radical, tanto que, coisa rara, ainda é um autor que parece não estar ao alcance de todos, nem talvez nunca venha a estar, porque é poesia pura, quase intraduzível, extenso, impossível de integrar na lógica do fast food. Se não contarmos com a grande oratória cénica, Jeanne d’Arc au Bûcher, que fizemos com o Teatro Nacional de São Carlos, na Cornucópia foi só uma obra menor que nos foi (ainda?) possível abordar com Morte de Judas, um texto que nem foi escrito para teatro. Mas tanto Genet como Claudel, dois radicais que nunca escreveram a pensar na rotina teatral e muito menos em mercado, me empurraram na vontade de dessacralizar os textos, surpreender pela manipulação

dos clássicos, em vez de amorosamente os dar a ler. E neste descontentamento fui acompanhado pelo grupo de pessoas com quem tenho vindo a trabalhar.

De facto, a estrutura da Cornucópia, que, mesmo que quisesse, não se integra nos mais económicos e rentáveis meios de produção, nem é a solução ideal para produzir bem, depressa e barato, nem pensou nunca em marketing, está preparada sim para um trabalho artesanal, cuidado, amoroso dos textos, e continua a investir pessoalmente no trabalho. Não faz espectáculos como quem apanha um táxi, nem os seus actores se resignam facilmente à situação de serem táxis, correndo de uma novela para um anúncio ou um papel de três dias num filme que “apareça”, ou numa série, governados por agentes que os rentabilizam e se esforçam por subir a sua cotação no mercado. E à noite, ali em três horinhas de ensaio, despacharem um espectáculo que lhes dá e ao público a ilusão de serem mais sérios. E põem limites à prostituição na publicidade. E há alguns casos em que este sistema é levado com tanto trabalho, talento e sacrifício que a arte é como a fénix, sempre que regressam da guerra parece que renascem. Mas são poucos. Há na estrutura da Cornucópia um verdadeiro amor e respeito pelo trabalho que a Cristina e eu temos vindo a orientar há tantos anos, e nem por um momento houve alguma vez pressão da parte dos que trabalham connosco para mudarmos de rumo. Quando passei a intervir, digamos, muito mais como autor que como encenador nos espectáculos, fui apoiado por todos da maneira mais calorosa. Os dois casos mais extremos de intervenção minha

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preciso para comer, para um artista que sente deveres para com a sociedade, sobreviver significa não deixar de falar com os outros, significa não deixar de inventar, ir adiante. E para nós significa também, como não?, não perder um engenho especial para, nos meandros da burocracia, encontrar os atalhos capazes de solucionar os problemas concretos da prática artística, aqueles que não chegam a ir ao ecrã dos computadores, nem às estatísticas, os verdadeiros problemas da prática cultural: que peça conseguimos fazer, que tempo de preparação necessita cada uma, que programa se consegue inventar com menos gastos, como solucionar os elencos, em suma, fazer o que manda o mais odioso dos provérbios: “A pobreza aguça o engenho”, como já há tanto tempo, inda ia a procissão no adro, e na sua breve passagem pelo governo, nos disse uma vez Vasco Pulido Valente. Que é como quem diz: “O problema é vosso”. E digo eu: mas quem o criou foram vocês. E podíamos continuar a desfiar as pérolas de estilo como o “quem se lixa é o mexilhão” e, quando menos damos por isso, estamos no: “O último a sair que feche a porta”. E entretanto tanto aguçámos o engenho, que nem demos por isso que nos lixaram a vida. “Queres Cultura, toma! Mete ‑te mas é no teu lugar!”

Neste contexto, As Quatro Meninas que tínhamos programado pareciam não vir a propósito. Picasso conseguiu tudo transformar em alegria, em energia pura. De tanto não sou capaz. Na nossa actual situação, valha ‑nos talvez alguma filosofia. Perante a chacina, é difícil ir mais além que conseguir um distanciamento que se confunde com um melancólico humor. Que esconde a raiva.

nestes espectáculos da última fase, o Miserere e o Fim de Citação, foram acarinhados internamente com o máximo entusiasmo.

