Televisão e cultura: Análise da trajetória de duas tvs públicas

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    Televiso e cultura:

    Anlise da trajetria de duas tvs pblicas

    Renata Rocha

    Univerdidade Federal da Bahia

    RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo estudar as relaes entre a televiso e a cultura,

    investigadas a partir da anlise das trajetrias de duas TVs pblicas - a Televisin de

    Galcia, na Espanha e a Televiso Educativa da Bahia, no Brasil. Pressupe-se que a

    televiso, atravs de suas representaes, torna-se um importante fator para a difuso

    das identidades e cultura regionais, devido ao seu grande alcance no mundo

    contemporneo. Nestas emissoras, em especial, a dimenso regional e o carter pblico

    estimulam a construo de novos parmetros de reflexo, ao se considerar os contextos

    histricos singulares do processo de comunicao. Realiza-se, assim, uma apreciao

    mais aprofundada sobre a televiso pblica e a trajetria das emissoras, observando,particularmente, as estratgias e solues encontradas para alcanar a organizao e

    autonomia.

    Palavras-chave: televiso pblica, cultura regional, identidades

    ABSTRACT

    The present work objects the study of the connections between culture and television,

    which are to be investigated based on the trajectories of two public network television

    Televisin de Galicia, in Spain, and Televiso Educativa da Bahia, in Brazil. It is

    assumed that the TV, employing its representations, becomes a very important factor in

    Trabalho apresentado ao Curso de Graduao em Comunicao da Universidade Federal da Bahia,

    como requisito para a obteno do grau de Bacharel em Comunicao Social Jornalismo, no ano de2006. Orientadora: Prof Dr Linda Rubim.

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    the broadcasting of regional culture and identities, especially when considering the

    extent of this media in the contemporaneous world. In both networks analyzed, the

    regional dimension and the public character motivate the construction of new

    parameters by considering the historical contexts involving the communication process.

    This way, it is possible to comprehend a profounder reflection on public television as

    well as the path they have followed, the strategies and solutions used to accomplish

    organization and autonomy.

    Keywords: public television, regional culture, identities.

    RESUMN

    Este trabajo busca estudiar las relaciones entre la televisin y la cultura, investigadas

    por medio de una anlisis de los trayectos de dos canales pblicos - la Televisin de

    Galcia, en Espana y la Televiso Educativa da Bahia, en Brasil. Se presupone que la

    televisin, por medio de sus representaciones, se convierte en un importante marco para

    la difusin de las identidades y cultura regionales, por su gran alcance en el mundocontemporneo. En estes canales, la dimensin regional y el carcter pblico estimulan

    la construcin de nuevos parmetros de reflexin, en respecto a los contextos histricos

    singulares del proceso de comunicacin. Se efectua, por lo tanto, una evaluacin ms

    profundizada acerca de la televisin pblica y del trayecto de estes canales, observando,

    particularmente, las estrategias y soluciones encontradas para alcanzar la organizacin y

    autonoma.

    Palabras-clave: televisin pblica, cultura regional, identidades

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    minha me verdadeira e s outras mes que fui encontrando pelo caminho.

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    AGRADECIMENTOS

    A Linda Rubim, pela orientao e adoo.

    A Iraildes Trindade Rocha, minha me, por me apoiar em meus caminhos e socorrer nos

    descaminhos.

    A Jaildo Vieira Rocha, meu pai, pelo carinho todo que fica guardado.

    Aos meus irmos e irmos, Emanuela Trindade, Sharif Mohr, Jlia Paula e Vtor

    Freire por estarem do meu lado sempre, e, principalmente a Rebeca Mohr, pelos dias

    de monografia, e a Jaildo Filho, pelas noites mal dormidas.

    A Dnisson Padilha Filho, pela companhia, pacincia, dedicao, enfim, por todo amor.

    Aos meus amigos, por existirem e me suportarem, especialmente a Camila Tenrio,

    nestes anos de faculdade, pesquisa, desespero e risadas, e no auxlio com este trabalho.

    A Pedro Carrasco Sola, Jaqueline Barreto de Jesus, Roberto SantAna e Marcelo

    Martinz Hermida por me auxiliarem na busca de informaes.

    A todos os entrevistados, que cederam parte de seu tempo para auxiliar nesta reflexo.

    Enfim, a todos meus professores, desde D. Lgia da alfabetizao, at os que esto por

    vir, porque o aprendizado no acaba nunca.

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    SUMRIO

    LISTA DE TABELAS E GRFICOS 09

    INTRODUO 07

    1 METODOLOGIA 10

    2 TELEVISO, CULTURA E SOCIEDADE LOCAL 13

    2.1 Dos conceitos de territrio e regio 15

    2.2 Representao e identidades 18

    2.2.1 Identidade Territorial 19

    2.2.2 Televiso e Identidade Regional 21

    2.2.3 Identidade baiana e Baianidade 24

    2.2.4 Desde a Gallaecia at a Galeguidade 28

    3 O SCULO DA TV: PERCURSO HISTRICO E ATUALIDADE 34

    3.1 Brasil: Bahia 35

    3.1.1 Televiso no Brasil 383.1.2 Televiso Educativa da Bahia 42

    3.1.3 Bahia Singular e Plural 49

    3.2 Espanha: Galcia 51

    3.2.1 Televiso na Espanha 54

    3.2.2 Televisin de Galcia 59

    3.2.3 TVG e a lngua galega 63

    4 DOIS MODELOS DE TV PBLICA 674.1 Financiamento e publicidade 69

    4.2 Audincia e programao 74

    CONCLUSO 83

    REFERNCIAS 87

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    LISTA DE TABELAS E GRFICOS

    Grfico 1 - Dados mdios das emissoras baianasshare: dezembro de 2004 75

    Grfico 2Dados mdios das emissoras galegasshare: temporada 2002/03 76

    Grfico 3Perfil de pblico da TVG por classe social 78

    Grfico 4Perfil de pblico da TVG por faixa etria 79

    Grfico 5Perfil de pblico da TVG por sexo 79

    Grfico 6Perfil de pblico da TVE por classe social 80

    Grfico 7Perfil de pblico da TVE por faixa etria 81

    Grfico 8Perfil de pblico da TVG por sexo 81

    Tabela 1 Ranking da programao Local 76

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    INTRODUO

    Este estudo visa investigar as relaes entre a televiso e a cultura atravs da

    anlise do percurso histrico de duas emissoras pblicas: a Televisin de Galcia (TVG)

    - localizada na comunidade autnoma1da Galcia, na Espanha - e a Televiso Educativa

    da Bahia - situada no Estado da Bahia, no Brasil. Parte-se do pressuposto de que estas

    emissoras, pelo seu carter pblico e pelo grande alcance da mdia televisiva no mundo

    atual, participam de maneira ativa na formatao e manuteno das identidades

    regionais.

    De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2002),

    89,9% dos domiclios do Brasil esto dotados de aparelhos televisivos. J na Espanha,

    esse nmero chega a 99,5%, segundo o Instituto Nacional de Estadstica2(INE, 2005).

    Isto indica que, devido sua forte difuso entre a populao, a televiso o meio de

    comunicao que melhor exprime a sociedade contempornea. Alm disso, segundo o

    terico Muniz Sodr (1984), esta mdia incorpora, no s as tcnicas de reproduo

    desenvolvidas na modernidade, mas tambm todo o ethosmoderno de organizao da

    vida social.

    O professor Arlindo Machado (2000) observa que o estudo da televiso - como o

    de qualquer outro meio de comunicao - pode ser realizado de duas maneiras distintas:

    considerando-a como fenmeno de massa de grande impacto na vida social moderna,

    que requer uma anlise de cunho sociolgico, ou como um dispositivo audiovisual que

    funciona como meio de expresso.

    O presente trabalho conjuga essas duas acepes: no analisa o carter

    meramente sociolgico da TV, que resultaria em uma abundncia de estudos baseados

    na sondagem de audincia, motivo pelo qual, no geral, as abordagens sociolgicas

    acabam coincidindo com as pesquisas mercadolgicas (MACHADO, 2000: 11).

    Tampouco interessa discutir a qualidade na televiso de maneira aprofundada, pois isto

    1O Reino da Espanha dividido politicamente em 17 comunidades autnomas, ou independentes, dentre

    elas a Galcia.2Dados de 2003.

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    significaria uma abordagem demasiado ampla de aspectos alheios pretenso deste

    trabalho.

    Busca-se compreender, portanto, como a trajetria de uma emissora de televiso

    esse importante aparato de interveno cultural interfere e sofre interferncias da

    sociedade onde est localizada, e tambm sua participao no processo de formao e

    difuso de determinadas identidades. Para tanto, este estudo adquire um carter

    interdisciplinar, com breves incurses em conceitos das cincias sociais, da histria, e

    das teorias da comunicao.

    Tomando as reflexes anteriores como apoio, prope-se ampliar a discusso

    sobre a televiso pblica no Brasil, orientada, principalmente, para a construo de

    gestes independentes e da qualidade de programao, devido sua importncia na

    divulgao de contedos de interesse pblico e na promoo da cultura regional. A TV

    pblica deve ser uma televiso que estabelea uma sintonia entre as demandas de

    informao e de educao de cada comunidade local (CARMONA, 2003: 12). Como a

    regionalizao ainda uma tendncia em expanso no Brasil, este estudo visa

    questionar, atravs da investigao de uma realidade alheia nacional, as solues

    postas para os problemas destas emissoras.

    Uma vez que a cultura histrica pode ser definida (...) como uma articulao

    prtica eficaz, operada pela conscincia histrica na vida de uma sociedade

    (MARTINS, 2002: 47), torna-se extremamente relevante conhecer a histria das regies

    a serem estudadas. O acompanhamento desta construo identitria, ento, realizado

    atravs da reconstituio de um percurso histrico que observa a influncia do meio

    televisivo na configurao de um determinado contexto scio-cultural.

    Neste aspecto, importante salientar uma srie de pontos em comum quedemonstram uma notvel proximidade existente entre a Galcia e a Bahia. Em primeiro

    lugar, so locais com demarcada identidade e cultura histrica, em relao ao pas onde

    se encontram. Para alm disso, marcas mais subjetivas expressam tal convergncia, a

    exemplo da TVE e TVG surgirem em um contexto similar de abertura democrtica, que

    as influencia no resgate de interesses regionais. Coincidentemente, estas duas emissoras

    so inauguradas no ano de 1985. Vale a pena assinalar, ainda, que o processo de

    implantao televisivo nas duas regies se d de maneira quase simultnea. Enquanto a

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    televiso baiana inaugurada em 1960, a primeira transmisso da Televisin Espaola

    no pas galego ocorre em 1961.

