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Tempo dos Gêmeos 1

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“E assim os deuses me indicam o cami-nho”, murmurou Caramon para si mesmo. A-proximou-se um pouco mais da cama, imobili-zou-se sem nunca largar a adaga, e ficou ouvindoa respiração pausada da sua vítima, tentandodescobrir qualquer alteração no ritmo profundoe bem marcado que lhe indicasse que tinha sidodescoberto.

A respiração continuava forte, profunda,tranqüila. A respiração de um jovem saudável.Caramon sentiu-se surpreendido quando se re-cordou de como este feiticeiro devia ser velho, edas lendas sinistras que corriam acerca da manei-ra como Fistandantilus recuperara a juventude.Subitamente, o luar invadiu o compartimento,como um aviso...

Caramon ergueu a adaga. Um golpe rápi-do e firme no peito, e tudo estaria acabado.

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Margaret WeisTracy Hickman

TEMPO dos GÊMEOS

VOLUME 1

Poesia de Michael WilliamsIlustrações interiores de Valerie Valusek

Título original: Time of the TwinsTradução de Maria João Bento

Capa: arranjo gráfico de estúdios P. E. A.,sobre ilustrações de Larry Elmore

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Para Samuel G. e Alta Hickman

O meu avô, que me aconchegava na camacom o seu modo muito especial, e a minha avó,que me criou e revelou sempre grande sensatez.Muito obrigada por todos os contos ao deitar,

pela vida, pelo amor e pela história.Viverão para sempre.

TRACY RAYE HICKMAN

Este livro, sobre as ligações físicas e espirituaisque unem irmãos, só poderia ser dedicado

a uma única pessoa — a minha irmã.Para Terry Lynn Wilhelm, com amor.

MARGARET WEIS

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Agradecimentos

Gostaríamos de expressar a nossa gratidãopelo seu trabalho: Michael Williams, pelos es-plêndidos poemas e pela calorosa amizade; SteveSullivan, pelos magníficos mapas. (Agora já sabepor onde anda, Steve!); Patrick Price, pelos úteisconselhos e críticas atenciosas; Valerie Valusek,pelos requintados desenhos; Ruth Hoyer, pelacapa e arranjos interiores; Roger Moore, pelosartigos Dragon® e pela história de Tasslhoff e domamute peludo; Equipe Dragonlance™: HaroldJohnson, Laura Hickman, Douglas Niles, JeffGrubb, Michael Dobson, Michael Breault, BruceHeard, e artistas do calendário Dragonlance 1987:Clyde Caldwell, Larry Elmore, Keith Parkinson eJeff Easley.

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O ENCONTRO

Uma figura solitária caminhava suavemen-te na direção da luz distante. Seguindo sem serouvido, os seus passos eram sugados pela vastaescuridão que o circundava. Bertrem abando-nou-se num vôo raro de fantasia ao olhar para asfilas de livros e rolos de papel, que pareciam in-termináveis, constituindo parte das Crônicas deAstinus e contando em pormenor a história destemundo, a história de Krynn.

“É como ser absorvido no tempo”, pen-sou, suspirando ao fitar as filas imóveis e silen-ciosas. Desejou, por breves instantes, ser trans-portado para qualquer outro lugar, de modo aque não tivesse de enfrentar a difícil tarefa que oaguardava.

“Todo o conhecimento do mundo estánestes livros”, disse para si mesmo, ansiosamen-te. “E nunca encontrei nada que torne mais fácilo contato com o seu autor.”

Bertrem estacou em frente de uma porta,a fim de reunir coragem. As suas vestes estéticasrepousavam sobre ele, caindo em dobras corre-tas e ordenadas. Contudo, o seu estômago recu-sava-se a seguir o exemplo das vestes e guinavadesenfreadamente. Bertrem passou a mão pelocrânio, um gesto nervoso que lhe provinha aindada juventude, antes da profissão que escolheralhe ter custado o cabelo.

“O que o estaria incomodando?”, pergun-

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tou-se, desoladamente, para além de ir entrarpara ver o mestre, claro, algo que já não faziadesde... desde... Encolheu os ombros. Sim, desdeque o jovem mago quase falecera à entrada daporta deles durante a última guerra.

Guerra... mudança, era isso. Tal como asvestes, o mundo parecia finalmente repousar aoseu redor, mas sentia a mudança chegar de novo,tal como o sentira há dois anos atrás. Desejoupoder impedi-la...

Bertrem suspirou.“Seguramente que não vou impedir nada

limitando-me a ficar aqui na escuridão”, murmu-rou. De qualquer forma, sentia-se desconfortá-vel, como que rodeado por fantasmas. Uma luzbrilhante reluzia por debaixo da porta, raiandopara o corredor. Dando uma mirada rápida paratrás, para a sombra dos livros, cadáveres tranqüi-los repousando nos seus túmulos, o esteta abriucalmamente a porta e entrou no estúdio de Asti-nus de Palathas.

Embora o homem se encontrasse no inte-rior, não falou nem levantou sequer o olhar.

Caminhando com um passo suave e co-medido através do rico tapete de lã de carneiroestendido sobre o chão de mármore, Bertremparou diante da enorme e polida secretária demadeira. Durante longos momentos não profe-riu palavra, absorto na observação da mão doguia histórico, escrevendo com uma pena nopergaminho, com toques firmes e regulares.

— Então, Bertrem? — Astinus não inter-

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rompeu a sua escrita.Bertrem, de frente para Astinus, leu as le-

tras que, mesmo de baixo para cima, se revela-vam decisivas, nítidas e facilmente decifráveis.

Neste dia, tal como acima Darkwatch ascenden-do a 29, Bertrem entrou no meu estúdio.

— Crysania, da Casa de Tarinius, está aquipara vê-lo, mestre. Diz que a aguarda... — A vozde Bertrem foi-se apagando num murmúrio, poisfora necessária uma grande dose de coragem es-tética para chegar àquele ponto.

Astinus continuou a escrever.— Mestre — começou Bertrem em tom

fraco, estremecendo perante a sua ousadia —Eu... nós não sabemos o que fazer. Ela é, afinalde contas, a Venerável Filha de Paladine e eu...nós achamos impossível recusar a sua entrada. Oque...

— Leva-a para os meus aposentos priva-dos — disse Astinus, sem cessar de escrever nemlevantar o olhar.

A língua de Bertrem colou-se ao céu daboca, impossibilitando-o, momentaneamente, defalar. As letras fluíam da pena para o pergaminhobranco.

Neste dia, tal como acima Afterwatch ascendendoa 28, Crysania de Tarinius chegou para o seu encontrocom Raistlin Majere.

— Raistlin Majere! — afirmou Bertremcom dificuldade, o choque e o horror libertando-lhe a língua — Devemos admitir que...

Astinus olhava agora para cima, o aborre-

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cimento e irritação vincando-lhe as sobrancelhas.Quando a pena terminou o seu rabiscar eternono pergaminho, um silêncio profundo e pouconatural mergulhou sobre a sala. Bertrem empali-deceu. O rosto do historiador poderia ter sidoconsiderado como gracioso, numa forma eternae imutável. Mas ninguém que visse o seu rosto sevoltaria a recordar dele. Recordariam apenas dosolhos: escuros, intensos, alerta, em constantemovimento, observando tudo. Esses olhos podi-am, de igual forma, comunicar vastos mundos deimpaciência, lembrando a Bertrem que o tempopassava. No preciso momento em que os doisconversavam, minutos integrais de história de-corriam, sem registro.

— Peço perdão, mestre! — Bertrem fezuma reverência em profundo respeito, retroce-dendo depois precipitadamente para fora do es-túdio, fechando sem ruído a porta ao sair. Noexterior, limpou a cabeça rapada que reluzia detranspiração, percorrendo de seguida velozmenteos corredores silenciosos de mármore da grandebiblioteca de Palanthas.

Astinus estacou junto à entrada da sua re-sidência privada, fitando a mulher sentada nointerior.

Localizada na ala ocidental da grande bi-blioteca, a residência do historiador era pequenae, tal como todas as outras divisões da biblioteca,encontrava-se repleta de livros de todos os tipose encadernações, as prateleiras alinhadas nas pa-redes conferindo um leve odor a mofo à área

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central de habitação, qual mausoléu selado háséculos. O mobiliário era esparso e prístino. Ascadeiras, em madeira vistosamente esculpida,eram duras e desconfortáveis para servirem deassento. Uma longa mesa, próxima da janela,estava completamente liberta de qualquer orna-mento ou objeto, refletindo a luz do sol poentesobre a superfície negra. Tudo na sala se encon-trava na mais perfeita ordem. Mesmo a madeirapara a fogueira noturna, as noites do final daPrimavera eram frias, mesmo naquela localizaçãotanto a norte, estava empilhada em filas tão or-denadas que se assemelhavam a uma pira funerá-ria.

E, contudo, por muito frio, primitivo epuro que fosse este aposento privado do histori-ador, a divisão em si parecia apenas refletir a be-leza fria, primitiva e pura da mulher sentada, asmãos repousando no regaço, aguardando.

Crysania de Tarinius aguardava paciente-mente. Não se mexeu ou suspirou ou fitou vezessem conta o dispositivo de tempo movido a á-gua, localizado a um canto. Não lia, embora As-tinus quase tivesse a certeza de que Bertrem lheteria oferecido um livro. Não vagueava pela sala,nem examinava os poucos e raros ornamentosque se encontravam nos nichos sombrios dentrodas estantes. Permanecia sentada na cadeira demadeira, direita e desconfortável, os seus olhoslímpidos e brilhantes fixos nas franjas mancha-das de vermelho das nuvens que pendiam sobreas montanhas, como se observasse o sol a pôr-

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se, possivelmente, pela primeira, ou última, vezsobre Krynn.

Estava de tal forma embrenhada na visãopara lá da janela que Astinus entrou sem desper-tar a atenção dela. Observou-a com um intensointeresse. Tal não constituía um ato pouco habi-tual para o historiador, que escrutinava todos osseres que viviam em Krynn com o mesmo olharinsondável e penetrante. O que se revelou poucohabitual foi que, por momentos, um olhar depiedade e uma profunda tristeza perpassou pelorosto do historiador.

Astinus registrava a história. Registrava-adesde o início dos tempos, vendo-a passar pe-rante os seus olhos e inscrevendo-a nos seus li-vros. Não podia prever o futuro; tal constituíaprivilégio dos deuses. Mas conseguia pressentirtodos os sinais de mudança, esses mesmos sinaisque tanto tinham perturbado Bertrem. Ali, imó-vel, podia escutar as gotas de água caindo nodispositivo do tempo. Colocando a mão por de-baixo delas, poderia estacar o fluxo das gotas,mas o tempo prosseguiria o seu percurso.

Suspirando, Astinus voltou a sua atençãopara a mulher, de quem já ouvira falar mas quenunca conhecera pessoalmente.

O cabelo dela era preto, preto-azulado,preto como a água de um mar calmo à noite.Usava-o todo penteado para trás a partir de umalinha central, preso na parte detrás da cabeça pormeio de um pente de madeira, simples e semadornos. O estilo severo não ficava bem às suas

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feições pálidas e delicadas, enfatizando a sua pa-lidez. Não havia qualquer cor no seu rosto. Osolhos eram cinzentos e visivelmente muito lar-gos. Até os lábios eram descorados.

Há alguns anos atrás, quando jovem, asserventes entrelaçavam-lhe e enrolavam-lhe a-quele cabelo espesso e negro, seguindo os últi-mos estilos da moda, enfiando alfinetes de pratae ouro, decorando os matizes sombrios com jói-as resplandecentes. Tingiam-lhe as faces com osuco de bagas esmagadas e vestiam-na com sun-tuosas roupas de vários tons cor-de-rosa esbati-dos e azuis pulverulentos. Outrora, fora bonita.Outrora, não lhe teriam faltado pretendentes.

O vestido que usava agora era branco,como convinha a uma eclesiástica de Paladine, esimples, embora constituído por um materialfino. Não tinha qualquer adorno, com exceçãodo cinto de ouro que envolvia a cintura magra.O seu único ornamento era paladiano, o meda-lhão do dragão de platina. O cabelo estava co-berto por um capuz branco solto, que realçava asuavidade e frieza de mármore dos seus traços.

“Ela poderia ser feita de mármore”, pen-sou Astinus, com uma diferença: o mármore po-dia ser aquecido pelo sol.

— Saudações, Venerável Filha de Paladine— disse Astinus, entrando e fechando a portaatrás de si.

— Saudações, Astinus — disse Crysaniade Tarinius, erguendo-se.

Ao atravessar a sala na direção dele, Asti-

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nus sentiu-se algo surpreendido ao notar a ligei-reza e o comprimento quase masculino dos seuspassos. Parecia estranhamente incongruente emrelação ao aspecto dela. Também o seu aperto demão foi firme e forte, nada típico numa mulherpalanthiana, as quais raramente apertavam asmãos e, quando o faziam, se limitavam a esten-der as pontas dos dedos.

— Devo agradecer-lhe por desperdiçar oseu valioso tempo para atuar como elementoneutro nesta reunião — disse Crysania, calma-mente — Sei quanto lhe desagrada roubar tempoaos seus estudos.

— Desde que não seja uma perda de tem-po, não me importo — replicou Astinus, segu-rando-lhe a mão e fitando-a intensamente —Devo dizer, contudo, que me ressinto com isto.

— Porquê? — Crysania pesquisou o rostodo homem eterno com verdadeira perplexidade.Depois, compreendendo subitamente, sorriu, umsorriso frio que não acrescentou mais vida ao seurosto do que o luar sobre a neve.

— Não acredita que ele venha, não é?Astinus resfolegou, deixando cair a mão

da mulher como se tivesse perdido completa-mente o interesse pela existência dela. Voltando-se, caminhou para a janela e olhou para fora, pa-ra a cidade de Palanthas, cujos edifícios brancose reluzentes brilhavam à luz do sol com uma be-leza esmagadora, com uma única exceção. Umdos edifícios não era tocado pelo sol, mesmoquando este se encontrava bem alto no céu.

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E foi sobre este edifício que o olhar deAstinus se fixou. Elevando-se no centro da bri-lhante e bonita cidade, as suas torres de pedranegra emaranhavam-se e retorciam-se, os seusminaretes, recentemente reparados e reconstruí-dos pelos poderes da magia, reluziam num tomde vermelho-sangue no pôr-do-sol, com a apa-rência de dedos putrefatos e esqueléticos, ele-vando-se de um qualquer cemitério não sagrado.

