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Telófases meDITERRÂNEAS Os limites do literário sob a égide do Farol ANAIS ELETRÔNICOS Fernanda Lima e Luciana Póvoa (Org.) Horus Educacional

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1 Telfases meDITERRNEAS Os limites do literrio sob a gide do Farol ANAIS ELETRNICOS Fernanda Lima e Luciana Pvoa (Org.) Horus Educacional 2 3 Fernanda Lima e Luciana Pvoa Edio e Organizao Telfases meDITERRNEAS Os limites do literrio sob a gide do Farol ANAIS ELETRNICOS 1 edio Horus Educacional 2009 4 Edio e organizao Fernanda Lima e Luciana Pvoa Telfases mediterrneas: os limites do literrio sob a gide do Farol ________________________________________________________ LIMA,FernandaLemosde&SILVA,LucianaPvoade Almeida(org.).TelfasesMediterrneas:oslimitesdo literriosobagidedoFarol.1edio.Riode Janeiro: Horus Educacional, 2009. ISBN:978-85-60250-17-2 I. Literatura clssica. II. Literatura Moderna. III. Literatura Comparada. IV. Teoria Literria.________________________________________________________ Horus Educacional www.faroldealexandria.com.br 5 Sumrio Apresentao 7 O modo de narrar grego e os escritos judaico-cristos 9 Alessandra Serra Viegas UERJ / PUC - Rio O perfil de Odisseu em Filoctetes29 Alexandre Rosa - UFRJ Poder e phrmaka: quando as mulheres curam49 Aline de Azeredo Laversveiler Guedes - UERJ Ana Paula Pereira Costa - UERJ Bruna Gaio Nardi Pinheiro - UERJ Orientadora: Dulcileide Virginio do Nascimento - UERJ Ana Cristina Cesar: poeta viajora 66 Anlia Montechiari Pietrani - UFRJ Delfos: quando o humano se torna sagrado80 Dulcileide Virginio do Nascimento - UERJ / FGV Tradio e Inovao: A Figura da Mulher na Literatura Helenstica 93 Elisa Costa Brando de Carvalho UERJ / UFRJ O lgos vos escolheu para o tmulo Por um thos da falncia106 na poesia-dor de Kostas Karyotkis Fernanda Lemos de Lima UERJ / Farol de Alexandria - UERJ Do corpo enquanto luz e escultura: para uma aproximaoentre Konstantinos Kavfis e Antnio Botto Henrique Marques Samyn - UERJ 114 6 Entre Infinitos e Particulares: a caminho de uma potica hermenutica do infinito Jean Felipe de Assis UFRJ / Unibenett 127 Telfases em amanheceres de abril: mortes, dores e solido nos ectoplasmas amorosos de Maria Polydouri143 Luciana Pvoa UFRJ / Farol de Alexandria - UERJ Aquelas mulheres de Troia: Eurpides e o desterro152 Tatiana Bernacci Sanchez UERJ / FGV Fraternidade e Fratricdio: o utpico e o trgico no romance Irmos Inimigos, de Nkos Kazantzkis 169 Tatiana Maria Gandelman de Freitas - UFRJ O filsofo e o imperador: Marco Aurlio e suas meditaes 180 Vitor Roberto de Paula Borno - UERJ 7 Apresentao

com grande satisfao que apresentamos os anais doI EncontrodoCrculodePesquisaFaroldeAlexandria, sediado no Setor de Grego da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com o sine qua non apoio da FAPERJ. Oevento,ocorridonomsdedezembrode2009, congregoupesquisadoresdetemasrelacionadosliteraturae culturaproduzidasnoMediterrneo,enfatizandoas interlocuesentreGrcia,EgitoeRoma,incluindoexegeses em dilogo com a produo literria moderna e contempornea. Aointitularmosonomedoencontroemquestopor TelfasesMediterrneas:oslimitesdoliterriosobagide doFarolpretendemospensarosmomentos-limiteemqueas clulas literrias e culturais sofrem suas telfases, dando ensejo multiplicaodedistintasvertentesdapoisisemseusmais variadosecomplementaresprocessoseinterpenetraes literrias. importanteressaltarqueosartigospresentesnesta coletneaestarodisponveisonlineatravsdoendereo eletrnico www.faroldealexandria.com.br, a fim de superar as fronteirasgeogrficasepermitiradivulgaogratuitadenossa produo cientfica. Esperamosqueapresentepublicaopossacontribuir paraoaprofundamentododebatenacionalarespeitodas literaturasemmomentosderuptura,promovendoofrtil incmodo necessrio aos estudos das mesmas. Fernanda Lima e Luciana Pvoa Organizadoras 8 O contedo dos trabalhos presentes nestes anais de total responsabilidade de seus autores. 9 O modo de narrar grego e os escritos judaico-cristos Alessandra Serra Viegas UFRJ/PUC-RIO1 Omododenarrargregocomeandoporumaexplicao posterior Algumasobrasliterriasoudecinemacomeampelo fimemarcamprofundamente,especialmenteporisso. Recordamo-nosdeMemriaspstumasdeBrsCubas,de Machado de Assis, para o primeiro exemplo, bastante conhecido e,paraosegundo,StealingHeaven(traduzidonoBrasilcomo Em nome de Deus), do diretor Clive Donner, uma adaptao de 1988 do caso de amor de Abelardoe Helosa para as telonas. Paraabordaroassuntoaquireferido,tambmnostocaa prefernciadecomearpelodepois.Pelomenos metodologicamente,jquetrataremosdeinteraesdacultura grega e judaico-crist nos textos histrico-literrios desta ltima apartirdosestudosdeLucianodeSamsata,umretorque expenosculoII(166a168d.C.)otratadoComosedeve 1Estetrabalhofazpartedaspesquisasemandamentodeminhadissertaode mestradoemTeologiaBblicapelaPUC-Rio,quetemcomobaseapercepodas influnciasdomododenarrargregoeseusmodeloshistrico-literriosnostextos Novo Testamento, tendo como estudo de caso o livro de Atos dos Apstolos e, mais especificamente, o personagem Barnab. 10 escreverhistria2.Nasegundaparte,contudo,voltaremosao antes,eaplicaremosalgunselementospresentesnotexto homrico e clssico ao segundo objeto de nosso estudo.Permitam-nosumabreveexplicaoquantoao queremosdizerquandofalamosdetextoshistrico-literrios.O matiz da noo de verdade histrica o qual preconizamos o em funo da inteno historiogrfica dos textos analisados e, neste ponto,utilizar-nos-emosdosargumentosdePaulRicoeur, ensinando-nosquehistriaeficotmemcomumoatode narrar e garantem uma funo mimtica, isto , de representao darealidade.Assim,quemcontaumahistriaequemnarraa histriatmumprocedimentocomum:asuaprpria historicidadequeambosverbalizam(MARGUERAT,2003, pp.23,24)3.Certoque(evontadenonosfaltapararealizartal pesquisa!)encontramosreflexosdomododenarrargregoata contemporaneidade,masaquiestabelecemosumrecorteafim dedeterminarqueelementoscontinuamoudes-continuamo cabedal literrio grego desde Homero at o perodo alexandrino, refletido em dois textos de cultura judaica escritos em grego, um 2 Luciano fixa, em seu panfleto, uma tradio bem anterior e fustiga a incompetncia dos historiadores de seu tempo. Escreve: o nico objeto, o nico fim da histria a utilidade, e s da verdade que a utilidade pode nascer(9). 3Ricoeurobservanaprpriacondiohistricacertosaspectosqueexigemquea historicidade humana s possa ser verbalizada em forma narrativa e, alm disso, que essaprpriaformanarrativaspossaserarticuladapelojogocruzadodasduas maneiras de narrar. A historicidade, de fato, no se verbaliza a no ser na medida em quesomosnsmesmosquecontamoshistriasoucontamosahistria[...]. Pertencemoshistriaantesdecontarhistriasoudeescreverhistria.Ojogode narrar est preso dentro da realidade narrada (RICOEUR, 1979, p.228). 11 dosculoIIa.C.eoutrodetrezentosanosdepoisosculoI d.C,respectivamente:aCartadeAristeas(querelataahistria daproduoedarecepodaSeptuagintaemAlexandriasob PtolomeuFiladelfo)eolivrodosAtosdosApstolos,partedo corpusdoNovoTestamentocristo.Detenhamo-nosneles.E voltemos a Luciano.Sucintamente,vejamosoqueWillemvanUnnik,em seulivroLukessecondbookandtherulesofHellenistic Historiography,1979(apud.MARGUERAT,2003,p.25), formalizoucomoasdezregrasdocdigodohistoriadorgreco-romanocombaseemComosedeveescreverhistriade Luciano4. Eis um resumo das mesmas: 1) escolha de um assunto nobre;2)utilidadedoassuntoparaosdestinatrios;3) independnciadeespritoeausnciadeparcialidade,numa palavra(oppnoio),doautor;4)boaconstruodorelato, particularmentenoincioenofim;5)coleoadequadado materialpreparatrio;6)seleoevariaonotratamentodas informaes;7)disposioeorganizaocorretasdorelato; vivacidade(tvopytio)nanarrativa;9)moderaonosdetalhes topogrficos; 10) composio de discursos adequados ao orador e situao retrica (van UNNIK, 1979, pp.37-60).A partir de agora,aplicaremosaostextosdemodo maisgeralCartade Aristeas e mais especfico (regra a regra) em Atos dos Apstolos as regras do cdigo lucinico. 4 Van Unnik utiliza-se tambm da Carta a Pompeu de Dionsio de Halicarnasso (escrita entre 30 e 7 a.C.). 12 A Carta de Aristeas e a LXX um relato judaico escrito em lngua grega AlexandreMagnomorrera.Deixaraemguerraseus generais pela posse do grande imprio construdo em to pouco tempo.AosPtolomeuscoube,dentresuaparte,acidadede Alexandria,umadasmaisdesenvolvidasdoconjuntoimperial. InclusivepelofatodeconteraBibliotecaquepossua,comose sabe,omaioracervobibliogrficodaAntiguidade.Ptolomeu Filadelfo5 era o governante. Este o ambiente em que transcorre aCartadeAristeas,talvezotestemunhomaisantigo(primeira metadedosculoIIa.C.?),emaiscompleto,daorigemda Septuaginta (datada do sculo III a.C.).ACartadeAristeas,escritapelopseudo-Aristeas6 consideradasemi-inspiradapelosjudeusdadisporaeconta como se deu a traduo e a recepo da Septuaginta (LXX) pelo reiPtolomeuFiladelfoepelacidadedeAlexandria.Odetalhe importante que nela na Carta de Aristeas os sbios judeus contam ao rei de Alexandria os elementos e crenas do judasmo edaToraheaqueleouvetudoissocomgrandegostoe 5 iito + otio = o que ama os irmos! 6Oautorseapresentacomoumno-judeu,umheleno,funcionriodacortede Ptolomeu e adorador de Zeus (16). Trata-se, claro, de uma fico literria cujo autor naverdadeumjudeualexandrinopartidriodaalegoria(DIZMACHO,1984, p.12). Ele no deve ser confundido com o historiador Aristeas (sculo I a.C.), o qual escreveuSobreosjudeus,omaisantigotestemunhosobreolivrodeJ,doqual Eusbio de Cesaria conservou um trecho. 13 satisfao7.Nopoderiasermaisclaraumarepresentaodo desejodosjudeusdeapontarsuaimportncianocontexto cultural e poltico em Alexandria, bem como sua capacidade de inculturao,jogodecintura,aberturaaomundohelenstico, bemcomosuarepresentaoeliberdadereligiosaquevigorara desde o domnio persa, com Ciro8. 7 Desde a Antiguidade, a LXX, primeira verso da Bblia Hebraica (no com a mesma disposio doslivrosdasbblias queconhecemoshoje),escritaemgregoapartirdo sculoIIIa.C.,emAlexandria,temsidoobjetodecontrovrsias.Admirada inicialmente pelo judasmo helenstico, foi logo aps severamente corrigida e por fim rejeitadapelojudasmodaPalestina.importantedestacarqueestaaverso conhecida pelos primeiros cristos e adotada como pano de fundo para os escritos do NovoTestamentoetambmserviudemodeloparaamaioriadasoutrasverses antigasdaBbliaproduzidasnosprimeirossculosdocristianismoemergente.No prefciodeABbliagregadosSetenta:dojudasmohelensticoaocristianismo antigo,osautoresdiscutemaimprescindibilidadedoestudodaLXXdemodo aprofundado,hajavistaaimportnciadeseucontextosocialdeproduo:Ao retornar ao texto hebraico a partir do sculo II d.C., os judeus encerravam cinco ou seis sculos durante os quais eles leram a Bblia tanto em grego quanto em hebraico [...]. A Septuaginta considerada como um monumento da Koin helenstica, anloga aosdocumentosconservadosnospapiros.Noestmaisisolada.Pode-semedir commaisexatido,sobaspalavrasdaSeptuaginta,aaculturaodojudasmoao helenismo [...].Elanonemumobramonoltica,nemumtextofixadodeumavez portodas.Aolongodosanos,elafoirecopiada,revisada,recenseadanosdiversos meiosqueautilizavam,interpretavam,conservavam,comintenesdistintas[...]