    Os caminhos trilhados no desenvolvimento deste projeto reproduzem as

    estratgias experimentadas na pesquisa 40 anos de Televiso na Bahia, coordenada

    pela professora Lindinalva Rubim e desenvolvida desde agosto de 2000, com o objetivo

    de estudar a histria da televiso baiana, com nfase em seu carter cultural. A

    participao neste grupo de investigao por quatro anos, num ambiente de discusso

    sobre comunicao, particularmente, sobre a televiso, indica a construo de

    estratgias de anlise da histria da TV e sua relao com a cultura, que so essenciais

    para a realizao deste trabalho.

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    1 METODOLOGIA

    Este trabalho se realiza em diversas etapas. A primeira delas consiste na

    delimitao e escolha do objeto de estudo: as relaes entre televiso e cultura, atravs

    da anlise de emissoras de regies distintas do globo. Elaborar um conhecimento

    sistemtico sobre a trajetria de duas TVs pblicas e regionais, no caso em questo, a

    TV Educativa da Bahia e a Televisin de Galcia (TVG) - estimula a construo de

    novos parmetros de reflexo para o questionamento da interferncia do contexto

    histrico nos processos de comunicao.

    Neste aspecto, a pesquisa 40 anos de televiso na Bahia tem fundamental

    importncia, no sentido de apurar o interesse e viabilizar a aproximao com a temtica

    escolhida. Durante o perodo de participao no referido projeto, foi possvel o

    cumprimento de um intensivo programa de leitura e a discusso de uma bibliografia

    referente televiso, alm de incurses por outras reas do conhecimento de modo a

    entender a trajetria desta mdia, sempre vinculada a um panorama interdisciplinar do

    conhecimento.

    Partindo deste pressuposto original, mantido na realizao do presente trabalho,

    importante citar tambm como mtodo de aproximao com o objeto: os seminrios

    internos promovidos pelo grupo de pesquisa; a participao em fruns externos de

    discusso, como o Seminrio anual do PIBIC e da Redecult; e ainda, a produo de

    textos acadmicos que, sem dvida, servem para solidificar a percepo da televiso

    como tema central de estudo para este trabalho monogrfico.

    A incluso da Televisin de Galcia motivada pela grande singularidade da

    cultura galega, perante a nao espanhola, o que, em certa medida, similar situao

    baiana frente ao restante do Brasil. Tambm pesa sobre esta escolha o fato de tratar-se

    de uma emissora pblica de participao ativa nas questes identitrias locais, como

    ocorre com a TVE. Com o propsito de investigar mais detidamente essa proximidade

    realiza-se uma viagem pelo Programa de Intercmbio da UFBA para a Universidade de

    Santiago de Compostela, no territrio galego, no perodo de setembro de 2004 a junho

    de 2005.

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    No contato com a realidade galega, percebe-se a necessidade de desenvolver

    uma metodologia de anlise diferenciada daquela que foi desenvolvida pela pesquisa no

    estudo da televiso baiana, posteriormente adotada por este projeto. Na Bahia, a

    inexistncia de um material acadmico rigoroso, com nfase na histria da TV, leva ao

    desenvolvimento de uma srie de estratgias e mecanismos de modo a obter maiores

    informaes sobre o assunto, diferente da Galcia, onde se encontra uma profuso

    bibliogrfica centrada na histria da televiso e sua relao com a cultura local, em

    especial, o idioma galego. Neste sentido a investigao naquele pas priorizou

    sobremaneira como fonte, a produo acadmica existente.

    Para o estudo da Televiso Educativa da Bahia, so utilizados como fonte

    primria os jornais impressos que circulam em Salvador, desde a inaugurao da TV

    Itapoan, em 1960, at o ano de 20003. Adota-se como procedimento de trabalho, o

    levantamento de informaes sobre a televiso em trs datas: o dia de inaugurao da

    emissora, o dia anterior e o dia posterior ao surgimento da mesma.

    importante ressaltar que o tratamento do material coletado tambm procura

    adotar alguns parmetros a fim de preservar a fidedignidade da amostra pretendida.

    Assim, procede-se a leitura dos jornais, elegendo como objeto de anlise as seguintes

    sesses: anncios publicitrios, notas, matrias, chamadas de capa e colunas. Em

    seguida, so arquivadas cpias das informaes de maior destaque, alm da

    programao diria das emissoras. Alm desta fonte de informao, realizada, uma

    srie de entrevistas com pessoas que participam ou participaram da histria da emissora,

    focalizando as discusses sobre televiso e cultura na Bahia. Servem tambm como

    instrumento de informao, parte dos relatrios anuais da TVE4; o clippingda biblioteca

    do IRDEB - com reportagens, matrias, artigos e entrevistas de diversos jornais e

    revistas -; e o material audiovisual da emissora, disponibilizado pela Videoteca do

    IRDEB.

    Em relao Televisin de Galicia, a coleta de informaes iniciada ainda no

    Brasil, atravs de pesquisa telematizada, em sites como a pgina web da Companhia de

    3Dirio de notcias (at 1981), Jornal A Tarde, Tribuna da Bahia, Correio da Bahia, Jornal da Bahia (at

    1993) e Bahia Hoje (at 1997).4So analisados apenas os materiais posteriores ao ano de 2000, marco da informatizao.

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    Radio e Televisin de Galicia5, do Consello da Cultura Galega 6 e na Biblioteca do

    Centro Cultural Caballeros de Santiago. Nesta etapa, objetiva-se conhecer a histria e

    cultura galegas. Sobre trajetria da TVG e sua relao com a cultura, os dados

    encontrados so esparsos, constando apenas o livroInfluencia da TVG na promocin do

    galego, de Arturo Maneiro Vila, na referida biblioteca.

    Durante estada em Santiago de Compostela, feita a coleta de informaes nas

    Bibliotecas da Faculdade de Comunicao da Universidade de Santiago de Compostela

    e do Consello da Cultura Galega, que possuem um vasto acervo sobre o canal galego

    de TV. Naquele perodo, so realizadas entrevistas com profissionais da emissora e

    estudiosos da histria da televiso na Galcia.

    Depois de coletado, o material passa por uma primeira apreciao exploratria,

    que indica o levantamento de nova bibliografia, agora concentrada na discusso de

    aspectos como identidade, representao, regio e territrio, alm da histria da cultura

    nas sociedades pesquisadas. Cabe enfatizar, aqui, o aumento substancial de reflexes

    sobre a identidade baiana, traduzida por baianidade que circunscreve os territrio de

    Salvador e Recncavo. No entanto, ainda so raras as referncias relativas a outras

    regies que no sejam quelas especificamente vinculadas cultura negra.

    Desta maneira, a anlise da trajetria destas emissoras desenvolvida,

    priorizando-se as diferentes modalidades de relao com a sociedade local seja no

    mbito identitrio-cultural, poltico, econmico, dentre outras orientaes. Dedica-se

    uma ateno especial aos fluxos de programao das TVs, com nfase na temtica

    regional.

    5

    < http://www.crtvg.es/cgi-bin/iniciocrtvg.asp?idioma=galego>6

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    2 CULTURA, TELEVISO E SOCIEDADE LOCAL

    Para a realizao desse trabalho indispensvel a busca por uma definio de

    cultura, a fim de tornar possvel seu uso operacional. Apesar da multiplicidade de

    significados, a noo de cultura parece convergir, para uma viso antropolgica

    contempornea de prtica diferenciada regida por um sistema, que se entende como o

    conceito das relaes internas tpicas da realidade da produo, pelos indivduos, do

    sentido que organiza as suas condies de coexistncia com a natureza, com os prprios

    membros do seu grupo e com outros grupos humanos (SODR, apud MIGUEZ, 2002:

    44).

    Dessa forma, a cultura, ao abranger os elementos distintivos pelos quais cada

    indivduo refere sua identidade pessoal ao conjunto de fatores que a definem

    (MARTINS, 2002: 43-44), remete s prticas de organizao simblica, de produo

    social de sentido e de relacionamento com o real.

    Nesse estudo, particularmente, opta-se por analisar a cultura de duas regies

    distintas, atravs da evoluo de um meio de comunicao influente, como a televiso.

    Para melhor facilitar a compreenso do nosso objeto, cabe delinear os conceitos aquiutilizados para a classificao das emissoras de TV em seus diversos mbitos, atravs de

    uma perspectiva legal7.

    No Brasil, a televiso tecnicamente definida como comunicao eletrnica,

    com a transmisso de sons e imagens - classificada como um servio de radiodifuso,

    regido por leis prprias e considerado de interesse nacional. Trata-se, portanto, de um

    servio pblico a ser prestado pela Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios, ou

    concedido, mediante concorrncia, pessoa jurdica ou consrcio de empresas quetenham capacidade para seu desempenho (ALARCON, 2005).

    Quanto autorizao da recepo, uma emissora de televiso pode ser:

    7As informaes foram obtidas no site do Ministrio das Comunicaes do Brasil (MINISTRIO DASCOMUNICAES, acesso em 20 mar. 2006) e atravs do Projeto de Lei para o audiovisual daColmbia (PROYECTO DE LEY 149, 2002, acesso em 20 mar. 2006) .

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    Aberta: o sinal pode ser recebido livremente por qualquer pessoa situada

    na rea de servio da estao

    Fechada: o sinal, independentemente da tecnologia de transmisso

    utilizada, alcana apenas as pessoas autorizadas para a recepo.

    Quanto propriedade podemos classificar a TV da seguinte forma:

    Pblica: de programao e produo realizada por um operador pblico,

    para a promoo da cultura e da sociedade. No possui fins lucrativos.

    Privada: de operao e programao realizada por uma empresa privada,

    com o objetivo de gerar lucros.

    Comunitria: controlada geralmente por fundaes ou associaes de

    moradores, visando satisfazer os anseios de uma determinada

    comunidade. Este tipo de emissora ainda bastante rara no Brasil.

    Em relao programao, a emissora pode ser:

    Comercial: a programao destina-se apenas a atender os hbitos e

    gostos dos televidentes, visando o aumento de audincia e conseqente

    gerao de lucro;

    Educativa/Cultural: programao orientada, geralmente, para a satisfao

    das necessidades educativas e culturais da audincia;

    Retransmissora/repetidora: a programao oriunda de outros canais

    retransmitida sem promover alteraes. No Brasil a maior parte das

    emissoras regionais veicula os programas de uma rede nacional,

    produzindo localmente apenas parte de seus espaos.