— Há dois anos atrás, ele entrou na torreda alta feitiçaria — disse Astinus na sua voz cal-ma e impassível, ao mesmo tempo que Crysaniase juntava a ele na janela — Entrou durante anoite, na escuridão, a única lua no céu era a luaque não derrama qualquer luz. Atravessou obosque de Shoikan, um grupo de árvores de car-valho amaldiçoadas de que nenhum mortal, nemmesmo os da raça kender, se atreve a aproximar-se. Seguiu o seu caminho para os portões sobreos quais se encontra ainda suspenso o cadáverdo mago diabólico que, ao morrer, lançou a mal-dição sobre a torre e se lançou das janelas maisaltas, espetando-se nos portões, um temívelguarda. Mas, quando ele lá foi, o guarda fez-lheuma reverência, os portões abriram-se com o seutoque, fechando-se depois atrás dele. E não sevoltaram a abrir nestes dois últimos anos. Elenão saiu de lá e, se alguns entraram, nunca nin-guém os viu. E espera que ele venha... aqui?

— O senhor do passado e do presente —Crysania encolheu os ombros — Ele veio, talcomo foi previsto.

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Astinus fitou-a com algum espanto.— Está ao corrente da história dele?— Claro — replicou calmamente a eclesi-

ástica, levantando os olhos para ele por instantes,virando depois o olhar de novo para a torre, quese encobria já com as sombras da noite que seaproximava — Um bom general estuda sempreo inimigo antes de se envolver numa batalha.Conheço Raistlin Majere muito bem, mesmomuito bem. E sei... que virá esta noite.

Crysania continuou a fitar a torre terrível,de queixo erguido, os lábios descorados dese-nhando uma linha direita e regular, as mãos agar-radas atrás das costas.

O rosto de Astinus ficou subitamente gra-ve e pensativo, os olhos perturbados, embora avoz se revelasse tão fria quanto sempre.

— Parece muito segura de si, VenerávelFilha. Como pode ter a certeza disso

— Paladine falou comigo — replicouCrysania, nunca desviando os olhos da torre —Em sonho, o dragão de platina apareceu na mi-nha frente e disse-me que o mal, outrora banidodo mundo, regressara na pessoa deste feiticeirovestido de negro, Raistlin Majere. Vamos enfren-tar um grave perigo, e eu fui a escolhida paraevitá-lo — Enquanto Crysania falava, o seu rostode mármore suavizou-se, e os seus olhos cinzen-tos mostraram-se límpidos e reluzentes — Será oteste à minha fé, por que tanto tenho rezado! —Olhou para Astinus — Compreende: sei, desde aminha infância, que o meu destino é levar a cabo

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um grande feito, um grande serviço ao mundo eà sua gente. Esta é a minha oportunidade.

O rosto de Astinus ficou ainda mais graveao escutar, intensificando a sua austeridade.

— Foi Paladine quem lhe contou isso? —inquiriu, abruptamente.

Crysania, sentindo, talvez, a descrençadeste homem, enrugou os lábios. Uma fina linha,aparecendo entre as sobrancelhas constituía,contudo, o único sinal da sua ira, para além dacalma ainda maior que revelou ao responder.

— Lamento ter referido tal assunto, Asti-nus, peço desculpa. Era entre mim e o meu deuse tais coisas sagradas não deveriam ser discuti-das. Levantei a questão simplesmente para lheprovar que este homem do mal virá. Não estánas mãos dele. Paladine há de trazê-lo.

As sobrancelhas de Astinus ergueram-se,de tal forma que quase desapareceram sob o seucabelo grisalho.

— Este “homem do mal” como lhe cha-ma, Venerável Filha, serve uma deusa tão pode-rosa quanto Paladine, Takhisis, Rainha das Tre-vas! Ou talvez eu não devesse dizer serve — ob-servou Astinus com um sorriso pervertido —Sobretudo quando me refiro a ele...

As feições de Crysania tornaram-se maisdescontraídas e o seu sorriso frio regressou.

— O bem redime os seus — respondeusuavemente —, o mal volta-se contra si mesmo.O bem triunfará de novo, tal como aconteceu naguerra de Lance contra Takhisis e os seus maldi-

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tos dragões. Com o auxílio de Paladine, eu triun-farei sobre este mal, tal como o herói, Tanis Se-miduende, triunfou sobre a própria Rainha dasTrevas.

— Tanis Semiduende triunfou com o au-xílio de Raistlin Majere — disse Astinus imper-turbável — Ou será que decidiu ignorar essa par-te da lenda?

Nem uma ruga de emoção desfigurou aexpressão tranqüila e plácida de Crysania. O sor-riso permaneceu fixo. O seu olhar fixava-se narua.

— Veja, Astinus — disse, suavemente —Ele vem.

O sol afundava-se por detrás das longín-quas montanhas, e o céu, iluminado pelos últi-mos raios, parecia uma pedra preciosa cor-de-púrpura. Servos entraram em silêncio, acenden-do a lareira no pequeno aposento de Astinus. Asachas arderam pacificamente, como se as pró-prias chamas tivessem sido ensinadas pelo histo-riador a manter o repouso tranqüilo da grandebiblioteca. Crysania sentou-se mais uma vez nacadeira desconfortável, as mãos repousando denovo no regaço. A sua expressão exterior eracalma e fria, como sempre. Dentro dela, o cora-ção batia apressadamente, fato esse apenas visí-vel através de um reluzir nos olhos cinzentos.

Nascida na nobre e abastada família deTarinius de Palanthas, família essa quase tão an-tiga quanto a própria cidade, Crysania receberatodo o conforto e benefício que podiam ser con-

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feridos pelo dinheiro e posição. Inteligente e devontade forte, poderia facilmente ter-se tornadonuma mulher teimosa e obstinada. Os seus sen-satos e adorados pais, no entanto, nutriram emoldaram o espírito forte da filha, criando nelauma forte e imutável confiança em si mesma.Crysania fizera apenas uma coisa em toda a suavida que ferira os seus devotos pais, mas preci-samente isso magoara-os profundamente. Recu-sara um casamento ideal com um bom jovemnobre, para se devotar a servir deuses há muitoesquecidos.

A primeira vez que ouviu o clérigo, Elis-tan, foi quando este veio para Palanthas, no fimda guerra do Lance. A sua nova religião, ou tal-vez devesse ter sido chamada a velha religião,espalhava-se rapidamente por todo o Krynn, da-do que a lenda recém-criada defendia a crença deque os velhos deuses tinham auxiliado a derrotaros dragões demoníacos e os seus senhores, osgrão-lordes do dragão.

Quando foi pela primeira vez ouvir Elis-tan falar, Crysania sentira-se cética. A jovem, queteria uns 20 e poucos anos, fora criada ouvindohistórias sobre como os deuses tinham provoca-do o Cataclismo sobre Krynn, desfazendo amontanha ardente que rasgou as terras distantese mergulhou a cidade santa de Istar no Mar San-grento. Depois disto, segundo o que as pessoasafirmavam, os deuses voltaram as costas aoshomens, recusando qualquer ligação com eles.Crysania estava preparada para escutar Elistan,

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mas dispunha, à partida, de argumentos para re-futar as suas afirmações.

Ficou favoravelmente impressionada aoconhecê-lo. Elistan, nessa época, estava na gran-deza do seu poder. Elegante, forte, mesmo con-siderando a sua meia-idade, parecia um dos anti-gos clérigos que participaram na batalha, segun-do narravam algumas lendas, com o destemidocavaleiro, Huma. Ao cair da noite, já encontrarauma causa para admirá-lo. Terminou de joelhosaos pés dele, chorando de humildade e alegria,tendo a sua alma finalmente encontrado a âncoraque sempre lhe faltara.

Os deuses não tinham voltado as costasaos homens, tal era a sua mensagem. Foram oshomens que se afastaram dos deuses, exigindocom a sua arrogância o que Huma desejara comhumildade. No dia seguinte, Crysania deixou olar, a riqueza, os servos, os pais e o noivo para semudar para uma pequena casa fria, que constitu-ía a origem do novo templo que Elistan planeja-va construir em Palanthas.

Agora, dois anos mais tarde, Crysania erauma Venerável Filha de Paladine, uma das pou-cas escolhidas e consideradas com o devido va-lor para conduzir a igreja com os seus anseiosvigorosos e crescentes. Era bom para a igrejapoder dispor deste sangue forte e jovem. Elistanjá lhe dera muita da sua vida e energia. Agora,segundo parecia, o deus que ele servia tão fiel-mente não tardaria a chamar o seu clérigo parajunto de si. E, quando esse triste acontecimento

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ocorresse, Crysania acreditava que muitos pros-seguiriam o seu trabalho.

Seguramente que Crysania sabia que esta-va preparada para aceitar a liderança da igreja,mas seria isso suficiente? Tal como dissera a As-tinus, a jovem eclesiástica sentia há muito que oseu destino era prestar um grande serviço aomundo. Conduzir a igreja através das suas roti-nas diárias, agora que a guerra terminara, pareciatarefa enfadonha e mundana. Orava todos osdias a Paladine para que lhe confiasse tarefas ár-duas. Sacrificaria tudo, prometera solenemente,mesmo a sua própria vida, ao serviço do seu a-dorado deus.

Foi então que a resposta que esperavachegou.

Aguardava agora, numa ânsia que malconseguia conter. Não estava assustada, nempelo fato de ir se encontrar com este homem,que constava ser a força mais poderosa a serviçodo mal que existia atualmente à superfície deKrynn. Se a sua educação o tivesse permitido, oseu lábio teria se contorcido num riso desdenho-so e de escárnio. Que mal poderia resistir à po-derosa espada da sua fé? Que mal poderia pene-trar na sua brilhante armadura?

Como um cavaleiro dirigindo-se para umduelo, enfeitado com as grinaldas do seu amor,sabendo que nunca poderia perder com tais in-sígnias esvoaçando pelo ar, Crysania manteve oolhar fixo na porta, aguardando impacientemen-te os primeiros golpes do torneio. Quando a

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porta se abriu, as suas mãos, até agora calma-mente juntas, bateram uma na outra de excita-ção.

Bertrem entrou. Os seus olhos dirigiram-se a Astinus, sentado imóvel como um pilar depedra numa cadeira dura e desconfortável, juntoda lareira.

— O mago, Raistlin Majere — disse Ber-trem. A sua voz falhou as últimas sílabas. Talvezestivesse pensando na última vez que anunciaraeste visitante, a altura em que Raistlin quasemorrera, vomitando sangue nos degraus dagrande biblioteca. Astinus franziu as sobrance-lhas perante a falta de autocontrole de Bertrem, eo estético desapareceu pela porta, com a maiorrapidez permitida pelas suas vestes esvoaçantes.

Inconscientemente, Crysania susteve arespiração. A princípio não conseguiu avistarnada, apenas uma sombra de escuridão na zonada porta, como se a noite propriamente dita ti-vesse adquirido forma e configuração para lá daentrada. A escuridão parou aí.

— Entre, velho amigo — disse Astinus,na sua voz profunda e impassível.

A sombra foi acesa por uma luz fraca decalor, o brilho da fogueira incidiu sobre vestesnegras de veludo suave, e depois por cintilaçõespequenas, à medida que a luz refletia fios pratea-dos, símbolos mágicos bordados em redor deum capuz de veludo. A sombra transformou-seem figura, vestes negras cobrindo por completoo corpo. Por breves instantes, o único membro

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humano da figura que podia ser avistado forauma mão fina, quase esquelética, segurando umbastão de madeira. O bastão tinha no cimo umabola de cristal, segura pelo aperto de uma garrade dragão esculpida em ouro.

Quando a figura penetrou no aposento,Crysania sentiu o arrepio de frio do desaponta-mento. Pedira a Paladine uma tarefa difícil! Quegrande mal haveria naquilo para combater? Ago-ra que o conseguia descortinar com clareza, avis-tou um homem frágil e magro, ombros levemen-te inclinados para a frente, que se apoiava nobastão ao caminhar, como se estivesse fraco de-mais para se mover sem o seu auxílio. Ela sabia aidade dele, deveria ter agora uns 28 anos. Noentanto, movimentava-se como um ser humanode 90, os passos lentos e deliberados, mesmocambaleantes.

— O que pode significar, como teste àminha fé, conquistar esta desgraçada criatura? —inquiriu Crysania amargamente a Paladine —Não tenho necessidade de combatê-lo. Está sen-do devorado por dentro pelo seu próprio mal!

Encarando Astinus e de costas para Cry-sania, Raistlin puxou o capuz para trás.

— Saúdo-o de novo, imortal — disse paraAstinus, numa voz suave.

— Saudações, Raistlin Majere — respon-deu Astinus sem se erguer. A sua voz revelavaum leve tom sarcástico, como se partilhasse umapiada privada com o mago. Astinus gesticulou —Permita-me que lhe apresente Crysania, da casa

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de Tarinius.Raistlin voltou-se.Crysania sentiu faltar-lhe a respiração,

uma terrível dor no peito, fazendo com que a suagarganta se fechasse, e, por momentos, não con-seguiu respirar. Alfinetes finos e latejantes pica-vam-lhe as pontas dos dedos, o frio subia-lhepelo corpo. Inconscientemente, recostou-se nacadeira, as mãos apertando-se, as unhas enter-rando-se na sua carne entorpecida.

Tudo o que conseguia ver na sua frenteeram dois olhos dourados, brilhando das pro-fundezas da escuridão. Os olhos eram como umespelho em ouro, plano, refletor, nada revelandoda alma no seu interior. As pupilas: Crysania fi-tou as pupilas negras num terror absoluto. Aspupilas dentro dos olhos dourados tinham aforma de ampulhetas! E o rosto, contraído pelosofrimento, marcado pela dor da existência tor-turada que o homem jovem levara durante seteanos, desde que os testes cruéis na torre da altafeitiçaria lhe destroçaram o corpo e tingiram apele de dourado; o rosto do mago era uma más-cara metálica, impenetrável, insensível como agarra do dragão de ouro no topo do seu bastão.

— Venerável Filha de Paladine — disse,numa voz suave, cheia de respeito e até reverên-cia.