. Conhecermelhoressasprodues,assimcomoostargunsaramaicosdoslivros reconhecer a produtividade do judasmo antes ou durante as origens crists e situar maisprecisamenteaSeptuagintanoinciodessasprodues(HARLetalli,2007, pp.10-13).8 Mais umadendo para corroborar o fato de os hebreus terem liberdade religiosa em Alexandria antes mesmo daquela oferecida por Alexandre Magno e posteriormente umdocumentonomnimointeressante:ospapirosdeElefantina,noEgito.Entre os textoshumacartade407a.C.queregistraumpedidodosjudeusdailhaonde estavainstaladaumacolniamilitarjudaicadesdeosculoVIa.C.,talvezmesmo desde antes aogovernador da Judia, Bagohi. Na carta, os judeus pedem que seja feitaareconstruodotemploaodeusYaho,destrudoem410,poisjtrsanosse tinham passado e nenhuma providncia fora tomada. Ao mesmo tempo, os remetentes 14 AcartaqueAristeas9dirigeaseuirmoFilcrates10 relataamissodaqualfoiincumbidojuntoaosumosacerdote dosjudeuspeloreiPtolomeu(1-8).DemtriodeFalera, responsveldabibliotecareal,propeaoreiPtolomeu,qued seuassentimento,fazeratraduodasleisdosjudeuspara incorpor-lasbiblioteca.AcenasepassaemAlexandria. Ptolomeuliberapordecretotodososescravosjudeusdoreino. Demtrioapresentaumelatoriosobreatraduoaserfeitae sugereaoreiqueescrevaaosumosacerdotedeJerusalm, Eleazar, solicitando homens qualificados, seis por tribo, a fim de obterumtextodignodasintenesdoEstadoedabiblioteca, bemcomoumatraduoexata.Ptolomeuenviaacartae presentesdestinadosaoTemplo.Eleazarresponde positivamenteeenviaalistados72sbiosjudeusmestresnas letras judaicas e tambm versados na cultura helnica que iro juntamentecomumacpiadaLei(9-82).Orelato apologticoentraemcena.Oambientedeslocadoparaa JudiaeAristeasdescreveoTemplo,oculto,Jerusalm,a Palestinaeseusrecursos(83-171).Orelatovolta Alexandria,ondeostradutoressorecebidos.Oreise dacartadizemaBagohi:Seconseguiresqueestesanturiosejaconstrudo,ters maismritodiantedeYaho,oDeusdocu,doqueumhomemquelhetivesse oferecidoumholocaustoesacrifciosnovalordemiltalentosdeprata (VV.AA.,1985:96,97).9Apioto - um dos melhores! 101iio|po n-oqueamaopoder!interessanteperceberossignificadosdos nomesemgregoafimdeentendermos,segundoospostuladosdeWittgenstein,os jogosdelinguagemexercidosaqui.Portrsdetodaanarrativa,humaapologtica judaica de superioridade. 15 prosterna(!) sete vezes diante dos rolos escritos em ouro. Segue-seumbanquetedurantesetenoitessucessivas,ostradutores respondem a 72 questes que o rei lhes prope, uma a cada um, e se admira com as respostas ( 172-300). O relato da traduo, realizadacoletivamentenailhadeFarosem72dias(como nmero recorrente e milagroso) encerra a Carta. A leitura da Lei feitaeostradutoresedelegadosdopolteuma11declaram: bomqueaobrafiquecomoest,semretoques.Heuforiae aclamaosquaisoreiseune.DemtriodeclaraqueaLei provmdeDeuseostradutorespartemcompresentesdorei parasieparaEleazar.Noeplogo,Aristeasanunciaoutros escritos ( 300-322). Embora a forma do texto seja de uma carta, sabe-se que a Antiguidade empregava, com frequncia, esse recurso literrio paraexporumtratado,sejaestefilosfico,moral,umateoria cientficaouumrelatodeviagens.Ficaclaroqueoautorse serviudevriasfontesparaescreveracartaelemenciona Hecateu de Abdera ( 31) e familiarizado filosofia popular helenstica, como a imitao de Zeus pelo monarca e a adorao dada aeste ( 228). Aqui comeamosa percebercaractersticas lucinicas na Carta de Aristeas. Maisdeumterodotextoseocupadobanquete oferecidoporPtolomeuaos72hspedestradutores.As 11 Os judeus de Alexandria no possuem direito de cidadania, mas formam uma etnia na cidade, um polteuma. Enquanto membros desse polteuma, os judeus do Egito so cidados (oiioi ) que seguem as regras do direito helenstico em uso em relao a sditos helenfonos dos Ptolomeus (HARL et alli, 2007, p.38). 16 perguntas do rei, s quais prontamente os tradutores respondem, lembramdiversasvezesosdilogosgregos,principalmenteO Banquete,dePlato,devidoaoambiente.Nochegamaser discursos, entretecidos em retrica, como prope Luciano (regra dez), mas fica clara a recepo, na carta, dos costumes gregos na prticadodilogonosbanquetes.Ainda,asindicaes topogrficas(regranove)oambientedotextocirculapor Alexandria, Judia/Jerusalm e retorna ao palcio de Ptolomeu so bem desenvolvidas. Quealeituradotextohistrico-literriodeveser proveitosa para os ouvintes-leitores (regra dois de Luciano) no novidadeparaopseudo-Aristeas.Ossbiosjudeus personagens dacarta aproximam os ideais gregos de filantropia aosmandamentosdaLeideMoiss.Saquiotextoj edificante.Abuscapeloidealdevirtudenotextotambm entretecida nas linhas e entrelinhas da carta, principalmente nos pequenos discursos onde se do as perguntas e respostas.Alm disso,otextoricoemvariedadeevivacidade(regrasseise oito), sendo obra da mo de um mestre. O modo como trabalha com a numerologia (72 ancios, tradues, dias, perguntas), com asmetforasealegoriasparatrazerumacompreensoracional da Torah faz do pseudo-Aristeas um exmio literato, obediente regra quatro de Luciano.Como elo ao prximo ponto, imprescindvel registrar que o influxo da Carta de Aristeas na tradio crist foi enorme, oquesenotaprincipalmentenoautordeLucas-Atos,com vriosreflexosdopensamentoedalinguagemdacarta,nos 17 nestes,masemoutrostextosdogneroinseridosnocorpusdo Novo Testamento. AtosdosApstolosIumgregocontandoumahistriade judeus lucinica... SegundoDanielMarguerat(2003),estudiosonolivro dosAtosdosApstolos,Lucas,oautordolivropelatradio, subscreveuograndenmeroderegrasprescritasporLuciano, exceto a primeira e a terceira. Estas duas excees se devem ao fatodaespecificidadedoprojetolucanoemdemonstraravida dacomunidadereligiosadaIgrejaPrimitivaeservircomouma literaturaqueevangelizasseaquelesqueaouviriame/ouleriam e,certamente,umapropostadevalorizaodahistriaeda culturajudaico-crist,assimcomonaCartadeAristeas,vista acima12.Apesardasduasexceescitadas,oprefciodo 12 Neste momento da pesquisa com o texto que se tem em mos, pode-se partir para os estudos de pragmtica lingstica, que nos mostram, a partir da relao falante/ouvinte e de como sefala, quais so os jogos de linguagem existentes e como interpret-los.ATeoriadosAtosdeFalapropostaporJohnL.Austinumestudosistemticoda relaoentreossignoseseusintrpreteseaponta-nosqueaunidademnimada comunicao humana no nem a frase nem qualquer outra expresso. a realizao (performance)dealgunstiposdeato.Ofalanterealizaumouvriosdessesatosao pronunciar uma frase. Esta teoria (que no fundo prtica!) trata de saber o que fazem os intrpretes-usurios e que atos eles realizam pelo uso de certos signos. Nada mais pragmtico(ARMENGAUD,2006).Portanto,aoquerermosperceberquemotivos levaramofalante-autordaCartadeAristeasoudolivrodosAtosdosApstolosa escreveralgoemumtexto,analisamosesteapartirdosestudosdepragmtica lingstica, pois estamos considerando dois de seus principais postulados inseridos na filosofiadalinguagem:1.aextensodasemntica,ouseja,asexpressesindiciais dependemdocontextoondesedoosatosdefala;2.aconsideraodosignificado dos termos como determinado pelo uso a linguagem uma forma de ao e no de 18 EvangelhoLucasedolivrodeAtos,colocaoautor,quese dirigeaTefilo(Lucas1,1-4:Atos1,)entreosliteratos helenistasdealtonvel,comoestiloprefacialpertencente prosa tcnica e cientfica da historiografia greco-romana.Quanto s regras observadas por Lucas, vejamos.Asegundaregra,comoaplicadaacimaCartade Aristeasdizquealeituradorelatohistricodeveedificar, desenvolvendoseupapelpaidtico.OrelatodeAtosestcheio deexemplosmoraispositivosenegativosafimdeensinar comunidadeouvinte-leitora.Queremosdestacar,commais detalhes, o exemplo positivo de Barnab, no qual nos deteremos emseguida,eseuopostoimediato,oexemplonegativode Ananias e Safira.OprefciodeLucasedeAtosconservamasregras nmeroquatroumaconstruobemfeitaenumerosete um relato bem ordenado.Lucas compe,com cuidado especial, no s o prefcio, mas todo o encadeamento de ambos os livros em suas sequncias. Ainda, respeitada a regra nmero cinco o ajuntamento do material preparatrio pois Lucas deixa claro queamimtambmmepareceuconveniente,apsacurada investigaodetudodesdeoprincpio,escrever-tedemodo ordenado (Lucas 1, 3-4; Atos 1,1). descrio do real. Deste segundo postulado toma partido Wittgenstein e seus jogos de linguagem,isto,anossapalavrapodeparticipardediferentescontextoscom diferentes significados (MARCONDES, 2005, pp.11-14). 19 Quanto seleo, variedade e vivacidade na narrativa regrasseiseoitoolivrodeAtosexcedeemobservncia:os relatosdeviagensdePaulotrazemaoouvinte-leitorquasea visualizaodostextos,assimcomosefaziadesdeHomero;os milagresoperadospelasmosdePedroePaulotambm corroboramparatal;oacontecidocomAnaniaseSafiraquea todos causa temor o pice do oo na narrativa lucana; no sepodeesquecer,ainda,ostrsrelatosdeconversodeSaulo presentesnomesmotexto(Atos9;22;26)trabalhandoa redundnciadeformamagistral.Todososexemplosafalade Luciano:aotrabalhodohistoriadorpertencetambmqueele daosfatosumabelaordemeosproduzaemseusaspectos mais brilhantes (Como se deve escrever histria, 51). Asindicaestopogrficasregranonasotratadas emAtoscomdetalhesnositinerriospercorridosporPedroe Paulo,commoderaocomoindicaLucianoesemofuscaros personagens e a trama narrativa. Mas a regra mais bem aplicada por Lucas em Atos a que se refere composio dos discursos, oquesemostrademodomelhornoquedizrespeitos interaesculturaisgreco-judaicaseintertextualidade:todos osdiscursosdolivrosofeitosmaneiragrega,apesardos personagensseremjudeus,semexceo:Pedro,Estevoe Paulo. O porte a pregao de p, as mos que pedem a palavra , os vocativos, a elaborao da argumentao, a eloqncia e a retricasefazempresentesmaneiratucididiana:humaforte 20 preocupaocomaverossimilhananareconstituiodaarte oratria13. Paracontrapor,misterfalarmosdasregrasno observadasporLucas,oquetambmocorrecomaCartade Aristeas.Asduasregrasnmerosumetrs,dizem, respectivamente,aoassuntotratadoeimparcialidadedo narrador.Quantoprimeira,aosolhosdeLuciano,ao historiadorclssicotratadahistriapolticaoumilitar,narraa vidadosgeneraiseimperadores,ouseja,dosherisde batalhas14.Nemumdosdoisrelatosdehistriasdosjudeus aponta para isso. O mesmo ocorre quanto regra terceira tanto Lucascomoopseudo-Aristeassoparciaisaodefenderopovo judeuquantocultura,aocarter,aosexemplosdados,entre outros dados que uma pesquisa mais profunda pode apontar.... AtosdosApstolosIIumheroihomricoemuma comunidade religiosa de judeus? OdetalhedequeoautordosAtosdosApstolosera gregofaztodadiferena.Comotodogrego,Lucascertamente iniciouseusestudosedeu-lhescontinuidadeouvindo,lendoe escrevendoosversosdapicahomrica,costumeentreos 13 Em Como se deve escrever histria, 58, Luciano subscreve a regra tucididiana: Se algumavezsomosobrigadosadarapalavraaalgumpersonagem,seusassuntos deveroestardeacordocomseucarterecomos acontecimentos;almdisso,eles devem se expressar [sic]com a maior clareza; no mais, -vos permitido, nesses casos, mostrar vosso talento na arte de falar bem, e manifestar a vossa eloquncia.14 Lembremos das histrias de Alexandre (Calstenes), Ciro (Xenofonte), o destino de gregos e brbaros (Teopompo) e o povo romano (Salusto). 