    No que se refere rea de servio, a emissora classificada em:

    Local: quando o servio prestado numa rea geogrfica contnua,

    sempre e quando esta no supere o mbito de um municpio, distrito, rea

    metropolitana ou associao de municpios;

    Regional: trata-se do sinal de TV que abrange uma rea geogrfica

    determinada, formada pelo territrio do estado, ou de alguma regio do

    pas;

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    Nacional: quando o canal televisivo autorizado a cobrir, de maneira

    permanente, todo o territrio nacional.

    Alm dessa breve incurso acerca das definies das emissoras de TV, faz-se

    necessria para a continuidade deste estudo, uma introduo sobre conceitos bsicos a

    saber: regio, territrio, identidade e representao, alm da compreenso de como a

    atual conjuntura mundial os decompe, molda e transforma.

    2.1 Dos conceitos de territrio e regio

    As teorias da modernizao inspiradas no estrutural-funcionalismo sustentam a

    tese de que a revoluo dos meios de comunicao, os movimentos migratrios

    internacionais e a mobilidade territorial provocariam o fim do apego ao territrio, do

    localismo e do sentimento regionalista. A antropologia chamada ps-moderna

    (GEERTZ; CLIFFORD apud GIMNEZ, 2000), por sua vez, transfere essa discusso

    para as relaes entre cultura e territrio, de maneira que a cultura ps-moderna torna-

    se, quase que por definio, uma cultura desterritorializada e desespacializada,

    resultado da globalizao, do crescimento exponencial da migrao e da deslocalizao

    das redes modernas de comunicao.

    O cientista social Gilberto Gimnez (2000), no entanto, interpreta a globalizao

    a partir do pressuposto de que este fenmeno obedece a uma configurao que tem

    como base o ncleo dos estados-naes mais ricos do globo, mantendo um carter

    territorial e perfeitamente cartografvel. Para o autor, o que ocorre no a

    desterritorializao, mas sim a onipotncia dos pases centrais sobre outros territrios. A

    mundializao, portanto, necessita dos territrios interiores - as regies, por exemplo -

    como suporte e estao de relevo para sua expanso:

    ...los territorios interiores, considerados en diferentes escalas (v.g., lolocal, lo regional, lo nacional, etc.), siguen en plena vigencia, con suslgicas diferenciadas y especficas, bajo el manto de la globalizacin,aunque debe reconocerse que se encuentran sobredeterminados porsta y, consecuentemente, han sido profundamente transformados enla modernidad (GIMNEZ, 2000: 89,grifo do autor)8.

    8...os territrios interiores, considerados em diferentes escalas (v.g., o local, o regional, o nacional, etc.),seguem em plena vigncia, com suas lgicas diferenciadas e especficas, sob o manto da globalizao,

    ainda que se deva reconhecer que se encontram sobredeterminadospor esta e, consequentemente, foramprofundamente transformados na modernidade (traduo da autora).

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    Neste contexto, embora o territrio no mais represente uma condio necessria

    para a caracterizao desta ou daquela identidade, o grande fluxo migratrio,

    comunicacional e cultural no impede que os indivduos mantenham um sentimento de

    pertena em relao sua terra mater.

    Em busca de uma compreenso da noo sociolgica de territrio, Gimnez

    (2000) opta pelo abandono da definio enciclopdica de qualquer extenso da

    superfcie terrestre habitada por grupos humanos. Para tanto, toma relevo a apropriao

    do termo espao - entendido aqui como uma combinao de dimenses, que so a

    matria-prima de qualquer territrio na eleio do conceito de territrio como um

    espao apropriado e valorizado - simblica e/ou instrumentalmente - pelos grupos

    humanos (RAFFESTIN apudGIMNEZ, 2000: 90, traduo da autora).

    O territrio pode pluralizar-se segundo escalas historicamente constitudas desde

    o local at o supranacional, intermediadas por nveis que no obedecem a uma lgica

    de continuidade, mas de imbricao - como o municpio, a regio, a provncia, a nao,

    etc. (GIMNEZ, 2000: 96).

    Dentro desta constituio, o conceito de regio destaca-se como o mais relevante

    para o prosseguimento deste estudo. Trata-se de uma abstrao do que seria um espao

    geogrfico maior que uma localidade (um povoado, cidade ou vila, por exemplo) e

    menor que um Estado-Nao, cujos limites so desvinculados de demarcaes poltico-

    administrativas, com fronteiras penetrveis. A regio configura-se, portanto, como

    ponto intermedirio entre territrios prximos ou identitrios e territrios mais vastos

    (GIMNEZ, 2000).

    Diante da dificuldade de precisar o conceito de regio - que pode ser definido apartir de qualquer ngulo de diferenciao, seja ele econmico, poltico, cultural,

    antropolgico ou histricomostra-se mais acertada a escolha pela tradio conceitual

    mais enraizada, a geogrfica no sentido amplo, na qual o termo regio seria a sntese

    entre os processos de formao social, econmico e histrico, baseados num certo

    espao caracterstico (OLIVEIRA, 1977).

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    Pierre Bourdieu (1989) observa que as regies delimitadas em funo dos

    diferentes critrios concebveis (lngua, habitat, tamanho da terra, etc.) no coincidem

    perfeitamente.

    ...a realidade, neste caso, social de parte a parte e as classificaesmais naturais so, em grande parte, produto de uma imposioarbitrria, quer dizer, de um estado anterior da relao de foras nocampo das lutas pela delimitao legtima. A fronteira, esse produto deum acto jurdico de delimitao, produz a diferena cultural do mesmomodo que produto desta (BOURDIEU, 1989: 115).

    Trata-se, pois, de uma realidade que uma representao, ou seja, de uma

    imposio que passa a ser absorvida pela sociedade at ser considerada uma di-viso9

    natural. Desta forma, essa separao, ainda que imposta arbitrariamente, pode vir a

    gerar um fossoseja ele poltico, lingstico ou culturalentre as regies envolvidas.

    Para Gilberto Gimnez (2000: 93), a apropriao de um determinado espao

    pode ser classificada - tendo como ponto de partida o uso e as relaes sociais - como

    instrumental-funcional ou simblica-expressiva. Em uma primeira instncia acontece a

    relao utilitria com o lugar, ou seja, o territrio corresponde s necessidades

    econmicas sociais e polticas (como em casos de mera explorao econmica ou de

    obteno de vantagens geopolticas). Essa produo, entretanto, costuma sustentar-se

    nas relaes sociais, de maneira que o territrio vem a se conformar tambm como

    espao de sedimentao simblico-cultural e como suporte para identidades individuais

    e coletivas.

    Ainda segundo Gimnez (2000: 100-102), so de trs tipos as relaes possveis

    entre cultura e territrio. Em uma primeira dimenso, o prprio territrio como meio

    natural antropizado torna-se um bem cultural, um elemento a mais de inscrio da

    cultura para determinada sociedade. O territrio tambm pode funcionar como rea de

    distribuio de instituies e prticas culturais espacialmente localizadas, ainda que no

    dependentes dessa ligao espacial como maneiras de vestir, a culinria local, as

    festas e danas tpicas traos denominados cultura etnogrfica. Por fim, o territrio

    pode ser apropriado como objeto de representao e apego afetivo e, sobretudo, como

    smbolo de pertena socioterritorial. Neste caso os sujeitos (individuais ou coletivos)

    9

    A grafia di-viso utilizada por Pierre Bourdieu visa dar ao termo o significado - alm do seu prpriode diviso como quebra, separao - de uma viso dupla, um surgimento de pontos de vista distintos.

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    interiorizam o espao integrando-o ao seu sistema cultural. Assim, ainda que haja o

    distanciamento fsico, no h uma desterritorializao em termos simblicos e

    subjetivos.

    2.2 Representao e identidades

    O conceito de representao social foi desenvolvido na Psicologia Social,

    disciplina que estuda a relao entre o indivduo e a sociedade. Durkheim (apud

    GUARESCHI, JOVCHELOVITCH, 1995) foi o primeiro estudioso, no campo

    sociolgico, a discutir representaes sociais ou coletivas, definindo-as como categorias

    de pensamento atravs das quais determinada sociedade elabora sua realidade. Estasconstrues coletivas geram uma identificao do indivduo com a sociedade, a partir

    dos processos de constituio simblica.

    Nesse contexto, os significados que surgem no novo mundo das representaes,

    inicialmente extrados dos aspectos sociais, terminam por modificar a prpria sociedade

    que as constroem. As representaes sociais emergem desse modo como processo que

    ao mesmo tempo desafia e reproduz, repete e supera, que formado, mas que tambm

    forma a vida social de uma comunidade (GUARESCHI e JOVCHELOVITCH, 1995:82).

    Pierre Bourdieu, no livro O Poder Simblico (1989: 118), define as

    representaes como enunciados performativos que pretendem que acontea aquilo

    que enunciam. Trata-se de uma luta travada com o objetivo de se definir a realidade.

    Assim, a representao da realidade- se reconhecida e exercida com a cumplicidade

    dos que a ela esto submetidospassa realidade da representao.

    Para uma melhor apreenso da realidade, no percurso deste estudo, faz-se

    necessrio que se considere a existncia do efeito simblico, exercido pelo discurso

    cientfico, tendo em vista que os critrios ditos objetivos podem ser utilizados como

    arma nas lutas simblicas pelo (re)conhecimento na produo de uma unidade real ou

    da crena nesta unidade.

    So os fenmenos sociais de representao que formam o que se chama

    identidade. A sua fora mobilizadora, segundo Bourdieu (1989), encontra-se na

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    alteridade. Narrado atravs dos tempos, o texto identitrio visa diferenciar um

    determinado povo, o eu, em relao ao seu outro. Para Renato Ortiz (1994 : 08),

    no existe uma identidade autntica, mas uma pluralidade de identidades, construdas

    por diferentes grupos sociais em diferentes momentos histricos.

    Por outro lado, h uma dimenso interna prpria de cada identidade, pois

    medida que se afirma e se concebe a diferena, surge a necessidade de demarcao do

    que seria esse eu. Ainda que no se possa ignorar que a luta pela definio do que

    seria uma identidade autntica uma forma de se delimitar as fronteiras de uma poltica

    que procura se impor como legtima (ORTIZ, 1994: 09), no h veracidade ou

    falsidade em sua produo, j que toda identidade uma construo simblica.

    O perodo da ps-modernidade, segundo Stuart Hall (1999), complexifica as

    questes identitrias a partir do momento em que o sujeito, antes visto como possuidor

    de uma identidade nica e estvel, torna-se fragmentrio, possuidor de diversas

    identidades, muitas vezes contraditrias e no resolvidas.

    ... medida em que os sistemas de significao e representaocultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidadedesconcertante e cambiante de identidades possveis, com cada umadas quais poderamos nos identificar ao menos, temporariamente(HALL, 1999: 13).

