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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO
Guy Pinto de Almeida Jr.
PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS
Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de
Ocas” e VEJA São Paulo
São Paulo
2014
Guy Pinto de Almeida Jr.
PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS
Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de
Ocas” e VEJA São Paulo
Dissertação apresentada à ESPM como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo.
Orientadora: Profa. Dra. Tânia Márcia Cezar Hoff
São Paulo
2014
Guy Pinto de Almeida Jr.
PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS
Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de
Ocas” e VEJA São Paulo
Dissertação apresentada à ESPM como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo.
Aprovado em 27 de março de 2014
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Presidente: Prof. Dra. Tânia Márcia Cezar Hoff, Orientadora, ESPM
____________________________________________________________
Membro: Prof. Dra. Dulcília Helena Schroeder Buitoni, FACULDADE CÁSPER LÍBERO
____________________________________________________________
Membro: Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza, ESPM
O maior apetite do homem é desejar ser.
Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser.
Manoel de Barros
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é fruto de minha autoria, mas resultado de uma série de contribuições
de pessoas queridas ao longo de minha vida. É a elas que gostaria de prestar meus
agradecimentos:
Em primeiro lugar, a meus pais, Claudete e Guy, pelo apoio e incentivo que sempre
me deram em relação aos estudos.
Às minhas irmãs Fabiana e Tatiana, a minha sobrinha Olívia e a minha companheira
Cecília que tanto me compreenderam nesta trajetória desafiante que é o mestrado.
Aos meus amigos Isaac, Amanda, Nézio, Gordo, Miyoko, Rosi, Marcos, Francisco,
José Paulino, Maria Elisabete, Izolda, Hiran, Emmanuel, Renata, Michele, Manolita, entre
outros pelas mãos estendidas nos momentos mais difíceis da trajetória.
A todos os professores que passaram e que continuarão passando por minha vida.
Aos colegas de classe, os professores e funcionários do PPGCOM-ESPM, pelo
compartilhamento das alegrias e angústias durante os dois últimos anos.
Aos funcionários da Biblioteca da ESPM, das Bibliotecas Municipais Mário
Schenberg e Mário de Andrade (Hemeroteca) e do Arquivo Público do Estado de São Paulo
pela gentileza e cordialidade sempre que me atender. Ao Thiago Massagardi, Marina
Massagardi, Tula Pilar Ferreira e todo o pessoal da Ocas”.
A Gabriela e ao Manoel de Barros.
Um agradecimento especial à minha orientadora Tânia Hoff, por todo o
companheirismo, lealdade e divisão de “viagens teóricas” durante todo o processo.
Por fim, gostaria de dedicar à memória de minha avó, Hemya, que nos deixou no ano
passado, e, que ao longo de seus 88 anos, ensinou muito aos filhos e netos sobre o que é
conviver junto à diferença.
RESUMO
Esta dissertação tem como tema as representações dos moradores de rua da cidade de São
Paulo no discurso jornalístico veiculado nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo. Nosso
objetivo principal é analisar as estratégias do discurso jornalístico no que se refere à
representação social do sem-teto nas referidas publicações. Já os objetivos secundários são:
conceituar “cidade”, “pobreza” e “diferença”, a fim de relacionar os três conceitos ao
fenômeno do consumo; identificar as representações sociais do morador de rua nos discursos
jornalísticos nas duas revistas; identificar as estratégias de produção de sentidos do discursos
jornalísticos sobre o tema moradores de rua em cada veículo; e comparar as estratégias de
produção de sentidos identificadas, para refletir sobre algumas lógicas de produção do
discurso jornalístico sobre a diferença. Quanto à fundamentação teórica, a análise de discurso
de linha francesa consiste em nosso principal aporte teórico, que será mobilizado em conjunto
com as teorias do jornalismo, da cidade e da diferença. Empreendemos também uma pesquisa
empírica de caráter documental, que resultou num conjunto de 203 textos jornalísticos
publicados nas revistas no período de 2005 a 2012, sobre o tema morador de rua da cidade de
São Paulo, a partir do qual elaboramos dois corpora: de Ocas” (16 textos) e de VEJA São
Paulo (15 textos). Destacamos alguns resultados da análise desenvolvida: em Ocas”, o
morador em situação de rua é representado como um cidadão detentor de direitos; já em VEJA
São Paulo, ele é representado como um indivíduo estranho em relação à normatização da
cidade. Diante desses resultados, podemos afirmar que o discurso jornalístico de ambas as
revistas abriga estereótipos e reproduz desqualificações sociais do morador de rua.
Palavras-chave: Comunicação e Consumo; Discurso jornalístico; Representação da
diferença; Jornalismo impresso; São Paulo.
ABSTRACT
The theme of this dissertation is the representation of the homeless in São Paulo on
journalistic discourse in magazines Ocas” and VEJA São Paulo. Our main goal is to analyze
the strategies of journalistic discourse in relation to the social representation of the homeless
in these publications. The secondary objectives are: conceptualizing “city”, “poverty” and
“concept of difference” in order to relate the three concepts to the phenomenon of
consumption, identify the social representations of the homeless on journalistic discourse in
both magazines; identify strategies for production of meaning of journalistic discourses on the
subject street dwellers in each publishing, and compare the identified strategies of production
of meaning to think about some logic in production of journalistic discourse about the concept
of difference. As for theoretical reasons, the analysis of discourse is our main theoretical
foundation, to be understood within the theories of journalism, city and the concept of
difference. We also undertook an empirical research of documental nature, which resulted in a
set of 203 journalistic articles published in the magazines from 2005 to 2012 on the theme of
homeless of São Paulo’s city, from which we developed two corpora: the Ocas” (16 texts)
and VEJA São Paulo (15 texts). On the analysis, we highlight the following results: in Ocas” ,
the street dweller is represented as a holder of citizen rights, while in VEJA São Paulo, he is
represented as a strange individual in relation to the regulation of the city. Given these results,
we can say that the journalistic discourse of both magazines houses and reproduces
stereotypes and social disqualification of the homeless.
Keywords: Communication and consumption; Journalistic discourse; Representation of
difference; Printed journalism; São Paulo.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Características editoriais das revistas Ocas” e VEJA São Paulo ............................. 60
Quadro 2: Classificação da população de rua por estágio de permanência .............................. 92
Quadro 3: Corpus de análise em Ocas” .................................................................................. 114
Quadro 4: Corpus de análise em VEJA São Paulo ................................................................. 115
Quadro 5: Resumo da Análise do texto de Ocas” “Carroceiros e mendigos saem de cena”.. 118
Quadro 6: Resumo da análise do texto de Ocas” Revolta, Indignação e uma pergunta: até
quando? ................................................................................................................................... 121
Quadro 7: Resumo da análise do texto de Ocas” E depois da rampa? .................................. 122
Quadro 8: Resumo da análise do texto de Ocas” Luta pela dignidade .................................. 125
Quadro 9: Resumo da análise do texto de Ocas” Um homem (bem) visível ........................... 126
Quadro 10: Resumo da análise do texto de Ocas” Antes que o frio doa... ............................. 128
Quadro 11: Resumo da análise do texto de Ocas” Mercado Subterrâneo ............................. 129
Quadro 12: Resumo da análise do texto de Ocas” A droga nem sempre leva à exclusão, mas a
exclusão é a maior droga ....................................................................................................... 131
Quadro 13: Resumo da análise do texto de Ocas” Um fato, várias versões e o cheiro da
impunidade ............................................................................................................................. 132
Quadro 14: Resumo da análise do texto de Ocas” Em vez de Polícia, Política! .................... 135
Quadro 15: Resumo da análise do texto de Ocas” “Não tinha futuro, só trabalho” ............. 136
Quadro 16: Resumo da análise do texto de Ocas” Adivinhação ............................................ 138
Quadro 17: Resumo da análise do texto de Ocas” O amor está nas ruas .............................. 139
Quadro 18: Resumo da análise do texto de Ocas” Vozes em busca de direitos ..................... 140
Quadro 19: Resumo da análise do texto de Ocas” Escola da Rua: Ensinado e aprendendo .. 143
Quadro 20: Resumo da análise do texto de Ocas” Ouvidoria da ruas ................................... 144
Quadro 21: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez ideias para o centro ........ 145
Quadro 22: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Ele não foge da briga............. 149
Quadro 23: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Cenas de um centro abandonado
................................................................................................................................................ 151
Quadro 24: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Degradação que se esparrama
................................................................................................................................................ 152
Quadro 25: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Vizinhos da Cracolândia ....... 154
Quadro 26: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo A vida no abrigo da Cracolândia
................................................................................................................................................ 155
Quadro 27: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Em quem o frio dói mais ........ 156
Quadro 28: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez mortes em quatro dias .... 157
Quadro 29: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Estrangeiros sem teto............. 159
Quadro 30: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Crianças de rua ..................... 162
Quadro 31: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O muro do Center 3 ............... 163
Quadro 32: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O cortiço na Oscar Freire .... 164
Quadro 33: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo 1sem-teto=350 reais (por mês)
................................................................................................................................................ 165
Quadro 34: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Uma noite no albergue .......... 167
Quadro 35: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo “Não fujo de uma polêmica” . 169
LISTA DE SIGLAS
AD ou ADF – Análise de discurso de linha francesa
Cape – Coordenadoria de Atendimento Permanente e de Emergência
Decradi – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
DEM – Democratas (Partido Político)
DHPP – Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa
ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing
FD – Formações discursivas
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
MNPR – Movimento Nacional da População de Rua
MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra
OCAS – Organização Civil de Ação Social
ONU – Organização das Nações Unidas
PM – Polícia Militar
PMSP – Prefeitura Municipal de São Paulo
PPGCOM/ESPM – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação e Práticas
de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social
ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 13
1.1. TEMA ............................................................................................................... 13
1.2. PROBLEMA .................................................................................................... 15
1.3. OBJETIVOS ..................................................................................................... 16
1.4. JUSTIFICATIVAS ........................................................................................... 16
1.5. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ........................................... 19
1.6. ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO ............................................................... 22
2. DISCURSO E JORNALISMO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
TEÓRICAS ................................................................................................................. 25
2.1. O DISCURSO E O SENTIDO NA SOCIEDADE ........................................... 25
2.1.1. As palavras e a produção de sentidos ........................................................... 26
2.1.2. Esquecer, antecipar e ideologizar: ações do sujeito ..................................... 28
2.1.3. Condições de produção ................................................................................. 32
2.1.4. Ideologia, Formações discursivas e Interdiscurso ........................................ 33
2.1.5. Enunciação, enunciado e enunciador............................................................ 36
2.1.6. Sobre o discurso... ........................................................................................ 37
2.2. RELAÇÕES ENTRE DISCURSO E JORNALISMO ..................................... 39
2.2.1. Discurso jornalístico: Construtor de realidades ............................................ 39
2.2.2. Discurso jornalístico: o jornalês ................................................................... 45
2.2.3. Gêneros jornalísticos .................................................................................... 49
2.3. DIFERENTES ABORDAGENS JORNALÍSTICAS A PARTIR DO
DISCURSO: OCAS” E VEJA São Paulo ..................................................................... 51
2.3.1. Dois espaços para circulação de discursos jornalísticos ............................... 54
2.3.2. Diferentes, mas parecidas ............................................................................. 58
3. A CIDADE DE SÃO PAULO E SUAS RELAÇÕES COM A
COMUNICAÇÃO E O CONSUMO ......................................................................... 62
3.1. A CIDADE: UMA PERSPECTIVA DO CONSUMO .................................... 62
3.1.1. A cidade como espaço de convivência da diferença .................................... 65
3.1.2. Ferro, aço, revitalização e individualização: a cidade moderna ................... 70
3.1.3. A modernidade e a contemporaneidade paulistanas: a Estação da Luz e sua
próxima parada, a Nova Luz ......................................................................................... 75
3.2. A OUTRA CIDADE DE SÃO PAULO: O MORADOR EM SITUAÇÃO DE
RUA .......................................................................................................................... 84
3.2.1. Zé ninguém ou Zé alguém? .......................................................................... 84
3.2.2. O morador rua: do desejo ao descaso ........................................................... 85
3.2.3. Como se veem e como são vistos pelos outros ............................................. 92
3.2.4. Brancos, negros, índios, tanto faz: um grupo heterogêneo ........................... 95
3.3. A CIDADE COMO ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO, CONSUMO E
SENTIDOS ................................................................................................................... 97
3.3.1. Polis ou polifonia? A cidade como instância de comunicação ..................... 99
3.3.2. Consumo midiático e as representações sociais ......................................... 103
4. PRODUÇÃO DE SENTIDOS NAS REVISTAS OCAS” E VEJA São Paulo:
REPRESENTAÇÃO DA DIFERENÇA NO DISCURSO JORNALÍSTICO ..... 110
4.1. APRESENTAÇÃO DOS CORPORA E DOS CRITÉRIOS DE SELEÇÃO 110
4.2. PROTOCOLO DE ANÁLISE DOS CORPORA ........................................... 116
4.3. ANÁLISE DOS DISCURSOS JORNALÍSTICOS NAS REVISTAS OCAS” E
VEJA São Paulo .......................................................................................................... 117
4.3.1. Análise dos discursos em Ocas” ................................................................ 118
4.3.1. Análise dos discursos na Vejinha ............................................................... 145
4.4. SÍNTESE DA ANÁLISE: COMPARAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS
DISCURSIVAS DE OCAS” E VEJA São Paulo ....................................................... 171
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 175
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 179
ANEXO ...................................................................................................................... 187
13
1. INTRODUÇÃO
1.1. Tema
Este projeto tem como tema as representações dos moradores de rua da cidade de São
Paulo nos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo e integra a linha de
pesquisa, Lógicas da produção e estratégias midiáticas articuladas ao consumo, do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM.
O objeto da pesquisa são os discursos jornalísticos das revistas Ocas” e VEJA São
Paulo sobre esses sujeitos, que habitam as ruas da cidade São Paulo e são marcadamente
definidos pela diferença. Deste modo, enquanto a primeira publicação é produto editorial de
uma organização não-governamental, com uma linha-editorial de luta pela causa de pessoas
em situação de risco social – em especial, os moradores de rua, que inclusive participam da
produção e distribuição da revista (o que caracteriza a revista como um street paper); a
segunda é de propriedade de uma empresa privada – Editora Abril – tem objetivo comercial,
uma linha editorial voltada para os assuntos que envolvem a cidade de São Paulo, e é um
roteiro de lazer e compras, voltado para as classes mais altas.
Uma das motivações de nossa escolha pelo tema foi que, ao olharmos para a cidade,
entendemos que ela é composta por diferentes grupos, sendo a população em situação de rua
um deles. Por sua vez, as revistas são veículos segmentados que visam atingir público
específico e, neste sentido, formas de ler a cidade e visualizar os diversos grupos que as
compõem.
Vale ressaltar que existem algumas terminologias que podem referenciar a população
que vive nas ruas. Na mídia jornalística, por exemplo, é comumente chamada de ‘moradores
de rua’, em relatórios técnicos, documentos oficiais ou em trabalhos acadêmicos, a mesma é
chamada de ‘moradores em situação de rua’. Há ainda uma terceira terminologia, comum a
todos os casos citados: ‘sem teto’.
Assim, nesta pesquisa, utilizamos as expressões ‘morador de rua’, ‘moradores em
situação de rua’ e ‘sem teto’ como sinônimos, de modo indiferente. Todas as três nos servirão
para denominar as pessoas que vivem nas ruas. Há, ainda, a possibilidade de encontramos,
nos textos estudados e/ou coletados, expressões como mendigos, homem da rua,
14
desabrigados, etc. Em todos os casos, as expressões são referentes ao morador em situação de
rua que diz respeito ao grupo que faz das ruas seu espaço de moradia e/ou sobrevivência.1
Excluído e marginalizado da sociedade de consumo, o morador de rua faz do espaço
público seu local para viver. Há um conjunto de motivos pelos quais alguém chega à condição
de sem teto; entretanto a análise dessas causas e dos diferentes grupos que formam o universo
populacional dos moradores de ruas, embora importante, não será realizada em nossa
pesquisa, e sim, a análise dos discursos jornalísticos referentes a diferença concebida, como
enuncia a pesquisadora Tânia Hoff:
Na sociedade de consumo contemporânea, pensar a diferença implica um
olhar múltiplo que considere nas suas entrelinhas a memória social tanto
como resgate de um lugar de sujeito, como de ressignificações e de
legitimação de uma posição de sujeito ainda não constituída. Chamamos a
atenção aqui, para as diferenças em sentido amplo: as práticas sociais, as
práticas discursivas, os grupos sociais, as tragédias, as doenças, enfim, todos
os acontecimentos que não se encontram na ordem do esperado, do
organizado, do controlado. (HOFF, 2012)
Estando nesta situação de rua, ou seja, desviantes do padrão de normalidade do
cidadão, e assumindo a condição de não-cidadão (ROLNIK, 1994), esses indivíduos formam
um grupo que, com base nos estudos sobre identidade da professora da Open University,
Kathryn Woodward –, é demarcado pela diferença e adquirindo sentido a partir sistema
simbólico pelos quais estão representados (indumentária, higiene, estética, dentre outras)
(WOODWARD, 2009).
Assim, investigamos a cidade como um espaço de encontro das diferenças. Tal
entendimento fundamenta-se no conceito de pensadores como Zygmunt Bauman (2009),
Janice Caiafa (2003), Raquel Rolnik (1994), Oskar Negt (2002), Jane Jacobs (2011) e Jacques
Le Goff (1998). Em alguns momentos de suas respectivas obras, esses autores entendem a
cidade como o espaço público onde as diferenças se encontram.
1 Segundo o relatório Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em
Situação de Rua – Centro Pop - SUAS e População em Situação de Rua - Volume 3. Disponível em
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/secretaria-nacional-de-assistencia-social-snas/cadernos/orientacoes-
tecnicas-centro-de-referencia-especializado-para-populacao-em-situacao-de-rua-centro-pop-e-servico-
especializado-para-pessoas-em-situacao-de-rua-1/05-caderno-centro-popfinal-dez.pdf. Acesso em 25 de maio de
2013.
15
1.2. Problema
O problema desta pesquisa é como se realizam as estratégias de produção dos
discursos jornalísticos sobre a diferença, em especial, como os moradores de rua estão
representados nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo.
Chegamos a esse problema a partir de algumas reflexões. A primeira delas é, como já
mencionamos, o entendimento de que a cidade é um espaço público de encontro das
diferenças. Essas diferenças promovem não uma, mas diversas cidades, o que nos dá condição
de dizer, como propõe o antropólogo italiano Massimo Canevacci (2004), que toda cidade é
polissêmica, ou seja, abriga muitos cenários e é habitada por diferentes grupos, comportando,
assim, várias possibilidades de significados.
A segunda reflexão diz respeito ao jornalismo. Considerando a prática jornalística um
modo de produção de sentidos, ela pode trazer (ou não) representações dos temas abordados.
Complementa-se a isso o fato de que o texto jornalístico é formado e produz discursos e esses
são, necessariamente, como enuncia a Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF),
atravessados pela historicidade, ideologia e pelo social. Por consequência, os discursos
jornalísticos abrigam representações que podem promover a visibilidade ou não de certos
grupos que compõem a cidade e, a partir dessas representações, sentidos são produzidos. O
que investigamos são as representações dos moradores em situação de rua.
Logo, se a cidade é um espaço público formado pelo encontro das diferenças e o
jornalismo é uma prática que concede visibilidade às representações aos grupos que formam a
cidade, pode-se esperar que um dos grupos diferentes que formam as cidades – os moradores
de rua – estejam representados nos discursos jornalísticos.
Considerando, inicialmente, que as lógicas de produção dos discursos jornalísticos
baseiam na relevância e importância do fato a ser abordado – pelos critérios de noticiabilidade
e valor-notícia –, é por meio da análise desses discursos jornalísticos, presentes nas duas
publicações investigadas, que teremos condições de avaliar aspectos relativos as lógicas de
produção do jornalismo contemporâneo em relação aos modos de construção de representação
de moradores em situação de rua, pois entendemos que o grupo pode ser considerado
diferente, em relação à normatização da cidade, com base na conceituação de biopolítica na
obra do filósofo francês Michel Foucault, já que os indivíduos que o compõe não têm
emprego formal, moradia, encontram-se fora da organização urbana, etc.
16
1.3. Objetivos
Nosso objetivo primário de pesquisa é analisar a produção de sentidos e as
representações sociais do morador de rua nos discursos jornalísticos sobre a cidade de São
Paulo nas publicações – de objetivos editoriais distintos –, Ocas” e VEJA São Paulo, veículos
com objetivos editoriais bastante distintos. Para chegarmos a isso, temos alguns objetivos
secundários:
1. Conceituar “cidade”, “pobreza” e “diferença”, a fim de relacionar os três conceitos
ao fenômeno do consumo;
2. Identificar as representações sociais do morador em situação de rua nos discursos
jornalísticos nas duas revistas investigadas;
3. Identificar as estratégias de produção de sentidos dos discursos jornalísticos sobre
o tema moradores de rua em cada uma das revistas investigadas;
4. Comparar as estratégias de produção de sentidos identificados nos dois veículos
investigados, para refletir sobre algumas lógicas de produção do discurso
jornalístico sobre a diferença.
1.4. Justificativas
O discurso, por ser a palavra em movimento, como aponta a linguista Eni Orlandi
(2009), está para além do texto e inserido em um contexto no qual o social, o histórico e a
ideologia atuam.
Assim, ao escolhermos estudar os discursos jornalísticos sobre o morador de rua,
estamos analisando, como entende o jornalista e pesquisador Jorge Traquina (2008), uma
prática discursiva que além de utilizar de uma linguagem própria – a jornalística –, tem como
campo de atuação um contexto específico, a cena midiática.
Nosso projeto também está enquadrado dentro do campo da comunicação e do
consumo, pois o objeto – os discursos jornalísticos – é parte integrante dos estudos de
comunicação. Esses discursos conformam as representações sociais do morador de rua, que,
ao serem consumidas (lidas), promovem sentidos acerca do tema a cidade e do grupo.
Em tempo, a produção midiática, na forma de discurso jornalístico, ao ser
problematizada, implica investir na compreensão da comunicação e sua relação dentro com o
17
contexto social, mais precisamente, em nosso caso, com as práticas de consumo, pois
entendemos que discurso jornalístico promove consumo material e simbólico da cidade.
Poderíamos ter escolhido quaisquer outros grupos diferentes que compõem a cidade
(prostitutas, imigrantes, negros, migrantes, homossexuais, etc.), no entanto optamos pelos
moradores de rua, pois esse frequentemente faz parte da agenda pública do urbano e é
analisado por pesquisas de caráter social. A população em situação de rua é, então,
representada com certa regularidade na mídia, especialmente no contexto da problemática
social.
Sob a ótica das práticas de consumo, esse tema se justifica, pois essa população é
considerada diferente por estar, também, à margem da sociedade de consumo. Para além
desse cenário, eles também estão sempre em evidência quando se fala em políticas públicas de
revitalização de centro de grandes cidades.
Este projeto está alinhado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas
de Consumo da ESPM, a partir do momento em que abordamos a cena midiática, em especial
o jornalismo, e como os setores da sociedade estão representados nessa cena. Analisando
como é a produção dos discursos da diferença dentro do campo jornalístico,
compreenderemos como o consumo de produtos jornalísticos produz sentidos sobre a cidade e
sobre o morador de rua.
Justamente por analisarmos como são produzidos os discursos da diferença nas
revistas Ocas” e de VEJA São Paulo, alinhamos nosso objeto à linha de pesquisa Lógicas da
produção e estratégias midiáticas articuladas ao consumo do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM.
Ancoramos, ainda, nosso projeto de pesquisa à linha de pesquisa de nossa orientadora,
Tania Hoff, que investiga as estratégias de produção de sentidos e representações da diferença
na cena midiática contemporânea. O morador de rua é o corpo diferente no ambiente urbano e
promotor da instabilidade neste local – normatizado a partir da noção de semelhança, sob a
ótica do consumo e dos padrões de cidadania. Dessa forma, nossa pesquisa possui total
aderência com o projeto de nossa orientadora:
Nos processos comunicacionais, podemos avaliar, o igual – a identidade –
promove a estabilidade. A diferença tende a desestabilizar, a promover a
tensão, dispersa ou ruptura. A diferença também promove uma visão
múltipla e variada do mundo, pois a semelhança é mais uma das
possibilidades de constituição do ambiente social e não a única. (HOFF,
2012, p. 151)
18
Nosso tema também se justifica sob o argumento da relevância acadêmica e social por
trazer os discursos jornalísticos como objeto de estudo. Em uma busca pelos principais bancos
de dados acadêmicos (Google Acadêmico, SciELO, dentre outros), verificamos a pequena
incidência de trabalhos acadêmicos que abordam a diferença no discurso jornalístico.
Justifica-se a partir disso desenvolver uma pesquisa acadêmica com esse tema para que seja
uma contribuição acadêmica ao campo jornalístico.
Dentre as poucas pesquisas sobre o tema, citamos uma pesquisa semelhante, intitulada
Representação discursiva de pessoas em situação de rua no “caderno Brasília”:
naturalização e expurgo do outro, da pesquisadora Viviane de Melo Resende da Universidade
de Brasília. Nessa, Resende (2012) analisa os discursos jornalísticos do caderno Brasília, por
meio da Análise de Crítica de Discurso (ACD), teoria distinta de nosso trabalho, assim como
o recorte geográfico, já que estudaremos a cidade de São Paulo e nos basearemos na Análise
de Discurso de Linha Francesa.
Também de Resende (2008) temos conhecimento do artigo Não é falta de
humanidade, é para dificultar a permanência deles perto de nosso prédio: análise discursiva
crítica de uma circular de condomínio acerca de “moradores de rua” em Brasília, Brasil. Além
dessas, temos as pesquisas da antropóloga Janine Caiafa (2003 e 2004) que abordam
comunicação e diferença nas grandes cidades.
Ainda sobre a temática dos discursos jornalísticos, encontramos uma obra que trata
discursos sobre a diferença, Palavras em movimento: o discurso jornalístico sobre o sujeito
deficiente, de Daniella Haendchen (2006).
Sobre as representações sociais do morador em situação de rua na mídia, é importante
citar a obra da pesquisadora Suzana Rozendo. Ela vem se dedicado a estudar o fenômeno,
com foco especial aos street papers, desde o início da década de 2010, inclusive tendo feito
estudos na própria revista Ocas”.
Dentre seus artigos, podemos citar; Informações da Aurora: voz às pessoas em
situação de rua2; Elas e nós: a representação de mulheres em situação de rua nas notícias
jornalísticas3; A reinvenção dos street papers: publicações em tela
4; População de rua e
2 Publicado na RELEM – Revista Eletrônica Mutações, julho – dezembro, 2011
3 Trabalho apresentado no GT4 - Representação Social e Mediações socioculturais - do VI Congresso de
Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de
2013. 4 Trabalho apresentado no GT Cultura e tecnologia do X Seminário de Alunos de Pós-Graduação em
Comunicação da PUC-Rio.
19
cidadania: deslizes e acertos na cobertura midiática5; além de sua dissertação para obtenção de
título de mestre, no ano de 2012 intitulada Ocas” e Hecho en Buenos Aires: um outro tipo de
jornalismo na América Latina.
Diferentemente de Rozendo, nosso foco não é apenas estudar os street papers e seus
modos de produção, mas de maneira longitudinal a representação do morador em situação de
rua nos discursos jornalísticos.
Quanto à relevância social, é imperioso observarmos que a cidade é um espaço do
consumo e que o discurso jornalístico promove seu consumo material e simbólico. Dessa
maneira, estamos promovendo a discussão da cidade como local onde o fenômeno do
consumo se desenvolve e o discurso jornalístico é um dos promotores de consumo material e
simbólico da cidade.
Também entendemos que a nossa pesquisa tem relevância social por problematizar o
fazer jornalístico sobre a diferença na cidade. Ao abordarmos um tema específico em nossa
análise de discurso, o morador de rua da cidade de São Paulo, estamos investigando como a
imprensa promove essas representações sociais e visibiliza ou inviabiliza questões urgentes da
cidade.
1.5. Referencial teórico-metodológico
Temos como principal inspiração teórico-metodológica a Análise de Discurso de
Linha Francesa (ADF), pois é uma teoria que nos dará base para a compreensão da produção
de sentidos do jornalismo. Umas das principais autoras nas quais nos basearemos é Orlandi.
Para ela, o discurso trata do homem falando, ou seja, a palavra em movimento, inserida em
determinados contextos, e produzindo sentidos. A materialização do discurso se dá a partir do
texto (2009).
Em nosso caso, a materialização dos discursos serão os artigos jornalísticos,
produzidos dentro de em um contexto histórico, social e político, e concedendo (ou não)
visibilidade a representações sociais (identidades) e dimensões específicas da cidade.
Com base na análise dos discursos jornalísticos das revistas Ocas” e VEJA São Paulo,
faremos um estudo comparativo para observar como os moradores de rua são/estão
representados em suas páginas. Chegamos a esse questionamento, pois consideramos que o
5 Trabalho apresentado na modalidade Artigo Científico na IV Conferência Sul-Americana e IX Conferência
Brasileira de Mídia Cidadã.
20
jornalismo é uma forma de representação da cidade. A pesquisadora Maria Helena Weber
compreende a representação urbana da seguinte forma:
As cidades podem ser descritas em mapas, indicações geográficas,
monumentos, sensações, palavras, arte e imagens, mas a imensidão de
sentidos que é capaz de provocar a transformará em muitas. Seus cantos e
acontecimentos ocuparão o imaginário individual de modo diferenciado e
assim serão contados. A cidade vivenciada individualmente não está
disponível e é difícil de ser compartilhada. Ela mesma será reapresentada, a
cada habitante milhares de vezes, sempre que se tornar fator de disputa
política, de argumentos que comprove a adequada governabilidade. Assim
será recortada e devolvida, initerruptamente, pelas mídias ora como
propaganda sedutora, ora como notícia ou tese. (WEBER, 2007, p. 248)
A Análise de Discurso de Linha Francesa servirá, então, como base para o
entendimento dos discursos jornalísticos que perpassam nos fatos noticiosos ou reportagens
jornalísticas das revistas Ocas” e VEJA São Paulo.
Com a ADF, também teremos condições de operar, sistematizar e categorizar os dados
coletados, tornando possível sua análise para compreender como são produzidos os discursos
sobre o morador em situação de rua. Além de Orlandi, para tal análise, nos basearemos em
teóricos do discurso como: Michel Pêcheux, Heloisa Nagamine Brandão, Maria Aparecida
Baccega, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin, Cristina Ponte, Dominique Maingueneau, Marcia
Benetti.
Ao final, faremos um estudo comparado entre as duas análises para compreensão e
problematização de ambas as coberturas dentro do contexto social, histórico e ideológico. O
aporte teórico da ADF será articulado aos seguintes eixos:
Os estudos do consumo, em nosso trabalho terão duas frentes: a primeira que trata o
morador de rua como um marginal ao consumo e a segunda – principal e mais importante –,
que versa sobre o consumo midiático como um produtor de sentidos. Três são os autores
importantes Néstor Garcia Canclini (2006) e Jesús Martin-Barbero (2009) que, em
determinados pontos de suas obras abordam o consumo simbólico da mídia como produtor de
sentidos, e Roger Silverstone, a partir de seus estudos sobre a mídia, especialmente na obra
Por que estudar a mídia (2005)?
Em nosso entendimento, será essencial, ainda, abordamos a cidade como instância
comunicacional a partir da obra do antropólogo italiano radicado em São Paulo, Massimo
Canevacci, em especial ao livro Cidades Polifônicas (2004) que trata da antropologia da
comunicação urbana. Janice Caiafa também será muito importante, pois conceitua a cidade,
como um local de encontro da diferença, assim como os outros autores já citados como o
21
filósofo polonês Zygmunt Bauman (2009), o historiador francês Jacques Le Goff (1998), a
urbanista americana Jane Jacobs (2011) e o sociólogo francês Henri Lefebvre (2001).
Articularemos ainda às teorias do jornalismo, nas quais conceituaremos com autores
como Nelson Traquina (2008), Jorge Pedro Sousa (2004), Muniz Sodré (2012), Cremilda
Medina (1988), José Marques de Melo (2006) etc. Esses autores nos trarão a elucidação dos
termos técnicos da teoria do jornalismo e explicação de gêneros jornalísticos e modos de
produção jornalística.
Para estudarmos as cidades, a partir de seus processos históricos e de formação,
iniciaremos com base em dois autores Lewis Mumford (1965), que estuda a cidade ao longo
da história e, mais precisamente, e os estudos medievalistas de Le Goff (1998), que faz uma
comparação do funcionamento das cidades modernas e as cidades medievais. Segundo ele,
esses dois conceitos de cidade são muito parecidos, especialmente por ela ser uma vitrine da
produção humana e do consumo.
Walter Benjamim (1985) e sua visão sobre a modernidade na cidade de Paris, no texto
Paris, capital do século XIX, é outro autor que nos fornecerá base para estudarmos e, possível
compararmos, como foi o processo de modernização urbana da cidade de São Paulo e quais
paralelos podemos traçar com a capital francesa. Outro autor que nos base de reflexão sobre a
cidade moderna é Georg Simmel (1967), mais especificamente por sua obra A vida mental da
cidade.
Jane Jacobs (2011) também nos servirá de base para entendermos os processos de
modernização, pois aborda em sua obra os processos reurbanização em grandes cidades. Para
fechar esse trecho da pesquisa, que trata da cidade na história, talvez um dos autores mais
importante deste ponto da pesquisa seja Lefebvre (2001). Em sua obra, o autor busca o
entendimento sociológico da cidade e traz conceitos sobre a evolução delas, cruzando-o com
o desenvolvimento industrial.
Lefebvre é importante para que passemos a observar a cidade sob o aspecto
econômico. Assim, num segundo momento, trazemos ao diálogo autores como o economista
Paul Singer (1990), o geógrafo Milton Santos (1979; 1987; 1994) e especialmente a urbanista
Raquel Rolnik (1994). Com esses nomes, estudiosos da economia urbana, entenderemos
como se deu o processo de exclusão nas grandes cidades e formação de sua população de
moradores de rua.
Outra fonte epistemológica serão os estudos sobre identidade e diferença, nos quais
iremos tomar por base autores de diversas escolas que em alguma de suas obras trataram os
temas como Stuart Hall (2006), Kathryn Woodward (2009), entre outros.
22
O morador de rua será conceituado a partir da visão do pesquisador Marcel Bursztin,
socióloga Maria Lúcia Montes; a socióloga e pesquisadora da Fipe, Maria Antonieta da Costa
Vieira; Eneida Maria Ramos Bezerra; a assistente social Cleisa Moreno Maffei Rosa, dentre
outros autores, além de relatórios oficiais de pesquisas sobre o tema. Desde pesquisas
governamentais a trabalhos acadêmicos de áreas como saúde, assistência social, cidadania,
etc.
Por fim, para falarmos sobre as representações sociais para poder avaliar como os
moradores de rua estão representados nos discursos jornalísticos, dialogaremos com os
conceitos do psicólogo romeno Serge Moscovici.
Quanto a metodologia, trabalharemos uma pesquisa de caráter teórico-analítico,
juntamente com a análise do material coletado a partir de pesquisa documental nos arquivos
das duas publicações no período de 2005 a 2012, que formarão nossos corpora.
Mais adiante, na apresentação dos corpora, explicaremos como foi a coleta e
consequentemente a seleção dos corpora.
1.6. Estrutura da dissertação
Com as colocações acima, nossa obra será estruturada da seguinte maneira. No
primeiro capítulo, Discurso e jornalismo: algumas considerações teóricas apresentaremos a
base de nosso trabalho: os discursos. O conceito será apreendido no primeiro item do capítulo
– intitulado O discurso e o sentido na sociedade –, a partir do referencial teórico da Análise
de Discurso de Linha Francesa. Dialogaremos com autores como Eni P. Orlandi, Michel
Pêcheux, Heloísa Nagamine Brandão, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin, dentre outros.
Atrelado ao discurso, olharemos no segundo item para uma vertente específica, os
discursos jornalísticos. Esse será intitulado de Relações entre discurso e jornalismo, no qual
articularemos as teorias do discurso às teorias do jornalismo, a partir de autores como Muniz
Sodré, Nelson Traquina, Jorge Pedro Sousa, Cristina Ponte, José Marques de Melo, etc.
Para finalizar o primeiro capítulo traremos o item Diferentes abordagens do discurso
jornalístico: Ocas” e VEJA São Paulo, no qual apresentaremos as características discursivas e
jornalísticas do dois veículos formadores de nossos corpora, as revistas Ocas” e VEJA São
Paulo.
Assim, o primeiro capítulo Discurso e jornalismo: algumas considerações teóricas
está organizado dessa maneira para que possamos explanar sobre o nosso objeto, o discurso,
23
sua especificidade o discurso jornalismo, e apresentar os veículos de comunicação formadores
de nossos corpora. E, retomando, será composto dos seguintes itens:
O discurso e o sentido na sociedade
Relações entre discurso e jornalismo
Diferentes abordagens do discurso jornalístico: Ocas” e VEJA São Paulo
A cidade de São Paulo: e suas relações com a comunicação e o consumo será o nosso
segundo capítulo. Pelo capítulo explanaremos os fenômenos que são temas dos discursos que
analisaremos: as cidades, o morador de rua, o consumo midiático e produção de sentidos.
No primeiro item do capítulo, A cidade: uma perspectiva do consumo, pretendemos
expor, de forma sucinta, o conceito de cidade e como ela se constitui, a partir de uma
abordagem histórica. Passaremos pela Idade Média para apontar as heranças medievais da
cidade contemporânea, assim como olharemos para a cidade moderna, pós-moderna (pós-
industrial) e a economia urbana. Toda a explanação terá a cidade de São Paulo como pano de
fundo e sob a perspectiva do consumo. Dialogaremos com autores como Jacques Le Goff,
Walter Benjamim, Jane Jacobs, Raquel Rolnik, Lewis Mumford, Georg Simmel, Max Webber
e Henri Lefebvre.
Nesse ponto do texto ainda abordaremos, os processos de urbanização do Brasil,
também com foco na cidade de São Paulo, e a constituição sociedade de consumo no País,
tomando como referencial teórico a obra de Paul Singer, Eunice R. Durham, Milton Santos,
etc.
No segundo item do capítulo, denominado A outra cidade de São Paulo: o morador
em situação de rua, conceituaremos o morador em situação de rua, à luz dos conceitos da
identidade e diferença, e com base nas teorias de pobreza urbana e exclusão. Trabalharemos
com autores como Maria Lúcia Montes, Marcel Burzztyn, Stuart Hall, Kathryn Woodward.
A intenção, ao final desses dois primeiros itens do segundo capítulo, é deixarmos claro
o conceito da metrópole como o local de encontro dos diferentes, com base na leitura de
Janice Caiafa. Disso, partiremos para o entendimento da cidade como instância da
comunicação e do consumo. No terceiro item, A cidade: comunicação, consumo, sentidos e
representação, apresentaremos a cidade contemporânea toda midiatizada, a partir da leitura de
Massimo Canevacci, que considera a cidade polifônica (com várias vozes) e polissêmica
(vários sentidos).
Também abordaremos o consumo midiático da cidade que será explanado e dialogado
a partir de autores como Néstor Garcia Canclini, Jésus Martin-Barbero e Roger Silverstone.
24
Por fim, explanaremos sobre as representações sociais, tomando o caso do morador de rua
como central. Para entendimento das representações sociais dessa população, tomaremos
contato com a obra Serge Moscovici.
Então, o capítulo A cidade de São Paulo: e suas relações com a comunicação e o
consumo está organizado da seguinte maneira:
A cidade: uma perspectiva do consumo
A outra cidade de São Paulo: o morador em situação de rua
A cidade: comunicação, consumo, sentidos e representação
No terceiro capítulo Produção de sentidos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo:
representação da diferença no discurso jornalístico apresentaremos os corpora de nossa
pesquisa e a metodologia; trabalharemos os dados coletados; analisaremos os discursos
jornalísticos dos corpora em relação à população sem teto e os resultados do estudo
comparativo entre esses dois veículos. O terceiro capítulo será configurado da seguinte
maneira:
Apresentação dos corpora e dos critérios de seleção
Protocolo de Análise dos corpora
Análise dos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo
Síntese da análise: comparação dos discursos e das representações do morador em
situação de rua nos dois veículos investigados
A última parte de nosso trabalho será composta de nossas considerações finais.
25
2. DISCURSO E JORNALISMO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
2.1. O discurso e o sentido na sociedade
Si o senhor não "tá" lembrado
Dá licença de "contá"
Que aqui onde agora está
Esse "edifício arto"
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímo nossa maloca
Mais, um dia
Nóis nem pode se alembrá
Veio os homi c'as ferramentas
O dono mandô derrubá
Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa
Iniciar um trabalho acadêmico com uma letra de música pode parecer estranho, mas é
uma tentativa de compreendermos melhor nosso objeto de estudo e de tornar o texto mais
próximo da análise de discurso. Por mais que nos acusem de usar o clichê Saudosa Maloca,
talvez uma das composições mais famosas compostas por Adoniran Barbosa sobre a cidade de
São Paulo, há uma explicação.
Escolhemos essa canção por três razões. A primeira é que ela versa sobre a cidade de
São Paulo, e seus contextos sociais. Em seguida, porque traz à luz uma questão central sobre a
cidade: o sem teto. E por último, mas não a menos importante, a letra da música materializa
discursos, e, em nosso trabalho estamos a analisar e problematizar discursos, não
propriamente letras de música, mas o discurso.
Com Saudosa Maloca de pano de fundo, neste item de nossa dissertação, iremos
conceituar a Análise de Discurso, com base os conceitos de Eni P. Orlandi, Michel Pêcheux,
Heloísa Nagamine Brandão, Maria Aparecida Baccega, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin,
dentre outros.
26
2.1.1. As palavras e a produção de sentidos
Quando falamos em discurso, geralmente relacionamos o termo a diferentes acepções
correntes, como o ‘discurso de posse de um presidente’ ou à expressão ‘está mudando de
discurso’ (quando alguém claramente não assume mais a opinião que assumira
anteriormente). Embora tenham a mesma acepção, trazem sentidos distintos, definidos pela
situação em que as palavras se encontram. Ou seja, só é possível compreender essa distinção
de sentido, considerando o todo com o qual se relacionam na enunciação.
Discursos não são textos, mas o que está para além deles, antes mesmos de serem
escritos. São os sentidos que refletem em instâncias de concretização (materializações) como
textos, falas, som, imagens, etc., e são produzidos a partir de alguns pressupostos, que
exporemos adiante.
Sendo um texto um dos possíveis modos de concretização do discurso, temos que,
para analisar o discurso que atravessa o texto, torna-se necessário um processo de
desmontagem ou desconstrução. Desta forma alcançamos instâncias anteriores dessa
produção de sentidos: o processo de produção e, consequentemente, a produção discursiva.
Ou seja, diante de todo ato de apalavramento do mundo – como nosso caso, em que
olharemos para os textos de duas revistas –, um sujeito fala ou escreve, mas este ato de falar
ou escrever não vem apenas desse sujeito, está na sociedade, na maneira de agir e pensar das
pessoas num determinado contexto.
Refazer este caminho, partindo do texto até chegarmos ao discurso e identificarmos
cada uma dessas etapas, é o que pretendemos no trabalho com apoio teórico-metodológico da
Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF ou AD). Esta teoria, desenvolvida a partir dos
anos 1960, pelo filósofo marxista francês Michel Pêcheux, baseia-se, de maneira geral, no
diálogo dos estudos de linguagem com outras áreas do conhecimento, como aponta a linguista
Helena Nagamine Brandão (2012).
Nos anos 60, sob a égide do estruturalismo, a conjuntura intelectual francesa
propiciou, em torno de uma reflexão sobre a “escritura”, uma articulação
entre linguística, o marxismo e a psicanálise. A ADF nasceu tendo como
base a interdisciplinaridade, pois ela era preocupação não só de linguistas
como de historiadores e psicólogos. (p. 16)
Falar da ADF é sempre estar em contato com o pensamento de Pêcheux, que se
dedicou em investigar como a ideologia atua na linguagem. A linguista Eni Orlandi (2005),
pesquisadora brasileira da ADF, o descreve da seguinte maneira.
Ele é o fundador da Escola Francesa de Análise de Discurso que teoriza
como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na
27
linguagem. Concebe o discurso como um lugar particular em que esta
relação ocorre e, pela análise do funcionamento discursivo, ele objetiva
explicitar os mecanismos da determinação histórica dos processos de
significação. Estabelece como central a relação entre o simbólico e o
político. Ou, como diz Courtine (1982), a Análise de Discurso trabalha com
a textualização do político. Com a Análise de Discurso, podemos
compreender como as relações de poder são significadas, são simbolizadas.
É aí que aparece o que esse autor chama de ilusão política no quadro das
preocupações e objetivos da Análise de Discurso. (p. 2)
Assim, com base na ADF, entende-se que todo discurso só é discurso quando inserido
em um contexto sócio-histórico e ideológico. Como colocado, Pêcheux, ao estruturar sua
teoria, entende que a ideologia é materializada na linguagem e vice-versa e concebe o
discurso como um lugar particular onde esta relação ocorre. Logo, a análise do funcionamento
discursivo tem como objetivo demonstrar como os significados são determinados na história.
Pelo exposto até agora, compreendemos que o funcionamento discursivo expressa um
movimento regido por elementos contextuais, ou seja, além de não ser o texto, o discurso não
é a palavra, mas o homem falando. E para afirmar isso, estamos considerando a conceituação
que Orlandi (2009) faz de discurso, como sendo a palavra em curso, ou melhor, dentro de um
percurso no qual é atravessada pelos, invariavelmente por contextos histórico, social e
ideológico.
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua,
não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do
discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso,
de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o
homem falando (p. 15)
Se tomarmos essa referência diante do exemplo da música Saudosa Maloca, podemos
observar que, de fato, o discurso é “trabalho simbólico, parte do trabalho social geral,
constitutivo do homem e sua história” (ORLANDI, 2009, p. 15), ou seja, a condição de ser
trabalho simbólico aponto que o discurso, são as palavras exercendo funções em determinados
contextos, e, por meio da análise do discurso, no nível linguístico e extralinguístico algumas
questões como a produção de sentidos podem ser analisadas. Ela e outros conceitos serão
explicados de agora em diante.
Ao consultarmos em um dicionário da Língua Portuguesa (ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS, 2008) a palavra ‘linha’, serão apresentados muitos significados
distintos, 18 no total. Dependendo de nossa intenção um deles poderá saciar a nossa demanda
pela consulta, no entanto o que nos interessa é mostrar como dependendo do contexto
buscamos por um significado específico. Quando nos referimos a ‘linha’ em uma conversa
28
sobre corte e costura, por exemplo, certamente o significado será bem diferente de ‘linha de
ônibus’ ou ‘linha de trem’.
Utilizamos o exemplo – um tanto quanto simplista – para ilustrar que a mesma palavra
possui significados que só podem ser compreendidos quando inseridos em uma determinada
situação de comunicação e esta é que, grosso modo, concederá sentido a essa palavra, pois as
palavras só têm sentido em suas relações com outras palavras e contextualizadas.
Tentamos mostrar com o exemplo acima que não existem sentidos literais para as
palavras, pois elas, necessariamente, sempre estarão, exercendo um trabalho simbólico, em
curso, inseridas em algum contexto e não em outros e é diante desta inserção que elas ganham
sentidos – a linha de costura não é a linha de trem, evidente. Como aponta a pesquisadora
Maria Aparecida Baccega “a palavra só assume seu significado no contexto, no discurso, é ele
quem desfará a ambiguidade.” (BACCEGA, 2007, p. 16)
Agora, reparem, por exemplo, na letra da música na qual, ao considerarmos a base
linguística, um sujeito que fala de um fato: o despejo e destruição de sua antiga casa. Alguns
enunciados explicitam a questão da não literalidade ‘Mato grosso’, por exemplo, não é um
vegetal largo ou espesso, tampouco o estado da região centro-oeste brasileira, mas o apelido
de um dos amigos que moravam na casa. Quando falamos sentidos não estamos nos atendo
apenas às palavras, mas ao todo do texto. Assim, para compreender os sentidos e,
consequentemente o discurso, percorreremos conceitos de Ilusão Discursiva, Formações
Imaginárias e Formações Ideológicas até chegarmos às formações discursivas.
2.1.2. Esquecer, antecipar e ideologizar: ações do sujeito
Para Pêcheux, as Ilusões Discursivas são determinadas pelo conceito de
Esquecimento, que está dividido em duas frentes. A primeira delas é o Esquecimento
Ideológico: no qual o sujeito do discurso tem ilusão de ser a origem do sentido, quando, apaga
tudo que remeta ao exterior de sua formação discursiva. Esse é também chamado de
Esquecimento Adâmico, pois remete à origem e a Adão. Orlandi (2009) pontua esse
esquecimento da seguinte maneira:
Na realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam
como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como nos
inscrevemos na língua e na história e é por isto que já se significam e não
pela nossa vontade (p. 35)
Já o segundo, trata do Esquecimento Enunciativo, ou seja, ao escolhermos uma palavra
e não outra, isso indica que escolhemos palavras que poderiam ter sido outras que foram
29
esquecidas. Nesse, apaga-se a noção de que todo discurso retoma um já dito. Ou seja, o
sujeito tem a ilusão que detém total domínio sobre o significado do que diz e o que será
entendido pelo outro.
[...] o esquecimento é estruturante. Ele é parte da constituição dos sujeitos e
dos sentidos. As ilusões não são “defeitos”, são uma necessidade para que a
linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos. Os sujeitos
“esquecem” que já foi dito – e este não é um esquecimento voluntário – para,
ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em sujeitos. É assim
que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam
retomando palavras já existentes como se elas se originassem neles e é assim
que sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de
muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas mas, ao mesmo tempo
sempre outras. (ORLANDI, 2009, p. 36)
Partindo das Ilusões Discursivas, que em resumo podem ser definidas como a ideia de
um sujeito se considerar senhor fundador de seu discurso e selecionador entre o dito e o não-
dito, chegamos às Formações Imaginárias. Estas compreendem três conceitos importantes, a
saber: Relações de Sentido, Relações de Força e Antecipação.
As Relações de Sentido falam do continuum discursivo: “o discurso aponta para outros
que o sustentam, assim como para dizeres futuros” (ORLANDI, 2009). Os discursos atuam
assim, de um modo contínuo, existem antes, durante e depois dos momentos de fala, são
inesgotáveis, todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para
outro. Essa ideia é compreendida em nosso exemplo introdutório, Saudosa Maloca, que
retoma características orais (sotaque) e faz menção à lembrança, demonstrando que o discurso
vem de uma situação anterior, e ocorrida no passado.
De forma emblemática, as expressões usadas na música fogem à norma culta da
Língua Portuguesa, porém não estão desprovidas de atravessamento histórico, social e
ideológico, pois tratam justamente do homem falando. A própria materialização dessa ação
(texto) mostra isso, pois são grafias fiéis à sonoridade da fala na cidade de São Paulo – com
muitos equívocos gramaticais, por sinal –, em tempos que a população por conta da grande
influência dos imigrantes, em especial o italiano, falavam um idioma híbrido. Exemplo disso
é o fato de não se observar o ‘s’ para marcar o plural das palavras, apenas para demarcarmos
uma das características desta fala coloquial diferenças em relação ao português.
Já as Relações de Força se definem diretamente sobre o local de fala desse sujeito
enunciador. Em Saudosa Maloca, nosso exemplo, o enunciador é o desalojado que narra, com
base na memória, o episódio de demolição de sua casa para dar lugar a um prédio alto. Fosse
o enunciador o construtor do prédio (o edifício arto), certamente ele estaria em outra posição
de sujeito e, portanto, de outro lugar de fala. Como elucida Orlandi (2009):
30
Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito
é constitutivo do que ele diz. Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de
professor, suas palavras significam de modo diferente do que se ele falasse
do lugar de aluno. O padre fala de um lugar em que suas palavras têm uma
autoridade determinada junto aos fiéis etc. como nossa sociedade é
constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no
poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na comunicação. As fala
do professor vale (significa) mais do que a do aluno. (p. 39 e 40)
Agora, cabe perguntar, por que a letra de Saudosa Maloca, com todas as suas não-
conformidades com a norma culta da Língua Portuguesa, como descrito acima se faz
compreensível ao interlocutor?