Mas mesmo que muita gente ainda não tenha dado verdadeiramente por isso, a situação política neste momento mudou, explodiu. A verdade veio ao de cima. A máscara do mercado normalizado caiu com a chamada crise. O público vai mais facilmente a uma manifestação contra a troika e o governo que o rouba do que a um espectáculo que o desrespeita e lhe fará gastar uns euros com um simulacro de criação do que é de facto qualquer coisa. Mas a crise não é só económica, é cultural. O que se passa na televisão, a inconsciência do tratamento que os governos que elegemos dão à Cultura, revelam acima de tudo uma ignorância enorme, o princípio de uma época que será de barbárie, se ninguém lhe criar alternativas. Os programadores mal conseguem esconder que salvam a sua pele mais do que programam.

Aprendi com João Bénard da Costa no Liceu Camões: Cultura é aquilo que fica quando tudo o que aprendemos se esqueceu. Pois é, mas para esquecer é preciso primeiro ter aprendido, e agora chegou à idade maior e ao poder quem já não aprendeu nada, chegaram os produtos da degradação do sistema de ensino, para quem nada de cultural corresponde a uma verdadeira necessidade. Entrámos no tempo da ditadura da burocracia alheia a qualquer produção de sentido.

Perante esta situação é inevitável a pergunta: como sobreviver? Mas o que quer dizer sobreviver? Depende do que viver significa. Se para muitos sobreviver é apenas fazer o que é

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Trata ‑se neste momento de, pelo menos, não desistir de compreender.

Lembrei ‑me muitas vezes de Marivaux durante a preparação de O Sonho da Razão. Autor mais velho que os iluministas, e que eles vieram a admirar e a quem interessou a alma humana, a sua cegueira, a sua incapacidade de viver feliz, mas que não batalhava ainda por nenhum programa de mudança. Olhava a vida com um sentido ético e com um bom senso que todo se aplicava a deitar abaixo as máscaras que escondiam o mau viver. Encontrava o prazer num infinito jogo de inteligência, numa lucidez que, considero, nos seria hoje fundamental. A Cornucópia já o abordara em 1974, com o seu segundo espectáculo, uma encenação do Jorge Silva Melo no Terraço do Capitólio. Se não me engano, era a ideia da “dança em cima de um vulcão”, sendo vulcão metáfora de violência social, talvez já revolução, aquilo que dizíamos para o definir. Era de luta de classes que se falava, pensávamos nós. Também estará lá isso. E nas peças que representámos, A Ilha dos Escravos e A Herança, está com certeza. Desta vez, era um Marivaux filósofo que me apetecia, com um programa de acção parecido com o que uma das suas primeiras personagens, a personagem da Verdade, formula num dos seus primeiros textos dramáticos, que viemos a usar como prólogo deste nosso espectáculo: O Amor e a Verdade.

a verdade: Venho executar um projecto de vingança; está a ver aquele poço? É ali que me vou retirar; vou ‑me fechar lá dentro. o amor: Ah, então sempre é verdade aquele provérbio que diz que a Verdade

está no fundo do poço. E como é que entende que ali é que se vai vingar?a verdade: Quem beber a água daquele poço será forçado a dizer tudo o que pensa e a abrir o seu coração a toda a hora; com o tempo hei ‑de encher esta cidade enorme de gente inocente, que com a sua franqueza há ‑de perturbar o indigno comércio de complacências e de logros que a Lisonja aqui introduziu mais que em qualquer outro lado.

A brincar se diz que o mal é a Mentira. E mais importante ainda: todos somos culpados. Que a cidade não minta! Queremos uma cidade de inocentes.

Tinha ‑me dito a Rita Blanco a propósito de um desses últimos espectáculos da Cornucópia, como a Oliveira disseram que não falava dos pobres: “E o amor?” Disse ‑lhe eu: “Como? Não está lá?” Aquilo deu ‑me que pensar. Quando comecei a folhear as obras completas de Marivaux, logo deparo com o Amor a receber a lição da Verdade! Nem duvidei um instante, agarrei ‑me a esse diálogo, e nos textos do fim da vida, já o nosso bom dramaturgo tinha 70 anos e várias obras ‑primas geniais escritas, vou encontrar em Félicie, uma peça curta e mal ‑amada, um Marivaux que, com uma economia perfeita, inventa uma personagem humaníssima, tão convencida de que procura a Verdade, mas que descobre a impossibilidade de amar. Passou a quase chamar ‑se Felicidade. Mas chamou ‑lhe Felícia. Como diz Camões: “Por antífrase, infelice”. Chama ‑se Felícia, e tem uma madrinha que é uma fada, que é, como em tantas obras de Marivaux, um duplo de um encenador ou Deus em cena, um inventor de jogos educativos, sim, e que