    O conceito de identidade, ento, adquire o carter de processo contnuo de

    formao e transformao, relacionado forma em que os sujeitos so representados ou

    interpelados nos sistemas culturais que os rodeiam.

    2.2.1 Identidade territorial

    Para a formao da identidade, imprescindvel a existncia do sentimento de

    pertena a uma coletividade mltipla. Desta forma, a relao identitria entre indivduo

    e territrio se d, principalmente, a partir dosentimento de pertena socioterritorial, ou

    seja, do compartilhamento do complexo simblico-cultural caracterizado pelo sentido

    territorial.O territrio ao tornar-se mais um componente desse sentimento, desempenha

    um importante papel para o contexto da ao e das relaes humanas (GIMNEZ,

    2000).

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    Para o terico Nestor Garca Caclini (1999), aps longos perodos de

    desvinculao do territrio, surge uma demanda de maior afirmao do local, contra a

    supremacia da massificao. Os meios de comunicao representam um importante

    papel, neste processo.

    Simultaneamente desterritorializao das artes, h fortesmovimentos de reterritorializao, representados por movimentossociais que afirmam o local e tambm por processos de comunicaode massas: rdios e televises regionais, criao de micromercados demsica e bens folclricos, a desmassificao e a mestiagem dosconsumos engendrando diferenas e formas locais de enraizamento.(CANCLINI, 1999: 170)

    A persistncia das identidades locais e nacionais, porm, depende da inseroem um processo de comunicao que se estabelece atravs de circuitos de produo,

    comunicao e apropriao da cultura. Trata-se de um relato construdo e reconstrudo

    incessantemente por diversos atores e poderes, que, entretanto, possuem condies de

    interveno desiguais.

    Essa nova configurao global promove o enfraquecimento da identificao com

    a cultura nacional, reforando outros tipos de laos culturais, de maneira que as

    identidades nacionais permanecem fortes, especialmente no que diz respeito amanuteno dos direitos legais e da cidadania, mas as identidades locais, regionais e

    comunitrias tm se tornado mais importantes (HALL, 1999: 73). Assim, estas

    identificaes, que podem ser definidas como globais, comeam a deslocar e at

    mesmo apagar as identidades nacionais.

    Trata-se, enfim, do advento da Idade Mdia10, quando o global e o local se

    encontram e se mesclam de maneira tal que,

    em verdade, o mundo contemporneo, em ntima conexo com acomunicao e sua verso miditica, deve ser formulado comoglocalidade, isto , como conjuno, tensa, entre fluxos culturaislocais e globais, possibilitando, dentre outros procedimentos, pelacomunicao midiatizada. (RUBIM. A., 2000a: 75)

    10

    Chamamos de Idade Mdia a sociedade contempornea estruturada e ambientada pela comunicao. In RubimA.A contemporaneidade como Idade Mdia. Disponvel em:

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    No atual contexto de globalizao econmica e mobilidade social, as identidades

    territoriais mantm sua relevncia, ainda que sob formas modificadas e segundo novas

    configuraes. O territrio perde seu carter totalizador at ento ostentado nas

    sociedades tradicionais - e tende a fragmentar-se, tornando-se multifocal e puntiforme.

    O apego territorial assume um valor simblico-expressivo e uma carga emocional, sem

    que haja a necessidade da mediao de convivncia fsica e pertinncia a uma

    comunidade local, do ponto de vista normativo.

    Nesse processo, existem ainda outros meios de legitimar e difundir as

    identidades territoriais. Considerando a importncia da televiso na sociedade

    contempornea, indispensvel uma incurso nos aspectos determinantes para sua

    condio de participante nos processos identitrios.

    2.2.2 Televiso e Identidade Regional

    A anlise da Televiso Educativa da Bahia, no Brasil, e da Televisin de Galcia

    (TVG), na Espanha, parte do pressuposto de que a televiso - pelo seu amplo poder de

    alcance - possui hoje um papel extremamente significativo para a vivncia e

    convivncia dos indivduos. A TV caracteriza-se como um poderoso aparato do sistematecnolgico da Idade Mdia vivida atualmente, quando perde o seu carter de mero

    transmissor de mensagens e alcana ostatusde formatador da prpria realidade. Dessa

    forma, este meio de comunicao adquire importncia para a difuso e manuteno da

    identidade no contexto contemporneo.

    Ao transformar a representao em realidade, a televiso remete idia de

    telerrealidade:

    A mdia, ao consumar um espao eletrnico em rede, povoado detelevivncias em abrangncia globalizante, em verdade, constri umaoutra e nova dimenso constitutiva da sociabilidade contempornea, aqual sugere denominar de telerrealidade (Rubim, 2000: 40).

    Trata-se da produo de uma realidade espao-temporal inovadora, que

    possibilita ao indivduo a relao instantnea com o mundo, atravs da TV. Para o

    jornalista e professor Eugnio Bucci, A Televiso no mostra lugares, no traz lugares de

    longe para muito pertoa Televiso um lugar em si. Do mesmo modo, ela no supera os

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    abismos de tempo entre os continentes com suas transmisses na velocidade da luz: ela encerra

    um outro tempo(BUCCI e KEHL, 2004: 31.grifos do autor).

    Assim, esta mdia assegura o registro no simblico como pr-requisito para o

    real de maneira que o real s admitido como argumento aps sua absoro pelo

    simblico. S verdadeiro o que adquire visibilidade. Da a assertiva de que o que no

    aparece na TV, no acontece de fato (BUCCI e KEHL, 2004: 33).

    Em relao importncia da TV para a identidade regional, Nestor Garca

    Canclini (1999) observa que, durante a primeira metade do sculo, o rdio e o cinema

    emergem como colaboradores na organizao dos relatos da identidade e do sentido de

    cidadania nas sociedades nacionais. A partir do seu surgimento e expanso como meio

    de comunicao de massas, a TV torna-se mais um agente das inovaes tecnolgicas,

    sensibilizando a populao para o uso de aparelhos eletrnicos e para a liberalizao dos

    costumes com um horizonte mais cosmopolita. Ao mesmo tempo, h uma unificao de

    padres de consumo com uma viso nacional, tendo em vista que os meios pertenciam

    predominantemente aos capitais nacionais.

    Na dcada de 80, porm, com a abertura da economia dos pases aos mercados

    globais e aos processos de integrao regional reduz o papel das culturas nacionais. Atransnacionalizao das tecnologias e da comercializao de bens culturais diminui a

    importncia de referentes tradicionais, de maneira que a associao exclusiva a uma

    comunidade nacional deixa de ser o principal definidor da identidade (CANCLINI,

    1999).

    Nesse contexto, a televiso interliga-se a um emaranhado de identidades a serem

    desenvolvidas:

    Mltiplas possibilidades de identidades emergem com fora emtempos de globalizao ou melhor, de glocalizao, porqueconjugando fluxos e estoques globais e locais, colocados em contato enegociao pelas redes de comunicao contemporneas. (Rubim, A.e RUBIM, L., 2004:26).

    Em outras palavras, a televiso, que paradoxalmente vem a ser considerada

    como instrumento de comunicao geralmente utilizado numa perspectiva de

    desnacionalizao (WOLTON, 1996: 280), pode tornar-se um importante recurso

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    para a construo dos projetos identitrios na contemporaneidade numa co-produo

    com os processos culturaisartsticos, histricos, polticos, etc.- de determinada regio.

    No Brasil, pela incipincia da Televiso regional, so muito poucos os estudos

    que se debruam sobre o tema. Para definir o conceito de televiso regional, portanto,

    faz-se necessrio recorrer tradio europia. O terico catalo Bernat Lpez (1998) a

    define como referente

    a las actividades televisivas de cobertura especfica ydeliberadamente regional (inferior al mbito localmunicipal),tanto en sentido geogrfico como periodstico (contenidos). Enla tradicin europea, televisin regional se refiere

    preferentemente a las emisiones desconectadas de los centros

    regionales pertenecientes a cadenas estatales (generalmentepblicas)11(LPEZ, 1998: 07).

    Com a proliferao de TVs independentes de carter regional, na Europa dos

    anos 1980 e 90, essa definio considerada pejorativa, sendo preterida em prol da

    noo de televiso de proximidade, utilizada para emissoras que se dirigem,

    fundamentalmente, a uma comunidade humana de tamanho mdio a pequeno, delimitada

    territorialmente, com contedos relativos sua experincia cotidiana, suas preocupaes e

    problemas, seu patrimnio lingstico, artstico, cultural e sua memria histrica (LPEZ,

    1998).

    No Brasil, ao contrrio do que ocorre na Europa, a televiso regional

    independente no um fenmeno comum, sendo mais caracterstico a existncia de

    emissoras afiliadas a redes nacionais, com parte da programao produzida localmente

    (SIMES, 2005). Desta forma, tanto a definio de televiso regional, como a de

    televiso de proximidade, parecem apropriadas para ambas as emissoras estudadas.

    parte das atribuies das emissoras pblicas estaduais e municipais a

    contribuio na legitimao e difuso das identidades locais. Desta forma, as duas

    televises estudadas possuem um compromisso com as sociedades onde esto

    localizadas e devem orientar-se promoo da cultura regional, atravs de suas

    11s atividades televisivas de cobertura especfica e deliberadamente regional (inferior ao mbito local-municipal), tanto em sentido geogrfico como jornalstico (contedos). Na trad io europia, televiso

    regional diz respeito, preferentemente, s emisses desconectadas de centros regionais pertencentes aredes estatais (geralmente pblicas) (traduo da autora).

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    polticas. Contudo, no processo de formao identitria, tambm toma relevo fatores

    como o contexto histrico de desenvolvimento da sociedade estudada e sua

    conformao scio-cultural.

    2.2.3 Identidade baiana e a Baianidade

    A identidade baiana, construda ao longo dos sculos, adquire na atualidade uma

    conformao de um arranjo tecido de familiaridade, religiosidade e sensualidade,

    reunindo os elementos mais dspares, em um sistema que se baseia justamente na

    adjacncia do desigual, dita de forma no problemtica (MOURA, 2000: 10).

    Assim, mesmo tratando-se de uma representaopara baianos e no-baianos

    a dita baianidade, expressa pela mdia, vendida aos turistas e convertida localmente em

    realidade, no chega a traduzir o complexo identitrio do estado (e regio) da Bahia, em

    sua totalidade. Do sertanejo e sua cultura cabocla, aos remanescentes dos garimpos da

    Chapada Diamantina, passando pelos indgenas, etc., as mltiplas identidades so

    reduzidas ao que seria a identidade eminentemente afro-lusitana do litoral, Recncavo e,

    principalmente, da capital, Salvador.