Crysania ficou espantada, olhando para elecom surpresa. Não fora certamente isto que es-perara.

Contudo, não conseguia se mover. O o-

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lhar dele mantinha-a imóvel e, interrogou-se empânico, se ele lhe teria lançado algum feitiço. Pa-recendo pressentir o medo dela, o homem atra-vessou a sala para se colocar na sua frente, numaatitude simultaneamente condescendente e tran-qüilizadora. Olhando para cima, Crysania podiaver o latejar flamejante nos olhos dourados dele.

— Venerável Filha de Paladine — disseRaistlin de novo, a voz suave envolvendo Crysa-nia como a negridão aveludada das suas vestes— Espero vir encontrá-la bem.

Mas, agora, ela escutava um sarcasmo a-margo e cínico nessa voz. Isto esperava, para istoestava preparada. O anterior tom respeitoso deleapanhara-a de surpresa, admitiu a si mesma comirritação, mas a sua primeira fraqueza desvanece-ra-se. Erguendo-se e nivelando os seus olhoscom os dele, segurou inconscientemente na mãoo medalhão de Paladine. O toque do metal frioconferiu-lhe coragem.

— Não acredito que necessitemos de tro-car cortesias sociais sem significado — afirmouCrysania rispidamente, o rosto recuperando a suasuavidade e frieza — Estamos mantendo Asti-nus afastado dos seus estudos. Ficará satisfeitose terminarmos rapidamente os nossos assuntos.

— Estou inteiramente de acordo — disseo mago de vestes negras, torcendo levemente olábio fino no que podia ser interpretado comoum sorriso — Vim em resposta à sua solicitação.O que pretende de mim?

Crysania sentiu que ele se ria dela. Acos-

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tumada unicamente ao mais alto respeito, a suaatitude intensificou a sua ira. Fitou-o com olhoscinzentos gélidos.

— Vim para avisá-lo, Raistlin Majere, deque os seus projetos demoníacos são do conhe-cimento de Paladine. Acautele-se, ou ele o des-truirá...

— Como? — inquiriu Raistlin subitamen-te, e os seus olhos peculiares reluziram com umaluz estranha e intensa — Como pode ele me des-truir? — repetiu — Lançando relâmpagos? Comondas de fogo? Talvez mais uma montanha ar-dente?

Deu mais um passo na direção dela. Cry-sania afastou-se friamente dele, apenas para re-gressar à cadeira. Agarrando com firmeza nascostas de madeira rija, contornou-a, virando-sedepois para enfrentá-lo.

— É da sua própria maldição que estázombando — replicou, tranqüilamente.

O lábio de Raistlin contorceu-se aindamais, mas continuou falando, como se não tives-se escutado as palavras dela.

— Elistan? — A voz de Raistlin trans-formou-se num sussurro — Ele enviará Elistanpara me destruir? — O mago encolheu os om-bros — Mas não, seguramente que não. De a-cordo com as informações, o grande e santo clé-rigo está cansado, débil, moribundo...

— Não! — gritou Crysania, e depoismordeu o lábio, irritada por este homem lhe terobrigado a revelar os seus sentimentos. Fez uma

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pausa, respirando fundo — Os processos de Pa-ladine não são para ser interrogados ou gozados— disse, com uma calma fria, mas não conse-guiu evitar que a sua voz se suavizasse quase im-perceptivelmente — E o estado de saúde de E-listan não lhe diz respeito.

— Talvez eu me interesse mais pela saúdedele do que lhe possa parecer — replicou Rais-tlin com, o que era para Crysania, um sorrisocaçoador.

Crysania sentiu o sangue ferver-lhe nastêmporas. Ao falar, o mago contornara a cadeira,aproximando-se da jovem mulher. Estava tãoperto dela agora que Crysania podia sentir umestranho e invulgar calor irradiando deste corpo,através das vestes negras. Podia cheirar nele umaroma levemente enjoativo mas agradável. Osseus ingredientes de feitiço, compreendeu elasubitamente. Tal pensamento a fez ficar doente eenfastiada. Segurando o medalhão de Paladine namão, sentindo os seus contornos suavementecinzelados morderam-lhe na carne, afastou-semais uma vez dele.

— Paladine veio até mim num sonho... —disse, com altivez.

Raistlin riu-se.Poucos podiam afirmar ter ouvido o ma-

go rir-se, e aqueles que o ouviram nunca o es-queceriam, ressonando nos seus sonhos maisnegros. Era fino e cortante como uma lâmina.Renegava toda a bondade, zombava de tudo oque era certo e verdadeiro, e rasgou a alma de

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Crysania.— Muito bem — disse Crysania, fitando-

o com um desprezo que endureceu os seus olhoscinzentos para um azul aço —, fiz o melhor queestava ao meu alcance para desviá-lo deste curso.Avisei-o devidamente. A sua destruição está ago-ra nas mãos dos deuses.

Subitamente, apercebendo-se talvez da in-trepidez com que ela o confrontava, o riso deRaistlin cessou. Observando-a intensamente, osseus olhos dourados contraíram-se. Depois sor-riu, um sorriso secreto interior com tanto e tãoestranho regozijo que Astinus, assistindo à trocade palavras entre os dois, se levantou. O corpodo historiador tapou a luz da fogueira. A suasombra caiu sobre os dois. Raistlin assustou-se,quase alarmado. Virando-se em parte, fitou Asti-nus com um olhar ardente, perigoso.

— Tenha cuidado, velho amigo — avisouo mago —, ou você interferiria com a história?

— Eu não interfiro — replicou Astinus—, como bem sabe. Sou um observador; apenasfaço registros. Em todas as coisas, sou neutro.Conheço os vossos esquemas, os vossos planos,tal como conheço os esquemas e os planos detodos aqueles que respiram hoje. Por isso, escu-te-me, Raistlin Majere, e considere este aviso.Esta é adorada pelos deuses, tal como se inferedo seu nome.

— Adorada pelos deuses? Isso somos to-dos nós, não é verdade, Venerável Filha? — in-quiriu Raistlin, voltando-se mais uma vez para

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Crysania. A sua voz era suave como o veludo dassuas vestes — Não se encontra isso escrito nosdiscos de Mishakal? Não é isso o que o devotoElistan ensina?

— Sim — afirmou Crysania lentamente,olhando-o com suspeita e esperando mais escár-nio. Mas o rosto metálico revelou-se sério, ad-quirindo repentinamente a aparência de um sá-bio, inteligente e sábio — Assim está escrito —Sorriu friamente — Fico satisfeita por ter lido osdiscos sagrados, embora não tenha, obviamente,aprendido nada com eles. Não se lembra do queé dito no...

Foi interrompida por Astinus, resfolegan-do.

— Já fui mantido afastado dos meus estu-dos por muito tempo — O historiador atraves-sou o chão de mármore até à porta da antecâma-ra — Toquem para chamar Bertrem quando es-tiverem preparados para partir. Adeus, VenerávelFilha. Adeus... velho amigo.

Astinus abriu a porta. O silêncio pacíficoda biblioteca invadiu o aposento, banhando Cry-sania com uma frescura refrescante. Sentiu-secontrolada e descontraiu-se. A mão libertou omedalhão. Com formalidade e graciosidade, fezuma reverência de despedida a Astinus, o mesmofazendo Raistlin. Depois, a porta fechou-se atrásdo historiador. Ficaram os dois sozinhos.

Por largos instantes, nenhum deles falou.Depois Crysania, sentindo o poder de Paladine aatravessá-la, virou-se para enfrentar Raistlin.

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— Tinha-me esquecido de que fora você,e aqueles que o acompanhavam, quem recuperouos discos sagrados. Claro que tinham de lê-los.Gostaria de discuti-los mais em pormenor consi-go mas, doravante, em quaisquer futuros conta-tos que possamos vir a ter, Raistlin Majere —proferiu, na sua voz gélida —, pedirei que falesobre Elistan com maior respeito. Ele...

Parou espantada, observando com alarmequando o corpo delgado do mago pareceu desin-tegrar-se perante os seus olhos.

Contorcido por espasmos de tosse, agar-rando o peito, Raistlin tentava respirar. Camba-leou. Se não fosse o bastão a que se encontravaapoiado, teria caído para o chão. Esquecendo asua aversão e repulsa, reagindo sob instinto, Cry-sania estendeu as mãos, posicionou-as sobre osombros dele, murmurando uma oração de cura.Sob as suas mãos, as vestes negras eram macias equentes. Podia sentir os músculos de Raistlincontorcendo-se em espasmos, sentir a sua dor esofrimento. A compaixão encheu-lhe o coração.

Raistlin repudiou o toque dela, empurran-do-a para o lado. O ataque de tosse foi aliviandogradualmente. Conseguindo respirar livrementede novo, olhou para ela com desprezo.

— Não desperdice as suas orações comi-go, Venerável Filha — disse, amargamente. Reti-rando um pano macio das vestes, levou-o aoslábios e Crysania viu que ficou manchado desangue — Não existe cura para a minha doença.Isto é o sacrifício, o preço que paguei pela minha

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magia.— Não compreendo — murmurou ela.

As suas mãos contraíram-se ao recordar-se vi-vamente da suavidade aveludada das vestes ne-gras, ao mesmo tempo que agarrava os dedosinconscientemente, por detrás das costas.

— Não? — perguntou Raistlin, fitandoprofundamente a alma dela com os seus olhosestranhos e dourados — Qual foi o sacrifícioque fez para adquirir o seu poder?

Um leve corar, quase invisível à luz da fo-gueira que morria, manchou as faces de Crysaniacom sangue, tanto quanto os lábios do magoestavam manchados. Alarmada perante esta in-vasão do seu ser, desviou o rosto, os olhos fitan-do de novo através da janela. A noite caíra sobrePalanthas. A lua prateada, Solinari, constituía umrasgo de luz no céu negro. A lua vermelha, suagêmea, ainda não se erguera. “A lua negra”, in-terrogou-se Crysania, “onde estaria? Poderia elerealmente vê-la?”

— Tenho de partir — disse Raistlin, arespiração provocando ruídos na sua garganta —Estes espasmos enfraqueceram-me. Necessito derepouso.

— Certamente.Crysania sentiu-se outra vez calma. Com

todas as suas emoções extremas reposicionadasadequadamente no seu lugar, virou-se para en-frentá-lo de novo.

— Agradeço-lhe por ter vindo...— Mas o nosso assunto não está concluí-

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do — disse Raistlin, suavemente — Gostaria dedispor de uma oportunidade para lhe provar quetodos esses receios do seu deus são infundados.Tenho uma sugestão a fazer-lhe. Venha visitar-me na torre da alta feitiçaria. Aí me verá entre osmeus livros e compreenderá os meus estudos.Quando o fizer, o seu espírito ficará tranqüilo.Tal como é revelado nos discos, só receamosaquilo que desconhecemos — Deu um passo nadireção dela.

Surpreendida com a proposta dele, os o-lhos de Crysania alargaram-se. Tentou afastar-sedele, mas, inadvertidamente, deixara-se encurra-lar pela janela.

— Não poderei ir... à torre — hesitou,enquanto a proximidade dele a abafava, lhe rou-bava a respiração. Tentou passar em redor dele,mas o homem moveu ligeiramente o bastão,bloqueando-lhe o caminho. Finalmente, prosse-guiu: — Os feitiços lançados sobre ela, mantêmafastados todos...

— Com exceção daqueles a quem eu per-mito a entrada — murmurou Raistlin. Dobrandoo pano manchado de sangue, voltou a guardá-lonuma algibeira secreta das suas vestes. Depois,estendendo a mão, pegou na de Crysania.

— Como é corajosa, venerável irmã —comentou — Não estremece perante o meu to-que demoníaco.

— Paladine está comigo — replicou Cry-sania, com desdém.

Raistlin sorriu, um sorriso caloroso, negro

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e secreto, um sorriso destinado apenas aos dois.Daí fascinou Crysania. Puxou-a mais para juntodele. Depois, largou-lhe a mão. Encostando obastão à cadeira, segurou-lhe a cabeça com am-bas as mãos, colocando os dedos por cima docapuz branco que ela usava. Agora, Crysania es-tremecia perante o toque dele, mas não conse-guia se mover, não conseguia falar ou fazer qual-quer outra coisa que não fosse fitá-lo com umreceio desenfreado, o qual não tinha poder parasuprimir ou compreender.

Segurando-a firmemente, Raistlin baixou-a e roçou os lábios raiados de sangue pela frontedela. Ao fazê-lo, murmurou estranhas palavras.Depois libertou-a.

Crysania vacilou e quase caiu. Sentia-sefraca a atordoada. Levou a mão à testa, onde otoque dos lábios dele lhe queimava a pele comuma dor penetrante.

— O que fez? — gritou, desesperada —Não pode fazer-me um feitiço! A minha fé pro-tege...

— É claro — Raistlin suspirou de cansaçoe revelou uma expressão de mágoa no rosto evoz, a mágoa de alguém de quem se suspeitaconstantemente, de quem é incompreendido —Limitei-me a transmitir-lhe forças mágicas quelhe permitirão atravessar o bosque de Shoikan.O caminho não será fácil — O seu sarcasmoregressara — Mas, sem sombra de dúvida, a suafé a sustentará!

Descendo um pouco o capuz o mago fez

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uma reverência em silêncio para Crysania, queapenas podia olhar para ele, caminhando de se-guida para a porta com passos lentos e vacilan-tes. Estendendo uma mão esquelética, puxou ocordão da campainha. A porta abriu-se e Ber-trem entrou de forma tão rápida e repentina queCrysania compreendeu que deveria ter sido colo-cado a postos lá fora. Os seus lábios comprimi-ram-se. Lançou ao esteta um olhar tão furioso eimperioso que o homem empalideceu visivel-mente, embora sem consciência de que pudesseter cometido qualquer crime, limpando a testahúmida com a manga das suas vestes.

Raistlin preparou-se para partir, mas Cry-sania o fez parar.

— Eu... eu peço desculpa pelo fato de nãoter confiado em ti, Raistlin Majere — disse, sua-vemente — E, mais uma vez, agradeço-lhe porter vindo.

Raistlin virou-se.— E eu peço desculpa pela minha língua

afiada — disse — Adeus, Venerável Filha. Seefetivamente não receia o conhecimento, venhaentão à torre dentro de duas noites a partir desta,quando Lunitari fez o seu primeiro aparecimentono céu.