21 gregos j apontado por Plato na Repblica tendo Homero como oeducadordetodaaGrcia:eleinstruaaHlademerecendo seraceitocomoorientadornoqueconcernecondutae culturadosassuntoshumanos,eumapessoadeveriapautar todaasuavidapelosexemplosdessepoeta(PLATO, Repblica, 606E)15. Tal costume avana pelos primeiros sculos daeracrist.Koester(2005)afirmaqueocristianismonose desenvolveucomorepresentantedeapenasumaculturae religiomaisantiga,comoadeIsrael,mascomopartedeuma novaculturauniversaldomundohelenstico-romano.Nesta,a lnguadominanteedeunificaoeraogrego,assimcomoa filosofia,aarte,aarquitetura,acinciaeasestruturas econmicasgregasconstituamoslaosquemantinhamos vrios povos e naes do Imprio Romano unidos como parte de um s todo16.A figura de Barnab, introduzida por Lucas no captulo quartodeAtos,nomnimo,interessante.Estehomemda comunidadeprimitiva,cujocognomequerdizerfilhoda consolao, tem como marca identitria a sua generosidade e algumaltamenterespeitadonacomunidade.Aentradade Barnab na narrativa de Atos precedida da vida em comunho 15NaPaidia,WernerJaeger(2001)dedicaostrsprimeiroscaptulosparafalar especificamentedeHomerocomoeducadordiretamentee,aolongodetodoolivro, faz-lherefernciasquantoaoaspectopedaggicoparadigmticoefundantedesuas obras para as sociedades clssica e helenstica (JAEGER, 2003, p.28).16 A educao grega j influencia Roma a partir do III sculo a.C. e, apesar de alguma resistnciaaohelenismo,comoaRevoltadosMacabeus,amaioriadosjudeusse helenizoueencontrouinspiraodivinanatraduogregadassuasescrituras (KOESTER, 2005, p.109). 22 dacomunidadeprimitiva(4,32-35)esucedidapeloocorrido com Ananias e Safira (5,1-11). Chama-nos a ateno este ltimo fato. Lucas enaltece a generosidade de Barnab e imediatamente apsnarra,atravsdeumaantteseconstrudabemaomodelo homrico,ano-generosidadedocasalque,emconivncia, dissimula,tentandoseroquenoso,isto,assumindouma posturaeumlugarqueaelesnopertence.Destaforma, mentemaoEspritoSantoesomortos,causandotemora todosospresentesnacenaemquesto.Essaanttesequeacaba porexaltaragenerosidadedeBarnabaindamaispodeser interpretadacomoumareleituraporLucasdoqueHomerocria naIlada.Nesta,trabalhandocomjogosdeoposio,Homero contrapeaconstruodapersonalidadedoheri-guerreiro homrico,pertencenteaogrupodosopiooi(dosbem-nascidos),comoshomensdono(povo)oucomaquelesa quemonarradorquer,decertaforma,diminuir,para,pela anttese,fazercresceroelementoquesequernessecaso,o heri17. 17Nocaptulodedicadoaristocracia,Scheid-Tissinierexplica-nos emLedroitla parole(Odireitofala)queodireitodefazerpartedosoradoresqueintervmem pblico, que participam das deliberaes e das tomadas de deciso, constitui em uma dasprerrogativasfundamentaisdoschefesmilitareshomricos(basileis),oqueos diferenciaradicalmentedamassadoshomensdopovo(SCHEID-TISSINIER,1999, p.79).Paratanto,citaafaladeOdisseunaassembliadirigindo-seaTersites,e repreendendo-o:oiovi.optonoo|oioiiovuovo|out/oiot o tptpoitioi.ouooito|oiovoi|i/outotvoitotvopiio outviouin.Homemdedeus,acalma-teecaladoescutadosoutros/avoz, dos que valem mais do que tu, ruim de guerra e sem fora,/ no pertences ao nmero dos que vo luta, nem aos da assemblia (Ilada, II, 200-202). 23 A partir da a figura de Barnab vai crescendo na trama narrativaelaboradaporLucas.EmAtos9,26-30vemosque Barnabaquelequetemautoridadesuficienteparaintroduzir pelaprimeiravezSaulo,oqueforaoperseguidor,comoirmo natemerosacomunidadedaIgrejadeAntioquia.Devidos discussescomoshelenistas,queprocuravamtirar-lheavida, SaulolevadodevoltaaTarsopelosirmos.MasBarnab, logoaps,vaiaTarso,traze-onovamenteatAntioquiaefica comelealiumanointeiro,convivendocomaIgreja,ambos ensinandoioyoiumanumerosamultido(11,25-26). Barnabconsideradoumioo|oio(doutor,mestre)e relevanteelucidarofatodequeseunomevememprimeiro lugar entre os ioo|oioi que servem em Antioquia (13,1). EmAtos11,24,Barnabdesignadocomumadas palavras da frmula utilizada tanto por Homero para designar o heriquantopelosautoresdoperodoclssicoparaapontaro homem ideal18 ele um ovnp oyoo, modelo para que a comunidade cresse no Senhor e crescesse em nmero: 18Koio|oioyooliteralmente,beloenobre.Essaasntesedoheri homrico,lido,oumelhor,ouvido,pelavozdosaedos,ressoandoaosouvidosdo pblico que conhece a Ilada e a Odissia. 24 oinvovnpoyoo |oiHinpnvtuoooiyiou |oiioto|oi.HpoottnoEio i|ov o |upo porqueeleeraumhomem bom e pleno do Esprito Santo e de f. E agregou-seumamultidosemnmero ao Senhor. Ainda,oepisdioocorridonaLicanianoqual BarnabcomparadoaZeusePauloaHermes(14,10-18) emblemticoquantoinflunciadapicahomricaemAtos. QuantoaBarnabosercomparadoaZeus,opaidosdeuses, contribuiparareforarsuaautoridadesobrePauloeatmesmo suaproteoemrelaoaocompanheirodemisso.Nonos esqueamos de que o olhar da comunidade refletido na narrativa deAtosquedeterminaquemBarnab,isto,asua identidade se d atravs de uma caracterstica que lhe peculiar. Ficaoquestionamentoparamaisumapesquisa:atqueponto Barnab visto pelo olhar do autor de Atos para ser comparado a Zeus neste relato? De acordo com a nfase em Atos e a que o prprioPaulodemsuascartasquantoliberalidadee generosidadenascomunidadesdaIgrejaPrimitiva,oaltovalor deBarnabestatreladoaestapeculiaridadedopersonagem. Pode-selevantaraindaafiguradeBarnabcomomodeloaser 25 seguido pela primeira comunidade receptora de ouvintes/leitores do texto19. Em ambas as situaes percebemos a fora da presena deBarnabjuntoquelesqueocercamcomoumhomemtido em alta estima20. Por outro lado, Barnab parece ser algum que estemsegundoplanoprimeiravistaouprimeiralida;no entanto, sem a sua presena, nenhuma das viagens missionrias dePauloteriaacontecido,conformenarraLucas.Assim, Barnab uma pea chave dentro do livro de Atos para que toda a narrativa se desenrole21. 19CarloM.Martini(2000,p.69)diz-nosqueBarnabfoioqueprocurou, compreendeu e sustentou Paulo. Foi o amigo, o pai espiritual, o mestre do apostolado eoquesemreservasacolheuPaulo.Martiniapontaqueoverboacolher (tiiootvo)omesmousadoquandoJesustomaPedropelamoparaqueno afundasse em meio tempestade (cf. Mt 14,31). 20Omesmoocorrecomoheri-guerreirohomricoPtroclo,cujovalormelhor percebido atravs de seu funeral, isto , aps morrer no campo de batalha em combate comHeitor,oheritroiano.Porconseguinte,estaausncia/perdamerececuidados morturios,atravsderitosque comuniquemoimpactoqueprovocouaausnciado indivduo (MAGDALENO, 1995, p.9), mostra a morte herica do guerreiro no como umeventoisolado,masrepresentandotantasrelaesquantasoherimantivera, comoamizade,paternidade,filiao,aliana,propriedade, inimizade,compromissos, entre outras (MAGDALENO, 1995, p.9).21AssimcomoPtrocloonaIlada deHomero.Oherisvaicrescernatramaa partirdoCantoXVI,quandosedaiminnciadesuamorte.Semamortede Ptroclo,Aquilesnoteriavoltadoguerraeasperipciasdatramanarrativada Ilada no se concretizariam. 26 Ensaiodeumaconclusoporumeplogometodolgico-o Sitz im Lebem Sitz im Lebem umaexpressoalem que foicunhada pelosestudiososdotextobblicoequetemcomosignificado, basicamente, lugar da vida22. O estudo desse lugar da vida ou, como foi cunhada a expresso, lugar vivencial23 visa determinar emquesituaoecomquefinalidadeforamrepetidose transmitidososditosehistriasdospovoscitadosnotexto bblico,masnadaimpedequeusemosomesmoconceitopara qualquer texto que tenhamos em mos. Os pesquisadores fazem questodefrisarqueolugarvivencialumacategoriasupra-individual,ouseja,comunitriaesocial.Trata-sesemprede uma situao scio-comunitria tpica e representativa dentro do ambiente pesquisado, que deu s diversas histrias e ditos o seu cunhoformalcaracterstico24.AopesquisadordoAT,Hermann 22Sitzquerdizerlugar,assentoeimLeben,navida.LiteralmenteSitzimLeben significa, pois, lugar da vida, embora alguns autores prefiram outras tradues, como lugardeorigem,lugarvivencial,situaogeratriz,ambientevitaloucontexto histrico. 23 A pesquisadora Eni Orlandi, em seus trabalhos com os textos histricos e literrios, desenvolveuanalogamenteoconceitodecontextosocialdeproduo(ORLANDI, 1988)oqualdeterminado,assimcomooSitzimLebem,apartirdoselementos encontradosnotextoequeapontamparasuaproduo.Orlandipermanecea,na produo, sem continuar a histria da caminhada do texto, isto , sua recepo e re-produoemeporoutrostextos,comovemosnaestticadarecepo,nosestudos vo de Eco a Barthes, e de Ricoeur, do qual tratamos aqui.24JrgenRoloffesclareceque:olugarvivencialumarealidadesuprapessoal. Todas as pessoas esto acostumadas a existir dentro de papeis sociais diversos; isto determinaquetambmsuasmanifestaesoraisouporescrito,ligadasaestes papeis,seroforosamentedistintas.Oprodutordocomercialdeteleviso,p.ex., servir-se- necessariamente de outros gneros de conversao, caso participe de uma 27 Gunkel, coube a formulao de quatro perguntas que norteiam a determinaodolugarvivencialdeumgneroliterrio.So elas:1)Quemapessoaquefala?;2)Quemsoosouvintes?; 3)Queatmosferadeterminantenasituao?;4)Quereao intencionada?.Apartirdarespostasmesmas,podemos adentrarnouniversodotextoeapontarascaractersticasqueo marcamcomogneroliterriodeumdeterminadoperodoea umacomunidadeespecfica.Aotratardoselementossintticos, semnticosepragmticosdostextoshistrico-literrios analisadosaqui,aindaquedemodosucinto,estabelecemoso SitzimLebemdecadaum,percebendotantoascaractersticas judaico-cristsquantoasdecunhohelenstico,asquaisnos permitiram o determinar se este encontro de culturas claramente explicitadonostextospropiciouumain-felizoposioouuma felizinter-aolingstico-cultural.Pormotivosbvios preferimos a segunda opo primeira! Referncias Bibliogrficas:ARMENGAUD, Franoise. A pragmtica. So Paulo: Parbola, 2006. BBLIA. Portugus. A Bblia de Jerusalm. So Paulo: Paulus, 1980.Bibleworks 7.0. 0.12g. Copyright 2006 (software). rodadeconversaemsuacomunidade!Oobjetivodaperguntapelolugarvivencial no a pessoa que fala como indivduo, e, sim, a situao que caracteriza a fala e a escuta.Assim,cadamanifestaoverbaldefinidatemparticipaonumaforma suprapessoal(dognero),aqualencontra-sedeterminadaporcertasleis permanentes no convvio comunitrio (apud. WEGNER, 2007, 172-173). 28 DIZMACHO,Alejandro(org.).Introduccingeneralalos ApcrifosdelAntiguoTestamento.TomoI.Madrid:Ediciones Cristiandad, 1984. pp.11-63 (Carta de Aristeas)..HARL,Margueriteetalli.ABbliagregadosSetenta:dojudasmo helenstico ao cristianismo antigo. So Paulo: Loyola, 2007. HOMRE. Iliade. Trad. Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres. JAEGER, Werner.Paidiaa formaodo homem grego. Traduo de Artur M. Parreira. So Paulo: Martins Fontes, 2001. KOESTER, Helmut. 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)foi tambmreconhecidanosc.Va.C.,porSfocles,natragdia Filoctetes26,representadaem409a.C.,perodoconturbadoem Atenas, marcado por profunda diviso interna, crise de valores e oportunismo poltico. Na referida pea, em contexto semelhante aoapresentadonocantoIXdaIlada,Odisseu,tambm compondoumaembaixadaeparticipandodeumepisdio referenteguerradeTroia,devereconduzirFiloctetesao exrcitoaqueu,poisTroiasseriavencidaseosAqueus contassem com a presena de Aquiles, heri que inspirava temor 25Nopodemosesquecerque,quandoOdisseuchegaataca,sobodisfarcede estrangeiroemendigoquesemovimentapelosambientes,construindohistrias inventadas e portando-se como algum inocente e frgil (Od. XII, 256-286; XIV, 192-359/462-506;XVII,415-444;XIX,77-88;XIX,165-202eXXIV,303-314).No semlouvorque,paracaracterizarodesempenhodoheriemtacaeesclarecerao pblico/ouvinteanaturezadeseudiscurso,oqualestavaemconsonnciacomsua aret,onarradordeixaescaparsuaopinioquantoaosdiscursosdeOdisseu:Io|t tuto oiio ityov tuoioiv ooio (Assim Odisseu) contava, dizendo muitas mentiras semelhantes a verdades. (Od. XIX, v. 203) 26NaproduopoticadesaparecidadesquiloeEurpideshaviatambmumapea Filoctetes.DeacordocomodiscursodeDon(sc.I),emsquilo,Odisseufoio nico responsvel pela reconduo de Filoctetes e em Eurpides, Filoctetes, depois de ter sido convidado por uma embaixada a unir-se a Troia em troca de ajuda, por fora dosentimentohelnico,rejeitaapropostatroianaeacompanhaOdisseueDiomedes de volta ao exrcito aqueu (LESKY, 1996, p. 124). 