    O historiador e antroplogo, Antonio Risrio, em seu livro Uma histria da

    cidade da Bahia (2004), busca desvendar o momento em que os brasileiros com

    exceo dos indgenas - so considerados baianos, e no lusitanos ou africanos. Para

    tanto, faz uso de acontecimentos histricos que antecedem inclusive o reconhecimento

    do Brasil como nao.

    Em 1602, quando membros da Ordem de So Bento [na Bahia]propuseram admitir novios pertencentes gente brasiliense denaso, a iniciativa foi sumariamente rejeitada. O que interessa nesteepisdio , em primeiro lugar, a desconfiana dos beneditinos nashabilidades dessa gente, mas tambm o fato de que essas pessoas deorigem mista eram definidas pelo lugar em que haviam nascido, nocaso, o Brasil, e que esse lugar estava sendo usado como critrio paradefinir sua etnicidade. Este o primeiro momento, tanto quanto me dado entender, em que se considera o fato de se ter nascido no Brasilcomo elemento que define a identidade e como elemento precursor danacionalidade (SCHUARTZ apudRISRIO, 2004: 425).

    Para o antroplogo Darcy Ribeiro (apud RISRIO, 2004), os mestios

    brasileiros mamelucos e mulatos etnicamente pertencem a uma terra de ningum,

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    durante o perodo da colnia, por no serem ndios, europeus, ou negros africanos. A

    fim de fugir dessa ninguendade, eles se vem impelidos a criar uma identidade tnica

    at ento inexistente: a brasileira. Por sua vez, os brancos, ou quase brancos,

    pertencentes elite do pas, consideram-se portugueses, pois as terras brasileiras so

    propriedade do Reino de Portugal.

    A Bahia, por sua vez, ainda que sob o jugo de uma forte hierarquia, no prima

    pelo apartesmo. As relaes sociais locais so em sua maioria marcadas por uma

    informalidade tal que choca os viajantes europeus oitocentistas. Com amplos espaos de

    convvio, negros e mestios podem engendrar mundos culturais paralelos e nutrir-se do

    circuito de idias e crena da cultura erudita.

    De lance em lance, de trama em trama, esses mestios foram sesentindo, mais e mais genuinamente, filhos da terra em que de fatohaviam nascido. Como rebentos da Bahia. E por esses caminhos foiprincipiando a se configurar, entre ns, um povo (RISRIO, 2004:436).

    Naquela poca, a percepo global de pas, existe apenas para a metrpole, j

    que, localmente, no se vislumbra a idia de Brasil como nao e da existncia um povo

    brasileiro. Essa situao comea a modificar-se apenas com a chegada de Dom Joo VIe sua corte para o Rio de Janeiro em 1808, fugidos das tropas de Napoleo. Nesta

    ocasio, cria-se uma situao atpica em que a metrpole tem de curvar-se colnia,

    ento sede do imprio portugus. Como conseqncia, a Revoluo Constitucionalista

    do Porto pede a independncia das terras do Brasil, em 1820 (RISRIO, 2004).

    A proclamao da independncia, em 07 de setembro de 1822 ocorre de maneira

    pacfica em todo o pas, com exceo da Bahia. Os lusitanos instalados no Estado

    recusam-se a reconhecer a independncia, entrando em guerra contra os nativos. Com avitria baiana, em 02 de Julho de 1823, criado um dos maiores smbolos de identidade

    no Estado: a festa de Dois de Julho. As comemoraes pela independncia da Bahia, se

    caracterizam por um tradicional desfile, cujo ponto culminante a passagem do

    caboclo12. O evento tambm realizado em muitas cidades do interior do estado,

    12As comemoraes baianas do Dois de Julho no possuem como centro a figura de nenhum monarca ou

    da famlia real e sim da figura nativa do caboclo, legtimo representante dos baianos que lutaram pelaindependncia da Bahia.

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    como o exemplo de Lenis, ainda que no se tenha registro da participao daquela

    regio na guerrarestrita a Salvador e Recncavo (Idem, Ibidem).

    Uma identidade baiana de fato se conforma somente entre o final do sculo XIX

    e incio do XX. A proibio do trfico negreiro, por volta de 1850, promove a reduo

    substancial da chegada dos africanos, o que contribui para a incorporao sociedade

    baiana, dentro de algumas dcadas, dos negros que aqui se encontram.

    Com a letargia econmica que toma conta da regio nordeste, assolada pela seca

    e pelas arraigadas desigualdades sociais, na primeira metade do sculo XX, dada a

    largada para o processo migratrio em direo ao sudeste do pas em busca de melhores

    condies de vida. Este xodo torna-se a mola propulsora do estigma13, em relao

    aos nordestinos, de ignorantes e inaptos para o trabalho, criado na regio sul e sudeste.

    J os negros e mestios da Bahia, mesmo pertencendo ao grupo estigmatizado,

    se diferenciam, em parte, dos outros migrantes do nordeste, na medida em que so

    vistos como povo extico, dotado de certa realeza, de um ritmo prprio que veio a

    gerar o samba -, alm de possuidor de grande autoridade em relao s religies afro

    descendentes e de uma beleza e luxria peculiar (MOURA, 2000).

    Em sntese, a identidade baiana conforma-se a partir de uma matriz histricatanto como resposta a um estigma, quanto pelo reconhecimento da alteridade em relao

    ao outro. O povo da Bahia caracterizadopor artistas, estudiosos, intelectuais e pelos

    prprios baianos - como possuidor de uma sensibilidade especfica, marcada pela

    ludicidade, pela musicalidade e pela disposio de aproximar a produo simblica da

    vida cotidiana.

    A hibridizao14 predominantemente afro-lusitana concorre para uma

    representao caracterizada pela familiaridade nas relaes pessoais, que vai de

    encontro desigualdade social e evita o estranhamento radical; a religiosidade, pea-

    chave na conformao dos falares baianos, devido grande tradio oral das religies

    13 Segundo Pierre Bourdieu (apud REBOREDO, 2000: 228), os grupos estigmatizados, aos que soatribudas uma pertena determinada a partir de propriedades desqualificadoras que constituem aidentidade social, vem-se fechados numa categorizao que os obriga a destacar o mais positivo da visooferecida pelos outros a fim de conseguir uma classificao minimamente favorvel.14Canclini (1999) se refere hibridizao como um processo de apropriao, pelos diferentes grupos, de

    elementos de vrias sociedades. Essa apropriao se d de maneira desigual, atravs da combinao etransformao das diferentes culturas.

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    africanas que acrescentam inmeros vocbulos ao idioma portugus; e a sensualidade:

    Salvador como plo feminino e negro, com ritmos e comida exticos, objeto de desejo

    do homem branco e mais recentemente dos turistas e forasteiros (MIGUEZ, 2002).

    um texto construdo, sim, posto que texto, para isto concorrendo otrabalho de um sem nmero de artistas e escritores, como JorgeAmado e Dorival Caymmi, entre os nativos, e muitos outros,incluindo alguns que muito pouco estiveram em Salvador, comoCarmem Miranda e Ari Barroso. E construdo tambm pelos diversossetores do empresariado do turismo e pelas elites que vm ocupando ogoverno estadual e o municipal quase ininterruptamente desde os anossessenta, que souberam captar e re-elaborar o capital simblico dabaianidade na forma de uma propaganda que, ao mesmo tempo,apresenta a Bahia como sede da fruio tropical e moradia de um povofeliz. (MOURA, 2001: 09)

    A identidade baiana, porm, no tem origem nesse momento, e sim adquire nova

    formatao, na qual as caractersticas convenientes, tanto para o fomento do turismo,

    quanto para o grupo poltico que dirige o estado h cerca de trinta anos, so enfatizadas

    e reafirmadas. O Produto Bahia aparece, ento, nessa nova perspectiva, com o turismo

    intensificando as relaes com o campo cultural atravs das estratgias de marketing da

    BAHIATURSA, que oferecem, dentre seus bens simblicos, festas tradicionais baianas

    e manifestaespopmodernas, direcionados no s ao pblico local, mas tambm a um

    consumidor externo. Da a definio de Bahia for export.

    A essa imbricao do Turismo com um mercado da cultura que se vaiconsolidando na cidade de forma crescentemente subordinada a umalgica de indstria cultural, comparecem, como bvio, acomunicao miditizada e a cultura miditica, j presentes noterritrio baiano. E comparecem, no exatamente como novidades,uma vez que, desde os anos 1970 as aes de marketing daBAHIATURSA vinham se utilizando largamente das possibilidadesabertas por estes dois campos, em especial, recorrendo s tcnicas domerchandisingtelevisivo (MIGUEZ, 2002: 252).

    A televiso, ao acompanhar os fluxos em prol da valorizao do local, cumpre

    um papel importante na formatao de uma nova identidade baiana. Neste projeto,

    destaca-se a TV Bahia, emissora pertencente famlia do senador Antonio Carlos

    Magalhes e retransmissora da programao da Rede Globo de Televiso. Os motivos

    da adeso concepo, principalmente governamental, de baianidade, so diversos.

    Entre eles, sobressai a emergncia contempornea de uma regionalizao que promova

    identificao com o pblico. Interessa Rede Bahia grupo empresarial ao qual a

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    emissora pertence -, no s o desenvolvimento do Estado, como a manuteno dostatus

    quo baiano que a beneficie atravs da participao e apoio s suas mais variadas

    propostas, alm da extensa publicidade veiculada.

    A Televiso Educativa da Bahia, por sua vez, se preocupa em promover a

    identidade baiana de forma mais ampliada. Em sua programao, alm da nfase em

    aspectos como a cultura afro-baiana - as religies, as festas, a capoeira, a msica, etc.

    verifica-se o destaque de manifestaes culturais de outras regies da Bahia com sua

    variedade de tecidos antropolgicos e sua diversidade de processos civilizatrios

    (MIGUEZ, 2002: 23).

    A TVE se caracteriza pela difuso de uma nuana da cultura baiana que se

    diferencia, de certa forma, da cultura tradicionalmente promovida pelos meios de

    comunicao baianos hegemnicos e campanhas voltadas para o turismo. A Bahia

    exibida pela emissora, embora expanda seu raio e atuao por diversos modos de ser

    baianos, no avana no sentido de enfatizar possveis tenses e conflitos. Apenas so

    priorizados os aspectos festivos de um estado bero de culturas, com suas tradies,

    ritos, danas e folguedos.