— Lá estarei — respondeu Crysania fir-memente, notando, com prazer, o olhar de hor-ror chocado de Bertrem. Inclinando a cabeça emforma de despedida, pousou a mão levementesobre as traseiras da cadeira de madeira esculpi-da.

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O mago saiu do aposento, Bertrem se-guiu-o, fechando a porta atrás de si.

Permanecendo só na sala quente e silen-ciosa, Crysania caiu de joelhos diante da cadeira.

— Oh, obrigada, Paladine! — afirmou —Aceito o teu desafio. Conseguirei alcançar osteus propósitos! Não falharei!

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LIVRO UM

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CAPÍTULO 1

Atrás dela, podia escutar o som de péscom garras, raspando através das folhas da flo-resta. Tika ficou tensa, mas atuou como se nadaouvisse, tentando assim enganar a criatura. Agar-rou com firmeza a espada na mão. O coraçãobatia-lhe fortemente. Os passos aproximavam-secada vez mais e podia escutar a forte respiração.O toque de uma mão com garras fez-se sentirsobre o seu ombro. Virando-se repentinamente,Tika vibrou a espada e... derrubou uma bandejacheia de canecas, com um ruído estrondoso.

Dezra gritou e deu um salto para trás, a-larmada. Patronos sentados no bar começaram arir. Tika sabia que o seu rosto devia estar tãovermelho quanto o seu cabelo. O coração batiadesordenadamente, as mãos tremiam.

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— Dezra — disse, friamente —, tem agraciosidade e a esperteza de um anão bobo.Talvez fosse melhor você e Raf trocarem de lu-gares. Você leva o lixo e deixarei que ele sirva àsmesas!

Dezra olhou para cima de onde se encon-trava ajoelhada, apanhando os cacos do chão,onde flutuavam num mar de cerveja.

— Talvez fosse melhor! — gritou a em-pregada, atirando os fragmentos de novo para osoalho — Sirva você mesma às mesas... ou talnão combina contigo, Tika Majere, heroína deLance?

Depois de Tika lhe ter lançado um olharmagoado e de repreensão, Dezra, ergueu-se, deuum pontapé na louça de barro e saiu da estala-gem.

Quando a porta foi aberta repentinamen-te, bateu com força, fazendo com que Tika es-boçasse um careta desagradável ao prever estra-gos na madeira. Palavras duras surgiram-lhe noslábios, mas mordeu a língua e evitou que fossemproferidas, sabendo que mais tarde as lamentaria.

A porta permaneceu aberta, permitindoque a luz da tarde que morria inundasse a estala-gem. O brilho rubro do sol poente reluziu nasuperfície de madeira recentemente polida dobar e cintilou nos copos. Dançava mesmo nobarro espalhado pelo chão. Tocou nos caracóisrubros de Tika de forma gozadora, como se fos-se a mão de um amante, fazendo com que mui-tos dos patronos que riam em silêncio se calas-

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sem e admirassem demoradamente a atraentemulher.

Tika não reparou em tal fato. Envergo-nhada agora com a sua irritação, espreitou pelajanela, por onde conseguiu avistar Dezra, secan-do os olhos com um avental. Um cliente entroupela porta aberta, fechando-a atrás de si. A luzdesapareceu, deixando de novo a estalagem mer-gulhada numa semi-escuridão fria.

Tika passou uma mão pelos seus própriosolhos. “E que tipo de monstro estou me tornan-do?”, perguntou a si mesma, com remorsos. Afi-nal de contas, a culpa não fora de Dezra. É estahorrível sensação dentro de mim! Quase deseja-va que voltasse a haver draconianos para comba-ter. Ao menos assim saberia o que temia, pelomenos poderia lutar contra isso com as minhaspróprias mãos! Como posso combater contraalgo a que nem sei o que chamar?

Vozes penetraram nos seus pensamentos,exigindo cerveja e comida. O riso cresceu, eco-ando através da estalagem Last Home.

Foi isto que encontrei ao regressar. Tikafungou e limpou o nariz com um pano do bar.Este é o meu lar. Esta gente é tão certa, bonita ecalorosa quanto o sol que se põe. Encontro-merodeada pelos sons do amor: riso, boa camarada-gem, um cão fiel...

Cão fiel! Tika suspirou e apressou-se sain-do detrás do balcão.

— Raf! — exclamou, desesperada, fitandoo anão.

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— Cerveja derramada. Eu limpar — disse,olhando para ela e passando alegremente a mãopela boca.

Muitos dos clientes habituais riram, masalguns, novos na estalagem, fitavam o anão comdesprezo.

— Usa este pano para limpar! — disse Ti-ka, pelo canto da boca, ao mesmo tempo quesorria levemente para os clientes, em forma dedesculpa. Atirou o pano ao anão e este apanhou-o. Mas limitou-se a segurá-lo na mão, fitando-ocom uma expressão confusa.

— O que fazer eu com isto?— Limpa o que foi entornado! — zan-

gou-se Tika, tentando, sem sucesso, mantê-lofora de vista dos clientes com a sua longa saiaondeante.

— Oh! Eu não precisar disso — afirmouRaf solenemente — Eu não sujar pano limpo! —Entregando o pano de novo a Tika, o anão colo-cou-se mais uma vez de quatro e começou alamber a cerveja derramada, agora misturadacom lama.

Com o rosto fervendo, Tika puxou Rafpelo colarinho, abanando-o.

— Use o pano! — murmurou, furiosa —Os clientes estão perdendo o apetite! E, quandoacabar essa tarefa, quero que vá levantar aquelamesa grande junto da lareira. Estou à espera deamigos... — Tika parou.

Raf fitava-a, de olhos muito abertos, ten-tando absorver as complicadas instruções. Ele

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era invulgar, tal como era próprio de qualqueranão bobo. Só se encontrava ali há apenas trêssemanas e Tika já lhe ensinara a contar até três(poucos anões bobos passavam do dois) e liber-tara-se finalmente do mau cheiro. Esta recém-descoberta proeza intelectual, combinada com alimpeza, o teria tornado um rei num reino deanões bobos, mas Raf não possuía tais ambições.Sabia que nenhum rei vivia como ele vivia, “lim-pando” cerveja derramada (se fosse rápido) e“levando para fora” o lixo. Mas havia limites pa-ra os talentos de Raf, e Tika acabara de descobri-los.

— Estou à espera de amigos e... — come-çou ela de novo, mas depois desistiu — Oh, dei-xa lá. Apenas limpe isto, com o pano — acrescen-tou severamente —, e depois venha falar comigopara saber o que deve fazer em seguida.

— Eu não beber? — começou Raf, masreparou no olhar furioso de Tika — Eu fazer.

Suspirando de desapontamento, o anãobobo pegou no pano e passou com ele no chão,murmurando sobre “desperdiçar boa cerveja”.Depois apanhou alguns pedaços das canecas par-tidas e, depois de mirá-los por momentos, sorriue enfiou-os nas algibeiras da camisa.

Tika interrogou-se por instantes acerca doque ele planejaria fazer com eles, mas sabia que omelhor seria não perguntar. Regressando ao bal-cão, pegou em mais umas canecas e encheu-as,tentando não reparar que Raf se cortara em al-guns dos pedaços mais afiados e que se sentara

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sobre as pernas observando, com profundo inte-resse, o sangue pingando-lhe da mão.

— Tem... uh... visto Caramon? — pergun-tou Tika ao anão, casualmente.

— Não — Raf esfregava a mão ensan-güentada no cabelo — Mas eu saber onde ir ver.Pôs-se de pé com um salto.

— Eu ir procurar?— Não! — disse Tika, franzindo a so-

brancelha — Caramon está em casa.— Eu não pensar que sim — afirmou

Raf, abanando a cabeça — Não depois do sol sepôr...

— Está em casa! — rosnou Tika tão irri-tada que o anão bobo se afastou dela, estreme-cendo.

— Quer apostar? — murmurou Raf, masmuito baixinho.

Nos dias que corriam, o temperamento deTika estava tão ardente como o seu cabelo ruivo.

Felizmente para Raf, Tika não o ouviu.Acabou de encher as canecas de cerveja e levou-as sobre uma bandeja para um grupo de duendessentados junto da porta.

Estou à espera de amigos, disse para simesma, aborrecida. Queridos amigos. Outrora,sentira-se tão ansiosa por se encontrar com Ta-nis e Riverwind. Agora... Suspirou, passando ascanecas de cerveja sem perfeita consciência doque estava fazendo. Em nome dos verdadeirosdeuses, rezou, eles que venham e partam rapi-damente! Se ficassem... se descobrissem...

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O coração de Tika afundou-se perante talpensamento. O seu lábio superior estremeceu. Seficassem, seria o fim. Puro e simples. A sua vidaterminaria. Subitamente, não conseguiu suportara dor. Pousando apressadamente a última canecade cerveja, Tika deixou os duendes, pestanejandorapidamente. Não reparou nos olhares perturba-dos que os duendes trocaram entre si ao fitaremas canecas de cerveja, e ela nunca se recordouque todos tinham pedido vinho.

Meio cega devido às lágrimas, Tika sópensava em escapar para a cozinha onde poderiachorar sem ser vista. Os duendes olharam emredor em busca de uma outra empregada, e Raf,suspirando de contentamento, voltou a colocar-se de quatro, lambendo com prazer o resto dacerveja.

Tanis Semiduende encontrava-se no fun-do de uma pequena elevação, fitando a longa,direita e lodosa estrada que se estendia na suafrente. A mulher que escoltava e as suas monta-das aguardavam a alguma distância dali. A mu-lher precisara de um pouco de repouso, tal comoos cavalos. Embora o seu orgulho a tivesse im-pedido de proferir uma palavra, Tanis vira que orosto dela estava cinzento e abatido de fadiga.Na verdade, durante a viagem desse dia, ador-mecera sobre a cela e teria caído se não fosse oforte braço de Tanis. Assim, embora estivesseansiosa por alcançar o seu destino, não protesta-ra quando Tanis afirmou que desejava ir sozinhoà frente para verificar a estrada. Ajudou-a a des-

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cer do cavalo e viu-a instalar-se numa moita es-condida.

Não se sentia muito satisfeito por deixá-lasó, mas pressentia que as negras criaturas que osseguiam tinham ficado muito para trás. A insis-tência dele em relação à velocidade tinha revela-do o seu proveito, embora, quer ele quer a mu-lher, estivessem doloridos e exaustos. Tanis de-sejou conseguir manter-se à frente das coisas atépoder entregar a sua companheira à única pessoaem Krynn em condições de auxiliá-la.

Cavalgavam desde o amanhecer, fugindo aum horror que os seguira desde que deixaramPalanthas. De que se tratava exatamente, Tanis,com toda a sua experiência durante as guerras,não podia saber com certeza. E isso tornava tu-do muito mais assustador. Nunca surgia quandoconfrontado, era apenas visível pelo canto doolho que mirava qualquer outra coisa. A suacompanheira também o sentira, podia afirmá-lo,embora, o que era característico da sua persona-lidade, ela fosse muito orgulhosa para admitir omedo.

Afastando-se da moita, Tanis sentiu-seculpado. Não a deveria deixar sozinha, sabia-o.Não deveria estar desperdiçando tempo precio-so. Todos os seus sentidos de guerreiro protesta-ram. Mas havia algo que tinha de fazer, e tinhade fazê-lo a sós. Atuar de outra forma teria pare-cido sacrilégio.

Assim, Tanis encontrava-se no fundo dacolina, reunindo coragem para avançar. Qualquer

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pessoa que olhasse para ele poderia pensar quese preparava para lutar contra um ogre. Mas talnão era o caso. Tanis Semiduende regressava acasa. E ele ansiava e temia, simultaneamente,aquilo que iria ver.

O sol da tarde iniciava a sua viagem des-cendente em direção à noite. Seria já escuroquando alcançasse a estalagem, e receava percor-rer as estradas de noite. Mas, uma vez lá, estahorrível viagem terminaria. Deixaria a mulher emmãos capazes e seguiria caminho para Quali-nesti. Mas, primeiro, havia algo que tinha de en-frentar. Com um suspiro profundo, Tanis Semi-duende puxou o capuz verde para cima da cabe-ça e começou a subir.

Alcançando o topo, o seu olhar caiu sobreum enorme rochedo, coberto de musgo. Pormomentos, foi invadido pelas suas recordações.Cerrou os olhos, sentindo as lágrimas sobre aspálpebras.

“Luta estúpida”, ouviu a voz do anão eco-ar na sua memória. “Foi a coisa mais idiota quejamais fiz!”

Flint! Meu velho amigo!“Não posso prosseguir”, pensou Tanis.

“É muito doloroso. Para que fui concordar emregressar? De nada me serve agora... nada a nãoser a dor de velhas feridas. Pelo menos, a minhavida é boa. Encontro-me finalmente em paz, fe-liz. Porquê... por que lhes disse que viria?”

Soltando um profundo suspiro, abriu osolhos e fitou o rochedo. Há dois anos atrás, faria

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três neste Outono, escalara esta elevação e en-contrara-se com o seu amigo de longa data, oanão, Flint Fireforge, sentado naquele rochedo,esculpindo madeira e lamentando-se, como erahabitual. Esse encontro pusera em movimentoacontecimentos que abalaram o mundo, culmi-nando com a guerra de Lance, a batalha que en-viara a Rainha das Trevas de novo para o abismoe recuperara o poder dos grão-lordes do dragão.

“Agora sou um herói”, pensou Tanis, o-lhando tristemente para a vistosa armadura decavaleiro que usava: peito de armas de um cava-leiro de Solamnia; faixa verde acetinada, marcados Wildrunners de Silvanesti, as legiões de mai-or nobreza dos duendes; o medalhão de Kharas,a mais alta honra dos anões; para além de umasérie de outras condecorações. Ninguém, huma-no, duende ou semi-duende, recebera tantashonras. Era irônico. Ele que detestava armadu-ras, que detestava cerimoniais, via-se agora for-çado a usá-la, tal como era imposto pela sua po-sição. Como o velho anão teria rido.

“Você, um herói!”, quase podia ouvir oanão zombar. Mas Flint tinha morrido. Morrerafizera esta Primavera dois anos, nos braços deTanis.

“Para quê a barba?”, podia jurar mais umavez que escutava a voz de Flint, as primeiras pa-lavras que dissera quando vira o semiduende naestrada. “Já era suficientemente feio.”