Os dois conceitos apresentados: Relações de Força e Relações de Sentido clareiam
uma possível explanação sobre as Formações Imaginárias, no entanto é no terceiro deles, o
da Antecipação, que temos a resposta para esse questionamento, e o complemento da
definição para as Formações Imaginárias.
Ao escrever a letra da música, o autor, que neste caso é o enunciador (iremos
conceituar o termo mais adiante, mas via de regra entende-se como o sujeito do discurso),
vislumbra um ouvinte no horizonte de seu processo criativo, para quem endereça o discurso.
É como se ele realizasse uma emulação de sentidos em si para que o interlocutor compreenda
expressões como ‘edifício arto’ ou ‘se alembrá’. É neste exercício de projeção do ouvinte que
o compositor realiza o procedimento de antecipação, ou seja, o virtualiza, de modo a
enquadrá-lo em um perfil referenciado pelas condições socioeconômicas e culturais, e assim
produz os sentidos com sua fala, mais à frente veremos como esse procedimento é muito caro
ao discurso jornalístico.
Por outro lado, segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a
capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu
interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor
quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a
argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro,
segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. (ORLANDI, 2009, p.
39)
Não necessariamente estamos falando do sujeito da gramática, que é o agente da ação,
mas um sujeito discursivo, como define Brandão (BRANDÃO, 2012)
Assim, esse sujeito essencialmente marcado pela historicidade não é o
sujeito abstrato da gramática, mas um sujeito situado no contexto sócio-
histórico de uma comunidade, num tempo e espaço concretos. É um sujeito
interpelado pela ideologia, sua fala reflete os valores, as crenças de um
grupo social. Não é o único, mas divide o espaço de seu discurso com o
outro, na medida em que, na atividade enunciativa, orienta, planeja, ajusta
sua fala tendo em vista um interlocutor real, e também porque dialoga com a
fala de outros sujeitos, de outros momentos históricos, em um nível
31
interdiscursivo. [...] O sujeito se forma, se constitui na relação com o outro,
percebendo sua alteridade: isto é, da mesma maneira que toma consciência
de si mesmo na relação com esse outro, o sujeito do discurso se constitui, se
reconhece como tendo uma determinada identidade na medida em que
interage com outros discursos, com eles dialogando, comprando pontos de
vista, divergindo, etc. (p.26)
Na ADF, sempre que pensamos em seus agentes, devemos fazer uma distinção
importante: indivíduo e sujeito. No discurso, o indivíduo pode vir a ser tornar agente, se
interpelado pela ideologia, como define o filósofo marxista francês Louis Althusser (1985):
“[...] toda ideologia interpela os indivíduos concretos enquanto sujeitos concretos, através do
funcionamento da categoria de sujeito”. (p. 96). Logo, o indivíduo, na teoria do discurso não
materializa sua ideologia a partir do discurso.
Com efeito, toda ação é influenciada pela ideologia, e como o discurso é uma ação,
todo discurso é ideológico. Orlandi, (2009) entende não existir sentido qualquer sem
interpretação e, além disso, diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a
interpretar, e neste ato atesta a presença da ideologia. Assim, quando atravessado pela
ideologia, o indivíduo se faz sujeito:
Podemos começar por dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é a
condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é
interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. Partindo
da afirmação de que a ideologia e o inconsciente são estruturas-
funcionamentos, M. Pêcheux diz que sua característica comum é a de
dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento,
produzindo um tecido de evidências “subjetivas”, entendendo-se
“subjetivas” não como “que afetam o sujeito”, mas, mais fortemente, como
“nas quais se constitui o sujeito”. Daí a necessidade de uma teoria
materialista do discurso – uma teoria não subjetivista da subjetividade – em
que possa trabalhar esse efeito de evidência dos sujeitos e também dos
sentidos. (p. 46)
Esta distinção entre indivíduo e sujeito se faz necessária para compreendermos as
condições de produção. O mesmo indivíduo pode se fragmentar em diversos sujeitos, a partir
do que Foucault chama de dispersão.
Indivíduo e sujeito não são a mesma coisa. Um indivíduo se fragmenta em
muitos sujeitos, e é o sujeito que fala e fala de um lugar determinado. O
mesmo indivíduo é cindido em diversos sujeitos, que se formam no interior
do processo discursivo e que podem se movimentar de acordo com a maré. É
um processo complexo, porque se assemelha a uma “quebra de identidade”
busca legítima de todo indivíduo e, por isso, é feito de modo inconsciente e
não-reflexivo. Não temos consciência, pelo menos não na maioria das vezes,
de que nos colocamos como sujeitos diferentes em nossos discursos. Essa
mobilidade constante, própria do discurso, é caracterizada por Foucault
como dispersão. (BENETTI e JACKS, 2001)
32
Baccega defende que essa interpelação do indivíduo em sujeito se dá na interação
social, por meio da linguagem, a educação, os valores e a classe socioeconômica a qual ele
pertence:
Logo, o sujeito é um indivíduo concreto, que se constitui na interação social.
É esse o lugar de sua prática. É a partir daí que ele interage com o objeto do
conhecimento. Essa interação vai se dar através de da linguagem sobretudo a
verbal; através do aparelho conceptual que ele recebe pelo processo social da
educação; através dos sistema de valores no qual ele se banha e que é
fortemente marcado pela classe social e/ou pelo nível socioeconômico a que
pertence. (BACCEGA, 2007, p. 11)
Assim como o conceito de Antecipação, essa definição nos será importante para
compreendermos o produto jornalístico. Mas antes de chegarmos a ele, falaremos das
Condições de Produção.
2.1.3. Condições de produção
Todo discurso é produzido em determinadas condições que o faz único e seus sentidos
produzidos serão condizentes a esse cenário. Essas são as chamadas Condições de Produção.
Elas compreendem os sujeitos, a situação e a memória e estão divididas em dois contextos:
imediato (sentido restrito) e amplo.
Esses dois contextos são especificados conforme a explanação de Brandão (2012).
A noção de condições de produção pode ser definida como o conjunto dos
elementos que cerca a produção de um discurso. No sentido mais restrito, diz
respeito à situação de enunciação que compreende o eu aqui-agora: num
sentido mais amplo, compreende o contexto sócio-histórico-ideológico que
envolve os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si,
do outro e do objeto de que estão tratando. Todos esses aspectos devem ser
levados em conta quando procuramos entender o sentido de um discurso”.
(p. 22 e 23)
Novamente tentaremos ilustrá-los trazendo para nosso exemplo, em Saudosa Maloca.
As condições de produção imediatas na música podem ser compreendidas como o local, a
cidade de São Paulo; os sujeitos que assinam o discurso (Adoniran Barbosa); o momento no
qual se enuncia, (a demolição da casa), enfim, as imagens que são construídas dos sujeitos e
dos locais.
Já o contexto amplo das condições de produção compreendem as instituições, história,
efeitos de sentido, etc. Por exemplo, podemos considerar na música que o contexto sócio-
histórico é crescimento da cidade de São Paulo, na década de 1950; o sotaque híbrido, que
33
caracteriza a oralidade da cidade, dentre outros. “As Condições de Produção constituem a
instância verbal de produção do discurso: o contexto histórico-social, os interlocutores, o
lugar de onde falam e a imagem que fazem do outro de si e do referente” (BRANDÃO, 2004,
p. 105).
Em termos teóricos, o linguista francês Dominique Maingueneau, apresenta alguns
aspectos justificam as chamadas Condições de Produção:
Essa noção, advinda da psicologia social, foi reelaborada, no campo da
análise de discurso, por Pêcheux para designar não somente o meio ambiente
material e institucional do discurso, mas ainda as representações imaginárias
que os interactantes fazem de sua própria identidade, assim como do
referente de seus discursos (MAINGUENEAU, 2006, p. 30)
Já Orlandi (2009) descreve as condições de produção considerando o material, o
institucional e o imaginário.
As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a
equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua
ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos
sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-
histórica. Temos assim a imagem da posição sujeito locutor (quem sou eu
para lhe falar assim?) mas também da posição sujeito interlocutor (quem é
ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim?), e também a do
objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?). É pois,
todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. (p. 40)
Transpassando o conceito das Condições de Produção para a produção editorial
jornalística, entendemos que se trata de um produto ideológico concebido a partir de uma
situação ideológica, histórica e social anterior a ela e que produz um sentido a posteriori, é
isso que o filósofo russo e pensador da linguagem Mikhail Bakhtin (2006) entende como
sendo produto de um reflexo social e que refrata posteriormente na sociedade.
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como
todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao
contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é
exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo
situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um
signo. Sem signos não existe ideologia. (p. 29)
2.1.4. Ideologia, Formações discursivas e Interdiscurso
A instância material da ideologia é o discurso (ORLANDI, 2009; BRANDÃO, 2004).
É a partir desta leitura que o conceito de ideologia se inscreve na Análise de Discurso. Mas
qual a importância, de fato, da ideologia no contexto da ADF? A ideologia é essencial para a
34
existência da discursividade e dos sentidos, pois ela é responsável para que exista um sujeito,
Como explica Orlandi (2009):
[...] é também a ideologia que faz com que haja sujeito. O efeito ideológico
elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação ideológica do
indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por seu lado, a
interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente o
apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique
produzindo o efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do
sujeito ser a origem do que diz. (p. 48)
Brandão complementa esse raciocínio sobre o sujeito interpelado pela ideologia.
Essa interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo (sem
que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que
é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos
grupos ou classes de uma determinada formação social. (BRANDÃO, 2004,
p. 46 e 47)
Logo, entende-se que analisar o discurso é compreender como a ideologia implica
num sentido e como este é produzido, pois diante de qualquer objeto simbólico o homem é
levado a interpretar, mas não sabe que está interpretando como se o sentido estivesse sempre
lá, ou seja, naturaliza-se simbólica e historicamente.
A esse conjunto de ideias, a essas representações que servem para justificar e
explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que
ele mantém com os outros homem é o que comumente se chama ideologia.
Como ela é elaborada a partir de formas fenomênicas da realidade, que
ocultam a essência da ordem social, a ideologia é “falsa consciência”.
(FIORIN, 2007, p. 28 e 29)
Pensemos agora na ideologia de forma mais ampla na ADF. Michel Pêcheux, afirma
Maingueneau (2006), entende que toda formação social (classes sociais) implica na existência
de formações políticas e ideológicas que não são o feito de indivíduos, mas de grupos. Nas
classes sociais, as formações políticas e ideológicas incluem-se uma ou várias Formações
Discursivas (FD), que determinam o que pode e que não pode ser dito.
Baccega, em sua compreensão de FD, defende que dentro de uma mesma classe social,
diversas delas estão presentes, prevalecendo sempre a do dominante:
Formações ideológicas/formações discursivas constituem, elas próprias,
espaços dialéticos, onde habitam contradições e contrários, em permanente
conflito entre reprodução e transformação, entre conservação e mudança.
É neste jogo que se constitui o discurso. É aí que está estabelecido o sentido:
nessas formações ideológicas, que tanto comportam a reprodução, a
conservação, quanto a transformação, a mudança; nessas formações
discursivas e suas manifestações que tanto poderão se orientar para um ou
outro polo, que tanto poderão servir aos interesses de uma ou outra classe.
No campo das formações ideológicas formações discursivas se estabelecem,
na verdade, as práticas da luta de classes. (BACCEGA, 2007, p. 54)
35
Orlandi (2009; 2005) também tributária do conceito de Pêcheux diz que ao se
relacionar as FD com as ideológicas, os sentidos serão determinados a partir das posições
ideológicas, quando estas estão em jogo dentro do processo sócio-histórico, no qual as
palavras são produzidas, estas então serão as formações discursivas.
Logo, quando um discurso produz sentidos o faz porque é também condicionado pela
formação discursiva. Explica Orlandi:
O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se
inscreve em uma formação discursiva e não em outra para ter um sentido e
não outro.[...] As formações discursivas, por sua vez, representam no
discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são
determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. Tudo que
dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços
ideológicos. E isto não está na essência das palavras mas na discursividade,
isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos,
materializando-se nele. (ORLANDI, 2009, p. 43)
Como consequência dessa notação, temos, com efeito, que as palavras mudam de
sentido, passando de uma FD a outra, pois, antes de serem palavras, são discursos e, estes
ideologicamente produzidos.
Para ilustrar, voltemos a nossa introdução. Nela, a palavra Maloca, não possui o
sentido estrito como está em muitos dicionários de ser uma casa de palha que serve de
moradia aos índios.
Porém, na letra de Adoniran Barbosa, de fato Maloca tem o sentido de casa ou lar, no
entanto, mais precisamente, de um espaço privado e confortável, ainda que humilde. Estivesse
deslocada dessa formação discursiva, mesma palavra, poderia assumir também o sentido de
local bagunçado, impróprio para viver, dentre outros sentidos.
É pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no
funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem
significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas
diferentes. (ORLANDI, 2009, p. 44)
Atrelada à noção de Formação Discursiva, há ainda de se considerar a questão do
Interdiscurso. Estes se localizam entre duas ou mais FD:
As formações discursivas podem ser vistas como regionalizações do
interdiscurso, configurações específicas dos discursos em suas relações. O
interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando, pelo já-dito, aquilo que
constitui uma formação discursiva em relação a outra. (ORLANDI, 2009, p.
43 e 44)
Para Maingueneau (2006), o Interdiscurso representa as reconfigurações das
Formações Discursivas com elementos que estão fora dela, pois elas não são blocos
36
compactos ou herméticos, mas sim interpenetrados por outras Formações. Assim é o
interdiscurso que traz instabilidade à elas, tornando o discurso contraditório e não
individualizado. É o Interdiscurso quem concede a diferença ao discurso. Logo, uma FD é
definida pelo Interdiscurso e não o contrário.
O Interdiscurso ainda aborda o já dito, dentro daquilo que já expusemos quando
falamos do Esquecimento, como aponta Orlandi:
Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido.
E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito
específico, em um momento particular se apague na memória para que,
passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras.
(2009, p. 33 e 34)
Ou, como coloca Brandão (2012):
A noção de interdiscursividade surge para designar o “exterior específico”
que irrompe no interior de uma FD. Ao se colocar a relação da FD com um
exterior e anterior, vê-se obrigado a reconhecer como elementos importantes
a serem considerados na análise de uma FD. (p. 22)
Podemos considerar que Adoniran Barbosa, como coloca Orlandi (2009), escreveu
Saudosa Maloca se inscrevendo como sujeito em determinada “Formação Discursiva e não
em outra para ter um sentido e não outro” (p. 43). Os sentidos das palavras, assim são
determinados pelas formações discursivas as quais estão inscritas.
Pelo conceito da Formação Discursiva, podemos entender que o discurso é mais o
lugar da reprodução que da criação (FIORIN, 2007), pois ao determinar o que deve ser dito,
as Formações Discursivas estão para além do enunciador, ou seja, os discursos não são
propriedades de quem o fala, mas eles atravessam esse enunciador, que será abordado a partir
de agora.
2.1.5. Enunciação, enunciado e enunciador
Nesta última parte da elucidação de Discurso e Análise de Discurso iremos falar sobre
Enunciados, ou o elemento que servirá de base para realizarmos a nossa análise mais adiante.
Em linhas-gerais, o enunciado é produto da enunciação e produzido pelo enunciador.
Para iniciarmos devemos fazer uma distinção entre o locutor, quem fala e que pode ser
identificado pelo enunciado, e o enunciador compreendido como “a pessoa de cujo ponto de
vista são apresentados os acontecimentos.” (Ducrot, 1987)
O locutor é quem fala, o enunciador é aquele “a partir de quem se vê”. Ou
seja: o enunciador deve ser identificado, na análise das vozes, como a
perspectiva a partir da qual o enunciador enuncia. Essa perspectiva está
37
diretamente associada a uma posição de sujeito, conformada também por
inscrições culturais, sociais e históricas, que podemos – na estrutura da AD –
reunir nas formações ideológicas. (BENETTI, 2007, p. 119)
Quando um discurso é manifestado, dizemos que ocorre um ato de enunciação, ou
seja, ao falar ou escrever, o enunciador produz um discurso relacionado, evidentemente, com
as formações ideológicas/discursivas.
A enunciação é, portanto, o lugar onde “nasce, o discurso, o lugar de onde
“brota” o discurso. O enunciado é a manifestação desses discurso, quer seja
na modalidade escrita da língua, quer seja na modalidade oral.
A enunciação se relaciona com a formação ideológica. A formação
ideológica relaciona-se com a dinâmica das classes sociais, as quais têm
interesses opostos e conflitantes. Apesar disso, não podemos dizer que cada
classe pratica uma ideologia totalmente diversas da outra classe. Isso porque
há uma ideologia dominante que perpassa todas as formações ideológicas e,
portanto, todas as formações discursivas. (BACCEGA, 2007, p. 53)
Por fim, Brandão (2012) destaca a heterogeneidade do ato enunciativo.
por isso, fornecerem ao analista do discurso instrumental produtivo para
exploração de um modus operandi que possibilite trabalhar imbricadamente
a materialidade linguística e o nível discursivo(na proposição de Pêcheux,
referidos como base linguística e processar discursivo). (p.28)
Assim, portanto, o papel de enunciador só pode ser ocupado por um sujeito, ou seja,
como já explanamos, um indivíduo interpelado por uma ideologia e na condição de sujeito da
enunciação produz o que chamamos de enunciado.
2.1.6. Sobre o discurso...
Em linhas gerais, a Análise do Discurso, incondicionalmente, estuda a linguagem
dentro da sociedade impossibilitando qualquer tentativa de pensá-la fora desse contexto.
(BRANDÃO, 2012) (ORLANDI, 2009). Foi o que tentamos abordar neste item do primeiro
capítulo de nossa dissertação, com base na letra da música, Saudosa Maloca (que nos serviu
de exemplo durante toda esta explanação).
Feito isso, podemos afirmar que dificilmente seria possível analisar a letra (da forma
que fizemos) sem considerarmos alguns aspectos como, a cidade de São Paulo, seus
problemas habitacionais, seu desenvolvimento econômico, seu sotaque claramente
influenciado pela língua italiana (explicitado nas hibridizações fonéticas). E por aí que passa a
análise de discurso, pelo entendimento que o homem fala, sempre inserido em um contexto
social, histórico e ideológico.
38
E é por esse motivo que nossa intenção é estudar a produção de sentido dos discursos
jornalísticos sobre os moradores em situação de rua da cidade de São Paulo, a partir da análise
de sua materialidade textual. Entendemos que ao desmontarmos esses textos jornalísticos,
compreenderemos como é a produção de sentidos desses discursos na sociedade. Este é o
grande desafio deste trabalho. Para tanto, a ADF é o nosso principal referencial teórico-
metodológico, pois como entende a linguista Helena Nagamine Brandão (2012):
os estudos na perspectiva discursiva visam descrever como funciona a língua
no seu uso efetivo, como se dá a produção de efeitos de sentidos entre
interlocutores, sujeitos situados social e historicamente (p. 19 e 20).
Ou seja, tanto no produtor como no receptor, sentidos são produzidos, e ambos
realizam o ato de significar por meio de suas condições sociais e históricas, além da
ideológica, que iremos conceber por meio do conceito de formação discursiva.
Entendemos que, ao trazer a análise de discurso como principal referencial teórico-
metodológico para a nossa pesquisa, estamos olhando para o jornalismo de forma a
problematiza-lo, não somente dentro de si próprio – com base nas teorias do jornalismo e seu
ethos –, mas diante de um contexto mais amplo. Mais especificamente, trata-se de uma
problematização do jornalismo e de suas lógicas de produção dentro da sociedade de
consumo. Pois, concordamos com a definição das pesquisadoras Márcia Benetti e Nilda
Jacks:
Não há jornalismo sem aquilo que costumamos compreender como sendo
“exterior”: os fatos, as relações de poder, os contextos sociais, as decisões
políticas, os interesses econômicos, as crenças religiosas, as concepções
estéticas. Tudo isso, que por uma questão de recorte temos por hábito deixar
“fora” do discurso, na verdade o constitui. O discurso é o resultado de tudo
que lhe parece externo. Em um movimento complexo, o jornalismo mostra e
esconde o que convém a seus enunciadores por meio de estratégias
discursivas. Cabe, então, à teoria do jornalismo construir um quadro
reflexivo que permita evidenciar este movimento. (2001, p. 12)
Benetti (2007) ainda nos mostra como e em quais pontos a a ADF pode ser útil à
análise e problematização do jornalismo
Consideramos que a AD é especialmente produtiva para dois tipos de estudo
no jornalismo: mapeamento das vozes e identificação dos sentidos. Esses
dois tipos de pesquisa estão em intima relação, mas podem ser
desenvolvidos em momentos distintos e exigem procedimentos específicos
(p. 107)
Assim, nossa ideia será localizar, a partir da ADF, e sob um ponto de vista crítico os
temas Comunicação, Consumo, Discurso jornalístico, Ideologia.
39
A análise do discurso deve desfazer a ilusão idealista de que o homem é
senhor absoluto de seu discurso. Ele é antes servo da palavra, uma vez que
temas figuras, valores, juízos etc., provêm das visões de mundo existentes na
formação social (FIORIN, 2007, p. 78)
No próximo item, Relações entre discurso e jornalismo, conceituaremos o jornalismo,
inserindo-o dentro de uma ambientação da Comunicação e do Consumo em uma tentativa de
buscar a problematização citada acima.
2.2. Relações entre discurso e jornalismo
Vigilantes do momento
Senhores do bom jargão
Façam já soprar o vento
Seja em qualquer direção
Que o jornal é a matéria
E o espírito do mundo
Coisa fútil, coisa séria
Todo escrever vagabundo
Um jornal é tão diverso
Um jornal é tão diverso
Tudo impresso, tudo expresso
Tudo pelo sucesso
É tão diverso um jornal
Não importa a má notícia
Mas vale a boa versão
Na nota um toque de astúcia
E faça-se a opinião
De outra feita, quando seja
Desejo editorial
Faça-se sujo o que é limpo
Troque-se o bem pelo mal
O jornal (Gilberto Gil)
2.2.1. Discurso jornalístico: Construtor de realidades
Para iniciar este item, vamos tomar como referência a canção O jornal, de Gilberto
Gil. Na letra, o compositor baiano faz uma referência ao jornal e à atividade jornalística, com
versos que serão úteis para ajudar refletirmos e explicarmos sobre o discurso jornalístico.
Ainda que esses versos retratem o jornalismo a partir do senso comum.
40
Independentemente se são verdades, meia-verdades ou mentiras, olharemos para a
letra da música como uma construção da atividade jornalística, a partir do local de fala do
compositor. Assim, inspirados por ela, neste item, iremos discorrer sobre o discurso
jornalístico, conceito que será concatenado a Teorias do Jornalismo, Teorias do Discurso e
Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF), ambas explicitadas no item anterior. Para
tanto, dialogaremos com diversos autores que têm no jornalismo o seu objeto de estudo como
o jornalista e doutor em sociologia, Nelson Traquina; e os professores e pesquisadores da área
da comunicação Cristina Ponte, Muniz Sodré, José Marques de Melo, dentre outros.
Percorreremos o seguinte caminho: a explicitação dos conceitos das Teorias do
Jornalismo – Agenda setting, Fato, Valor Notícia, Gatekeeper, Newsmaker e Teoria
Interacionista –, passando pelo Discurso Jornalístico, com base no que já falamos no item
anterior; e, por fim, classificaremos os Gêneros Jornalísticos, descrevendo seus formatos mais
usuais, para a compreensão de como trabalharemos nossos Corpora.
Acreditamos a pertinência deste percurso, pois, com a abrangência teórica e
contextual da ADF será possível compreendermos a importância de se relacionar o jornalismo
ao social, ou seja, em meio à sociedade de consumo ou a sociedade urbana e industrial, e
democrática, visão em acordo com o colocado pela pesquisadora Cremilda Medina (1988):
“Não é mais possível discorrer sobre a mensagem jornalística como um dado isolado da
realidade” (p. 16).
Consideramos que esse pensar sobre a mensagem jornalística integrada à sociedade,
possa ser justificado a partir do Agenda Setting ou Teoria da Agenda, na qual, o jornalismo é
uma das práticas da comunicação de massa que realiza o agendamento de assuntos na
sociedade.
Essa hipótese defende que os meios de comunicação de massa não
pretendem persuadir, mas apresentam ao público uma lista do que é
necessário ter uma opinião e discutir. A Teoria da Agenda demonstra que a
compreensão que as pessoas têm de grande parte da realidade social é
fornecida predominantemente pelos meios de comunicação de massa. A
imprensa não diz às pessoas o que elas devem pensar, mas sobre que temas
devem pensar, o que também mostra uma forma de controle (PESSOA
TEMER e ALBIERY NERY, 2009, p. 72 e 73)
É na sociedade industrial e urbana, a partir de meados do século XIX, com o
crescimento das cidades que as pessoas passam a ter melhor poder aquisitivo e a demandar
informações usando o jornalismo como um meio para consumi-las em forma de notícias e a
suprir essa demanda (TRAQUINA, 2005). As categorias dos assuntos que lhes interessavam
41
eram variadas. Elas desejavam se informar sobre a cidade, o cotidiano urbano, a política, a
economia, etc. É diante dessa prática de consumo de informações, em formato de notícias,
que queremos problematizar a prática jornalística por meio da análise do discurso jornalístico.
Essa época também marca um período de novos objetivos para a atividade jornalística,
segundo o mesmo autor, a intenção a partir daquele momento era:
[...] fornecer informação e não propaganda. Este novo paradigma será a luz
que viu nascer valores que ainda hoje são identificados com o jornalismo: a
notícia, a procura da verdade, a independência, a objetividade, e uma noção
de serviço ao público – uma constelação de ideias que dá forma a uma nova
visão do “polo intelectual” do campo jornalístico. (TRAQUINA, 2005, p.
34)
A sociedade consome informação na forma de notícias dentro dos discursos
jornalísticos, essa é máxima que trabalharemos neste trecho da dissertação. Ao
problematizarmos o consumo jornalístico temos de considerar uma premissa. Em todo ato de
consumo deve haver uma confiança do consumidor e o bem consumido, o primeiro
entendendo que o segundo é de fato o seu deu desejo, sem margem a descrédito de qualquer
natureza. Em outras palavras, um dos principais fatores que propiciam esse consumo de
informações é o acordo tácito entre o jornalista e o público, a chamada credibilidade.
(SOUSA, 2004; TRAQUINA, 2005). Ou seja, deve haver uma relação de confiança do
leitor/consumidor para com o jornalista, produtor que torna a informação, concedida por esse
segundo, fidedigna.
Uma informação ou fato ao serem manuseados pelo jornalista tornam-se a notícia, que
possui características específicas que as diferem de uma informação ou fato comuns. Como
primeira característica, podemos citar a expectativa. Só uma informação esperada por se uma
notícia, como quando alguém chega e fala: “Tenho uma notícia para lhe dar”, certamente o
entendimento do interlocutor, ao ouvir essa expressão, é que o que será contado possui
qualidades que promovem o suspense do anúncio. Quanto a esse aspecto, a notícia em uma
comunicação interpessoal não é diferente do que é a notícia no jornalismo. Mas, então, a
notícia é só algo que gera expectativa? Não, somente.
Para Sodré (2012), a notícia é um fato que possui alguns diferenciais determinados
pelo Valor-Notícia, esse componente as diferem do simples fato em si. Dentre outras
características, a notícia deve possuir relevância não somente no âmbito privado, mas também
no público. São considerados valores-notícia: atualidade, proximidade, impacto, interesse
público, relevância, intensidade, frequência, amplitude, clareza, consonância/conformidade,
42
imprevisibilidade, continuidade, composição, referência a nações de elite, menção a pessoas
da elite e pessoas, e negativismo. Sodré (2012) salienta ainda que esses valores não são fixos.
Na prática, os valores que sustentam a noticiabilidade de um fato – ou seja, a
condição de possibilidade para que este venha a transformar-se em notícia –
podem variar segundo o lugar do fato, do nível de reconhecimento social das
pessoas envolvidas, das circunstâncias da ocorrência, da sua importância
pública e da categoria editorial do meio de comunicação (p. 21 e 22)
Gil, em sua composição, faz uma menção a essa ideia com as expressões Coisa fútil,
coisa séria. Uma possível intenção dele é demonstrar que na atividade jornalística o fato ainda
que fútil possa ser compreendido como sério e que tenha uma noticiabilidade que sustente, ou
seja, os Valores-Notícia.
Agora, se compreendidos os Valores-Notícia como conjunto de regras, que regem a
produção jornalística, como aplicá-los? Ou melhor, quem pode aplicar? Ou, ao menos, fazer
com que se respeite esse conjunto de regras? Na produção jornalística, para se chegar à
notícia, um agente é determinante para que se componha o valor-notícia, o Gatekeeper:
O conceito de gatekeeper foi elaborado por Kurt Lewin em 1947, ao detectar
a existência de “zonas” na produção de notícia que podem funcionar como
“cancelas”, nas quais o jornalista atua como porteiro, deixando, ou não
“passar” a informação e dessa forma, determinando se ela será ou não
publicada. Essas zonas são controladas pelos gatekeepers, indivíduos ou
grupo que tem o poder de decidir o que é matéria de interesse e o que não é.
Ao filtrar o que vai ser noticiado, o gatekeeper tem o poder de dirigir os
receptores da mensagem para os temas de seu interesse ou do interesse
daqueles para quem trabalha. (PESSOA TEMER e ALBIERY NERY, 2009,
p. 65)
Assim como um porteiro que concede ou não a passagem de uma pessoa, o gatekeeper
tem o poder de decisão, e esta não é uniforme ou isento, fatores influenciam as escolhas.
Considerem, a partir do colocado acima, o quanto a decisão pela publicação ou não de um
determinado conteúdo jornalístico aos seus receptores pode ser direcionada. Traquina (2005)
compreende esse processo de decisão subjetivo e arbitrário.
Nessa teoria, o processo de produção da informação é concebido como uma
série de escolhas onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos gates,
isto é, “portões” que não são mais do que áreas de decisão em relação às
quais o jornalista, isto é o gatekeeper, tem de decidir se vai escolher essa
notícia ou não. (p. 150)
Assim, com o entendimento do que é o Gatekeeper e com o deslizamento de conceitos
que apresentamos no capítulo anterior – sujeito-enunciador, condições de produção do
discurso, formações discursivas e ideológicas, entre outros –, entendemos que o Gatekeeper,
43
não é um indivíduo, mas um sujeito, que interpelado pela ideologia, realiza escolhas que são
determinantes para o produto final que é o texto jornalístico.
Ainda trazemos o conceito de Newsmaking, que aborda o jornalismo não como uma
realidade, mas o reflexo dela, ou seja, a construção social de uma realidade específica, dada a
rotina industrial, a polifonia discursiva, etc., como reflete Sodré (2012).
Da cultura profissional dos jornalistas, da organização geral do trabalho e
dos processos produtivos, portanto, de uma rotina industrial atravessada por
uma polifonia discursiva, surgem os relatos de fatos significativos (os
“acontecimentos”) a que se dá o nome de notícias. Em todo esse processo, o
jornalista é apenas parcialmente autônomo, já que tem de obedecer às regras
de uma planejamento produtivo, assim como a uma concepção coletiva do
acontecimento, que em parte o ultrapassa, fazendo com que a seleção das
ocorrências informe tanto sobre o campo profissional do jornalismo quanto
sobre o meio social a que se refere a notícia. (p. 26)
Mais uma vez, trazemos para a discussão a questão do sujeito. Em todas as etapas do
processo de produção jornalística (Pauta, Apuração, Redação e Edição), todas as decisões de
seleção ocorrem por que existem sujeitos que vão operar fato ou informação em estado bruto
de forma a transforma-los em notícia. As pesquisadoras Marcia Benetti e Nilda Jacks colocam
que a expectativa do público ainda é uma “fotografia da realidade”, ainda que sejam os
sujeitos sejam responsáveis por este manuseio.
Sabemos que o jornalismo é uma narração do real mediada por sujeitos (no
exercício de suas subjetividades) e que as escolhas se dão da pauta à edição,
passando pela apuração, pela seleção das fontes e pela hierarquização das
informações. Tendo consciência desse processo ou não, o leitor ainda assim
busca no jornalismo uma porta para o real. (BENETTI e JACKS, 2001, p. 7)
Entretanto, assim como na fotografia, há um recorte, e todo relato jornalístico é um
recorte com feito sob o ponto de vista do profissional. Como explicita Gilberto Gil, em nosso
exemplo inicial. ‘Não importa a má notícia, Mas vale a boa versão’.
Além das teorias citadas acima, faz sentido pensarmos na Teoria Interacionista,
quando estudamos os discursos jornalísticos. Essa, segundo Traquina (2005), se baseia em
uma interação social dentro de uma “tribo” (campo jornalístico), na troca de ideias entre os
que pertencem a esse campo, entre si e com a sociedade, e na rejeição do método
instrumentalista, para a produção da notícia, fazendo do jornalista observador ativo na
construção desse recorte de realidade.
Rejeitando a teoria do espelho e criticando o "empiricismo ingênuo” dos
jornalistas, a teoria interacionista defende que os jornalista não são simples
observadores passivos mas participantes ativos na construção da realidade.
44
As notícias devem ser encaradas como o resultado de um processo de
interação social onde a natureza da realidade é um das condições, mas só
uma, que ajuda a moldar as notícias. (p. 204)
Traquina (idem) continua, dizendo que as notícias refletem a “realidade”, os aspectos
organizacionais manifestos no acontecimento; os constrangimentos organizacionais, que
poderão incluir a intervenção direta do(s) proprietário(s); as narrativas que governam o que os
jornalistas escrevem; as rotinas que orientam o trabalho e que condicionam toda a atividade
jornalística; os valores-notícias dos jornalistas; e as identidades das fontes de informação com
quem falam.
Resolvemos considerar, a teoria interacionista, pois a compreendemos que em uma
análise de discurso jornalístico, diversos fatores são influentes dentro do processo de
produção jornalística. “Para a teoria interacionista, o mundo social e político não é uma
realidade predeterminada e “dura” que os jornalistas “refletem”: a atividade jornalística é,
para estes teóricos, bem mais complexa que a ideologia jornalística sugere”. (TRAQUINA,
2005, p. 204)
Assim, o produto final do trabalho do jornalista, é atravessado por ideologia, é feito
em um determinado contexto e produz sentidos, ou seja, é uma atividade intelectual, criativa,
periódica, que inventa novas palavras e que constrói o mundo em notícias.
Os jornalistas são participantes ativos na definição e na construção das
notícias, e, por consequência, na construção da realidade. Há alguns
momentos, ao nível individual, durante a realização de uma reportagem ou
na redação da notícia, quando é decidido quem entrevistar ou que palavras
serão utilizadas para escrever a matéria, de mais poder consoante a sua
posição na hierarquia da empresa, e coletivamente como os profissionais de
um campo de mediação que adquiriu cada vez mais influência com a
explosão midiática, tornando evidente que os jornalistas exercem poder.
(TRAQUINA, 2005, p. 26)
Entendermos que explícitas esses conceitos e com base na teoria interacionista,
conseguiremos trabalhar os discursos jornalísticos, sempre com a premissa exposta por
Marques de Melo (1985): “Recusamos, portanto, a idéia da “objetividade” jornalística naquela
acepção de neutralidade, imparcialidade, assepsia política que as fábricas norte-americanas de
notícias quiseram impor a todo mundo”. (MELO, 1985, p. 57).
45
2.2.2. Discurso jornalístico: o jornalês
No dia a dia, é comum atribuirmos o sufixo “ês” para designar um jeito específico de
falar de um determinado grupo, campo ou profissão, por exemplo, o famoso “economiquês”
usado para ironizar o jargão dos economistas. Traquina (2008), com bom humor, utiliza esse
procedimento para tratar a prática discursiva do jornalista: o “jornalês”, o autor explica: “Uma
das características principais desta fala, desta escrita, é a sua qualidade de ser compreensível.
Os jornalistas precisam comunicar através das fronteiras de classe, étnicas, políticas e sociais
existentes numa sociedade.” (p. 46)
Mas qual seriam as especificidades dos discursos jornalísticos? Charaudeau, (1997
apud Ponte, 2005) diferencia o discurso jornalístico ou noticioso de outros discursos
comunicacionais, como o propagandístico e o pedagógico, com base nas diferenças das suas
condições enunciativas. Quanto ao publicitário em relação a verdade, esta compreendida
sempre no que ocorreu e não na promessa de verdade expressada na propaganda. E, em
relação ao pedagógico, pois este se baseia na demonstração lógica, muito mais que o
jornalismo.
Explorando a especificidade do discurso informativo, incluindo o
jornalístico, o investigador francês afirma então que esse discurso
compreende uma duplo processo de construção do sentido: é um processo de
transformação e de transacção que comanda a transformação.” (PONTE,
2005, p. 109)
Diante desse quadro de transformação, Ponte define o discurso jornalístico da seguinte
maneira:
Charaudeau considera que pelo processo transformacional um “mundo pré-
significante” se torna uma “mundo com significado”. Tal ocorre pela
estruturação de categorias de identificação e de qualificação dos
intervenientes, pela caracterização e relato das acções em que estão
envolvidos e pela apresentação de motivos dessas acções. Num triplo
movimento entre descrever, narrar e explicar. Por sua vez, o processo de
transação atribui um significado psico-social a este processo de
transformação. Quem formula o discurso tem conta os parâmetros
relacionais para com o auditório: a sua identidade e os seus conhecimentos, o
efeito de influência que pretende, o tipo de relação e de regulação em que
operam. (PONTE, 2005, p. 109)
Falarmos, então, sobre o discurso jornalístico e suas características, nos leva, a pensar
em suas condições de produção, no campo jornalístico algumas forças atuam dentro das
dinâmicas profissionais. Polos regem a atividade do jornalista, conceito proposto pelo
sociólogo francês Pierre Bourdieu, em sua obra Sobre a televisão (1997). Traquina
46
desenvolve esse conceito. Segundo o autor português, o campo jornalístico é dominado, desde
o século XIX, por dois polos o econômico e o ideológico. O qual o autor faz uma analogia o
campo magnético:
Imaginem, por um momento, que o campo é um campo magnético com dois
polos. O polo positivo é o “polo ideológico” em que a ideologia profissional
que se tem desenvolvido ao longo do tempo define o jornalismo como um
serviço público que fornece aos cidadãos com a informação de que precisam
para votar e participar na democracia e age como guardião que defende os
cidadãos dos eventuais abusos de poder. No entanto, tal como os jornalistas
desenvolveram a sua ideologia profissional em consonância com a teoria
democrática e inspirados por ela, concomitantemente, mesmo desde antes do
século XIX, o jornalismo tem sido um negócio e as notícias uma mercadoria
que tem alimentado o desenvolvimento de companhias altamente lucrativas.
Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu os dois polos do campo jornalístico
contemporâneo – o polo intelectual e o polo econômico – tornaram-se
dominantes no jornalismo ao longo do século XIX, diminuindo a
importância do “polo político”. (TRAQUINA, 2005, p. 27)
Essa polarização é importante para quando realizarmos a análise dos discursos
jornalísticos. Durante esse momento de análise, devemos ter em mente essa condição de dois
polos exercendo influência sobre o fazer jornalismo. Ressaltamos que nossa escolha teórica
pela Análise de Discurso de Linha Francesa é justamente para poder pensar o jornalismo
como fruto de uma interação do profissional com o seu campo e com a sociedade. Assim
conseguiremos ter as bases teóricas para pensar como um texto significa ou como é a sua
produção de sentidos, como aponta Orlandi (2009).
Diferentemente da análise de conteúdo, a Análise de Discurso considera que
a linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o
texto para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é:
como este texto significa? Há aí um deslocamento, já prenunciado pelos
formalistas russos, onde a questão a ser respondida não é o “o que”, mas o
“como”. (p. 17 e 18)
Outra motivação da escolha é o entendimento que o jornalista é um sujeito que escreve
para outros sujeitos, esse fato vai além de uma simples análise das palavras do texto
jornalística, mas do todo em si. Ponte (2005) sintetiza:
É a linguagem que permite cristalizar e estabilizar a subjectividade. Dotada
de uma facticidade externa ao sujeito, exerce coerção sobre este e força-o a
entrar nos seus padrões. Por outro lado, transcende a realidade da vida
quotidiana e pode referir-se a experiências de outras realidades, de áreas
finitas de significação, construindo uma pluralidade de sistemas de
representação simbólica e fazendo-os retornar a essa realidade quotidiana.
(p. 98)
47
Logo o discurso jornalístico é um local onde a subjetividade é cristalizada e
estabilizada. A professora e pesquisadora Márcia Benneti (2007) também defende a Análise
de Discurso, em sua visão como uma tentativa de compreensão do produto jornalístico,
especialmente no que tange a exposição da diversidade social, visto que, considera o texto
jornalístico como fruto de uma pluralidade enunciativa:
Entre as grandes problematizações a serem feitas sobre o jornalismo está a
relação entre sua natureza pública e a exigência de que seja um lugar de
circulação de diferentes saberes sobre os fatos e o mundo. Assim, apenas a
pluralidade de perspectivas de enunciação pode configurar o jornalismo
como um campo plural e representativo da diversidade social. Muitos
locutores não significam, necessariamente, muitos enunciadores. Por trás de
aparentes polifonias, muitas vezes, escondem-se textos em essência
monofônicos. Revelar este funcionamento discursivo é uma das
contribuições que a Análise de Discurso pode oferecer aos estudos de
jornalismo. (p. 120)
Sobre a diversidade enunciativa, a autora complementa, justificando do ponto vista
técnico da análise, considerando sua identificação necessária para o entendimento das
condições de produção e propondo uma metodologia para a análise.
Quem estuda as vozes do discurso jornalístico sabe que é um tipo de
pesquisa de grande complexidade, pois exige muito mais do que meramente
identificar “quem fala”. Mapear os enunciadores requer a incorporação de
conceitos fundantes da Análise de Discurso, associados à compreensão do
jornalismo como um modo de conhecimento que resulta das condições de
produção ou existência aqui já citadas. (BENETTI, 2007, p. 120)
Márcia Benetti em parceria com a também professora e pesquisadora, Nilda Jacks,
apontam ainda as características da produção do texto jornalístico, coincidem com as
produções dos discursos, dados os conceitos de antecipação e esquecimento, citados no item
1.1 desta dissertação. No primeiro caso, todo jornalista, antes de escrever se projeta no leitor.
Claro que considerando o que já explicamos, o jornalista leva em consideração seu jeito de
ver o mundo, as interferências organizacionais, a polaridade, seus calores, etc.
O jornalista fala tendo como horizonte um leitor de sua fala. Pesquisas de
opinião procuram enquadrar esse leitor em certas definições normalmente,
referentes às condições socioeconômicas e culturais. São as formações
imaginárias que possibilitam a diferenciação de linguagens e estilos entre os
veículos. O jornalista tem sempre em mente, mesmo que de modo
internalizado ou intuitivo, o seu “público leitor”. Pensa saber o que este
leitor quer saber e até onde vai o seu interesse. Fala e escreve para um leitor
virtual. (BENETTI e JACKS, 2001, p. 6)
48
E em segundo o esquecimento enunciativo, ao fazer as escolhas de umas e não de
outras palavras e pensando que são início do discurso, quando na realidade esse já faz parte de
suas fontes:
No jornalismo, esse apagamento pode ser identificado em muitos momentos,
especialmente na relação com as fontes da informação. É comum que o
jornalista se utilize não só da visão sobre a realidade fornecida pelas fontes,
mas também de suas expressões. Em muitos momentos, assume as
perspectivas de enunciação de outros pensando serem as suas. No momento
em que produz o texto, considera-se o dono deste discurso, seu autor.
(BENETTI e JACKS, 2001)
Assim, a produção do discurso jornalístico proposto pelas autoras acima, é, de certo
modo congruente, com o de construção da notícia, do ponto de vista discursivo, mencionado
por Ponte (2005), que afirma ser o jornalismo como local de seleção e construção de
conhecimento.
Neste contexto, não podemos deixar de situar o jornalismo como lugar de
selecção e de construção desse acervo de conhecimentos, entre as escolhas
do que é dito e do que é silenciado, de quem participa activamente na
definição do conhecimento e de quem é ausentado desse processo. Interessa
saber também a percepção dos esquemas tipificadores para circulação de
conhecimentos, de que formas o discurso jornalístico se articula para
produzir uma interpretação semanticamente coerente. (p. 99)
No primeiro item falamos em desconstrução do texto para realizarmos a análise do
discurso jornalístico. Logo considerando as condições de produção, o modus operandi de
construção da notícia por parte do jornalista, podemos chegar a esta análise. Benetti e Jacks
(2009) a metodologia de análise da seguinte maneira:
É a perspectiva de enunciação, portanto, que dá o tom do discurso
jornalístico. O analista de discurso, partindo da materialidade do discurso,
identifica as formações discursivas, mapeando em seguida as suas
respectivas formações ideológicas para então, a partir destas, chegar aos
enunciadores aqueles que realmente definem o discurso. É com este
movimento, de pesquisa de profundidade e sempre organizada em torno de
elementos que o próprio texto mostra, que a Análise do Discurso pode
mostrar o que no jornalismo habitualmente permanece oculto: quem fala e a
partir de que posição ideológica. (BENETTI e JACKS, 2001, p. 9)
Dada a metodologia, a partir do conhecimento dos enunciadores, endossamos as
palavras de Ponte (2005), sobre a necessidade de se analisar os discursos, mediante a
capacidade de construção de realidade que os jornalistas possuem. Essa é a nossa última
justificativa por usar a Análise de discurso, a de que a construção de realidade propiciada pelo
jornalista é, assim como todos os discursos, carregada pela ideologia:
49
Ao considerarmos a linguagem dos media noticiosos como parte integrante dessa
institucionalização da sociedade como realidade objectiva, estamos então a afirmar a
responsabilidade pública e social do jornalismo muito para além da oferta diária de
“notícias” aos seus leitores. Esse menu noticioso é carregado de sentido ideológico, de
que essas são as matérias que “importa saber” e que as formas como se apresentam
são as “naturais e certas” (p. 100)
2.2.3. Gêneros jornalísticos
Pelo exposto anteriormente, já sabemos que os discursos jornalísticos se materializam
em textos, e que esses são regidos por regras, e, mais importante, por contextos e ideologias
que condicionam as decisões dos produtores desses conteúdos informacionais e suas
respectivas construções de mundo. No entanto, essas concretizações textuais não se
constituem sempre as mesmas, uniformes em forma e em como informam. Os textos
respeitam alguns gêneros que os diferencia entre si. Em nosso exemplo introdutório, Gil cita
alguns deles como Editorial, Opinião, Notícia.
Faremos uma explanação dos gêneros jornalísticos do Brasil, que utilizaremos como
referência teórica neste trabalho, conforme a notação colocada pelo professor José Marque de
Melo (2006) e exposta pelo pesquisador Lailton Alves da Costa (2010), a partir dessa,
teremos condições para analisar o discurso em textos de nossos corpora, que apresentaremos
no terceiro capítulo desta dissertação.
Marques de Melo nos apresenta os gêneros divididos da seguinte maneira: Informativo
(Nota, Notícia, Reportagem e Entrevista); Opinativo (Artigo, Caricatura, Coluna, Crônica e
Editorial); Interpretativo (Cronologia, Dossiê e Perfil) e Diversional (História de Interessa
Humano e a História Colorida, Análise, Memória e Texto-Legenda). O pesquisador e
professor de jornalismo Francisco de Assis (2010) apresenta como se deu a formação desses
gêneros:
Essa noção dos gêneros espelha questões históricas relacionadas ao
jornalismo. Partindo de perspectiva funcionalista, como insinuado há pouco,
a proposta prevê a vigência de cinco classes na imprensa brasileira, sendo
duas hegemônicas – gêneros informativo e opinativo, que emergiram nos
séculos XVII e XIX – e três complementares – gêneros interpretativo,
diversional e utilitário, característicos do século XX (Marques de Melo,
2006b). É, então, sobre esse universo que esta reflexão procura se debruçar,
deixando de lado aquilo que se entende por formato (notícia, nota,
reportagem, artigo, crônica, etc.)
Ademais, também é necessário deixar claro que essas categorias buscam tão-
somente sinalizar a principal finalidade dos conteúdos jornalísticos, uma vez
que as fronteiras entre informação, opinião, interpretação, diversão e serviço
50
não são extremamente rígidas, a ponto de que um gênero possa ser
considerado puro. (p. 17)
Concordamos com o aspecto colocado por Assis, sobre a linha tênue fronteiriça entre
os gêneros, por isso entendemos que em nossa análise devemos levar em consideração o texto
jornalístico, fruto de um discurso e não somente um ou outro gênero. Também concordamos
com o autor, quando este aponta para a hegemonia de dois gêneros (Informativo e Opinativo).
Desta forma, esses dois gêneros farão a composição de nossos corpora.
O gênero Informativo corresponde à descrição dos fatos, para que assim o leitor saiba
o que está acontecendo: “Corresponde, na percepção de Marques de Melo (2003: 63), à
articulação do jornalismo em função do interesse por “saber o que passa”, cabendo ao gênero
a função exclusiva de descrever os fatos.” (ASSIS, 2010, p. 18)
Costa (2010, p. 55) apresenta o gênero Informativo subdividido nos seguintes
formatos. A Nota é um relato do acontecimento, quando esse se encontra em processo de
configuração; a Notícia é um relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social,
respeita às perguntas do lide (O que? Quem? Quando? Como? Onde? e Por que?) é narrada
em Pirâmide Invertida (informações de maior relevância são colocadas em primeiro plano); já
a Reportagem é relato ampliado sobre um fato que produziu impacto no organismo social. O
formato realiza o aprofundamento dos fatos de interesse público que exigem descrições do
repórter sobre o “modo”, o “lugar” e “tempo”, além da captação das versões dos “agentes”;
por fim, temos a Entrevista que é um relato que privilegia a versão de um ou mais
protagonistas sobre os acontecimentos. Concede voz “voz” aos “agentes”, fazendo com que o
repórter seja o mediador e interprete para o “receptor”.
Já o gênero Opinativo “diferentemente do jornalismo informativo – caracterizado pela
objetividade [...] são fortemente relacionados a expressões subjetivas.” (ASSIS, 2010, p. 21)
Costa (2010, p. 64) descreve que o gênero se configura da seguinte maneira: o
Editorial expressa a opinião oficial da empresa diante dos fatos de maior repercussão no
momento; o Artigo é uma matéria jornalística por meio da qual jornalistas e cidadãos
desenvolvem ideias e apresentam opiniões. Nele, os julgamentos provisórios, pois é quando
os fatos estão se configurando; a Crônica é um formato genuinamente brasileiro, e se trata de
um relato poético do real, que gira permanentemente em torno da atualidade, captando com
argúcia e sensibilidade o dinamismo da notícia que permeia toda a produção jornalística; por
fim, temos as Cartas que são espaços dedicados para que os leitores expressem seus pontos de
51
vista, suas reivindicações, sua emoção, rompendo assim com a fronteira entre produtor e
consumidor (leitor e editor).
Costa (2010) ainda comenta esses dois gêneros explorando a ideia que a produção é
condicionada por variáveis, presentes nos dois gêneros.
No jornalismo informativo, o relato terá sua estrutura dependente de
variáveis externas: os acontecimentos e a relação estabelecida entre o
jornalista e os protagonistas do acontecimento. No opinativo, a estrutura
dependeria do controle, pela instituição, da autoria e angulagem (tempo e
espaço) de narração. Por esses critérios, resultaria então que o jornalismo
informativo comportaria os formatos nota, notícia, reportagem e entrevista.