    Atravs das mais diversas contribuies culturais, miditicas, polticas artsticase histricas, a identidade baiana se forma e se estabelece. Tambm na Galcia o

    processo de constituio da identidade funciona com bastante eficcia, ainda que de

    maneira diferenciada da baiana, devido sua grande antecedncia histrica e ao peso de

    manifestaes da cultura regional como o idioma, que desde a formao da nao

    espanhola, sofreu perodos de represso e constante desvalorizao por parte do poder

    central.

    2.2.4 Desde a Gallaecia at a Galeguidade15

    Como a identidade um construto frequentemente submetido aos processos

    histricos, o estudo da identidade galega se volta busca das bases de formao do que

    15O termo Galeguidade escolhido como representante da identidade galega aps verificao de seuuso por estudiosos do tema (REBOREDO; BARAMENDI. 2000; 2000) e, principalmente, porque guardasimilaridades com o termo local baianidade. Alm disso, trata-se do ttulo de um programa da Televisin

    de Galicia, que aborda a temtica da imigrao, tendo sido o primeiro a ser emitido regularmente viasatlite pela TVG, em dezembro de 1994.

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    se convenciona chamar Galcia. Nesse sentido, a noo de territrio faz-se presente,

    tendo em vista que os grupos tnicos originrios da velha Europa, salvo raras excees,

    contam com um referente territorial definido de maneira relativamente precisa

    (REBOREDO, 2001).

    No perodo castro-romano, so abundantes as referncias Gallaeciagrande

    regio que abarca os territrios onde hoje esto as comunidades espanholas da Galcia,

    Len e Astrias, alm de Portugal. Seus habitantes so batizados pelos romanos como

    galaicos e stures (GONZLEZ REBOREDO, 2001). Entre os sculos VIII e XI, o

    termo Galcia passa a ser aplicado a um territrio de fronteiras semelhantes s atuais,

    de modo que esta definio deixa de ser meramente administrativa para cobrir-se de

    significado geogrfico, poltico, populacional e antropolgico (PREZ, apud

    GONZLEZ REBOREDO, 2001).

    A partir do sculo XI, tnues e sucessivas divergncias geram as divises de

    territrio responsveis pela atual configurao. Desde que se perfila o condado de

    Portus Cale, entre o Rio Minho e o Mondego, inicia-se um processo de distanciamento,

    tanto poltico como cultural, entre o norte e o sul do velho territrio dos galaicos. No

    sculo XII, essa diviso j aparece consolidada. Em documentos do perodo, o Rio

    Minho aparece como um marco fronteirio entre Portugal e Galcia, como nos dias de

    hoje (GONZLEZ REBOREDO, 2001).

    Alm do trao territorial, tambm o idioma pode ser considerado um acentuado

    demarcador de uma identidade especfica. Mesmo que o galego lngua derivada do

    antigo tronco galaico-portugus - no se restrinja unicamente s fronteiras da

    Comunidade Autnoma, sua permanncia e conservao tornam se um ponto a mais de

    reafirmao identitria.

    Desde a primeira metade do sculo XII, so encontrados registros da existncia

    de seres humanos denominados como galegos emcontraposio a outros, chamados

    portugueses, leoneses, castelhanos16, etc. Dentre as fontes utilizadas para tal assertiva,

    destaca-se a Historia Compostelana, escrita por religiosos vinculados Igreja do

    16 Os castelhanos so as pessoas originrias da provncia da Castela , na Espanha. Essa denominao

    passa a indicar, pela centralidade da provncia nos acontecimentos histricos, o idioma espanhol e osespanhis em geral.

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    apstolo Tiago, durante o perodo de influncia de um dos personagens mais destacados

    da histria galega, o arcebispo Xelmrez (GONZLEZ REBOREDO, 2001).

    No entanto, de acordo com o antroplogo galego, Justo G. Beramendi (2001),

    em seu texto Os usos ideolxicos da etnicidade. Comparacin dos nacionalismos

    galego e espaol,a primeira conscincia nacional surgida na Galcia a espanhola e

    no a galega, embora seja evidente a diferena entre lngua, costumes, cultura popular,

    etc., dos habitantes da comunidade autnoma, e das outras unidades histricas da Coroa,

    no final do sculo XVIII. Esse fato se deve grande castelhanizaodos grupos sociais

    superiores galegos que, desde o sculo XVI, no assumem a identidade regional,

    comumente vinculada s classes mdias e pobres e aos campesinos.

    Esta valencia de marcador social negativo intensificaranse aindamis no decurso do sculo XIX, coa introducin e xeneralizacin,ainda que deficientes, dos mecanismos de nacionalizacin e

    socializacin en clave espaola do estado liberal e tamn coaorientacin da emigracin cara a tantos outros territorios do proprio

    Estado como a pases de lingua e cultura oficial orixinariamentecastels. Isto far que, paradoxalmente, a etnicidade galega funcione contrario, como poderoso inhibidor da implantacin social amplade calquera idea de nacin galega centrada precisamente nas

    peculiaridades etnolingsticas17(BERAMENDI, 2001: 298).

    A identidade pr-nacional espanhola fruto de uma srie de aes em prol da

    unificao, desde o perodo do chamado Antigo Regime18, dentre as quais, a

    generalizao do castelhano nos usos pblicos e intelectuais, com a imposio do ensino

    do idioma e a proibio de que se publiquem livros em outras lnguas; a uniformidade

    religiosa em torno do catolicismo; e a extenso das instituies polticas e de direito

    pblico maior parte dos territrios da monarquia. Em relao ao exterior, a apario

    dos estados modernos e a constncia de confrontos com outros estados na Europa e

    17Esta qualidade de marcador social negativo se intensificar ainda mais no decurso do sculo XIX, coma introduo e generalizao, ainda que deficientes, dos mecanismos de nacionalizao e socializaofundamentalmente espanhola do estado liberal e tambm com a orientao da emigrao a tantos outrosterritrios do prprio Estado, como a pases de lngua e cultura oficial originariamente castelhanas. Istofar que, paradoxalmente, a etnicidade galega funcione ao contrrio, como poderoso inibidor daimplantao social ampla de qualquer idia de nao galega centrada precisamente nas peculiaridadesetnolingsticas (traduo da autora).18 Antigo Regime o termo utilizado pelos revolucionrios franceses para designar os sistemasmonrquicos de modelo similar ao francs, antes da revoluo de 1789. Na Espanha, este sistema de

    governo que se origina na Idade Mdia e caracterizado pelo poder absoluto do rei e diviso dasociedade em estamentos - perdura at o incio do sculo XIX.

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    Amrica provocam a propagao de esteretipo pr-nacionais na Europa dos sculos

    XVI-XVIII (BERAMEDI, 2000).

    Apesar de todas estas medidas, as identidades no castelhanas presentes na

    Espanha sobrevivem com bastante fora. Isso se deve ao carter pluritnico e grande

    diversidade territorial das instituies do pas, principalmente em relao aos idiomas e

    aspectos materiais e simblicos das regies. J a religio, sempre catlica, aparece como

    uma exceo nesse contexto. Assim, pode-se afirmar que

    existin numerosas identidades tnicas en sentido estricto, cun maioro menor grao de extensin social respecto da etnicidade castel, queera a de referencia para o protonacionalismo espaol. (...) Pero moi

    significativo que nin a etnicidade, nin as peculiaridades institucionais

    previas, nin a suma de mbolos dous factores sexan no futurocondicins suficientes, mais si necesarias, para o desenvolvementodun nacionalismo alternativo espaol. Como sabemos, isto socorrer en Catalua, Pas Vasco e Galicia antes da Guerra Civil19(BERAMENDI, 2001: 290).

    Durante as guerras napolenicas (1808-1814), que submetem a Espanha ao

    poder de um imperador estrangeiro, duas correntes nacionalistasuma de continusmo

    e colaborao com o regime francs e outra que implica a mutao do

    protonacionalismo ao nacionalismo liberal espanholadquirem particular relevncia e

    se sobrepem s identidades regionais. Com a derrota francesa, o nacionalismo liberal

    ganha fora, atravs da legitimidade do novo sistema, e utiliza como base para sua

    expanso uma vasta historiografia espanholizadora. A lngua castelhana novamente

    promovida como instrumento de nacionalizao (BERAMENDI, 2001).

    A consolidao do estado liberal moderno, em meados do sculo XIX, gera uma

    situao contraditria: ainda que a identidade nacional espanhola fosse monoplica em

    todo o territrio do Estado, as identidades chamadas tnicas se reforam e comeam a

    ser utilizadas em revivais ideolgicos-culturais, incluindo o galego. Condicionado pelo

    processo poltico no estado espanhol, surge o galeguismo, movimento que possui trs

    19 Existiam numerosas identidades tnicas, no sentido estrito, com maior ou menor grau de extensosocial voltada etnicidade castelhana, que era a de referncia para o protonacionalismo espanhol. (...)Porm, muito significativo que nem a etnicidade, nem as peculiaridades institucionais prvias, nem asoma de ambos os fatores sejam, no futuro, condies suficientes, mas sim necessrias, para o

    desenvolvimento de um nacionalismo alternativo ao espanhol. Como sabemos, isto s ocorrer naCatalunha, Pas Basco e Galcia antes da Guerra Civil (traduo da autora).

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    etapas: o provincialismo, de 1840 a 1885; o regionalismo, de 1885 a 1915, e o

    nacionalismo de 1916 em diante (OBELLERIO, 1997).

    Na fase provincialista, o galeguismobaseia-se principalmente na exaltao da

    Galcia e de seu povo, em protesto ao estigma imposto pelos castelhanos. No se

    verifica, ainda, a assuno de uma Galcia dotada de nacionalidade prpria. A

    publicao do livro Cantares gallegos, de Rosala de Castro, em 1863, impulsiona o

    Rexurdimento Literrio, ou seja, o ressurgimento de uma literatura no idioma galego,

    acompanhado pela afirmao de uma historiografia regional e pela tentativa de

    consolidao do jornalismo impresso em galego (Idem, ibidem).

    J o regionalismo tem Manuel Murgua, como principal expoente. Trata-se de

    um perodo formado por diversas correntes ideolgicas que possuem em comum a

    crena da Galcia como uma nacionalidade com direito a recuperao e defesa de seus

    sinais de identidade culturais e lingsticos e a autonomia poltica. A fase

    nacionalista, por sua vez, conta com o intelectual Vicente Risco como idelogo e

    busca a essncia da nacionalidade galega na etnicidade e na exaltao de um modo de

    vida especfico (BERAMENDI, 2001).

    O movimento galeguista, no entanto, encontra-se reduzido a um pequeno grupode profissionais liberais, estudantes e intelectuais, at 1931, quando proclamada a II

    Repblica e se multiplicam os partidos nacionalistas. Em 1936, o Estatuto da

    Autonomia aprovado no parlamento galego, mas com o incio da guerra civil e com o

    golpe militar, o documento perde sua validade (OBELLERIO, 1997).