30 aos troianos, e se possussem as armas de Hracles, das quais o tesslio Filoctetes tinha a posse. O fato de Odisseu ser destacado para misses diplomticas a servio da comunidade aqueia e, em situaesdifceis,intermediardecisesjustifica-seporsua capacidade de convencimento. Entretanto,diferentementedoOdisseupico,em Filoctetesrevela-seohericomumperfilquestionvel,um homemdestinadoapenasacumprirsuamisso,semlevarem contaosmeiosilcitosparaatingirseuobjetivo,apoderar-sedo arco de Hracles. evidente que o sucesso da empresa, dirigida porOdisseu,notrariabenefciossomenteparaele,maspara todooexrcitoaqueu.Muitoprovavelmente,otragedigrafo, utilizando-sedessepersonagemhomrico,tencionoufaz-lo representar figuras de seu tempo, associadas ao discurso lgico e aopoderdeseduoprpriosdossofistas.Compartilhamosdo pontodevistadeFerreira(SFOCLES,1988,p.21),aodizer queodiscursodeOdisseurepresenta,emmuitosmomentos,a atitudedossofistasdapocadeSfocles,mestresderetrica queensinavamseusdiscpulosatornarargumentosfracose falsosemverdadeirosepersuasivos.Ohelenistaportugus acrescenta, ainda, que Odisseu a corporizao e a incarnao decertasprticaspolticasemvogadatadarepresentaodo Filoctetes. EradeseesperarqueOdisseupossussecaractersticas semelhantesaoscidadosquetinhamcomoinstrumentoo discurso, j que, no regime democrtico florescente no sculo V a.C, o dilogo e o debate se tornaram poderosos elementos para 31 a exposio do pensamento, e, por conseguinte, propiciavam aos quetinhamhabilidadenofalarecarismapessoalseduzire conquistarumnmeroconsiderveldeseguidores,entreeles polticosemuitosjovensdaaristocracia.Eraagoraolugar adequado s disputas polticas e s decises que influenciavam a organizaodaspleis,e,ainda,aosqueaspiravamaoscargos pblicos,aosadmiradoresnaartedodiscursopersuasivoeaos que apenas queriam fazer prevalecer sua opinio. Em relao abordagem feita pelos poetas dos sculos V e IV a.C., em Atenas, sobre os problemas do momento, tanto os morais, quanto os polticos, uns o fazem de forma direta; outros, mais liberais, aberta e francamente, j que os tragedigrafos no estavamalheiossquestesqueprovocavaminquietaoe questionamentos. Assim,comumautilizaodeherisededeuses- pertencentesaosmitosaludidosouesboadosnosciclospicos enasdiversastradieslocais-,naspeasrepresentadasem Atenas, e verossmil a figura de Odisseu na tragdia Filoctetes. Aosabordesuacapacidadecriativa,Sfoclespde,na releitura27dopersonagemOdisseu,destacarcaractersticas marcantes desse personagem e buril-las de acordo com o tema centraldanarrativamtica28,alterando-lhesutilmenteoenredo 27ConcordamoscomEasterling(1984,p.1)quandopropsqueSfocles,na composiodesuaobra,foiprofundamenteinfluenciadopelosherisdosPoemas Homricosemanifestougrandeinteresseemretratarocomportamentodesses personagens. 28Vernant (1999, p. 127) esclarece que o mito de Filoctetes foi mencionado de forma sucinta naIlada(II, 716-725)eesboado naPequenaIladaenosCantosCprios. 32 originalparadarcontornostrgicospeaemostrartraos sofsticosdeOdisseu.Acercadareconstruodeumafigura mitolgica,osestudiososafirmamqueopoetalegitimao personagem por meio de traos oferecidos pelas fontes, para que o pblico o aceite como real e verossmil.Comefeito,logonoinciodapea,percebemosqueo temadesenvolvidonoFiloctetesforabrevementealudidonos versos716a725docantoIIdaIlada,nosquaisonarrador explicaqueoarqueiroFiloctetesforaabandonadonailhade Lemnos pelo exrcito argivo por ter sido mordido no p por uma serpenteguardidotemplodeCrisee,emconsequncia, comprometera, com sua molstia, a segurana de toda a tropa. interessantenotarqueonarradordaIladaanunciaafutura reintegrao do heri maliense ao exrcito aqueu, mas Sfocles, natragdiahomnimaaoheridaMlide,mostra-odominado porumsentimentodetristezaevinganacontraosAtridase, sobretudo,contraOdisseu,port-loabandonadocovardemente nailhadeLemnos,tendocomocompanhiasomenteasolido, expressarepetidasvezespelotermotpno,reiteradonos versos171(ntEuvpoovotyovnodispondode nenhumolharfraterno)e1018(oiiov,tpnov,ooiiv,tv Cooiv vt|pov [um homem] sem amigos, solitrio, sem cidade, umcadverentrevivos)29.figuradeOdisseuFiloctetes H,deacordocomoestudioso,umresumodaPequenaIladaemA.Severyns, RecherchessurlaChestomathie deProclos,IV, Paris, 1963,p.83, 1. 217-218,bem como para os Cantos Cprios, ver idem, na p. 89, 1. 144-146. 29Cf. em Filoctetes 228, 265, 269, 471 e 487. 33 associaadehomensmausqueinventamhistriascoma finalidadedepersuadir30.Oprpriodiscursodoheridetaca, noFiloctetes,evocaaimagemdessepersonagemdosPoemas Homricos,comautilizao,frequentesvezes,dosmesmos argumentosjapresentadosnocantoIXdaIlada,para convencerseuouvinte.Entretanto,talfacilidadediscursiva,na tragdiasofoclianaemquesto,foidesenvolvidahabilmente paraaprticadomal,nohesitandooheriemagirsem escrpulos, como podemos constatar nos seguintes versos: A|n tv nt n tpippuou yovo /nvou, pooi ooio ou oi|outvn, tv, o |poi oou opoEiinvov poti Ayiiito oi Ntooitt, ov MniioHoiovo ui ov t Et n| tyo ot, 5 oyti o tptiv ov ovoooovov uo, vooo |ooooCovo ioo po o, o out ioin niv out uoov opnv t|n ioi pooiytiv, oii oypi oi |otiy o ti ov opootov uoni oi, 10 Hoov, otvo Cov.Aiio ou o tv i tiitytiv; o|n yop ou o|pov niv ioyov, n |oi on n|ovo |o|yto o ov ooioo o viv oui y oipn otiv o|o . 30Segundo Knox (1991, p. 124), o Odisseu dessa pea no tem cdigo heroico que o limite,notemqualquertipodepadrodeconduta,elequeravitriadequalquer jeito, e vitria para ele no pode ser algo que o leve morte, para ele a sobrevivncia eraumaparteessencialdosucessoedavitria,nik,aqualeleclamacomoumde seus deuses protetores. 34 Esta a margem da terra cercada pelo mar de Lemnos, no pisada nem habitada por mortais. Aqui, Neoptlemo, filho de Aquiles, criadopelo mais valente pai dos Helenos, eu, ordenadopeloschefes(dosAqueus)parafazerisso,5 abandonei o maliense, filho de Poiante,atingido no p por uma doena aniquiladora,visto que, nem de libao nem de sacrifcios31 podamos, tranquilos, ocupar-nos; mas, com terrveis ultrajes, ele enchia sempre todo o acampamento,10com gritos e gemidos. Mas por que preciso dizer estascoisas?De fato, para ns no momento oportuno de longosdiscursos! Que ele tambm no perceba que cheguei, e que eudesista de todo o plano engenhoso com o qual penso agarr-lo nesseinstante. (v. 1-14) Naprimeiraoportunidadeoferecida,Odisseuexplicaa NeoptlemoqueabandonaraFiloctetesnailhadeLemnos,por ordemdoschefesaqueus32.Emsuaexposio,apresentafatos 31EralegtimoOdisseuabordarumaspectoreligiosotoprezadopelosdeuses.O heri considerado pelos imortais irrepreensvel nessa tarefa (Od. I, v. 65-7). Por essa razo,nosempropsitoqueaprimeiraparticipaoefetivadeOdisseunuma embaixada, em Ilada I, v. 430-45, seja para levar as oferendas do exrcito aqueu at o sacerdote Crises com o objetivo de aplacar a ira de Apolo. Acrescentamos o fato de que Odisseu apoia-se no auxlio dos deuses, sobretudo de Palas Atena, como assinala o verso 134 (n ooCti oti aquela que me salva sempre). 32Dizer que abandonara Filoctetes por ordens dos chefes um meio muito eficiente de isentar-sedaresponsabilidade.Essamaneiradeatenuaraculpafoiutilizadapelo 35 nopresenciadospelofilhodeAquiles,demodo anosuscitar questionamentosemrelaonaturezadaao.Atuando,pois, comsagacidade,oheritenta,antecipadamente,respondera qualquerinsinuaodeinjustiaquelhepudesseimputar Neoptlemo.Destemodo,oepisdioassimnarrado,almde nopoderserdesmentidopelojovem,conferefigurade Odisseuumcarterdehomemexemplareobedienteaos superiores.Algunsestudiosos,comoRonnet(apudFERREIRA, 1980, p. 116), negando a natureza insidiosa do evento, entendem que a atitude de Odisseu poderia ser justificada, por pelo menos, trsfatoresbsicos:oabandonoconcretizara-senamedidaem queaslibaeseossacrifciosnopodiamseroferecidosaos deuses, j que Filoctetes, com seus gritos e gemidos, prejudicava arealizaodosritossacrificiais;Odisseusimplesmente obedeceraaoscomandantes,tendoapreocupaodedeix-lo numlocalondehaviaumagrutabemlocalizada,pertodefonte potvel; e, finalmente, voltara ilha para levar a vtima fama e aoreconhecimento.Almdisso,oprpriocorodapeaatenua, por vezes, o grau de culpabilidade do heri de taca: Ktivo ti oo oiiov oyti ov tnoouvo|oivov nvuotv t i iou opoyov.1145 prprio heri a favor de Neoptlemo, sugerindo ao jovem que o plano engendrado na ilha de Lemnos seria de ambos (v. 15). 36 Ele foi o nico, entre muitos, indicado (para isso),por ordem deles (dos Atridas), e trouxe uma ajuda comum aos amigos. 1145 (v. 1143-5) EssaargumentaodeRonnet,entretanto,no plausvel, uma vez que o modo de pensar e as aes do heri de taca no desenvolvimento da pea apontam para um homem que trabalhatraioeiramenteeseorganizadetalformaano provocar suspeitas em suas vtimas. Tambm no seria possvel defender quem abandona33 um amigo prpria sorte, nem teve o mnimodelealdadecomumcompanheirodeguerra,oqualse feriraparaajudaroprprioexrcito.Naverdade,Odisseus voltouilha,porqueoadivinhoHeleno34profetizaraacercada participaoimprescindveldeFiloctetesnatomadadeTroia. Assim,qualquertentativademinimizarocomportamentodo heri ou justificar suas palavras diante de Neoptlemo carece de um fundamento slido.TalvezsejaessaarazoporqueOdisseu,tendo conscinciadequesuaatuaojuntoaNeoptlemono expuseratotalmenteaverdade,mudadeassunto, propositalmente,dizendonoseroportunoproferirlongos discursos.Comefeito,afimdeevitarcomprometimentos, 33Ocdigoheroicoexigequeumheriprotejaseucompanheiroe,demaneira alguma, o abandone. Cf. Il. XVII, v. 140-68. 34Outrossim, Odisseu voltou ilha por causa de um compromisso feito ao exrcito de quetrariaFiloctetesde qualquer maneira,colocandotodasuacredibilidadeemjogo. Cf. Fil. 604-19. 37 notamos que a exposio comedida caracterstica marcante do discursodeOdisseu.SenoscantosIXdaIladaeIX-XIIda Odisseia,oheriempreenderalongosdiscursosacercados motivospelosquaisAquilesdeveriavoltaraoscombatesea respeitodesuasaventuras,depoisdeterminadaaguerraat chegaraopasdosFecios,respectivamente,natragdia, comportando-se como hbil rtor do sc. V, ciente dos caminhos perniciosos a que um discurso mal-intencionado poderia chegar, furta-seaodebatequenotrariavantagemalgumamissode queforaincumbido,caracterizadacomooo iooplano engenhoso(v.14).AversodeFiloctetesdomesmofato acentuaocarternegativoedissimuladodeOdisseu,como inferimos dos versos abaixo: 1 oii tyo oynpo, o i|po toi, ount |inov o tyovo oi|ot255 nEiio o yn noouinit ou, oii oi tv t|oiovt ovooio ttytio oi oiy tyovt, n t n vooo oti t nit |oi tiCov tpytoi. 1 t|vov, o oi opo t E Ayiiito, 260 o ti tyo ooi |tivo, ov |iuti ioo ovHpo|iti ov ovo toonv oiov, o ou Hoiovo oi 1iio|nn, ov oiioooi oponyoi yo Ktoiinvov ovoE tppiov oi oypo o tpnov, oypi o265 vooo |ooi vovo, n, ovpoopou inytv tyi vn oypi o yopoyoi, 38 Euv n t |tivoi, oi , potvt tvot oyov tpnov, nvi| t| n ovio Xpuon |otoyov tupo vouon oo io . 