Tanis sorriu e coçou a barba que nenhumduende em Krynn podia deixar crescer, barba

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essa que constituía o sinal extrínseco e visível dasua herança meio humana.

“Flint conhecia muito bem os motivos dabarba”, pensou Tanis, fitando carinhosamente orochedo aquecido pelo sol. Conhecia-me melhordo que eu conhecia a mim mesmo. Estava aocorrente do caos que agitava a minha alma. Sabiaque eu tinha uma lição para aprender.

— E aprendi-a — murmurou Tanis parao amigo que estava com ele apenas espiritual-mente — Aprendi-a, Flint. Mas... oh, como foipenosa!

Chegou até Tanis o cheiro de fumaça demadeira. Isso e os raios inclinados do sol. O friodo ar primaveril o fez recordar que ainda tinhauma certa distância a percorrer. Voltando-se,Tanis Semiduende olhou para baixo para o valeonde passara os anos amargo-doces da sua mo-cidade. Virando-se, Tanis Semiduende fitou So-lace, em baixo.

Era Outono da última vez que vira a pe-quena cidade. As árvores no vale tinham adqui-rido as cores da estação, os brilhantes vermelhose dourados desfalecendo para o purpúreo doscumes das montanhas Kharolis à distância, oprofundo azul-celeste do céu espelhando-se naságuas tranqüilas do Lago Crystalmir. Havia entãofumaça sobre o vale, a fumaça de fogueiras decasas ardendo na pacífica cidade que outrora seempoleirava nas árvores como pássaros felizes.Ele e Flint tinham observado as luzes acende-rem-se, uma a uma, nas casas que se espalhavam

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por entre as folhas das grandes árvores. Solace,cidade de árvores, uma das belezas e maravilhasde Krynn.

Por momentos, Tanis visionou a imagemde forma tão clara como há dois anos atrás. De-pois, a visão desvaneceu-se. Nessa altura era Ou-tono. Agora era Primavera. A fumaça permane-cia lá, a fumaça das lareiras das casas. Mas, agoraprovinha sobretudo de casas construídas nochão. Havia o verde da vida, das coisas que cres-ciam, mas parecia apenas enfatizar, na mente deTanis, as cicatrizes negras sobre a terra; cicatrizesque nunca poderiam ser integralmente elimina-das, embora, aqui e ali, avistasse as marcas daagricultura por cima delas.

Tanis abanou a cabeça. Toda a gente pen-sara que, com a destruição do templo maldito darainha Neraka, a guerra tinha terminado. Toda agente ansiava por lavrar por cima da terra negrae queimada, chamuscada pelo fogo dos dragões,e por esquecer a sua dor.

Os seus olhos focaram o enorme círculonegro que existia no centro da cidade. Aqui, nadacresceria. Nenhuma plantação podia revolver osolo atacado pelo fogo dos dragões e infiltradocom o sangue de inocentes, assassinados pelastropas dos grão-lordes do dragão.

Tanis sorriu tristemente. Podia imaginarcomo a visão daquele local devia irritar os quetrabalhavam para esquecer. Sentia-se satisfeitopor aquela marca lá se encontrar. Desejou que aípermanecesse, para sempre.

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Suavemente, repetiu palavras que ouviraElistan proferir, quando o clérigo dedicou, numacerimônia solene, a Torre de Alto Clerist à me-mória dos cavaleiros que ali pereceram.

“Temos de nos lembrar ou cairemos nacomplacência, tal como já fizemos antes, e o malregressará de novo.”

“Se não estiver já sobre nós”, pensou Ta-nis amargamente. E, com esse pensamento, vol-tou-se e desceu rapidamente a colina.

A estalagem Last Home estava repletanessa noite.

Embora a guerra trouxesse a devastação ea destruição aos residentes de Solace, o final damesma proporcionara tal prosperidade que haviajá quem afirmasse que não fora “uma coisa assimtão má”. Solace era, desde há muito, o caminhode passagem para viajantes através das terras deAbanasínia. Mas, nos dias que antecederam aguerra, o número de viajantes era relativamentepequeno. Os anões, com exceção de alguns re-negados como Flint Fireforge, tinham-se encer-rado no seu reino da montanha de Thor-bardinou barricado nas colinas, recusando-se a terqualquer tipo de relações com o resto do mundo.Os duendes procederam de igual modo, habi-tando nas terras bonitas de Qualinesti, no sudo-este, e Silvanesti, na extremidade ocidental docontinente de Ansalon.

A guerra alterara tudo isto. Duendes, a-nões e humanos viajavam agora com freqüência,as suas terras e reinos abertos a todos. Mas quase

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fora necessário a aniquilação total para o surgi-mento deste frágil estado de fraternidade.

A estalagem Last Home, sempre popularentre os viajantes devido à boa bebida e às famo-sas batatas condimentadas de Otik, tornou-seainda mais popular. As bebidas continuavamboas e as batatas ainda melhores, embora Otik setivesse retirado, mas o verdadeiro motivo para oaumento de popularidade da estalagem foi o fatode ter se tornado num local de renome. Os he-róis de Lance, como agora eram chamados, ti-nham freqüentado esta estalagem em tempospassados, segundo se afirmava.

Na verdade, antes de se retirar, Otik pen-sara seriamente na hipótese de colocar uma placapor cima da mesa junto da lareira, talvez qual-quer coisa como “Tanis Semiduende e os seuscompanheiros beberam aqui”. Mas Tika opuse-ra-se à idéia com tal veemência (o mero pensa-mento do que Tanis diria se avistasse tal coisafazia arder as faces de Tika) que Otik não pen-sou mais no assunto. Mas o rotundo estalajadei-ro nunca se cansava de contar aos seus clientes ahistória da noite em que a mulher bárbara canta-ra a sua estranha canção e curara Hoderick, oTeocrata, com o seu bastão azul de cristal, forne-cendo a primeira prova da existência dos antigose verdadeiros deuses.

Tika, que assumira a gestão da estalagemdepois da retirada de Otik e que esperava pouparo dinheiro suficiente para comprar o negócio,desejava ardentemente que Otik se contivesse e

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não contasse essa história de novo esta noite.Mas teria sido melhor se tivesse depositado assuas esperanças noutras coisas.

Estavam presentes diversos grupos de du-endes que viajaram desde Silvanesti para assistirao funeral de Solos-taran, orador dos Sóis e go-vernador das terras dos duendes de Qualinesti.Não só incentivaram Otik a contar a sua história,como também contaram algumas suas, acerca davisita dos heróis à terra deles e de como a liber-taram do dragão demoníaco, Cyan Bloodbane.

Tika viu Otik olhar ansiosamente na dire-ção dela quando ouviu estes pedidos. Tika fora,afinal de contas, um dos membros do grupo queestivera em Silvanesti. Mas esta silenciou-o comum furioso abanar da cabeleira ruiva. Essa erauma das partes da jornada deles que ela semprese recusava a relatar ou mesmo a discutir. Naverdade, rezava de noite para esquecer os hedi-ondos pesadelos dessa terra torturada.

Tika cerrou os olhos por momentos, dese-jando que os duendes mudassem de assunto.Tinha agora os seus próprios pesadelos. Nãonecessitava de pesadelos passados para a ator-mentarem. “Deixa apenas que eles cheguem epartam rapidamente”, disse suavemente para simesma e para qualquer deus que a pudesse estarouvindo.

O sol acabara de se pôr. Os clientes nãoparavam de entrar, exigindo comida e bebida.Tika pedira desculpas a Dezra; as duas amigaspartilharam juntas algumas lágrimas e manti-

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nham-se agora ocupadas da cozinha para o bar edo bar para as mesas. Tika assustava-se cada vezque a porta se abria, e franziu a sobrancelha irri-tada quando ouviu a voz de Otik sobrepor-se aoruído de canecas e línguas.

— ... uma linda noite de Outono, tantoquanto me lembro, e eu estava, obviamente,mais ocupado que um sargento draconiano co-mandando as tropas.

Isto surtia sempre gargalhadas. Tika ran-geu os dentes. Otik dispunha de uma assistênciainteressada e estava plenamente empenhado.Não havia agora qualquer processo de pará-lo.

— Nessa época, a estalagem ficava nas ár-vores do vale, tal como o resto da nossa adorávelcidade antes de os dragões a destruírem. Ah,como era bonita naqueles velhos tempos.

Suspirou. Suspirava sempre neste ponto, elimpou uma lágrima. Elevou-se um murmúrio desimpatia vindo da assistência.

— Onde eu estava?— Assoou o nariz, ou-tra parte da sua representação — Ah, sim. Aliestava eu, por detrás do bar, quando a porta seabriu...

A porta abriu-se. Podia ter sido conse-qüência de uma deixa, tão perfeita foi a sincroni-zação. Tika afastou para trás uma mecha de ca-belo ruivo de cima da fronte transpirada e olhoucom nervosismo. Um silêncio súbito encheu asala. Tika ficou tensa, as unhas cravando-se nasmãos.

Um homem alto, tão alto que teve que se

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abaixar para entrar na sala, parara na entrada. Ocabelo era escuro, o rosto rígido e austero. Em-bora envolto em peles, era óbvio, pelo andar eporte, que o seu corpo era forte e musculoso.Lançou um olhar rápido ao redor da estalagem,apreciando os que se encontravam presentes,consciente e precavido contra o perigo.

Mas tratava-se apenas de um ato instintivopois, quando o seu olhar penetrante e sombriorepousou em Tika, o rosto austero descontraiu-se num sorriso e abriu os braços.

Tika hesitou, mas a visão do seu amigoencheu-a subitamente de alegria e de uma estra-nha onda de nostalgia. Dirigindo-se a ele atravésda multidão, foi apanhada no seu braço.

— Riverwind, meu amigo! — murmurou,com a voz incerta.

Apertando a jovem mulher nos braços,Riverwind ergueu-a sem esforço, como se se tra-tasse de uma criança. A multidão lançou vivas,batendo com as canecas sobre a mesa. A maiorianão conseguia acreditar na sua sorte. Ali estavaum herói de Lance em pessoa, como que trazidonas asas da história de Otik. E mantinha aindaesse aspecto! Estavam encantados.

Depois de ter libertado Tika, o homem al-to retirou o abrigo de peles de cima dos ombros.Agora todos podiam avistar o manto de chefe detribo que o homem das planícies usava, as suassecções em forma de V de peles e couro traba-lhado, cada uma representando uma das tribosdas planícies que ele governava. O seu rosto es-

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belto, embora mais envelhecido e preocupadodo que da última vez que Tika o vira, estavabronzeado devido ao sol e aos elementos atmos-féricos, e havia uma alegria interior nos olhos dohomem que demonstrava que encontrara, na suavida, a paz que buscava há anos.

Tika sentiu uma sensação de aperto nagarganta e virou-se rapidamente, mas não com arapidez suficiente.

— Tika — disse, a pronúncia acentuada,motivada pela nova convivência com o seu povo— é bom ver-te bem e ainda bonita. Onde estáCamaron? Estou ansioso por vê-lo... Mas, Tika,o que se passa?

— Nada, nada — afirmou Tika brusca-mente, abanando os caracóis ruivos e pestane-jando — Vem comigo, reservei um lugar paravocê perto da lareira. Deve estar exausto e esfo-meado.

Conduziu-o por entre a multidão, falandosem parar, nunca permitindo que ele proferisseuma palavra. Inadvertidamente, a multidão auxi-liou-a, mantendo Riverwind ocupado ao reuni-rem-se em redor dele para tocarem e se maravi-lharem com o seu manto de peles, ou tentandoapertar-lhe a mão (costume esse que os homensdas planícies consideravam bárbaro) ou pondo-lhe bebidas à sua frente.

Riverwind aceitou tudo isto estoicamente,ao seguir Tika por entre a gente excitada, apro-ximando mais de si a bonita espada de duende.O seu rosto austero escureceu levemente, e es-

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preitava com freqüência pelas janelas, como sedesejasse já escapar desta sala barulhenta e quen-te e regressar ao ar livre que adorava. Mas Tikaafastava habilmente os clientes e não tardou queela e o seu velho amigo se encontrassem senta-dos junto da lareira, numa mesa isolada perto daporta da cozinha.

— Volto já — disse ela, oferecendo-lheum sorriso e desaparecendo na cozinha antesque ele pudesse abrir a boca.

O som da voz de Otik ergueu-se de novo,acompanhado por fortes pancadas. Como a suahistória tinha sido interrompida, Otik servia-seda bengala, uma das armas mais temíveis em So-lace, para repor a ordem. O estalajadeiro tinhaagora uma perna aleijada e também gostava decontar essa história, como ele ficara ferido du-rante a queda de Solance, quando, por sua pró-pria iniciativa e completamente só, dispersou osexércitos invasores de draconianos.

Agarrando num tacho cheio de batatascondimentadas e apressando-se a regressar parajunto de Riverwind, Tika mirou Otik com irrita-ção. Ela estava ao ciente da verdadeira história,como ele ferira a perna ao ser arrastado para forado esconderijo onde se enfiara, por baixo dochão. Mas nunca o contou. No íntimo, gostavado velho homem como de um pai. Otik acolhe-ra-a e criara-a, quando o seu próprio pai desapa-recera, dando-lhe um trabalho honesto quandopodia ter-se virado para o roubo. Além do mais,o simples fato de lhe lembrar que ela sabia a ver-

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dade ajudava a evitar que os grandes contos deOtik atingissem termos inadmissíveis.

A clientela estava relativamente tranqüilaquando Tika voltou, dando-lhe oportunidadepara conversar com o velho amigo.

— Como está Goldmoon e o seu filho?— perguntou com animação, reparando que Ri-verwind a fitava e estudava atentamente.

— Ela está bem e manda saudações —respondeu Riverwind, na sua voz profunda ebaixa — O meu filho (os seus olhos brilharam deorgulho) está quase um homem, pois já tem estaaltura e monta um cavalo melhor do que muitosguerreiros.

— Estava à espera que Goldmoon viessecontigo — disse Tika com um suspiro que nãoqueria que Riverwind tivesse ouvido.

O alto homem das planícies comeu pormomentos em silêncio, antes de responder.

— Os deuses abençoaram-nos com maisduas crianças — disse, fitando Tika com umaestranha expressão nos olhos negros.