    O perodo do ps-guerra pode ser considerado como tempos difceis para a

    cultura galega. Para as comunidades autnomas, a ditadura franquista significa uma

    forte tentativa de bloqueio a toda e qualquer expresso de uma cultura diferenciada, doque se convenciona chamar identidade espanhola, caracterizada pela tentativa de

    eliminar sistematicamente as lnguas e culturas nacionais. Na Galcia, bastante

    significativo deste perodoslogansdo tipo Gallego, no seas brbaro, habla la lengua

    del Imperio.20(ALONSO FERNNDEZ, 1997: 389).

    Esta situao comea a se modificar apenas a partir dos anos cinqenta, com a

    fundao da editorial Galaxia.Os exilados polticos e emigrantes tambm contribuem

    20 Galego, no seja brbaro, fale a lngua do Imprio (traduo da autora)

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    para o soerguimento da cultura e da lngua galega ao seguir escrevendo, editando jornais

    e realizando programas de rdio em galego, em um esforo coletivo sem precedentes,

    em prol da manuteno da cultura. O resultado foi a ampliao do nacionalismo galego

    (Idem,Ibidem).

    De feito, como x dixen, o franquismo tivo a medio prazo efectosparadoxalmente potenciadores do que queria exterminar, pois, emcontra da sa vontade, lexitimou os nacionalismos alternativos edeslexitimou o nacionalismo espaol por identificalo diante damaiora coa prpria dictadura, cs seus crimes e mesmo coa purairracionalidade21(BARAMENDI, 2000: 304).

    Desta forma, durante a transio da ditadura para a democracia, os caminhos

    interrompidos na II Repblica apontam para o reestabelecimento dos partidos, inclusive

    os nacionalistas, e a instaurao de instituies governamentais autnomas. Alm disso,

    a instituio da Televisin de Galcia representa um importante passo para a

    preservao da cultura galega, levantando como principal bandeira a normalizao

    lingstica, atravs da emisso em idioma galego de quase 100% de sua programao.

    No entanto, para compreender melhor de que maneira a televiso se desenvolve

    e se relaciona com a cultura da sociedade, na regio em que se encontra, opta-se por

    uma rpida incurso na histria do breve sculo XX.

    21 Efetivamente, como j foi dito, o franquismo, em mdio prazo, teve efeitos paradoxalmentepotencializadores do que queria exterminar, pois, ao contrrio do que se desejava, legitimou os

    nacionalismos alternativos e deslegitimou o nacionalismo espanhol por sua identificao, pela maioria,com a prpria ditadura, com seus crimes e mesmo com a pura irracionalidade (traduo da autora).

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    3 O SCULO DA TV: PERCURSO HISTRICO E CONTEXTO ATUAL

    No se sabe precisar ao certo como surge a televiso, um dos inventos mais

    fascinantes do sculo XX. Fruto de uma srie de pesquisas e descobertas, este meio de

    comunicao - criado entre as dcadas de 1920 e 1930 e consolidado mundialmente

    aps o fim da Segunda Guerra - implica diversas mudanas nos modos de socializao,

    comportamentos e rotinas da sociedade.

    O sculo XX escolhido como recorte histrico para a descrio das sociedades

    estudadas, por tratar-se de um perodo que abrange o nascimento do meio televisivo e

    sua legitimao como aparato imprescindvel configurao da sociedade atual. Esse

    itinerrio, portanto, se inicia por volta dos anos trinta, devido opo de enfatizar a

    evoluo das sociedades de consumo, nos pases onde as emissoras estudadas se

    desenvolvem, tendo em vista que seu estabelecimento delineia-se como uma condio

    sine qua nonpara a ocorrncia do avano global dos meios de comunicao de massas,

    dentre os quais a TV emerge como principal cone.

    As regies abordadas neste trabalho, a Bahia e a Galcia, pertencem a contextos

    geogrficos, populacionais e histricos distintos. O estado da Bahia possui um territrio

    de 564.692,669 Km e contingente populacional de cerca de 13 milhes de habitantes,

    distribudos em 415 municpios (IBGE, 2000). A Comunidade Autnoma de Galcia,

    por sua vez, possui 29.574,4 Km de rea, e apenas 2.760.000 habitantes (IGE, 2005),

    populao semelhante da capital baiana, Salvador. O pas galego dividido em quatro

    provncias: Ourense, Pontevedra, Lugo e A Corua22, onde est a capital Santiago de

    Compostela. As lnguas oficiais da Galcia so o galego e o espanhol.

    Mesmo com este significativo descompasso populacional e territorial, opta-se

    pela manuteno de toda a regio da Bahia, quando possvel, e no apenas a capital e

    sua regio metropolitana, tendo em vista que esta investigao inclui as estratgias

    comunicacionais e polticas da Televiso Educativa da Bahia, que possui como maior

    slogana promoo da diversidade cultural do estado.

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    Segundo grafia em galego a provncia denomina-se A Corua, embora a grafia espanhola La Coruaseja a mais conhecida.

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    3.1 Brasil: BahiaO Brasil da dcada de 1930 enfrenta um perodo de renovao poltica e

    econmica. Uma ciso entre as oligarquias agrrias paulista e mineira provoca o fim da

    Repblica Velha, quando uma aliana temporria entre as faces burguesas

    desvinculadas do caf - maior produto de exportao brasileiro -, as classes mdias e o

    setor militar tenentista levam o poltico gacho Getlio Vargas ao poder (KOSHIBA e

    PEREIRA, 2004).

    No campo econmico, o esgotamento do modelo agroexportador iniciado

    durante a Primeira Guerra Mundial, culminando com a crise que assola o mundo aps o

    crashda bolsa de Nova Iorque, em 1929. A desvalorizao sem precedentes do caf

    obriga o governo a adotar medidas visando reerguer a economia nacional. Alm da

    manuteno da renda atravs da destruio de milhares de toneladas de gros para

    minimizar os efeitos da superproduoa mquina estatal adota medidas de incentivo e

    proteo incipiente indstria nacional, como a desvalorizao da moeda e a expanso

    da indstria de base (GREMAUDI, VASCONCELOS e TONETO JR., 2002).

    No entanto, somente durante o perodo conhecido como Estado Novo, ditadura

    instituda pelo ento presidente Getlio Vargas, de 1937 at 1945, que a indstria

    comea a exercer uma influncia significativa na economia brasileira. Sob uma bandeira

    nacionalista, Vargas amplia os investimentos na indstria pesada para viabilizar a

    substituio de importaes de bens de consumo durveis. O pas inicia um perodo de

    reconfigurao, modernizando-se em diferentes setores. Entre as principais mudanas,

    possvel destacar o aumento gradativo da urbanizao, a expanso da classe operria e

    das camadas mdias, o crescimento populacional e o desenvolvimento do setor tercirio

    em detrimento do agrrio. (ORTIZ, 1998).

    Embora aumentem o grau de concentrao de renda, essas transformaes

    implicam uma melhoria significativa dos indicadores sociais, como a queda da taxa de

    analfabetismo e o aumento da expectativa de vida. O perodo de industrializao atinge

    seu auge em meados da dcada de 50, com o governo de Juscelino Kubitscheck

    (GREMAUDI, VASCONCELOS e TONETO JR., 2002).

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    A industrializao responsvel pelo incremento da economia nacional, mas

    continua restrita a determinados setores e, para a cultura em especial, desenvolve-se de

    maneira ainda mais lenta, motivada pela incipincia do mercado. O rdio, por exemplo,

    ainda que esteja organizado em termos comerciais desde 1935, se expande apenas na

    dcada de 50, influenciado pela legislao de 1952, que aumenta de 10% para 20% o

    percentual de publicidade permitido. Esse meio, apesar de ser o mais popular do pas na

    poca, exclui grande parcela da populao (ORTIZ, 1998).

    Mesmo atravessando um processo de tentativa de unificao poltica, motivado

    pela Revoluo de 30 e pelo Estado Novo, o Brasil da dcada de cinqenta no possui

    ainda a integrao cultural nos moldes de uma sociedade de massa na qual

    imprescindvel um centro onde se agrupem as instituies legtimas. Tambm a

    descentralizao dos plos econmicos e sociais contribui para o fato de que a

    construo da identidade nacional brasileira seja considerada apenas um projeto.

    Em relao ao Brasil, a Bahia possui um atraso de duas dcadas na consolidao

    das transformaes em marcha no pas desde 1930. Aps viver pesadamente o estigma

    do atraso e conservadorismo, o estado fomenta um fluxo de produo cultural altamente

    cosmopolita e vanguardista, a partir de 1950, no qual a Universidade da Bahia23tem um

    significativo papel. Entre outras aes, a instituio, atravs da contratao de

    professores estrangeiros, promoveu o intercmbio de civilizaes, oxigenando diversas

    reas do conhecimento nos campos das artes e das cincias que certamente vieram

    contribuir, de uma maneira geral, para a emergncia de um ambiente de positividades

    (RUBIM. L., 1999).

    Neste contexto, tambm se destacam outras manifestaes culturais da cidade

    como as jogralescas e a revista Mapa, movimentos liderados pelos estudantes

    secundaristas (dentre eles o cineasta Glauber Rocha), e o Clube de Cinema da Bahia. O

    mesmo acontece no aspecto econmico, com a instalao da Petrobrs e a adoo de

    polticas governamentais de incentivo industrializao, que trazem o desenvolvimento

    para o estado (Idem,Ibidem).

    23A atual Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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    O ciclo virtuoso da renascena baiana, no entanto, possui curta durao,

    chegando ao fim no incio da dcada de 1960. O vazio cultural24 se instala no estado

    com uma antecedncia de dez anos em relao ao resto do pas. Essa interrupo se

    deve, segundo o estudioso Paulo Miguez (2002), combinao de pelo menos quatro

    elementos: o golpe militar em 1964, que provoca o xodo dos artistas locais, seja para

    fugir da represso, seja para buscar alternativas de mercado para a produo; o

    afastamento de Edgar Santos da reitoria da Universidade da Bahia, diminuindo a

    agitao vivida pela instituio; a modernizao urbana de Salvador, que desloca o

    movimento cultural do centro da cidade para diversos pontos da orla martima e, por

    ltimo, as transformaes sofridas pelo campo cultural25 baiano e brasileiro,

    caracterizadas pela centralidade da produo da cultura no eixo Rio-So Paulo.