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Num texto dramático inserido num texto filosófico de Marivaux, Le Cabinet du philosophe – texto afinal dum heterónimo (sim, sim, gostamos do cache ‑cache, só brinca às escondidas quem tem cara para se mostrar), porque Marivaux pretende que são folhas dispersas de um filósofo que ele teria encontrado –, aparece a mais explícita peça de Marivaux: Le Chemin de la fortune. Em nenhuma outra o poder do dinheiro e a corrupção são tratados tão claramente. Chega a pôr em cena como guardião do Palácio da Fortuna uma personagem chamada Escrúpulo, pela qual todos têm de passar para aceder ao Palácio da Fortuna. É o lado simbólico da sua escrita dramática que aqui domina e talvez por isso ele a não assine senão debaixo de um disfarce. E não é o mais requintado e cultural prazer o de jogar com a ambiguidade da própria palavra Fortuna? Fortuna é sorte? (“Erros meus, má fortuna, amor ardente”, diz Camões, levando a sério o amor.) Ou é aquele dinheirão que a gente queria ter? Naquele texto encontrei eu não o caminho para o seu Palácio, mas o atalho que levava à pertinência imediata dos debates de Felícia à procura do Amor. Mas também na peça Félicie, bastou traduzir mal o “O mundo é isto” da Madrinha por “Isto é o mundo” para que o parque da casa da Madrinha, e que é o mesmo parque convencional dos quadros de Watteau e Fragonard, se tornasse no Palácio da Fortuna ou, brincando um pouco mais, no Fortuna Palace. Se tornasse na terra do “indigno comércio de complacências e de logros” de que a Verdade se queixava. Poder do dinheiro. Sim, a brincar a brincar, um passo mais e era desta vergonha política

aqui a faz acompanhar de uma falsa Modéstia, deixa ‑a enganar ‑se, mostra‑‑lhe como isso de verdade e de mentira não é tão simples quanto se podia pensar. Marivaux tem isso também de genial: põe a Verdade a fazer jogos de teatro. (Le jeu de l’amour et du hasard é o título de uma das suas peças mais conhecidas.)

Fá ‑lo com um requinte e uma leveza que nós não temos. Mas o que lá está no fundo é o mesmo desgosto e o mesmo desejo de pureza, uma confiança no natural que, transposta para o nosso tempo, sempre identifico com a inocência, no seu caso apaixonada, da lucidez de Pasolini perante a sociedade capitalista. Deixem ‑me citar o próprio Marivaux: “Que diz da minha moral? Não é muito reflectida porque é natural. Há pessoas que moralizam de uma maneira tão sublime que o que dizem só é feito para ser admirado, mas o que eu digo aqui é para ser seguido. É esta a boa moral. O resto não passa de vaidade, de loucura”. No fundo, a fazer espectáculos represento o que me vai na cabeça.

Percebi que muito do que agora me povoa a cabeça está também nestes jogos, neste marivaudage desde sempre mal entendido pelo espaço de liberdade que deixa ao espectador. A arte é tão necessária quanto não pode ser impositiva, autoritária. Claro que em Marivaux há desencanto, há desencanto cultural, mas há também um tão delicado prazer de descobrir os meandros da alma humana, um tal prazer de tudo entender, que dá a volta, e volta a trazer ao teatro a alegria. E apeteceu ‑me adoptá ‑lo e adaptá ‑lo. Viver com ele o fim de uma civilização ou a chegada de um novo mundo que ainda não conhecemos e ainda chamamos barbárie.

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em que nos movemos que se estava a falar. Deste fim do mundo. E foi assim que a busca do amor acabou por se passar nesse hotel imaginário povoado por pequenas antipatias, mentiras, palavreado de semi ‑mortos. E por um estrangeiro, o único que naquela história amou e que transformámos num pobre, num imigrante dum antigo país de Leste (ucraniano?), como agora conhecemos tantos em Portugal e que sabem o que custa lutar pela vida. Mais do que um pobre, vimos nele um homem sem lugar, que não fala bem a língua da terra em que vive e para quem a moral é a liberdade de escolher uma vida que se preze de o ser, não o código inconsciente e repressor de velhos comportamentos herdados de um apodrecimento cultural.