Nos formatos opinativos estão o editorial, o comentário, o artigo, a resenha,
a coluna, a crônica, a caricatura e a carta. (p. 45)
Além do conhecimento dos gêneros, como condição da análise do discurso, também
consideramos estudar o fenômeno a ser analisado. Assim, no próximo capítulo falaremos
sobre a cidade e o morador em situação de rua. O pesquisador português, Jorge Pedro Sousa
(2004), justifica esse procedimento para o entendimento de fenômenos veiculados na
imprensa analisados:
Por isso, a análise do discurso, embora incida sobre o objeto delimitado
pelas hipóteses e perguntas de investigação (texto), deve atender ao contexto
do fenômeno estudado e às circunstâncias em que este ocorre. No campo
específico do jornalismo impresso, normalmente é relevante ter-se em
consideração os seguintes elementos de contexto: jornais e revistas que vão
ser analisados, circunstância do fenômeno que está a ser estudado e
conhecimento científico relevante para a interpretação dos dados recolhidos
durante a pesquisa. (p. 11)
Explicados os gêneros jornalísticos passemos no próximo item a falar de nossos dois
veículos que serão analisados: As revistas Ocas” e VEJA São Paulo.
2.3. Diferentes abordagens jornalísticas a partir do discurso: Ocas” e VEJA São Paulo
E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da Avenida São João
Ronda (Paulo Vanzolini)
Em uma de suas mais famosas composições Ronda, de 1951, Paulo Vanzolini narra a
desilusão amorosa de uma mulher, em busca de seu homem amado na noite da São Paulo
boêmia daqueles anos. O final da história, como se pode notar, é trágico. Um homicídio
52
motivado pela paixão ou apenas um ato de agressão? O desfecho não importa aqui, porém, a
frase “Vai dar na primeira edição” nos mostra algo muito mais interessante, sob o ponto de
vista dos estudos da comunicação: a importância do jornalismo na vida dos sujeitos e aponta
para o que falaremos nesta parte do capítulo, sobre as características dos veículos jornalísticos
que compõem nossos corpora de pesquisa.
A expressão “Vai dar” revela sobre o possível interesse público no incidente ocorrido
no bar que, a partir da enunciação, podemos compreendê-lo com relevância jornalística para
ser publicado como notícia na primeira edição dos jornais. Neste momento, vale a explicação.
Os jornais, nos anos 1950 ainda circulavam em várias edições diárias, daí o fato de o nome de
alguns deles fazer menção ao período do dia em que eram distribuídos como, Folha da
Manhã, Folha da Tarde, Folha da Noite, etc. Logo, o ethos da população era fortemente
influenciado pelo agendamento do jornalismo, pelas dinâmicas de produção jornalísticos e,
consequentemente, pelo consumo midiático da cidade a partir das notícias.
Também nos anos da década de 1950, a cidade de São Paulo se desenvolvia em
diversos âmbitos (como veremos mais adiantes nos capítulos que falamos da cidade) e
passava de pouco mais de 2 milhões de habitantes, com uma taxa de crescimento de 5,6% (a
maior do período medido, entre 1872 e 2010)6. Pela música, algumas características da cidade
se cristalizam em verso, como a noite, o jornalismo, a avenida São João e a violência urbana.
E assim temos a exata noção de como a produção midiática, no caso a ficcional, mas no
âmbito geral, a jornalística também, propiciam essa produção de sentidos da cidade.
Duas dessas características são destacadas para a nossa análise: a presença da
imprensa na grande cidade e os rituais de consumo midiático propiciados por ela.
Mas, por que a partir da leitura do trecho, podemos compreender a importância do
jornalismo para uma cidade? Seria ele um elemento fundamental para a vida dos cidadãos ou
uma mera exposição dos fatos? Podemos supor que sim pelos motivos citados e pelo que
aponta a pesquisadora Maria Helena Weber (2007), para quem o jornalismo trata de uma das
possíveis representações da cidade, no chamado espaço midiático. Para ela, no jornalismo a
cidade pode ser representada e, consequentemente, significada de diversas maneiras para cada
sujeito que o consome.
A partir da leitura de Weber e com base nas ideias da antropóloga Mary Douglas e do
economista Baron Isherwood em o Mundo das coisas, (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009) e
de Roger Silverstone em Por que estudar a mídia? (2005), podemos compreender que, por
6 Segundo o Histórico Demográfico do Município de São Paulo, disponível em
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php. Acesso em 1 de junho de 2013.
53
meio do consumo midiático da cidade, coletivo e ritualizado, sentidos são produzidos das
mais diversas maneiras em seus leitores. Inclusive, podemos ir além e considerar que a noção
de ritual no consumo midiático se dá baseado em ritos temporais nos jornais, revistas e
demais periódicos (diário, semanais, mensais etc.). No jornalismo, a cada regime de
periodização que os veículos estão subordinados, teremos um tipo específico de produto
jornalístico, no qual textos, e consequentemente discursos serão formatados, veiculados e
consumidos conforme suas características. Assim, jornalista e leitor são essenciais para esse
ritual de consumo midiático. Como aponta a pesquisadora Cristina Ponte: “A actualidade não
visa um tempo particular, mas uma forma de co-presença do jornalista e do leitor-espectador,
perante qualquer coisa de novo”. (2005, p. 126)
Voltando a canção Ronda, nela a noção de ritual de consumo que se apresenta no
trecho “Vai dar na primeira edição”, versa sobre periodização das notícias em relação direta
com o significado jornalismo dentro na vida das pessoas, proporcionando-as esse ritual de
consumo, em especial como um agenciador dos acontecimentos da grande cidade, como em
nosso caso, um possível assassinato na avenida São João, um ponto de referência da noite
paulistana nos anos 1950, e que na atualidade sofre com a degradação do Centro.
Existem em São Paulo, diversos periódicos que dão visibilidade ou trazem
representações da cidade. Podemos considera-los como espaços de circulação de discursos
onde a produção, circulação e assimilação desses discursos, significam em quem os consome
– a partir das características de consumo ritualísticas de cada veículo . Como aponta o
linguista José Luiz Fiorin, “O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que
assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala” (FIORIN, 2007, p.
35)
O jornalismo, enquanto uma prática de comunicação de massa proporciona –
referenciada por uma de suas máximas que é o valor-notícia (TRAQUINA, 2008) –,
visibilidade aos fatos e aos atores sociais. Atrelado a isso está o interesse público, que é o que
determina a notícia, e o jornalista, o profissional capaz de identificar o fato noticioso em uma
informação e transformá-lo em notícia. (PONTE, 2005)
No caso do jornalismo local, ou de cidades, como é comumente chamado, a cobertura
que é feita da cidade pode ser considerada uma de suas possíveis representações, assim como
é um mapa ou uma fotografia, por exemplo.
Ao converter a informação em notícia, o jornalista utiliza uma linguagem específica, a
jornalística (TRAQUINA, 2008). Nela, como explicado nos itens anteriores, por mais que
seja afirmada a imparcialidade ou objetividade, há o atravessamento de um discurso. Por esta
54
razão, todo texto jornalístico, informativo ou opinativo, é a materialidade de um discurso
jornalístico.
2.3.1. Dois espaços para circulação de discursos jornalísticos
Nossos corpora serão formados a partir de dois veículos de circulação de discursos
jornalísticos na cidade de São Paulo em duas revistas: VEJA São Paulo e Ocas”. Em especial,
trabalharemos com textos que tematizam a população sem-teto.
Os veículos jornalísticos são um dos meios pelos quais os discursos circulam,
materializados em reportagens, artigos, notas, ou em quaisquer outros formatos. Assim, ao
analisarmos os discursos materializados nesses veículos estaremos em contato com diversas
representações da cidade , a partir dos sentidos produzidos.
Entendemos, então, que o morador de rua, enquanto objeto do interesse público ou
temas de fatos noticiosos, deve estar representado nesses veículos, porém indagamos. Como o
morador de rua está representado?
Para entender essa representação iremos analisar os discursos que têm como tema a
população em situação de rua em artigos, matérias e reportagens dessas duas publicações. A
primeira vista, as revistas são totalmente diferentes, mas vale a pena olha observá-las mais a
fundo para que possamos compreender a produção discursiva de cada uma.
Com base nos conceitos do pesquisador português Jorge Pedro Sousa em sua obra
Introdução à análise do Discurso Jornalístico Impressa – um guia para estudantes de
graduação (2004), iremos olhar para os veículos e caracterizá-los.
Enquanto VEJA São Paulo é um suplemento da revista Veja para a cidade de São
Paulo e região e se propõe a um modelo de jornalismo comercial, com fins lucrativos,
pertencente ao Grupo Abril, Ocas” (escrita assim, com aspas) se debruça em torno de um
jornalismo alternativo, e é pertencente a Organização Civil de Ação Social.
A revista VEJA São Paulo, também conhecida como Vejinha, faz a cobertura sobre a
cidade de São Paulo. Com periodicidade semanal, é distribuída na capital e em 111 cidades
num raio de 100 km. Foi publicada pela primeira vez em setembro de 1985 e hoje traz em
suas mais de 150 páginas (em média) a cobertura da cidade de São Paulo, com matérias que
relatam problemas, serviços, cultura, roteiros de consumo gastronômico ou cultural, dentre
outras abordagens. É um semanário, ou seja, traz em suas páginas um resumo dos assuntos da
semana, em matérias especiais sobre temas específicos. Não tem por intenção dar o fato
noticioso.
55
No Kit de Mídia7 (material autopromocional de apresentação da publicação a possíveis
anunciantes) o produto editorial se coloca focado em três pilares: Dar um leque de opções
com o que há de melhor na cidade; Visitar os lugares com critério para evitar que o leitor
tenha decepções; e Mostrar as atrações da cidade de um jeito que nenhuma outra publicação
consegue. Segundo a editora Abril, a revista VEJA São Paulo possui:
Foco total nos consumidores que procuram as melhores atrações da sua
cidade. A revista de São Paulo. Além de contar o que acontece de mais
relevante na vida de São Paulo e com seus personagens, Vejinha tem o
compromisso de apresentar ao leitor, em reportagens e Roteiro da Semana,
as melhores opções em matéria de entretenimento, lazer, programas e
serviço.8
Uma das formas muito exploradas por Vejinha é o jornalismo de serviço que “[...] se
estrutura em forma de relato a partir de informações objetivas associadas e orientações
didáticas, esclarecimentos ou guia ao leitor sobre concursos, oportunidades e mudanças em
serviços públicos ou de interesse da comunidade.” (COSTA, 2010, p. 256). Além dele a
cobertura da cidade de São Paulo feita com reportagens sobre problemas urbanos, segurança,
mobilidade, moradia, cultura, qualidade de vida, entre outros.
Com tiragem de 298.871 exemplares, não pode ser vendida separadamente de Veja, ou
seja, todo consumidor de Veja, dentro do recorte geográfico citado acima, tem acesso à
Vejinha. Dessa tiragem, segundo dados oficiais de seu kit de mídia9, 250.319 são enviados
para assinantes e 48.552 para vendas avulsas (bancas de jornal ou quaisquer outros pontos de
venda).
Como se trata de um caderno voltado à prestação de serviço sua parte destina da a
anúncios, classificados e roteiros culturais tomam a maior parte da publicação, restando as
outras páginas para os discursos jornalísticos que serão nosso foco de interesse (reportagens,
entrevistas, notas, dentre outros). Segundo o mesmo Kit de Mídia, Vejinha é destinada ao
mesmo público da revista Veja, ou seja, 86% pertencem às classes A e B. Neste ponto vale o
entendimento que esses leitores ao consumir as notícias produzem um sentido específico
sobre a cidade, com influência dos contextos os quais estão inseridos. Este é o motivo
principal que achamos pertinente a inclusão de VEJA São Paulo para formação de nossos
7 Texto presente no Mídia Kit VJSP 04-03-13. Disponível em
http://www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/internet/informacoes-gerais/. Acesso em 5 de maio de 2013 8 Disponível em http://www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/revista/informacoes-gerais. Acesso em 26 de
maio de 2013. 9 (idem 7)
56
corpora. Segundo dados são 748 mil leitores, sendo 52% mulheres e 69% adultos (entre 20 e
49 anos). O material ainda diz o seguinte:
VEJA São Paulo é uma revista que ama e defende a cidade. Nas reportagens,
são discutidas questões importantes como trânsito, saúde, educação e
segurança, assim como novidades ligadas as áreas de consumo, moda e
comportamento, além de retratar pessoas que fazem a diferença em vários
setores da capital. VEJA São Paulo atua como um grande GPS do lazer do
paulistano, identificando e avaliando o que há de melhor na metrópole na
gastronomia, arte e entretenimento.10
A revista é atualmente composta pelas seguintes seções fixas: VEJA São Paulo
Recomenda, A Opinião do Leitor, Vejasaopaulo.com, Seja o Crítico, #vejasp no Instagram,
Mistérios da Cidade, Memória, Terraço Paulistano, Paulistano Nota Dez, Esquina da Moda,
Bichos, As Boas Compras, Liquidações, Roteiro da Semana, e uma crônica, de Ivan Angelo
ou Matthew Shirts, localizada na última página.
Há ainda as editorias que variam conforme os assuntos da semana, denominadas a
partir do tema abordado na reportagem, como Cidade, Consumo, Comportamento, Comida,
Noite, Moda, Perfil, Turismo, Transporte, Trânsito, Shows, Drogas, Polícia, Solidariedade
entre outras. Geralmente são essas as sessões que nos despertam mais interesse, pois a maior
parte dos textos informativos estão publicados nessas seções da revista. Na época de nossa
pesquisa, entre 2005 e 2009, a revista já era organizada dessa forma.
O outro veículo a ser analisado é a Revista Ocas”. Trata-se de um Street Paper,
publicação jornalística na qual moradores de rua são responsáveis pela produção ou
distribuição, esses veículos buscam a ascensão social das pessoas que vivem em situação de
rua ou de vulnerabilidade social como definido na obra Ecos da Ocas”:
Os street papers foram propostos para as cidades com base em uma lógica
bastante simples: pode se tornar vendedora qualquer pessoa que esteja
dormindo nas rua ou em albergues de acolhimento e queira da sair da
situação de vulnerabilidade por se esforço pessoal. (SEIDENBERG,
SENRA, et al., 2013)
Em Ocas”, os moradores de rua são treinados e fazem parte da distribuição da revista
na cidade de São Paulo. Dos R$4,00 do valor de capa, são repassados a eles R$3,00, essa á
uma forma que a Organização Não-governamental, OCAS(Organização Civil de Ação Social,
sem aspas e com todas as letras em maiúsculo) vislumbra para transformar realidades desses
moradores de rua. Em seu website há o seguinte texto. “A Ocas” possibilita que cada pessoas
10 Texto presente no Mídia Kit VJSP 04-03-13. Disponível em
http://www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/internet/informacoes-gerais/. Acesso em 5 de maio de
2013
57
seja o próprio agente da sua transformação”11
. Até a edição 77(mai/jun de 2011), o nome da
publicação era grafado com o slogan da publicação: Ocas” – Saindo das ruas. Após essa
edição, passou a ser grafado apenas como Ocas”
É integrante da Rede Internacional de Street Papers (do inglês International Network
of Street Papers – INSP), que reúne 122 publicações de 41 países, estas possuem 14 mil
vendedores e 6 milhões de leitores ao redor do globo.12
Na visão da pesquisadora Carolina
Cantarino (2005), iniciativas como Ocas” e os Street Papers promovem,
a possibilidade de um olhar único sobre o cotidiano das grandes cidades do
mundo. Veículos de comunicação, muitos dos quais pouco conhecidos, vêm
conferindo visibilidade a esse olhar singular, oferecendo também alternativas
de trabalho remunerado e de subsistência para os moradores de rua. (p. 6)
Com uma estratégia editorial voltada para a exclusão e o risco social, Ocas” publica
reportagens, entrevistas, crônicas e matérias frias, em geral, sem a pretensão de publicar o fato
noticioso o mais rápido quanto possível, ou seja, seu valor-notícia é diferente em relação a
VEJA São Paulo. Segundo informações internas, a tiragem de Ocas” é de 5 mil exemplares e
seu público-alvo são pessoas de 20 a 40 anos (universitários e com nível superior).
A cultura é o tema predominante em sua pauta. Dentro dela há seções específicas para
tratar a questão do morador de rua. Um desses casos é a seção Cabeça sem teto, na qual, os
moradores de rua apuram e escrevem as matérias. Ela é fruto da Oficina de Criação, atividade
em que jornalistas e fotógrafos orientam esse público na produção de conteúdo editorial. Em
nossa análise utilizaremos alguns exemplos de discursos jornalísticos dessa seção, a qual é
apresentada da seguinte maneira pela publicação:
A Oficina de criação Ocas” tem por missão dar voz aos seus integrantes
através construção de ideias, textos e atividades, visando promover a
cidadania, diminuir o preconceito, fortalecer a união do grupo e aprimorar o
canal de comunicação com os leitores da revista e com a sociedade13
Em geral, o Editorial de Ocas” sobre o tema traz uma questão sobre o morador de rua
a ser discutida, por conta disso, também será uma das fontes para o nosso corpus formador,
além, claro, das reportagens em geral. Para o pesquisador José Marques de Melo o Editorial é
um texto do gênero opinativo que expressa a opinião das instituições que mantém o veículo
(2006).
11 Disponível em http://www.ocas.org.br/sobre/ . Acesso em 1º de junho de 2013.
12 Dados obtidos no site International Network of Street Papers. http://www.street-papers.org/. Acesso em 24
de março de 2013. 13
Texto institucional publicado em todo rodapé da seção Cabeça sem teto
58
Em Ocas” a edição é geralmente composta por seis seções (editorias), nas quais cada
uma aborda um tipo de assunto. São elas: Editorial, Cabeça sem teto, Capa, País, Carrossel,
Jazz e Cranianas. Há também seções que não são fixas e são publicadas esporadicamente,
como Foco, Delírios Urbanos e Mundo.
Para entendermos por que escolhemos Ocas” como um de nossos Corpus, segue
abaixo o texto institucional que explica a revista Ocas”.
Ocas” é publicada pela Organização Civil de Ação Social. A revista é uma
chance de mudança efetiva na vida das pessoas em situação de rua. A
interação decorrente da compra e da venda da publicação permite que os
vendedores estabeleçam contatos e deem novos e autônomos passos de
reintegração.
O objetivo da organização é fornecer instrumentos de resgate da autoestima
dos vendedores, criando mecanismos para que o indivíduo se torne seu
próprio agente de transformação, de forma que Ocas” seja um ponto de
passagem e não o destino definitivo.
Os vendedores compram a revista por 1 real e a vendem pelo preço de capa,
R$4,00. Todos têm idade mínima de 18 anos, recebem treinamento, assinam
um código de conduta e portam crachá.
Por favor, compre apenas de vendedores identificados.
Ocas” promove a responsabilidade social e publica seções dedicadas a
notícias nacionais e internacionais, comportamento, lançamentos artísticos e
intelectuais e ensaios. Além disso, a publicação reserva espaço para
expressão dos vendedores e aborda problemáticas relacionadas ao tema da
exclusão social. A revista é produzida por jornalistas e não depende de
grupos de comunicação ou está vinculada a interesses comerciais ou
políticos.
A Organização Civil de Ação Social é uma entidade da sociedade civil, sem
fins lucrativos, registrada sob CNPJ no. 04.847.090/0001-01. Toda receita é
reinvestida na melhoria da qualidade dos serviços prestados pela
organização.
Não arrecadamos doações nas ruas. Se abordado para esse fim, não
contribua.14
Uma das motivações para escolhermos Ocas” é por ela ter em sua missão ligada a
questão da rua, objeto o qual gostaríamos de ter a noção de como é a sua representação na
imprensa.
2.3.2. Diferentes, mas parecidas
VEJA São Paulo e Ocas”, as duas publicações que formam nossos corpora, foram
escolhidas por possuírem pontos coincidentes e outros conflitantes, quanto a sua práxis
jornalística.
14 Texto institucional da revista Ocas” encontrado na abertura de cada edição.
59
Comecemos pelos coincidentes. Ambas são revistas, o que lhes confere algumas
características. Dentre as que mais nos interessa é que as revistas condicionam um consumo
específico do leitor, graças aos rituais de leitura que o consumo de uma revista exige:
periodicidade, distribuição, tempo de leitura etc.
Os dois veículos, em muitos momentos, abordam a cidade de São Paulo em sua
cobertura e, inevitavelmente o tema morador de rua está representado algumas vezes em
matérias das duas publicações.
Do ponto de vista editorial e comercial, as revistas possuem objetivos extremamente
opostos. Enquanto Ocas” é um veículo que serve como braço de uma iniciativa da sociedade
civil para transformação social da população em situação de rua, VEJA São Paulo tem
objetivos expressamente comerciais, com anunciantes, lucro, etc. No entanto, em muito de
suas matérias VEJA São Paulo possui um discurso específico para falar exclusivamente com o
seu público as já citadas classes A e B.
Esses dois veículos, enquanto suportes para materialização de discursos acerca da
cidade e, mais precisamente sobre a população diferente, o morador de rua, produzem
sentidos a população de rua, da forma mais variada possível.
Nossa intenção, assim, é realizarmos uma comparação desses discursos para
verificarmos quais procedimentos discursivos estão em prática em cada publicação, quais suas
interdiscursividade (ORLANDI, 2009) e em quais pontos eles concordam e discordam sobre
a situação de rua. Assim, teremos noção para entender sobre quais regimes estão os
moradores de rua, estão visíveis ou invisíveis.
Tomaremos como ponto de partida para a análise de nosso corpus o ano de 2005,
início do Projeto Nova Luz, que visa a reurbanização do Bairro da Luz, no Centro da Cidade
de São Paulo. Escolhemos esse marco inicial pela proximidade do tema sobre reurbanização
com a questão do morador de rua, assim, entendemos que discursivamente a partir da
instituição desse projeto o morador de rua passou a ter visibilidade nas publicações e na
sociedade.
O texto oficial do Projeto Nova Luz diz o seguinte.
Um bairro sustentável, dinâmico e diversificado, para morar, trabalhar e se
divertir. Um local onde as pessoas estarão cercadas por elementos históricos
e culturais, entretenimento, espaços abertos convidativos, passeios e parques.
Um bairro que oferece oportunidades de estudo e trabalho, é facilmente
60
acessível de toda a cidade e tem mobilidade privilegiada para o pedestre e o
ciclista.15
A partir dessas caracterizações, podemos dizer que VEJA São Paulo é um veículo com
características predominantemente comerciais, nas quais sua parte editorial é associada a
discursos para o consumo, pois sua cobertura é voltada para o público que se identifica com
esses discursos.
Já Ocas” – por ser um veículo que tem não tem fins lucrativos, tendo toda receita
reinvestida na Organização –, ao contrário de VEJA São Paulo, não se associa a discursos
voltados para o consumo de produtos pelo público, mas para sua causa social.
Escolhemos esses dois veículos por entendermos que suas diferenças editoriais e
comercias lhes proporcionam formações discursivas distintas, seja pelos constrangimentos
organizacionais ou as linhas editorias, quando ambos abordam o tema morador de ruas.
Segundo Fiorin (2007) e Orlandi (2009), as formações discursivas tem a ver com as
ideologias nas quais os discursos são produzidos. Essas formações serão analisadas e
comparadas, com intenção de observar como a população sem teto está representada nas
matérias.
Embora estejam diferentes editorial e comercialmente. Entendemos que essa
comparação será produtiva, pois estamos pesquisando os discursos da revista impressa com
maior tiragem da cidade e de outra que tem o tema morador de rua não apenas como tema
essencial em suas páginas, mas como ator principal de sua causa. Talvez outros veículos não
nos trariam formações discursivas tão distintas. Essas diferenças justificam as nossas
escolhas. Assim temos o seguinte quadro comparativo:
Quadro 1: Características editoriais das revistas Ocas” e VEJA São Paulo
Ocas” VEJA São Paulo
Tiragem 5 mil exemplares 300 mil exemplares
Organização
institucional
Veículo da Organização Civil de
Ação Social – entidade civil sem
fins lucrativos – que tem como
objetivo mudar a vida de quem vive
nas ruas. É um Street Paper
produzido e distribuído por
moradores de ruas.
Parte integrante da Revista VEJA, é
propriedade da Ed. Abril. Objetivo é
trazer aos seus leitores consumidores o
“melhor da cidade”, o que acontece de
relevante na vida da cidade e de seus
personagens. Empresa jornalística com
fins lucrativos.
Tipo de Street Paper Revista Semanal e roteiro de consumo
15 Disponível em http://pt.scribd.com/doc/43674498/Projeto-Urbanistico-20101117-NovaLuz-PMSP-SMDU.
Acesso em 5de junho de 2013
61
publicação
Distribuição Assinantes e vendas avulsas nas ruas Assinantes e vendas em bancas
Público-alvo 20 a 40 anos (universitários e
formados), sem classe social
definida
Classe A e B (20 a 49 anos)
Preço R$ 4,00 R$ 10,90 (junto com a revista Veja)
Periocidade Mensal e bimestral (após nov/2005) Semanal
Edições
pesquisadas
56 364
Nº de páginas 32 160 (aproximadamente)
Anunciantes Sim Sim
Tipo de papel Jornal Couché
Cores Três Colorida
Regime
trabalhista
dos
jornalistas
Voluntários CLT e Pessoa Jurídica
Local da
redação
(bairro,
cidade)
Jardins, São Paulo Pinheiros, São Paulo
Por fim, faremos um recorte referente aos gêneros jornalísticos conforme coloca
Marque de Melo (2006). Serão analisados textos compreendidos dentro dos seguintes
gêneros. Informativo (nota, notícia, reportagem e entrevista); Opinativo (artigo, caricatura,
coluna, crônica, editorial); Interpretativo (cronologia, dossiê e perfil) e Diversional (história
de interessa humano e a história colorida, análise, memória e texto-legenda). A partir dos
recortes: temático, temporal, geográfico e de gênero, faremos a seleção dos nossos corpora,
para que seja feita a análise a partir de um protocolo específico.
62
3. A CIDADE DE SÃO PAULO E SUAS RELAÇÕES COM A COMUNICAÇÃO E O
CONSUMO
3.1. A cidade: uma perspectiva do consumo
São Paulo! Comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon...
Algodoal!..
São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!
Inspiração – Mário de Andrade
Pauliceia desvairada, escrita por Mário de Andrade em 1922, do ponto de vista estético apresenta,
uma abordagem moderna. Foi essa a forma que o poeta encontrou para falar de sua musa inspiradora, a cidade
de São Paulo. A metrópole cosmopolita, egocêntrica, heterogênea e com a sua burguesia cínica – segundo o
autor –, é expressa nesses versos, em contraposição da vida provinciana, sob um contexto de intensa
transformação social, com inovação formal, rompendo com escolas estéticas anteriores, usando e abusando da
linguagem cotidiana e do coloquialismo. As referências a Paris não são por acaso, são mostras da influência do
modernismo da capital francesa.
O poeta Mário de Andrade, na obra de linguagem simples, uma paisagem do cotidiano, das vivências,
percepções e sensações vindas da cidade de São Paulo que se modernizava lentamente naquela época, fruto da
incipiente industrialização e da maciça chegada dos imigrantes.
Já na década de 1920, a “pauliceia desvariada”, conforme o título da obra de Mario de Andrade,
parecia sintetizar o cenário heterogêneo tal como a metrópole contemporânea o faz. Hoje, segundo o IBGE16
, a
cidade de São Paulo possui 11.253.503 habitantes, conformando um fenômeno urbano que exprime a extrema
complexidade da vida moderna. Neste item, para entendermos esse fenômeno, antes, porém olharemos para o
conceito de cidade, ao longo da história, e assim, tentaremos localizar a cidade de São Paulo, com suas
especificidades neste contexto. Olharemos especialmente para as características que nos ajude a conceituar e
compreender o morador em situação de rua.
16 Dados do Censo Populacional 2010. Disponível em http://www.censo2010.ibge.gov.br/. Acesso em 13 de
janeiro de 2013.
63
Para o pleno entendimento da cidade, do ponto de vista histórico, devemos considerar alguns aspectos:
a fixação do homem, o excedente agrícola, o encontro entre as pessoas, a escrita, o mercado e o consumo, e a
organização política. É a partir desses pontos que a cidade será considerada em nossa análise.
Delimitamos essa linha estruturada de pensamento para falarmos sobre as
representações sociais de um grupo específico no ambiente urbano – o morador em situação
de rua –, pois precisamos, antes de tudo, elucidar uma questão, que norteará nossa análise e
servirá de base fundamental para a compreensão da produção de sentidos no discurso
jornalístico: o que é a cidade?
Neste item tentaremos, ainda que de forma sucinta, responder essa questão para
compreender, não somente o que é a cidade, mas também como ela se constitui ao longo da
história até os dias atuais. Definimos um percurso que tomará conceitos sobre a formação do
espaço urbano, passando pela Idade Média, Idade Moderna e a contemporaneidade.
O caminho adotado nos auxilia nos seguintes pontos: as condições que fazem o
homem se fixar; as heranças medievais, que a cidade contemporânea se apropria e re-significa
à sua maneira, atravessada por diversos processos históricos, políticos e ideológicos; o
processo de concepção da cidade industrial, condicionantes para a formação urbana como
conhecemos; e o contexto da contemporaneidade (pós-industrial), justamente a temporalidade
e espacialidade que nos interessa investigar.
Em todos esses aspectos da constituição e transformação urbana, teremos um olhar
formado por dois conceitos defendidos pelo o filósofo marxista francês Henri Lefebvre. No
primeiro, Lefebvre coloca a urbanização total da humanidade como resultado da evolução da
cidade, com as etapas, a saber: cidade política, cidade comercial, cidade industrial e zona
crítica (1999). E o segundo, o qual considera como ponto de partida da urbanização o
processo de industrialização (2001).
Toda a explanação do conceito terá a cidade de São Paulo como principal foco e sob a
perspectiva do consumo, pois na contemporaneidade “a imagem de cidade como centro de
produção e consumo domina totalmente a cena urbana” (Rolnik, 1994:28). Entretanto, desde
já, devemos fazer algumas ressalvas. Ao abordarmos o processo de formação da cidade na
história, e suas distintas temporalidades, como a Idade Média, obviamente estamos
considerando um contexto europeu e, assim, lançando mão de suas heranças no
contemporâneo, como já mencionado. No entanto, ao olharmos para a cidade moderna,
focaremos no contexto brasileiro de industrialização sem, obviamente, desconsiderar o
processo num contexto mundial. Isso será necessário, pois o nosso processo de
industrialização se dá de forma mais intensa a partir da década de 1950, tendo como epicentro
64
a cidade de São Paulo. Esse olhar brasileiro e, especialmente paulistano será ainda maior
quando analisarmos a contemporaneidade, temporalidade na qual vive o homem da rua.
Dialogaremos com autores que trataram e tratam as cidades em suas reflexões como o
historiador medievalista francês, Jacques Le Goff; o filósofo alemão Walter Benjamim, a
urbanista norte-americana, Jane Jacobs, a também urbanista, brasileira relatora especial da
Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik; o
historiador norte-americano, Lewis Mumford; os sociólogos alemães, Georg Simmel e Max
Weber; o economista brasileiro, Paul Singer; o geógrafo brasileiro Milton Santos; o já
mencionado, Henri Lefebvre, dentre outros. Todas essas leituras, em determinados momentos,
nos trarão articulações necessários para abordar alguns aspectos do conceito de cidade ao
longo da hitória. Para justificar essa proposta de estudo – a partir da observação histórica –,
tomaremos como justificativa o exposto por Mumford (1965):
Se quisermos lançar novos olhares para a vida urbana, cumpre-nos
compreender a natureza histórica da cidade e distinguir, entre as suas
funções originais, aquelas que dela emergiram e aquelas que ainda podem
ser invocadas. Sem uma longa carreira de saída pela História, não teremos a
velocidade necessária, em nosso próprio consciente, para empreender um
salto suficientemente ousado em direção ao futuro, pois grande parte de
nossos atuais planos, sem exceção de muitos daqueles que se orgulham de
ser “avançados” ou “progressistas”, constituem pouco engraçadas caricaturas
mecânicas das formas urbanas e regionais que ora se acham potencialmente
ao nosso alcance. (p. 11)
De início, falaremos do processo de formação da cidade e daremos enfoque de maior
grau à cidade medieval, pois esta possui muitos pontos de congruência com a cidade
contemporânea, em especial às questões relacionadas ao consumo e mercado, e às divisões
sociais. Alguns aspectos da cidade antiga (Atenas e Roma), como a sua formação política
serão abordados, no entanto é na Idade Média que focaremos, pois tomamos por base o
conceito de Le Goff (1998), um defensor da ideia de que a cidade medieval possui pontos
característicos que se perenizaram e ainda se fazem presentes na cidade atual:
A cidade contemporânea, apesar de grandes transformações, está mais
próxima da cidade medieval do que esta última da cidade antiga. A cidade da
Idade Média é uma sociedade abundante, concentrada em um pequeno
espaço, um lugar de produção e de trocas em que se mesclam o artesanato e
o comércio alimentados por uma economia monetária. É também o cadinho
de um novo sistema de valores nascido da prática laboriosa e criadora do
trabalho, do gosto pelo negócio e pelo dinheiro. É assim que se delineiam, ao
mesmo tempo, um ideal de igualdade e uma divisão social da cidade, na qual
os judeus são as primeiras vítimas. (p. 25)
65
3.1.1. A cidade como espaço de convivência da diferença
Quando saímos aos centros das grandes cidades nos deparamos com pessoas de várias
origens, etnias, profissões, ideologias, credo, classes sociais, idades, gêneros, esse é um
cenário normal ao nosso olhar? É o que poderíamos considerar como a normalidade de uma
cidade? Mas e o que foge a esse cenário de normatização?
Realizamos esses questionamentos, pois, o conceito fundador para nossa análise da
cidade é o fato de ela representar espaço para encontro das diferenças (grupos, classes sociais,
pessoas) que podem usá-la de maneiras diversas. Esse conceito toma por base o discurso de
vários autores, como Jacobs (2011). “Para compreender as cidades, precisamos admitir de
imediato, como fenômeno fundamental, as combinações ou as misturas de usos, não os usos
separados” (p. 158).
Como a antropóloga Janice Caiafa (2003), que ao se solidarizar com esse pensamento,
o faz com uma defesa veemente: “O que as cidades nos oferecem de mais atraente é essa
possibilidade de vislumbrar constantemente mundos estranhos, que não são o nosso e que
podemos vir a conhecer.” (p. 96). Ou ainda, o próprio Lefebvre (2001, p. 22): “A vida urbana
pressupõe encontros, confrontos de diferentes conhecimentos e reconhecimentos recíprocos
(inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos “padrões” que
coexistem na Cidade”. Certamente essa é uma herança da polis grega, que tinha na ágora o
espaço para encontros e debates. No entanto, sempre devemos recordar que na polis só eram
considerados os cidadãos, grupo que excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Mais
adiante voltaremos a explorar essa característica da cidade como espaço de encontro da
diferença. Tentaremos agora abordar o processo de formação do espaço urbano.
Outro conceito trazido por Lefebvre (2001) e Santos (1994) é importante para nossa
análise. Ambos os autores abordam conceituação marxista de Valor de Uso e Valor Troca no
contexto da cidade. O primeiro está relacionado à utilização da cidade em analogia a um
serviço, podendo ser lido como espaço de circulação e convivência, ao passo que o segundo
está relacionado à cidade como se esta fosse um produto que pode ser apropriado ou obter o
melhor resultado para quem os produz (os espaços comprados e vendidos, o consumo dos
produtos e dos bens, dos lugares e dos signos, por exemplo).
Ao pensarmos a sociedade urbana, estamos de acordo com Lefebvre (1999), quando
este a considera como decorrente do processo de industrialização, fruto de descontinuidades
históricas:
Essas palavras designam, portanto, a sociedade constituída por esse processo
que domina e absorve a produção agrícola. Essa sociedade urbana só pode
66
ser concebida ao final de um processo no curso do qual explodem as antigas
formas urbanas, herdadas de transformações descontínuas. Um importante
aspecto do problema teórico é o de conseguir situar as descontinuidades em
relação às continuidades, e inversamente. (p. 15)
A cidade para se configurar dessa maneira como a conhecemos, passou por intensos
processos, nos quais os indivíduos adaptaram suas vidas ao que lhe era condicionado pelo
ambiente. Essas adaptações são o que podemos considerar as descontinuidades históricas, pois
o homem passou a ver o mundo de outra maneira, como um espaço não só para perambular,
mas, especialmente, para se fixar.
De origem nômade, o homem sentiu a necessidade de fixar em um local, cultivar
terras, assim passou a ter a noção de pertencimento ao território onde se fixava. Desse simples
ato de fixação, desenvolveram-se processos políticos, econômicos, espirituais e culturais, que
favoreceram não só a fixação, mas aglomeração das pessoas. (SINGER, 1990; ROLNIK,
1994)
A vida espiritual é um dos marcos dessa fixação do homem na terra. Antes disso,
grosso modo, a morte não era significada como um processo de ‘passagem do homem na
terra’ e os corpos eram largados no local em que se dava o óbito, sem um fim ritual. Ao
ritualizar a morte e passar a enterrar ou cremar os mortos, o homem transformou sua relação
com o mundo. Essa nova forma de tratar vida, morte, existência e espiritualidade influencia a
formação da cidade. A religiosidade é uma das tendências que fomentaram a união de pessoas
ao redor de um templo. Rolnik (1994) explica isso realizando uma analogia a um imã: “O
templo era o imã que reunia o grupo. Sua edificação consolidava a forma de aliança celebrada
no cerimonial periódico ali realizado. Deste modo, a cidade dos deuses e dos mortos precede a
cidade dos vivos.” (p. 14).
Essa mudança na concepção de vida das pessoas significa uma nova relação com o
local, que passa a ser referenciado como um espaço perene de sobrevivência, por meio da
modelagem da natureza. O viver baseado anteriormente de forma exclusiva no extrativismo e
na caça, aos poucos é substituído pela agricultura e pela domesticação de animais:
A construção do local cerimonial corresponde a uma transformação na
maneira de os homens ocuparem o espaço. Plantar o alimento, ao invés de
coletá-lo ou caçá-lo, implica definir o espaço vital de forma mais
permanente. A garantia de domínio sobre este espaço está na apropriação
material e ritual de seu território. E assim, os templos se somam a canteiros e
obras de irrigação para construir as primeiras marcas do desejo humano de
modelar a natureza. (ROLNIK, 1994, p. 13)
67
Dessa maneira, podemos concluir que a relação entre homens e a cidade é inicialmente
marcada pela vida sedentária, condicionada por valores espirituais e culturais. Entretanto,
devemos olhar para esse processo, considerando um terceiro valor essencial: a economia.
Primeiramente, o simples fato de o homem se fixar em um local não garante a
formação da cidade. Para que se dê a formação do urbano em contraste ao rural, devemos
considerar o excedente alimentar. Embora fixado, cultivando a terra e domesticando animais,
essa fixação do homem não necessariamente era urbana.
Em segundo lugar, vale definir que o campo (rural) – em contraposição ao urbano –, é
o local da atividade primária, onde as substâncias são extraídas da natureza para um consumo
de subsistência (SINGER, 2002, p. 8). Essa diferenciação entre campo e cidade é, ainda,
marcada pela divisão do trabalho entre os espaços, a chamada a economia urbana.
Entende-se aqui por economia urbana uma organização da produção baseada
na divisão de trabalho entre campo e cidade e entre diferentes cidades.
Quando esta divisão do trabalho se estabelece, a cidade deixa de ser apenas a
sede da classe dominante, onde o excedente do campo é somente consumido
para se inserir no circuito da produção propriamente dita. Desta maneira, o
trabalho de transformação da natureza é iniciado no campo e completado na
cidade, passando o camponês a ser consumidor de produtos urbanos e
estabelecendo-se então a entre cidade e campo. (ROLNIK, 1994, p. 27)
Logo, a economia, como valor necessário a composição das cidades, compreendia a
organização verificada na troca entre campo e cidade, envolvendo justamente o excedente
agrícola. Ou seja, ao cultivar o campo, o homem passou a produzir além do que era necessário
para o seu consumo próprio, assim o excedente alimentar passou a figurar no processo. Singer
(2002) ressalta a importância do excedente no processo de formação das cidades, no entanto,
não o vê como dínamo único e exclusivo desse:
A produção do excedente alimentar é uma condição necessária mas não
suficiente para o surgimento da cidade. É preciso ainda que se criem
instituições sociais, uma relação de dominação e de exploração, que assegure
a transferência do mais-produto do campo à cidade. Isto significa que a
existência da cidade pressupõe uma participação diferenciada dos homens no
processo de produção e de distribuição, ou seja, uma sociedade de classes.
Pois, de outro modo, a transferência de mais-produto não seria possível.
Uma sociedade igualitária, em que todos participam do mesmo modo na
produção e na apropriação do produto, pode, na verdade, produzir um
excedente, mas não haveria como fazer com que uma parte da sociedade
apenas se dedicasse à sua produção, para que outra parte dele se apropriasse.
(p. 9)
Como proposto acima, além da competência econômica da cidade, temos ainda de
considerar sua competência política de organização urbana. Ou seja, para o surgimento das
cidades se existiam as condições econômicas, estas eram imbricadas com as condições
68
políticas. Segundo Singer (2002), sem a organização da sociedade em classes, não seria
possível que a cidade se organizasse. Sob este ponto de vista, podemos considerar pela
primeira vez o conceito de encontro das diferenças, pois, o homem em qualquer convivência
com o outro, já está se organizando politicamente. Rolnik (1994) expõe que na cidade nunca
se está só, o homem é sempre um fragmento do coletivo e explica a como é a relação.
A relação morador da cidade/poder urbano pode variar infinitamente em
cada caso, mas o certo é que desde sua origem cidade significa, ao mesmo
tempo, uma maneira de organizar o território e uma relação política. Assim,
ser habitante da cidade significa participar de alguma forma da vida pública,
mesmo que em muitos casos esta participação seja apenas a submissão a
regras e regulamentos. (p. 21 e 22)
Com efeito, vale mencionar que a cidade política (polis) é anterior à cidade comercial
que estamos focando. Retornando ao excedente agrícola devemos compreender que se atrela a
ele ideia de que na cidade a produção é impulsionada, a partir de tecnologias que
incrementam a produtividade da terra (ROLNIK, 1994), ou seja, como já colocado, é na
cidade que o trabalho de transformação da natureza é completado.
Também devemos levar em consideração a escrita, pois é a partir dela que se registram
as riquezas e os novos conhecimentos (memorização do trabalho coletivo, arquitetura,
documentos, escrituras). Rolnik (idem) explana essa passagem da seguinte maneira: “Na
cidade-escrita, habitar ganha uma dimensão completamente nova, uma vez que se fixa em
uma memória que, ao contrário da lembrança, não se dissipa com a morte.” (p. 16). Assim,
para a autora, construir uma cidade, consiste em construir em uma forma de escrita.
Ao pensarmos a escrita como registro da riqueza, podemos intuir o quanto ela é
importante como instrumento do mercado e do consumo. Além da escrita, da estrutura
política, outra atividade que potencializava o consumo é a aglomeração urbana como forma
de se distribuir os produtos, Rolnik explica (1994):
Isolado, cada indivíduo deve produzir tudo aquilo que necessita para
sobreviver; quando há a possibilidade de obter parte dos produtos
necessários à sobrevivência através da troca, configura-se a especialização
do trabalho e instaura-se um mercado. (p. 26)
Além de propiciarem as práticas de mercado e consumo (valor de troca), a
aglomeração de pessoas diferentes, é essencial para os processos comunicacionais (valor de
uso). Conforme Caiafa “Em todo caso, a experiência do estranho e do inesperado é uma
marca das cidades e precisamente o que a caracteriza como um universo de circulação e
comunicação bastante singular.” (CAIAFA, 2003, p. 91).
69
Os conceitos de distribuição e comunicação são cruzados no pensamento de Mumford
(1965), que os apresenta como grandes facilitadores do mercado, e por consequência, do
desenvolvimento da cidade.
Mais importante, afinal de contas, que a distribuição mais amplas dos
produtos no mercado foi o desenvolvimento do sistema de comunicação que
cresceu ao lado dele: o registro permanente parece ser, a princípio, um
subproduto das transações de mercado e a maior invenção, após as notações
linguísticas e numéricas, foi a invenção do alfabeto, obra dos comerciantes
fenícios. Com o comércio, veio o intercurso humano numa escala maior do
que em qualquer outra ocasião anterior. A Suméria era caracterizada como
‘multilíngue’, e a difusão e padronização das linguagens locais deram à
cidade sua situação especial de centro de comunicações, sede de uma
literatura comum, na qual outros centros eventualmente viriam a tomar parte.
(p. 100 e 101)
Esses aspectos mostram o processo de transição dos usos da cidade, meramente, para
uma cidade comercial, que se caracteriza pelo valor de troca. Lefebvre (1999) coloca:
O processo de integração do mercado e da mercadoria (as pessoas e as
coisas) à cidade dura séculos e séculos. A troca e o comércio, indispensáveis
à sobrevivência como à vida, suscitam a riqueza, o movimento. A cidade
política resiste com toda a sua força, com toda a sua coesão; ela sente-se,
sabe-se ameaçada pelo mercado, pela mercadoria, pelos comerciantes, por
sua forma de propriedade (a propriedade mobiliária, movente por definição:
o dinheiro). (LEFEBVRE, 1999, p. 21 e 22)
A partir desse processo de passagem da cidade política para a cidade comercial, é
interessante abordar o olhar de Weber (1979), que considera a cidade essencialmente como
um local de comércio. É importante entendermos aí o que é prioritária a ideia de valor de
troca na cidade. O autor discorre sobre o quanto o mercado propiciou e foi propiciado pelos
encontros de diligências de outros locais formando feiras esporádicas, para suprir as
necessidades dos citadinos:
Outra característica que se teria que acrescentar para poder falar de “cidade”
seria a existência de um intercâmbio regular e não ocasional de mercadorias
na localidade, como elemento essencial da atividade lucrativa e do
abastecimento de seus habitantes, portanto de um mercado. Porém, não é
qualquer mercado que transforma a localidade na qual ele existe em
“cidade”. Mercados periódicos e feiras anuais, nos quais em épocas
determinadas se encontravam comerciantes de regiões distantes para trocar
entre si suas mercadorias, ou colocá-las diretamente em mãos do
consumidor, tinham lugar frequentemente e, locais que hoje reconhecemos
serem “aldeias”. Falaremos de “cidade” no sentido econômico quando a
população local satisfaz uma parte economicamente essencial de sua
demanda diária no mercado local e, outra parte essencial também, mediante
produtos que os habitantes da localidade e a povoação dos arredores
produzem ou adquirem para colocá-los no mercado. (1979, p. 69)
70
Com isso, os conceitos de encontro das diferenças, além da distinção entre valor de
uso e troca se mostram essenciais para o entendimento da cidade ao longo da história.
Tentamos neste subitem abordar o processo de formação da cidade e da cidade medieval, e
seus aspectos mais importantes. Antes de termina-lo, é importante que olhemos um grupo em
especial, a classe trabalhadora. Le Goff, (1998) em sua leitura sobre a cidade medieval a
identifica da seguinte maneira:
Mas, seja qual for o status depreciado de numerosos trabalhadores que
evocamos, a grande valorização do trabalho se dá na cidade. Esta é uma das
funções históricas fundamentais da cidade: nela são vistos os resultados
criadores e produtivos do trabalho.
Todos esses curtidores, ferreiros, padeiros... são pessoas que produzem
coisas úteis, boas e, às vezes, belas, e tudo isso se faz pelo trabalho, à vista
de todo mundo. Inversamente, a ociosidade é depreciada: o preguiçoso não
tem lugar na cidade. (p. 49)
Le Goff, ao mesmo tempo em que aponta para a valorização da classe trabalhadora,
fala também do inverso, uma população extremamente pobre e excluída, que não possui o
conhecimento para produzir essas “coisas úteis” e vive à margem da sociedade. É aí que
podemos começar a refletir sobre quem poderia ser os antepassados da população em situação
de rua:
É ao mesmo tempo o movimento demográfico e a economia que criam, a
partir do século XIII, mas sobretudo a partir do século XIV, esse novo tipo
de população urbana que são os marginais, para os quais é extremamente
frágil o limite entre pobreza, miséria e crime, mais ainda para as mulheres,
que se debatem entre a miséria e a prostituição. (LE GOFF, 1998, p. 46)
Essa população pobre vive, segundo Le Goff, do recurso entre a mendicância e o
roubo, pois o trabalho clandestino não faz parte da dinâmica da cidade.
Em linhas gerais, esse é o quadro da cidade comercial, que tentamos explanar no item,
juntamente com o processo de formação da cidade. A partir de agora tomaremos como objeto
de estudo a cidade industrial que também fará o homem ter uma nova relação com o espaço.
3.1.2. Ferro, aço, revitalização e individualização: a cidade moderna
A queda do Império Romano do Oriente, com a tomada de Constantinopla pelos turcos
otomanos em 1453 marca o fim da Idade Média e início da Idade Moderna. Não iremos, no
entanto, considerar de maneira absoluta essa contagem do tempo histórico para nosso
trabalho, pois a compreensão do que é a modernidade se mostra muito relativa, como aponta
uma das hipóteses formuladas pelo antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini (2003)
71
sobre o pensamento moderno: “a primeira hipótese é que a incerteza em relação ao sentido e
ao valor da modernidade deriva não apenas do que separa nações, etnias e classes, mas
também dos cruzamentos socioculturais em que o tradicional e moderno se misturam”. (p. 18)
Assim, consideramos, com base no historiador britânico e marxista Eric Hobsbawn
(2007), o ingresso do mundo na modernidade no período entre 1789 e 1848. Esse ingresso
tem como marco e marca a dupla revolução – Francesa e Industrial, respectivamente –, que
significou o triunfo da indústria capitalista, iniciado neste contexto e que se ramificou para
todos os cantos do mundo, modelando e remodelando as cidades e também o modo de vida
nelas.
É nesse contexto que pensaremos a cidade moderna, primeiramente num esboço do
mundo e depois no Brasil, com sua modernidade tardia, iniciada já no século XX. A cidade
moderna se define como um espaço que segue a ordem industrial de produção capitalista, pela
definição de Lefebvre (1999; 2001), e se localiza historicamente no momento da cidade
industrial, marcando o início do que ele chama de sociedade urbana. Abordamos, neste trecho
do texto, como o homem moderno é regido sob influência das dinâmicas sócio-econômico-
tecnológicas que a industrialização trouxe para o mundo.
Para iniciar, trazemos com uma reflexão de Le Goff (1998) sobre a passagem para a
modernidade. Este autor identifica o setor secundário (indústria) como uma função da cidade,
apenas após a Revolução Industrial, no entanto as demais funções essenciais de cidade não
deixam de existir na cidade moderna:
O que significa que, se pensamos na longa duração, se formos além mesmo
do caso de Paris, as funções essenciais de uma cidade são a troca, a
informação, a vida cultural e o poder. As funções de produção – o setor
secundário – constituem apenas um momento da história das cidades,
notadamente no século XIX, com a Revolução Industrial, visível sobretudo
nos subúrbios situados na periferia. Elas podem desfazer-se; a função da
cidade permanece (p. 29).
É a Paris moderna que nos serve de cenário para estudarmos a cidade moderna. Apesar
da permanência da “função cidade”, algumas descontinuidades ocorrem na cidade moderna
em relação ao mundo medieval. Do ponto de vista arquitetônico, por exemplo, saem as
muralhas que cercavam e protegiam a cidade medieval, para a ascensão do vidro e do ferro,
Walter Benjamim (1985), analisa esse último material no contexto das transformações
urbanas, e expondo uma mudança no ritmo de vida das pessoas: “Com o ferro aparece, pela
primeira vez na história da arquitetura, um material artificial. A isto subjaz uma evolução cujo
ritmo se acelera no decorrer do século.” (p. 31).