    Referimo-nos consolidao de um campo de indstria cultural quetendo a televiso como ponta de lana e o Centro-Sul do pas comoplo centralizador e irradiador, vai reconfigurar a cultura e a sociedadebrasileiras no seu conjunto. Com efeito, a metade dos anos 1960 noBrasil marca um trnsito de uma cultura de cariz escolar-universitriopara uma cultura midiatizada, uma cultura com padres de organizaoeconmica e valores estticos prprios (MIGUEZ, 2002: 208).

    Essa reconfigurao da sociedade brasileira a qual se refere o estudioso Paulo

    Miguez (2002) se d a partir do golpe militar de 31 de maro de 1964, que depe o

    ento presidente Joo Goulart. Temerosos com a grande instabilidade poltica

    caracterizada pelo avano das manifestaes promovidas pelas organizaes populares

    no incio da dcada, as elites conservadoras e os oficiais militares - apoiados pela classe

    mdia e pela igreja - implantam uma ditadura com durao de mais de vinte anos.

    O novo regime, institucionalizado em 1968 com o decreto do Ato Institucional

    n.5, confere poderes extremos ao Executivo como o de fechar o congresso, cassarmandatos, baixar leis em quaisquer esferas, etc. , estabelece o fim do

    pluripartidarismo, impe a censura aos meios de comunicao e persegue os dissidentes,

    24Nacionalmente, os primeiros anos da dcada de 70 foram denominados pelos estudos sobre culturabrasileira como vazio cultural, em funo do grande esmaecimento do fluxo criativo nacional a partir dodecreto do Ato Institucional n. 5, que provocou o aumento da censura e da represso sociedade civil(RUBIM, A. apudMIGUEZ, 2002).25O conceito de campo culturalremete, inevitavelmente Pierre Bourdieu, responsvel por desenvolveruma teoria geral dos campos para o entendimento de processos sociais. A noo de campo se refere aum espao social de relaes objetivas que permite identificar, nos mais diversos domnios da vida

    social (cultura, economia, religio, artes plsticas, etc.), quais os traos prprios de todos os campos equais os especficos de cada um deles (BOURDIEU apudMIGUEZ, 2000: 161-163).

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    atravs de um forte esquema de represso e do sistema de inteligncia nacional

    (KOSHIBA e PEREIRA, 2004).

    Economicamente, o Brasil atravessa um perodo de crescimento indito,

    motivado pela boa situao econmica mundial e pelo endividamento externo. O

    milagre brasileiro, como fica conhecido, dura at o incio da dcada de setenta e

    decorre das reformas institucionais e da recesso do momento anterior com a crise do

    populismo e o longo perodo de instabilidade poltica -, que geram uma capacidade

    ociosa da indstria nacional, alm do crescimento da economia mundial, permitindo a

    superao das taxas histricas de crescimento (GREMAUDI, VASCONCELOS e

    TONETO JR., 2002).

    A dcada seguinte marcada pela transio pacfica do regime militar para a

    democracia, pela elaborao da nova constituio em 1988 e por um ciclo de crises

    econmicas que assolam o pas, marcadas principalmente pela hiperinflao. O

    pesquisador Albino Rubim, define com clareza aquele momento histrico:

    A transio (lenta e gradual, como se dizia na poca) para ademocracia no pas foi marcada por enormes limitaes e inmerasambigidades. A derrota do movimento das Diretas J, em 1984,oferece um exemplo notvel dos compromissos da transio pelo alto,

    ento realizada. O produto acabado dessa transio conservadora foi a(auto)proclamada Nova Repblica, em cujo governo, comandadopor Tancredo Neves e depois Jos Sarney, conviviam ilustrespersonalidades e foras que serviram fielmente ditadura e sujeitospolticos que contra ela lutaram, empenhando-se na democratizaodo pas (RUBIM. A., 2001: 109).

    Na dcada seguinte, o plano real, implantado pelo ento Ministro da Fazenda

    Fernando Henrique Cardoso (FHC) consegue debelar a hiperinflao custa de um

    rgido controle dos gastos pblicos e da prtica de juros altos, culminando na eleio de

    seu criador para a presidncia da repblica em 1994 e posterior reeleio em 1998

    (KOSHIBA e PEREIRA, 2004).

    3.1.1 A televiso no Brasil

    A televiso chega ao Brasil por intermdio do empresrio Assis Chateubriand,

    que, na dcada de 40, compra uma emissora da Radio Corporation of Amrica(RCA),

    nos Estados Unidos. Apesar da implantao desta mdiaser considerada prematura por

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    uma pesquisa encomendada aos americanos, a TV Tupi, pertencente aos Dirios

    Associados, inaugurada de maneira precria e improvisada em setembro de 1950, no

    estado de So Paulo, com quadro profissional oriundo, em sua maioria, do rdio

    (VALIM e BIONDO, 2002).

    Para que se tenha uma idia, pouco antes da inaugurao da emissora, o tcnico

    americano responsvel pela sua instalao percebe que no h, no pas, aparelhos

    televisivos para captar as imagens a serem transmitidas. Ciente da demora no processo

    de importao, Chateubriand contrabandeia 200 televisores e os instala pela cidade em

    lojas, bares e no saguo da emissora, onde a multido espera para ver a novidade. Um

    ano depois, j existiam mais de sete mil aparelhos entre o Rio de Janeiro e So Paulo

    (GONALO JNIOR apudMATTOS, 2000).

    A TV passa ento a fazer parte do projeto de construo nacional. A

    incipincia do mercado - devido a fatores como o alto custo dos aparelhos receptores e a

    precariedade do empreendimento, ainda sem concorrentes - se evidencia pelos anncios

    da poca que, ao invs de convencer o espectador da qualidade do produto, expressam

    um discurso pedaggico em tom interpelativo, em prol da necessidade de modernizao

    do Brasil:

    Voc quer ou no quer a televiso? Para tornar a televiso umarealidade no Brasil, um consrcio rdio-jornalstico inverteu milhesde cruzeiros. Agora a sua vez qual ser a sua contribuio parasustentar to grandioso empreendimento? Do seu apoio depender oprogresso, em nossa terra, dessa maravilha da cincia eletrnica. Baterpalmas e aclamar admirativamente louvvel, mas no basta seuapoio s ser efetivo quando voc adquirir um televisor (SIMESapudORTIZ, 1998: 60).

    Em 20 de janeiro de 1951, inaugurada a TV Tupi Rio, a segunda emissora dos

    Dirios Associados, condomnio de empresas de comunicao, sob a tutela de

    Chateaubriand. A programao, neste perodo, produzida localmente e ao vivo. No

    final da dcada de 1950, j existem outras oito empresas de televiso em funcionamento

    inclusive com iniciativas de outros grupos concessionrios (MATTOS, 2000).

    Na Bahia, a primeira exibio pblica da TV, ocorre em 1957, em Salvador, com

    equipamentos e televisores cedidos por emissoras de outros estados. Os aparelhos so

    instalados na Praa da S, Rua da Misericrdia e Avenida Sete de Setembro, mostrando

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    um programa em circuito fechado, com objetivo de dar credibilidade ao novo meio

    (CARVALHO, 1989).

    Trs anos depois, em 19 de novembro de 1960, inaugurada a TV Itapoan. No

    incio, a emissora funciona ancorada em um contingente de profissionais locais e com

    produo ao vivo, que valoriza e d visibilidade mo de obra nativa, constituindo-se

    um mercado emergente, principalmente para os profissionais das artes cnicas, oriundos

    da Escola de Teatro da Universidade da Bahia.

    Socialmente, a inaugurao da TV para os baianos, a exemplo de outros estados

    brasileiros, no s representa o acesso ao media eletrnico, como tambm significa

    status, poder de compra. E, no caso em particular, tudo o que a sociedade metropolitana

    mais privilegiada pode desejar. Naquele momento, a televiso especialmente

    percebida pela populao como um dos cones mais representativos da modernidade

    outrora to escamoteada pela velha cidade que, naquele momento, vive sua

    renascena (RUBIM, L. apudVALIM e BIONDO, 2002).

    A programao da TV Itapoan, em seus primeiros anos, composta

    majoritariamente com material local, transmitido ao vivo26, com destaque para

    programas de auditrio e musicais. A inexistncia de tecnologias como a transmissovia satlite e o videoteipe - aparelho que permite a gravao dos programas -, inviabiliza

    a utilizao de uma programao nacional. (ROCHA, 2003).

    O videoteipe desembarca em terras brasileiras em 1959, chegando Bahia em 18

    de novembro de 1961, possibilitando a exibio de programas da Rede Tupi, em cadeia

    nacional (FABULOSOS PROGRAMAS..., 1961). As inovaes tecnolgicas

    patrocinadas pelo governo militar tambm contribuem para a expanso do sistema de

    redes.

    Em 1965, ano em que o Brasil se associa ao Sistema Internacional de Satlites

    (INTELSAT), criada a Empresa Brasileira de Telecomunicaes (EMBRATEL). Em

    1967, configura-se o Ministrio das Comunicaes que, ao reduzir a interferncia das

    26Em trabalho anterior, a autora divide a histria da TV baiana em trs etapas: local e ao vivoperodorelativo ao monoplio da TV Itapoan-; a fase da lgica de redesmarcada pela expanso da Rede Globoe centralizao das produes no eixo Rio-So Paulo e, finalmente, a fase do retorno ao localquando as

    emissoras reavivam o interesse pelo local, ainda que dotado de particularidades prprias ao contextocontemporneo (ROCHA, 2003).

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    empresas privadas, refora a influncia oficial no setor, facilitando a ingerncia poltica

    nos meios de comunicao (MATTOS, 2000). No ano seguinte, a rede nacional de

    microondas da EMBRATEL e o sistema de transmisso via-satlite so postos em

    prtica. Alm disso, a instituio do crdito ao consumidor facilita a compra de

    aparelhos televisivos.

    A execuo do projeto de integrao nacional comea, ento, a tomar corpo,

    no final da dcada de sessenta. As empresas de televiso, em especial a Rede Globo, so

    as principais representantes desta poltica, visto que a iniciativa estatal contribui para

    criao de um mercado nacional para as telecomunicaes, beneficiando apenas poucas

    empresas (BOLAO; ORTIZ, 1988, 1989). Estes anos se caracterizam pelo amplo uso

    de programas estrangeiros nas emissoras nacionais por motivos tanto econmicos

    quanto polticos, j que os enlatados custam muito menos do que produzir um

    programa local e no trazem problemas com a censura (MATTOS, 2000).

    Na Bahia, essa nova fase da televiso brasileira iniciada em 1969, com a

    inaugurao da segunda emissora baiana a TV Aratu, retransmissora da Rede Globo. A

    estri