Sim, depois de armadilhada esta fusão das várias peças curtas, chego

à conclusão de que o grande tema do espectáculo acabou, no fundo, por ser: a Cultura. Ou antes, o esvaziamento cultural. Em La Réunion des amours, Marivaux tentou escrever outra peça curta em que as personagens são os velhos deuses do Olimpo, tão retratados na pintura da época em decorativas mas requintadas cenas galantes de damas e cavalheiros, tão picantes quanto, por serem deuses, se podem pintar despidos no meio de sumptuosas camas de flores. Um arrepio de decadência que só a melancolia dos melhores torna em imagens de uma doce e inconsciente dança da morte, um embarque que algum Caronte preparou. Pois foi esse universo de esvaziamento cultural – uma patética discussão entre dois deuses que em princípio simbolizam o mesmo, o que de mais humano se conhece, e

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de uma “mulher caída”, maravilhoso tratamento musical do mais ultra‑‑romântico sentimentalismo, hoje esvaziado também da paixão verdiana e veículo de marketing de divas e mercado de discos e salas de espectáculos. Povoei o espectáculo de referências afectivas. Há mil referências ao que eu ainda vivi como verdadeira Cultura e hoje é já lixo retro. Também, já no tempo de Marivaux, estava esvaziada de sentido a mitologia clássica a que ele e a cultura ocidental continuaram a recorrer e que hoje já é, na melhor das hipóteses, igual aos calhaus que os sites arqueológicos ainda vendem como Cultura, com entradas a preço de fogo, mas já são só pretexto para shop de recuerdos e fotos para pôr no facebook. Também a minha cabeça já é antiga e, para representar um mundo decadente, acabei por representar a perda, o esquecimento, da minha própria Cultura, com alguma nostalgia, que mo perdoem: música de Nino Rota e todo o cinema italiano dos bons tempos, que tem por trás as comédias americanas e, em especial, as de Howard Hawks, a Nápoles do Sole Mio e dos De Filippo, os jingles publicitários do meu tempo, as feiras, à mistura com coisas mais recentes, como os telemóveis, a mania da música brasileira. Até meti referências a espectáculos da nossa primeira fase (Karl Valentin, com o escadote n’O Projector Avariado, o ambiente do Casimiro e Carolina). Mas foi já há muitos anos, já foi no século passado. E referências pessoais. A frase “Mio dio como sono caduta in basso!”, que pus na boca de Felícia, é uma citação de um filme italiano de erotismo soft que passou na minha juventude e era a torto e a direito repetido nas minhas conversas com o Jorge de então.

cada um havia de inventar: o amor – que escolhemos para habitar o parque onde Felícia procura a felicidade. Um como que hotel de termas povoado por velhos resmungões entretidos em maledicências e obscenidades, um ou outro escort, uma Dona Minerva que deixou de ser a deusa da inteligência, o símbolo da polis ideal, a Atena da Acrópole, e passou a ser uma funcionária arrogante, segura no seu poder de administração, puta até dizer chega. E no entanto… seres humanos. “Pobre gente”, diria a Fraternidade se existisse. E pobre senhora viúva, Felícia ‑Felicidade! Em que mundo a Fortuna a meteu! Mundo poliglota, como a nossa Europa, e que em inglês, a língua dominante, só o que solta na palavra final é: FUCK. Convenhamos que essa palavra, no contexto do epílogo em que a inserimos, no momento final da peça, seja ela um conselho, seja uma exclamação de surpresa ou mesmo de repúdio, perante a morte de duas vítimas, é demasiado simplista para o amor. Mas a sua ambiguidade é tão divertida como pertinente. Que acto falhado assentaria melhor à personagem do amor nobre já deposto, que, verificando as consequências de uma recusa do desejo, fugir ‑lhe a língua para uma actividade tão essencial? O ovo de Colombo para os dilemas do espírito. A única verdade possível, a simplificação afectiva mais comum nos nossos dias como compensação para o vazio cultural?