— Duas? — Tika mostrou um ar espan-tado e depois disse: — Oh, gêmeos! — gritou,com vivacidade — Como Caramon e Rais... —Parou abruptamente, mordendo o lábio.

Riverwind franziu a sobrancelha e fez osinal que afastava o mal. Tika corou e desviou orosto. Sentiu um ruído intenso nos ouvidos. Fi-cou estonteada devido ao calor e ao barulho.Engolindo o sabor amargo na boca, esforçou-sepor perguntar mais sobre Goldmoon e, passado

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algum tempo, conseguiu começar a ouvir a res-posta de Riverwind.

— ... há ainda poucos clérigos na nossaterra. Há muitos convertidos, mas os poderesdos deuses chegam de forma lenta. Trabalha du-ramente, muito para o meu gosto, mas cada diaestá mais bonita. E os bebês, as nossas filhas,têm ambas cabelo prateado-dourado...

Bebês... Tika sorriu tristemente. Vendo aexpressão dela, Riverwind ficou em silêncio,terminou de comer e afastou o prato.

— Nada me daria mais prazer do quecontinuar esta visita — afirmou, lentamente —,mas não posso estar muito tempo afastado domeu povo. Conhece a urgência da minha missão.Onde está Cara...

— Tenho que ir verificar o seu quarto —disse Tika, erguendo-se de forma tão repentinaque abanou a mesa, derramando a bebida de Ri-verwind — Aquele anão bobo deve estar fazen-do a cama. O mais provável é encontrá-lo dor-mindo profundamente...

Afastou-se rapidamente. Mas não subiu asescadas para os quartos. Saindo pela porta dacozinha, permaneceu ali, sentindo o vento no-turno esfriando-lhe as faces escaldantes e fitandoa escuridão.

— Permita que ele vá embora! — murmu-rou — Por favor...

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CAPÍTULO 2

Talvez acima de tudo, Tanis temesse a suaprimeira visão da estalagem Last Home. Foraaqui que tudo começara, fazia agora três anos,neste Outono. Ele, Flint e o irreprimível kender,Tasslehoff Burrfoot, tinham vindo ali naquelanoite para se encontrarem com velhos amigos.Aqui, o seu mundo virara-se de pernas para o ar,para nunca mais voltar ao normal.

Mas, ao cavalgar em direção à estalagem,os seus receios foram diminuindo. Esta mudaratanto que era como chegar a um local desconhe-cido, a um local que não lhe trazia recordações.Erguia-se no chão e não nos ramos de umagrande árvore. Havia novos anexos e mais quar-tos para albergar todos os viajantes, além de umnovo telhado, num estilo muito mais moderno.

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Todas as cicatrizes da guerra foram apagadas, talcomo as recordações.

Então, no preciso momento em que Tanisse preparava para descontrair, a porta principalda estalagem abriu-se. A luz projetou-se para oexterior, formando um caminho dourado de bo-as-vindas, e o aroma de batatas condimentadas eo som de risos chegou através da brisa da noite.As recordações regressaram de imediato, e Tanisbaixou a cabeça, dominado.

Mas, talvez por sorte, não dispôs de tem-po para reviver o passado. Quando ele e a suacompanheira se aproximaram da estalagem, umrapaz do estábulo acorreu para agarrar nas rédeasdos cavalos.

— Comida e água — disse Tanis, escorre-gando cansado da sela e atirando uma moeda aorapaz. Espreguiçou-se para descontrair os mús-culos — Mandei uma mensagem com antece-dência para avisar que precisava de um cavalofresco à minha espera. Chamo-me Tanis Semi-duende.

O rapaz abriu os olhos de espanto. Já ob-servara a brilhante armadura e o rico manto queTanis usava. Agora, a sua curiosidade fora substi-tuída por reverência e admiração.

— S-sim, sir — gaguejou, envergonhadopor tal herói se dirigir a ele — O-o cavalo estápronto, de-devo trazê-lo ag-agora, sir?

— Não — Tanis sorriu — Primeiro voucomer. Traga-o dentro de duas horas.

— D-duas horas. Sim, sir. Obrigado, sir —

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Acenando a cabeça, o rapaz tirou as rédeas damão insensível de Tanis e ficou ali, inerte, esque-cendo-se por completo das suas tarefas, até queo cavalo impaciente se encostou a ele e quase oderrubou.

Quando o rapaz se afastou apressadamen-te, o semi-duende virou-se para auxiliar a suacompanheira a descer da sela.

— Você deve ser feito de ferro — disseela, olhando para Tanis enquanto este a ajudavaa descer — Pretende realmente prosseguir via-gem esta noite?

— Para ser franco, doem-me todos os os-sos do corpo — começou Tanis, mas depois es-tacou, sentindo-se desconfortável. Era incapazde se sentir à vontade junto desta mulher.

Tanis podia avistar o rosto dela refletido àluz quevinha da estalagem. Viu fadiga e dor. Osolhos dela estavam pálidos e as faces encovadas.Vacilava ao caminhar sobre o solo e Tanis apres-sou-se a dar-lhe o braço para se apoiar. Ela assimo fez, mas apenas por alguns instantes. Depois,recompondo-se, afastou-o de forma gentil masfirme e caminhou sozinha, olhando em redorsem interesse.

Cada movimento magoava Tanis, e podiaimaginar como esta mulher deveria se sentir,pouco acostumada a exercícios físicos ou a pro-vações; Tanis viu-se forçado a encará-la comgrande admiração. Não se lamentara nem umaúnica vez durante a longa e assustadora viagem.Acompanhara-o sempre, nunca ficando para trás

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e obedecendo sempre às instruções dele semnunca as questionar.

Então por que razão, interrogou-se, nãoconseguia sentir nada por ela? O que haveria ne-la que o irritava e aborrecia? Olhando para rostoda mulher, Tanis obteve a resposta. O único si-nal de calor que viu foi o que provinha da luz daestalagem. O rosto dela propriamente dito,mesmo exausto, era frio, impassível, destituídode... de quê? Humanidade? Revelara-se sempreassim ao longo desta longa e perigosa viagem.Oh, ela mostrara-se friamente cortês, friamenteagradecida, friamente distante e remota. “Prova-velmente, teria me sepultado friamente”, pensouTanis severamente. Depois, como que censuran-do-se pelos seus pensamentos irreverentes, o seuolhar foi atraído pelo medalhão que ela usava emvolta do pescoço, o dragão de platina de Paladi-ne. Recordou-se das palavras de Elistan ao partir,proferidas em privado, momentos antes de inici-arem a viagem.

— Faz sentido que seja você a acompa-nhá-la, Tanis — disse o clérigo — De certa for-ma, ela inicia uma viagem muito semelhante àtua, realizada anos atrás, em busca de conheci-mento próprio. Não, tem razão, ela ainda nãosabe disso — Isto em resposta ao olhar dúbio deTanis — Ela caminha em frente com os olhosfixos nos céus — Elistan sorriu tristemente —Ainda não aprendeu que, ao fazê-lo, uma pessoaacaba por tropeçar. A menos que aprenda, aqueda dela pode ser dura — Abanando a cabeça,

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murmurou uma prece suave — Mas temos dedepositar a nossa confiança em Paladine.

Tanis franzira a sobrancelha nessa altura eo mesmo acontecia agora, ao pensar nisso. Em-bora tivesse adquirido uma forte crença nos ver-dadeiros deuses, mais através do amor por Lau-rana e da sua fé do que por qualquer outro moti-vo, não se sentia à vontade para lhes confiar asua vida e ficava impaciente com pessoas comoElistan que, segundo parecia, atiravam um fardomuito pesado para os deuses. “Que o homemseja responsável por si mesmo, para variar”, pen-sou Tanis irritado.

— O que se passa, Tanis?— inquiriu Cry-sania friamente.

Apercebendo-se de que a estivera fitandodurante todo este tempo, Tanis tossiu de emba-raço, resfolegou, e desviou o olhar. Felizmente, orapaz regressou para vir buscar o cavalo de Cry-sania, poupando a Tanis a necessidade de res-ponder. Gesticulou em direção à estalagem, paraonde se encaminharam.

— Na verdade — afirmou Tanis, quandoo silêncio se tornou desconfortável —, gostariamuito de ficar aqui e visitar os meus amigos. Mastenho de estar em Qualinesti depois de amanhã esó viajando sem parar conseguirei chegar a tem-po. As minhas relações com o meu cunhado nãosão tão boas que me possa dar ao luxo de ofen-dê-lo, faltando ao funeral de Solostaran — Eacrescentou, com um sorriso austero: — Querpolítica, quer pessoalmente, se compreende onde

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quero chegar.Crysania retribuiu-lhe o sorriso, mas, Ta-

nis reparou, não se tratava de um sorriso decompreensão. Era um sorriso de tolerância, co-mo se estes assuntos de política e família estives-sem abaixo dela.

Tinham alcançado a porta da estalagem.— Além do mais — acrescentou Tanis

suavemente —, sinto saudades de Laurana. En-graçado, não é? Quando ela está ao pé de mim enos encontramos envolvidos nas nossas tarefas,passamos às vezes dias com apenas um sorrisoou um toque rápido e depois desaparecemos nosnossos mundos. Mas, quando estou longe dela, écomo se subitamente despertasse e encontrasseo meu braço direito amputado. Posso ir para acama pensando no meu braço direito, mas,quando desaparece...

Tanis parou abruptamente, sentindo-seum perfeito idiota, com receio de parecer umadolescente perdido de amores. Mas compreen-deu que, aparentemente, Crysania não lhe pres-tava a mínima das atenções. Quanto muito, o seurosto macio de mármore tornara-se ainda maisfrio, de tal forma que, em comparação, a luz pra-teada da lua parecia transmitir mais afetividade.Abanando a cabeça, Tanis abriu a porta.

“Não invejo Caramon e Riverwind”, pen-sou severamente.

Os sons e odores calorosos e familiares daestalagem invadiram Tanis e, por longos mo-mentos, tudo não passou de uma neblina. Aqui

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estava Otik, mais velho e gordo, se é que erapossível, apoiando-se a uma bengala e batendo-lhe nas costas. Aqui estavam pessoas que não viahá anos, que nunca tiveram nada a ver com ele,apertando-lhe a mão e aclamando a sua amizade.Aqui estava o velho bar, ainda brilhantementepolido e, de alguma forma, conseguiu pisar umanão bobo...

E depois, ali estava um homem alto comum manto de peles, e Tanis foi envolvido pelocaloroso abraço do seu amigo.

— Riverwind — sussurrou roucamente,apertando com força o homem das planícies.

— Meu irmão — disse Riverwind emQue-shu, a língua do seu povo. A clientela daestalagem regozijava-se estrondosamente, masTanis não os escutava, porque uma mulher decabelo ruivo flamejante e sardas pousara umamão no seu braço. Estendendo a mão, ainda a-braçando Riverwind, Tanis puxou Tika para jun-to deles e, por largos instantes, os três amigosficaram muito juntos, unidos pela mágoa, a dor ea glória.

Riverwind os fez voltar à realidade. Poucoacostumado a tais demonstrações de emoção empúblico, o alto homem das planícies adquiriu denovo a sua compostura, tossiu e endireitou-se,pestanejando rapidamente e franzindo a sobran-celha para o teto até se sentir, de novo, senhorde si mesmo. Tanis, com a barba ruiva húmidadas suas próprias lágrimas, deu mais um abraço aTika e olhou depois em redor.

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— Onde está o grande brutamontes doteu marido? — inquiriu, alegremente — Ondeestá Caramon?

Tratava-se de uma pergunta simples e Ta-nis estava totalmente desprevenido para a res-posta. A multidão ficou de imediato em silêncio;parecia que alguém os tinha encerrado num bar-ril. O rosto de Tika revelou um corar feio, mur-murou algo incompreensível e, baixando-se, a-panhou um anão bobo do chão e abanou-o detal forma que os dentes estalaram na cabeça dele.

Espantado, Tanis olhou para Riverwind,mas o homem das planícies limitou-se a encolheros ombros e a erguer as negras sobrancelhas. Osemi-duende virou-se para perguntar a Tika oque se passava mas, nesse momento, sentiu umtoque gelado no braço. Crysania! Esquecera-sedela por completo!

Corando, também ele, procedeu às apre-sentações.

— Permitam-me que vos apresente Cry-sania de Tarinius, Venerável Filha de Paladine —disse Tanis formalmente — Lady Crysania, Ri-verwind, chefe das tribos dos homens das planí-cies, e Tika Waylan Majere.

Crysania desapertou o agasalho de viageme puxou o capuz para trás. Ao fazê-lo, o meda-lhão de platina que usava em redor do pescoçoreluziu com a forte luz das velas da estalagem.As vestes de pura lã branca da mulher surgiramatravés das pregas do manto. Um murmúrio,simultaneamente de reverência e de respeito,

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percorreu a multidão.— Uma eclesiástica sagrada!— Perceberam o nome dela? Crysania! A

seguir em linha...— A sucessora de Elistan...Crysania inclinou a cabeça. Riverwind in-

clinou-se, o rosto solene, e Tika, de rosto aindatão corado que parecia febril, empurrou Raf a-pressadamente para trás do bar, fazendo de se-guida uma profunda reverência.

Ao ouvir o nome de casada de Tika, Maje-re, Crysania olhou para Tanis de forma interro-gadora e recebeu a sua anuência em resposta.

— Sinto-me honrada — afirmou Crysaniacom a sua voz rica e calma —, por conhecer du-as pessoas cujos feitos corajosos brilham comoum exemplo para todos nós.

Tika corou de embaraço, embora satisfei-ta. O rosto austero de Riverwind não mudou deexpressão, mas Tanis apercebeu-se quanto o elo-gio da eclesiástica representou para o profunda-mente religioso homem das pradarias. Os clien-tes soltaram vivas ruidosos perante esta honraaos seus e não pararam de expressar o seu con-tentamento. Otik, com a devida cerimônia, con-duziu os seus convidados para uma mesa que osaguardava, radiante com os heróis, como se ti-vesse arranjado toda a guerra especialmente parabenefício deles.

Sentando-se, Tanis sentiu-se, ao princípio,perturbado com a confusão e ruído, mas depres-sa decidiu que isso até era benéfico. Pelo menos

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poderia conversar com Riverwind sem o receiode ser ouvido por outros. Mas, primeiro, tinhade descobrir onde estava Caramon?