72
Esse ritmo citado se refere a um ritmo de vida diferente da cidade medieval, um ponto
de descontinuidade da modernidade. Benjamim (idem) observa e enuncia que além desse
novo ritmo dele, há o desmembramento entre local de trabalho e de moradia. Assim, as
atividades laborais, antes desempenhadas na terra ou na oficina do artesão, que também
serviam de residências, pela primeira vez na história passam agora a serem feitas fora do lar,
fazendo com que o homem se desloque pela cidade.
Apesar das descontinuidades, a cidade moderna também apresenta heranças da época
medieval. Para nossa análise, vale citar o conceito que mencionamos anteriormente, o
encontro da diferença, que se intensifica na cidade moderna. Frúgoli Jr. (2000) aborda a
evolução desse conceito da seguinte maneira:
A cidade moderna passa a ser o espaço por excelência de uma constante
interação entre grupos sociais, onde a diversidade e os conflitos sociais
decorrentes se intensificam e ganham maior visibilidade e dramaticidade. As
classes populares foram sem dúvida, as mais atingidas por esse processo: os
largos bulevares que rasgaram o tecido urbano – inserindo Paris numa escala
de circulação mais propícia à ordem capitalista industrial de então – puseram
abaixo bairros populares dominados pelas assim chamadas “classes
perigosas”, com uma elevação dos aluguéis que empurrou o proletariado
para a periferia da cidade (p. 20).
Da citação de Frúgoli, destacamos o ponto em que ela fala do proletariado, que não
habitava mais os centros, e tinha de se deslocar para seus postos de trabalho. Empurrada para
a periferia, a classe trabalhadora nem sempre tinha um encontro cordial com a burguesia. A
esse tipo de encontro conflituoso, Caiafa (2003) faz a seguinte reflexão:
Os diferentes grupos não propiciam apenas o encontro pacífico da diferença,
mas também conflituoso. Que os encontros citadinos possam trazer a marca
da colisão é uma excelente pista que nos leva a enfrentar novos problemas. É
mesmo um ritmo que se constrói na exterioridade das cidades e que envolve
experiências subjetivas em contraste com aquelas dos meios fechados. É que
não nos basta atribuir a esse ritmo da colisão a marca da desorganização ou
da destruição. Seria preciso ressaltar também o papel produtivo ou
construtivo do confronto. A fricção pode trazer diferenciação, desafiando o
reconhecimento, tendo um efeito não necessariamente deletério mas
transformador dos processos subjetivos. (p. 95)
Se, de maneira otimista, Caiafa aponta esses pontos de fricção como transformadores
de processos subjetivos, na Paris do século XIX, esse contato entre diferentes classes foi
reprimido, ao máximo, pelo Barão de Haussmann que, como explica Benjamim (1985),
realiza uma série de obras de revitalização, para evitar ainda mais o contato entre as classes:
Haussmann trata de encontrar apoio para a sua ditadura e colocar Paris sobre
um regime de exceção. Em 1864, num discurso na Câmara, expressa o seu
ódio contra a desarraigada população da grande metrópole. Esta aumenta
constantemente através de seus empreendimentos. A elevação dos aluguéis
73
empurra o proletariado para os arrabaldes. Através disso, os bairros perdem a
sua fisionomia própria. Surge o cinturão vermelho. Haussmann deu a si
mesmo o nome de “artiste démolisseur” [artista demolidor]. Sentia-se como
que chamado para a sua obra, o que enfatiza em suas memórias. Assim, ele
faz com que Paris se torne uma cidade estranha para os próprios parisienses.
Não se sentem mais em casa nela. Começa-se a tomar consciência do caráter
desumano da grande metrópole. (p. 41 e 42)
Benjamin (idem) conclui que a intenção de Haussmann era tornar a cidade segura em
caso de guerra civil, com largas avenidas que impossibilitariam a construção de barricadas
pelos rebelados. Assim, buscava-se com a revitalização ou remodelação de Paris antecipar e
controlar qualquer rebelião de grupos diferentes. Sobre a intervenção urbana, Frúgoli Jr
(2000) comenta:
Em outras palavras, significa uma intervenção urbanística adequada à nova
ordem econômica, ou seja, uma perspectiva de atuação na qual o arquiteto
ou urbanista passa a atender demandas de grupos distintos de clientes, na
busca de soluções pontuais e locais, pretensamente “personalizadas”,
ecléticas e diversificadas, abrindo mão de soluções abrangentes – típicas do
ideário modernista (p. 22).
Essa nova configuração arquitetônica faz a Paris moderna se esvaziar. Esse aspecto
pode ser transposto para qualquer cidade que faz do ideário modernista seu fim de intervenção
urbanística. Diante do contexto e considerando a reflexão de Caiafa sobre a alteração na
subjetividade do homem moderno, a partir dos encontros na cidade, esse mesmo homem passa
a buscar seu refúgio no lar. A vida na cidade traz ao indivíduo novas experiências que são
observadas por Georg Simmel (1967) da seguinte forma:
Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que
faz o indivíduo de preservar a autonomia e a individualidade de sua
existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da
cultura externa e da técnica de vida. A luta que o homem primitivo tem que
travar com a natureza pela sua existência física alcança sob esta forma
moderna sua transformação mais recente. O século XVIII conclamou o
homem a que se libertasse de todas as dependências históricas quanto ao
Estado e à religião, à moral e à economia. A natureza do homem,
originalmente bom e comum a todos, devia desenvolver-se sem peias.
Juntamente com maior liberdade, o século XVIII exigiu a especialização
funcional do homem e seu trabalho; essa especialização torna o indivíduo
incomparável a outro e cada um deles indispensável na medida mais alta
possível. Entretanto, esta mesma especialização cada homem
proporcionalmente mais dependente de forma direta das atividades
suplementares de todos os outros. (p. 13)
Com base no exposto por Simmel (idem), compreendemos que é na cidade moderna
que a individualidade e autonomia se intensificam. O autor ao entender que na cidade
moderna as pessoas são reduzidas ao mecanicismo sócio-tecnológico, à objetividade, à
74
mensuração da vida, ao uso extremo de consciência e ao distanciamento entre a produção e
consumo de produtos, aponta que o resultado disso é uma extrema impessoalidade das
relações do indivíduo, inclusive em suas relações comerciais. Ele explica:
[...] ao passo que a metrópole é de fato caracterizada por sua independência
essencial até das mais eminentes personalidades individuais. Isso é a
contrapartida da independência e é o preço que o individuo paga pela
independência que desfruta pela metrópole. A característica mais
significativa da metrópole é essa extensão funcional para além de suas
fronteiras físicas. E essa eficácia reage por seu turno e da pessoa,
importância e responsabilidade à vida metropolitana. O homem não termina
com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua atividade
imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que
emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade
consiste em seus efeitos totais, que se estendem para além de seus limites
imediatos (p. 23 e 24).
Sobre o distanciamento entre produção e consumo, e o economicismo que toma conta
da vida do indivíduo, proposições de Simmel (1967), vale a pena expor o poder do comércio
ainda na cidade:
[...] a esfera da psicologia do pequeno grupo, é importante que, sob
condições primitivas, a produção sirva ao cliente que solicita a mercadoria,
de modo que o produtor e o consumidor se conheçam. A metrópole
moderna, entretanto, é provida quase que inteiramente pela produção para o
mercado, isto é, para compradores inteiramente desconhecidos, que nunca
entram pessoalmente no campo de visão propriamente dito do produtor. [...]
A economia do dinheiro domina a metrópole; ela desalojou as últimas
sobrevivências da produção doméstica e a troca direta de mercadorias; ela
reduz diariamente a quantidade de trabalho solicitado pelos clientes. [...] A
mente moderna se tornou mais e mais calculista. A exatidão calculista da
vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da
ciência natural: transformar o mundo num problema aritmético, dispor todas
as partes do mundo por meio de fórmulas matemáticas. (SIMMEL, 1967, p.
16)
Ainda como espaço de encontro das diferenças e de trocas comerciais, a cidade
moderna funda o indivíduo, em meio à multidão. Ela também passa a intensificar situações de
marginalização, com a colocação das classes trabalhadoras para a periferia, por exemplo.
Movida pelas chaminés das fábricas, ao mesmo tempo em que essa cidade “impessoaliza”
seus citadinos, os aglomera, os faz serem engrenagens de um processo frio e automatizado,
que produz riquezas e desigualdades de todas as naturezas. O homem continua a viver nesses
espaços e sempre se adaptando. Ou seja, produzindo diferentes subjetividades, como sugere
Caiafa:
Mas mesmo o sujeito é um episódio dessa subjetividade processual, que não
é nunca resultado, mas constantemente processo. São componentes os mais
diversos que entram na produção da subjetividade. Assim, os processos
75
sociais e materiais na cidade – a relação com o espaço construído – são
componentes subjetivos também. A experiência com a variedade de
estímulos nas ruas, com esses desconhecidos que cruzam nosso caminho – e
com quem uma comunicação em alguns casos pode se estabelecer –
modeliza afetos, perceptos, produz, enfim, subjetividade. (p. 92 e 93)
Esse é o homem que se adapta produzindo subjetividades na cidade moderna, que
ainda lhe faz encontrar com os outros e é um lócus privilegiado para o consumo, ainda que
mais distante da fonte produtora dos produtos. Mas e no Brasil? Como que o processo de
industrialização se deu e como passamos para a modernidade, ainda que não tenhamos em
nosso país a experiência de uma cidade medieval? Seguiremos, a partir de agora para falar do
Brasil, mais precisamente da cidade São Paulo, e traremos como um fértil exemplo, o bairro
da Luz.
3.1.3. A modernidade e a contemporaneidade paulistanas: a Estação da Luz e sua
próxima parada, a Nova Luz
O bairro da Luz é localizado próximo ao centro da cidade de São Paulo. Seu ponto de
referência é a Estação da Luz, criada em 1867, para sediar a Companhia São Paulo Railway.
De muitos pontos do bairro é possível avistar o alto da torre do relógio, da atual estação,
construída em 1901, que não deixa dúvidas sobre a influência britânica em sua concepção.
Essa influência é apenas um dos sinais das ramificações da Revolução Industrial ao redor do
mundo que comentamos acima, e que tem sob o simbolismo da locomotiva o principal
expoente.
A instalação significa a intenção de modernização da cidade e do estado de São Paulo,
visto que, a industrialização sempre busca locais para que, por alguma razão, que terá maior
rentabilidade. Santos (1979) comenta esse aspecto: “Com efeito, a cidade é o lugar
privilegiado do impacto das modernizações, já que estas não se instalam cegamente, mas nos
pontos do espaço que oferecem uma rentabilidade máxima.” (p. 17 e 18)
Para o leste, a estação ligava à cidade de Santos, no litoral, a Oeste, à cidade de
Jundiaí, no interior do estado. Essa linha teve grande influência no escoamento da produção
de café, assim como a chegada de imigrantes no início do século XX. Em um processo
dialético de ruptura e manutenção de sua vocação inicial, hoje, a estação é um dos principais
entroncamentos de linhas de trens e metrôs da cidade, com a passagem de centenas de
milhares de passageiros por dia, vindos de diversas regiões da cidade, muitos deles oriundos
de diversos lugares do Brasil e do mundo.
76
Essa diversidade de origens da população paulistana é resultado do processo brasileiro
tardio de industrialização, em relação às nações que desenvolveram sua industrialização no
final do século XIX. O café, as imigrações e, principalmente os investimentos na indústria na
década de 1950, fomentaram um lento e errante processo de desenvolvimento no país.
Errante, pois no Brasil os ciclos migratórios são consequências das políticas desiguais de
investimento regional, que de uma forma ou de outra, se concentraram na Grande São Paulo.
O que refletiu em desequilíbrios de todas às ordens à região, e mais especificamente à cidade
de São Paulo, como aponta o Singer (1990):
No Brasil, o processo de industrialização tardio fez com que um grande
fluxo migratório tivesse como destino a cidade de São Paulo. Esse
crescimento acelerado levou a cidade a uma série de desequilíbrios,
principalmente entre procura e oferta de habitações e serviços urbanos, que
compõem uma problemática urbana específica. (SINGER, 1990, p. 117).
Pelo que já expusemos, compreendendo o processo de formação da cidade, é
compreensível o êxodo para regiões mais providas economicamente. Caiafa (2003), com base
no pensamento de Mumford, aponta “que a cidade, em oposição ao pequeno povoado, se
caracterizou desde o início por atrair gente de fora, “não-residentes”, que ali vinham por
interesse em alguma atividade de ordem religiosa ou social, mais que no comércio, segundo
esse autor.” (p. 92)
Uma das consequências desse processo é que as características da força de trabalho na
cidade se modeliza a partir de um modelo desigual e desequilibrado. Como Santos (1994)
enuncia:
A enorme e populosa São Paulo é, pois, operosa e operária, mas também não
há outra aglomeração no Terceiro Mundo onde as atividades intelectuais
ofereçam tantos empregos e onde a classe média seja tão numerosa. Estes
dois últimos fenômenos se afirmam quando, paradoxalmente, aumenta na
cidade o número de pobres. Cidade abastada e cidade pobre formam uma só
cidade. (SANTOS, 1994, p. 14)
As questões que provocaram o desequilíbrio em São Paulo ocorreram, conforme
Singer, por meio de diferentes níveis de investimentos regionais nas primeiras décadas do
século XX, grandes colaboradoras para um processo duplo de degradação. A degradação tanto
econômica do local que envia, como urbana para o local que recebe os trabalhadores parece
um cenário previsível neste quadro de desigualdades sociais e econômicas entre regiões do
País. Uma das figuras que identificam essa degradação é certamente o morador em situação
de rua, pois esse pode – não em todos os casos –, ser fruto de um problema crônico de
moradia na cidade.
77
Olhar para um processo de diferenças sociais, nos leva a tentar entender o processo de
pobreza urbana no qual, para Santos (1979, p. 37), os pobres não têm acesso a um grande
número de mercadorias modernas. Então, por que não pensar que esses também não tem
acesso à cidade? Ou ainda, a qual cidade eles têm acesso?
Podemos ainda conceber a industrialização da cidade São Paulo como um processo
inacabado de inserção da cidade no contexto moderno o qual, além de produzir as diferenças
sociais citadas, também serve de base para transformações do ponto de vista informacional,
que embora, não necessariamente sejam da ordem industrial, se baseiam nesta ordem:
São Paulo é a única entre as grandes cidades do Terceiro Mundo a ter bem
perto dela uma zona agrícola dinâmica. Ao longo de um século, e desde o
início do seu processo de modernização cosmopolita, tanto a cidade como a
sua região foram aceitando todos os instrumentos de modernidade que se
criavam na Europa e nos Estados Unidos e com os quais cidade e campo, a
cada etapa, iam inserindo-se vantajosamente na divisão internacional do
trabalho: estradas de ferro e de rodagem, portos, plantações, bancos,
modelos de consumo, escolas, modernização administrativa, urbanismo etc.
Desse modo, a expansão do campo e o desenvolvimento urbano se
influenciam, criando um conjunto dinâmico que impulsionou a economia do
País, e fazendo crescer uma classe média na capital e no interior. Por isso,
São Paulo foi a cidade dos trópicos com maiores taxas de crescimento
industrial e econômico. (SANTOS, 1994, p. 14)
A partir do exposto acima, Santos (1994) ainda aponta que a base industrial deu a São
Paulo o alicerce para que se tornasse uma cidade informacional, um centro internacional de
serviços e referencial para todo o País. (p. 15)
A acumulação de atividades intelectuais ligadas à nova modernidade
assegura a essa área a possibilidade de criação de numerosas atividades
produtivas de ponta. Ambos os fatos garantem preeminência em relação às
demais subáreas e atribuem, por isso mesmo, novas condições de
polarização. Atividades modernas presentes em diversos pontos do País
necessitam apoiar-se em São Paulo para um número crescente de tarefas
essenciais. São Paulo fica presente em todo o território brasileiro graças a
esses novos nexos geradores de fluxos de informação indispensáveis ao
trabalho produtivo. (SANTOS, 1994, p. 39)
Para finalizar a conceituação de Santos sobre a São Paulo moderna, devemos
compreender que a cidade sofre uma mudança em sua característica produtiva e de centro
influenciador a partir da década de 1980.
Sem deixar de ser a metrópole industrial do País, apesar do movimento de
desconcentração da produção, recentemente verificado, São Paulo torna-se,
também a metrópole dos serviços, metrópole terciária, ou, ainda melhor,
quaternária, o grande centro de decisões, a grande fábrica de ideias que se
transformam em informações e mensagens, das quais uma parte considerável
são ordens (SANTOS, 1994, p. 40)
78
Da cidade que se inicia em sua modernidade a partir da industrialização, e que tem
como decorrência disso uma alta diferença social, assim como um duplo processo de
desenvolvimento versus a degradação, tomamos por exemplo a Luz. Hoje, o bairro é
caracterizado como uma localidade que passa por um processo de gentrificação ou
gentrification, que trata de um fenômeno que afeta a composição dos bairros, ao atrair
investimentos de alto valor e expulsando as pessoas de menor poder aquisitivo (os pobres) do
local. O antropólogo Heitor Frúgoli Jr. e a pesquisadora Jessica Sklair (2009) explanam a
região da seguinte maneira, sob o aspecto da gentrificação e dos equipamentos culturais:
A região central de São Paulo é marcada pela aglutinação de vários bairros, e
um deles vem obtendo crescente visibilidade quanto a aspectos
tradicionalmente abrangidos pelas temáticas ligadas ao tema da
gentrification. Trata-se do bairro da Luz, de forte densidade urbanística e
social, assinalado pela presença de vários prédios e instituições culturais
tombadas pelo patrimônio estadual, cujo marco histórico inicial foi a Estação
da Luz (sua construção atual foi inaugurada em 1901) – que passou por
reforma recente, com a implantação, em suas dependências, do Museu da
Língua Portuguesa. Em torno da mesma, um conjunto significativo de
instituições culturais foi recentemente reabilitado, como o prédio da
Pinacoteca do Estado, ou parcialmente reutilizado, como no caso da criação
da Sala São Paulo, hoje sede da Orquestra Sinfônica do Estado, na estação
ferroviária Júlio Prestes. Tais instituições têm sido responsáveis por um novo
afluxo de pessoas ligadas às classes médias e altas à região central. As casas,
ruas e praças de tal região, entretanto, têm sido há muito definidas por forte
ocupação popular, com uma quantidade significativa de cortiços, bem como
práticas recorrentes de comércio informal, prostituição e tráfico e consumo
de crack em vários espaços públicos. Mais recentemente, a atual gestão local
de São Paulo tomou tal área como prioritária para uma política mais ampla
de requalificação, dando continuidade a uma política iniciada pelo governo
do Estado há duas décadas, de transformar a Luz num “bairro cultural”.
(FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 121 e 122)
Temos então o bairro da Luz como uma região degradada que é marcada, por esses
grupos citados pelos autores. Um deles é composto pelos moradores em situação de rua, que
vivem ali em uma região chamada emblematicamente de “Cracolândia”, a Terra do Crack. O
Crack é uma pedra produzida a partir da cocaína para ser fumada em um pequeno cachimbo,
seu efeito é mais rápido que a cocaína, cerca de cinco minutos, e atualmente a droga ilegal
mais consumida nas ruas São Paulo.
Ao circular pela região, em qualquer horário do dia, centenas de pessoas literalmente
perambular com seus cobertores pendurados, em pleno estado de efeito ou de abstinência da
droga – popularmente chamado de “fissura”. Quando não estão nessa condição estão
dormindo ou consumido crack. Os usuários são popularmente chamados de nóias e são
estigmados de várias maneiras. Como explicam Frúgoli Jr. e Sklair (2009):
79
Dessa forma, Luz e Centro se entrelaçam enquanto representações espaciais,
embora a primeira categoria remeta claramente, como vimos, aos “nóias” –
marcados pela sua presença física nas ruas e associados simbolicamente a
uma série de estigmas– sujeira, perigo, ameaça à segurança (principalmente
à noite), drogas, encrenca, vergonha, etc. (p. 125)
Os pesquisadores caracterizam o método utilizado para investigar o grupo, objeto de
sua pesquisa, como etnografia urbana:
De um modo geral, a maioria dos usuários é negra ou mulata, predominam
homens, há pessoas de várias faixas etárias e alguns deles, tatuados. Sua
aparência não difere tanto de muitos que integram a chamada população em
situação de rua. Tal roteiro permitiu a constatação da permanência da
presença física dessa população nos espaços públicos do bairro, tendo apenas
realizado um pequeno deslocamento espacial após as recentes intervenções.
(FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 128)
De outro lado da análise, sobre o que representa o bairro, há os equipamentos
culturais, que são parte do investimento dos governos estaduais e municipais, para propiciar a
revitalização da região a partir da utilização do espaço público por um público de classe
média e alta. Os mesmos pesquisadores explicam que o processo de gentrificação se dá
especialmente a partir dessa intenção dos governos de revitalizar o bairro, tornando-o ponto
da cena cultural paulistana, pois os equipamentos culturais não são frequentados pela
população do bairro (p.26).
É sob esse contexto que surge, em 2005, sob a gestão do então prefeito, José Serra
(PSDB) e de seu vice, Gilberto Kassab (DEM) o projeto Nova Luz. Um plano para
revitalização da região que tem como base alterações no uso do espaço urbano e que não
promove uma solução concreta e de caráter humanitário para os moradores em situação de rua
e viciados, ao contrário, em diversas ações no ano de 2012, o poder público abusou da força
policial, reprimindo essa população, o evento foi batizado como “Operação Sufoco” 17
.
Frúgoli Jr. e Sklair (2009) analisam: “A “Cracolândia” tem sido fortemente acionada nos
discursos dos responsáveis pelas intervenções urbanas locais e vem também sendo alvo de
ações recorrentes de repressão.” (FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 124)
O folheto explicativo do Projeto Nova Luz 18
diz o seguinte:
O “Projeto Nova Luz” constitui as bases para a transformação urbanística
futura dessa área de cerca de 500 mil metros quadrados no coração do
Centro de São Paulo. Esta região é a mais acessível da cidade e tem um
comércio especializado vibrante. Pelas condições excepcionais de transporte
público, a Nova Luz tem potencial para abrigar ainda mais atividades
17 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1029307-pm-faz-operacao-contra-o-trafico-na-regiao-
da-cracolandia-em-sp.shtml. Acesso em 18 de janeiro de 2013. 18
Disponível em http://pt.scribd.com/doc/157633427/20110811-folhetoA4. Acesso em 17 de janeiro de 2013.
80
econômicas e mais moradias, o que deve ser acompanhado da qualificação
urbanística e ambiental da área.
Além de criar opções de moradia e novos equipamentos públicos, o projeto
desenvolvido recupera e preserva o patrimônio arquitetônico existente,
respeita e estimula a vocação econômica e comercial da região e abre
horizontes para a instalação de novas atividades.
Entre as melhorias de infraestrutura urbana propostas estão a abertura de
praças e espaços de convivência públicos, a instalação de escolas, creches,
posto de saúde e equipamentos de cultura e assistência social, a adequação
do sistema de drenagem, o alargamento de calçadas, a instalação de
mobiliário urbano e o plantio de árvores.
O projeto também viabiliza a implementação da maior Zona Especial de
Interesse Social (ZEIS) na área central, garantindo a provisão de habitação
de interesse social e de mercado popular para cerca de 2.000 famílias.
A implementação do projeto urbanístico em desenvolvimento atrairá novos
moradores, oportunidades de negócios e mais empregos, estabelecendo
assim, os alicerces para a melhoria do ambiente urbano beneficiando a
população local.
É importante destacar que este é o primeiro projeto que segue a diretriz de
reversão do esvaziamento populacional da região central, além de promover
a melhoria da qualidade dos espaços públicos e do meio ambiente, o
estímulo às atividades de comércio e serviços e a preservação e reabilitação
do patrimônio arquitetônico nas áreas subaproveitadas de urbanização
consolidada.
Como pode se perceber na apresentação do projeto, pouco ou nada se fala da
população que vive naquelas ruas. Do ponto de vista humanitário, fala sobre as zonas
especiais de interesse social (ZEIS) e ainda da criação de creches, escolas e postos de saúde.
A arquiteta e urbanista Lucia Zanin Shimbo (2011) sintetiza e comenta algumas das ações
tomadas contra essa população pelo do Projeto Nova Luz, ao qual considera o processo de
limpeza urbana.
Desde 2005, para transformar a chamada região da “Cracolândia” em Nova
Luz foram realizadas uma série de ações, mas que não chegaram a compor
um projeto urbano claramente definido. A principal delas estava voltada à
ideia de “limpeza urbana”, ao policiamento e à repressão à presença de
catadores de materiais recicláveis, comerciantes informais, moradores de
rua, imigrantes ilegais e usuários de crack – que integraram a “Operação
Limpa”. Além disso, foi instituída a Lei de Incentivos Seletivos (2005), que
passou a conceder incentivos fiscais para atrair novas empresas de comércio
e serviços para uma área de aproximadamente 250 mil m2, com cerca de
1500 imóveis, na região da Santa Ifigênia. Ainda em 2005, foi desapropriada
uma área de 105.000 m2, posteriormente aumentada para 270.000 m2, em
2007, igualando-se ao perímetro da Lei de Incentivos Seletivos, com o
objetivo de se implantar um plano urbanístico, fundamentado na criação de
um polo comercial e de serviços, a fim de se trair, principalmente, empresas
da área tecnológica. Apesar de decretada a desapropriação, ela não se
concretizou inteiramente até 2010.
81
Ou seja, pelo exposto acima, podemos considerar que o Valor de Uso da região da Luz
é significado, num movimento duplo de renúncia e confusão com o Valor de Troca, no qual se
privilegia empresas e a especulação imobiliária. Sobre esse fenômeno, Santos (1994) aponta:
A partir de um equipamento seletivo do território, dá-se uma urbanização
corporativa rapidamente crescente e despontam metrópoles e cidades
corporativas, onde, de um lado, a modernização do meio ambiente
construído favorece as grandes empresas e, de outro, o êxito das
reivindicações dos grupos sociais vai depender de pressões corporativas.
Nessas condições, parcela importante dos recursos públicos se dirige a um
equipamento urbano seletivo, do interesse da economia hegemônica e das
camadas sociais hegemônicas. (p. 143)
Ao nosso contexto pesquisa, o que interessa a pensar sobre o projeto Nova Luz é a
forma como esse insere o morador de rua na discussão e como o representa na mídia. Pois,
diante do contexto do Projeto Nova Luz, a pergunta que não nos quer calar é: e como fica
quem já vivia ou trabalhava estava no bairro? Quanto ao uso diversificado do bairro, qual é a
intenção do Projeto Nova Luz?
Percebemos que a diversidade, defendida por Jacobs (2011), como algo importante
para o desenvolvimento urbano, está pouco ou muito mal explorada pelo Projeto Nova Luz. A
visão da autora sobre a diversidade é exposta da seguinte maneira:
Isso é necessário para que a vida urbana funcione adequada e
construtivamente, de modo que a população das cidades possa preservar (e
desenvolver ainda mais) a sociedade e a civilização. Os órgãos públicos e
semipúblicos são responsáveis por alguns dos empreendimentos que ajudam
a construir a diversidade urbana – como parques, museus, escolas, a maioria
dos auditórios, hospitais, certos escritórios, certas moradias. Todavia, a
maior parte da diversidade urbana é criação de uma quantidade inacreditável
de pessoas e de organizações privadas diversas, que têm concepções e
propósitos bastante diversos e planejam e criam fora do âmbito formal da
ação pública (p. 267)
Caiafa (2003) corrobora com esse ponto de vista, apontando para a ocupação coletiva
do espaço público.
É a aglomeração urbana, onde há necessariamente a criação de espaços
coletivos. Porque a ocupação privada do espaço, como nos mostram casos
concretos, leva a uma segmentação da população e a uma compartimentação
do espaço urbano que inviabilizam a cidade. Poucos ocupam as áreas
residenciais segregadas ao mesmo tempo em que se geram habitações
precárias de excessiva concentração. O espaço público é desativado, não se
oferece à ocupação coletiva. A rua já se torna inviável para a caminhada – e
os mais pobres são os mais penalizados porque vão ter que se deslocar ali ao
menos para poder se amontoar no transporte coletivo precário. (p. 93)
Sobre o uso do espaço público pela diversidade, cabe lembrar que isso acaba gerando
um processo natural de concorrência pelo uso do espaço acarretando na autodestruição da
82
diversidade. Ou seja, se o projeto Nova Luz, priorizar diversos usos do espaço público, com o
tempo um deles suplantará os demais.
Seja qual for a forma de autodestruição, em pinceladas gerais, é isto o que
ocorre: uma combinação diversificada de usos em determinado local na
cidade torna-se nitidamente atraente e próspera como um todo. Em virtude
do sucesso do lugar, que invariavelmente se deve a uma concorrência
acirrada por espaço. Ela adquire uma dimensão econômica equivalente à de
uma coqueluche [...]
Os vencedores da concorrência por espaço representarão apenas uma
pequena parcela dos muitos usos que geraram o sucesso conjuntamente.
Sejam quais forem, o uso ou os usos que se destacaram como mais lucrativos
na localidade se reproduzirão cada vez mais, expulsando e suplantando os
tipos de uso menos lucrativos. (JACOBS, 2011, p. 269)
O projeto Nova Luz já foi tema de algumas pesquisas, entre elas a de Frúgoli Jr. e
Sklair (2005), que aplicaram a etnografia urbana para coletar e observar as falas de
moradores, comerciantes e frequentadores das ruas do bairro. Os mesmos deram interessantes
depoimentos sobre as ações do projeto, as quais os pesquisadores analisaram da seguinte
maneira.
[...] quando perguntados sobre as demolições recentemente havidas, situadas
no perímetro da “Nova Luz”, a maioria entende que intervenções como essas
não resolvem tal problema, pois apenas promovem o deslocamento desses
grupos, o que é corroborado pelas inúmeras matérias de imprensa que
atestam que, frente a ações de repressão, os usuários de crack tendem a
migrar para locais das cercanias e aos poucos retornar aos espaços originais,
embora no caso da “Nova Luz” pretenda-se uma expulsão “definitiva” dos
mesmos, com a construção de uma nova paisagem urbana. De um modo
geral, tais demolições têm suscitado dúvidas e interrogações quanto à sua
extensão e ao que será efetivamente construído no local. (FRÚGOLI JR. e
SKLAIR, 2009, p. 125)
Na visão de alguns dos comerciantes entrevistados as ações não trouxeram muitas
mudanças. Os pesquisadores apontam que para esse público. “o atual estado dos quarteirões
atingidos piorou a situação do local ao deixá-los desertos, o que, por enquanto, afastou ainda
mais os fregueses.” (FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 125)
Já o Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na
municipalidade de São Paulo (2011) apresentou os seguintes resultados em relação à
Operação Cracolândia:
Em janeiro deste ano foi iniciada a “operação Cracolândia” no centro da
cidade de São Paulo (principalmente na Rua Helvetia), onde até o mês de
março de 2012 (momento em que este relatório é composto) a polícia está
restringindo a circulação de usuários e traficantes de drogas naquela região.
Dos indivíduos em situação de rua entrevistados, 83,2% ficaram sabendo ou
assistiram a operação, 16,0% não e 0,8% não lembravam. Para os 83,2% que
responderam afirmativamente, 40,9% circulavam ou pernoitavam próximo a
83
Região da Cracolândia. (57,4% não e 1,7% se recusaram a responder). Para
estes a vida dos indivíduos em situação de rua foi afetada por essa operação
de forma positiva (para 10,5%), de forma negativa para 17,2% e os restantes
72,3% acham que não interferiu na sua vida, foi, portanto, indiferente.
(2011)
Ao explanarmos o contexto da região do bairro da Luz, em momento algum tentamos
reduzir o cidadão em situação de rua à representação do dependente químico do Crack ou de
demais entorpecentes. Sabemos que essa população tem grande índice de dependência
química e, especialmente alcóolica, até como uma forma de socialização, no entanto, vale-nos
mais olhar para esse grupo como pessoas em condição de risco social, que estão lá por
diversas razões de ordem familiar, financeira, social, etc.
Ao explanarmos o grupo inserido nesse contexto, nossa intenção é apenas expor uma
das condições da população de rua, especialmente essa que ficou evidenciada pelo projeto
Nova Luz, para o melhor entendimento do que colocam Vieira et al. (1992), vive sob a
opressão de uma dupla solidão: a do passado, na qual rompe com sua família e a sua história;
e a do grupo social, onde por mais que viva acompanhado nas rua, muitas vezes está só em
suas relações sociais, não tendo amigos. No próximo item iremos caracterizar essa população,
para que possamos ter base teórica para a nossa análise de discurso.
Vale refletir ao final deste item sobre os três tipos de urbanismo proposto por Lefebvre
(2001), a saber:
a) O urbanismo dos homens de boa vontade (arquitetos, escritores) com base em
um planejamento humanista da cidade;
b) O urbanismo dos administradores ligados ao setor público, baseado na ciência;
c) O urbanismo dos promotores de venda, que o concebem para o mercado
visando o lucro.
Para a nossa análise, ter em mente esses tipos de urbanismo será de suma importância,
pois, como define Caiafa (2003):
A cidade também promove integração (ela não é só dispersão), mas local,
não global como faz o Estado. A recodificação urbana, as marcas que se
formam (e que estriam, delimitam, hierarquizam) são constantemente
redistribuídas porque a cidade não cessa de receber outros fluxos que
modificam seu espaço social e físico e portanto de se transformar e se
produzir por eles. (p. 92)
No item seguinte, traremos uma explanação sucinta do que é o morador de rua e como
o fenômeno será tomado em nossa análise.
84
3.2. A outra cidade de São Paulo: o morador em situação de rua
3.2.1. Zé ninguém ou Zé alguém?
Nasceu da miséria
E se sente o cheiro daí
Se encheu de cachaça e saiu por ai
Não trabalha, mas também não explora
Não consegue compreender multidões contando horas
Na praça demonstra a sua fé
Babando satisfeito
E é movido com os pés
Zé Ninguém (Garotos Podres)
Ninguém ou alguém? Quem é esse cidadão que vive nas ruas de São Paulo e de tantas
cidades do País? Homem do saco, vadio, noia, sem-teto, mendigo ou vagabundo? Cidadão,
morador em situação de rua, desabrigado, desventurado ou todas as anteriores? Quem são
essas pessoas que, como muitas, tiram da rua o seu sustento, mas que, diferentemente das
outras, não voltam para suas casas e vagam pelas ruas, praças, muitas dormindo por lá mesmo
sobre a “maciez” da cama de cimento, forrada por papelões, e se aquecendo pela fogueira,
pela sensação de calor da aguardente ou, muitas vezes pelo cobertor das edições dos jornais
dos dias anteriores?
Optamos por iniciar esse texto, sobre a população em situação de rua, com a canção da
banda de punk rock Garotos Podres, intitulada Zé ninguém. E isso não é por acaso. Muitas
vezes, é assim que os moradores de rua são identificados nos discursos que circulam pela
cidade, e é dessa forma que esses indivíduos são marcados pela diferença com seus corpos
que fogem às normas que configuram o urbano. Para entendermos o conceito sobre os corpos,
tomamos o conceito do filósofo francês Michel Foucault (2008), que reflete sobre o controle
dos corpos como uma forma de controle social, pois um corpo dócil pode ser submetido,
utilizado, transformado e aperfeiçoado. Assim, refletimos se este corpo que não é dócil
nem é aperfeiçoado não pode ser associado ao morador de rua. O pensador explica as
diferenças dessa política voltada ao corpo, em relação a outros momentos históricos.
Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de
apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação
custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente
grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de
dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida
sob a forma da vontade singular do patrão, seu “capricho”. Diferentes da
vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas
85
longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os
produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do
ascetismo e das “disciplinas” de tipo monástico, que têm por função realizar
renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em
obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de
cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o
momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente
o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas
a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais
obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT, 2008, p. 118 e
119)
Esse diferente também constitui a cidade (por vezes outra cidade) resistindo naquele
âmbito, contra a violência, à perseguição policial, ao desdém da população, à fome, ao frio, às
doenças, a tantas mazelas...
O mendigo, o indigente, o marginal são vistos por outros segmentos sociais
como transgressores de uma ordem socialmente dada de organização do
espaço. O modo de ser e de agir da população de rua espelha uma desordem.
Eles ficam na frente das casas, bebem, ficam horas conversando, gritando,
empilham montes de lixo, obstruindo a circulação, dormem nos bancos das
praças durante o dia. (VIEIRA et al., 1992, p. 135, grifo do autor)
Neste item, tentaremos caracterizar quem é essa população, por que são corpos
diferentes em relação à normatização do urbano e por que ele constitui essa “outra cidade”, no
que concerne à cena midiática. Para chegar a esses objetivos tomaremos por base alguns
conceitos de cidade, cidadania, assistência social, identidade e diferença, dentre outras teorias
das ciências sociais. Dialogaremos com os alguns autores como a socióloga Maria Lúcia
Montes; a socióloga e pesquisadora da Fipe, Maria Antonieta da Costa Vieira; a assistente
social Cleisa Moreno Maffei Rosa; o teórico cultural jamaicano, Stuart Hall; o pesquisador
Marcel Burzstin; o geógrafo Milton Santos; o filósofo Zygmunt Bauman; além dos já citados
Henri Lefebvre e Jacques Le Goff. Antes, porém, vale ressaltar o que já falamos na
introdução deste trabalho, que não faremos distinção às terminologias “morador de rua”,
“morador em situação de rua”, “sem teto”, “homem da rua”, “população em situação de rua”
etc. Todas as expressões são referentes às pessoas que vivem nas ruas das cidades brasileiras.
3.2.2. O morador rua: do desejo ao descaso
Na cidade de São Paulo há uma população de 11 milhões de pessoas, das quais,
1447819
são moradores em situação de rua. A composição desses dados se dá considerando as
19 Segundo dados do Censo da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo (2011)
86
pessoas que vivem nas ruas ou abrigadas nos centros de acolhida da prefeitura do Município
de São Paulo, os chamados albergues.
Esses números são controversos, pois é sempre muito difícil de contabilizar a
população de rua, especialmente por conta das metodologias utilizadas. Por exemplo, a
metodologia do Censo Populacional Brasileiro, do IBGE, que toma por base a residência, ou o
fato a população de rua está sempre em trânsito, sem local fixo, abrigadas ou não. Diante
desse contexto, fontes extraoficiais e especulativas falam de um número muito superior, 40
mil pessoas vivendo nas ruas de São Paulo. As pesquisadoras Vieira et al. (2006), explicam a
dificuldade.
Por tratar-se de uma população móvel e bastante heterogênea, que se desloca
não só geograficamente, mas também econômica e socialmente, torna-se
difícil precisar o número de pessoas que se encontram nas ruas da cidade.
Em função de suas condições de vida, tais pessoas podem alternar a rua com
outras situações habitacionais precárias e o trabalho na rua através de bicos
com o trabalho regular. Na rua misturam-se o morador tradicional e os que
ficam temporariamente nela e que, por vezes, percorrem vários pontos do
País em empregos na construção civil e em trabalhos agrícolas (p. 48).
Há ainda a condição definida pela ONU (Organização das Nações Unidas) que trata
como homeless (talvez a tradução do inglês mais aplicável a morador de rua) todas as pessoas
que vivem em habitações sem os padrões mínimos de habitalidade. No entanto, em nosso
caso, trabalharemos com os dados oficias de pesquisa, e o morador será apenas esses que
moram nas ruas e tiram dela seu sustento, não consideraremos moradores de favelas,
ocupações e ou depósitos de materiais reciclados (ferros-velhos), que muitas vezes possuem
quartos onde os trabalhadores podem pernoitar.
Ao olho nu, os moradores em situação de rua são facilmente reconhecidos pelas ruas
da cidade, por conta da indumentária em estado precário, por carregarem em suas trouxas
cobertores e outros pertences, pelos cabelos e barbas enormes e nada convencionais, enfim,
por muitos fatores demonstrativos que sua sobrevivência está nos limiares da dignidade e das
condições mínimas de saúde, higiene, educação, alimentação, etc. Esses condicionantes
demonstram como seus corpos estão desviados do padrão corporal do cidadão que tem
moradia fixa, emprego etc. Os sem-teto são, assim, marcados pela diferença justamente por
não terem seus corpos disciplinados, não estão controlados do ponto de vista de sua
distribuição, pois não estão em local definido, mas nas ruas ou de sua atividade, pois não tem
mais referências de horários ou compromissos. (FOUCAULT, 2008)
Bursztyn (2000) compreende esses cidadãos como excluídos do processo de geração
de riquezas (emprego) e da distribuição de seus frutos (consumo) (p. 20) e, assim,
87
marginalizados, sobrevivem à custa de subemprego (catadores de lixo ou materiais recicláveis
em geral), de pequenos delitos, ou da solidariedade das pessoas e instituições.
Um dos marcos iniciais para compreendermos a configuração dessa população é a
condição de pobreza extrema, ou seja, uma ruptura, com os parâmetros que constroem uma
noção ordem de vida legítima, e passível de transformar quem vive nessas condições em
marginalizados de várias ordem (TELLES 1990 apud VIEIRA et al., 1992, p.18)
Diante desse aspecto, no qual a pobreza se sobrepuja como o fator econômico, Santos
(1979) explica: “Pobreza não é só privação material, mas um conjunto duradouro e complexo
de relações e instruções sociais, econômicas, culturais e políticas criadas para encontrar
segurança dentro de uma situação de insegurança” (p. 10). Então, quando pensamos a pobreza
em relação à situação de rua, estamos refletindo sobre questões que tem a ver com o dinheiro,
entretanto, também para muito além disso, sobre condições mínimas para uma vida que não se
torne marginalizada, ao ponto de se perder a referência de localidade, família e tempo.
A pobreza não se reduz, portanto, a uma questão meramente econômica, se
constituindo também num parâmetro de avaliação social. Neste contexto a
população de rua, que indiscutivelmente se encontra numa situação de
extrema pobreza, tem seu lugar social demarcado, sendo estigmatizada pela
sociedade como um todo e pela classe trabalhadora em particular (VIEIRA
et al., 1992, p. 18)
Alheios à sociedade de consumo, os moradores de rua são tidos, por alguns setores da
sociedade, como párias ou representantes do atraso, não somente de seu próprio
desenvolvimento econômico como também o da cidade, assim, argumentações de cunho
higienizador são comumente expressadas, em especial na cena midiática. Do outro lado do
debate público, há diversas entidades da sociedade civil que buscam a recuperação desta
população, como Associações, Organizações não governamentais e entidades ligadas a
instituições religiosas, como a Pastoral do Povo da Rua, em São Paulo, liderada pelo Padre
Júlio Lancellotti. Como já mencionamos, as causas de estarem nessa situação variam e
podemos considerá-las de diversas ordens, que também vão além da ordem econômica, elas
podem ser de ordem pessoal, da saúde mental, de dependência química, familiar ou social.
Na urbe, espaço de consumo, o morador vive à margem da sociedade de consumo, no
entanto não deixa de consumir, ainda que embora única e exclusivamente para sua
subsistência imediata.
Viver na rua não significa necessariamente viver sem dinheiro, mas em
grande parte significa adquirir o essencial à sobrevivência sem passar pelo
mercado. Não significa a eliminação do trabalho, mas o abandono do
compromisso constante e cotidiano do emprego, substituído por outras
88
formas de trabalho, como os bicos, a coleta e venda de material reciclável
etc. (VIEIRA et al., 1992, p. 97)
Os moradores de rua também são demarcados pela diferença em relação às suas
práticas de consumo. Para Santos (1979) a sociedade urbana está particionada em duas,
caracterizadas e diferenciadas entre si, diante desse pensamento, compreendemos o morador
de rua como os que não têm acesso a mercadorias e consumo:
A sociedade urbana é dividida entre aqueles que têm acesso às mercadorias e
serviços numa base permanente e aqueles que, embora tendo as mesmas
necessidades, não estão em situação de satisfazê-las, devido ao acesso
esporádico ou insuficiente ao dinheiro. Isso cria diferenças quantitativas e
qualitativas de consumo (p. 37)
Na situação de rua, trabalho e consumo são significados de uma maneira diferente para
essa população que, em oposição ao que julga o senso comum, 2/3 dela possui o trabalho
como fonte de renda. Mais de 90% mescla isso entre trabalho e esmola e apenas 3,9% “não
faz nada” 20
.
Embora trabalhadores, esses homens e mulheres da rua, não veem na atividade laboral
como algo que construa sentido para sua vida, mas que apenas lhe propicia esse consumo
imediato e necessário. Fazem um “bico” aqui e acolá, por um prato de comida, uma garrafa de
pinga, ou qualquer outra recompensa que lhe faça sentido naquele instante. Como diz a letra
da música Zé Ninguém, o morador de rua “Não consegue compreender multidões contando
horas”.
De maneira geral, os moradores de rua se concentram nas áreas centrais da cidade,
pois é lá que se incluem de forma arbitrária ou alternativa ao ciclo do consumo, valendo-se da
aglomeração e circulação de pessoas durante o dia e o vazio noturno, fatos que podem lhes
conceder o contexto para viver suas atividades de subsistência: dormir sob marquises, pedir
esmolas ou comida, atuar em subempregos e, até, furtar objetos. Em suma, as ruas concedem
aos moradores de rua explorar criativamente diversas formas de sobrevivência. Vieira et al.
explicam (1992):
A concentração da população de rua no centro da cidade parece estar ligada
às oportunidades de garantir a sobrevivência através de pequenos bicos e
obtenção de alimentação gratuita, distribuída por entidades filantrópicas e
por restaurantes e bares. Além disso, pelo fato de o centro da cidade vir
sofrendo um processo de deterioração progressiva, torna-o também um lugar
de agregação da população de rua pela oportunidade de utilização de imóveis
abandonados, viadutos, além dos abrigos, albergues e inúmeras marquises de
20 Principais Resultados do Perfil Socioeconômico da População de Moradores de Rua da Área Central da
Cidade de São Paulo, 2010
89
lojas e prédios públicos; a grande circulação de pessoas nessa área facilita a
prática da mendicância. (p. 50)
Usar a rua como moradia não é um fato novo no mundo. Existe desde os primórdios
daquilo que Lefebvre (1999) considera a cidade comercial, dentro de seu pensamento de
urbanização total da sociedade. Isso significa pensar que, embora nosso estudo seja com foco
para o morador de rua contemporâneo da metrópole moderna, esse fenômeno não é uma
exclusividade da modernidade e, tampouco da pós-modernidade. Temporalmente o conceito
de Lefebvre nos leva à cidade da Idade Média. Em diálogo com Le Goff (1998), se confirma
que o fenômeno dos sem-teto já ocorria naquela época, sendo inclusive uma prática
incentivada pela igreja e pelos governos, com o pretexto religioso da salvação dos homens
bons.
A respeito da mendicância urbana, nossa mentalidade evoluiu
completamente: eis um ponto em que sopra o espírito de continuidade. Até a
crise do século XIV, o pleno emprego predomina, mais ou menos, na cidade
medieval; e se o pobre deve recorrer à mendicância, esta é, se não louvada,
ao menos reconhecida. Na Igreja, as novas ordens do século XIII,
dominicanos e franciscanos, denominam a si mesmas ordens mendicantes. O
mendicante é quase que desejado na cidade, ele permite ao burguês trabalhar
pela sua salvação oferecendo esmolas. Hoje nos submetemos a um sistema
totalmente distinto. Nas cidades medievais, se os conselhos de cidade
tivessem tomado resoluções proibindo a mendicância, teriam sido
completamente incompreendidos e, provavelmente, teriam suscitado
rebeliões. A mendicância tinha, com efeito, um duplo mérito: de um lado,
coloca em evidência a miséria do homem, e, de outro, para aqueles que se
acham do lado bom da roda da Fortuna, ela dá a oportunidade de trabalhar
por sua salvação mediante a esmola, que persiste, e até se desenvolve, como
a forma de caridade que é, de longe, a mais recomendável. Praticamente se
ia à procura dos pobres, fazendo-os migrar para a cidade para oferecer ao
burguês a possibilidade de fazer a caridade. (LE GOFF, 1998, p. 52 e 54)
Notem que, para o bem ou mal a diferenciação entre os cidadãos e população de rua
faz sentido desde a idade média como uma dinâmica própria da cidade. Daquela época aos
dias atuais, se mantém a noção de corpos diferentes para o morador de rua, no entanto se
descontinua essa significação de benefício trazido pela população de rua à cidade e ao cidadão
comum, normatizado, pois diferentemente dos tempos medievais, quando, como vimos com
Le Goff, quando os moradores de rua eram desejados pelas lideranças citadinas, sejam como
justificativa de tributos a suas crenças cristãs – como controle social por parte do governo –,
atualmente despertam um problema de ordem social para a gestão das cidades. Notem que na
Idade Média havia um inusitado contexto, eram os próprios corpos diferentes usados como
instrumento de normatização da sociedade.
90
Já se olharmos para a contemporaneidade, e com base em Bauman (2009), pensar não
somente no morador de rua, mas pessoas em pobreza absoluta, chamada por ele de
underclass, significa pensar que essa população é formada por indivíduos, digamos “inúteis”
à vida social, sendo dispensáveis para sociedade.
Hoje, apenas uma linha sutil separa os desempregados, especialmente os
crônicos, do precipício, do buraco negro da underclass (subclasse): gente
que não se soma a qualquer categoria social legítima, indivíduos que ficaram
fora das classes, que não desempenham alguma das funções reconhecidas,
aprovadas, úteis, ou melhor, indispensáveis, em geral realizadas pelos
membros “normais” da sociedade; gente que não contribui para a vida social.
A sociedade abriria mão deles de bom grado e teria tudo a ganhar se o
fizesse. Não menos sutil é a linha que separa os “supérfluos” dos criminosos;
underclass e “criminosos” são duas subcategorias de “elementos anti-
sociais” que diferem uma da outra mais pela classificação oficial e pelo
tratamento que recebem que por suas atitudes e comportamentos.
(BAUMAN, 2009, p. 7, grifo do autor)
Despossados e indesejados na sociedade contemporânea, o povo da rua têm o corpo
como um dos poucos bens, além de seus pertences, geralmente uma sacola, chamada galo ou
trouxa, que facilita sua locomoção, pois podem dormir cada dia em um local distinto. Para
zelar pelo corpo e sob o temor da violência, que assola essa população nos grandes centros,
procuram dormir em grupos, mas quanto maior o grupo, mais fácil de serem alvo da polícia,
pois ficam mais expostos aos citadinos que os veem como geradores de algazarras e sujeira,
ou seja, o grupo torna-se mais indesejado. Segundo o relatório, Principais Resultados do
Perfil Socioeconômico da População de Moradores de Rua da Área Central da Cidade De
São Paulo, 2010 (SCHOR e VIEIRA, 2010), 2/3 da população de rua de São Paulo já foi
vítima de algum tipo de violência, seja de seus pares, ou de policiais, transeuntes e
comerciantes. Já no Censo e caracterização socioeconômica da População em situação de
rua na municipalidade de São Paulo (2011) o número de pessoas que dizem já terem sofrido
agressões é de 52,8%.
A violência é apenas uma das consequências, pelas quais, está sujeita a população de
rua. Segundo Vieira et al. (1992), o desapego, ou a perda de referenciais, é uma consequência
que ocorre de forma natural e gradativamente ao sem-teto. O conjunto de novas significações
laborais familiares e habitacional, motivadas pelas perdas de referencial, favorecem a
instabilidade e transitoriedade, e dificultando a possibilidade de laços permanentes, pois o
indivíduo acaba se tornando uma pessoa cada vez mais “descompromissada” e sem vínculos.
O morador de rua não paga a residência, e não assume os compromissos que
isto implica: aluguel, taxas, pagamento de água e luz, consegue roupas
doadas e se serve de uma rede filantrópica que distribui alimentação. Além
91
disso, recorre a instituições assistenciais, a fim de obter auxílio financeiros e
orientação. (p. 97 e 98)
Quanto à referência familiar o dado demonstra que apenas cerca de 1/3 (33,1%)21
dos
moradores de rua vive acompanhado da família. Dessa maneira intuímos que essa população
aos poucos adquire outros referenciais em relação à família, moradia e trabalho.
Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição de
espoliação, enfrentando carências de toda sorte, mas significa, também,
adquirir outras referências de vida social, diferentes dos anteriores baseados
em valores associados ao trabalho, à moradia, às relações familiares
(VIEIRA et al., 1992, p. 96)
Essa nova relação de referenciais para sua vida é obtida mediante muita dificuldade, e
essa dificuldade é um fator importante para nossa análise. Levamos em consideração que a
dificuldade em se viver na rua, em hipótese alguma pode ser naturalizada, desconsiderada,
pelo fato de as pessoas não terem mais compromisso com coisas básicas da vida. Pelo
contrário, a dificuldade é uma evidência que nos ajuda a compreender o fenômeno, pois se
trata de uma nova compreensão do viver a essas pessoas:
A inserção no mundo da rua não se dá de forma repentina. Gradativamente o
indivíduo vai abandonando hábitos, costumes e conceitos, para pouco a
pouco ir vivenciando e adquirindo um novo entendimento da rua e – por que
não dizer? – da vida. (VIEIRA et al., 1992, p. 98)
As autoras ainda complementam:
A rua deixa de ser o contraponto negativo da casa entendida como proteção e
cooperação, passando a ser percebida como espaço possível de
sobrevivência, como lugar de trabalho e moradia. Trata-se, na verdade, de
um processo de perdas, por um lado, e de novas aquisições, por outro.
(VIEIRA et al., 1992, p. 98)
Assim, morar na rua confere ao morador uma reutilização dos espaços públicos com
novos significados, atividades que são do âmbito privado como lavar-se, dormir ou comer são
realizadas no espaço comum. Diante de uma relação tão complexa como é essa de estar na
rua, Vieira et al. (1992), classificaram os estágios dessa situação, com base no fato de que:
A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para
os que, sem recurso, dormem circunstancialmente sob marquises de lojas,
viadutos ou bancos de jardim ou pode constituir-se em um modo de vida,
para os que já têm na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma
complexa rede de relações. (p. 93)
21 Principais Resultados do Perfil Socioeconômico da População de Moradores de Rua da Área Central da
Cidade De São Paulo, 2010
92
As mesmas autoras definem o estágio inicial, no qual o indivíduo circunstancialmente
dorme nas ruas, como Ficar na rua; na sequência quando a pessoa está há pouco tempo
ficando toda a sua jornada nas ruas como Estar na rua; e o último e terceiro estágios se
configuram quando a pessoa já está totalmente habituada à rua e esta se torna a sua referência
principal. A este estágio as autoras denominam como Ser da rua. No quadro abaixo, proposto
por Vieira et al. (1992) uma síntese de como é a relação desses três estágios com a moradia, o
trabalho e os grupos de referência.
Quadro 2: Classificação da população de rua por estágio de permanência22
Esquema das situações de permanência na rua
Ficar na Rua Estar na rua Ser da rua
Moradia Pensões, albergues,
alojamentos
(eventualmente rua)
Rua, Albergues, pensões
(alternadamente)
Rua, mocós
(eventualmente albergues
e pensões)
Trabalho Construção civil, empresas
de conservação e
vigilância
Bicos na construção
civil, ajudante geral,
encartador de jornal,
catador de papel
Bicos, especialmente de
catadores de papel,
guardador de carros,
encartador de jornal
Grupo de
referência
Companheiros de trabalho,
parentes
Companheiros de rua e
trabalho
Grupos de rua
3.2.3. Como se veem e como são vistos pelos outros
Sem documento, sem identidade, assim está o morador de rua da cidade de São Paulo,
segundo pesquisa sobre a o perfil da população de rua na cidade de São Paulo, das
pesquisadoras Silvia Maria Schor e Maria Antonieta Costa Vieira (2010), quase metade não
possui documento algum:
Quase a metade dessa população não possui qualquer documento, o que as
exclui da vida civil, deixando de ter direitos e de serem reconhecidas como
cidadãos. Outros têm alguns documentos, mas é alta a proporção dos que
não têm documentos essenciais como a carteira de identidade, o CPF, título
de eleitor e carteira de trabalho. (2010)
22 Fonte: Vieira et al. (1992)
93
Sem o documento que os identifica formalmente, qual é a identidade desse morador de
rua? Ele possui uma identidade? Se sim, como reivindicar a sua cidadania? Essas questões é o
que tentaremos explicar a partir de agora.
É do imaginário popular a expressão: “Se você não se comportar, o homem do saco
vai vir te pegar!”, desta forma, algumas mães chantageavam seus filhos que se comportavam
mal. Homem do saco é uma das alcunhas possíveis para o morador de rua. Em especial, serve
para identifica-los às crianças. Por mais que pareça uma inocente expressão, essa prática
discursiva revela como a identidade do morador de rua, é significada para as pessoas, ou seja,
como um delinquente, um marginal ou alguém que possa representar uma ameaça à
ingenuidade das crianças.
Para falar dessa identidade significada dessa maneira, iremos tomar como referência o
pensamento de Stuart Hall (2006) sobre a questão da identidade nacional e realizar um
transporte análogo deste conceito para compreender a identidade do morador em situação de
rua. Visto que uma cultura nacional pode ser representada por meio das práticas discursivas
são nos discursos os locais onde as identidades nacionais são defendidas, imaginadas,
expostas, significadas e reproduzidas:
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais,
mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um
discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto
nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...] As culturas
nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais
podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão
contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que
conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.
Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma
“comunidade imaginada”. (HALL, 2006, p. 50 e 51)
Grosso modo, compreendendo essa nação como as ruas, e considerando que o
discurso será o local no qual a identidade é imaginada, exposta, significada e reproduzida,
compreende-se que o simples fato de se falar às crianças que o “Homem do saco vai pegar”
ou mesmo uma canção como Zé Ninguém – que por mais que defenda a dignidade população
de rua –, já demonstram que as práticas discursivas são perpassadas pelo imagético produzido
sobre o morador de rua na sociedade. No caso do morador de rua, mesmo em situação de
pesquisa, em que as práticas discursivas são auto expressivas (fala-se de si ou do próprio
grupo), essas significações de identidade demonstram traços parecidos sobre a identidade do
povo da rua, como afirmam Vieira et al (1992).
É comum os moradores de rua referirem-se a si mesmos como trabalhadores
e a seus companheiros como maloqueiros, gente que não quer trabalhar.
Nesse sentido, evitam identificar-se com seus iguais quando estes revelam a
94
face do estigma, preservando para si a identificação com os valores
constituídos. (p. 101)
Ao pensarmos no morador de rua a partir desse conceito, obviamente, não estamos
apontando uma identidade nacional, mas uma identidade coletiva e essa não se difere
conceitualmente da identidade nacional, no que diz respeito à forma como são significadas.
Por outro lado, temos a população que não é moradora de rua, essas se identificam e são
identificadas, como outro grupo específico, normatizadas em relação ao urbano. Podemos
apreender com essa observação o que diz Kathryn Woodward (2009), que a identidade é,
assim, marcada pela diferença.
Se é por meio dos discursos, especialmente os midiáticos, que uma identidade – a de
morador de rua, a nacional ou qualquer outra – é imaginada, expressada, constituída,
reproduzida, representada, etc., é também, por meio da relação entre o que está dentro
(identidade) e fora (diferença) que ela se demarcada (WOODWARD, 2009). A autora ainda
expõe que a complexidade da vida moderna permite a existência de diversidades de posições
disponíveis, que se manifestam, também, pelas práticas discursivas. Os discursos da cultura
nacional são caracterizados da seguinte forma por Hall:
O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser.
Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o
passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias
passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As
culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a
recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era
“grande”; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este constitui o
elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas
frequentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para
mobilizar as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem
os “outros” que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma
nova marcha para a frente. [...] Alguma coisa do mesmo tipo pode estar
ocorrendo na Europa Oriental. As áreas que se separam da antiga União
Soviética reafirmam suas identidades étnicas essenciais e reivindicam uma
nacionalidade sustentada por "estórias" (algumas vezes extremamente
duvidosas) de origens míticas, de ortodoxia religiosa e de pureza racial.
Contudo, elas podem também estar usando a nação como uma forma através
da qual possam competir com outras “nações” étnicas e poder, assim, entrar
no rico “clube” do Ocidente. (HALL, 2006, p. 56 e 57)
Esse resgate de tradições muitas vezes perpassa os discursos que constroem a
representação do morador de rua, sejam essas construções com base em representa-los como
cidadãos de direitos, sejam para diferenciá-los, por meio da higienização. Especialmente por
esse motivo último, em muitas falas do cidadão normatizado, o morador de rua é considerado
95
alguém não legítimo a viver em determinado local. A antropóloga Maria Lúcia Montes aponta
para a questão, questionando as construções sociais:
Essas representações evidentemente são construídas diferentemente, segundo
diferentes tipos de sociedade, segundo o lugar diferencial que o indivíduo
ocupa nessa sociedade, segundo o conjunto de valores, de ideias, de normas
etc. que pautam o código de leitura, através do qual ele interpreta a sua visão
de mundo, ele interpreta sua vida, ele organiza sua percepção da realidade.
O que eu quero dizer com isso é que não há, portanto, identidade que não
seja socialmente construída, simbolicamente construída, no plano simbólico
da cultura; nós estamos falando de alguma coisa que é, antes de tudo, não
uma coisa, mas um feixe de relações. Identidade não é coisa, identidade é
relação. (MONTES, 1995, p. 194)
Quanto ao significado do morador em situação de rua para a população em geral, eles
serão identificados como outro, o sujeito que é marcado pela diferença, por desestabilizar o
urbano com o seu corpo fora do esperado. Assim, um discurso higienizador como medida
para resolução do problema parece ser sempre o indicado.
Consideradas essas características, não é de admitir que o comportamento
mais geral da sociedade em relação à população de rua seja inspirado pelo
desejo de não olhar para as suas próprias mazelas. Inscreve-se nesse
contexto a forte pressão dirigida aos vários órgãos da Prefeitura do
Município de São Paulo, por parte da grande parcela da população, a fim de
que remova para longe de suas casas os habitantes alojados nos vários
lugares públicos. (VIEIRA et al., 1992, p. 132)
No entanto, conforme o assunto se coloca na agenda política, também propiciado pelo
agendamento do jornalismo na sociedade, o morador passa a ser significado de outras formas.
Ocas”, por exemplo, propõe isso em sua missão, como uma tentativa de fazer o público rever
o sentido do que é o moradia na rua e o risco social. Ou seja, o morador de rua como um
sujeito que detém direitos.
Por sua vez, a população de rua vem de forma lenta constituindo seus
espaços de luta, através de manifestações em protesto pela falta de moradia,
de emprego. Em vez de mendigo, indigente, maloqueiro, denominações
como sofredores de rua, povo da rua, começaram a substituir a identidade
estigmatizada de caído, criando condições para que esses indivíduos se
vejam como grupo social e não apenas como fracassados solitários, únicos
responsáveis por sua situação, e para que possam ser vistos não como
clientes, carentes, mas como sujeitos, com direito à cidadania. (VIEIRA et
al., 1992, p. 102 e 103)
3.2.4. Brancos, negros, índios, tanto faz: um grupo heterogêneo
Ao olharmos para a população de rua da cidade de São Paulo e das grandes cidades do
Brasil, deparamos com uma grande diversidade no que diz respeito a questões de gênero,
96
religião, raça, etnia, geração, etc. Essa diversidade, especialmente a étnica, no entanto não é
considerada diferenciadora da identidade do grupo. A população de rua é sempre considerada
homogênea para, quem está fora dela.
Embora o senso comum possa intuir que as minorias étnicas sejam percentualmente
quem mais forma esses grupo, esse não é um fator determinante, há uma distribuição igual
entre brancos (36,7%), pardos (34,0%) e negros (26,7%). Indígenas (1,7%) e orientais (0,3%),
ficam mais atrás na lista. Adultos predominam nas ruas, sendo oito a cada 10 pessoas23
. A
indiferença em relação a isso é percebida inclusive nos atos de violência.
Constatou-se que não há diferença ou discriminação por idade, sexo ou cor
das vítimas, quando se trata de morador de rua. A violência é praticada por
vários agentes contra os moradores de rua em geral, porque nessa condição,
eles formam uma massa de pessoas iguais, o que reforça a perda da própria
identidade e a situação de total exclusão social. Tornam-se também, alvo
fácil da violência praticada por vários agentes, inclusive por moradores de
rua, porque passam a disputar entre eles, um espaço vital e também as
migalhas que restam para que continuem sobrevivendo. (SCHOR e VIEIRA,
2010, p. 6)
Quanto ao aspecto econômico, será que a questão social está em evidência na
identidade da população de rua, sendo essa composta apenas por pobres? Ou melhor, as
questões acima mencionadas estão compreendidas nas representações e, por consequência, na
identidade e nos regimes de visibilidade do morador em situação de rua? As respostas para
essas questões são simples, porém problematizadas.
A população de rua das grandes cidades do Brasil é sim composta por uma grande
diversidade cultural, ou seja, é multicultural, tomando por base o conceito de
multiculturalidade trabalhado por Hall (2003).
São pobres, negros, brancos, pardos, nordestinos, paulistanos, pessoas do interior do
Brasil, homens, mulheres, velhos, jovens, homossexuais, crianças que vivem nas ruas. Por
isso, qualquer discurso que pasteurize a identidade da população em situação de rua como
uma única cultura e homogênea pode ser perigoso e tratar-se de um discurso essencialista, ou
seja, com propriedades essenciais. O morador de rua não é essencialmente o homem pobre,
negro, viciado em drogas, o Zé Ninguém ou o Homem do Saco. Talvez o único ponto a ser
evidente na população de rua é a pobreza extrema. Ela é uma das possibilidades de se
identificar o homem da rua, ao menos para o que entendemos serem fatores que os
demarquem como diferentes em nossa análise.
23 Dados do (Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na municipalidade de São
Paulo (2011) – Principais Resultados, 2011)
97
Neste texto tentamos mostrar quem é o morador de rua, como é caracterizado e
identificado como um corpo diferente frente a normalidade do urbano. As causas de estarem
nessa situação variam e podemos considerá-las de diversas ordens: pessoal, econômicas,
saúde mental, dependência química ou social. Enfatizamos conceitos que servem de base
teórica para o encadeamento teórico com a Análise de Discurso de Linha Francesa.
Resolvemos tratar do assunto caracterizando o morador em situação de rua, seu modo de vida
e sua identidade da analogia do conceito de identidade nacional, abordado por Stuart Hall e
vimos que são nas práticas discursivas que as identidades são imaginadas, expostas e
defendidas.
Mais a frente, os discursos midiáticos nos servirão de base para o entendimento de
quem é esse homem da rua, ou melhor, como é construída sua a identidade. Defendemos as
práticas discursivas durante todo o trabalho, pois são elas que constroem e, ainda, promovem
a identidade, em especial para o homem de rua. Portanto é a partir de locais discursivos, como
a mídia que podemos entender essa população. Montes coloca:
[...] a gente percebe, para além das diferenças, que afinal de contas estão
presentes, algumas coisas que constroem a identidade desse homem de rua:
são discursos muitos específicos que a sociedade produz. Significações com
as quais meu olhar vai enfrentar aquele outro, e aquele outro olha e aceita ou
não o código de identificação a partir do qual estou lendo. (MONTES, 1995,
p. 195)
Para finalizar este item e introduzirmos o seguinte, no qual falaremos da cidade sob o
aspecto midiático, fazemos uma indagação a partir de Canclini (2002).
Diferentemente da cidade delimitada, “fornecedora de identidade, proteção e
sentido” (Campra, 1994:39), cabe perguntar como são formadas agora as
identidades nessas urbes que não se opõem à natureza nem a outras cidades
tão rigidamente como no passado. (p. 45)
Esta é a história de Zé ninguém
Na porta dos bares
À cama de cimento
Zé ninguém não é excremento
Zé Ninguém (Garotos Podres)
3.3. A cidade como espaço de comunicação, consumo e sentidos
São Paulo, menino grande
Cresceu não pode mais parar
E o pátio do colégio quem lhe viu nascer
98
Um velho ipê parece chorar
Não vejo a sua mãe preta
Na rua com seu pregão
Cafezinho quentinho, sinhô,
Pipoca, pamonha e quentão.
Lembrar, deixa-me lembrar, laiarálalaiálaiá
São Paulo, Menino Grande (Geraldo Filme)
Um dos grandes nomes do samba paulistano, Geraldo Filme – assim como Adoniram
Barbosa e Paulo Vanzolini –, traz, em muitos momentos de sua obra, representações da cidade
de São Paulo, com um olhar especial para o que se transforma lentamente com o tempo.
Rupturas, continuidades, identificações e descaracterizações marcam as transformações da
cidade e as composições desses músicos, que, nostálgicos, retomam uma cidade que se
descaracteriza com o passar dos tempos.
Nos versos de São Paulo, Menino Grande, Filme constrói, a partir de seu ponto de
vista, uma representação da transformação urbana da cidade de São Paulo, que segundo ele,
não cessa em crescer e que já não é mais a mesma. A cidade está marcada por encontros e
desencontros típicos de uma grande metrópole. Mas esse processo não é por acaso, aconteceu
devido a um modelo específico de desenvolvimento econômico em nosso País, como
apontamos anteriormente.
Essa construção da representação da cidade, feita pelo compositor na obra, está
localizada no que o antropólogo italiano, Massimo Canevacci (2004) considera um “processo
contínuo de dissolução”:
Inúmeros testemunhos recolhidos sobre São Paulo confirmam como esta
metrópole está inserida num processo contínuo de dissolução, um eterno
repensar e reconstruir a mesma cidade que também se apresenta a cada
geração como sempre diferente e sempre idêntica (p. 33)
Se, nos dois itens anteriores caracterizamos a cidade e o morador em situação de rua,
agora tentaremos mostrá-la de forma ampliada e gigante, por meio de suas reconstruções
simbólicas, como espaço de comunicação, de consumo midiático, produção de sentido e de
representações sociais.
Justificamos este pensamento, pois estamos considerando a cidade como um ambiente
propício de e para a comunicação. Ruas, prédios, parques, todos os cenários e os elementos da
cidade comunicam; também os jornais, revistas, enfim, todos os veículos de comunicação são
meios de circulação de discursos e, por consequência, de produção de sentidos e de
99
representações sociais da e sobre a cidade. Note-se que, nesta perspectiva, a cidade é uma
instância comunicacional. A cidade é signo que significa.
Nosso percurso, neste item da dissertação, será realizado da seguinte maneira: a
caracterização da metrópole comunicacional, o papel das revistas impressas neste cenário, o
consumo midiático e, enfim, as representações sociais do morador de rua.
3.3.1. Polis ou polifonia? A cidade como instância de comunicação
Estar na cidade é estar diante de uma miríade de sentidos, produzidos em um espaço
onde os indivíduos se encontram e se relacionam. Um desses sentidos produzidos pela cidade
é o fato dela ser compreendida como um ambiente comunicacional. Mas o que nos leva a
compreensão desse sentido?
Para chegarmos a essa compreensão é necessário olharmos para o espaço urbano com
foco nos mais precisos detalhes e realizando as mais complexas conexões interpretativas,
como indica Canevacci (2004) “Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E
lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma
pluralidade de significados. Ou de encruzilhadas herméticas.” (p. 35)
Ao refletirmos diante da pluralidade de sentidos da cidade, sendo um deles o ambiente
comunicacional, enxergamos um duplo processo. O primeiro deles se refere à comunicação
como uma extensão do urbano e o segundo à comunicação como uma forma de representar o
urbano.
Chegamos a essa observação com base nos conceitos de Orlandi (2004), pelo fato de a
cidade introduzir uma dimensão da representação sensível de suas formas, e, simultaneamente
ser de um espaço de cidadania.
No território urbano, o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um,
estando o corpo do sujeito do sujeito atado ao corpo da cidade, de tal modo
que o destino de um não se separa do destino do outro. Em suas inúmeras e
variadas dimensões: material, cultural, econômica, história etc. O corpo
social e o corpo urbano formam um só. (p. 11)
É importante que não nos esqueçamos, o que já falamos a respeito da cidade como
espaço para encontro da diferença. Ao relacionarmos o conceito de encontro das diferenças ao
da instância comunicacional, temos o que Caiafa (2003) defende. Para a autora é justamente
no encontro com o diferente que se dá, de forma mais intensa, o ato comunicativo, pois, esses
encontros sendo uma marca das cidades a caracteriza como um universo de circulação e
comunicação único.
100
No caso dos processos de comunicação no meio heterogêneo da cidade, a
exposição a uma variedade imprevisível parece intensificar esse
investimento na diferença. Também uma experiência subjetiva singular pode
acontecer por essa exposição à heterogeneidade. Deixar-se afetar por
estranhos é de certa forma já mudar ou sair um pouco de si. (p. 96)
Retomamos a ideia de duplo processo no qual se dá a comunicação no ambiente
urbano. Para o primeiro caso – da extensão do urbano –, pensamos que quanto maior a cidade
e sua população, mais dependente da comunicação ela se torna, devidos à necessidade de se
lidar suas grandezas e complexidades. Por isso, tomamos como perspectiva que observar a
cidade vai muito além de simplesmente olharmos para a Polis – o espaço do fazer política na
antiguidade –, mas para a polifonia, ou seja, para os vários sentidos que compõem sua
instância comunicacional. Embasamos esse entendimento no que aponta Canclini (2002),
sobre a reorganização do político e da cidade por meio da comunicação:
Na segunda metade do século XX, quando a concentração demográfica e a
expansão territorial das megacidades debilitam a conexão entre suas partes e,
ao mesmo tempo, as redes comunicacionais levam a informação e o
entretenimento aos domicílios, os usos das cidades são reorganizados: a
desordenada explosão rumo às periferias, que faz com que os habitantes
percam o sentido dos limites de “seu” território, é equilibrada com os relatos
dos meios de comunicação sobre o que acontece nos lugares mais distantes
dentro da cidade. Do passeio do flâneur que reunia informações sobre a
cidade para depois transferi-las às crônicas literárias e jornalísticas,
passamos, em cinquenta anos, ao helicóptero que sobrevoa a cidade e
oferece a cada manhã, através da tela do televisor e das vozes do rádio, o
panorama de uma megalópole vista em conjunto, sua unidade recomposta
por quem vigia e nos informa. Os desequilíbrios e incertezas engendrados
pela urbanização que desurbaniza, por sua expansão irracional e
especulativa, parecem ser recompensados pela eficiência tecnológica das
redes de comunicação. A caracterização sócio-demográfica do espaço
urbano não consegue dar conta de seus novos significados se não incluir
também a recomposição que a ação midiática lhes imprime. (p. 41)
Pelo exposto acima, entende-se ainda que paradoxalmente a urbanização é uma
motivação para uma “desurbanização”, pois distancia os homens de sua participação política
na cidade. Assim, a comunicação substitui ou complementa os espaços destinados ao fazer
política e, por meio dela, é possível viver, praticar a cidadania e consumir a cidade a partir do
consumo das representações dela que circulam nos meio de comunicação. Em linhas-gerais,
podemos intuir que, o que antes era discutido na praça, ganha espaço na mídia. Um exemplo
disso seria dizer que quando lemos uma reportagem em um jornal ou uma revista sobre um
acidente, uma política pública ou uma tendência de consumo, é como se estivéssemos
vivenciando esses episódios, por meio de representações da cidade que foram construídas
101
nestes espaços midiáticos. É, com efeito, essa representação do urbano que complementa o
duplo processo comunicacional da cidade que comentamos.
No entanto, devemos ter o cuidado para não tomarmos as construções de
representações da cidade e confundi-las com o que é a cidade de fato. Canevacci (2004) nos
alerta a isso, quando pensa a cidade como objeto etnográfico:
Qualquer representação de um objeto, e particularmente a do objeto
etnográfico, não poderá nunca coincidir com a suposta “essência” do próprio
objeto. Será sempre uma reconstrução aproximativa, historicamente
estabelecida pela compreensibilidade dos códigos que assinalam as
diferenças, exatamente como o mapa e o território. Uma carta geográfica que
se ambicione ser totalmente idêntica ao seu objeto só poderia resultar numa
sua onipotente reprodução. Um segundo território. Mas uma carta geográfica
igual a Roma não tem utilidade alguma. Nela se condensa somente um
narcisismo sem fronteiras nem limites, de um eu que gostaria de coincidir
com o objeto da própria pesquisa, para identificar-se com ela e,
definitivamente, absorver e anular este objeto dentro de uma ambiciosa
dilatação de si próprio. (p. 138, grifo do autor)
É importante observarmos a relação que existe entre a representação do urbano e o
discurso urbano. Em nossa pesquisa os discursos do urbano considerados serão os discursos
jornalísticos, que consequentemente propiciam a produção de sentidos pela cidade e, por meio
dessa produção é que são trazidas as representações da cidade. Ou seja, com a produção de
sentido é que são construídas as representações da cidade. Entretanto há outras materialidades
para o discurso urbano, como lembra Orlandi (2004):
Constrói-se ao mesmo tempo o efeito do fato na história e no sentido em sua
forma de dizer. A cidade não tem um narrador, um seu contador de histórias
(como o cego nordestino, o violeiro, o velho indígena etc). A narratividade
urbana tem vários pontos de materialização. Moventes. Fulgurações.
Materialidade dispersa. E é nas suas relações que podemos compreender os
seus sentidos. (p. 31)
Como mencionamos, iremos considerar apenas o discurso jornalístico, pois, ao
abordá-lo, entendemos ser ele uma das materialidades que produzem sentidos sobre a cidade.
Mais especificamente, as revistas impressas serão os suportes materiais para a análise das
representações da cidade. Entendemos que com a escolha desse tipo de gênero impresso,
teremos condições de observar a cidade como instância comunicacional, seja como o local
para se fazer a política, seja como representação, no duplo processo citado anteriormente. A
importância dos meios de comunicação (como um todo) para a representação e consumo da
cidade é explicada por Canclini (2002):
Os relatos mais influentes sobre o que significa a cidade emergem agora da
imprensa, do rádio e da televisão. No tumulto heterogêneo e disperso de
signos de identificação e referência, os meios não propõem tanto uma nova
102
ordem, mas sim oferecem um espetáculo reconfortante. Mais do que
estabelecer novos lugares de pertencimento e de identificação de raízes, o
importante para as mídias é oferecer certa intensidade de experiências. Em
vez de oferecer informações que orientem o indivíduo na crescente
complexidade de interações e conflitos urbanos, os meios de comunicação
ajudam a imaginar uma sociabilidade que relaciona as comunidades virtuais
de consumidores midiáticos: os jovens com outros jovens; as mulheres com
suas iguais; os que se interessam por algum esporte com outros praticantes
em diferentes lugares da mesma cidade e do mundo; os gordos com os
gordos; os que gostam de salsa ou bolero ou rock com outros que têm as
mesmas preferências. As comunidades organizadas pela mídia substituiriam
então os encontros nas praças, os estádios ou os salões de baile pelos não-
lugares das redes audiovisuais. (p. 42)
Mais precisamente, o mesmo autor trata da imprensa, como “o primeiro recurso
tecnológico moderna para informar-se sobre a cidade”. Segundo Canclini (2002) o surgimento
do jornalismo impresso é capital para “a instauração da noção moderna de esfera pública, e
este meio continua oferecendo mais oportunidades que os demais para a elaboração do debate
sobre os assuntos públicos”, sem se esquecer da diversidades dessas vozes:
A dispersão da imprensa em uma grande cidade [...] já oferece uma primeira
idéia da variedade de atores que intervêem nessa disputa, a partir de
diferentes interesses e posições. A esta diversidade de enunciadores é
necessário somar ainda a multiplicidade de vozes internas (jornalistas,
publicidade, editores com posições diferentes), nacionais e internacionais
(agências, correspondentes) existentes em um jornal. Esta diversidade
costuma ser maior e sofrer menos censura na imprensa que nos outros meios
de massa. (p. 44)
Uma das justificativas que nos leva a escolher revistas como o suporte material dos
discursos jornalísticos, que comporão nossos corpora, é característica deste tipo de veículo.
Estamos seguindo a caracterização que a pesquisadora Ana Luiza Martins (2001) faz do
gênero e da importância que vê nele como documento de pesquisa.
Fonte preferencial para pesquisas de teor vário, a revista é gênero de
impresso valorizado, sobretudo por “documentar” o passado através de
registro múltiplo: do textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou
propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àquele de seus
consumidores. (p. 21)
O extratextual citado pela pesquisadora é pertinente ao nosso processo de pesquisa,
especialmente quando tomamos o nosso principal referencial teórico, a ADF que, dentre as
suas características metodológicas, uma das mais relevantes e a possibilidade de se analisar o
contexto no qual o discurso é produzido, o ponto de vista de Martins, justifica a nossa ideia.
Nesse sentido, a constância do uso de revistas como fonte histórica vem
revelando que frases e imagens de periódicos pinçadas aqui e acolá,
descosturadas do mergulho em seu tempo – vale dizer, no imaginário
103
construído ao seu tempo – não iluminam suficientemente o passado. A
pertinência desse gênero de impresso como testemunho do período é válida,
se levarmos em consideração as condições de sua produção, de sua
negociação, de seu mecenato propiciador, das revoluções técnicas a que se
assistia e, sobretudo, da natureza dos capitais nele envolvidos. (idem)
Além das motivações acima, a revista, tem como característica “passar em revista” a
diversos assuntos para serem lidos de maneira fragmentada, não contínua, e por vezes
seletiva” (MARTINS, 2001, p. 45). Por essas caracterizações entendemos as revistas como
espaços para materializações do discurso jornalísticos, e, consequentemente das
representações da cidade.
Neste ponto vale relembrarmos que, embora os discursos jornalísticos possam trazer
representações da realidade, devemos tomar cuidado em considerar suas objetividades. Sobre
as reconstruções da realidade, Canevacci aponta:
Qualquer descrição do objeto é uma sua transfiguração simbólica. O objeto
não será nunca representável a partir dele próprio, mas sempre a partir de
uma passagem de nível lógico, que é também uma passagem de nível
comunicativo. É esta passagem, transformada em códigos, que se inscreve
no mapa. [...]
Isto quer dizer que não existe reconstrução da objetividade sem
subjetividade; e que esta subjetividade é também abstração, cujos níveis
cognitivos são plasmados por razões e emoções, reflexões e expressões, cujo
resultado final será a passagem para uma “outra” classe de conceitos. A
transfiguração do objeto-território em mapa-subjetivo é o resultado de tais
passagens (CANEVACCI, 2004, p. 139)
A representação da cidade nas revistas é, então, consumida e assim os sentidos sobre
a cidade são produzidos. Agora tentaremos explanar como se caracteriza esse consumo
midiático.
3.3.2. Consumo midiático e as representações sociais
Nesta etapa do texto, iremos observar uma especificidade bem particular do consumo,
o consumo midiático. Para explaná-lo tomaremos como base conceitual as leituras sobre
consumo de Canclini, da antropóloga Mary Douglas e do economista Baron Isherwood, o
pesquisador Roger Silverstone e antropólogo hispano-colombiano Jesús Martín-Barbero e
faremos assim um deslizamento de suas teorias para o consumo midiático.
É a partir do consumo midiático que se dá apreensão dos sentidos produzidos pela
cidade. Em nosso caso de pesquisa, a apreensão de sentido se dá na forma de leitura, ou seja,
no momento em que os cidadão leem as notícias da leitura dos veículos impressos. A relação
entre consumo e leitura se dá a partir do que expõe o Martín-Barbero (2009):
104
Se entendemos por leitura “a atividade por meio da qual os significados são
organizados num sentido”, resulta que na leitura – como no consumo – não
existe apenas reprodução, mas também produção, uma produção que
questiona a centralidade atribuída ao texto-rei e à mensagem entendida como
lugar da verdade que circularia na comunicação. Levar a centralidade do
texto e da mensagem à crise implica assumir como constitutiva a assimetria de
demandas e competências encontradas e negociadas a partir do texto. Um texto
que já não será máquina unificadora da heterogeneidade, um texto já não-
cheio, e sim espaço globular perpassado por diversas trajetórias de sentido.
(p. 293, grifo do autor)
Retornando ao conceito de consumo, primeiramente temos de pensar seu modo de
funcionamento, segundo a leitura Douglas e Isherwood (2009) os bens consumidos não
somente concedem subsistência como comida e abrigo, mas também como estabelecedores de
relações sociais. Canclini (2010) estende essa compreensão ao defender a tese de que o
consumo pode representar a condição de cidadãos aos indivíduos:
Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos
cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me
informar, que representa meus interesses – recebem sua resposta mais
através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação do que
pelas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em
espaços públicos. (p. 29)
Canclini ainda considera que a vinculação entre consumo e cidadania demanda um
reposicionamento do mercado na sociedade tentar a reconquista imaginativa dos espaços
públicos, do interesse pelo público. Neste momento, retomamos o que citamos no item
anterior da dissertação, quando defendemos a cidade a interrelação de cidade e consumo.
“Assim o consumo se mostrará como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar
significativa e renovadoramente, na vida social.” (CANCLINI, 2010, p. 72)
Tanto Canclini, como Douglas e Isherwood, quando tomam o consumo como base de
seus pensamentos, o consideram simbólico ou que produz sentidos nos consumidores. Mesmo
as práticas de consumo mais elementares e classificadas como subsistentes são consideradas
como uma forma simbólica de consumo:
A comida é um meio de discriminar valores, e quanto mais numerosas as
ordens discriminadas, mais variedades de comida serão necessárias. O
mesmo quanto ao espaço. Atrelado ao processo cultural, suas divisões são
carregadas de significados: casa, tamanho, o lado da rua, a distância de
outros centros, limites especiais – todos são categorias conceituais.
(DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009, p. 113 e 114)
Numa aproximação simplista podemos entender que as pessoas consomem uma e não
outro de vinho, pois o que consome lhe concede alguma significação. O mesmo vale para um
passeio por um parque da cidade, ou de um específico meio de comunicação. Vale ressaltar
105
que a conceituação de consumo que utilizaremos para a compreensão do consumo midiático
não deve, em hipótese alguma, ser compreendida como consumismo ou o consumo conspícuo
(ostentação).
Essas duas exceções são importantes para a compreensão do que chamamos de
consumo midiático. Pois, assim como propõe Canclini, o consumo midiático também se
caracteriza como um conjunto de processos socioculturais:
Proponho partir de uma definição: o consumo é o conjunto de processos
socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Esta
caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais consumimos como algo
mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas,
segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais, tal como
costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado. (CANCLINI, 2010, p.
60)
Ou seja, consumimos notícias, por meio das revistas, e estas, em seus discursos
jornalísticos, trazem representações sobre a cidade, porque esse ato faz parte de um processo
sociocultural. Assim, ao consumirmos notícias estamos consumindo a cidade e, de alguma
forma, participando ou exercendo nosso papel de cidadão.
Mas devemos nos atentar que o consumo, enquanto simbólico, também é regido pelas
forças que compõem a sociedade. Assim, o consumo é também compreendido na
modernidade como algo “eminentemente social, correlativo e ativo”, que também não deixa
de se apresentar a partir do ponto de vista hegemônico das elites, como aponta Canclini
(2010):
Ainda em situações plenamente modernas, o consumo não é algo “privado,
atomizado e passivo”, sustenta Appadurai, mas sim “eminentemente social,
correlativo e ativo”, subordinado a um certo controle político das elites. Os
gostos dos setores hegemônicos tem um função de “funil”, a partir da qual
vão sendo selecionadas as ofertas exteriores e fornecidos modelos políticos-
culturais para administrar as tensões entre o próprio e o alheio. (p. 66)
Apesar de ser regido pelo hegemônico, há espaços para negociações nesses nas
práticas de consumo. Martín-Barbero (2009) problematiza a questão entre hegemonia e
consumo, trazendo o conceito de espaço de lutas:
O consumo não é apenas reprodução de forças, mas também produção de
sentidos: lugar de uma luta que não se restringe à posse dos objetos, pois
passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão forma social e nos
quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação provenientes de diversas
competências culturais. (p. 292, grifo do autor)
Assim, nem não necessariamente, ao consumirmos as representações da cidade, nas
revistas, estamos atuando de forma passiva. Seja lendo uma publicação alinhada aos valores
106
burgueses como VEJA São Paulo, ou supostamente alternativa como Ocas”, os sentidos
produzidos serão alinhados aos valores da publicação.
Vale citar ainda que o consumo midiático é regido por rituais. Especialmente as
revistas impressas que possuem uma periodicidade específica (mensais, semanais, quinzenais,
bimestrais, etc.). As revistas impressas são, com efeito, acessórios rituais:
Viver sem rituais é viver sem significados claros e, possivelmente, sem
memórias; Alguns são rituais puramente verbais, vocalizados, não
registrados; desaparecem no ar e dificilmente ajudam a restringir o âmbito da
interpretação. Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor
que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a intenção de fixar
os significados. Os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o
consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo
incompleto dos acontecimentos. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009, p.
112)
Neste trecho do texto tivemos a intenção de mostrar como mercadorias (revistas) e o
consumo servem para ordenar a sociedade. Ao realizarmos a aproximação de consumo
midiático – da imprensa em nosso caso –, como uma forma de apreender os sentido da cidade
e que propicia uma participação como cidadão como indivíduos, estamos em acordo com
aquilo que enuncia Canclini:
A imprensa contribui para a imagem de uma cidade massiva, cujas
particularidades se concentram no centro histórico ou em outras regiões
centrais. Às vezes, os jornais publicam informações sobre lugares pouco
conhecidos, mas com maior freqüência, principalmente em fotografias,
mostram cenários facilmente identificáveis, que tendem a reproduzir saberes
convencionais. Estamos, portanto, diante de um meio que oferece mais
elementos discursivos que outros para refletir sobre a cidade e elaborar a
condição de cidadão, mas que não contribui para expandir a visão sobre a
cidade em uma proporção comparável ao crescimento de seu território e sua
complexidade. A despeito da ênfase sobre a novidade e, em alguns jornais,
sobre o insólito, a maioria termina por concentrar-se no conhecido. Embora
se descrevam como informadores de fatos atuais e, portanto, como meios
que privilegiam o presente, a maioria dos jornais insiste no já habitual,
prolongando estereótipos formados historicamente. (CANCLINI, 2002, p.
45)
Falamos muito sobre o consumo da cidade, e sobre o consumo de representações da
cidade. Um dessas representações é a do morador em situação de rua? Sua representação na
mídia é consumida e assim, são produzidos sentidos sobre eles. Para tentar explicar o conceito
de representação, tomaremos como referência o que fala o psicólogo social francês Serge
Moscovici sobre representações sociais:
As representações sociais são entidades quase tangíves. Elas circulam
cruzam-se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um
107
encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais
estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações
trocadas, delas são impregnados. (MOSCOVICI, 1978, p. 41)
Com base no descrito acima, e tomando a nossa pesquisa como foco, as representações
sociais circulam pelos discursos jornalísticos e impregnam nos sentidos produzidos. Então, se
na cena midiática a circulam representações sociais do sem-teto como um corpo diferente em
relação ao urbano, ou um cidadão de direitos é assim que os sentidos sobre essa população
serão produzidos.
No entanto, o mesmo autor faz uma distinção entre o que a representação social, que
ele chama de algo tangível e o mito. Logo, as representações sociais sobre o morador de rua
estão relacionadas diretamente aos sentidos produzidos por eles e não naquilo que se acredita
que eles são. Assim, Moscovici, faz uma distinção necessária entre representação social e
mito.
Enquanto que o mito constitui, para o chamado homem primitivo, uma
ciência total, uma filosofia única em que se reflete sua prática, sua percepção
da natureza das relações sociais, para o chamado homem moderno a
representação social constitui vias de apreensão do mundo concreto,
circunscrito em seus alicerces e em sua consequências. Se os grupos ou os
indivíduos a ela recorrem – na condição de que não se trate de uma escolha
arbitrária – é certamente para tirar proveito de uma das múltiplas
possibilidades que se oferecem a cada um. (MOSCOVICI, 1978, p. 44)
Em relação a nossa pesquisa, as representações sociais poderão ser o produto de nossa
análise, pois “atuam por meio de observações de análises dessas observações e de noções e
linguagens de que se apropriam à esquerda e à direita, nas ciências e nas filosofias, e tiram as
conclusões que se imponha [...]Observações análogas aplicam-se a outros conceitos da série:
ideologia, visão de mundo. etc., que tendem a qualificar globalmente um conjunto de
atividades intelectuais e práticas. (MOSCOVICI, 1978, p. 45).
Quanto ao consumo de representações sociais do morador de rua, essa pode sim
diferente daquilo que é imaginado (mito), no entanto, a partir do momento em que
categorizações ideológicas como o trabalho, a reabilitação das drogas, a exclusão social são
presentes na linguagem, consideramos que essa sim faz parte de uma representação social e
não de um mito.
Neste ponto apontamos para uma situação interessante. O homem da rua muitas vezes
é caracterizado no senso comum por características fenotípicas que aproximam a
representação social do mito. Muitas vezes na impressa isso pode ser evidenciado. Esse senso
108
comum, com base na representação e no mítico pode ser um sintoma da produção midiática,
como afirma Silverstone.
É no mundo mundano que a mídia opera de forma mais significativa. Ela
filtra e molda realidades cotidianas por meio de suas representações
singulares e múltiplas fornecendo critérios, referências para a condução da
vida diária, para a produção e a manutenção do senso comum.
(SILVERSTONE, 2005, p. 20)
Embora pensamos no senso comum, a negociação se coordena nos processos
comunicativos, Hall aponta da seguinte forma.
É esse processo de coordenação dos interesses de um grupo dominante aos
interesses gerais dos outros grupos e à vida do estado corno um todo
constitui “hegemonia” de um bloco histórico particular (CP, p. 182). É
somente em momentos como esse da unidade do “nacional popular" que a
formação daquilo que ele denomina ''vontade coletiva” se torna possível .
(HALL, 2003, p. 293)
Interessa-nos colocar exemplos da mídia, pois como aponta Silverstone.
O papel circulante da comunicação e das referências, assim como seu
vínculo com o social, impede respostas totalizantes – “não se pode obter uma
única teoria da mídia”. Aponta-se, assim, o “ponto de partida. A experiência.
(SILVERSTONE, 2005, p. 19)
A representação social do morador de rua é construída na imprensa a partir dos valores
dessas práticas discursivas. Assim, esse sem-teto de forma mista entre a representação e o
mito. Ainda assim, embora exista essa tentativa de construção de representação identidade
dessa maneira, não podemos ainda cravar que a mídia não é hegemônica, mas transforma o
que passa por ela. Embora possamos até discutir a forma como a revista coloca esses
moradores de rua e não outros. Vale a pena observar, que ela, embora com um discurso
dominante (representando o branco, estrangeiro, etc.) não podemos negar que há uma
negociação para não estereotipar o morador de rua como o pobre, negro ou pardo, viciado,
desempregado, etc. O que fica como observação de nossa análise é que a mídia pode exercer
uma dominação, mas uma dominação articulada. Para a nossa reflexão vale trazer mais uma
vez Silverstone:
[...] A mídia depende do senso comum. Ela o reproduz, recorre a ele, mas
também o explora e o distorce. [...] Os preconceitos de nações e gêneros. Os
valores, atitudes, gostos, as culturas de classes, as etnicidades etc, reflexões e
constituições da experiência e, como tais, terrenos-chave para a definição de
identidades, para a nossa capacidade de nos situar no mundo moderno.
(SILVERSTONE, 2005, p. 21)
109
E sobre a complexidade de se afirmar uma representação identitária para o morador de
rua e a dificuldade de uma definição única, refletimos com Hall:
O próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco
compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente
posto à prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é
impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros
sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas.
(HALL, 2006, p. 8)
Agora que o menino cresceu
Perdeu sua simplicidade
Desprezou o seu amor-perfeito
E um cravo vermelho, amigo do peito
São Paulo de Anchieta
E de João Ramalho
Onde estão teus boêmios,
A sua garoa, cadê seu orvalho?
Lembrar, deixa-me lembrar, laiarálalaiálaiá
110
4. PRODUÇÃO DE SENTIDOS NAS REVISTAS OCAS” E VEJA São Paulo:
REPRESENTAÇÃO DA DIFERENÇA NO DISCURSO JORNALÍSTICO
4.1. Apresentação dos corpora e dos critérios de seleção
Para realizarmos a análise dos discursos jornalísticos a respeito da representação dos
moradores em situação de rua das duas publicações, definimos alguns critérios de seleção, a
saber: tema, recorte temporal, valor-notícia, vozes enunciativas.
Fizemos primeiramente um recorte temático. Escolhemos os textos que, de alguma
forma, tenham como tema o sem-teto. Em princípio todos os textos que abordavam a temática
direta ou indiretamente foram selecionados. Em resumo, fizemos um levantamento
quantitativo sobre a incidência do tema “moradores de rua” e/ou “moradores em situação de
rua” e/ou “sem teto”, ou termos correlatos nos dois veículos. Salientamos que assuntos que
apresentam aderência com o tema, como risco social, revitalização urbana, moradia e
habitação, esmolas, violência, políticas pública, assistência social, reinserção social etc. foram
considerados em nosso recorte temático.
Após delimitarmos o tema, realizamos um recorte temporal das veiculações do tema,
compreendido entre janeiro de 2005 e dezembro de 2012. A motivação do recorte foi analisar
todo o período da gestão do prefeito Gilberto Kassab (2006-2012), mais o ano de 2005 no
qual Kassab foi vice-prefeito da cidade e um dos idealizadores do projeto de revitalização do
Bairro da Luz, intitulado Projeto Nova Luz, realizado pela Prefeitura do Munícipio São Paulo
(PMSP).
Consideramos, assim, o projeto como marco temporal à nossa pesquisa, pois é um
marco social para a cidade de São Paulo. Segundo seu site oficial, o Projeto Nova Luz é
descrito como:
O Projeto Urbanístico Específico da Nova Luz propõe a requalificação de
uma área localizada na região central do Município de São Paulo fazendo
uso da Concessão Urbanística, um Instrumento de Política Urbana, previsto
no Plano Diretor Estratégico da cidade.
O que se busca com a implantação do Projeto é diversificar os usos
instalados, intensificando o uso residencial e mantendo a dinâmica da região.
Um local para morar, trabalhar e se divertir, no qual as pessoas estejam
cercadas por elementos históricos e culturais, com espaços públicos
convidativos, para circulação e convívio de moradores e daqueles que fazem
uso da área, privilegiando pedestres e ciclistas.24
24 Disponível em http://www.novaluzsp.com.br/projeto.asp?item=projeto. Acesso em 5 de maio de 2013.
111
Esse marco temporal se justifica, pois o projeto teve grande repercussão na imprensa a
partir do momento em que foi anunciado, especialmente no que tange a questão dos
moradores de rua da região e, consequentemente pelas ações coordenadas pelos governos
municipal e estadual para remoção dessa população do local, gerando um debate entre os
grupos que defendem ações sociais para resolução do problema do morador de rua e alguns
setores da sociedade paulistana que os entendem como uma das marcas da degradação do
bairro da Luz, justamente pelo alto número de viciados em crack, numa região que a mídia
convencionou a denominar Cracolândia. Ou seja, para se resolver o problema basta retirar
essa população do local.
Temos ainda um indício que motiva nossa curiosidade em relação ao tema. Entre
2005 e 2009, houve um aumento em 30% da população de rua na cidade de São Paulo25
,
atingindo o número de 13 mil pessoas, nessa situação. Este aumento nos faz pensar que a
temática do sem-teto passou a gerar interesse do público, e assim, temos a expectativa que o
tema passe a estar em evidencia na mídia e no agendamento da mídia (agenda setting), ou
seja, a ter o valor-notícia, fato que nos aguçou a curiosidade em saber, não somente que eles
“viraram notícia”, mas sim como viraram.
Além do critério temático, há um recorte geográfico. Somente serão analisadas as
matérias que abordam a situação de rua na municipalidade de São Paulo.
Nossos corpora são assim definidos por tema, por tempo e por recorte geográfico.
Embora extenso como mostraremos adiante, consideramos que isso foi necessário, como
aponta a pesquisadora Márcia Benetti (2007)
Por isso, sugerimos que os pesquisadores que analisam o discurso
jornalístico escolham uma amostragem considerável de textos, capaz de ser
representativa do funcionamento de um tipo de discurso em um período
determinado. Ao contrário dos estudos iniciais de AD, que tratavam em
profundidade de um único texto, a tendência hoje é buscar compreender de
forma mais exaustiva os mecanismos de construção do discurso jornalístico.
Sendo a AD um gesto de interpretação do pesquisador, a representatividade
do corpus em análise é um dos mecanismos de vigilância epistemológica que
podem permitir conclusões mais contundentes a respeito dos discursos. (p.
121, grifo da autora)
Diante os critérios para definição dos corpora, iniciamos a pesquisa documental na
qual, trabalharíamos inicialmente com um universo de 58 edições de Ocas” (periodicidade
mensal e bimestral) e de 416 edições de VEJA São Paulo (periodicidade semanal) – dado que
25 Disponível em http://vejasp.abril.com.br/materia/cada-morador-de-rua-custa-r-350-por-mes-para-prefeitura.
Acesso em 11 de maio de 2013.
112
Ocas” até o mês de agosto de 2006 tinha periodicidade publicação mensal e depois passou a
ser bimestral.
Algumas de nossas expectativas durante a coleta foram frustradas. Verificamos a
ausência de alguns exemplares de ambos os veículos, a saber: não conseguimos encontrar
cinco edições de VEJA São Paulo e duas de Ocas”. Entretanto, para os termos de nossa
análise, essa ausência, não implica em um problema de pesquisa, pois não estamos a analisar
sob uma abordagem quantitativa o fenômeno pesquisado.
As pesquisas nos documentos da revista Ocas” foram realizadas com o apoio da
OCAS, que edita a revista e nos emprestou os exemplares necessários à pesquisa, da edição
31 (fevereiro de 2005) a 87 (dezembro de 2012). Tivemos duas exceções, as edições 30
(janeiro de 2005) e 53 (mai/jun de 2007) não estavam disponíveis.
Durante o percurso de pesquisa, verificamos que algumas características estruturais da
revista foram se modificando. Por exemplo, a edição 78 (jul/ago de 2011), que apresentou um
novo projeto gráfico, e a alteração da identidade visual do nome que passou a não ter mais o
slogan, “Saindo das ruas”. Vale mencionar que após essa alteração, também observamos que
o conteúdo teve uma leve alteração. O morador de rua em São Paulo nas matérias exclusivas
passa a ser substituído por personalidades consagradas, especialmente na capa, que teve
Ariano Suassuna, Lenine, dentre outros. Esse aspecto nos chamo muito a atenção.
Já as pesquisas documentais na revista VEJA São Paulo foram realizadas em três
locais diferentes, conforme a disponibilidade dos exemplares. Iniciamos no Arquivo Público
do Estado de São Paulo, passamos pela Hemeroteca da Biblioteca Mario de Andrade e
finalizamos na Biblioteca da ESPM-SP. Nessas buscas não localizamos as seguintes edições:
1989 (1, ano 40); 2143 (38, ano 42); 2262 (1, ano 45); 2277 (16, ano 45); e 2299 (38, ano 45).
Na revista VEJA São Paulo também observamos uma alteração de projeto gráfico,
precisamente na edição 39, do ano 42 (30 de setembro de 2009). Nesta mesma época, a
tiragem informada apresentava 370 mil exemplares, cerca de 23% a mais do que atualmente o
kit de mídia apresenta, atualmente. Um ponto que achamos interessante foi a incidência
recorrente do tema Cracolândia na revista, com uma sequência 7 incidências de junho/2010 a
maio de 2012.
Encontramos em Ocas” uma incidência de 176 textos jornalísticos (informativos e
opinativos) com a temática do morador em situação de rua, desses, 133 eram, de alguma
forma, referente ao recorte geográfico da cidade de São Paulo.