Acabei por fazer, nascido de improviso, um guião e depois um espectáculo minado de referências culturais. Nem resisti à citação operática, com a inclusão do prelúdio da Traviata de Verdi, a partir da Dama das Camélias, dolorosa história

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Tudo isso escapará aos espectadores mais novos. Paciência. Consequência do esvaziamento de que falo. Só lhes fará bem sentir alguma falta de cultura que a wikipédia não soluciona. Mas mais do que isso importa que se arrepiem com a lição que a dona do hotel, a Doutora, como passei a chamar à Madrinha de Felícia, dá à pobre senhora “Infelícia”: a auto ‑castração, o cinismo como única forma de subsistência, a desistência do amor. Se é com humor que tornei em operática tragédia o fim de Le Chemin de la fortune, nem por isso ele deixa de ser o ponto mais emotivo da querela cultural que resolvemos pôr em cena. Um crime. Muitos crimes. O perigo nosso de nos resignarmos a sobreviver em vez de viver mesmo.

Servi ‑me dessas referências culturais antigas para construir um mundo de fábula, suficientemente contemporâneo para não o afastarmos do nosso tempo, mas suficientemente antigo para funcionar como conto. O que a mim mais me interessa é como funcionam as cabeças, lá como agora, as inteligências daquelas personagens denunciadas pela maneira como falam e se relacionam umas com as outras.

Tanta cegueira, tanto erro, tanta parecença com a sociedade de hoje, que até arrepia. O espectáculo, quase naturalmente, assumiu por isso um carácter simbólico. O meu palácio da Fortuna ficou um sítio estranho e nojento em que se fazem pequenos saraus para entreter reformados. Essa é a Comédia. Temo que até isso se pareça com a ideia de Cultura nos tempos que atravessamos. Um entretenimento sem qualquer sentido. E o cenário da Cristina, todo construído a partir de uma forma

estranha e incómoda no chão, em que talvez se pudesse reconhecer a antiga piscina que costumava haver nas casas romanas ricas, agora já seca, e uma série de elementos soltos que são tanto painéis de feira como um desenho feito por um ser delicado ou inocente demais para se sentir em casa naquele ambiente decadente, alguém que apesar de tudo visse as cores que a vida tem, tivesse desenhado e denunciasse sem querer que tudo aquilo tem alguma coisa de anti ‑natural, de palco de teatro, afinal o teatro da Madrinha, da encenadora daquela experiência didáctica, ou daquele exercício de filosofia.

Marivaux achava a prática da filosofia uma nobre e bela ocupação. Bem haja! O teatro dele é pura filosofia como eu gostava de a saber fazer. É pensar a vida com um pouco mais de juízo que aquele que eu gostaria de ter, mas com uma invejável lucidez na análise dos comportamentos humanos, que no teatro só terá parceiro dois séculos mais tarde com Tchékhov. A Madrinha, a Doutora, como em tantas outras obras dramáticas suas, não deixando de ser um ser humano, é um artifício cénico e uma espécie de duplo do autor e do encenador, e só por ironia se mascara de moralizadora. Faz um jogo, não está ali para impor a Virtude, é um artifício dramático para criar uma situação inversa à da realidade, ou extraordinária, e pôr à prova os seres humanos e as almas que lhe interessa retratar. O filósofo aqui é um esplêndido observador, que desta feita se mascara de desiludido, de defensor de uma Virtude, conceito que obceca o século XVIII, na busca de uma nova ideologia que destruísse a da ética católica, apenas por ironia. “O mundo

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entendimento que o mundo tinha antes de nós? Têm consciência, como diz, do decurso da humanidade, da passagem dos egípcios, dos gregos e dos romanos? Seremos menos bárbaros nos nossos costumes, menos ignorantes, menos grosseiros nos nossos preconceitos?

Se foi pois preciso que os homens recomeçassem a formar ‑se sobre novos trabalhos; se todo o desenvolvimento do espírito existente antes deles não os salvou, de todo, da necessidade de suportarem a mesma infância e as mesmas misérias de espírito, é certamente porque esse espírito de fundo vindo de tão longe, essa sucessão de ideias que os homens se transmitem, como você pretende, não é verdadeira e que em todos os tempos as revoluções o tenham tornado impossível. Ela não é mesmo mais sensível nos nossos progressos do que nas nossas origens. O nosso espírito é muito inferior ao que deveria ser; não há proporção entre o que temos e o que teríamos recebido, se essa herança fosse verdadeira. Não procuremos tanto mistério e convenhamos que os homens de todas as nações se formam a si próprios, que podem receber qualquer coisa dos seus vizinhos ou dos seus contemporâneos, mas que, à parte isso, eles tiram tudo da sociedade que os une e da relação que os espíritos postos em comum têm entre si. Assim, a escola de uma nação é a própria nação; assim, cada povo tem a sua, onde de época para época progride mais ou menos, onde consegue mais ou menos ideias, gosto, delicadeza, conforme sai mais ou menos luz da totalidade dos espíritos que formam a sua escola.