Mais uma vez, preparou-se para fazer apergunta, mas Tika, depois de vê-los sentados eocupados com Crysania como se fossem mãesgalinhas, viu-o abrir a boca e, virando-se abrup-tamente, desapareceu na cozinha.

Tanis abanou a cabeça, intrigado, mas, an-tes que pudesse pensar mais no assunto, River-wind começou a fazer-lhe perguntas. Os doisnão tardaram a embrenhar-se na conversa.

— Toda a gente pensa que a guerra ter-minou — disse Tanis, suspirando — E tal fatocoloca-nos em maior perigo do que antes. Asfortes alianças existentes entre os duendes e oshumanos quando os tempos eram negros come-çaram a derreter-se com o sol. Laurana está ago-ra em Qualinesti, assistindo ao funeral do pai etentando de igual modo conseguir um acordocom aquele cabeça dura do irmão, Porthios, ecom os cavaleiros de Solamnia. O único raio deesperança é a mulher de Porthios, Alhana Star-bree-ze — Tanis sorriu — Nunca pensei queacabaria por ver aquela mulher duende demons-trar tolerância pelos humanos ou outras raças,mais do que isso, dando-lhes o seu apoio contrao intolerante marido.

— Estranho casamento — comentou Ri-verwind. Tanis concordou. Os pensamentos deambos os homens estavam com o seu amigo, ocavaleiro Sturm Brightblade, agora morto, herói

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da Torre do Alto Clerist. Ambos sabiam que ocoração de Alhana fora aí sepultado na escuri-dão, com Sturm.

— Seguramente não se tratou de um ca-samento de amor — Tanis encolheu os ombros— Mas pode ser um casamento que ajude a res-taurar a paz no mundo. Agora, o que me contade você, meu amigo? O seu rosto está abatidocom novas preocupações, ao mesmo tempo quereluz de alegria. Goldmoon mandou dizer a Lau-rana sobre as gêmeas.

Riverwind sorriu brevemente.— Tem razão. Lamento cada momento

em que estou distante — disse o homem dasplanícies com voz profunda —, embora o fatode te ver outra vez, meu irmão, alivie o peso domeu fardo. Mas deixei duas tribos à beira daguerra. Até aqui, tenho conseguido que manti-vessem as conversações e ainda não houve der-ramamento de sangue. Mas sei que há pessoasdescontentes agindo contra mim, por detrás dasminhas costas. Cada minuto que estou distantedá-lhes mais uma oportunidade de fazer renascervelhas hostilidades sangrentas.

Tanis agarrou-lhe o braço.— Lamento, meu amigo, e estou satisfeito

por ter vindo — Suspirou novamente e olhoupara Crysania, apercebendo-se de que tinha no-vos problemas — Estava esperançado que pode-ria oferecer a sua orientação e proteção a estasenhora — A sua voz não passava de um mur-múrio — Ela viaja para a Torre da Alta Feitiçari-

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a, na floresta de Wayreth.Os olhos de Riverwind esbugalharam-se

de alarme e desaprovação. O homem das planí-cies não confiava em magos nem em nada rela-cionado com eles.

Tanis assentiu.— Pelo que vejo, ainda se recorda das his-

tórias de Caramon, da altura em que ele e Rais-tlin viajaram até lá. E eles tinham sido convida-dos. Esta senhora vai sem ser convidada, paraprocurar o conselho do mago acerca...

Crysania lançou-lhe um olhar agudo e im-perioso. Franzindo a sobrancelha, abanou a ca-beça. Tanis, mordendo o lábio, acrescentou:

— Esperava que lhe pudesse servir de es-colta...

— Já o receava — disse Riverwind —,quando recebi a tua mensagem, e foi por essemotivo que senti necessidade de vir: para te ofe-recer uma explicação quanto à minha recusa. Sefosse noutra altura qualquer, sabe que teria omaior prazer em te ajudar e, em particular, mesentiria honrado por oferecer os meus serviços aalguém tão vulnerável — Fez uma leve reverên-cia a Crysania, que aceitou a sua homenagemcom um sorriso que desapareceu instantanea-mente quando o seu olhar regressou a Tanis.Uma linha pequena e profunda surgiu por entreas suas sobrancelhas.

Riverwind prosseguiu.— Mas há muitas coisas em jogo. A paz

que estabeleci entre as tribos, muitas das quais

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estiveram em guerra durante anos, é bastantefrágil. A nossa sobrevivência como nação e povodepende da nossa união e estamos trabalhandoem conjunto para reconstruir a nossa terra e asnossas vidas.

— Compreendo — disse Tanis, tocadopela infelicidade óbvia de Riverwind por ter derecusar o seu pedido de ajuda. Contudo, o semi-duende reparou no olhar de desagrado de LadyCrysania e voltou-se para ela com solene cortesia— Tudo correrá bem Venerável Filha — disse,falando com uma paciência estudada — Cara-mon irá guiá-la, e ele vale por três de nós, mor-tais. Estou certo, Riverwind?

O homem das planícies sorriu, ao ser as-solado por velhas recordações.

— Não há dúvida de que consegue comerpor três vulgares mortais. E é forte como três oumais. Lembra-se, Tanis, quando ele levantavaWilliam, Cara-de-Porco, no ar, quando representa-vam aquele espetáculo... onde era... em Flotsam?

— E daquela vez em que matou dois dra-conianos esmagando-lhes a cabeça uma contra aoutra — Tanis riu-se, sentindo que a escuridãodo mundo desaparecia ao partilhar aqueles ve-lhos tempos com o amigo — E lembra-se dequando estávamos num reino de anões e Cara-mon se esgueirou por detrás de Flint e... — In-clinando-se para a frente, Tanis murmurou qual-quer coisa no ouvido de Riverwind. O rosto dohomem das planícies abriu-se numa risada. Con-tou outra história e os dois homens prossegui-

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ram com episódios sobre a força de Caramon,sobre a sua habilidade com a espada, a sua cora-gem e honra.

— E a sua gentileza — acrescentou Tanis,após um momento de reflexão — Até pareceque estou vendo-o, tratando de Raistlin tão paci-entemente, segurando o irmão nos braços quan-do aqueles ataques de tosse quase despedaçavamo mago...

Foi interrompido por um grito reprimido,um baque e uma pancada surda. Voltando-seespantado, Tanis viu Tika olhando para ele, orosto branco, os olhos verdes luzindo com lá-grimas.

— Parte já! — apelou com lábios pálidos— Por favor, Tanis! Não faça perguntas! Limite-se a partir! — Agarrou no braço dele, as unhaspenetrando dolorosamente na carne.

— Mas, Tika, o que se passa? Em nomedo abismo! — inquiriu Tanis desesperado, er-guendo-se e fitando-a.

Em resposta, chegou-lhe aos ouvidos umsom de alguma coisa partindo-se em pedaços. Aporta da estalagem abriu-se, impulsionada defora por uma força tremenda. Tika deu um saltopara trás, o rosto convulsionado de tal receio ehorror ao mirar a porta que Tanis se virou rapi-damente, de mão na espada, e Riverwind se pôsde pé.

Uma sombra larga encheu a entrada, pare-cendo espalhar uma mortalha sobre a sala. Obarulho alegre e o riso da multidão estacou a-

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bruptamente, transformando-se num sussurrarbaixo e irado.

Lembrando-se das coisas negras e másque os tinham perseguido, Tanis sacou a espada,colocando-se entre a escuridão e Lady Crysania.Embora não pudesse ver, pressentia a presençapujante de Riverwind por detrás dele, protegen-do-o.

“Então, sempre nos conseguiu apanhar”,pensou Tanis, quase agradecendo a oportunida-de de combater este terror vago e desconhecido.Fitou a porta sombriamente, observando a figurainchada e grotesca que penetrou na luz.

Era um homem, pelo que Tanis viu, umhomem enorme, mas, ao observar com maioratenção, viu que era um homem cuja cintura gi-gantesca se tornara flácida. Um ventre inchadoque pendia sobre perneiras de couro fortementeapertadas. Uma camisa nojenta abria-se junto doumbigo, onde sobrava pouca camisa para cobrirtanta carne. O rosto do homem, parcialmenteobscurecido por uma barba de três dias, estavacorado e manchado de forma pouco natural, ocabelo gorduroso e mal tratado. Os seus trajes,embora de boa qualidade e bem feitos, estavamsujos e cheiravam fortemente a vômito e ao licorpuro conhecido como bebida alcoólica dos a-nões.

Tanis baixou a espada, sentindo-se umperfeito idiota. Não passava de um pobre embri-agado, provavelmente o palhaço da cidade, ser-vindo-se da sua enorme altura para intimidar os

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cidadãos. Olhou para o homem com piedade erepugnância, pensando, mesmo assim, que havianele algo de estranhamente familiar. Tratava-seprovavelmente de alguém que conhecera quandoviveu em Solace há muito tempo atrás, algumapobre alma que caíra na má vida.

O semi-duende começou a voltar-se, repa-rando então, para sua surpresa, que toda a gentena estalagem olhava para ele com expectativa.

“Que querem eles que eu faça”, pensouTanis, com uma ira súbita. “Que o ataque? Quebonito herói haveria de parecer, atacando o bê-bado da cidade!”

Escutou então um soluço junto do seu co-tovelo.

— Bem te disse para ir embora — gemeuTika, afundando-se numa cadeira. Escondendo orosto nas mãos e começou a chorar como se ti-vesse o coração despedaçado.

Cada vez mais confuso, Tanis olhou paraRiverwind mas era óbvio que o homem das pla-nícies pouco mais compreendia do que ele. En-tretanto, o homem embriagado penetrara na salae olhava em redor, irritado.

— Que é isstto? Uma festa? — rosnou —E ninguém con... con... convidou o velho ami-go... con... convidou-me?

Ninguém respondeu. Ignoravam volunta-riamente o desleixado homem, os olhos delesainda fixos em Tanis. Naquele momento, tam-bém a atenção do bêbado se voltou para o semi-duende. Tentando focá-lo, o bêbado fitou Tanis

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com uma irritação intrigada, como que acusan-do-o de ser o motivo de todos os seus proble-mas. Depois, subitamente, os olhos do homemembriagado alargaram-se, o rosto abriu-se numsorriso idiota e lançou-se para frente, de braçosabertos.

— Tanis... meu ami...— Em nome dos deuses — bramiu Tanis,

reconhecendo-o por fim.O homem lançou-se para frente e trope-

çou numa cadeira. Por alguns instantes, balançouvacilante, como uma árvore cortada e prestes acair. Os seus olhos rolaram para trás na cabeça,as pessoas afastaram-se do seu caminho. Então,com um baque que fez estremecer a estalagem,Caramon Majere, herói de Lance, desmaiou aospés de Tanis.

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CAPÍTULO 3

— Em nome dos deuses — repetiu Taniscom pesar, ao ajoelhar-se junto do guerreiro i-nerte — Caramon...

— Tanis... — A voz de Riverwind fezcom que o semi-duende olhasse rapidamentepara cima. O homem das planícies tinha Tikanos seus braços; tanto ele quanto Dezra tenta-vam confortar a destroçada jovem. Mas as pes-soas iam se aproximando tentando fazer pergun-tas a Riverwind ou pedindo a benção a Crysania.Outros exigiam mais cerveja ou limitavam-se acircular, conversando.

Tanis ergueu-se rapidamente.— A estalagem vai fechar esta noite —

gritou.

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A multidão demonstrou o seu desagrado,com exceção de alguns clientes sentados ao fun-do da sala, que pensaram que ele estava pagandouma rodada.

— Não, estou falando sério — afirmouTanis com firmeza, a sua voz elevando-se porcima do barulho. A multidão aquietou-se — A-gradecemos muito a todos os presentes pelascalorosas boas-vindas. Não lhes consigo expri-mir o que significa para mim regressar à minhaterra natal. Mas, os meus amigos e eu gostaría-mos de ficar agora a sós. Por favor, já é tarde...

Ouviram-se murmúrios de simpatia e al-gumas palmas bem intencionadas. Só poucosfranziram as sobrancelhas e sussurraram comen-tários de que, quanto mais valente fosse o cava-leiro, mais a sua própria armadura reluzia aosseus próprios olhos (um velho ditado dos tem-pos em que os cavaleiros Solamnicos eram ridi-cularizados). Riverwind, deixando Tika aos cui-dados de Dezra, avançou para estimular aquelesque partiram do princípio que Tanis se referia atoda a gente menos a eles. O semi-duende mon-tou guarda a Caramon, que ressonava no chão,evitando que as pessoas pisassem o grande ho-mem. Trocou olhares com Riverwind quando ohomem das planícies passou, mas nenhum dis-pôs de tempo até a estalagem estar vazia.

Otik Sandeth permanecia junto à porta,agradecendo a todos os clientes por terem vindoe assegurando a todos que a estalagem estariaaberta de novo na noite seguinte. Depois de to-

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dos os clientes terem partido, Tanis dirigiu-se aoproprietário retirado, sentindo-se embaraçado.Mas Otik o fez parar antes que pudesse falar.

Apertando a mão de Tanis, o homem ido-so murmurou:

— Sinto-me satisfeito por ter voltado. Fe-che tudo quando terminar — Olhou para Tika echamou o semi-duende para perto de si, confi-denciando-lhe: — Tanis — disse-lhe num sus-surro —, se vir Tika tirar alguma coisa da caixado dinheiro, não preste atenção. Ela um dia háde devolvê-lo. Eu limito-me a fingir que não re-paro — O seu olhar passou para Caramon e a-banou a cabeça, tristemente — Sei que serão ca-pazes de ajudar — murmurou. Depois cumpri-mentou-os com um aceno e penetrou na noite,apoiando-se à bengala.

“Ajudar!”, pensou Tanis desconcertado.“Nós viemos em busca do auxílio dele.” Cara-mon ressonou de forma particularmente forte,quase despertou a si mesmo, arrotou uma bafo-rada de álcool e ajeitou-se para voltar a dormir.Tanis olhou para Riverwind e depois abanou acabeça, em desespero.

Crysania fitava Caramon com piedade,misturada com repugnância.

— Pobre homem — disse, suavemente. Omedalhão de Paladine reluziu à luz das velas —Talvez eu...

— Não há nada que possa fazer por ele— gritou Tika amargamente — Ele não precisaser curado. Está bêbado, não consegue perceber?