270 ]o ootvoi o ti ov t| oiiou ooiou tuov t o|n t v |onptti tpo , po|n potvt oio |oi i |oi opo iiovt o yov, oio oi uoopototino oi|pov oi ou oi u yoi.275 Oh! Como eu sou um infeliz, como sou odiado pelos deuses!Nenhumanotciademeuestadochegouaomeupas,255 nem a qualquer lugar da Hlade. Mas os que me rejeitaram criminosamente riem-se silenciosamente, enquanto minha doena sempre crescee aumenta intensamente. filho, que tens Aquiles por pai,260 eu sou para ti o homem do qual talvez ouviste falar ser o dono das armas de Hracles, Filoctetes, filho de Poiante, a quem, solitrio, os dois generais e o chefe dos Cefalnios abandonaramvergonhosamente. 265 Consumido por uma doena terrvel,ferido por mordedura cruel de vbora,com a qual eles me abandonaram, filho, solitrio, quando, vindo do mar de Crisa, aportaram aqui com frota marinha.270 Eles estavam felizes, porque me viram, aps a agitao do mar, dormindo na costa numa pedra cncava. Partiram, deixando-me poucos farrapos e alguma comida 39 que, para um homem infeliz,poucosocorroso.Paraelesdesejoamesmasorte! 275 (v. 254-75) CombasenanarraodeFiloctetes,verificamosqueo modo como ele fora abandonado na ilha de Lemnos foi omitido porOdisseu.Almdisso,ofatodequetalatitudeocorrera quando o maliense estava dormindo, sem levar em considerao sua debilidade fsica (v. 266-72), demonstra decididamente uma ao orquestrada previamente para enganar sua vtima. Segundo Filoctetes,aoagiremcriminosaevergonhosamente,oschefes aqueusconfessaramsuaculpae,porconseguinte,ratificaram suacondenao,expressapelaimprecaooi ouoiuyoi Paraelesdesejoamesmasorte!(v.275).Valeressaltarque OdisseunomentiuarespeitodoabandonodeFiloctetes,mas, espertamente,deixoudemencionaroselementosque depusessemcontraeleprprioetornassemnuloopedidode colaborao feito a Neoptlemo. OmododeagirdeOdisseunoFiloctetesapresentava, pois,emmuitosaspectos,semelhanascomaopiniodos sofistasacercadarelatividadedetodasascoisas,inclusiveda verdade.Marcondes(2002,p.43),aocomentaraenigmtica sentenadeProtgorasOhomemamedidadetodasas coisas, das coisas que so, enquanto so, das coisas que no so, enquanto no so (fr. 1 DK), assevera que: Protgoraspareceassimvalorizarumtipode explicao do real apartirde seus aspectosfenomenais apenas,semapeloanenhumelementoexternoou 40 transcendente.Isto,ascoisassocomonosparecem ser, como se mostram a nossa percepo sensorial. Sendo a natureza humana considerada desse modo, como afirmaMarcondes,oconhecimentoestariadependentedas circunstncias,jquenoexisteumaverdadenicaeabsoluta, masopiniesmoldadasdeacordocomassituaes.Poressa razo,numdebatenagora,porexemplo,ooradornodevia acreditarquealgumpudesseapresentarumargumento inquestionvel,advindodeumarealidadeindiscutvel,mas entenderqueumraciocniobemdirigidopoderiaconvencere, consequentemente,ganharaquestoporsuasbasesretricas fundamentadas.Oqueestemquesto,portanto,ovalordas opinies que governam os homens e, como afirmou Luce (1994, p.84),refletindosobreessefragmento,averdade[segundo Protgoras]consisteemcrenaseopiniesoperandoparao benefciodeumindivduooudeumacomunidade.A inexistncia de unidade entre as leis dos mais variados povos era umfatorquecolaboravaparaatesedequeohomem governadopelaopinio,easleisnadamaissodoque convenes humanas e evidenciavam o relativismo da verdade. difcilaceitar,comopropsRonnet(apudFerreira, 1980, p. 116), que os falsos meios utilizados por Odisseu sejam justificadosporumfimmagnnimo,querasalvaode Filoctetes,quermesmodetodooexrcito,poiso comportamento do itacense na pea leva-nos a traar a figura de umlegtimomanipuladordaverdadeeagentecorruptodos 41 valorestradicionaisesboadosnosPoemasHomricos,dos quaisAquileseraumrepresentantefidedigno,eseufilho Neoptlemo, um descendente exemplar.Aprpriaargumentaoparaconvencerojovema participar desse ooioo plano evidencia a uoi natureza deambososheriseopensamentoardilosodeOdisseu,um representantedosvaloresvigentesnosculoVa.C.atuando dessaformaqueOdisseu,depoisdeexplicaraNeoptlemoo modusoperandi,empregatodasuahabilidadediscursiva,num oyovdebate,paratentardissuadirofilhodeAquilesaagir de acordo com outros valores para alm daqueles j conhecidos na sociedade homrica. Odisseu, argumentando, diz: OL.EEoio |oi uoti ot n tu|oo oiouo ovtiv nt tyvo ooi |o|o80 oii n u yop oi |no n vi|n ioti v, oio i |oioi oui t|ovouto vuv ti o voit ntpo tpo poyuo oi otouov, |o o ov ioiov ypovov |t|inoo ovov tuottooo poov. 85 NE.Eyo tv ou ov ov ioyov o iyo |iu ov, /otpiou oi, ouot |oi poootiv ouyo tuv yop outv t| t yvn poootiv |o|n, ou ouo ou , o ooiv, ou|uoo tt . Aii ti toio po i ov o v ovp oytiv 90 |oi n oioioiv ou yop tE t vo oo no ooouot po i ov ytipootoi. Htti yt tvoi ooi Euvtpyon o|vopoon |oitiooi ouiooi , ovoE, |oio 42 pov t Eooptiv o iiov n vi|ov |o|o .95

OD. Sei tambm que tu no s por natureza inclinado a dizer estas coisas nem maquinar coisas ruins. 80 Mas doce certamente tirar proveito da vitria. S ousado! Justos mais tarde pareceremos; mas agora, durante breve parte indecorosa do dia, entrega-te a mim, e depois, no futuro, considera-te o mais piedoso de todos os mortais. 85 NE. Eu estou aflito de ouvir essas palavras, filho de Laertes, que detesto pr em prtica; na verdade, no est em minha natureza praticar vis artifcios,nem eu mesmo, nem, como dizem, na daquele que me gerou. Mas eu estou pronto para levar nosso homem pela fora,90 e no pela astcia. Com um p apenas,ele no vencer pela fora tantos de ns. Eu, como ajudante, tendo sido enviado a ti, temo ser chamado de traidor. Mas prefiro, senhor, errar,agindo honestamente, a vencer, agindo com desonestidade.95 (v. 79-95) Operandocomoumrepresentantedaclassedosrtores, Odisseu percebe que a uoi natureza (v. 79) de Neoptlemo seriaumobstculoelaboraodeseuplanoe, meticulosamente,reconhecequeparapersuadirFiloctetesseria necessriotyvoooi|o|omaquinarcoisasruins(v.80), 43 isto,organizar-sedetalformaquetodososatosetodasas palavrasfossem,demaneirainquestionvel,verossmeisa Filoctetesearticuladoshabilmente,afimdeomalienseno desconfiardoestratagemacomoqualtentariamconvenc-lo. Fugindo mais uma vez de qualquer objeo, Odisseu argumenta que, apesar do meio inteiramente novo de raciocinar, o objetivo justific-lo-ia,umavezquenuyopoi|nonvi|n iotiv Mas doce certamente tirar proveito da vitria (v. 81). Sfocles, no passo em questo, pe em relevo o conflito caractersticodasociedadedaqualfaziaparte,aoressaltara superioridade do meio engendrado para se alcanar determinado fim.DeacordocomodiscursodopersonagemOdisseu, depreende-sequeosprincpiosaprendidospoderiamtornar-se ornamentosinadequadosdiantedesituaesinesperadas,ea observnciadaeducaomoraldeveriaconsistirnumelemento atcertopontoadmirvel,desdequeservisseparasemostrar honesto,comoobjetivodepraticaromal.Assim,ao considerar-seumexemplodosbonscostumes,Neoptlemo, sendofilhodeAquiles,deveriavaler-sedessasprerrogativas herdadasdeseupaiparaenganarsuasvtimasemanter-se completamente impune. Processa-se, realmente, uma crise de valores, pois o fato deumindivduoparecerverdadeiroeramelhordoqueser,de modointransigenteeinflexvel,oguardiodeumcdigo heroico decadente na sociedade clssica. Falar a verdade, honrar oscompanheirosemorrergloriosamentenoeramprincpios adequadosparaaquelesquequeriamviversegundoasnormas 44 impostaspelasociedadedosculoVa.C.,masagirsem escrpulos.ComopropeOdisseu,essemodusvivendiseria aceitvelsemprequeoobjetivofosseasalvao.O comportamentodbio,adaptando-sesmaisinusitadas situaes,eraumaspectoquefaziapartedanaturezade Odisseu, que reconhece esse seu atributo ao afirmar que: Ou yop oiouov ti , oiouo ti tyo yoou i|oiov |oyoov o vpov |pi oi, 1050 ou| ov iooi ou oiiov outv tuotn . Ni|ov yt tvoi ovoyou ypnCov t uv. De fato, onde se precisa de um tal tipo de homem, tal soueu; e onde houver um julgamento entre homens justos e bons,1050 no encontrarias ningum mais piedoso do que eu. Sem dvida, eu nasci com o desejo de vencer em tudo! (v. 1049-52) Nessesversos,podemosverificar,commaisclareza,o comportamentoeumaparticularidadedafiguradeOdisseuem Filoctetes:suacapacidadedeadaptar-sescircunstnciasque lhesoapresentadasetransformar-seemqualquerespciede homem, j que vi|ov yt tvoi ovoyou ypnCov tuv sem dvida,eunascicomodesejodevenceremtudo35.Alm 35Compartilhamos da opinio de Knox (1991, p. 125), ao salientar que essa passagem refleteafaltadepadresticosdoheri,almdeserumresumofidedignodeseu comportamento nas mais variadas situaes. 45 disso,utilizando-sedoverboti preciso,marcandoassima importnciadaao,Odisseucolocaemdestaqueaquestoda verossimilhana,oumelhor,dopareceremdetrimentodoser. Dessa forma, o fato de agir como uma pessoa i|oio justa e oyooboanoimplicanecessariamenteserjustoou bom,massomenterefletiranaturezadaao,segundoa opinio das pessoas, como demonstra a solicitao de Odisseu a Neoptlemo nos versos 82-5. O jovem Neoptlemo, ento, tenta mostrar a Odisseu que suauoinaturezasemelhantedopaie,porisso, prefeririadominarFiloctetesnopelaastciaesimpelafora, agindohonestamente,aindaquefosseconsideradoumtraidor por todo o exrcito. Mas Odisseu diz: Eoiou opo oi, |ouo ov vto otyioooov tv opyov, ytipo ti yov tpyoiv vuv ti tityyov t Eiov opo pooi nv yioooov, ouyi opyo, ov nyoutvnv. filho de pai honesto, eu mesmo quando era jovem tinha a lngua preguiosa e o brao gil; mas, agora, chegando a uma prova, vejo que, para osmortais a lngua, no as aes, tudo domina. (v. 96-99) Com base no passo traduzido, verificamos ser esta a mais completamanifestaodopensamentoemvoganosculoV a.C.,emfacedosprincpiosadmitidosnasociedadehomrica 46 guerreira. Com efeito, o heri prefere a palavra ao, o dilogo guerra,aartediplomticaaosrecursosmilitares,tendoem vista que aprendeu t ityyov tEiov chegando a uma prova (v. 98). importante lembrar que essa prova, anunciada na pea, foi sugeridaemrazodasviagensdeOdisseuavrioslugares,j aludida no prlogo da Odisseia, no qual o heri recebe o epteto deoiu poo,comprobatriodoconhecimentoquepossua doscostumesdemuitospovos.Essacaractersticadoherio aproximavaaindamaisdossofistasquetinhamohbitode viajarpormuitascidadesesabiamtirarproveitodessa experincia em prol de suas doutrinas. Ressaltamos que os versos 98-9 pooi nv yioooov, ouyi opyo, ovnyoutvnv para os mortais, a lngua, no as aes, tudo domina, sugerem que os ensinamentos oratrios, ministradosdeformaadequada,poderiamofereceraohomem umdiscursoeficienteecapazdeconvencerumauditriosobre determinadoassunto,independentedeseresteverdadeiroou falso.EraexatamenteissoqueOdisseupropunhaaojovem Neoptlemo,umdiscursoconvincente,semautilizaoda fora, com o qual alcanaria uma posio privilegiada diante de toda comunidade aqueia.guisadeconcluso,podemosdizerqueodiscursodo Odisseusofoclianoseapresentacomasmesmascaractersticas referentesaosrecursosempregadosnosPoemasHomricos, porm aperfeioados, por vezes de modo excuso, pelas tcnicas oratriasprpriasdossofistas.Verificamos,ainda,queem Sfocleshumantidacriseentreaideologiadopassado, 47 pautada na honra e na verdade e representada pelos personagens FilocteteseNeoptlemo,eanovaordemsocialepoltica, estabelecidaemAtenaserepresentadaporOdisseu,naqualo poder de argumentao e a persuaso se tornaram meios seguros para a obteno de sucesso na plis. Referncias Bibliorficas: ADKINS,A.W.H.HomericValuesandHomericSociety. The Journal of Hellenic Studies 91, 1971, p. 1-14. BEYE,C.R.SophoclesPhiloctetesandtheHomeric Embassy.TransactionsoftheAmericanPhilological Association 101, 1970, p. 63-75.BLUNDELL,M.W.TheMoralCharacterofOdysseusin Philoctetes. Greek Roman and Byzantine Studies 28, n. 3, 1987, p. 307-329. EASTERLING,P.E.TheTragicHomer.Bulletinofthe Institute of Classical Studies 31, 1984, p. 1-8. FERREIRA,Josribeiro.OSignificadodaFiguradeUlissesno Filoctetes. HVMANITAS 31-32, 1979-1980, p. 115-39. HOMRE. Ilade. Texte tabli et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1987-1992. 