não quer que uma pessoa se entregue a Deus nem que o abandone.” Dizia com graça Marivaux. “Os bem ‑pensantes estragam tudo, vão buscar tudo o que dizem a um país de quimera, fazem da virtude uma presumida que se atormenta todo o tempo para saber como subir bem alto, para se distinguir. Pensam que isso é a virtude; eu ensino‑‑lhes, de cima do meu escabelo, que não há nada mais simples do que aquilo a que se chama virtude, razão ou boa moral: não precisamos de um grande esforço de espírito para agirmos de maneira razoável.”

Mas se para ele a Virtude era evidência, para os iluministas tornou ‑se numa obsessão. E hoje dir ‑se ‑ia que esse conceito, tão ligado à República como ideia de Estado, deu a volta completa e fugiu, ou é pouca ‑vergonha. Os códigos de ética pública estão ultrapassados pela lógica da valorização do dinheiro e da sua acumulação. De nada serviu o que tanta gente pensou? A Cultura acabou? Mas sem essa Cultura, com que critérios nos governaremos? Voltando sempre à estaca zero? Nenhuma resistência à perda dos valores acumulados em tantos séculos de civilização ocidental?

Marivaux também fala disso a propósito de Tucídides. (Espantem ‑se com as coisas de que falava então um dramaturgo! Como lhe interessava a política.)

Nós, a quem o universo agitado desde há muito devia ter transmitido uma experiência tão vasta e tão profunda, que uso fizemos dessa prodigiosa colecção de ideias que, no seu entender, partilhámos por herança? As nossas origens serão dignas de todo o

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Marivaux tem afinal um projecto político com o qual me identifico e de que este espectáculo pretende ser sintoma. Entregar à nação a responsabilidade de si própria, sem falsos intermediários. Não sou reaccionário ao ponto de não admitir que virá uma nação capaz de inventar uma nova maneira de viver em comum, com um sistema de valores que não são os herdados. Acredito que o futuro não será só barbárie. Mas a Cultura ajudará a que nós disso tenhamos consciência.

No teatro tem de ter lugar a análise dos comportamentos humanos. É esse o grande objectivo do nosso trabalho de actores. É na sua contribuição para o bem de todos, com aquilo que cada um aprendeu sobre a vida, a sua capacidade de amar os outros, e de o transformar em arte de os representar, que se verá se vale a pena que exista ou não na sua qualidade civilizacional.

A ciência do coração humano, que é a dos grandes génios, antes chamados belos espíritos, não é, diz ‑se, um enigma para ninguém. Toda a gente a percebe e, ainda mais, aprende ‑se sem reflectir sobre ela. Tudo bem. Mas por nos ser mais fácil aprendê ‑la do que as outras ciências, deve concluir ‑se que ela é menos difícil ou menos profunda do que essas outras ciências?

Este teatro pede trabalho aos actores. Por mim, que o tenho sido também, e sei o que custa, presto homenagem ao grupo de amigos que comigo trabalharam neste espectáculo. Sim: amigos, não me enganei. Existem ainda espaços de trabalho em que isso existe e muitos mais existiriam se a burocracia, que não sabe o que é felicidade nem prazer, não os

fosse matando até morrer ela de vaidade, agarrada ao que não levará consigo.

A natureza é uma boa mãe; quando a fortuna abandona os filhos, ela não os abandona. Um homem era rico e empobrece; deixai que assim seja: a natureza tudo providencia, é um soldado com armas e bagagens. Quando era rico, era delicado; hoje, que não tem nada, perde a intemperança, abandona ‑o o amor pelo conforto, definha o seu bom gosto, e resta o que é preciso para se ajustar à sua situação: gostará do pão como gostava de perdiz, da água fresca como gostava do bom vinho e do vinho como gostava do licor mais requintado. Numa palavra, as suas necessidades humanizam ‑se, exigem pouco, porque não podem ter muito, e o pouco que têm satisfá ‑las cem vezes mais do que o muito que tiveram.