113
Na pesquisa da revista VEJA São Paulo, 70 incidências de textos jornalísticos
(informativos e opinativos) com o tema morador em situação de rua foram observadas, todas
elas referentes à cidade de São Paulo.
Do resultado da pesquisa em Ocas”, verificamos 63 incidências de textos opinativos
(47,37%) e 70 incidências de textos do gênero informativo (52,63%) o que nos faz considerar
que o morador de rua em Ocas” está representado, em textos dos gêneros informativos ou
opinativos, basicamente na mesma proporção.
Em Veja essa mesma divisão em gêneros se dá da seguinte forma, das 70 incidências,
11 (15,71%) são do gênero opinativo e 59 informativo (84,29%). Ou seja, observamos aqui a
primeira diferença comprovada da diferença da abordagem entre os dois veículos. Ocas”,
como de era de se esperar, assume uma postura mais opinativa em relação ao tema morador
de rua, que VEJA São Paulo.
Como parte de nossa análise, sob aspecto jornalístico, aplicamos a este universo de
203 incidências do tema morador em situação de rua, nas duas publicações o critério de
Valor-Notícia, expostos no item 1.2. Esse procedimento nos fez filtrar somente os discursos
jornalísticos que entendemos ter relevância de noticiabilidade para cada um dos veículos.
Assim, chegamos em VEJA São Paulo a um número de 41 incidências (58,57% do
total) de discursos jornalísticos compreendo o tema morador de rua e com o valor-notícia.
Dessas 37 (90,24%) eram do gênero informativo e 4 (9.76%) do gênero opinativo.
Em Ocas”, ao aplicarmos o critério de valor-notícia, dos 133 artigos jornalísticos
encontrados 71, ou 53,38% das matérias selecionadas de Ocas” tinham noticiabilidade
considerada pelos critérios descritos acima. Foram encontradas 30 artigos do gênero opinativo
(42,25%) e 41 do gênero informativo (57,75%).
Após a aplicação do critério valor-notícia, percebemos que no geral, os resultados
percentuais referentes aos gêneros jornalísticos se mantiveram. Uma proporção 4 para 6 em
Ocas” e 1 para 9 em Veja. Proporção entre textos opinativos e informativos, respectivamente.
Num segundo momento, aplicamos conceitos da análise de discurso, como meio para
triar o material a ser analisado. A partir do mapeamento das Vozes enunciativas que traziam
representações sobre o morador de rua e o interdiscurso entre as duas publicações
pesquisadas. Com o resultado desse critério pudemos filtrar as matérias que traziam
representações do morador de rua a partir dos enunciadores e que tinham temas recorrentes,
os quais fizemos a conversação de discursos dos dois veículos. Nossa intenção com essa
triagem foi chegar a um número que consideramos satisfatório e aplicável para a nossa
análise. Assim chegamos ao seguinte quadro para a análise em Ocas”:
114
Quadro 3: Corpus de análise em Ocas”
Ed. Mês Ano Pg Seção Gênero Título Autor
35 jun 2005 12 Cabeça
sem teto
Artigo “Carroceiros e
mendigos saem de
cena”
Oficina de
Criação Ocas”
33 abr 2005 30 Cranianas Artigo Revolta, Indignação e
uma pergunta: até
quando?
Rodrigo Ciríaco
43 mar 2006 13 O País Reportagem E depois da rampa? Alan de Faria
73 set/out 2010 15 Capa Reportagem Luta pela dignidade Alex Anunciato
50 nov/dez 2006 23 Carrossel Reportagem Um homem (bem)
visível
Viviane Águia
65 mai/jun 2009 9 Cabeça
sem teto
Reportagem Antes que o frio doa... Sebastião
Nicomedes
72 jul/ago 2010 19 O País Reportagem Mercado subterrâneo Ana Lígia
Scachetti
33 abr 2005 10 Cabeça
sem teto
Reportagem A droga nem sempre
leva à exclusão, mas
a exclusão é a maior
droga
Antonio César
Andrade et al.
37 ago 2005 16 Capa Reportagem Um fato, várias
versões e o cheiro da
impunidade
Kenia Rezende e
Alan de Faria
81 jan/fev 2012 27 Em
questão?
Crônica Em vez de Polícia,
Política!
Raquel Rolnik
79 set/out 2011 27 Em
questão?
Crônica Adivinhação Neide Duarte
45 mai 2006 10 Cabeça
sem teto
Reportagem “Não tinha futuro, só
trabalho”
Oficina de
Criação, Tula
Pilar, Dário
Bertolutti
46 jun 2006 14 O País Reportagem O amor está nas
ruas...
Jaqueline
Máximo e
Leandro
Conceição
61 set/out 2008 8 Cabeça
sem teto
Reportagem Vozes em busca de
direitos
Márcio
Seidenberg
64 mar/abr 2009 8 Cabeça
sem teto
Reportagem Escola da Rua:
Ensinado e
aprendendo
Márcio
Seidenberg
73 set/out 2010 5 Editorial Opinativo Ouvidoria das ruas Ocas”
115
Os 16 textos acima, compõem o corpus de análise da revista Ocas” e os 15 textos
abaixo o corpus de análise em VEJA São Paulo.
Quadro 4: Corpus de análise em VEJA São Paulo
Ed. Dia Mês Ano Pg Seção Gênero Título Autor
1896 16 mar 2005 12 Urbanismo Reportagem Dez ideias
para o centro
Alessandro
Duarte,
Marcos
Buarque de
Gusmão
2045 16 jan 2008 24 Perfil Reportagem Ele não foge
da briga
Camila
Antunes e
Alessandro
Duarte
2148 28 out 2009 28 Cidade Reportagem Cenas de um
centro
abandonado
Giovana
Romani
2153 2 dez 2009 26 Assistência Reportagem Degradação
que se
esparrama
Henrique
Skujis
2235 29 jun 2011 47 Imóveis Reportagem Vizinhos da
Cracolândia
James
Cimino
2277 9 mai 2012 22 Cidade Reportagem A vida no
abrigo da
Cracolândia
Maurício
Xavier
2020 8 ago 2007 54 Cidade Reportagem Em quem o
frio dói mais
Edison
Veiga
2177 19 mai 2010 29 Criminalidade Reportagem Dez mortes
em quatro
dias
Daniel
Salles
2276 2 mai 2012 26 Cidade Reportagem Estrangeiros
sem teto
Claudia
Jordão
1941 1 fev 2006 126 Ivan Angelo Artigo Crianças de
rua
Ivan Angelo
1959 7 jun 2006 8 Mistérios da
cidade
Nota O muro do
Center 3
Edison
Veiga,
Regina
Cazzamatta
e Roberto
Gerosa
1998 7 mar 2007 38 Cidade Reportagem Cortiço na
Oscar Freire
Maria Paola
de Salvo
2026 19 set 2007 26 Assistência Reportagem 1sem-
teto=350
reais (por
mês)
Edison
Veiga
116
2238 20 jul 2011 41 Cidade Reportagem Uma noite no
albergue
Pedro
Henrique
Araújo
2252 26 out 2011 39 Perfil Perfil “Não fujo de
uma
polêmica”
Daniel
Bergamasco
4.2. Protocolo de Análise dos corpora
Após selecionarmos nossos corpora, com base nos critérios citados no item anterior,
realizamos a análise dos discursos jornalísticos. Para isso, além de termos como referencial
teórico a Análise de Discurso de Linha Francesa, associadas às teorias da comunicação e
consumo, jornalismo, cidades, etc., tomaremos por base um protocolo de análise que
compreenderá os seguintes aspectos:
Compreensão do Valor-notícia de cada matéria que tiver o tema morador de rua;
Identificação das vozes enunciativas que trazem as representações do morador de rua;
Interdiscurso no discurso jornalístico sobre os moradores de rua nos veículos
investigados (política; social; diversidade/diferença);
Produção de sentidos da cidade e dos moradores de rua, a partir da identificação das
formações imaginárias e das formações discursivas. Buscam-se, aqui, as
representações da cidade e dos moradores de rua;
Identificação das representações do morador de rua;
Comparação das representações nas duas publicações.
117
4.3. Análise dos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo
Sem São Paulo
Oh! Oh! Oh!
O meu dono é a solidão
Diga "sim"
Que eu digo "não"...
Quem é seu dono?
Ninguém, São Paulo
Quem é seu dono?
Ninguém, São Paulo...
São Paulo (365)
Quem é o dono da cidade de São Paulo? Para a Banda 365, ninguém. Em uma
metrópole, ponto de encontro das diferenças, com suas especificidade e complexidades, é
difícil imaginar um dono ou, simplesmente uma característica latente e única.
No entanto, são nos discursos jornalísticos, em seus contextos de produção, em suas
memórias e formações discursivas, e especialmente nas interdiscursividades que a cidade,
embora não possa ser determinada, é compreendida e representada a partir da produção de
sentidos sobre ela. Como expõe Eni Orlandi:
A cidade tem assim seu corpo significativo. E tem nele suas formas. O rap, a
poesia urbana, a música, os grafitos, pichações, inscrições, outdoors, painéis,
rodas de conversa, vendedores de coisa-alguma, são formas do discurso
urbano. É a cidade produzindo sentidos. Como flagrantes de um olhar (um
corpo) em movimento. São formas de significar com sua poética, por assim
dizer, incluídas na própria forma material da cidade. Não se destacam dela
senão para funcionar como lembretes (chamadas) para o exterior. E isso é
que faz com que aí se inaugurem outras formas de narratividade que não têm
um narrador com seu “conteúdo”, nem são textos fechados, destacados das
condições de que fazem parte. (ORLANDI, 2004, p. 31)
Conforme enuncia Orlandi, as músicas utilizadas na construção desta dissertação
podem ser uma forma de “corpo significativo da cidade” e do “discurso urbano”. A essas
noções, associamos o discurso jornalístico que também participa na constituição dos sentidos
da cidade. É justamente por meio da produção de sentidos do discurso jornalístico que
buscamos compreender a representação do morador em situação de rua nos dois veículos
pesquisados. A partir da identificação dos valores-notícia, das vozes enunciativas e da
interdiscursividade desenvolvemos nossa análise a partir do mapeamento de alguns assuntos
relacionados ao tema morador de rua, a saber: consumo do sem-teto; drogas, dependência
química e Cracolândia; esporte e reinserção social; estrangeiros nas ruas; frio; habitação,
118
cidadania, direitos e políticas públicas; infância; relacionamento amoroso entre moradores em
situação de rua; remoção da população em situação de rua e revitalização urbana; e violência
contra a população de rua.
Vale observar que alguns dos textos selecionados em nossa pré-análise são compostos
por mais de um dos assuntos mencionados no parágrafo anterior e que, alguns assuntos, como
o trabalho, embora não eleito como categoria ou procedimento discursivo por nós, é
recorrente em muitos dos casos em Ocas”, pois o morador em situação de rua é
frequentemente apresentado como um trabalhador nessa publicação.
Quanto às representações sociais do morador de rua, iremos apresentá-las a cada
exemplo. Também identificaremos o valor-notícia, as Vozes Enunciativas e os interdiscursos,
quando esses forem importantes para encontrarmos a representação social do sem-teto. Com
intenção de facilitar a compreensão, antes de cada texto analisado apresentaremos um
pequeno quadro com as informações do texto e o resumo da análise.
Ordenamos as análises dos textos de forma aleatória a partir do que compreendemos
como relevância dos assuntos, de forma a propiciar uma leitura contextualizada por assuntos
ao leitor.
4.3.1. Análise dos discursos em Ocas”
Iniciaremos nossa análise com base nos discursos jornalísticos da revista Ocas”.
Como resultado de nossa etapa prévia de análise chegamos a dez assuntos relacionados ao
tema sem-teto, que ancoram as representações sociais do morador em situação de rua
consideramos pertinentes para a compreensão do fenômeno estudado.
Quadro 5: Resumo da Análise do texto “Carroceiros e mendigos saem de cena”26
Título Autores Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representações
do morador de
rua
“Carroceiros e
mendigos saem de
cena”
Oficina de Criação
Ocas” Autores
(Ocas”)
Andrea
Matarazzo
Vejinha
Resposta à
Vejinha Cidadão de
direitos;
Oprimido;
Fora da lei
26 Quadro elaborado pelo autor.
119
O primeiro texto que iremos analisar é o artigo “Carroceiros e mendigos saem de
cena”27
, publicada no mês de maio de 2005, e de autoria dos participantes da Oficina de
Criação de Ocas”, explanado no item 1.3. Ao analisarmos os enunciados, percebemos as
seguintes vozes enunciativas, por ordem de importância: prioritariamente os autores,
participantes da Oficina de Criação; em segundo lugar a revista VEJA São Paulo, que
inclusive, enuncia as palavras que formam o título deste artigo e, por conseguinte, o então
subprefeito da Sé Andrea Matarazzo.
Este texto, fruto de um debate dos membros da Oficina de Criação, propõe-se a fazer
uma replica a um artigo publicado na Revista VEJA São Paulo intitulado Dez ideias para o
Centro (2005)28
, publicado na Vejinha, em 16 de março de 2005, que também será analisado,
quando focarmos nos discursos jornalísticos da revista. Caracterizamo-lo como um texto
reportagem, pois se trata de um relato informativo sobre um fato ocorrido – o texto da revista
VEJA São Paulo, sendo esse o seu valor-notícia –, no entanto, entendemos que suas fronteiras
de gênero entre informativo e opinativo são muito tênues. (ASSIS, 2010)
Os autores buscam apresentar o morador de rua como um cidadão de direitos e não
apenas deveres, mas também como um sujeito oprimido pelas políticas públicas. O trecho
abaixo aponta para essa afirmação:
É muito comum que aqueles considerados “mendigos” busquem apenas
viver suas próprias vidas, mas, como nem esse direito é respeitado, só lhes
sobram deveres, ou melhor, imposições a cumprir. Não se permite isso nem
aquilo, não se tem liberdade de escolha, e se a ida para a rua fora causada
pelos dissabores da vida, pode se transformar não na busca de meios de
sobrevivência, mas numa eterna fuga. (PARTICIPANTES DA OFICINA
DE CRIAÇÃO, 2005, p. 12, grifo do autor)
Ao colocar a palavra “mendigos” entre aspas, o autor realiza a transposição de sentido.
Essa transposição se trata de uma ironia para com o sentido da palavra produzido por VEJA
São Paulo. Como já mencionamos “Mendigo” é uma das possíveis expressões que designam
o morador de rua, que em determinados contextos produzem um sentido menor sobre o
homem da rua. Assim, a palavra, ao ser colocada entre aspas, tem seu significado deslocado
para um sentido irônico, especialmente em Ocas”, na qual geralmente são utilizadas
expressões como moradores em situação de rua.
27 Anexo A
28 Anexo Q
120
Mais adiante no texto verificamos que a crítica é direcionada aos argumentos
higienizador, autoritário e especialmente elitista utilizado em VEJA São Paulo. O argumento
elitista, por exemplo, é criticado no trecho abaixo, que reivindica políticas de inclusão:
Revitalizar o centro de São Paulo criando uma situação favorável para o
comércio e para a geração de empregos pode mudar a cara da região, mas
não diminui o problema das pessoas que permanecem no local em situação
de rua. Boas intenções nem sempre corroboram os pensamentos em atitudes
públicas. Cidadania se conquista com ações eficazes, ainda mais quando
tratamos de exclusão e excluídos. (PARTICIPANTES DA OFICINA DE
CRIAÇÃO, 2005, p. 12)
Quanto às condições de produção (ORLANDI, 2009), esse texto ao ser redigido pelos
moradores de rua, que são integrantes da Oficina de Criação Ocas”, produz sentidos a partir
do ponto de vista de quem vive nas ruas, ou seja, sua formação discursiva é de quem defende
os interesses do povo da rua. Por conta dessa inclinação de cunho ideológico, fortalece as
enunciações que apresentam o morador de rua como cidadão e oprimido, desqualificando a
associação do morador de rua com a marginalidade.
Outra condição de produção importante de citarmos é o fato de o texto ser uma
resposta à matéria publicada em VEJA São Paulo. Ao considerarmos isso, intuímos que as
estratégias produção de sentido estão voltadas para a defesa irrestrita e incondicional deste
cidadão, por conta do veículo.
Ainda no texto, a cidade é representada como um local público, ponto de encontro da
diferença e também um espaço de direito a ser composto pela diferença, em concordância
com o entendimento que já expusemos. Neste espaço de convivência, o uso da cidade não é
digno apenas das elites, mas sim para a prática de direitos. Assim, todos podem e devem usar
e consumir a cidade e não apenas aqueles que têm carros ou que podem comprar em lojas
chiques, uma menção aos valores de uso e de troca, expostos no item 2.1 desta dissertação.
O tensionamento entre deveres e direitos é recorrente por todo o texto, com os
enunciadores reclamando uma política pública de inclusão do morador de rua, dentro do
discurso e das ações de revitalização do centro de São Paulo. Um aspecto claro disso é quando
questiona o uso da cidade que só favorece a elite utilizando a expressão “interesse do
comércio e de pessoas” – certamente essas pessoas não são os moradores de rua, embora seja
interessante refletir, pois ele também é uma pessoa e o próprio autor do texto, uma voz em
defesa da causa da situação de rua, coloca o indivíduo a parte da condição de pessoa. Em
suma, com o questionamento sobre o uso e consumo da cidade, reivindica o direito de ter
direitos do morador em situação de rua.
121
Quadro 6: Resumo da análise do texto Revolta, Indignação e uma pergunta: até quando?29
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Revolta,
Indignação e uma
pergunta: até
quando?
Rodrigo Ciríaco Autor;
moradores de
rua;
assessorias de
imprensa do
Metrô e da
Subprefeitura.
Remoção dos
barracos Cidadão de
direitos;
Marginalizado.
Essa representação do morador de rua como cidadão de direitos aparece também no
texto, Revolta, Indignação e uma pergunta: até quando?30
(CIRÍACO, 2005), publicado na
Ocas em abril de 2005. Trata-se também de um artigo (gênero opinativo), produzido pelo
voluntário da Ocas”, Rodrigo Ciríaco, e aborda a remoção de barracos de moradores em
situação de rua, instalados próximos à Estação Brás do Metrô, no centro de São Paulo.
Neste caso, o valor-notícia é a remoção de barracos e os enunciadores são o próprio
Ciríaco, moradores de rua que moram nos barracos e as assessorias do metrô e subprefeitura.
Logo no primeiro parágrafo, a enunciação é assumida pela voz de um morador de rua
que questiona a ação dos agentes do metrô que operam a remoção. “O que marca é isso aí:
tem os mano que mora tudo na rua! Nós não rouba ninguém, não mexe com ninguém, não
desrespeita a mulher de ninguém, por que vai mexer com nós?” (CIRÍACO, 2005), diz
Wellington Nascimento da Silva. O fato de o texto não respeitar a norma culta do português,
durante a enunciação de Silva, é proposital, dentro do texto de Ciríaco, para produzir um
sentido de proximidade e fidelidade à fala do morador de rua.
Compreendemos que esta estratégia enunciativa expõe a fragilidade do morador de
rua, ressaltando sua apresentação como vítima e como injustiçado. Vale observar aqui, como
a memória discursiva é mobilizada a fixar o morador de rua na situação de desqualificação e
desrespeito.
A truculência da autoridade pública também está ressaltada quando outro enunciador
morador de rua, José Gelciano da Silva, faz o seguinte relato: “Veio uns policial e começaram
a desmontar tudo, junto com uns caras ajudantes da prefeitura. Não quiseram nem saber.
Começaram a desmontar tudo, jogar as coisas no chão”. É curioso percebermos o
interdiscurso com a letra da música Saudosa Maloca, composição de Adoniran Barbosa do
ano de 1951, abordada no início deste trabalho, e que narra um despejo na cidade de São
29 Quadro elaborado pelo autor.
30 Anexo B
122
Paulo, daquela época. Na letra, o método narrado para a remoção também é a destruição
truculenta, o interdiscurso que nos referimos é latente no trecho. “Veio os homi c'as
ferramentas. O dono mandô derrubá”.
As falas dos representantes oficiais, das assessorias do metrô e da subprefeitura da
Mooca são baseadas simplesmente na legitimidade da ação e são colocados no texto por
Ciríaco, fazendo uma contradição às falas de caráter humanitário, manifestas pelo autor ao
longo de todo o texto.
No caso da assessoria da subprefeitura, esta é ainda indagada se houve uma
preocupação sobre o destino dos moradores, questão que é respondida fria e laconicamente
pelo seu representante, que apenas disse. “Nesse caso, não teve”.
A marginalidade associada ao homem de rua, na enunciação do autor é evidenciada
quando ele menciona que questões como essa de desigualdade são tratadas como caso de
polícia, pela sociedade e novamente, ao final, faz uma reivindicação, em tom de protesto e
com palavras de ordem por moradias, com base em uma interdiscursividade com a
Constituição Federal, que garante esse direito a todos os brasileiros. “Moradia, trabalho,
saúde, educação são direitos de todos, garantidos pela Constituição. É lei! Não pedimos
favores, exigimos respeito, dignidade e cidadania” (CIRÍACO, 2005).
Quanto às representações nos dois textos, vale mencionar que o homem da rua, estar
representado como um cidadão é uma premissa da OCAS (Organização Civil de Ação
Social), que edita a revista Ocas” e assim sendo, é esperado que os discursos sejam
atravessados por uma ideologia humanista que reivindica, em quase todos os momentos os
direitos da população de rua, ainda que em alguns casos essa demanda e a representações
como cidadão sejam exageradas, como veremos adiante.
Quadro 7: Resumo da análise do texto E depois da rampa?31
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representação do
morador de rua
E depois da
rampa?
Alan de Faria Autor;
Autoridades;
especialistas;
ativista.
Instalação da
rampa que impede
moradores de ficar
sob viaduto
Cidadão
direitos, mas
descartável
Em outros textos, veremos variações desse tipo de representação como cidadão para o
homem de rua, como é o caso da matéria E depois da rampa?32
(2006), escrita por Alan de
31 Quadro elaborado pelo autor.
123
Faria, que também aborda a remoção de moradores em situação de rua de um determinado
espaço público regido por lógicas de uso privado, no complexo viário que dá acesso à avenida
Doutor Arnaldo.
Valor-notícia dessa reportagem gira em torno da instalação de rampas de concreto
embaixo dos viadutos, nos cantos, para que sirvam de obstáculos, impossibilitando as pessoas
de dormirem no local.
Embora a rampa seja o valor-notícia, logo na linha-fina (breve resumo do texto),
temos o sentido da matéria, que diz o seguinte: “Polêmica envolvendo construção de
obstáculos em viaduto próximo à av. Paulista ofusca um debate maior: há políticas de
reintegração social para quem está nas ruas?” (FARIA, 2006, p. 13). É esse questionamento
que produz o sentido do texto.
Há neste trecho do texto um posicionamento político-ideológico, por parte do
enunciador, que representa os interesses da publicação, ao cobrar das autoridades políticas
públicas. Assim como há também o posicionamento ideológico em torno dos possíveis usos
da cidade.
Esse enunciação se materializa desde o início da reportagem por meio da ironia, pois
os paulistanos terão “mais uma obra a apreciar e que não se tratam de obras de arte”.
Outras vozes estão presentes no texto, cada uma mobilizando representações dessa
população e de suas condições como cidadãos, por meio de distintas práticas discursivas.
Como a entrevista de Floriano Pesaro, então secretário municipal SMADS, cuja fala é
autoritária ou irônica ou desqualificadora, como no trecho no qual afirma que “não se deve
reduzir a política social da cidade à discussão da rampa”; ou nos comentários de Silvia Maria
Schor, pesquisadora da Fipe, cuja fala aciona o discurso científico. “Realmente muitas
pessoas em situação de rua não querem ir para albergues e precisam de outro tipo de
atendimento, mas há uma demanda latente de pessoas em situações vulneráveis, ou seja, com
dificuldades de pagar aluguel ou moram com outros familiares, e que viveriam nesses locais,
se fosse possível”; ou ainda a fala de Sebastião Nicomedes de Oliveira, integrante do
Movimento Nacional de Luta em Defesa dos Direitos da População em situação de Rua, ex-
vendedor da revista Ocas, cuja fala é exemplo de um discurso político marcado por
reivindicação dos direitos de cidadania dos sem teto; “os moradores de rua reclamam que,
paralelamente às ações (da Prefeitura), não foi implementada nenhuma política de
32 Anexo C
124
acolhimento e habitação”; além do discurso político-institucional por meio da assessoria de
imprensa da Subprefeitura da Sé.
Quanto às falas das autoridades, todas assumem o discurso político-institucional,
mostrando que a prefeitura faz tudo que está ao alcance para o cumprimento de sua função,
como exposto no trecho abaixo:
Contactada pela reportagem e Ocas”, a assessoria da Subprefeitura da Sé
informou que a população que estava no complexa viário das avenidas
Paulista e Doutor Arnaldo “recebeu constantes abordagens da equipe da
Assistência Social para encaminhamento a albergues, mas as recusaram”
(FARIA, 2006, p. 14)
A redação é atravessada por uma estratégia discursiva de contestação, perceptível em
expressões como ‘Retiradas dali, onde estão agora?’, ‘prova de estupidez’, ‘não basta’. Elas
mostram que apesar de o texto ser do gênero informativo, o autor lança mão de expressões
qualificadoras em sua fala, ou seja, comprova a forte presença de um componente ideológico,
comprovando a diluição de fronteiras entre o gênero informativo e o opinativo, e vice-versa,
no texto jornalístico (ASSIS, 2010).
A matéria explicita ainda, na fala do subprefeito da Sé, que a instalação das rampas é
por conta de assaltos na região. No box intitulado Assalto como causa: truculência como
consequência, o texto expõe esse argumento, mas ao dar a voz aos moradores de rua, estes são
apresentados como vitimas de violência praticada pela Polícia Militar e Guarda Civil
Metropolitana. Segue o trecho “Ex-moradores do local acusam a Polícia Militar e a Guarda
Civil Metropolitano de agirem com truculência durante as ações que resultaram em suas
expulsões” (FARIA, 2006, p. 15)
Neste texto, o morador de rua também é apresentado como um cidadão de direitos,
que necessita de um mínimo de dignidade para sair das ruas. No entanto, é clara a crítica à
noção de descartabilidade do povo da rua, enunciada pelas vozes dissonantes do texto
(autoridades públicas).
Neste texto, a cidade é apresentada como espaço de convivência, mas que não pode ou
está organizado para comportar o morador de rua em suas políticas públicas, ou seja, há uma
tensão entre a situação real e o dever ser.
Curiosamente, na edição de novembro de 2005, a questão da rampa apareceu em
outros três textos da publicação: no editorial A rua como palco de transformações
(SEIDENBERG ET AL., 2005), publicada em novembro; na reportagem Arquitetura X
Arquitortura (BARROS ET AL., 2005); e no perfil Perdeu a barraca, ganhou a rua
(SEIDENBERG, 2005), em todos os casos, a instalação da rampa serve como pretexto para
125
argumentações e questionamentos sobre as condições da população de rua, ao planejamento
urbano. Nota-se que, nestes textos, o discurso de Ocas” em momento algum retira ou nega a
condição de diferente para o morador em situação de rua, assim a representação desses
indivíduos é demarcada e enfatizada por essa condição de corpos diferente à normalidade do
urbano.
Quadro 8: Resumo da análise do texto Luta pela dignidade 33
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Luta pela
dignidade
Alex Anunciato Autor;
Nilson Garrido
(criador da
academia);
Alexsandro do
Rosário;
(coordenador da
academia);
Roms da Leste
(rapper e usuário
da academia).
Academia de boxe
para a população
de rua
Cidadão
recuperável;
“Guerreiro”;
Resiliente;
Lutador.
Mas como os veículos trazem a reinserção social dos moradores em situação de rua?
De várias formas, inclusive por meio da prática esportiva. A reportagem Luta pela
dignidade34
(ANUNCIATO, 2010), faz parte de uma edição especial da revista que tem como
tema o esporte como um dos principais instrumentos para transformação de vidas da
população de rua, e apresenta o cotidiano da academia de boxe, criada pelo ex-pugilista,
Nilson Garrido.
O objetivo do projeto, exposto no texto é retirar as pessoas “das drogas e de outras
atividades ilícitas”. Temos as enunciações do jornalista Alex Anunciato; de Nilson Garrido;
do coordenador de uma das unidades, Aleksandro do Rosário; e do rapper Roms da Leste, um
dos lutadores que exploram a característica transformadora do esporte, ou seja, a prática
desportiva é “uma alavanca para transformar vidas” (ANUNCIATO, 2010, p. 15).
Não é a primeira vez que a mesma revista OCAS’ faz uma matéria sobre o tema. Em
O ringue de cada um (ALVES ET AL., 2006), já tinha abordado o tema. Por meio da
interdiscursividade com este texto, podemos perceber que a representação do boxe como
instrumento de recuperação e de resiliência para a população de rua, assim o praticante é
33 Quadro elaborado pelo autor.
34 Anexo D
126
apresentado como lutador, não somente dentro do ringue, mas na vida. Por outro lado,
também podemos ver o boxe como método para domesticar esses corpos.
Dentre os aspectos que nos chamam a atenção, podemos citar a forma como Garrido
chama seus alunos: “Guerreiros”. Outro elemento presente no texto que dá margem ao
entendimento do discurso da superação é o fato das instalações do local serem improvisadas.
Na segunda parte do texto são apresentados dois perfis de pessoas que convivem neste
ambiente. Aleksandro do Rosário e Roms da Leste
Em ambos os casos, os perfis mostram pessoas que superaram dificuldades e estão ali,
envolvidos numa prática esportiva que lhes concede cidadania e dignidade, como o próprio
título da reportagem sugere.
Especialmente no caso de Roms da Leste observamos exemplo de resiliência
associado a explicações de caráter religioso, no trecho em que o lutador é descrito pelo
jornalista e por si próprio.
Ele conta que foi criado sem pai, junto com mais dois irmãos e uma irmã,
teve um dos irmãos morto por traficantes, usou drogas, morou embaixo de
viaduto e chegou ao projeto “acabado”. “Eu também já estive perdido, né?”,
lembra. “Eu chorava toda hora e dizia para o professor Garrido: Os caras
estão matando e está assim...e assim...as drogas estão acabando com a
periferia.” Foi então que Garrido sugeriu que ele praticasse boxe. [...]
Religioso, Roms acredita que ninguém supera sozinho uma fase ruim. “a
gente traz pro projeto e é um primeiro passo para a pessoa parar de usar
droga e começar a luta. Aí, após isso, é bom a pessoa ter também um lado
espiritual para ter mais força anida. Pra largar o vício”, diz, recordando sua
trajetória (ANUNCIATO, 2010, p. 17)
Como comentamos mais acima, o que chama a atenção no texto é a capacidade de
superação do morador de rua por meio do esporte, mas sem deixar de lado a religião e a
perseverança. Essas marcas discursivas são produtoras de sentidos positivos, de modo que o
morador de rua é caracterizado como resiliente e lutador (não só nos ringues, mas também na
vida).
Quadro 9: Resumo da análise do texto Um homem (bem) visível35
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Um homem (bem)
visível
Viviane Águia Autora;
Sebastião
Nicomedes;
ator
Peça escrita por
ex-morador
encenada em
circuito comercial
Resiliente;
sujeito
desvinculado e
35 Quadro elaborado pelo autor.
127
protagonista. sem referência.
Outro texto que aborda a reinserção do morador de rua e o apresenta como um sujeito
que pode ser reintegrado à sociedade, é a reportagem da edição 50 (novembro/dezembro de
2006), intitulada Um homem (bem) visível36
, escrita pela jornalista Viviane Águia. Publicada
na seção Carrossel, o texto tem como valor-notícia a peça Diário dum carroceiro, escrita pelo
ex-morador de rua, vendedor e colaborador de Ocas”, Sebastião Nicomedes. A peça, que
chegou a ser produzida e encenada no circuito profissional, é um monólogo que conta as
agruras do morador de rua Quim.
O valor-notícia é o lançamento da peça no circuito profissional, o texto menciona as
questões que ela suscita, como a invisibilidade do homem da rua. As vozes enunciativas
presentes são de Sebastião Nicomedes; da jornalista autora, Viviane Águia; do ator
protagonista, Antonio Carlos de Nigro; do produtor da peça Max Mu; e da diretora da peça,
Iara Brasil. Sendo os dois primeiros os mais importantes e que serão analisados, pois
enunciam como é a capacidade do homem da rua de se reinserir socialmente.
Nas enunciações de Nicomedes, por exemplo, sua trajetória de entrada e saída das ruas
é destacada, fato que o apresenta como um sujeito resiliente, ou seja, com capacidade de
superação por conta de ter lidado com diversos obstáculos durante a vida. Atrelada a essa
caracterização, Nicomedes surge também como uma pessoa esperançosa, como no trecho em
que fala de suas intenções: “Quero tirar os moradores de rua dessa situação. Pobre não precisa
de albergue, precisa de oportunidade real de trabalho para poder ter sonhos. Eu nunca deixei
de sonhar”. (ÁGUIA, 2006)
Para além dessas características, a enunciação da autora, traz o morador de rua como
um sujeito desvinculado e sem referências, tanto da vida social como de sua própria
intimidade. Águia (2006) para narrar isso se expressa partindo da peça, até cruzar com a
biografia de Nicomedes.
O desligamento que o morador de rua sente em relação à sociedade é
mostrado por meio das perdas, que marcam quase todas as cenas da peça.
Mas saber que a falta da mulher, do cachorro, do emprego e até da dignidade
de fazer as necessidades físicas com privacidade são fatos contados por
alguém que encontrou uma solução para tudo isso é uma ponta de esperança.
(ÁGUIA, 2006, p. 23)
Observando a citação acima, vemos como o procedimento discursivo da jornalista é
pegar elementos da ficção (peça) e trazê-los para a realidade (a vida de Sebastião Nicomedes,
36 Anexo E
128
enquanto morador de rua). O sentido produzido com isso é a humanização da personagem e
notabilidade do morador de rua.
Quadro 10: Resumo da análise do texto Antes que o frio doa...37
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Antes que o frio
doa...
Sebastião
Nicomedes Autor;
Oficina de
Criação
(Ocas”);
moradores de
rua;
funcionária da
SMADS.
Frio nas ruas nos
meses de inverno Ser-humano;
Rebelde.
Um dos assuntos que apresentou destaque em nossa análise foi o frio. Dada as baixas
temperaturas nos meses de maio e junho, a equipe da Oficina de Criação da revista Ocas”
entendeu que uma matéria que teria relevância seria uma que abordasse o sofrimento da
população de rua com o frio. Assim, publicaram na edição de maio e junho de 2009 a
reportagem Antes que o frio doa...38
(NICOMEDES, 2009)
Além do autor, Sebastião Nicomedes, ex-morador de rua, há outros enunciadores:
outros moradores de rua e da funcionária da Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social (SMADS), Isabel Cristina Bueno da Silva. Nicomedes narra em
primeira pessoa e de modo dramático como era sua vida nas ruas nos dias de frio. Por meio da
metáfora da dor, o autor relata o sofrimento com as baixas temperaturas:
Sabe o que é sentir as costas geladas por dentro e por fora, ter dores de
dente, de ouvido, com a cabeça dando pontadas ao mesmo tempo, com fome
e a gripe perigando virar pneumonia ou tuberculose? Tem espirros que só
faltam explodir a gente por dentro.[...] Frio dói de verdade; dói o corpo, dói a
alma. Tem noites em que se tem a impressão de que a morte vai chegar de
madrugada, transformar a gente em pedra de gelo. (NICOMEDES, 2009)
Dadas às condições de produção, o contexto histórico e ideológico da publicação
sugere que o relato seria o recurso argumentativo mais adequado. Já o título da matéria
“Antes que o frio doa...” anuncia. No entanto essa relação entre população de rua, frio e
sofrimento, parece ser algo que vai além das formações discursivas de um e outro veículo.
Identificamos na análise uma interessante interdiscursividade com a matéria, Em quem o frio
37 Quadro elaborado pelo autor.
38 Anexo F
129
dói mais39
(VEIGA, 2007), de VEJA São Paulo, texto publicado anteriormente ao texto de
Ocas”, e que será analisado mais adiante.
Outro aspecto que nos chama a atenção é o modo como os moradores de rua
analisam à remoção para albergues. A descrença com esse tipo de instituição, que lhes impõe
regras, está presente na fala de um deles que caracteriza os albergues como lugar “sem
futuro”, pois lá eles são apenas um número e não pessoas e estas instituições estão
interessadas somente em receber o dinheiro da prefeitura. Essa critica corrobora a ideia
bastante recorrente de que o morador de rua é um rebelde em relação aos albergues.
Compreendemos que o fato de a reportagem ser organizada com depoimentos da população
em situação de rua, em relação ao frio e ao sofrimento, faz com que se humanize o relato que
tende a sensibilizar o público leitor, o que se percebe a seguir:
“Eu queria falar para arrumar uma coberta para mim. Vixe, meu, coisa ruim
o frio! Tem gente que se embebeda, se embebeda tanto, não consegue nem
catar um papelão para se cobrir. O chão já é gelado. Se você não se protege,
o frio mata, todo ano o frio mata.” Gilson, 40
“[...] O frio é triste. É triste. Agora não, mas quando chega lá pelas duas da
manhã, a gente sente na pele, tem que sair andando. Isso quando não jogam
água na gente, no cobertor, em tudo” Genivaldo da Silva Jatobá, 40,
motorista, porteiro e segurança, há dois anos em situação de rua
Ao final, vale comentar o box, no qual a funcionária da SMADS, comenta Operação
Frentes Frias, projeto da Prefeitura para que a população vá para albergues. Trata-se de uma
fala protocolar que explica as ações da administração pública quee a apresenta como uma
instituição que ao menos tenta sanar o problema.
Quadro 11: Resumo da análise do texto Mercado Subterrâneo40
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representação do
morador de rua
Mercado
Subterrâneo
Ana Lígia
Scachetti Autor;
Sem-teto e
frequentadores
da feira;
Coord. da
ONG Minha
Rua, Minha
Casa;
especialista em
moeda social
Feira solidária Consumidores
39 Anexo W
40 Quadro elaborado pelo autor.
130
Em muitos dos textos de Ocas”, observamos a preocupação com a cidadania da
população em situação de rua. Muito para além dos direitos garantidos por lei, como aborda
Canclini (2006), o consumo também é uma condição específica para a garantia de cidadania.
A matéria Mercado Subterrâneo41
(SCACHETTI, 2010), aborda a relação do morador de rua
com o consumo, ao mostrar a Feira de trocas Solidárias, promovida pela Associação Minha
Rua, Minha Casa, realizada mensalmente sob o viaduto do Glicério, na região central da
cidade, na qual é utilizada uma moeda alternativa, a Miruca. Quando da realização da
reportagem, a feira estava em sua 40ª edição. Majoritariamente o público que frequenta a feira
é composto pela população em situação de rua que pode trocar produtos por meio dessa
moeda.
Dentre os procedimentos argumentativos encontrados no texto, verificamos que o
consumo está representado como uma necessidade, associado a valores “justos”, “éticos” e
“sustentáveis”, além do aspecto solidário. A matéria demonstra um circuito fechado de
consumo, que possui carta de princípios, elaborada de forma coletiva e que visa ao bem
comum:
A Feira de Trocas possui um carta de princípios que, assim como a miruca,
foi elaborada coletivamente; determina, por exemplo, não tirar vantagem,
decidir amigavelmente os impasses, ser leal, compartilhar e evitar o acúmulo
de bens ou moedas. (SCACHETTI, 2010, p. 21)
O texto ainda traz exemplos que ilustram as transações, o empreendedorismo, por
meio do microcrédito e outros exemplos de troca. Também há um boxe, no qual a Miruca
(moeda local é apresentada).
Neste texto, a questão do consumo para a população de rua está atrelada a uma forma
de conquista da cidadania. Os enunciados expõem que, por meio de práticas éticas, leais,
solidárias e sustentáveis é possível promover a cidadania por meio do consumo e sem a
necessidade desse ser mediado pelo dinheiro.
O dinheiro não chega a ser demonizado, mas o acúmulo dele não é interessante à
prática de consumo proposta pela ONG e enunciada no texto. Tanto que modelo de moeda
social é desenhado para que não ocorra a acumulação. A Miruca pode ser conseguido com
Reais, mas que não pode ser “destrocada”, ou seja, a ideia é que a ela circule apenas naquele
espaço e, assim, não propicie a acumulação, pois até o final da feira, as pessoas tentar gastar
todas. O trecho abaixo expõe essa ideia:
41 Anexo G
131
“A moeda social não tem finalidade de acumulação, serve para estimular a
produção de outra pessoa criando um círculo virtuoso”, comenta o
pesquisador André Miani, aficionado pelas redes de trocas. Para que a
moeda social seja um sucesso, ele diz, é essencial que seja baseada na
confiança. (SCACHETTI, 2010, p. 20)
Quadro 12: Resumo da análise do texto A droga nem sempre leva à exclusão, mas a exclusão
é a maior droga 42
Título Autores Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representação do
morador de rua
A droga nem
sempre leva à
exclusão, mas a
exclusão é a maior
droga
Antonio César
Andrade, Cláudio
Bongiovani, Fábio
Santos e Tula Pilar
Ferreira
Equipe Oficina
de Criação
moradores de rua
dependentes
químicos
Antonio César
Andrade
Consumo de
Drogas pela
população em
situação de rua
Dependentes
químicos, porém
recuperáveis
A Droga nem sempre leva à exclusão, mas a exclusão é a maior droga43
(ANDRADE
ET AL., 2005), publicado na edição 33 (abril de 2005), aborda o uso de drogas e narra a
conversa que a equipe da Oficina de Criação da revista Ocas” teve com dependentes
químicos moradores de rua. Diferentemente do consumo entendido como transação comercial
e prática que integra o sujeito à sociedade, desta vez a questão do consumo de entorpecentes é
discutida como algo que leva à exclusão.
O texto é produzido por várias mãos, o que bem representa o caráter ideológico da
publicação e suas condições de produção. Especialmente pelo fato de a reportagem ter sido
produzida por moradores de rua, compreendemos que o local de fala é privilegiado,
especialmente por terem de entrevistar dependentes químicos, que muitas vezes são arredios a
dar entrevistas a jornalistas. Dentre os enunciadores estão os usuários, o menor A.C.A. e José
Gelciano da Silva. Ambos enunciam um desejo em sair da dependência química. Silva, em
especial, diz que só usa droga como forma de esquecer as mazelas da rua. “Ah, é para
aguentar um pouquinho a raiva que a gente tem, né meu?” (ANDRADE ET AL., 2005).
A continuação da reportagem ainda é marcada por um debate da Oficina de Criação
sobre o tema e os resultados das entrevistas. Na fala dos integrantes da Oficina de Criação,
percebe-se que eles assumem um duplo papel, o de jornalista e o de morador de rua. “Eu no
lugar dele [do garoto], não daria entrevista, não. O morador de rua que usa droga já é um
42 Quadro elaborado pelo autor.
43 Anexo H
132
preconceito. A sociedade não enxerga como gente, e sim como lixo”, enuncia Andrade que
tem um box dedicado a sua trajetória na rua.
Dentre os pontos a se chamar a atenção, ele aponta as drogas como forma de alienar e
demonstra revolta com a classe média, que considera discriminatória. “Hoje eu vendo a
revista e as pessoas ainda escondem a bolsa. Estou trabalhando e sou discriminado.”
Na análise de A Droga nem sempre leva à exclusão, mas a exclusão é a maior droga
temos um morador em situação de rua dependente químico, o qual, em momento algum é
chamado de drogado ou viciado, ao contrário. Ele é colocado, dadas as características
editorias do veículo, como alguém que vive nessa condição de risco social, mas é recuperável,
só precisa de oportunidades.
Por se tratar de um texto escrito a partir do ponto de vista de quem viveu nas ruas e,
mais especialmente, já foi usuário de drogas, como é o caso de Antônio César Andrade, o
enunciador se privilegia do ponto de vista da facilidade com o tema, no entanto, do ponto de
vista jornalístico ficou um quanto vaga, pois negligenciou vozes que poderiam ser importantes
para uma melhor compreensão da questão das drogas.
Quadro 13: Resumo da análise do texto Um fato, várias versões e o cheiro da impunidade 44
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representação do
morador de rua
Um fato, várias
versões e o cheiro
da impunidade
Kenia Rezende e
Alan de Faria Autores
Advogada;
Padre Júlio
Lancellotti;
Sebastião
Nicomedes;
Advogado Hélio
Bicudo;
DHPP;
comerciantes
anônimos;
Dr. Fábio
Guedes Rosa;
PM e coronel
Jorge Luís;
uma das vítimas
Aniversário da
chacina que
vitimou sete
moradores de rua
em 2004
Vítima da
violência
O texto seguinte a ser analisado Um fato, várias versões e o cheiro da
impunidade45
(REZENDE e FARIA, 2005) foi reportagem de capa da edição de agosto de
44 Quadro elaborado pelo autor.
45 Anexo I
133
2005 e discorre sobre o aniversário de um acontecimento violento que vitimou 16 moradores
de rua (sete mortos e nove feridos) no centro de São Paulo, esse é valor-noticia.
Dentre as vozes enunciativas estão os autores do texto, a advogada Michael Mary
Nolan, o padre Júlio, o morador de rua, colaborador de Ocas” e representante da Casa de
Oração do Povo da Rua, Sebastião Nicomedes; o advogado e ex-vice-prefeito de São Paulo,
Hélio Bicudo; a assessoria de imprensa do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa
(DHPP) e seu delegado Dr. Fábio Guedes Rosa; comerciantes anônimos; o, assessoria da PM
e coronel Jorge Luís, um dos sobreviventes da chacina, que não tem seu nome revelado.
Dentre os procedimentos discursivos presentes no texto, destacam-se: protesto e
crítica, pois o caso ainda não foi solucionado; também podemos identificar um procedimento
discursivo que remete a memória e politização do fato. O lide, primeiro parágrafo da
reportagem, reflete isso:
Passou-se um ano, e a polícia ainda não tem uma solução para as mortes e
agressões contra as pessoas que dormiam no centro de São Paulo ocorridas
em agosto de 2004 na região da Praça da Sé. Na época foram assassinadas
setes pessoas e nove ficaram feridas. As investigações continuam, mas ainda
não foi possível identificar os assassinos. Os sobreviventes fogem e se
escondem, preferem não ficar nas instituições da prefeitura, já que na rua o
anonimato ainda os protege e aí podem desfrutar de liberdade – as regras
impostas pelos albergues são sempre alvo de grande reclamação por parte
dos usuários. (REZENDE e FARIA, 2005)
Por ser um veículo com direcionamento ideológico para a causa do povo da rua, a
formação discursiva (FIORIN, 2007) está localizada em defesa dessa causa. Assim é esperada
a visibilidade da linguagem de protesto e crítica, claramente identificável no trecho ‘e a
polícia ainda não tem uma solução’. O discurso político também chama a atenção,
primeiramente pelo uso de palavras como ‘pessoas que dormiam no Centro’, ao invés de
‘morador de rua’; ‘assassinos’ ao invés de ‘culpados’; e, especialmente pelo uso da palavra
‘liberdade’, em uma crítica direta aos albergues, locais nos quais os moradores de rua podem
passar as noites, mas que não são locais onde eles têm de seguir normas rígidas.
O texto segue referendado por depoimentos de autoridades e especialistas em crimes e
em situação de rua. Esses depoimentos estão divididos em duas partes, na primeira (e mais
importante) delas, depõem pessoas ligadas à causa sem-teto, o padre Júlio Lancellotti,
coordenador da Pastoral do Povo da Rua.
Em uma segunda parte, inter-intitulada O outro lado, depõem representantes da classe
policial e o Ministério Público. A polícia, além de ser, desde o início do texto, muito criticada
pela não resolução do crime, também representa o grupo de alguns dos suspeitos que foram
134
presos temporariamente e depois soltos. A polícia está apresentada em duas frentes, a civil e a
militar. Quanto à civil, representada pelo delegado Fábio Guedes Rosa que chega a criticar os
procedimentos do Ministério Público, corroborando o tom crítico da reportagem.
Já a Polícia Militar, na figura de seu porta-voz, Coronel Jorge Luís, é apresentada
como se estivesse defendendo seus três integrantes que foram presos. Segue o trecho:
O Coronel Jorge Luís confirma que há indícios de participação dos três, mas
ressalta que isso não comprova a participação deles nos assassinatos. “De
qualquer forma, é preciso ressaltar que a corporação não compactua com
esse tipo de comportamento (matar moradores de rua)”, diz Luís. “Nosso
objetivo é realizar um trabalho de prestação de serviço ao cidadão.”
(REZENDE e FARIA, 2005)
Vale ressaltar alguns pontos sobre a fala do Coronel Luís. Além de defender a seus
colegas da, o trecho entre parênteses (matar moradores de rua) é colocado pelo jornalista e
não compõe a fala da autoridade policial, que fala apenas em comportamento. Esse
procedimento é utilizado para reforçar a ideia do crime, ainda que a fala do entrevistado não
diga isso. Por último, o termo cidadão referencia o morador de rua e faz parte de uma fala
protocolar da autoridade policial, que não indica que o sentido produzido pelo policial para
apresentar o sem-teto seja que ele é um cidadão. No texto, ainda que que a publicação reforce
essa ideia de reivindicação de cidadania, o autor se refere a esta população como “pessoas”.
Essa referencia ao morador de rua como cidadão e pessoa que merece respeito é
perceptível ao longo de todo o texto, o que se justifica e é plenamente esperada em uma
publicação como Ocas”. Na última parte da matéria há um Box que traz relatos de
sobreviventes, intitulado Depois da tempestade, o anonimato. Dois são os personagens
sobreviventes da violência, mas que na ocasião da publicação da reportagem viviam no
anonimato. Esse anonimato é compreensível para a preservação das fontes da prática
jornalística, porém esses depoimentos fecham o texto com críticas às autoridades sobre a
questão dos sem teto, à burocracia dos albergues, à insegurança das ruas e à ineficácia da
proteção às testemunhas. Essa crítica dá visibilidade a uma representação de cidade que,
embora deva ser o local da convivência, ainda não possibilita que todos conquistem a
cidadania.
135
Quadro 14: Resumo da análise do texto Em vez de Polícia, Política! 46
Título Autor Voz Enunciativas Valor-notícia Representação do
morador de rua
Em vez de Polícia,
Política!
Raquel Rolnik Raquel Rolnik Ação policial
contra população
de rua e demais
insurgentes
Vítima da
violência;
Sujeito
desprovido de
direitos;
Retomando a temática da violência para com essa população, vamos analisar agora um
texto que trata essa temática sob a óptica do projeto Nova Luz. Em vez de polícia, política47
(2012). Escrito pela urbanista Raquel Rolnik para a revista Ocas”, publicado na edição de
janeiro/fevereiro de 2012, traz a visão da especialista sobre três ações policiais contra
insurgentes em situações específicas de ocupação de espaço urbano: a ocupação do
Pinheirinho, em São José dos Campos; a Operação Cracolândia, em São Paulo; e a invasão da
reitoria da USP, também em São Paulo.
Tendo nosso tema como foco, nos ateremos ao segundo caso. O título, já aponta uma
reivindicação da urbanista para a abertura de um debate sobre a gestão e ocupação do
território urbano.
Sobre o caso da Cracolândia, em especial, esta autora faz uma crítica ao que ela chama
de operação limpeza, com alto uso da violência como instrumento de repressão do estado para
com aquela população.
Em 14 dias de ação, mais de 103 usuários de drogas e frequentadores da
região foram presos pela polícia com uso de cavalaria, spray de pimenta e
muita truculência. Em seguida, mais de 30 prédios foram lacrados e alguns
demolidos. Esta região é objeto de um projeto de “revitalização” por parte da
prefeitura de São Paulo, que pretende concedê-la “limpinha” para a iniciativa
privada construir torres de escritório e moradia e um teatro de ópera e dança
no local. (ROLNIK, 2012, p. 27)
No trecho acima, a urbanista critica a ação do governo para “revitalizar” a região do
bairro da Luz. Observe-se o uso de aspas nas palavras revitalização e limpinha, é essencial
para compreender a crítica que Rolnik faz às ações do governo, pois enuncia uma
transposição de sentidos e ironiza as falas de autoridades que defendem a reforma para limpar
e revitalizar o centro.