4V ________.LOdysse.TextetablietTraduitparVictor Brrard. Paris: Les Belles Lettres, 1989-1997. 3 V. GASTALDI,V.Sfoclesylossofistas:elpoderdellgosen Filoctetes. HVMANITAS 48, 1996, p. 21-8. KNOX,B.M.W.TheHeroicTemper:studiesinsophoclean tragedy.Berkeley,LosAngeles,London:Universityof California Press, 1992, p. 117-42. 48 LESKY,Albin.ATragdiaGrega.SoPaulo:Perspectiva, 1996. LONG, A. A. Morals and values in Homer.JHS 90, 1970, p. 121-39. LUCE, J. V. Curso de filosofia grega: do sc. VI a.C. ao sc. III d.C. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, p. 16-31; 81-95MARCONDES,Danilo.Iniciaohistriadafilosofia:dos pr-socrticosaWittgenstein.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd., 2002, p. 19-49.SOPHOCLE.Philoctte-OedipeaColone.Textetablipar AlphonseDainetTraduitparPaulMazon.Paris:LesBelles Lettres, 1974, Tome III. __________.Filoctetes.Introduo,traduoenotasdeJos RibeiroFerreira.Coimbra:InstitutoNacionaldeInvestigao Cientfica, 1988.VERNANT,Jean-Pierre;VIDAL-NAQUET,Pierre.Mitoe tragdia na Grcia antiga. So Paulo: Perspectiva, 1999. 49 Poder e phrmaka: quando as mulheres curam Aline de Azeredo Laversveiler Guedes - UERJ Ana Paula Pereira Costa - UERJ Bruna Gaio Nardi Pinheiro - UERJ Orientadora:Dulcileide Virginio do Nascimento - UERJ O sexo feminino de suanatureza ena razo da suafraqueza,maisinclinadoqueonossoparao mistrioeparaaastcia.(Plato,Leis.780) Acitaoacimanorteiamomentosdiferentesdeuma pesquisa que busca traar o percurso da mulher na Antigidade e,pormeiodestecaminho,vislumbrararealidadedamulher atravsdahistria.Nosdiasatuais,comonosdiasdePlato, questiona-seacercadasdiferenasentrehomensemulheres.E, comoPlatoevidencianotextosupracitado,humatradio cultural e literria acerca de tais diferenas, que, na maioria das vezes,vinculamamulheraduasatividadessomente:a procriaoeaculpadeumdestinofunesto/aesmal resolvidas, resqucio do mito de Pandora. Mascomoessamulhersesituanumcontexto totalmentemasculinizado?E,principalmente,comoela consegueseimporeserpartedeumtempoemqueareligio 50 temohomem,afiguradeZeus,comoadivindadecentraleo homem, seja como poltico, guerreiro ou como chefe de famlia, sendo a figura central da sociedade? Comorespostaparaestasquestes,identificamosna figuradadeusatrplice,umarqutipodedeusame,muito anterioraosdeusesolmpicos,aexplicaoparaofatodeas mulheresseremtoligadasmagiaeaosphrmakana Antigidade. Adeusatrpliceporqueassimcomoasmulheressua caractersticanouma,tendendoparadiferentesreasdo conhecimento humano. As faces sobre as quais iremos discorrer so: Nix , Noite, Ttis, a deusa do mar e Gaia, a deusa da terra. Ascaractersticasindividuaisdecadaumadasfacetas dadeusaremetemaumareadistintadeconhecimentodoser humano.Nix,sendoarepresentaodanoite,lidacomomais profundo e sombrio do inconsciente humano; Ttis, assim como omarqueelarepresenta,ficanomeio,intermediandoosdois mundos, o da superfcie e o do subterrneo; j Gaia, a deusa que proporcionaodesenvolvimentodetudosobreaterra,trabalha com o exterior do ser. Cada uma delas deu origem a trs grupos dedivindades,cujocultotambmantecedeaodosdeuses olmpicos. AsentidadesreligiosasderivadasdeNixsotodas figurasrepresentativasdoladomaissombriodadeusaede aspectosprimordiaisdoserhumano.SoelasasMoiras,as Ernias e as Hesprides. As Moiras so as fiandeiras do Destino que tecem a vida humana atravs de um fio. As Moiras so trs: 51 Cloto,afiandeiraqueportaarocaeteceatramadavida; Lquesisadistribuidoraparaquemofiopassaasairdaroca para ser medido e tropos, a inevitvel, que corta o fio com sua tesoura. AsErnias,tambmconhecidascomoFrias,trs ancisquevivemnomundoinferiorequevingamo derramamentodesangue,principalmentedamepelofilho. Quando ocorria esse tipo de crime, elas saam de sua morada no Hadeseperseguiamocriminosoatobteravingana.Elasso umarqutipodadefesadalinhagemmatriarcaleporissoeram consideradas antigas e antiquadas no mundo patriarcal posterior aelas.Comoelasjestavamarraigadasnatradiopopular, foramtransformadasemfigurasumpoucomaisamenasna poca de patriarcado. AsHespridessoasprotetorasdasmasdouradas contidasnojardimdeHera.Essesfrutoscontinhama imortalidade e por issoas Hespridesguardavam os frutos para que os homens no tivessem acesso a um poder com o qual no tinham a capacidade de lidar. As entidades derivadas de Ttis, assim como a prpria, fazemaligaoentreosdoisnveis,osuperficialeo subterrneo. So elas: as Grgonas, as Grias e as Sereias. AsGrgonassofigurasdeumolharterrvel,to intenso que transformava os mortais que as olhavam em pedras. Dessasfigurasaindatemosvestgios,jqueMedusa,umadas trsGrgonasconhecidaatosdiasdehoje;AsGriasso figuras horrendas. Trata-se de trs velhas de aspecto repugnante 52 quepossuamumnicodenteeumnicoolhoquerevezavam entresi.Elastmpoucaparticipaonosmitos,anica informaorelevantequesetemacercadesuafunoque elasconheciamocaminhoparaasGrgonaseassereiaseram belasmulheresdacinturaparacimacomformadepeixeda cinturaparabaixo1.Viviamnasprofundezasdomar,asgregas numailhaaoestedaSiclia,ecomseubelocantoatraamos marinheiros para o fundo do mar. AsdivindadesvindasdeGaiatmforanoquediz respeitoaoexterior,abelezaesartes.Soelas:asCrites,as HoraseasMusas.AsCritesfazemoadornodeAfroditee possuam a graa dos movimentos. So deusas da dana e delas emanavaodeleiteparaafruiodaarte;AsHoraseramaface dadeusaresponsvelpelosciclos.Eramguardisdaordem natural,docrescimentodavegetao,dasestaes,regendo assim, o clima e as musas. Elas so a nica entidade derivada da deusatrplicequenoformamumtrio.Elaseramnoveeeram as deusas gregas da arte e da inspirao. Comojcitamos anteriormente, todas estas divindades somuitoanterioresaosdeusesolmpicos,eessamudanade cultoadivindadesmajoritariamentefemininasaocultoaos deusesmasculinosdoOlimpooutrocasointeressantedese 1 Essa a descrio mais conhecida, mas no so das sereias gregas e sim das celtas. Assereiasgregastinhamcorpo depssaroerosto demulher(cf.Homero,Odissia, XII),pois,segundoomito,estaaparnciaeradecorrentedeumcastigoimpostopor Afroditeporqueelassenegaramacultu-la,preferindopermanecervirgens.Elas eramdetentorasdeumavozsuaveeharmoniosaeusavamsuaarteparaatrairos homens para a morte e a destruio. 53 analisar.Tomandocomorefernciaasdivindadesjestudadas nestetrabalho,doiscasossodemaiorrelevncia,umocorre com as Sereias e outro com as Musas.Na Odissia, de Homero, OdisseuprecisapassarpelomarondeestoasSereiasepara conseguirestefeito,tapaosouvidosdosseusmarinheiroscom ceraeseamarraaomastrodobarco.Mesmototalmente perturbadocomocantodasSereias,eleconseguepassarpor elas.Essapassagemdeumaobrajdoperodopatriarcal demonstracomoopoderdohomemseimpsmulher.Um hericonseguevencercriaturasqueantesjforamcultuadas como deusas.Outrogrupodedivindadequetambmsofreperdas nesseprocessosoasMusas.AsMusaseramasdeusasda inspiraoedasartes.Posteriormente,dentreospoderosos deusesolmpicos,surgeApolo,deussolar,muitocultuadona Antigidade. Apolo era tambm deus da inspirao potica, mas bastadarumalidanosprimeirosversosdequalquerumdos grandespoemasclssicosparapercebermosqueelenunca conseguiu usurpar o lugar das Musas. Sendo assim, ao invs de continuarcompetindocomelas,Apolosetornaprotetordas Musas.JquenofoipossvelseimporsMusasnaprtica, Apolo se torna superior a elas pelo ttulo. Noperodoulterioraodocultosdivindadesda primeiragerao,adeusasemdvidaalgumamaiscultuadae respeitadaeraHera.Omotivoparaestefatobemsimples. ComoHeraeraacompanheiradeZeus,adeusaprotetorada famlia,seucultoeraamplamenteincentivadopelosmaridosas 54 suas mulheres. Nenhum marido queria que sua esposa cultuasse Atena,deusaindependentedafiguramasculina,ourtemis,a deusaselvagemdacaa.Erainteressante,atmesmoparaa manutenodosistemapatriarcal,queasmoasdefamlia cultuassem Hera. Outroaspectotrpliceencontradoemdeusasda segundageraoestpresentenotriortemis,Atenae Persfone.Astrssodeusasvirgens,mascadaumaporuma razodistinta.rtemisadeusaselvagemdacaa.Sua virgindade associada ao fato dela no ter sido domesticada por ummarido,atporqueseofosse,perderiatodasassuas caractersticas. Atena a deusa de nimo viril nascido da cabea de Zeus. Sua ligao com o masculino muito mais forte que a sualigaocomofemininoeporissoelasemantmvirgem, pornoprecisardeumhomem.JPersfone,retratadaem vriaspassagensbrincandoepasseando,temsuavirgindade ligada inocncia2. Mesmocomaextinodocultodeusatrplicena formadeGaia,NixeTtis,deusasdeperodosulteriores, algumas deusas olmpicas continuaram a ter um carter trplice. PodemosanalisarestecarternotrioDemter,Persfonee Hcate, que mesmo sendo de um tempo muito posterior de Gaia, TtiseNix,representamasmesmasforasqueoutroraestas representavam.Demter era a deusa dos gros, logo associada a tudo que crescia acima do solo, Persfone, aps ser raptada por 2 Narrativas mticas anterior ao seu rapto por Hades. 55 Hades, nunca mais deixou de ser vinculada ao reino subterrneo, vivendoassim,nafronteiraentreeleseHcatesendoa condutoradasalmasnomundoinferior,eravinculadas profundezas. A deusa trplice era dividida em faces para lidar com o inconsciente,comomedialecomasuperfcie,mascertamente uma dessas faces foi privilegiada em detrimento das outras. Isso fica claro no mito do julgamento de Paris que teve de escolher a mais bela entre Atena, Hera e Afrodite. Atena ofereceu a ele ser um grande guerreiro, vencendo todas as batalhas e ser o homem maissbiodomundo,Heraofereceuaeleserohomemmais ricodomundoeporfimAfroditeveionua,jogandotodosos seusencantoseofereceuaeleamulhermaisbelaomundo. ParisescolheuAfroditeenestaescolhaficaevidenteafaceda mulher que foi privilegiada: o exterior, a beleza. Todas as outras caractersticasfemininasficaramsuplantadascomestadeciso deParis.Afacetrplicedadeusae,conseqentemente,da mulherfoirenegada.Masseadeusadeixoudeexistir,deixou umfortelegado.Apartirdamitologiadadeusatrplice, podemoscomearadiscorrersobreasprticasdosphmakae entenderporqueestasprticassotoligadasmulher.O feminino tem uma relao simblica e histrica com os mitos da fertilidadeefecundidade,resquciosdosabermticoremoto deixado pelas divindades femininas de primeira gerao.Emvriasculturasomitodaterra-meconhecidoe adorado,comarealizaodecultosadivindadesesub-divindadesfemininase/outelricas,doadorasdevidapormeio 56 dascolheitas.Aterrae,porextenso,ofemininofuncionam comofigurasarquetpicasdeumprincpiodoadordavida.A mulher por dar a luz nada mais faz do que completar o trabalho dame-terra.Apartirdessaestreitaligao,todaespciede manifestaoreligiosaoumdicaemquehouvessea manipulaodeervas,ousodepoes,clisteresouungentos utilizadosemrituaisremetiamaoelementofemininoeaos processos mgicos.Arestrioimpostamulhercomomeradoadorae administradoradavidafezcomqueelasseenvolvessemainda mais com questes que j lhe eram inerentes, como a fertilidade eoscuidadoscomacasa.Emmuitosdessesafazeresamulher seutilizavadeprticasmgicas,mascomocategorizaressas prticascomomgicasemumtempoemqueamedicina,a religioeamagiamuitasvezessemisturavam?Assimcomo atualmente,haviaumembateentrecinciaereligio,masqual era o lugar da magia dentro deste confronto? O termo magia, categorizadocomoumcomplexofenmenoporabrangero msticoeocientfico,promoveumadiscussosobreo relacionamentoentremagiaecincianomundoantigo.Para tanto,oirracionalpermeiatodooperododopensamento grego,namedidaemqueascrenaseprticastenhamsido documentadasdesdeostemposhomricos.Asprincipais evidnciassobreessepossvelrelacionamentoentreo sobrenatural e o cientfico provm de duas fontes primordiais, os papiros(especialmenterelevantesparaamagia,medicinae religio gregas) e os relatos presentes na literatura de origem. 