Foi de amor que falámos, sim, Rita. Com a nossa arte, que nenhum money can buy.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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que os nossos espectadores têm uma inteligência que não têm. Prestávamos‑‑lhes uma honra perigosa para nós e pouco elogiosa para eles, que não se apercebiam de nada”. “Muito bem”, disse ‑lhe Marivaux, “continuemos portanto, para sermos aplaudidos, o senhor a representar mal e eu a aceitar isso. E pensemos os dois, mas sem nos vangloriarmos, como aquele orador que, ao ver ‑se aplaudido por uma multidão, perguntava a si mesmo se teria dito alguma idiotice.”

Essa eterna surpresa do Amor, tema único das comédias de Marivaux, é a crítica mais relevante que ele poderia sofrer sobre o conteúdo das suas peças. Porque não falámos ainda do estilo. Acusam ‑no com razão de ter feito a mesma comédia de vinte maneiras diferentes e diz ‑se a brincar que, se os atores representassem apenas as comédias de Marivaux, pareceria que não mudavam de peça. Mas há também que concordar que essa semelhança é, na sua monotonia, tão variada quanto ela possa ser, e que são necessários uma abundância e uma subtileza pouco comuns para tantas vezes se ter conduzido, com uma espécie de êxito, por uma estrada tão estreita e tão tortuosa. Mas ele sabia bem ter sido o primeiro a bater a essa porta, até então desconhecida no teatro. “Entre os meus confrades”, dizia ele (e nota ‑se bem aqui a sua linguagem), “o Amor está em disputa com o que o rodeia, e acaba por ser feliz, apesar dos seus opositores; comigo, está em disputa consigo próprio e, apesar disso, acaba por ser feliz. Nas minhas peças, ele aprenderá a desconfiar ainda mais das partidas que prega a si próprio do que das ciladas que lhe são armadas por mãos alheias.”

Ficamos certamente espantados ao saber que Marivaux, tão afastado da simplicidade nas suas comédias, a aconselhava tão rigorosamente aos seus atores. Mas essa simplicidade, pelo menos aparente, era mais necessária à representação das suas peças do que se poderia pensar. Quase todas, como já foi dito, são surpresas do Amor; ou seja, a situação de duas pessoas que, amando ‑se sem se dar conta, deixam escapar por todas as suas falas esse sentimento, que elas ignoram, mas que é muito visível pelo desapaixonado que as observa. É pois necessário, como muito bem dizia Marivaux, que os atores nunca pareçam sentir o valor do que dizem e que, ao mesmo tempo, os espectadores o sintam e o deslindem no meio daquela espécie de nuvem em que o autor envolveu os seus discursos. “Mas”, dizia ele, “bem posso à vontade repeti ‑lo aos atores; a fúria de exibir talento foi mais forte do que as minhas humildes recomendações. E preferiram exibir constantemente um perpétuo contrassenso, que lhes elevava o amor ‑próprio, do que parecer perceber a delicadeza do papel.” Um único ator lhe fez uma objeção apressada: “Vou representar”, disse ‑lhe, “o meu papel de apaixonado de forma tão estúpida como pretende. Vai dizer ‑me que a plateia e talvez metade dos camarotes me percebem? Evite supor, e nós também,

“O AMOR ESCOnDE ‑SE DivERSAMEnTE”d’alembert (1787)*

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defende que nenhum autor conseguiria pôr mais diversidade nos seus temas do que ele pôs nos seus. “Nas minhas peças”, diz ele, “tanto pode existir um amor ignorado pelos dois amantes como um amor que sentem e que querem esconder um ao outro, como um amor tímido que não ousa declarar ‑se, como finalmente um amor incerto e como que indeciso, um amor meio nascido, por assim dizer, de que eles desconfiam sem estarem muito seguros, que espiam dentro deles antes de o deixarem tomar asas. Onde está nisto a uniformidade que não se cansam de me objetar?”

Mas se o amor, como o autor pretende, não se esconde sempre da mesma maneira nas suas comédias, é sempre um amor que se esconde. E, infelizmente, a maioria dos espectadores, que não pode ver isso tão de perto, só se dá conta das semelhanças, sem se dignar notar que o amor se esconde diversamente e sem ficar agradecida ao autor por ter captado e pintado aquelas diferenças fugidias. É este o juízo, ou melhor, o instinto da multidão, que não vai ao teatro para observar ao microscópio as fibras do coração humano, mas para descobrir os seus movimentos e esforços, só vislumbrando, naquelas dissecações subtis, repetições monótonas e fastidiosas, mas a quem todo o dramaturgo está condenado a agradar, porque a tomou por juiz.