46 Quadro elaborado pelo autor.
47 Anexo J
136
Quanto às condições de produção, devemos levar em conta que o texto foi escrito,
logo no início da Operação Sufoco, em janeiro de 2012, assim seu valor-notícia é a
proximidade temporal do acontecimento.
No texto, Rolnik ainda coloca que a violência é uma forma de supressão do diálogo:
Ou seja, para quem promoveu a reintegração ou a limpeza, o fundamental é
ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá, muito menos as razões
que levaram aquelas pessoas a estar naquela condição e seu enfrentamento e
resolução. “Resolver” a questão é simplesmente fazer desaparecer o
“problema” da paisagem
Mais grave ainda, nessas situações a suposta “ilegalidade” (ocupação de
terra/uso de drogas) é motivo suficiente para promover todo e qualquer tipo
de violação de leis e direitos em nome da ordem, em um retrocesso
vergonhoso dos avanças da democracia no país. (ROLNIK, 2012)
Algumas representações são observadas diante dos sentidos produzidos no texto
de Rolnik. A cidade é representada como um espaço a ser ocupado e essa ocupação é
problematizada, sendo a política uma forma de se resolver essa questão. No entanto, a
instância governamental, outra representação presente no texto, suprime essa possibilidade de
diálogo por meio do uso da força e promovendo “violações de leis e direitos em nome da
ordem”, o que a autora classifica como “retrocesso vergonhoso dos avanços da democracia no
país”. Já o povo da rua está representado, justamente como essa população para quem o
diálogo é suprimido, assim como outros direitos.
Quadro 15: Resumo da análise do texto “Não tinha futuro, só trabalho”48
Título Autores Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representação do
morador de rua
“Não tinha futuro,
só trabalho”
Oficina de Criação
de Ocas”, Tula
Pilar, Dário
Bertolutti
Oficina de
Criação
(Ocas”);
Felix Rafael
(peruano
morador de rua);
Juan Plaza
(coordenador);
Candelária
(boliviana
moradora de
rua).
Estrangeiros em
situação de rua Trabalhador;
Escravo;
Lutador.
Um diferente grupo dentro do universo da diferente população de rua é retratado na
reportagem “Não tinha futuro, só trabalho”49
(BARROS ET AL., 2006), texto produzido pela
48 Quadro elaborado pelo autor.
49 Anexo K
137
Oficina de Criação de Ocas” e publicado na seção Cabeça Sem Teto que aborda a situação de
moradores em situação de rua de São Paulo que são estrangeiros. Na primeira parte do texto,
o personagem principal é o peruano Félix Rafael, que conta sua trajetória nas ruas de São
Paulo. Além dele, outras vozes estão presentes no texto: os autores, o coordenador da Casa do
Migrante, o chileno Juan Plaza, a boliviana moradora de rua Candelária; e o vendedor de
Ocas”, Sérgio Borges. Essas pessoas aparecem na continuação da matéria, intitulada Ilegais,
com o sonho de uma vida melhor? Há vagas.
Neste caso, o valor-notícia – que gera interesse pelo público – é o fato de uma cidade
cosmopolita como São Paulo contar com um número de moradores de rua oriundos de outros
países. Reparamos também uma interdiscursividade com a matéria Estrangeiros sem teto
(JORDÃO, 2012), publicada na revista VEJA São Paulo, em maio de 2012.
Observamos que o morador de rua estrangeiro é apresentado como trabalhador e como
uma pessoa em risco social. Para chegar a essa conclusão sobre a representação social,
estamos considerando a sequência discursiva que apresenta assuntos como escravidão,
ilegalidade, falta de cidadania, violação de direitos humanos e reinserção social.
Foi complicado. Não sabia nada de costura, me puseram de ajudante. Fiquei
quatro meses. A patroa não pagava direito, falava que eram R$300, depois
disse que eu dava despesa, comia muito. Quando eu queria sair, dizia: “Não
pode”. Só aos domingos. Comigo trabalhavam 20 bolivianos, todos em pé,
durante 14 horas, as costureiras não comiam bem, a patroa cobrava
produção, a gente virava máquina. Só faltavam as chibatadas. Ia dormir
pensando: amanhã é mesma história, não tinha futuro, só trabalho.
(BARROS ET AL., 2006, p. 11)
No trecho acima, o enunciador é o peruano morador de rua, Félix Rafael, seu discurso
expressa a situação desumana, análoga à escravidão, na qual ele e outros imigrantes se
encontravam e assim a rua foi uma alternativa a essa vida.
Na reportagem, é interessante a ênfase que o veículo dá sobre a condição de
escravidão pela qual os imigrantes passam. Além do depoimento de Félix Rafael, destacado
acima, na segunda parte do texto, os enunciadores apontam para um contexto de escravidão e
relatam a história de Sérgio Borges e Candelária, que passaram por uma situação semelhante à
escravidão nos locais em que trabalharam.
O discurso da revista, embora defensor de condições dignas de cidadania aos
estrangeiros em situação de rua, coloca um enunciado interessante de Juan Plaza, que
relativiza o processo de escravidão denunciado nas páginas. Analisando a fala do coordenador
da Casa Migrante, percebe-se que ele relativiza a situação ao afirmar que muitas vezes a
situação de escravidão é vista por quem está de fora e não por quem está “escravizado”, pois,
138
apesar de muito ruim, essa condição é melhor daquela que a pessoa viveu anteriormente e é
uma escolha. Segue a fala de Juan Plaza sobre a escravidão na íntegra:
“É um conceito submetido a certa subjetividade, apesar de a sociedade
definir, objetivamente, parâmetros precisos do que vem a ser uma condição
de trabalho escravo. Todo mundo vem para cá atrás do sonho de construir
uma vida melhor. É por essa busca que, muitas vezes, a pessoa se sujeita a
determinadas condições de trabalho. E a aceita porque vê adiante a
possibilidade de uma realidade diferente da miséria que deixou para trás. É
uma decisão. Para nós, essa situação é de semi-escravidão. Mas pessoas que
se submetem a essa rotina têm uma visão e uma dimensão diferente da
nossa.” (BARROS ET AL., 2006, p. 12)
Como já pudemos verificar em alguns dos textos analisados da revista Ocas”, há
frequentemente a defesa do morador de rua como um oprimido em busca de direitos, no
entanto, o veículo abre espaço para visões diferentes e relativizadas de suas proposições.
Outro aspecto a ser observado no texto é que os estrangeiros, embora de outra nacionalidade,
não são apresentados como “especiais” no contexto da publicação, ao contrário, estão também
representados em situação de pobreza iminente e de risco social. Mais adiante, analisaremos
como a revista VEJA São Paulo trata do mesmo assunto em suas páginas.
Quadro 16: Resumo da análise do texto Advinhação50
Título Autor Voz Enunciativa Valor-notícia Representação do
morador de rua
Advinhação Neide Duarte Neide Duarte Crianças de rua Crianças
marginalizadas
Em Adivinhação51
(2011), teremos a apresentação da crianças de rua na revista Ocas”,
a partir da enunciação da repórter especial da Rede Globo de Televisão, Neide Duarte.
O texto aborda a infância no mês do dia das crianças. A autora enuncia as condições
das crianças carentes do país, abordando a situação da criança marginalizada, esquecida pelo
Estado e que não tem condições dignas de alimentação, educação e abrigo. A estratégia
discursiva adotada para apresentar essa criança carente foi descrever uma lista de violências e
privações. O título é uma forma de criticar o Estado brasileiro, pois quatro dentre os oito
parágrafos que compõem o texto eram iniciados com a expressão “Era uma vez um país
onde...”, numa referencia ao início dos contos de fadas.
Analisando a sequência discursiva, até o final do texto – no post-sriptum (P.S.), Duarte
aponta para um caso de violência envolvendo menores infratores. A autora busca expor, numa
relação de causa e consequência, que em um país onde crianças passam por tanta situação de
50 Quadro elaborado pelo autor.
51 Anexo L
139
privação e violência, a consequência é que elas sejam cada vez mais cedo envolvidas em
situações de violência.
Entre os trechos que relatam a violência podemos citar: “Era uma vez um país onde as
mães, assim que seus filhos nasciam, jogavam as crianças no lixo”, ou “Algumas crianças
costumavam se exibir nos faróis fazendo um número circense de malabarismo para não deixar
a bola cair. Outras batiam nos vidros dos carros tentando dizer alguma coisa para as pessoas,
mas ninguém abria a janela”. (DUARTE, 2011, p. 27)
Essas crianças, moradoras de rua, são apresentadas como carentes de condições
mínimas para crescerem como as outras crianças, e, por algum motivo continuam marginais à
sociedade. Algumas delas, inclusive presas – existem cerca de 12 mil delas no Brasil
cumprindo penas. Com seu texto, Duarte critica a sociedade brasileira que ainda trata as suas
crianças com indiferença.
Quadro 17: Resumo da análise do texto O amor está nas ruas 52
Título Autores Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representação do
morador de rua
O amor está nas
ruas
Jaqueline Máximo
e Leandro
Conceição
Autores
Casal Deusdete
de Almeida e
José Santana;
Assistente social
do Albergue São
Francisco;
Casal Paulo
Cesár de Souza e
Vanderleia
Azevedo.
Amor no contexto
dia dos namorados
Casais
apaixonados
Analisamos o texto sobre as crianças de rua produzido no contexto do dia das crianças.
Agora, analisaremos como Ocas” aborda outro assunto em suas páginas: o dia dos
namorados. A reportagem de título O amor está nas ruas53
(MÁXIMO e CONCEIÇÃO, 2006)
publicado em junho de 2006 relata histórias de casais que vivem nas ruas ou albergues. Junho
é o mês do dia dos namorados (12) e provavelmente este é o valor-notícia.
Este texto dá visibilidade uma questão da afetividade. Além dos jornalistas, dois
casais representam as vozes do texto: José Santana da Silva Filho e Deusdete de Almeida
Santana da Silva; e Paulo César de Souza e Vanderléia Ângela de Azevedo. Ambos vivem no
Albergue São Francisco, na Baixada do Glicério em São Paulo.
52 Quadro elaborado pelo autor.
53 Anexo M
140
Nesse exemplo temos uma abordagem que humaniza as pessoas que vivem nas ruas,
expondo suas histórias de vida e seu cotidiano. Traz à tona algo que também está presente nas
ruas, a vida conjugal. Esta colocada como também uma necessidade básica das pessoas, assim
como a alimentação, saúde ou educação. O depoimento do casal José Santana da Silva Filho e
Deusdete de Almeida Santana da Silva é relevante:
O casal faz questão de demonstrar os sentimentos que tem um pelo outro:
“Sinto muito amor e carinho por ele. Peço muito a Deus que continue
iluminando nosso caminho, diz ela. Já tive quatro mulheres, mas com ela me
casei e quero passar o resto de minha vida a seu lado, não importa como e
onde”, diz ele. (MÁXIMO e CONCEIÇÃO, 2006, p. 15)
O texto tem um tom de resiliência – apesar de todo o sofrimento e as dificuldades de
se viver nas ruas, ainda é possível viver com amor. Algo uma interdiscursividade com o
Saúde e doença, riqueza e pobreza, que são valores passados pelo sacerdote no matrimônio
católico.
O texto apresenta ainda uma breve descrição da vida nos albergues e, especialmente
sobre seus códigos de comportamento, em relação a uma vida de casal. No caso do albergue
em que vivem os casais, a relação de casal é totalmente controlada pelas regras do local.
Há alguns meses, eles descobriram os albergues. Já passaram por vários.
Hoje estão alojados no albergue São Francisco, na Baixada do Glicério.
Todos os dias saem pela manhã, passam o dia nos faróis da cidade vendendo
balas retornam à instituição para jantar e dormir, cada um em um quarto,
pois o albergue não permite que casais durmam juntos. “Essa é uma forma
de proteger o próprio casal, assim evitamos uma série de problemas.
Podemos ter casos de prostituição, maridos ciumentos, homens que podem
cobiçar a mulher do próximo... Não é que a gente veja as pessoas como
assexuadas. É para manter o controle”, diz Luiz Antônio Khüll, assistente
social do São Francisco. (MÁXIMO e CONCEIÇÃO, 2006, p. 15)
Quadro 18: Resumo da análise do texto Vozes em busca de direitos 54
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor(es)-notícia Representações
do morador de
rua
Vozes em busca de
direitos
Márcio
Seidenberg Autor;
Anderson
Miranda
(MNPR);
Debatedores do
encontro;
Jornalistas;
Representantes
dos moradores;
Irmã Regina;
Encontro do
MNPR e Operação
Limpeza
Cidadão com
direitos;
Vítimas da
violência.
54 Quadro elaborado pelo autor.
141
Secretário
municipal;
Associação
Viva Centro;
Carlos Loureiro
(defensor
público);
Sec. de
Gabinete;
Coronel
Camilo.
A questão dos direitos para a população de rua aparece latente no texto Vozes em
busca de direitos55
. A reportagem é dividida em duas partes, na qual a primeira traz um relato
sobre a reunião do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que encerra um ciclo
de seis encontros de entidades ligadas ao tema para a discussão de contribuições para a
Política Nacional para Inclusão Social da População de Rua.
O texto se inicia com a expressão “Hoje é dia de comemorar uma conquista e é com
muita alegria que vamos apresentar a nossa participação”, fala do líder do MNPR, Anderson
Lopes Miranda, um dos enunciadores do texto ao lado do autor da reportagem.
O sem-teto é apresentado como um cidadão de direitos, reforçada pela redação de uma
uma espécie de inventário de informações relevantes ao tema morador de rua, como a lei
municipal 12.316 que obriga o Poder Público a prestar atendimento à população de rua e
dados referentes ao número dessa população no país.
A reportagem relata como foi a reunião e traz listadas diversas reivindicações da
população, por meio da fala dos participantes da audiência. Assuntos como Gênero, Direitos
Humanos, Cotas, Moradia, Capacitação, Trabalho e Bolsa-Aluguel são colocados na plenária.
O Miranda, líder do MNPR, é apresentado como personagem principal da matéria e
fala dentre outras coisas do processo de saída das ruas. Em sua posição de fala como líder
social, também defende que a inserção da população de rua se dá não com medidas que
reforcem a diferenciação.
“A gente não quer escolas nos albergues, pelo amor de Deus! A gente quer
entrar na USP”, afirma Miranda à Ocas”. Porém, ele defende cursos de
alfabetização dentro dos abrigos, “porque não é preconceituoso”. “é que
muita gente tem vergonha de voltar a estudar. O que a gente quer é que todos
participem da escola. A gente não quer AMA – Assistência Médica
Ambulatorial – nos abrigos. A gente quer é que a população seha atendida
pelo SUS e pelo SAMU [serviços de saúde] sem discriminação”, diz.
(SEIDENBERG, 2008, p. 10)
55 Anexo N
142
Diferentemente do que apresentamos no item 3.2, quando falamos da falta de
referências do sem-teto, o mesmo Miranda expõe que essas pessoas “tem uma história e um
vínculo com a rua”, mostrando um argumento político de muitas reivindicações para a
população de rua.
Na segunda parte do texto, intitulada Vozes em Busca de Justiça, é apresentado um
relato sobre uma manifestação contra a violência em relação a população de rua. A exemplo
da primeira parte, esta também se inicia com palavras de ordem durante a manifestação pelas
ruas de São Paulo: “Hoje é dia de protesto e de luta”
Em geral, o texto apresenta uma linha de crítica em relação às práticas que consideram
higienizadoras para remoção da população de rua, como no trecho. “Não queremos manter o
povo nas ruas, nem mostrar uma cidade que não existe, escondendo pobres e a
incompetência” (SEIDENBERG, 2008, p. 11)
Essa crítica é enfatizada em trechos seguintes, nos descrevem em detalhes o caráter
higienista das políticas públicas em relação ao morador de rua, executadas pela polícia e em
favor de projetos como Aliança pelo Centro Histórico, que tem como uma de suas
argumentações “dar qualidade total” ao centro antigo.
O texto do jornalista, com forte teor opinativo e ironia, tende, a se expressar de um
local de fala e como uma formação discursiva do interior do movimento, como no trecho:
Na prática, ineficaz em esclarecer de que forma se dariam tais intervenções,
a medida foi sentida nas ruas através de ações truculentas e vista com
preocupação por fóruns sociais, entidades, movimentos e organizações que,
unidos no compromisso com a “qualidade de vida das pessoas em situação
de rua”, criaram a Aliança Pela Vida. (SEIDENBERG, 2008, p. 11)
Reparem que durante todo o texto se ironiza tanto o nome do projeto quanto a forma
como ele se expõe propondo qualidade.
O texto segue relatando a forma como o protesto se dirigiu até a prefeitura e
simbolicamente fez uma limpeza na calçada do local. Ao final, o texto traz o relato da
audiência Pública que reuniu os membros da Aliança pelo Centro Histórico e da Aliança pela
Vida.
Pela leitura do texto, percebemos que o morador de rua é apresentado tanto como
cidadão e vítima da violência. Também é exaltada a sua capacidade de organização, inclusive
com a revista Ocas”, claramente fazendo coro ao movimento.
A cidade aparece como o palco de discussões políticas e espaço de manifestação de
direitos. Há ainda uma característica marcante de desvalorização do discurso que vise a
revitalização do centro.
143
Quadro 19: Resumo da análise do texto Escola da Rua: Ensinado e aprendendo56
Título Autor Vozes
Enunciativas
Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Escola da Rua:
Ensinado e
aprendendo
Márcio
Seidenberg Autor;
Professores;
Alunos;
Presidente do
Arsenal da
Esperança
(albergue)
Educação e
cidadania à
população de rua
Estudante;
Resiliente;
Sujeito em
busca de
reinserção social
Na reportagem Escola da rua: ensinando e aprendendo57
(SEIDENBERG, 2009) é
abordado o Projeto Caminho Novo, que promove educação à população em situação de rua. O
que chama a atenção na matéria (valor-notícia) é a possibilidade de retorno da população em
situação de rua aos estudos e à cidadania.
Dentre as vozes enunciativas mais marcantes do texto estão a do jornalista, de
professores, alunos, e do vice-presidente do Arsenal da Esperança, Antonio Paladino. São
vários os sentidos identificados como o da descoberta, quando este é enunciado pelos
estudantes ou da realização, por parte dos docentes:
“Aqui os alunos começam a construir o processo de escrita”, revela Sandra
Regina Fernandes Westin, professora. “Já sei escrever meu nome. Um
pouquinho, pelo menos”, comemora Zé Carlito, que, após uma avaliação de
conhecimento – a qual foram submetidos todos os alunos no segundo dia de
aula – passou para a série seguinte. “Não sei ler, nem escrever. Sou doido
para uma carta pra mulher, assim”, revela um dos alunos. “Consegui apanhar
um ônibus, afirma outro, ao poder identificar o itineráriodo coletivo.
(SEIDENBERG, 2009, p. 8)
Há ainda a publicação de um texto coletivo com as palavras dos moradores sobre
como é voltar a estudar, do ponto de vida dos anseios e das expectativas. Respondendo a duas
perguntas: o que tenho a ensinar? O que eu tenho a aprender? (SEIDENBERG, 2009, p. 9)
Sobre o projeto em si, quando questionado, vice-presidente do Arsenal da Esperança,
Antonio Paladino, tem um comentário procura fugir da ideia de albergue, mas como espaço
para acolhimento da população de rua, no qual a educação é uma das vertentes. Paladino
também sustenta o argumento da educação como pilar da inclusão social e da cidadania. “Nós
só vamos obter a paz no dia em que nosso povo for educado.”
56 Quadro elaborado pelo autor.
57 Anexo O
144
Esse procedimento é semelhante ao que enuncia, nas palavras finais, o morador de rua,
José Ivan Francisco da Silva, em poema de sua autoria. Para ele voltar a estudar lhe dará a
condição de voltar a ser um cidadão de bem.
Volta às aulas
Quem tem dez só vale dez
Quem tem cem só vale cem
Para a sociedade O povo da rua não vale um vintém
Mas eu voltei a estudar
Para ser um cidadão de bem
O que nos chama a atenção no poema acima é que o “cidadão de bem”, enunciado por
Silva é uma antítese do morador de rua. Ou seja, a projeção do cidadão que não vive à
margem da sociedade.
Assim, o morador em situação de rua é apresentado na matéria como alguém que se
esforça para voltar à condição de cidadania. Esta que lhe é devolvida por meio da educação.
Quadro 20: Resumo da análise do texto Ouvidoria da ruas 58
Título Autor Voz Enunciativas Valor-notícia Representação
do morador de
rua
Ouvidoria da
ruas
Ocas” Editorialista (Ocas”) Ouvidoria
Comunitária da
População em
Situação de Rua
Cidadão de
direitos
O texto agora analisado trata do editorial Ouvidoria da ruas59
(OCAS”, 2010),
publicado em setembro/outubro de 2010. Escolhemos este texto, pois ele fala da Ouvidoria
Comunitária da População em Situação de Rua, parceria da OCAS com o Centro Acadêmico
XI de Agosto, da USP; o Movimento Nacional da População de Rua; e o Fórum Permanente
de Acompanhamento das Políticas Públicas da População em Situação de Rua.
Trata-se de uma ouvidoria oferecida gratuitamente por estudantes de direito da USP
para “recolher e sistematizar denúncias sobre todo e qualquer tipo de violação de direitos
humanos praticadas tanto por agentes públicos quanto privados contra a população de rua”
(OCAS”, 2010). Além disso, também pode orientar os moradores sobre seus direitos como
cidadãos. O texto diz o seguinte:
A compilação e análise do material – com detalhes que apontam dados, fatos
e provas – construirá um instrumento importante de pressão para a
58 Quadro elaborado pelo autor.
59 Anexo P
145
implantação de políticas públicas e para investigação e responsabilização dos
atores que, de alguma forma, agridem a população de rua. Apesar de ainda
não ter sido realizado mapeamento completo das demandas recebidas,
relatos de abuso policial e de atendimento discriminatório nos albergues
predominam entra as queixas, que podem ser encaminhadas pela Ouvidoria à
Defensoria Pública quando requererem atendimento jurídico. Pretende-se
ampliar essa possibilidade, firmando-se, futuramente, termo de cooperação
com este órgão público para evitar que violações aos direitos dessa
população fiquem sem solução por conta da falta de assistência jurídica.
(OCAS”, 2010)
O texto é marcado pela enunciação da Ocas”, pois é o editorial. Embora tenha
essas características, se mostra bem informativo para explicar a Ouvidoria, semelhante a um
texto do gênero informativo. O valor-notícia é a existência da Ouvidoria.
Neste texto observamos a instância ideológica do veículo que, não só defende os
interesses da população de rua, como mostra que ela é sim, parte integrante desse movimento,
como já demonstramos no item 1.2 desta dissertação.
4.3.1. Análise dos discursos na Vejinha
Quadro 21: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez ideias para o centro 60
Título Autores Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Dez ideias para
o centro
Alessandro
Duarte e Marcos
Buarque de
Gusmão
Autores;
Presidente da
Associação Viva
Centro;
Jaime Lerner;
Andrea Matarazzo.
Ideias para
revitalização do
Centro de São
Paulo
Sujeito
descartável;
Indigente;
Culpado pela
degradação do
Centro.
O primeiro texto da revista VEJA São Paulo que iremos analisar é a reportagem
intitulada Dez ideias para o centro61
, redigida pelos jornalistas Alessandro Duarte e Marcos
Buarque de Gusmão (2005), publicada no periódico em 16 de março de 2005.
Essa matéria foi escolhida pois aborda a temática dos moradores de rua e também
apresenta intertextualidade e interdiscursividade com o texto “Carroceiros e mendigos saem
de cena” (2005) publicado na revista Ocas” e já analisado aqui.
Trata-se de uma reportagem na qual o enunciador principal é o então subprefeito da Sé,
(região central de São Paulo), Andrea Matarazzo. Ele expõe suas ideias para o que chama
60 Quadro elaborado pelo autor.
61 Anexo Q
146
‘revitalização do centro de São Paulo’ após a obtenção de um empréstimo de cem milhões de
dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Iniciamos nosso processo de análise identificando os argumentos utilizados na matéria.
O primeiro deles surge logo na linha-fina, trata-se de um argumento otimista em relação à
cidade, segue o trecho: “[...] tem uma oportunidade de ouro para resgatar a importância e o
glamour da cidade” (DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 13).
Esse tipo de argumento exalta as possibilidades de revitalização da cidade, no entanto é
um argumento mais sedutor que informativo. Essa argumentação vai de acordo com o que é
exposto na Análise de Discurso Francesa sobre as formações discursivas que produzem
sentidos nos discursos. (ORLANDI, 2009). A formação discursiva do veículo e apresentada
com ideias de higienização limpeza urbana e normatização.
Sobre a apresentação do morador de rua, na matéria, este é reduzido a quem pratica a
mendicância, ou quem trabalha, mas com uma ocupação menor – carroceiro –, e que está fora
dos padrões de trabalho que é esperado naquela região da cidade. Assim, o sentido produzido
sobre ele é a de um marginal, ou quase um estorvo ao contexto de revitalização do centro da
cidade, visto que a enunciação da VEJA São Paulo aponta para uma situação de retomada da
estabilidade para que “o centro de São Paulo recupere o antigo brilho e volte a ser orgulho dos
paulistanos.”
Outro procedimento discursivo identificado é o argumento político. Em especial quando
o texto faz menção ao partido político do sub-prefeito, o PSDB – Partido da Social
Democracia Brasileira – e a nomes consagrados da sigla como o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso e a José Serra (então prefeito). Há também, em outras passagens do texto,
menções críticas a gestão municipal, anterior 2001-2005, na qual a prefeita era Marta Suplicy,
do PT – Partido dos Trabalhadores. “Logo que assumiu o cargo, em 2001, a prefeita Marta
Suplicy anunciou sua Operação Belezura. Prometia que em seis meses livraria a cidade da
sujeira, das pichações e dos anúncios que se multiplicavam por todo canto. Não conseguiu.”
(p. 19)
O terceiro procedimento discursivo identificado é uma junção de argumentos
personalista, autoritário e tradicional. Apesar de se tratar de uma reportagem sobre a cidade
(espaço público) todas as ideias são personificadas no subprefeito, e este é colocado como um
ser onipotente para pensar as questões do centro da cidade. Além disso, há um trecho do texto
em que o personagem é apresentado a partir de sua família, seus hábitos e costumes:
Bisneto do senador italiano Andrea Matarazzo (Irmão do conde Francisco
Matarazzo, fundador do antigo império industrial da família), ele se lembra
147
do tempo em que passeava pelas ruas Xavier de Toledo e Barão de
Itapetininga, que eram então muito chiques, ao lado de seu tio Ciccilo, o
criador da Bienal, do Museu de Arte Moderna e do Museu de Arte
Contemporânea. Orgulhoso dessa herança, partiu dele a sugestão para que
Serra voltasse a chamar a sede da prefeitura, no Vale do Anhangabaú, de
edifício Conde Francisco Matarazzo. Como seus ancestrais, usa ternos sob
medida com tecidos italianos (DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 14)
O próximo sentido produzido é que poderíamos chamar de ‘politicamente correto’.
Este é verificado quando a prefeitura teria de contribuir com 65 milhões de dólares, valor que
não possui naquele momento. O discurso é materializado da seguinte forma.
É sabido que hoje a administração regional não conta com essa verba em
caixa. Por isso, os projetos não sairão todos de uma vez. Matarazzo mandou
rever as 130 ideias elaboradas pela gestão anterior e pretende centrar forças
em problemas de grandes dimensões como a deterioração da área conhecida
como Cracolândia, a falta de estacionamentos e o acumulo de camelôs.
(DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 14)
Este trecho acima ainda nos mostra uma prática discursiva que permeia toda a
reportagem, o argumento elitista, que fica claro quando se fala da falta de estacionamentos no
centro de São Paulo. Mais à frente iremos observar que em diversos pontos do texto o
argumento é extremamente elitista, pois evita ações visando o equilíbrio em questões
públicas, como é o caso dos transportes coletivos. Ou seja, em diversos momentos a
reportagem, sobre urbanismo, privilegia benefícios voltados apenas para as classes mais
abastados. Outro exemplo que corrobora essa análise e para a abordagem sobre o fim dos
passeios públicos do centro da capital conhecidos como ‘Calçadões’, segundo o texto, “[...] o
trânsito estrangulado entra as praças da Sé e República expulsou os consumidores de maior
poder aquisitivo e comércio de melhor qualidade. Em seus lugares surgiram os ambulantes e
estabelecimentos especializados em artigos populares.” (p. 14 e 15)
Vale ainda um destaque especial para o ponto em que a região da Cracolândia é
destacada. É justamente nesta região que o Projeto Nova Luz, ainda embrionário, em março
de 2005, tem foco. Sob o aspecto da memória discursiva, iremos encontrar mais adiante textos
que tratam essa questão e dão visibilidade à população de rua. Neste texto podemos citar.
“Uma terra de ninguém. Os 25 quarteirões nas imediações das ruas Aurora e Santa Ifigênia,
ao lado da São Paulo, são redutos de baixo meretrício, traficantes e viciados em crack.”
(DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 20) é dessa maneira que a reportagem descreve a região,
com ênfase ao já citado discurso elitista, quando menciona as proximidades da Sala São
Paulo, auditório de música clássica localizado na região da Luz.
148
O texto apresenta então as dez ideias, que são temas de boxes na reportagem, a saber:
O fim dos calçadões; Como melhorar a segurança; Um novo centro comercial; Banho de
Limpeza; Carroceiros e mendigos saem das ruas; shopping para os camelôs; Parcerias com
empresas; Mais garagens subterrâneas; Não à poluição visual; e Universidade na Cracolândia.
Além do aspecto elitista, em alguns pontos a publicação utiliza de um discurso neo-
liberal, ao assumir a necessidade de esvaziamento do Estado em questões sobre o espaço
público, como estacionamentos e calçadas.
Há ainda, pelo mesmo texto a prática discursiva de um discurso higienizador, ou seja,
que coloca o centro como um local fétido e sujo, e que precisa de ações para mudar esse
status. O morador de rua está representado nesses discursos como alguém que proporciona
essa situação ao centro da cidade. Abaixo o trecho da ideia intitulada Carroceiros e mendigos
saem de cena (DUARTE e GUSMÃO, 2005) na íntegra:
Como é hoje – das 10000 pessoas que vivem nas ruas em toda a cidade,
2000 estão no centro. Estima-se que 400 sejam crianças. Na Praça da Sé, por
exemplo, famílias cozinham ao ar livre, lavam roupa e se banham nas fontes.
Outro problema é a presença de 2000 catadores de lixo e de sua carroça.
Apesar de contribuírem para a coleta seletiva, eles atrapalham o trânsito e
prejudicam o comércio.
O que se pretende fazer – Firmar parcerias com instituições de assistência
social para encaminhar os mendigos aos 36 albergues municipais e montar
programas de inclusão social. Atualmente, 30% dos moradores de rua
voltam a ter uma vida normal após ser atendidos pela prefeitura. As vagas
nos albergues (7336 em toda a cidade) devem ser ampliadas. No caso dos
catadores que circulam pelo centro, a intenção e obrigá-los a guardar a
carroça em estacionamentos. Algumas ruas terão tráfego de carroceiros
proibido (p. 16).
No trecho, a relação entre esse argumento higienizador e o morador de rua é direta,
pois faz menção ao fato de esses cidadãos realizarem as atividades privadas em locais
públicos. A retirada desses seria então uma das soluções para o problema do centro da cidade,
mas não necessariamente do morador de rua, pois pelo próprio dado apenas 30% dos
moradores de rua atendidos pela prefeitura voltam a ter uma vida normal.
Quanto aos carroceiros, há uma abordagem de caráter autoritário. Expressões como “e
obrigá-los a guardar a carroça” mostra que, embora a atividade auxilie na coleta seletiva de
lixo, a intenção é tirá-los do centro de São Paulo.
A partir desta análise, entendemos que esta reportagem destina-se ao público das
classes A e B, e as formações discursivas são perpassadas por uma ideologia conservadora.
Assim, a presença de um argumento conservador parece estar condizente com o veículo em
149
que a reportagem foi veiculada: o lugar de enunciação é o da terceira pessoa, ou seja, aquele
que aborda o problema (o político, o jornalista) e não de quem vive o problema.
Quadro 22: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Ele não foge da briga 62
Título Autores Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Ele não foge da
briga
Camila Antunes
e Alessandro
Duarte
Autores;
Andrea Matarazzo;
Gilberto Kassab.
Perfil do
secretário das
subprefeituras
Andrea
Matarazzo
Problema a ser
enfrentando;
Infrator;
Sujeito a ser
“caçado”.
A primeira observação que temos antes de analisar o próximo texto é a memória
discursiva, a reportagem Ele não foge da briga63
(2008), escrita pelos mesmos autores da
reportagem acima três anos mais tarde, também traz a figura do então secretário das
subprefeituras, Andrea Matarazzo. Percebemos neste resgate vários procedimentos
discursivos semelhantes, embora a distância temporal entre as duas reportagens.
Em Ele não foge da briga, a revista faz um perfil de Matarazzo, enfatizando
especialmente suas características repressivas e intolerantes, com o que julga estar errado na
cidade.
No contexto, surge a figura do morador em situação de rua como um dos problemas a
serem enfrentados. Logo nas primeiras ele está representado na figura do usuário de drogas e
do carroceiro, na região da Luz, mais precisamente na Cracolândia, foco do Projeto Nova
Luz. Os discursos atribuídos a Matarazzo, que confirmam essa estratégia de produção dizem,
“Muita gente ainda vem aqui para usar drogas.” Ou “Outro problema grave são os carroceiros
que descarregam entulho de madrugada no meio da rua”.
Essa problematização da população de rua é uma marca presente em todo o discurso
da reportagem, ao passo que o mesmo identifica Matarazzo como o homem que vai reprimir e
resolver todos esses problemas.
Ao mesmo tempo em que é colocado como uma espécie de controlador da situação –
na própria matéria de capa é tachado sob a alcunha de “O xerifão da cidade”, o secretário é
visto como um homem de gosto refinado. Assim como no texto Dez ideias para o Centro
(DUARTE e GUSMÃO, 2005), o personagem principal é tido também como um Tucano de
Alta Plumagem, em referência ao animal símbolo de seu partido, o PSDB. Essa construção de
62 Quadro elaborado pelo autor.
63 Anexo R
150
imagem é atrelada a partir da dialética entre o rígido xerife e o bem talhado executivo, que
briga em nome da sociedade, mas com elegância. “O homem gosta de brigar com quem
considera infrator. Pode, às vezes, parece demagogia, mas o que ele faz em geral é bom para a
vida da cidade”, julga assim o discurso do jornal, que apresenta um caráter político-partidário
favorável à imagem de Matarazzo e sua legenda.
Ao longo do texto, o caráter implacável do secretario, especialmente contra a
população da rua, tida como marginal, é revisitado. “(Andrea Matarazzo) Mandou derrubar
um barraco que havia sido construído em uma praça...”
O ponto da matéria que chama mais a atenção, do ponto de vista da Análise de
Discurso, em relação à representação da população de rua é o trecho em que, de forma
explicitamente opinativa, o jornalista explica sobre os enfrentamentos do personagem com
“ONGs que atendem a população de rua”, segue o trecho abaixo:
Entrou em confronto direto com o notório Padre Júlio Lancellotti. O líder da
Pastoral do Povo da Rua implicou com seus métodos de fechar
estabelecimentos ilegais com blocos de concreto e suas tentativas de retirar
os sem-teto das calçadas. Chamou-o de fascista e higienista. Elegante, agora
que pesam dúvidas sobre a conduta do padre, Matarazzo prefere encerrar a
polêmica. (DUARTE e ANTUNES, 2008, p. 28)
Podemos verificar no texto, acima, que apesar de ser informativo, uma intensa
adjetivação. Do ponto de vista discursivo, trata-se de uma forma se produzir sentido por meio
da qualificação ou desqualificação de algo ou alguém. No caso, o Padre Júlio Lancellotti é
colocado como a figura da oposição à elegância do subprefeito, pois o ataca e o ofende.
O que nos chama a atenção, é a prática discursiva utilizada pela revista no trecho
“agora que pesam dúvidas sobre a conduta do padre”. Em tempo, naquela época, o Padre teria
sido vítima de extorsão de um suposto ex-morador de rua que o ameaça em tornar pública
uma denúncia sobre o sacerdote. Independente, a isso, o discurso da revista, se apropria de
uma procedimento julgador e moralista em relação ao sujeito que defende a população de e
euforia em relação ao homem responsável em botar “ordem na casa”.
Além de termos como enunciadores os autores do texto e Andrea Matarazzo, o então
chefe de Matarazzo é outra voz presente no discurso. O então prefeito Gilberto Kassab que o
elogia, especialmente a sua capacidade de trabalho.
É importante observar que o discurso da revista valoriza o caráter repressivo,
perseguidor e intolerante de Matarazzo, a determinados grupos diferentes da cidade, como
prostitutas, vendedores ambulantes e, especialmente, ao morador de rua. Essa valorização é
concretizada por meio discurso higienista de parte de Matarazzo enquanto enunciador, e por
151
parte das enunciações dos jornalistas. Como resultado disso, o sentido produzido é que o
morador em situação de ruas está colocado em uma condição de pária e degradador da cidade,
que necessita ser retirado daquele local, para o pleno desenvolvimento da urbes.
Quadro 23: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Cenas de um centro
abandonado64
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Cenas de um
centro
abandonado
Giovana Romani Autora;
Turista francesa;
Coronel da PM;
Associação Viva
Centro;
Diretor do CCBB.
Abandono do
centro de São
Paulo nos finas
de semana
Culpado pela
degradação do
Centro;
Sujeira;
Causa do
abandono.
O morador é também representado como causador da degradação urbana no texto
Cenas de um centro abandonado65
(2009), a jornalista Giovana Romani narra como fica o
Centro de São Paulo nos finais de Semana. O texto foi publicado na edição de 28 de outubro
de 2009.
Pelas práticas discursivas utilizadas, há uma relação explicita entre o a população de
rua e o lixo. “Aos domingos, quando o comércio fecha as portas e as ruas se esvaziam, o lixo
e os mendigos saltam aos olhos de quem anda pela região”, diz a linha-fina do texto.
Além da revista traz uma edição de imagens que discursam a degradação. Como uma
imagem editada na matéria, que mostra um varal com roupas secando na praça da Sé, expõem
um tensionamento na relação espaço público e hábitos privados, condição essa que o morador
em situação de rua não tem mais referência, pois a ele espaço público e privado não fazem
mais sentido algum.
A representação do morador de rua na reportagem é de alguém que espanta o público,
que poderia estar circulando no local. Isso é perceptível não somente na enunciação da
jornalista, mas também na de transeuntes, como a turista francesa Elisabeth Gomis. “Vi tantos
mendigos que deu medo de usar a câmera fotográfica”, diz relacionando a situação de rua
com a marginalidade.
Outra voz que marca polifonia discursiva da reportagem é do coronel da Polícia
Militar, Marcos Chaves, que embora classifique que o medo está no inconsciente da
64 Quadro elaborado pelo autor.
65 Anexo S
152
população, afirma a maioria dos moradores em situação de rua só fiquem nos locais para
descansar, alguns são oportunistas e se aproveitam para “praticar atos criminosos”, em uma
clara demonstração de um discurso protocolar da corporação.
Por todo o restante do texto, há uma construção imagética da sujeira, por meio de um
discurso descritivo relacionado a fotos. O morador em situação de rua é atrelado a esse
discurso como uma metáfora da sujeira.
Neste segundo momento do texto, o problema maior é a sujeira e não o morador de
rua, no entanto, esse não deixa de estar associado a esse quadro. E ao final do texto, o
discurso volta a também associar essa população à marginalidade. Isso aparece em mais uma
enunciação. Desta vez do diretor Marcelo Mendonça do Centro Cultural Banco do Brasil,
localizado na rua Álvares Penteado, na região central.
Em meio ao caos, há quem tome iniciativas por conta própria para agradar
aos visitantes. É o caso do Centro Cultural Banco do Brasil, que depois de
quatro anos voltou a oferecer, em setembro, um serviço de transporte
gratuito de um estacionamento na Rua da Consolação até lá. “Era um pedido
recorrente do nosso público”, afirma Marcelo Mendonça. “A van traz mais
conforto, comodidade e segurança.” (ROMANI, 2009, p. 30)
Além da relação com a segurança, é curioso perceber que na reportagem há uma
componente crítica em relação ao poder público, isso é perceptível na expressão “iniciativas
por conta própria”. Ou seja, o sentido produzido é que embora não existam políticas públicas
consistentes para tratar do problema, a iniciativa privada tenta melhorar a situação. Em linhas-
gerais as pessoas até tentam, mas é não dá para usar o centro de São Paulo, salvo em
iniciativas de uso privado do espaço.
Quadro 24: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Degradação que se esparrama 66
Título Autor Vozes Enunciativas Valor(es)-
notícia
Representação
do morador de
rua
Degradação que
se esparrama
Henrique Skujis Autor;
Presidente
Associação Paulista
Viva;
Associação de
moradores;
Floriano Pesaro;
Silvia Maria Schor.
Degradação do
Centro de São
Paulo e política
de albergues
Causador e
espalhador da
degradação
66 Quadro elaborado pelo autor.
153
Ainda no que se refere à remoção/revitalização urbana, abordados em VEJA São
Paulo temos o texto Degradação que se esparrama67
(SKUJIS, 2009), que fala sobre o
fechamento de dois albergues, no final do mês de novembro de 2009, e aponta que isso é a
causa de a população em situação de rua, migrar para diversos bairros da cidade, trazendo a
esses os aspectos da degradação. “Não é apenas no centro que moradores de rua dominam a
paisagem”, diz a linha-fina do texto.
No sentido produzido pela reportagem, a presença do morador de rua degrada a
localidade onde ele se instala. Ainda que naturalize a presença da população de rua no centro
da critica a ida a outras regiões, como a Avenida Paulista. Logo no primeiro parágrafo do
texto, o jornalista aborda o vão livre do Museu de Arte de São Paulo, Masp, e o caracteriza da
seguinte forma. “[...] merecia um uso menos degradante.”, referindo-se a população de rua
presente naquela situação.
Quando fala do sem-teto, o discurso é julgador e autoritário ao considerar que o fato
de a população de rua se espalhar pela cidade é uma situação grave. Os outros enunciadores
são representantes de Associação de Moradores, o então vereador e ex-secretário da
Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), Floriano Pesaro, a economista da Fipe,
Silvia Maria Schor, além de representantes de associações de moradores e os próprios
moradores em situação de rua. A polifonia gerada por esta reportagem faz com que a
produção de sentidos seja mais complexa, em relação a textos sem a mesma característica.
O interdiscurso, como de costume na prática jornalística da Revista, apresenta dados
oficiais, como os da Fipe, no intuito de corroborar as hipóteses presentes no texto. Entretanto,
o que chama a atenção é que o morador de rua, na reportagem parece estar no centro de uma
discussão de ordem político-partidária. Entre a então gestão atual SMADS – liderada por Alda
Marco Antônio –, e a anterior, com Pesaro à frente.
Assim, a presença, ou melhor a visibilidade do morador em situação de rua, em
bairros, que não só o centro, seria tida como uma espécie de termômetro da eficiência de
políticas públicas de assistência social, ou pior, de controle social, ou seja, da capacidade da
gestão do município, manter esse grupo diferente em determinada área.
Quanto às vozes dos próprios moradores – caso raro em VEJA São Paulo –, eles
criticam o fato de serem transferidos para bairros distantes do centro, ao passo que a atual
gestão da SMADS, reforça que o fechamento de albergues no centro não influenciou no
67 Anexo T
154
número de vagas, embora o próprio texto já sinalize para uma dificuldade em se contabilizar o
número de sem-teto, na cidade.
Diante desse quadro de extensa disputa política, no qual, o que chama atenção na
matéria (valor-notícia) sobre a degradação do centro é apenas um pretexto para uma discussão
ainda maior, o morador de rua é representado como um indivíduo que causa a degradação dos
locais e está no centro de uma complexa discussão político partidária.
Por essas razões, por meio de uma leitura mais cautelosa e examinando as vozes
antagônicas, graças ao fato, como já citado de a reportagem ser bem completa do ponto de
vista das vozes, podemos concluir que a representação social do morador de rua é essencial
para entendermos a dinâmica política que regia a cidade naquele momento. Esse grupo
diferente é um dos determinantes para discussões políticas sobre qual a medida mais cabível
de política pública em prol da sociedade.
Quadro 25: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Vizinhos da Cracolândia 68
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação
do morador de
rua
Vizinhos da
Cracolândia
James Cimino Autor;
Nova moradora;
Agentes de saúde;
Arquiteto Arnold
Pierre;
Recepcionista de
hotel
Revitalização da
Cracolândia
(Nova Luz)
Viciado
Ainda vale mencionar que a revista VEJA São Paulo trouxe à visibilidade, pela
primeira vez em 29 de junho 2011, o projeto Nova Luz. Em Vizinhos da Cracolândia69
(2011), o jornalista James Cimino realizou uma reportagem em um dos prédios revitalizados
da região, o San Fernando. Podemos compreender que o valor-notícia está relacionado ao
antes e depois da região
Pelo texto, uma nova moradora, agentes de saúde, o arquiteto Arnold Pierre
Mermelstein, além de um recepcionista de um hotel são os sujeitos dos discursos, que
produzem os sentidos com suas enunciações.
Embora seja um espaço revitalizado, os discursos não se atêm apenas às rupturas com
o passado, mas também às permanências do caos da região, descrevendo as cenas de sujeira e
a “vizinhança” dos dependentes químicos, enfatizando do título. Essa tensão entre novo e
68 Quadro elaborado pelo autor.
69 Anexo U
155
velho se mantém por todo o texto. Ao se observar as práticas discursivas, verificamos que
estão presentes tanto a descrição do local como um espaço degradação humana e social e de
uma área que ao ser revitaliza terá destino a classe média.
Assim, podemos intuir que a questão humanitária fica para o segundo plano.
Justamente por essa prática, o fala é crítica em relação à revitalização da área, pois tende a se
preocupar mais com o valor de troca (especulação imobiliária e privatização) do que com o
valor de uso da região (políticas públicas), como mostrado no trecho:
Enquanto a transformação do entorno prometida pela prefeitura não se
concretiza, o funcionário de uma indústria cosmética, Hugo Maritan e sua
mãe, a dona de casa Maria Dercília, capricharam no conforto de sua
quitinete no San Fernando, com móveis novos e TV de tela plana. “A
decoração custou 12000 reais”, conta ela. Durante o dia, são obrigados a
suportar o mau cheiro da sujeira deixada pelos viciados. Perambulando pelas
calçadas enrolados em cobertores, muitos deles parecem inofensivos e, até
agora, convivem em paz com os novos vizinhos. (CIMINO, 2011, p. 48)
Nesta reportagem, muito mais que identificarmos a representação social do morador
de rua, que no caso é o dependente químico, ou o viciado ou ‘noia’ como colocados pelas
vozes do texto, é importante olharmos para a representação do espaço público e como uma
política de revitalização do centro é vista sob um olhar elitista.
Essa ideologia, que chamaremos de classe média, segue a uma lógica liberal, pois a
matéria enfatiza que alguns dos novos proprietários buscam os empreendimentos da área para
investimentos e não necessariamente moradia. No entanto, a representação da cidade como
espaço dessa abordagem liberal, é colocada em xeque. A matéria coloca a classe média como
intrusa naquele espaço, isso é atrelado a uma produção de sentido de desesperança em relação
às melhorias da região. Chama a atenção o trecho final da reportagem:
Em um lugar onde o poder público é pródigo apenas em fazer promessas,
esses tipo de situação mostra quanto os pioneiros do San Francisco ainda se
sentem como intrusos na área ocupadas há tempos pelos viciados. (CIMINO,
2011, p. 48)
Quadro 26: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo A vida no abrigo da
Cracolândia70
Título Autor Vozes Enunciativas Valor(es)-
notícia
Representação
do morador de
rua
A vida no abrigo
da Cracolândia
Maurício Xavier Moradores;
Psiquiatra Ronaldo
Laranjeiras;
Reabilitação de
dependentes
químicos e
Ex-viciados
70 Quadro elaborado pelo autor.
156
Agentes
comunitários;
Secretária da
SMADS, Alda
Marco Antônio.
política de
albergues
O texto A vida no abrigo da Cracolândia71
(XAVIER, 2012) fala sobre o abrigo
Complexo Prates, intitulado como “o primeiro centro de tratamento de viciados que reúne
albergue e clínica no mesmo espaço. Tem como enunciadores o jornalista, os atendidos pelo
centro (os quais são brevemente apresentados nos primeiros trechos do texto), o psiquiatra
responsável, além de agentes comunitários.
Uma das ênfases do discurso é mostrar como o local dispõe de espaço de sobra para
atendimento, isso é convocado por meio de dados em uma tabela intitulada como “Espaço de
sobra”.Esse discurso eufórico em relação às ações do governo em relação aos moradores em
situação e albergues não é exclusividade deste texto, em diversos textos analisados sobre
abrigos para sem-teto, o sempre mostra que governo “está fazendo a sua parte”.
Por meio de uma prática discursiva exalta a Operação Cracolândia, como algo
importante para a recuperação das pessoas, ainda que com falhas:
Desde a ocupação policial na região, o ritmo de abordagens ficou mais
intenso. De janeiro para cá (a matéria foi publicada em 9 de maio de 2012), a
média diária foi de 298, 50% maior que a do período anterior à operação. O
que ainda não resolve o problema, pois os usuários, antes concentrados nos
mesmos pontos, espalharam-se para outras áreas. (XAVIER, 2012)
A representação do morador é exclusivamente o dependente químico que deixou-se
recuperar, pois dentre as vozes, há depoimentos de internos que falam de suas vidas. Como
produção de sentidos da matéria fica a impressão de quem quer, é ajudado, pois o governo
indispõe e não mede esforços para isso.
Quadro 27: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Em quem o frio dói mais 72
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Em quem o frio
dói mais
Edison Veiga Autor;
Morador de rua;
Assistente social;
Secretário da
SMADS, Floriano
Pesaro
Frio nas ruas nos
meses de inverno Rebelde;
Sujeito
lançado à
própria sorte.
71 Anexo V
72 Quadro elaborado pelo autor.
157
No mês de agosto, com as temperaturas mais baixas por conta do inverno no
hemisfério sul, o jornalismo que faz a cobertura das cidades, costuma abordar pautas sobre o
frio nas ruas. Em 2007, a VEJA São Paulo, apontou o tema na Em quem o frio dói mais73
(VEIGA, 2007), que se inicia narrando a negação de um morador de rua em ser encaminhado
a um albergue em dia de frio.
A produção de sentido dos discursos jornalísticos presentes na matéria aponta para a
dificuldade em se enviar as pessoas ao albergue nas noites de frio. Na enunciação do
jornalista Edison Veiga, percebemos que o morador de rua está representado como uma
pessoa que apesar de estar em situações precárias, prefere continuar nela, lançado a própria
sorte.
O texto ainda traz números da operação da Central de Atendimento Permanente da
Prefeitura (Cape), assim como da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social (SMADS). Ao tomar dados como base argumentativa, o texto produz um sentido de
que as instâncias governamentais estão quites com as obrigações público, ou seja, “fazendo
sua parte”, e que o mais difícil mesmo é convencer o morador de rua a ir pro albergue nos
dias frios. Como nas palavras de um dos enunciadores do texto, a coordenadora da Cape,
Grasiella Fernandes Basso. “A cada quatro pessoas abordadas, só uma aceita ir” ou “Não
podemos forçar ninguém a ir”.