57 Contudo,jnoinciodosculoVa.C.osescritores representam uma viso religiosa inovadora criticando as noes tradicionais.Entreestes,XenofonteeHerclito,ouatmesmo ostragedigrafosSfocleseEurpides.Ostextosdesses escritoresmostramqueentreossculosVIeVa.C.ascrenas gregaseramvistasdeformaplural,ondecoexistiamascrticas dedeterminadasprticasreligiosaseaintroduodenovas idiaseprticas.Sendoassim,aofinaldosculoVsurgeuma maiorracionalidadeacercadasorigensdareligio.Demcrito, porexemplo,explicouacrenanosdeusescomoumerro inferidodosfenmenosnaturais,poisosantigosconsideravam como deuses o sol, a lua, enfim, tudo que os cercavam. Voltando-separaosescritoresmdicostem-secomo principalfontedeinformaoOntheSacredDiseasede Hipcrates3,cujadatanopodeserfixadaprecisamente (atribudoaofinaldosc.VeinciodoIVa.C.).Nessaobrao autorestabeleceoqueseriaaepilepsia,achamadadoena sagrada.Osprimeirosachamaraepilepsiadedoenasagrada foram os magos. Estes pretendiam ser dotados de uma sabedoria eporissoseriamcapazesde,invocandoumelementodivino, prevertratamentoschamavam-na,portanto,doenasagrada paraocultarsuaprpriaignorncia,prescreviampurificaese feitios, e asseguravam que essas terapias curavam. 3 IN: LLOYD, G. E. R. Magic, Reason and Experience: Studies in the origins and development of Greek science. Cambridge University, 1979 58 Por conta dessa ignorncia no tratamento desta doena, omalsagrado(mallatiasacra)ocupaumlatoeconsiderado campodocorpusdeHipcrates.Destaformaadoenaque conhecemoshojecomoepilepsiaeratidacomoumaquesto mgicatotalmenteopostavisomdicaqueaconcebecomo umacausanatural,determinadapelomaufuncionamento corpreoquefechaofluxosanguneoalterandoomovimento normaldocorpo.Oataqueepilticodificultaarespirao causandoconvulses,espasmos,oenrolamentodalnguaeat mesmoamorte.Comomalsacroadoenaerasempre interpretada atravs da superstio e da magia. Osrituaismiraculososparaaatuaodomilagreda curaforam muito investigados por Demstenese Teofrasto que aparentementedemonstramtersofridodetalmazela.O tratamentoeraefetuadoperiodicamenteatravsdepurificao, quando,claro,ospossuidoresdetalmalconseguiam sobreviveraosataquesepilticos,poisseacreditavaqueas malficasforasdivinaseramcapazesdeinfluenciarasorte dosmortaisqueteriamdecontarapenascomacaridadedos deusesparaobteremacura,mesmoquemomentnea.Osmaus pressgiostambmeramaatribudosaestesamaldioados queviviamaparentementeembuscadeencantamentose purificaes divinas. A partir da viso Hipocrtica, evidencia-se queamedicinamgicaeamedicinacientficapresentesna Grciaafastaram-seconsideravelmentecomo duas ramificaes distintas, sendo automaticamente estudadas tanto pela sociedade 59 gregaarcaicacomopelasociedadeclssicaesendotambm, testemunhas particulares da mentalidade mgica. OdoutorFr.BoehmentendealeituradeSymbola Pythagoreanocomosefosseumprodutodeatualizao ocorridoatravsdaevoluodomundogrego,massobrea palavra da arqueologia avanada de hoje, um som assim familiar aleituradeP.M.ShuhleadodoutorE.R.Dodds,que concebemareleiturasistmicadaprimeirapginainicialde mallatia sacra, doena (do latim do lentia, padecimento) que o estado resultante da conscincia da perda da homeostasia de um organismovivo,totalouparcial,estadoestequepodecursar devidoainfeces,inflamaes,isquemias,modificaes genticas,seqelasdetrauma,hemorragias,neoplasiasou disfunesorgnicas.Omdicofazaanamneseeexaminao paciente a procura de sinais e sintomas que definam a sndrome dadoena,solicitaosexamescomplementaresconformesuas hiptesesdiagnsticas,visandochegaraumdiagnstico.O passo seguinte indicar um tratamento que seja descrito atravs daconvenoedatcnica,jquenemsempreahistriada medicinadedicoutantaatenoemritoaofatodamedicina cientficatertidoamedicinaprimitivacomosuaforma embrionria e imatura e no como uma exmia representao de particularsignificadointernodeumquadrocultural,capazde viveresobreviverdeformaautnomaatravessandoossculos, como sendo, fundamentalmente diverso a medicina cientfica. O que hoje se traduziria por dois filos legados a Grcia por meio deduaspopulaesculturaisquedescrevemaspectos 60 primordiaissobreelaemquestodecampoideolgico,deum ladoomiraculosomundohelnicoedooutroladoomundo HipocrticoGrego,umcampohistricobastantearticuladoe difuso.Partindodestaquesto,atesta-sequeaconscincia metodologicamente-tranqilagrega,tentaevidenciara reconstruodosistemaculturalcomosuaintegrao,suas dimenseseseusignificadoparaapoca.Peranteosenso religiosogregoamallatiasacraultrapassavaaidiadeculto especficoaumadivindade(Thes).Elarepresentavamuitas vezes simplesmente a manifestao de uma fora sobrenatural e misteriosacombaseemumfenmenonatural,enquanto, iniciadaecausadaaparentementesobrecarterextraordinrioe incompreensivelmente mgico. ApresenadaMallatianotempodeHomero retratada em suas obras e atribuda aos deuses Olmpicos como: aApolo,aArtemis,eaZeusouestopresentesnasferidasde guerras.NononocantodaOdissia,Polifeno,ferido,invocaa Poseidon pedindo sua cura, todavia no a obtm, pois tal mal foi enviado pelo grande Zeus.Apersonificaodomalrepresentava simbolicamente a mo do demnio uma questo naturalmente inspiradanademonologia,aqualpossuaumacorrespondncia aofoitn(agitaoincessante,extraviomental)atribudoao mundomisteriosoeocultodosubsolo(mundointerior), precursor de umestado de euforia e de enfermidade, carestia, umcontgiocompulsivocomo,numaintimapuniomorale 61 mgicageradoradeculpaaoportadordestemalesmbolode maupressgioperanteasociedadequeemmuitoscasos acredita-setersidoummotivodepreconceitosdiantedesta cultura,almdisso,afiguradamulhergregadetentorados saberes mgicos vinculados s plantas sofria grande preconceito porpartedasociedade,graasaopoderporelasabarcado,o temorpblicoseestendiaprincipalmentenaconcepo masculina,umavezquetentavamcontrolartais conhecimentos.Emcertasocasiesamallatiadivinatambm era atribuda ao subsolo e conseqentemente deusa Demter e aosritosagrriosquecontinuamenteevidenciavamamagiado crescimentoeafertilidadecampestre,ondeanatureza,os animaiseoshomensformavamumtododiantedabusca incessante pelo equilbrio grego4. Tambm no campo literrio a mallatiasacraatribudaamaldiesvindasdiretamentedos deuses,comonocasoemquePriclesconfortaaTucdides cidadoateniensequehaviasidopresoaotentarinvadira Espartaequeporissoacabou,instigandoafria,possudopor uma peste, enviada diretamente da deusa Nmesis.Na Grcia antiga a mallatia sacra era tambm atribuda adeusaHcateevinculadaaomundomgico,aonde freqentementevinhaatribudaacausasdefenmenos extraordinrios,emboraevidentementePatolgicos,comopor exemplo:Selenequeaocultuarasninfaseratomadapela mallatiaeassimtinhaumaligaoquasequediretacomas 4 in HRCULES FURIOSO: A EPILEPSIA NA TRAGDIA GREGA.Departamento de Histria Puc-Rio, BOLSISTA: Paloma da Silva Brito). 62 divindades.Estasmanifestaesentrehomensedivindades estavampresentesnamaioriadoscultosaoPanteohelnico, comonoscultosdemistriosdionisacosemqueaomesmo tempocontribuaforaaosmitos,extasiaareligioetemor popular.Amallatia,portersidoocentrodeumadiscusso sobreoqueeraamedicinaeoqueerareligio,foifocode muitosestudosnaAntigidade.Hipcrates,emOntheSacred Disease,afirmaqueessesfeiticeirosaproveitavam-seda fragilidade dos doentes, sendo diretamente contra a idia de que uma enfermidade possa ser resultado de uma interveno divina, econseqentementeomdico-filsofotambmcriticavaa crena de que os rituais de purificao pudessem influenciar um fenmeno natural. Acrenanapossibilidadedeumainterveno sobrenaturalnasdoenasenaeficciadaspurificaesfoi vigorosamenteatacadapordeterminadosgruposmdicos, sobretudo entre os sculos V e IV a.C. Herdoto,porexemplo,emHistrias,apresentouuma obraparticularmentesugestiva,estaincluinosomenteestudos sobrehistrianatural(comotopografia,descriesdeflorae fauna,etc.),mastambmexplicaesesforadassobrealguns fenmenos.Porisso,aoreportarascrenasehistriasque invocamomaravilhosoousobrenatural,elefreqentemente recorda suas prprias dvidas, ou em outros momentos, apia a idiadequemuitostiposdeinfortnios,incluindoas 63 enfermidades,possamserresultadosdeumdescontentamento divino.Herdotomostra,portanto,queeraperfeitamente possvelcombinarasquestesrelativasvariedadede fenmenos naturais s crenas de que as enfermidades pudessem serporcausadosdeuses.Comisso,anoodeinterveno divinatevedeserredefinida.Passou-seaacreditarnuma combinaoentrenaturalecausadivina.Dessaformao natural poderia ser pensado como algo divino.Emboramuitosremdiospopularestenhamsido implcitaouexplicitamenterejeitadosporalgunsmdicos escritores,questescomoaeficciadeamuletos,oraese msicas continuaram sendo muito debatidas. At mesmo alguns querejeitavamaidiadequeamuletospudessemfuncionar como Remdios Naturais sugerem que estes podem deixar os pacientesmaisconfiantese,conseqentemente,acarretara melhora. Percebe-se,portanto,certaambigidadeemmuitos termosusadospelosmdicosescritoreseremdiospopulares paradoenas.OtermoPharmakon,porexemplo,quesignifica droga, pode ter ou no uma conotao adjetiva de poo na literaturamdicaeemoutroslugares,ondeeratambmusado como um tipo de remdio.Aidiadanaturezacomoimplicaodeumaconexo universaldecausaeefeitoficaexplcitanodecorrerdo desenvolvimentodafilosofiapr-socrtica,poisforamestesos primeirosaseindagareexplicarosfenmenosnaturais 64 (relmpagos,troves,etc.)atravsdeexplicaesfsicas.Mas, foiapartirdosescritoresmdicosquetemosestudosmais representativos,taiscomo,ascausasdasenfermidades;seus fatoresresponsveis,enfim,prticascurativasetiposvariados dedoenassoexaustivamentediscutidosnoCorpus Hipocraticus.Nessesentido,temosonascimentodeum desenvolvimentocrtico,quevemdesmistificarasprticase crenasmsticas.Asmesmasforamcontestadasnospelo contextodareligio,mastambmpelodomniodamedicina. Assim,termoscomomagiaemagoforambastantedenegridos, bem como sua prtica e, por extenso, seus praticantes. Como se v, as possveis conotaes desses termos so flutuantesduranteoperododedesenvolvimentogrego.a partirdosculoVa.C.,portanto,queavultacertarejeios prticasmgicas.Issoficabastanteclaronocorpusde Hipcrates que versa sobre a doena sagrada, ou mallatia sacra, ondesesustentaumapolmicasobreaorigemdessepossvel mal que acometia muitos cidados. Emerge,assim,ocrescimentodainvestigaomdica e,conseqentemente,aexpansodabaseempricanacincia grega. 