O estilo pouco natural e afetado dessas comédias suscitou ainda mais críticas do que o próprio conteúdo das suas peças. E com tanta mais justiça quanto esse jargão particular, ao mesmo tempo precioso e familiar, rebuscado e monótono, é, sem exceção, igual para todas as personagens, seja qual for a sua condição, marqueses ou camponeses, patrões ou criados. Mais

Esta guerra de chicana, se assim se pode dizer, que o Amor faz consigo mesmo nas peças do nosso académico, e que acaba bruscamente no casamento, a partir do instante em que os atores se esclareceram sobre os seus sentimentos mútuos, fez ainda dizer que os apaixonados se amam o mais tarde possível e se casam o mais depressa possível. Mas os autores desta crítica ou deste gracejo deveriam ter acrescentado que, neste amor que se ignora e que a pouco e pouco se descobre a si próprio, o autor sabe gerir com arte a gradação mais subtil, embora muito sensível para o espectador. Esta gradação dá às suas comédias uma espécie de interesse, de curiosidade. São, é verdade, destituídas de ação propriamente dita, porque tudo se passa no discurso mais do que na intriga; no entanto, se a ação de uma peça consiste, pelo menos em parte, no avanço e desenvolvimento das cenas, pode dizer ‑se que as de Marivaux não são totalmente dela desprovidas.

Ele sentia, ou melhor, confessava esse ar de família que censuravam nas suas peças. E justificou ‑se como pôde, uma única vez e num curto prefácio. Porque ele tinha por demais talento para estar a multiplicar, a exemplo de tantos autores, esses pequenos discursos da vaidade, tão pouco apropriados para os absolver, e era ainda mais avesso à pretensão, tão comum aos autores dramáticos, de fazer no começo das suas peças uma poética adequada às suas fracas produções e erigir em modelos de bom gosto os insultos por eles feitos ao bom senso. Dizia que queria, por uma vez, pôr o seu processo em cima da mesa, perante os juízes, para não ser condenado por defeito. A sua apologia é curta, mas subtil e digna dele; longe de condenar o defeito de que o acusam,

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uma vez o autor se defende dizendo que o público está, também nesse caso, equivocado: “Pensam ver em todas as minhas comédias o mesmo género de estilo, porque o diálogo é em cada momento a expressão simples dos movimentos do coração. A verdade dessa expressão faz pensar que tenho um só tom e uma única linguagem. Mas não foi a mim que eu quis copiar, foi à natureza, e é talvez por esse tom ser natural que ele parece singular”. Este excerto, talvez mais singular ainda do que o estilo do autor, é um exemplo notável da habilidade ou infelicidade que um homem de espírito possui para se iludir a si próprio sobre os seus defeitos mais sensíveis. É certo que essa ilusão tinha por origem menos um amor ‑próprio que cega do que o convencimento que, de boa ‑fé, ele tinha sobre a sua maneira de ser. Ele julgava ser natural nas suas comédias porque o estilo que dava aos seus atores era o que ele próprio tinha, sem esforço nem descanso,

na conversação. Se não conseguia dizer de forma simples mesmo as coisas mais comuns, na forma como ele falava sobre o assunto parecia, pelo menos, pedir desculpa pela sua escrita, porque se podia acreditar, na sua brilhante e abundante volubilidade, que ele, apesar de tudo, falava a sua língua materna e que teria sido impossível exprimir ‑se de outro modo mesmo que quisesse. Nas suas peças, parece ‑nos estar a ouvir uns estrangeiros cheios de espírito que, obrigados a conversar numa língua que não conhecem perfeitamente, tivessem feito dessa língua um idioma particular, semelhante a um metal imperfeito, mas faustosamente brilhante, que tivesse sido feito pelo acaso da união de vários outros.

* “Éloge de Marivaux”. In Oeuvres de d’Alembert: Tome troisième: Ire partie: Contenant suite des éloges historiques. Paris: A. Belin, 1821. p. 582 ‑585.Trad. Luís Lima Barreto

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ficha técnica tnsj

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Maria do Céu Soares

Mónica Rochadireção de palco

Rui Simãodireção de cena Ricardo Silvaluz

Filipe Pinheiro (coordenação),

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