Em linhas gerais, analisando as vozes e as condições de produção do texto, além da
interdiscursividade com o texto de Ocas”, Antes que o frio doa (NICOMEDES, 2009),
percebe-se que o sentido produzido no texto é o de que o morador de rua é principal culpado
por passar frio. No entanto, há um silenciamento sobre o porque ele não quer ir ao albergue.
Esse silenciamento deve ser entendido, dentro da Análise de Discurso, como uma indicação
de que as vozes do povo da rua não é relevante nesta discussão.
Assim, o morador em situação de rua é caracterizado como teimoso, enquanto a
atuação da SMADS e Cape, como alternativas seguras para se sair da rua com dignidade.
Como apontado nas palavras do secretário municipal de Desenvolvimento Social, a época,
Floriano Pesaro, que fogem bastante do tema do frio: “Metade de nossos albergues oferece
cursos de qualificação profissional”.
73 Anexo W
158
Quadro 28:Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez mortes em quatro dias74
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação
do morador de
rua
Dez mortes em
quatro dias
Daniel Salles Autor;
Vendedor da região
dos crimes;
PM.
Assassinatos de
moradores de rua
Vítimas da
violência
Além do sofrimento causado pelo frio, um dos grandes medos da população em
situação de rua é a violência urbana. A reportagem Dez mortes em quatro dias75
(SALLES,
2010), publicada em 19 de maio de 2010, traz para VEJA São Paulo a questão da violência
contra moradores de rua. Dessa vez, o sem-teto no veículo sai de sua representação como
elemento de degradação da cidade ou marginal, para ser apresentado como vítima.
Vale mencionar que essa representação é muito mais pautada pelo valor notícia do
assunto – no caso a criminalidade e a violência –, do que por parte do ponto de vista
ideológico do veículo em posicionar diante de um quadro de intolerância com as minorias.
Chegamos a essa observação acima, pois a matéria além de noticiar o assassinato de
pessoas que não são sem-teto, não coloca essa população como voz protagonista da
reportagem, nem dá o destaque esperado. Prova disso ainda é a linha-fina que fala de
assassinatos sob um aspecto bem genérico, sem sequer mencionar o povo da rua.
Dentre as vozes enunciativas que podemos destacar, além do jornalista Daniel Salles,
temos um vendedor da região e um policial militar. Apesar de compreendermos uma
produção de sentido na qual o morador de rua é apresentado como protagonista e como
vítima, a sequência do texto enfatiza a questão da segurança pública deixando o assunto da
violência contra a população de rua para o segundo plano.
O vendedor Orlanar Mendes, que trabalha próximo a cena do crime, narra como os
moradores de rua foram vítimas. “Eles sempre pediam água e para trocar o dinheiro
arrecadado, mas jamais fizeram mal a ninguém”. O tom de mistério das mortes coexiste com
o medo da população em relação à violência. Quanto ao ocorrido, há hipóteses para as mortes,
ou comandadas por moradores e ou por uma mulher que teria tido sua bolsa roubada por um
dos moradores.
Apesar dessa criminalização de um suposto morador, o discurso jornalístico não se
posiciona de modo a ser marcado por um procedimento de higienização. Nesta oportunidade,
há uma busca por isenção, e mesmo em relação aos moradores de rua, não se posiciona.
74 Quadro elaborado pelo autor.
75 Anexo X
159
Assim, podemos considerar que a apresentação do morador de rua neste texto é a de vítima.
Esse sentido é produzido pela habilidade do jornalista que consegue fazer de sua isenção a
maior virtude no texto.
Quadro 29: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Estrangeiros sem teto 76
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Estrangeiros sem
teto
Cláudia Jordão Jornalista;
Personagens
estrangeiros.
Estrangeiros em
situação de rua Trabalhador;
Limpo;
Vítimas da
crise financeira.
Em um exercício de interdiscursividade com o texto “Não tinha futuro, só trabalho”
(BARROS ET AL., 2006) (já analisado), iremos agora analisar a reportagem da revista VEJA
São Paulo de 2 de maio de 2012, intitulada Estrangeiros sem teto (JORDÃO, 2012)77
, sobre
pessoas de outras nacionalidade que moram nas ruas de São Paulo. Ela traz depoimentos de
três homens moradores de rua o italiano Daniele Carbone, de 37 anos; o canadense Ron
Stephen White, de 67 anos; e o japonês Kiyoshi Ishimaru, de 79 anos.
Quanto aos aspectos descritivos segundo a matéria, Daniele veio ao Brasil, no início
de 2011, para tentar se livrar das drogas e sobrevivia vendendo produtos falsificados. Acabou
caindo nas drogas, quando descobriu a Cracolândia, mas conseguiu se reabilitar, citando que
foi com ajuda das palavras do Evangelho. Entre idas e vindas das drogas, na ocasião da
matéria morava em um albergue da prefeitura e buscava sair de lá e alugar um apartamento.
Segue parte de seu depoimento:
Há um ano e meio, quando vim da Itália, eu era um homem em busca da
sobrevivência. Pouco antes da viagem, havia passado quatro meses numa
clínica de reabilitação no meu país. Saí de lá e voltei a injetar cocaína e
heroína na veia. Para tentar me salvar, resolvi mudar de ares. Desembarquei
em Cumbica e me hospedei no hotel Marabá, na República. Na bagagem,
trouxe um remédio para aliviar as crises de abstinência. Mas a disposição de
levar o tratamento a sério acabou quando conheci a Cracolândia.
Frequentando a região, cheguei ao ponto mais baixo da minha vida. [...]
Vestia roupas de grife, dirigia carros bacanas e frequentava restaurantes
badalados, até ter de vender tudo por causa do vício. Quando cheguei a São
Paulo, trouxe comigo alguns produtos falsificados, comprei outros na
Galeria Pagé e enganava os clientes. A condição de italiano também me
ajudou bastante. Parava as pessoas na rua, contando a história de que, no
caminho para o aeroporto, havia sido assaltado e, por isso, precisava de
auxílio para retornar à Europa. Como o brasileiro é generoso, muitos caíram
76 Quadro elaborado pelo autor.
77 Anexo Y.
160
no conto. Eu pegava o dinheiro e comprava um, dois, até três papelotes de
crack. As pedras acabaram comigo. Cheguei a um ponto em que não me
restavam forças para trabalhar e passei a morar na rua. [...] Estou limpo há
um ano. Nesse período, sofri apenas uma recaída. Dias atrás, consegui um
trabalho como garçom. Deixei de ligar tanto para a vaidade e para as coisas
materiais. Sou feliz? Não tenho nada, mas estou em paz. Não pretendo voltar
para a Itália, pois minha família desconhece a situação. Daqui a dois meses
quero alugar um apartamento e sair do abrigo da prefeitura.
O canadense Ron Stephen já morava no Brasil desde 1996 e tinha uma vida normal até
enfrentar problemas financeiros. Pela sua idade teve dificuldades em encontrar um emprego.
Faz questão de andar limpo, dá aulas de inglês aos amigos e também mora em um albergue.
Segue parte de seu depoimento:
Os três primeiros meses do ano passado foram os mais difíceis da minha
vida. Eu já morava no Brasil quando comecei a enfrentar grandes problemas
financeiros. É praticamente impossível um homem da minha idade arrumar
emprego em São Paulo. [...] Acabei indo parar na rua. Para sobreviver,
durante o dia comia os restos de comida deixados nas praças de alimentação
de shoppings. É impressionante como o brasileiro desperdiça coisas. Bastava
esperar um pouco nesses locais para colocar a mão em pratos inteiros de
sushi, por exemplo. À noite, aproveitando que sou idoso e não pago
passagem, entrava num ônibus em direção a Cumbica. Dormia no aeroporto.
Sempre fiz questão de andar limpo para não ser enxotado dos lugares. Com
uma parte do dinheiro das esmolas que recebia, comprava sabonetes para
tomar banho direito. [...] Depois de um tempo vivendo assim, fiquei fraco e a
cabeça começou a falhar. Até que uma noite eu vagava próximo do Hospital
São Paulo (na Vila Clementino), quando um PM me encaminhou para o
médico. De lá, fui levado para o albergue onde vivo até hoje, na Cidade
Ademar. As pessoas são cuidadosas, como e durmo muito bem. Não penso
em voltar para a minha terra: tenho apenas um irmão por lá, além de não
gostar nada de frio. Sou chef de cozinha, estudei em uma escola de culinária
em Nova York e trabalhei em hotéis como o Fairmont Royal Park, em
Toronto. [...] Meu sonho é trabalhar para a comitiva canadense na Copa do
Mundo e na Olimpíada no Brasil.
Kiyoshi, a exemplo dos outros dois, também vive em albergues e os motivos que os
levaram para a rua foram também financeiros, o Plano Collor e um golpe de um contador são
alguns dos agravantes dessa situação. Sem dinheiro passou a vender produtos de limpeza
buscou um albergue para viver. Veja o depoimento
Quando terminou meu contrato de trabalho numa lavoura em São Joaquim,
Santa Catarina, eu não quis voltar ao Japão. Havia chegado ao Brasil
sozinho, aos 22 anos, em 8 de novembro de 1955. Deixei a província de
Yamaguchi, onde nasci, peguei um navio e desembarquei em Santos. Eu e
um amigo resolvemos juntar as nossas economias e investir em dois
negócios: uma fábrica de detergente em Santo Amaro, aqui na cidade, e um
sítio para policultura em Santo Antônio da Platina, no norte do Paraná.
Enquanto eu trabalhava em São Paulo, meu sócio ficava no sul. Todo o
dinheiro da fábrica ia para o campo. [...] Depois disso, vendi a empresa e me
mudei para o Paraná. Tudo ia bem, até que o Plano Collor bloqueou as
161
nossas economias. Naquele tempo, tínhamos 300 alqueires e sessenta
funcionários. Peguei um empréstimo atrás do outro para tentar manter os
negócios, mas acabamos quebrando. Voltei para São Paulo em 2000, aluguei
uma casa no bairro da Aclimação e comecei a vender produtos de limpeza.
Dois anos depois, a situação piorou ainda mais. Soube que havia levado um
golpe do contador que contratei para fechar minha empresa. Ele embolsou o
dinheiro, não pagou os impostos devidos pela firma e sumiu. Fiquei com o
nome sujo e uma dívida enorme. Sem dinheiro para manter uma casa,
procurei um albergue. Desde então, moro num deles e nunca consegui pagar
o que devo. Vivo de uma aposentadoria especial de um salário mínimo e da
venda de produtos de limpeza, que me rende cerca de 300 reais por mês.
Descritas as histórias de vida das personagens, vamos analisá-las apontado as questões
de identidade e diferença de Woodward (2009). Em um cenário que as nacionalidades
estrangeiras predominantes são a haitiana e a boliviana, seguido de outros países da América
Latina78
, esse recorte da revista soa superficial para representar e identificar a população de
rua. No entanto, podemos chegar a conclusões interessantes sobre a identidade imaginada do
morador de rua na VEJA São Paulo.
Do ponto de vista racial esses moradores não representam o morador de rua da cidade,
visto que segundo o Censo e caracterização socioeconômica da População em situação de rua
na municipalidade de São Paulo (2011) cerca de 60% dessa população é considerada negra ou
parda. Estaríamos falando da diferença, então? Talvez.
Também é interessante notar que as três nacionalidades utilizadas de exemplo são de
países que possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) superior ao do Brasil79
(0,718). O Canadá está na sexta colocação com índice de 0,908; o Japão na décima segunda
posição com 0,901; e a Itália em 24ª (0,874).
Todos os três possuem emprego, embora o italiano viva de golpes, ou seja, brancos,
trabalhadores, mas que por algum descaminho foram levados a morar na rua e atualmente
todos são moradores de abrigos da prefeitura. Essa é a representação do estrangeiro morador
de rua que está significada nas páginas da revista.
A partir dsses aspectos, podemos destacar as seguintes procedimentos discursivos: a
reabilitação das drogas, limpeza, terceira idade, superação, trabalho, e talvez o mais
significativo a ideia de que esses cidadãos estrangeiros estão nesta situação por crise
financeira e não por conta da miséria.
78 Segundo dados do Censo da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo.
79 Ranking disponível em
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH_global_2011.aspx?indiceAccordion=1&li=li_Ranking2011.
Acesso em 10 de julho de 2013.
162
Quadro 30: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Crianças de rua 80
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação
do morador de
rua
Crianças de rua Ivan Angelo Ivan Angelo;
Interlocutores.
Crianças
moradoras de rua
Carente, mas livre
Já o texto Crianças de rua81
(ANGELO, 2006) é uma crônica do jornalista e
romancista, Ivan Angelo, que escreve na última página da revista a cada quinze dias, desde
1999. A crônica publicada, logo no início do ano de 2006, 1º de fevereiro, exprime sua visão
sobre crianças em situação de risco social.
Angelo contextualiza sua crônica espacialmente em uma reunião social com amigos.
Como elemento que o motiva a refletir sobre o tema, cita a enunciação de um comentário em
uma mesa ao lado, que contamina sua mesa. Trata-se do número de crianças de rua em São
Paulo. Esse dado motivo questionamentos de seus companheiros de mesa que enunciam suas
dúvidas sobre o tema:
O número se refere só às crianças que moram nas ruas? E as crianças de rua
da periferia, foram contadas? E aquelas que a gente vê, ao passar de carro
por bairros afastados, empinando pipa na hora da escola, jogando bola –
contaram? Ou será que só contaram as que perambulam pelo centro e por
bairros próximos pedindo dinheiro, furtando e cheirando cola? Contaram
aquelas que são levadas por mulheres adultas para pedir dinheiro, ou só as
que vivem soltas, por si? E aquelas que buscam nas ruas um magro dinheiro,
encenando penosos shows de malabares, vendendo pacotinhos de bala,
lavando vidros dos carros, catando latinhas, esmolando – contaram essas?
Ou essas não são de rua? (ANGELO, 2006, p. 126)
Embora o trecho acima reflita uma dúvida em relação aos métodos de contagem da
população de rua, é interessante apontarmos para o sentido que o discurso produz. A
estereotipação da criança de rua sob a representação do marginal. Em outros trechos do texto,
comentários extremamente preconceituosos que dão conta inclusive da esterilização dos pais,
justificam essa ideia.
Mesmo sendo uma crônica e o enunciado acima expressar o discurso de outrem, é
importante pensarmos que Angelo se apropria da fala de outro enunciador e, é a partir de seu
ponto de vista, que o sentido é produzido. Há ainda de se considerar que esse sentido
produzido silencia outros tipos de representações que a criança pode ter, por exemplo, a
criança carente.
80 Quadro elaborado pelo autor.
81 Anexo Z
163
Se analisarmos até aqui somente, certamente concluiríamos, que a crônica produz um
sentido exclusivamente negativo em relação às crianças. No entanto, em um segundo
momento do texto, o autor, com habilidade discursiva, relembra dos tempos em que era
criança e via crianças do reformatório para arrancar o mato que crescia no paralelepípedo das
ruas. Do outro lado portão, Angelo dava água aos garotos, mas era reprimido pela mãe, que
não permita conversas compridas.
Angelo (2006) fecha o texto da seguinte maneira:
Não sei se era um bom sistema, nada sei dos resultados nem do alcance. Meu
mundo não passava da esquina. Os meninos pareciam tranquilos, assumindo
a obrigação. Eu também não gostava de muita coisa que tinha de fazer, mas
fazia. O mundo era maior, o problema era menor.
Com essas palavras o autor apresenta outra representação dessa criança, que agora é
carente, mas ainda assim é livre. Ao contrário das crianças de hoje e das crianças “do outro
lado do portão”.
Quadro 31: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O muro do Center 382
Título Autores Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
O muro do
Center 3
Edison Veiga,
Regina
Cazzamatta e
Roberto Gerosa
Autores;
Administração do
Shopping Center;
Arquiteto Ruy
Otakhe.
Instalação de
tapumes de
madeira para
conter que
moradores de rua
durmam sob
marquise de
shopping
Problema;
Mendigo.
A partir de agora iremos abordar as análises que integram aquela ancoragem de
assuntos a ligados habitação, cidadania, direitos e políticas públicas. Como na pequena nota O
muro do Center 383
(VEIGA, CAZZAMATTA e GEROSA, 2006) que apresenta a enunciação
de três vozes sobre o fato de moradores de rua dormirem sob a marquise do shopping center
localizado na avenida Paulista. Para evitar isso, a administração do centro de compras instala
tapumes de madeira no período noturno, o fato que possui o valor-notícia na matéria.
Assim, as vozes da administração e dos jornalistas trazem um discurso de proteção
para o local da ação dos mendigos (representação do morador de rua), assim o discurso é
higienizador, pois se baseia na exclusão dessa população do convívio.
82 Quadro elaborado pelo autor.
83 Anexo AA
164
Curiosamente, o arquiteto responsável pela obra, Ruy Ohtake surge como enunciador
na nota e defende, sob o ponto de vista arquitetônico e urbanístico mais idealista, permitindo o
acesso o dia todo. Diz o enunciador: “É preciso encontrar uma solução que não comprometa o
diálogo com a rua.”, uma alusão a o diálogo entre o espaço privado e o espaço público. Esse é
só um dos exemplos analisados de fatos relacionados à expulsão da população de rua dessa
região da cidade (próximo a avenida Paulista, a reportagem de Ocas” E depois da rampa?
(FARIA, 2006), já analisada, trata também dessa questão e inclusive se localiza muito
próximo ao shopping.
Quadro 32: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O cortiço na Oscar Freire84
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
O cortiço na
Oscar Freire
Maria Paola
Salvo Moradores de rua;
Autores;
Dono de
apartamentos;
Representante dos
outros proprietários
Formação de
cortiço em bairro
nobre
Fora da lei;
Marginal;
Corpo diferente.
Também na mesma região e com a mesma temática temos O cortiço na Oscar Freire85
(SALVO, 2007). O título da matéria, de maneira sucinta sintetiza a ideia do valor-notícia, pois
um cortiço na região do bairro dos Jardins, mais precisamente na rua conhecida por ter lojas
de grifes internacionais, não é uma situação esperada.
A reportagem conta a história de um prédio localizado na esquina das ruas Oscar
Freire e Peixoto Gomide, o qual o proprietário de seis das nove unidades, Álvaro Moreira,
permitiu que os sem-teto vivam lá. Os donos das outras três unidades o acusam de fazer isso
para que ocorra a degradação do espaço. Estando os apartamentos desvalorizados, Moreira
poderia comprar o restante dos apartamentos dos outros proprietários a um preço menor e
negociá-los no mercado imobiliário.
Moreira aparece como um dos enunciadores do texto e se defende argumentando ser
uma forma de evitar que os apartamentos sejam invadidos.
A questão que nos interessa corresponde à representação do morador de rua. Em
ambas as falas, tanto de Moreira, como de seus oponentes, essa população é colocada como
um corpo diferente àquela situação – os Jardins – e, assim sendo, degrada o espaço e é alguém
a ser evitado.
84 Quadro elaborado pelo autor
85 Anexo AB
165
Percebemos que na fala de Moreira, os interesses da população não são defendidos, ao
contrário essa população é apenas instrumental para ações posteriores. Vale ainda destacar
que logo no início, o texto faz uma comparação entre os bairros de Itaquera, na Zona Leste da
cidade, com os Jardins, obviamente valorizando o segundo. O discurso ainda se utiliza de um
procedimento ideológico e preconceituoso na expressão: “Não, não foi mais uma invasão de
algum MST (Movimento Sem-Terra) ubarno”.
Dentre as demais vozes que enunciam no texto, temos a gerente de um restaurante da
região. Ela afirma que os moradores fazem algazarras a noite e pede comida de graça,
constrangendo sua clientela. O discurso da revista ainda é preconceituoso ao abordar as
enunciações dos sem-teto instalados no prédio, a saber:
Hoje, sete famílias espalham seus colchões surrados e mudas de roupas pelos
oito cômodos do apartamento 32, com paredes pichadas e manchadas pela
sujeira. Não há chuveiro (apenas um de cano de onde jorra água) nem
mobília, mas os novos moradores não querem outra vida. “Adoro os Jardins.
Aqui é cheio de gente bonita e estou perto do meu trabalho”, comemora
Tiago Aparecido da Silva, guardador de carros em frente ao Suplicy Cafés
Especiais na Alameda Lorena. “Para que não tem nada, estamos no lucro”,
diz o catador Davi, enquanto empurra sua carrocinha pela Oscar Freire.
O trecho acima explora a criação da imagem da sujeira e das condições mínimas de
sobrevivência, no entanto coloca o sem-teto como alguém que qualquer situação é melhor da
que já possui. Irônica, a jornalista enunciadora, Maria Paola de Salvo, atribui uma memória
discursiva da elite, na fala do guardador de carros, Tiago Aparecido da Silva – o qual,
estranhamente, tem seu local de trabalho descrito. Por fim, a jornalista para produzir um efeito
de menosprezo, atribui o diminutivo à carroça de Davi dos Santos. Entretanto, se pegarmos o
termo fora do contexto sabemos que ‘carrocinha’ é o famoso carro do Centro de Zoonoses que
pega animais na rua.
A reportagem mostra que a questão da habitação para a população de rua na cidade é
um tabu. Nas próximas três análises, iremos abordar essa questão, realizando um cruzamento
com políticas públicas, direitos e cidadania.
Quadro 33: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo 1sem-teto=350 reais (por mês)86
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação
do morador de
rua
1sem-teto=350
reais (por mês)
Edison Veiga Autor;
Moradores de rua;
Custo da
assistência social
Vadio (não
trabalhador)
86 Quadro elaborado pelo autor.
166
Secretário da
SMADS
De forma direta, a reportagem intitulada 1sem-teto=350 reais (por mês)87
(2007),
escrita pelo jornalista Edison Veiga, traz a sua produção de sentido logo na linha-fina da
reportagem “Quase um salário mínimo. Quanto cada morador de rua custa à prefeitura”.
Esse é o tom do discurso que por toda a matéria, utiliza de um procedimento crítico
para falar dos valores gastos em assistência social da prefeitura com o morador de rua. A
partir do trecho, temos uma comparação com o salário mínimo, ou seja, se a pessoa estivesse
trabalhando estaria produzindo esse valor e não dando gastos ao governo. Ou seja, a
representação do morador de rua é o do indivíduo que além de não produzir, ainda gera gastos
ao dinheiro do contribuinte.
Como é recorrente em muitas reportagens do veículo, verificamos a
interdiscursividade com os dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social – SMADS, que buscam corroborar as afirmações explicitadas.
A matéria mostra os albergues que mais custam à prefeitura, em uma crítica explícita à
política de assistência social do município. Há até uma tabela que mostra os cinco mais caros.
Como já falamos, o sentido produzido é que trabalhando essas pessoas não dariam esses
custos. Ao descrever uma das casas de acolhimento, o jornalista qualifica-o da seguinte
forma:
No topo do ranking está o Lar Transitório Batuíra, na Bela Vista.
Mantenedor do espaço, o Grupo Espírita Batuíra recebe da prefeitura 13 340
reais por mês para disponibilizar as dez vagas da casa, quem nem parece um
albergue, diga-se. No portão, há um interfone e uma câmera de segurança. O
visual, limpo, lembra uma clínica médica particular, com paredes e pisos
brancos. Na recepção, há um computador com monitor de tela plana,
cadeiras estofadas e um funcionário solícito. (VEIGA, 2007)
As opiniões emitidas pelo jornalista no texto, dão a significar um certo espanto que
serviços públicos possam ser de qualidade, traço de uma ideologia liberal de esvaziamento do
estado, presente na empresa que dirige a publicação.
Mas apesar disso, há também uma expectativa quanto às características desses locais.
Isso é expresso no seguinte trecho:
Com orçamento proporcionalmente parecido (115 185 reais para 250 vagas),
o Vivenda da Cidadania, no Pari é o único albergue nos moldes tradicionais
que figura entre os cinco mais caros da cidade. A justificativa está na ponta
da língua da coordenadora, a assistente social Márcia Martins Miranda:
87 Anexo AC
167
“Como temos enfermaria, mais da metade dos que são trazidos tem algum
problema de saúde”. (VEIGA, 2007)
Ao final do texto, mais uma voz é trazida para mobilizar mais uma vez o sentido
produzido de que o gasto de dinheiro público está sendo desperdiçado. Do secretário Floriano
Pesaro:
Floriano Pesaro não acredita que haja abusos nos valores pagos às entidades.
“O repasse se diferencia porque há peculiaridades em cada licitação”, diz
ele. “Além de os serviços oferecidos variarem, há entidades que ocupam
imóveis alugados, outras que estão em prédios próprios e até as que se
instalaram em espaços públicos cedidos pela prefeitura.” (VEIGA, 2007)
Quando o jornalista coloca que o secretário não acredita que haja abusos, está
implícito que a pergunta feita a Pesaro foi se havia abuso nos valores. Este questionamento,
embora silenciado representa muito do sentido principal da reportagem, de que anda se
investindo muito dinheiro na assistência social.
A assistência social é sempre tratada de forma problematizada na revista VEJA São
Paulo. O próximo exemplo expressa essa condição ao continuar falando da política de
albergues para a cidade.
Quadro 34: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Uma noite no albergue 88
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
Uma noite no
albergue
Pedro Henrique
Araújo Moradores de rua;
Jornalista;
Secretária da
SMADS, Alda
Marco Antônio.
Política de
albergues
Resistente ou
rebelde
A resistência do morador em situação de rua em relação a sua remoção a centro de
acolhidas ou albergues é também uma representação para essa população presente na
reportagem de 20 de julho de 2011, intitulada Uma noite no albergue89
(ARAÚJO, 2011).
Mais uma vez o assunto é tratado diante de um contexto de frio pela publicação.
Uma reunião social da população de rua marca o início do texto, que por meio de
práticas descritivas narra o quanto aquilo incomoda ao público. São descritas desde as
vestimentas ao odor da situação. “O cheiro da bebida, que se misturava a outros odores
88 Quadro elaborado pelo autor.
89 Anexo AD
168
desagradáveis da sujeira acumulada na calçada, não lhes causava nenhum incomodo”.
(ARAÚJO, 2011).
Como na matéria Em quem o frio dói mais (VEIGA, 2007), de quatro anos antes, há a
representação do morador de rua como um rebelde que rejeita em ser acolhido e encaminhado
a um albergue. Fato esse que nos supõe a considerar uma interdiscursividade entre as duas
reportagens.
Essa recusa é oriunda da imposição de regras às quais o povo da rua estará sujeito em
um albergue, visto que na rua ele já perdeu todas essas referências de higiene, horário para
alimentação, dormir, etc. (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992).
Tomando isso como pretexto, há uma espécie de propaganda institucional da política
de albergues do município, mostrando o quanto a prefeitura, por meio da SMADS e Cape atua
junto à população de rua. Como na passagem abaixo, que ressalta euforicamente as ações:
Depois de um percurso de dez minutos, a Kombi estacionou na porta de um
prédio de dois andares, com fachada azul, no Brás, na Zona Leste. Trata-se
do Centro de Acolhimento Emergencial Alcântara Machado, o mais recente
endereço da rede de 55 abrigos mantidos pela administração municipal.
(ARAÚJO, 2011)
Valorizando o espaço, a reportagem ainda descreve em detalhes o cardápio e a
ambiência do local. Chegando a inclusive a expor dois estrangeiros moradores de rua,
presentes. Eles são haitianos e vieram ao Brasil após o terremoto de 2010 na ilha do caribe.
Outra voz presente ao contexto é o da então secretária Alda Marco Antônio, que fala
sobre as características do albergue. “Ele é destinado a pessoas que precisam de um pronto
atendimento”.
Sobre a relação, moradores em situação de rua e albergues, o texto coloca:
No início da madrugada, quando os hóspedes foram se recolher, apenas nove
vagas dos dormitórios estavam ocupadas. Sobravam portanto 71.
Essa disponibilidade de leitos contrasta com a estimativa de que existam
atualmente 13000 moradores de rua na cidade. A prefeitura vem aumentando
seus investimentos para atender essas pessoas. Neste ano, o orçamento para
cuidar das pessoas abrigadas é de 102 milhões de reais, ou 20% a mais do
que o ano anterior. Há previsão de inauguração de mais três abrigos, na
capital até o fim deste mês. A rede tem capacidade para acolher 10000
pessoas por noite. Em tese, a maior parte dos sem-teto não precisaria passar
a madrugada ao relento. Mas o problema é complexo. Existe uma resistência
a sair das ruas, principalmente porque boa parte dessa população é viciada
em drogas ou tem algum comprometimento de saúde mental. Com isso,
grande parte prefere viver na via pública para não seguir nenhum tipo de
regra. (ARAÚJO, 2011, p. 42)
169
Como mencionamos, o discurso jornalístico enfatiza a capacidade da política pública
de abrigar os moradores, que lançados à sua própria rebeldia se recusam. Preconceituoso o
discurso ainda o é ao apontar que boa parte da população de rua é dependente química – com
a utilização da expressão viciado –, ou possuidora de algum problema mental. O texto
generaliza, sem apontar dados, assim sua produção de sentido é a de que, a prefeitura faz sua
parte, porém o morador de rua é rebelde, viciado e com problemas mentais.
Quadro 35: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo “Não fujo de uma polêmica”90
Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações
do morador de
rua
“Não fujo de
uma polêmica”
Daniel
Bergamasco Jornalista;
Promotor Maurício
Lopes;
Secretária da
SMADS, Alda
Marco Antônio;
Advogado Luis
Carlos Tucho.
Declaração de
promotor sobre
população que é
contra o sem-teto
Cidadão de
direitos;
Opositor à
classe média.
O último exemplo que iremos analisar também trata das políticas de albergues da cidade. O
texto “Não fujo de uma polêmica”91
(BERGAMASCO, 2011) é um perfil do promotor
Maurício Lopes. A primeira vista, o tema parece não ter relação com o tema morador de rua,
no entanto ele será analisado, pois o promotor ficou conhecido ao negar o recebimento de um
abaixo-assinado dos moradores do bairro de Pinheiros, com 1104 nomes, que não desejavam a
instalação de um albergue na Rua Cardeal Arco Verde, esse foi o fato que gerou interesse
público.
Além de recusar o documento, o promotor o encaminhou à Delegacia de Crimes
Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), com a seguinte declaração. “Tal demonstração de
insensibilidade é de provocar inveja a qualquer higienista social do Terceiro Reich”,
(BERGAMASCO, 2011, p. 39)
A partir dessa explanação do fato, vamos à análise do texto. A revista tratou o assunto
da seguinte forma em sua linha-fina: “Exagerado e com o pavio curto, o promotor Maurício
Lopes escorrega de novo ao comparar moradores de Pinheiros a nazistas”
Observando a expressão “escorrega de novo”, consideramos que, no perfil, o
magistrado é colocado como alguém polêmico e que cerceia o direito da sociedade reclamar,
90 Quadro elaborado pelo autor.
91 Anexo AE
170
como exposto no texto: “No meio jurídico, enquanto isso, a discussão é outra: o promotor não
estaria cerceando o direito de reclamar?” (BERGAMASCO, 2011, p. 39)
Ao expor a voz do promotor, o texto ainda enuncia comentários e o faz parecer como
uma pessoa debochada, com expressões como “Abrindo um sorriso”, “Com um reluzente
brinquinho e um toque de celular simula um assovio fantasmagórico, não costuma passar
despercebido”, ou ainda como no seguinte trecho:
Uma de suas características é produzir frases de efeito. “Tratam os pobres
como se fossem pombos”, diz. “Nesse caso da Cardeal, me chocou a falta de
pudor demonstrar a discriminação”, continua, abrindo em seguida um sorriso
ao mostrar uma dezena de e-mails de cidadãos (cerca de 1% dos que
firmaram o abaixo-assinado) em apoio a suas declarações.
(BERGAMASCO, 2011, p. 39)
Quanto às práticas discursivas utilizadas no trecho acima, duas nos chamam a
atenção. A exploração da imagem do promotor em criar frases de efeito e a comparação do
número de pessoas que a apoiam suas ações, muito menor que os abaixo-assinados.
As representações do morador de rua na reportagem são marcadas por expor um
cidadão detentor de direitos, mas que está em oposição à classe média. Isso está presente no
discurso de Lopes, quando este fala sobre a operação Cracolândia. “Essas pessoas não podem
simplesmente ser varridas de lá” ou no caso do metrô em Higienópolis, “A burguesia anda
muito preocupada com a presença dos pobres”.
Vale ressaltar o fato de o texto produz um sentido de polarização, entre quem
supostamente defende o interesse das minorias versus a classe média. O texto da revista Veja
SP, além de colocar o promotor como alguém polêmico, ainda deixa dúvidas sobre sua
integridade de caráter, relacionada à acusação de plágio de sua tese de livre-docência ou o
fato de ter pedido exame de alfabetização ao então deputado Tiririca. Assim, a revista
posiciona-se como questionadora não da ação dos moradores, mas da reação do promotor.
O que fica deste texto é que assim, como mencionado sobre o Padre Júlio Lancellotti
na matéria Ele não foge da briga (2008), é que nas páginas da revista VEJA São Paulo a
apresentação de personagens que, por alguma razão, defenda o interesse das minorias – em
ambos os casos o povo da rua –, é feita de forma a desmoralizar as personagens e, assim,
desprestigiar a causa que visa a defesa dos direitos de cidadão para o povo da rua.
171
4.4. Síntese da análise: comparação das estratégias discursivas de OCAS” e VEJA São
Paulo
Após realizarmos as análises, chegamos no momento de sintetizá-las para comparar o
que encontramos nos dois veículos estudados. Começaremos por Ocas”, veículo no qual o
morador em situação de rua é geralmente representado como um cidadão, detentor de direitos,
e também trabalhador.
Essa evidência confirma uma expectativa que tínhamos em relação à pesquisa, dada as
condições de produção do discurso de Ocas”, pois a publicação tem como objetivo editorial
dar voz e defender o interesse da população sem-teto.
Tal representação do morador de rua em Ocas” faz consonância com os objetivos
editoriais da revista Ocas”: dar voz e defender o interesse da população sem-teto. Esses dois
objetivos evidenciam-se no corpus selecionado desta publicação. Nele há uma equiparação
muito clara entre textos jornalísticos dos gêneros informativo e opinativo. Podemos
considerar que os textos informativos dão voz a essa população, enquanto os opinativos
carregam opiniões a respeito da mesma.
Podemos dizer que, em Ocas”, os moradores de rua são representados como sujeitos e
não como indivíduos, na medida em que aparecem como enunciadores, ou seja, têm seu ponto
de vista apresentado nos textos da revista e em muitos casos são protagonistas das matérias.
Sendo uma publicação identificada com a causa do morador de rua, Ocas” mantem-se atenta
aos seus objetivos de “dar voz”.
Na revista Ocas”, há uma ambiguidade no modo de representar o morador de rua,
tanto ela o apresenta como cidadão detentor de direitos quanto como cidadão marginalizado,
ou seja, como alguém que teve seus direitos limitados ou encontra-se excluído da vida urbana.
Embora participe da dinâmica da vida urbana e ocupe espaço físico nas praças e em outros
lugares da cidade, o morador de rua não está contemplado nos projetos de prefeitura, nem nas
políticas sociais como um grupo para o qual se vislumbre transformação. As ações do
governo, seja municipal, estadual ou federal, são na sua maioria de caráter emergencial e
assistenciais, visando solucionar um problema imediato e de modo imediato. Essa
ambiguidade presente no modo de representar o morador de rua em Ocas” pode ser explicada
como uma manifestação dos valores hegemônicos da sociedade ou ainda como uma
manifestação da ideologia: embora a proposta editorial da publicação seja defender e fazer
falar o morador de rua, o lugar em que o sem-teto está fixado na memória social se impõe no
texto jornalístico. Neste caso, o jornalista não se descola das práticas discursivas e dos
172
sentidos já existentes e reproduz no seu texto argumentos “velhos” para uma publicação que
se propõe a ser uma voz dissonante.
Alguns órgãos oficiais têm suas enunciações presentes nos discursos jornalísticos de
Ocas”. Dentre eles, temos a PMSP, SMADS ou Cape. Em todos os casos de enunciação
analisados, as vozes dessas instituições aparecem extremamente contestadas nos discursos
jornalísticos da revistam como no texto E depois da rampa?92
(FARIA, 2006). Esta é uma
situação em que a publicação faz reivindicação ou revela as discrepâncias ou não diálogo
entre o morador de rua e as políticas públicas a ele destinadas.
Quanto à prática discursiva mais presente em Ocas” temos a predominância do
discurso polêmico. Segundo Orlandi (2009), nessa categoria a polissemia é controlada, o
referente é disputado pelos interlocutores, que presentes disputam os sentidos, como no final
da reportagem Vozes em busca de direitos93
, no qual é apresentado um debate entre a Aliança
pelo Centro Histórico e da Aliança pela Vida, organizações de interesses opostos.
Vale ressaltar que o discurso de Ocas” não é puramente polêmico, há também o
discurso lúdico no qual a polissemia “está aberta, o referente está presente como tal, sendo
que os interlocutores se expõem aos efeitos dessa presença inteiramente não regulando sua
relação com os sentidos” (ORLANDI, 2009, p. 86). O exemplo mais evidente por nós no qual
aparece o discurso lúdico é no artigo “Carroceiros e mendigos saem de cena”94
É,
especialmente, por meio, desses dois discursos que a publicação luta pela causa do homem da
rua. O sentido produzido é aquele que conversa com o seu público, ou, a população que
simpatiza com a população de rua.
Já em VEJA São Paulo, o morador em situação de rua é geralmente representado como
um corpo estranho, não normatizado em relação ao ambiente urbano, ou seja, é representado
como um marginal, no sentido de criminoso ou de viciado, por exemplo.
Ressaltamos que essa representação se dá com base em argumentos higienizadores e
elitistas, isso se deve ao fato de que a prática discursiva é autoritária e, portanto, o discurso é
autoritário (ORLANDI, 2009), no qual a produção de sentidos é contida, o referente é
apagado pela relação de linguagem que se estabelece e o locutor se coloca como agente
exclusivo. Ou seja, não se abre espaço para outro tipo de sentido produzido que não se baseie
na visão e no poder dos órgãos oficiais e seus representantes. Algo que nos chama a atenção é
92 Anexo C
93 Anexo N
94 Anexo A
173
o fato de não haver uma instância de diálogo entre o sem-teto e as instituições. Efetivamente,
nesta publicação, o morador de rua não tem voz.
Quanto ao argumento da higienização, ele é utilizado todas as vezes que a publicação
aborda que a solução é retirada da população das ruas para ser colocada em um albergue ou,
simplesmente, não ficar mais no centro. Já o elitismo se revela, pela ideia recorrentemente
presente nos textos da revista de que o centro da cidade deve ser exclusivamente consumido
por pessoas com alto poder aquisitivo. Além disso, há muitos casos em que as falas dos
entrevistados ou enunciadores da revista são de caráter moralista e condenam as pessoas que
vivem nas ruas.
Além dos jornalistas, também temos como enunciadores frequentes em VEJA São
Paulo, a SMADS e a PMSP. Diferentemente do que ocorre em Ocas”, neste veículo as
instâncias governamentais de assistências social e administração pública são valorizadas em
detrimento à população.
No entanto, não verificamos silenciamento em questão da população em situação de
rua nas páginas da publicação. Na ADF, o conceito de silêncio é importante para a
compreensão da produção de sentidos. Ele pode ser pensado como “a respiração de
significação, lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça
sentido” (ORLANDI, 2009, p. 83). Há o silenciamento da condição de cidadão do morador de
rua, como por exemplo no fato de que em todos os textos analisados, em poucos casos o sem-
teto foi protagonista ou personagem das reportagens publicadas.
No caso que citamos, estamos falando do tipo de silenciamento em que o enunciador
deixa de mencionar algo, ou diz uma coisa e não diz outra, pois as autoridades falam da
situação ideal da cidade “limpa” e não abordam porque há a “sujeira”. Ou ainda, falam das
ações tomadas, mas não falam dos problemas dos projetos, falam do cidadão que merece ter
as ruas limpas, mas não falam do cidadão morador de rua que deveria ter condições de viver
com dignidade, ter residência e trabalho, por exemplo.
Alguns aspectos nos chamaram a atenção durante a análise do corpus de VEJA São
Paulo, como o fato de termos encontrado sete textos que faziam a menção à Cracolândia
entre junho de 2010 e maio de 2012. Nesses casos, a publicação toca no tema do projeto Nova
Luz, que justamente naquela época apresentava algumas ações. Por fim, podemos sintetizar
que o morador de rua é representado, na Vejinha como culpado pela degradação do centro e
marginal a ser descartado da composição do urbano. Entendemos que isso se dá pela
característica editorial de VEJA São Paulo, que busca conversar diretamente com o seu
174
público, classe A e B, e talvez, para este tipo de publicação, o povo da rua não demande uma
representação diferente de um indivíduo estranho em relação à normatização da cidade.
Ao compararmos os resultados de nossa análise das duas publicações, percebemos
que há discrepâncias entre os discursos das duas revistas para tratar as questões da rua. Como
já mencionamos, em Ocas” temos há predominância do discurso polêmico e lúdico e em
VEJA São Paulo, do autoritário.
Assim, compreendemos que não somente as características editoriais e comerciais dos
dois veículos são distintas, mas também a forma como representam a cidade, especialmente a
partir da análise da questão da moradia na rua.
Relembrando os assuntos que identificamos para analisar os discursos, em apenas um
deles, o frio, a representação é coincidente. Em ambos os veículos o morador em situação de
rua é tido como alguém que fica ao relento, pois se rebela em ir para o albergue. Entretanto, o
albergue é representado de maneira diferente pelas revistas. Como uma instituição
controladora em Ocas” e como uma instituição necessária em Veja. Instituição controladora
em Ocas” porque nela temos a enunciação do morador de rua que mostra sua opinião sobre
ela. Instituição necessária em VEJA São Paulo, porque aos olhos do governo municipal e das
outras instituições que na revista enunciam vozes, o ideal seria que não houvesse morador de
rua, mas como existe, então foram criados os albergues para abriga-los em dias frios.
Sobre o assunto Drogas, enquanto na Ocas”, o morador de rua é representado como
dependente químico e, em Vejinha, como viciado. Já no caso dos estrangeiros, é importante
ressaltar que, enquanto em Ocas” o estrangeiro é essencialmente oriundo de países que
possuem situação financeira pior que o Brasil (Bolívia e Peru), em Vejinha esta métrica é
inversa. São apresentados personagens de países do chamado primeiro mundo . Vale
mencionar ainda que enquanto em Ocas” os estrangeiros sem-teto são associados à pobreza
como causa da situação em que se encontram, em Vejinha, encontramos o termo “dificuldades
financeiras”.
Em alguns textos de Ocas” aparece a representação do morador de rua como vítima da
violência, e esta serve de mote para a reclamação de políticas públicas para a população de
rua como nos textos Um fato, várias versões e o cheiro da impunidade95
(REZENDE e
FARIA, 2005) ou Vozes em busca de direitos96
(SEIDENBERG, 2008), publicados em
Ocas”. Já em Vejinha, há um único caso encontrado e analisado que aborda a violência em
95 Anexo I
96 Anexo N
175
relação à população de rua. No texto Dez mortes em quatro dias (SALLES, 2010), a questão
da violência é abordada e silenciada, abrindo espaço para a violência urbana.
Há ainda alguns tensionamentos mais contundentes em relação à representação dos
sem-teto nas publicações. No caso das crianças, estas estão representadas como
marginalizadas em Ocas”; já em Veja, são representadas como carentes, mas livres em Veja.
Há ainda a representação do trabalhador, em Ocas” e do Vadio em Vejinha.
Por fim, vale mencionar que quanto às questões políticas, ambos os veículos
reivindicam políticas para solucionar os problemas dessa população. No entanto, Ocas”
defende a necessidades de políticas públicas e VEJA São Paulo se limita a dar visibilidade às
políticas de albergues, ou seja, espaços onde essa população possa ser isolada do restante da
cidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema desta dissertação são as representações dos moradores de rua da cidade de São
Paulo nos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo. Como as duas
publicações representam os moradores de rua, considerando as estratégias de produção do
seus discursos jornalísticos sobre a diferença, consiste em nosso problema de pesquisa.
Para ser possível alcançar os resultados definidos por nossos objetivos, organizamos o
texto em quatro capítulos, o primeiro destinado ao projeto de pesquisa; o segundo, à Análise
de discurso, nosso principal referencial teórico com enfoque no discurso jornalístico; o
terceiro relaciona consumo, cidade e o quarto contempla a análise do corpus que nos permite
identificar as representações do morador de rua e as estratégias discursivas utilizadas pelas
publicações para produzir tais representações.
O caminho teórico adotado em nossa pesquisa, Análise de Discurso de linha francesa,
nos auxiliou no entendimento dos seguintes pontos: as condições, formadas por diversos
processos históricos, políticos e ideológicos, que levam as pessoas a se fixarem no espaço
urbano e os modos como elas se fixam; as heranças medievais da cidade contemporânea que
as re-significa à sua maneira, a partir da concepção e da organização de cidade industrial,
condicionantes para a formação urbana como conhecemos; e o contexto da
contemporaneidade (pós-industrial), justamente a temporalidade e espacialidade, que traz à
tona relações de consumo, bem como de consumo da cidade e das representações veiculadas
nos discursos jornalísticos das duas revistas estudadas.
176
A partir de da análise, identificamos as representações sociais do morador de rua
construídas no e pelo discurso jornalístico das revistas Ocas” e VEJA São Paulo: em certa
medida, as publicações constroem uma imagem do sem-teto por meio de características
generalizantes. Tal modo de caracterizar o outro é revelador da ação da ideologia, de
preconceitos, pois nem todo morador de rua é viciado, ou ladrão, por exemplo. Os dois
veículos constroem duas representações principais: Em Veja, o sem-teto é um indivíduo
estranho em relação à normatização da cidade e; já em Ocas”, é um cidadão detentor de
direitos e uma vítima.
Isso evidencia que os interesses editorias de ambas as publicações são distintos. Em
Ocas”, os processos de produção de notícias, ou de produção do discurso midiático, são
permeados por reivindicações de melhores condições de vida para os moradores de rua, e
consequentemente, pela promoção de políticas públicas para essa população. Por sua vez, em
VEJA São Paulo, a produção da notícia segue outras estratégias que resultam em
esclarecimento sobre os trabalhos da prefeitura e das autoridades que atuam junto aos
morador de rua
Quanto aos temas explorados no corpus analisado, ao mesmo tempo em que Ocas” se
preocupa com a situação e direitos da população de rua, Vejinha enfatiza, de certa forma,
interesses opostos, pois muitas vezes a leitura é de que para uma existir, a outra deve ser
suprimida
Foi muito enriquecedor para nossa pesquisa a utilização da Análise de Discurso
Francesa, uma vez que pudemos interpretar o material coletado de forma qualitativa e chegar
a resultados sobre a representação social do sem-teto que, de certa forma, foram de encontro
às nossas expectativas.
A ADF nos deu condições para alcançar os sentidos produzidos, por meio da análise
das vozes dos textos, que serviu de caminho para alcançarmos a identificação das
representações sociais dos sem-teto nesses dois veículos. Foi também por meio da ADF que
pudemos problematizar a produção jornalística e compreender que todo discurso jornalístico é
permeado por condições de produção histórica-social-ideológica que constroem
representações sobre seus objetos. Com isso, entendemos que a imparcialidade é impossível
para qualquer jornalista, pois todo sujeito é interpelado pela ideologia que se manifesta na sua
produção.
Sobre os critérios de pesquisa, o período extenso que delimitamos, ao mesmo tempo
em que nos trouxe dificuldades operacionais com a pesquisa, dado o tempo restrito de análise
(24 meses), deu-nos a noção da importância de trabalharmos com corpus complexos para a
177
compreensão da produção de sentidos em veículos como as revistas impressas investigadas.
Deste modo, o marco temporal definido para a pesquisa, o Projeto Nova Luz, ao contrário de
nossa expectativa inicial, não trouxe o morador de rua para lócus privilegiado do discurso
jornalístico sobre a cidade de São Paulo.
A respeito dos gêneros jornalísticos, confirmamos nossas reflexões teóricas de que há
uma linha tênue entre os gêneros informativos e opinativos. Alguns textos, embora
informativos, apresentavam grande teor opinativo e vice-versa. Também o valor-notícia não
remete necessariamente à questão da rua, pois encontramos uma diversidade de valor-noticia
sem que se pudesse encontrar uma explícita relação entre o morador de rua e elemento
motivador do texto jornalístico. Comparando os dois veículos, vale citar que, em Ocas”, o
valor-notícia das matérias apresenta mais relação com a população de rua, que em VEJA São
Paulo.
Outro aspecto a se considerar sobre a construção dos textos, ambos os veículos
analisados utilizam-se de dados de pesquisas e de falas de autoridades para obtenção uma
versão oficial do fato.
Quanto aos enunciadores, em todos os casos consideramos o jornalista autor da
matéria como uma voz importante a ser analisada. Isso se deu porque compreendemos que
para analisarmos as estratégias de produção dos discursos jornalísticos, devemos considerar
que as condições de produção desses discursos incluem o jornalista, sua formação e o
contexto de desenvolvimento da atividade profissional.
Sobre a cidade, entendemos que ela é um ambiente comunicacional e que ela é
consumida tanto a partir da mídia quanto por meio da experiência urbana. No entanto, o
conceito de encontro das diferenças, embora defendido como necessário, por muitos teóricos
é pouco praticado, haja vista, como os discursos retratam a população diferente, por exemplo.
Outro ponto que percebemos foi que a pobreza é marcada como um distintivo do
morador em situação de rua nos discursos jornalísticos das duas revistas analisadas. Seja
como sinônimo de vulnerabilidade social ou de miséria.
Sobre a miséria, e analisando o caso da cidade de São Paulo, observamos ao
cruzarmos os resultados iniciais da pesquisa com a teoria, que a industrialização da cidade
culminou num duplo processo de desenvolvimento e de desigualdade social, assim temos a
demarcação da diferença em certos ambientes urbanos.
Sobre as práticas discursivas: em Ocas”, predomina o discurso polêmico, por vezes
irônico e em VEJA São Paulo, o discurso autoritário, segundo a conceituação de Orlandi.
178
Já as condições de produção do discurso jornalístico, Ocas”, por pertencer a uma
ONG que defende os interesses da rua, possui uma estratégia de construção da representação
do morador de rua alinhada com os objetivos da Organização, ou seja, defender a causa. Já
Vejinha, por ser um veículo comercial, preocupada em atingir um público diversificado, não
mostra a mesma preocupação e representa o morador de rua conforme as visões mais
sedimentadas e, portanto, mais preconceituosas também. Assim, a ideologia da cidade limpa,
organizada e protegida está manifesta, em maior ou menor grau, nos corpora analisados.
Depreende-se também que o silenciamento sobre a situação do morador de rua existe: pouco
verificamos nos veículos a preocupação em debater ou esclarecer sobre os motivos da
existência de tantos sem-teto na cidade de São Paulo, ou ainda, não observamos debates sobre
projetos de promoção humana, de cuidados que promovam a saída das ruas e condições para
que o sujeito viva uma outro tipo de vida, integrado à regras de normalidade das cidades,
conforme argumentamos ao longo do trabalho. O discurso jornalístico produzido pelas
revistas analisadas permanecem no âmbito das questões superficiais, não ultrapassam os
limites do que pode e do que deve ser dito; parecem muito afeitos à uma cordialidade que não
condiz com o discurso jornalístico, principalmente o da revista Ocas”.
Sobre a comunicação e consumo, defendemos a ideia de que o consumo midiático é de
suma importância para a cidadania. Assim, é por meio das representações sociais veiculadas
na mídia que a sociedade também se mobiliza em torno da cidadania e do fazer política.
Para finalizar, a partir da análise desenvolvida, podemos afirmar que o discurso
jornalístico de ambas as revistas abriga estereótipos e reproduz desqualificações sociais do
morador de rua, apesar das diferenças editoriais, de objetivos e de ideologias existentes entre
os dois veículos.
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187
ANEXO97
97 Para a leitura dos textos analisados (na ordem em que foram apresentados), aconselhamos que a consulta das
matérias seja feita via DVD-ROM, que também é parte integrante desta dissertação.