65 Referncias Bibliogrficas: AUBERT,Jean-Jacques.ThreatenedWombs:Aspectsof AncientUterineMagi".Greek,RomanandByzantineStudies, vol. 30, #3, 1989, p.421-451. BONNET,Jocelyne.LaTerredesFemmesetsesMagies. Editions Robert Laffont, Collection Les Hommes et lHistoire. EURIPEDES.(1.995).TragediasdeEuripedes(T.2): Suplicantes; Heracles; Ion; Las tro yanas; Electra; Ifgenia entre losTauros.1edicin.Espaa/Madrid.Plazaedicin:Madrid. Gredos biblioteca clasica ( colecin). LANATA,Giuliana.MedicinaMagicaeReligionePopolarein Grecia. 1 edizioni. Italy/Roma : Edizioni dell'ateneo, 1967. LLOYD, G. E. R. Magic, Reason and Experience: Studies in the origins and development of Greek science. Cambridge University, 1979 MCLEAN,Adam.ADeusaTrplice.Trad.DeAdailUbirajara Sobral. So Paulo: Cultrix, 1989. Sites: BOLSISTA: Paloma da Silva Brito- HRCULES FURIOSO: AEPILEPSIANATRAGDIAGREGA. Departamentode Histria Puc-Rio, Orientadora: Professora Margarida de Souza NevesProjeto: Em defesa da sociedade? Epilepsia e propenso ao crime no pensamento mdico brasileiro. 1897 1957 http://www.historiaecultura.pro.br/cienciaepreconceito/producao/herculesfurioso.pdf (25/03/09, 13: 21h)HRACLES-origemenciclopdialivreWikipdia/ http://pt.wikipedia.org/wiki/Doen%C3%A7a(20/05/09, 17:30h) 66 Ana Cristina Cesar: poeta viajora Anlia Montechiari Pietrani - UFRJ sempre mais difcil ancorar um navio no espao Ana Cristina Cesar, Cenas de abril AIladaterminacomosfuneraisdeHeitor.Mortoo domadordecavaloseoguardiodeTroia,avivaAndrmaca chorasuasolidoedesdita:umfilhoquelheficanosbraos, sem mais o destino de ser homem um dia. Como entoado em seu cantofnebre,Andrmacanosfaladadesproteoquepaira sobreasmatronasecriancinhasque,embreve,serolevadas aoscncavosnavios,jqueacidadecair,assimcomooseu menino. Este ou lhe seguir pelos caminhos em que escrava executarindecorosostrabalhosouseratiradodastorrespara uma lamentvel morte.TomoaheronaAndrmacacomomoteaesta apresentao,porsuaestriadeerrncia,entregaerepdio. Valeaqui, sobre ela, um breve resumo.Em seguida captura e ao aniquilamento de Troia, a viva de Heitor coube, na partilha dos despojos, a Pirro, apelido de Neoptlemo, filho de Aquiles. ApsatirarAstanax,filhodeHeitoreAndrmaca,doaltodas muralhasdeTria,Pirrolevasuameparaopiro,seureino, ondetevetrsfilhoscomsuaescrava:Molosso,Peloe 67 Prgamo. Clebre pela dura vitria que obteve sobre os romanos emHeracleia,PirromaridodaestrilHermione,filhade Menelau-repudiaAndrmaca,deixando-aparaHeleno,irmo maisnovodeHeitor,quetrouxeradeTroiaconsigo.Morto Heleno, Andrmaca viajou com seu filho Prgamo para a Msia, fundando l a cidade que recebeu o nome do filho. AAndrmacaquesenosapresenta,apartirdessa narrativa, atravessar mares, percorrer caminhos, viajar com e por seus filhos, deixar estrias. Assim se perpetuar. Sair dos versosdeHomeroe,sculosesculosdehistriasdaliteratura depois,chegaraParis,em1857,plantadanosversosdolivro maldito As flores do mal, de Charles Baudelaire, em seu poema O Cisne: O Cisne(A Victor Hugo) IAndrmaca, s penso em ti! O fio dgua,Soturno e pobre espelho onde esplendeu outroraDe tua solido de viva a imensa mgoa,Este mendaz Simeonte em que teu pranto aflora, Fecundou-me de sbito a frtil memria,Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histriaDepressa muda mais que um corao infiel); S na lembrana vejo esse campo de tendas,Capitis e cornijas de esboo indeciso,A relva, os pedregulhos com musgos nas fendas,E a miualha a brilhar nos ladrilhos do piso. 68 Ali havia outrora os bichos de uma feira;Ali eu vi, certa manh, quando ao cu frioE lmpido o Trabalho acorda, quando a poeiraLevanta no ar silente um furaco sombrio, Um cisne que escapara enfim ao cativeiroE, nas speras lajes os seus ps ferindo, As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro. Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,

No p banhava as asas cheias de aflio,E dizia, a evocar o seu lago natal:"gua, quando cairs? Quando soars, trovo?"Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal, Tal qual o homem de Ovdio, s vezes num impulso,Erguer-se para o cu cruelmente azul e irnico,A cabea a emergir do pescoo convulso,Como se a Deus lanasse um desafio agnico! IIParis muda! Mas nada em minha nostalgiaMudou! novos palcios, andaimes, lajedos,Velhos subrbios, tudo em mim alegoria,E essas lembranas pesam mais do que rochedos. Tambm diante do Louvre uma imagem me oprime:Penso em meu grande cisne, quando em fria o vi,Qual exilado, to ridculo e sublime, Rodo de um desejo infindo! e logo em ti, Andrmaca, s carcias do esposo arrancada, De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno, Ao p do ermo sepulcro em xtase curvada, Triste viva de Heitor e, aps, mulher de Heleno! 69 E penso nessa negra, enferma e emagrecida, Ps sob a lama, procurando, o olhar febril, Os velhos coqueirais de uma frica esquecidaPor detrs das muralhas do nevoeiro hostil; Em algum que perdeu o que o tempo no traz Nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor E das lgrimas bebem qual loba voraz! Nos rfos que definham mais do que uma flor! Assim, a alma exilada sombra de uma faia Uma lembrana antiga me ressoa infinda! Penso em marujos esquecidos numa praia,Nos prias, nos gals... e em outros mais ainda! (BAUDELAIRE, 1985, p. 325-329) AtravessiapoticadafrgilAndrmacaaindano estarnofim.Colhendo-aali,nojardimdasfloresdomal,a poeta brasileira Ana Cristina Cesar a recolher em sua Carta de Paris,maisumnaviodifcildeancoraremqueAndrmacase apresenta.Andrmacatambmaquitalcomonopoemade Baudelaireainterlocutora,aindaque,nodeAnaCristina, aparea apenas sugerida pela expresso minha filha viva. Carta de Paris I. Eu penso em voc, minha filha. Aqui lgrimas fracas, dores mnimas, chuvas outonais apenas esboando a majestade de umchoro de viva, guas mentirosas fecundando campos demelancolia, tudo isso de repente iluminou minha memria quando cruzei a 70 ponte sobre o Sena. A velha Paris j terminou. As cidades mudam mas meu corao est perdido, e apenas em delrio quevejo campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenidaocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordemdesgarradas; apenas em delrio vejo Anas de capa negra bebendo com Henry no caf, Jean lagaronne cruzando com Jean-Paul nos Elyses, Gene danando meia-luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flanae desespera e volta para casa com frio da manh e pensa naFora de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta,lama dura, p, poeira, calor inesperado na cidade, gargantaressecada, talvez bichos que falam, ou exilados com sede que numinstante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranhoe fatal da terra amada, onde h tempestades, e olham de vis o cu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizerque voltar impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar,cruzar a ponte sobre o rio. II. Paris muda! mas minha melancolia no se move. Beaubourg,Forum des Halles, metr profundo, ponte impossvel sobre orio, tudo vira alegoria: minha paixo pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Pensono meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais dono retorno, que desejam Paris sublime para sempre, semtrgua, e penso em voc, minha filha viva para sempre, prostituta, travesti, bagagem 71 do disk jockey que te acorda no meio da manh, e no pagaadiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e pensoem voc, amante sedutora, me de todos ns perdidos em Paris,atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para asluzes trmulas dos trpicos, o fim dos sonhos deste exlio,as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro, em algum que perdeu o jogo para sempre, e para sempreprocura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala aorfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memria; e penso em Paris queenfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantesesquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e emoutros mais ainda! (CESAR, 1998. p. 82-84) OpoemaCartadeParisumdosmaisinteressantes dilogosintertextuaisdeAnaCristinacomapoesiade Baudelaire(ouumaversolivre,conformeeladefiniuem cartaendereadaamigaAnaCandidaPerez).Nohaquia intenodeestabelecercomparaesexaustivas,palavraa palavra,versoaverso,dosalexandrinosdeBaudelaireedos livresdeAnaCristina.Muitoscrticosjsedebruaramsobre isso,passandoinclusivepelaimitaodeRobertLowell, intituladaTheSwan,certamentelidaeestudadaporAna CristinaemseustrabalhossobreTraduoLiterria,enquanto faziaps-graduaoemArtes,nodecorrerde1980na UniversidadedeEssex,naInglaterra,orientadaporArthur Terry. Dessa imitao de Lowell, Ana Cristina toma ao menos 72 duas imagens que no estavam presentes no texto de Baudelaire: arefernciaaAndrmacacomobagagemdePirroea bandeirabrancadesfraldadaanunciandonosltimosversos osesquecidos,oscativos,osvencidos,osafogados,em possvelrefernciaaoquadroAbalsademedusa,deTheodore Gericault. Maisdoqueessacomparaominuciosa(quetambm nomenosinstigante),oquenosinteressadestacarquea releituraqueAnafazdeOcisne,deBaudelaire,reapresentaa temticadopresentedesgastado,estilhaado,quedespertao olhar para o passado. Nos dois poemas, no de Baudelaire e no de Ana,ainevitabilidadedamudanaprovocadapelonovo,a desolao pelo que foi e a desesperana pelo que vir j que a melancoliaanicaquenosemovesotematizadaspelos smbolosdadoredasolido:orfandade,ilha,balsa,mar.Est tambm, em ambos os textos, o flneur a vasculhar Paris, mas o queelev,emBaudelaire,apenaslembrana,enquanto,em Ana, delrio. Almderesgataramelancoliasolitriadopoemade Baudelaire, a sensao de exlio tambm recobrada no texto de Ana. Imagens em delrio aparecem-lhe mente, e recupera-as a pena da escrita (valendoaqui a ambiguidade do termo). A mais curiosadessasimagensencontra-senocisnedopoemade Baudelaire,caracterizadosimultneaeantagonicamentepor ridculo e sublime e que reaparece, no texto de Ana, na figura de um certo Charles que, louco, flana e desespera. 73 Aalusocomparativacisne-Charlesnopodeser fortuita: remete-nos ao prprio Baudelaire e por extenso ao poeta,jqueocisneestsimbolicamenteassociadopoesia. SegundooDicionriodeSmbolosdeJeanChevaliereAlain Gheerbrant, o cisne o elo, por suas migraes anuais, entre os povos do Mediterrneo e os misteriosos e utpicos hiperbreos. essa ave o inseparvel companheiro de Apolo: cisnes sagrados fizeram,nodiadonascimentododeusdamsicaedapoesia, setevezesavoltaaDelos;cisnesbrancospuxaramocarro recebido por Apolo quando tambma lira foientregue jovem divindade.ChevalieraindanosesclarecequePierreGrimal,no Dicionrio de Mitologia Grega e Romana, afirma que os cisnes oconduziramprimeiroasuaterra,sbordasdooceano,para almdaptriadosventosdoSetentrio,ondevivemos hiperbreos,sobumcuinvariavelmentegris,oqueteria levadoVictorMagnienadizer,nasuaobraOsmistriosde Elusis, que o cisne simbolizaria a fora do poeta e da poesia. Oridculoeosublimedafiguraambguadocisneso recuperadosnaagoniaenodelriodeCharles.Ambos,cisnee poeta,esgueiram-seentreaafliodamudanadetudoede todos, enquanto a melancolia40 e a lembrana so as nicas que permanecem ancoradas em um lugar certo: o da poesia. Issonosfazremontarspalavrasdopoema Recuperaodaadolescncia,tomadascomoepgrafeaeste 40 sugestivo, nesse sentido, que Ivan Junqueira tenha escolhido a palavra nostalgia paraatraduodemlancolie,trazendoosentimentosimultneodemelancoliae lembrana co