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Completamente embriagado!O olhar perplexo de Crysania voltou-se

para Tika, mas, antes que a eclesiástica pudessedizer fosse o que fosse, Tanis apressou-se a re-gressar para junto de Caramon.

— Ajude-me Riverwind — disse, baixan-do-se — Vamos levá-lo para cas...

— Oh, deixem-no! — disse Tika aspera-mente, limpando os olhos com a ponta do aven-tal — Já passou muitas noites no chão de barro.Mais uma não lhe fará mal.

— Voltou-se para Tanis — Quis avisar-te.Francamente que sim. Mas pensei... tinha semprea esperança... Ficou excitado quando a sua cartachegou. Ficou... bem, mais parecido com o queera e como já não o via há muito tempo. Penseique as coisas iriam melhorar. Que ele pudessemudar. Por isso te deixei vir — Cobriu o rostocom as mãos — Desculpa...

Tanis permanecia junto do enorme guer-reiro, irresoluto.

— Não compreendo. Há quanto tempo...— Foi por isso que não pudemos ir ao teu

casamento, Tanis — replicou Tika, retorcendo oavental — Eu queria ir, tanto! Mas... — Come-çou a chorar de novo. Dezra abraçou-a.

— Sente-se, Tika — murmurou Dezra,ajudando-a a sentar-se num banco de madeira decostas altas.

Tika deixou-se cair na cadeira, as pernasperdendo subitamente a força, e escondeu a ca-beça nos braços.

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— Vamos todos nos sentar — disse Tanisfirmemente —, e conversar sobre a questão. Vo-cê aí — o semi-duende dirigia-se ao anão queespreitava para eles por baixo do bar de madeira—, traga-nos um jarro de cerveja e algumas tige-las, vinho para Lady Crysania, algumas batatascondimentadas...

Tanis parou. O confuso anão fitava-ocom os olhos esbugalhados e a boca aberta, deconfuso que estava.

— Talvez seja melhor eu ir buscar as coi-sas, Tanis — ofereceu Dezra, sorrindo — Aca-baria recebendo um jarro de batatas se Raf fossebuscar tudo o que pediu.

— Eu ajudar! — protestou Raf indignado.— Você leva o lixo lá para fora! — ros-

nou Dezra.— Eu ser grande ajuda... — resmungou

Raf, desconsolado, ao sair, dando pontapés naspernas da mesa para aliviar os seus sentimentosferidos.

— Os vossos quartos ficam na nova alada estalagem — murmurou Tika — Vou lhesmostrar...

— Havemos de encontrá-los mais tarde— afirmou Riverwind austeramente, mas, aofitar Tika, os seus olhos estavam cheios de suavesimpatia — Sente-se e fale com Tanis. Ele temque partir em breve.

— Raios! O meu cavalo! — disse Tanis,levantando-se subitamente — Pedi ao rapaz paratrazê-lo...

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— Vou até lá dizer que esperem — ofere-ceu Riverwind.

— Não, eu vou. Não demoro nada...— Meu amigo — disse Riverwind suave-

mente ao passar por ele —, preciso ir apanhar arfresco! Virei ajudar se... — Moveu a cabeça emdireção a Caramon, que ressonava. Tanis voltoua sentar-se, aliviado. O homem das planícies par-tiu. Crysania sentou-se perto de Tanis, do ladooposto da mesa, fitando Camaron com perplexi-dade. Tanis continuou a falar com Tika sobrequestões insignificantes até que esta conseguiusentar-se e até sorrir levemente. Quando Dezraregressou com as bebidas, Tika parecia mais des-contraída, embora o seu rosto ainda estivessecrispado. Tanis reparou que Crysania mal tocouno vinho. Permanecia apenas sentada, olhandoocasionalmente para Caramon, a linha escurasurgindo-lhe de novo entre as sobrancelhas. Ta-nis sabia que lhe devia explicar o que estava sepassando, mas queria que alguém explicasse a eleprimeiro.

— Quando é que isto... — começou, hesi-tante.

— Começou? — Tika suspirou — Cercade seis meses depois de termos regressado — Oseu olhar voltou — se para Caramon — Aoprincípio sentia-se tão feliz. A cidade estava numcaos completo, Tanis. O Inverno tinha sido ter-rível para os sobreviventes. A maior parte delespassava necessidades, não tinham de comer, poisos draconianos e os soldados goblin levaram tudo.

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Aqueles, cujas casas foram destruídas, viviam emqualquer abrigo que conseguissem encontrar:grutas, telheiros. Os draconianos já tinham a-bandonado a cidade quando regressamos, e aspessoas começavam a reconstrução. ReceberamCaramon como um herói. Os bardos já tinhamestado aqui, cantando as suas canções sobre aderrota da rainha.

Os olhos de Tika estremeceram com lá-grimas e recordaram com orgulho.

— Ele sentiu-se tão feliz por algum tem-po, Tanis. As pessoas precisavam dele. Traba-lhava de dia e de noite, cortando árvores, trazen-do madeira das colinas, erguendo casas. Fez atéalgum trabalho de ferreiro, uma vez que Therostinha partido. Oh, não era grande coisa nesseofício — Tika sorriu tristemente — Mas estavafeliz e ninguém se importava realmente. Fez pre-gos, ferraduras e rodas para carroças. Esse pri-meiro ano foi bom para nós, verdadeiramentebom. Estávamos casados e Caramon pareceuesquecer sobre... sobre...

Tika engoliu em seco. Tanis acariciou-lhea mão e, depois de comer qualquer coisa e debeber um pouco de vinho em silêncio, Tika sen-tiu-se em condições de prosseguir.

— Fez na Primavera passada um ano quetudo começou a alterar-se. Algo aconteceu a Ca-ramon. Não sei bem o quê. Tinha qualquer coisaa ver com... — Interrompeu-se, abanando a ca-beça — A cidade prosperava. Um ferreiro queestivera preso em Pax Tharkas mudou-se para cá

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e tomou conta do negócio. Oh, claro que as pes-soas ainda necessitavam das casas construídas,mas não havia pressa. Comecei a gerir a estala-gem — Tika encolheu os ombros.

— Penso que Caramon dispunha de mui-to tempo para si mesmo.

— Ninguém precisava dele — disse Tanistristemente.

— Nem sequer eu... — afirmou Tika, se-cando os olhos — Talvez a culpa seja minha...

— Não — disse Tanis, com os seus pen-samentos e as suas recordações muito distantes— A culpa não foi sua, Tika. Penso que sabemosde quem é a culpa.

— De qualquer forma — Tika respiroufundo —, tentei ajudar, mas tinha aqui tanto tra-balho. Sugeri uma série de coisas em que ele po-deria ocupar-se e Caramon tentou, é verdade.Auxiliou o condestável local a localizar draconi-anos desertores. Foi, durante uns tempos, guar-da-costas, contratado por pessoas que viajavampara Haven. Mas nunca ninguém o contratavaduas vezes — A voz dela enfraqueceu — Então,um dia, no Inverno passado, o grupo que eledeveria ter protegido regressou, arrastando-onum trenó. Estava perdido de bêbado. Acaba-ram por ser eles a proteger ele! Desde esse dia,tem passado todo o seu tempo ou dormindo, oucomendo, ou acompanhando uns tais ex-mercenários no Trough, aquele lugar nojento dooutro lado da cidade.

Desejando que Laurana estivesse ali para

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discutir tais questões, Tanis sugeriu suavemente:— Talvez um... bebê?— Fiquei grávida, no Verão passado —

disse Tika, pousando a cabeça sobre a mão —Mas não por muito tempo. Abortei espontanea-mente. Caramon nem chegou a saber. Desdeentão... — baixou os olhos para a mesa de ma-deira —, bem, não temos dormido no mesmoquarto.

Corando de embaraço, Tanis só conseguiufazer-lhe uma festa na mão e apressar-se a mudarde assunto.

— Disse, há momentos atrás, que tinhaqualquer coisa a ver com... com o quê?

Tika estremeceu e bebeu mais um tragode vinho.

— Começaram então a ouvir-se rumores,Tanis — disse, em voz baixa — Rumores ne-gros. Pode calcular sobre quem eram!

Tanis assentiu.— Caramon escreveu-lhe, Tanis. Vi a car-

ta. Era... despedaçou-me o coração. Nem umapalavra de culpa ou reprovação. Transbordavade amor. Implorou ao irmão que regressasse eviesse viver conosco. Pediu-lhe que voltasse ascostas à escuridão.

— Que aconteceu? — inquiriu Tanis, em-bora já calculasse qual fosse a resposta.

— Foi devolvida — murmurou Tika —sem ter sido aberta. O selo não estava sequerquebrado. E, por fora, estava escrito: “Não te-nho nenhum irmão. Não conheço ninguém de

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nome Caramon.” E estava assinado, Raistlin!— Raistlin! — Crysania olhou para Tika,

como se a visse pela primeira vez. Os seus gran-des olhos cinzentos abriram-se de espanto aosaltarem da jovem mulher de cabelo ruivo paraTanis, depois para o enorme guerreiro no chão,que arrotava confortavelmente no seu sono em-briagado — Caramon... Este é Caramon Majere?Este é o irmão dele? O gêmeo sobre o qual mefalou? O homem que poderia me conduzir...

— Lamento, Venerável Filha — disse Ta-nis, corando.

— Não fazia idéia de que ele...— Mas Raistlin é tão... inteligente, pode-

roso. Pensei que o seu irmão gêmeo fosse seme-lhante. Raistlin é sensível, exerce um controle tãoforte sobre si mesmo e aqueles que o servem. Éum amante da perfeição, enquanto este — Cry-sania gesticulou —, este coitado patético, embo-ra merecedor da nossa piedade e orações, é...

— O seu “sensível e inteligente amante daperfeição” deu uma mãozinha para tornar Cara-mon neste “coitado patético” que aqui vê, Vene-rável Filha — afirmou Tanis com azedume,mantendo com cuidado a sua irritação sob con-trole.

— Talvez fosse exatamente o contrário— disse Crysania, olhando para Tanis friamente— Talvez fosse por falta de amor que Raistlinvirou as costas à luz para caminhar para a escuri-dão.

Tika olhou para Crysania, com uma ex-

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pressão estranha nos olhos.— Falta de amor? — repetiu, gentilmente.

Caramon gemeu no seu sono e começou a des-locar-se no chão. Tika ergueu-se rapidamente.

— É melhor levá-lo para casa — Viu a al-ta figura de Riverwind aparecer na entrada e de-pois voltou-se para Tanis — Vejo-te amanhã demanhã, não vejo? Não poderia ficar... apenas poresta noite?

Tanis mirou os olhos suplicantes dela esentiu vontade de arrancar a língua antes de res-ponder. Mas não podia fazer nada.

— Lamento, Tika — disse, segurando-lheas mãos — Quem me dera poder ficar, mas te-nho de partir. A distância daqui a Qualinost ain-da é grande, e não me atrevo a chegar tarde. Odestino de dois reinos depende da minha presen-ça nesse local.

— Compreendo — disse Tika suavemen-te — De qualquer forma, este problema não éseu. Cá me arranjarei.

Tanis podia ter arrancado a barba de frus-tração. Desejava ficar e ajudar, se é que podiafazê-lo. Pelo menos poderia conversar com Ca-ramon, tentar meter-lhe algum juízo naquela ca-beça dura. Mas Porthios tomaria como uma a-fronta pessoal que Tanis não assistisse ao fune-ral, o que afetaria não só as suas relações com oirmão de Laurana como também o tratado dealiança em negociações entre Qualinesti e So-lamnia.

Então, o seu olhar pousou em Crysania e

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Tanis compreendeu que tinha outro problema.Não poderia levá-la a Qualinost. Porthios nãogostava de clérigos humanos.

— Escuta — disse Tanis, surgindo-lhe re-pentinamente uma idéia —, volto depois do fu-neral — Os olhos de Tika brilharam. Voltou-separa Lady Crysania — Vou deixá-la aqui, Vene-rável Filha. Ficará em segurança nesta cidade, naestalagem. Depois posso escoltá-la de novo paraPalanthas, uma vez que a sua viagem foi um in-sucesso...

— A minha viagem não foi um insucesso— afirmou Crysania com determinação — Pros-seguirei tal como comecei. Pretendo ir à Torrede Alta Feitiçaria em Way-reth, para aí me reunircom Par-Salian das vestes brancas.

Tanis abanou a cabeça.— Não posso levá-la lá — disse — E,

obviamente, Caramon não se encontra em con-dições. Portanto, sugiro...

— Sim — interrompeu Crysania compla-centemente — Caramon está claramente incapa-citado. Portanto, esperarei que o seu amigo ken-der se encontre comigo aqui, com a pessoa quefoi enviado para procurar, prosseguindo depoissozinha.

— Completamente fora de questão! —gritou Tanis. Riverwind ergueu a sobrancelha,lembrando a Tanis a quem ele estava se dirigin-do. Com esforço, o semi-duende recuperou ocontrole — Minha senhora, não faz idéia do pe-rigo! Para além daquelas coisas negras que nos

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perseguem, e penso que todos sabemos quem asenviou, conheço as histórias que Caramon con-tava sobre a floresta de Wayreth. É ainda maisescura! Regressaremos a Palanthas onde encon-trarei alguns cavaleiros...

Pela primeira vez, Tanis viu uma pálidamancha de cor nas faces de mármore de Crysa-nia. As suas negras sobrancelhas contraíram-seenquanto parecia pensar. Depois, o seu rostosuavizou-se. Olhando para Tanis, sorriu.

— Não há perigo — disse — Estou nasmãos de Paladine. As negras criaturas podem tersido enviadas por Raistlin, mas não têm poderpara me afetar! Limitaram-se a fortalecer a minharesolução — Vendo o rosto de Tanis ficar aindamais austero, suspirou — Posso prometer isto.Pensarei no assunto. Talvez tenha razão. Talveza viagem seja muito arriscada...

— É uma perda de tempo! — murmurouTanis, a mágoa e a exaustão fazendo-o falar as-peramente sobre o que ele pensava desde sempresobre o louco empreendimento desta mulher —Se Par-Salian pudesse ter destruído Raistlin, hámuito que o teria feito...

— Destruir! — Crysania fitava Tanis cho-cada, os olhos cinzentos gélidos — Eu não pro-curo a sua destruição.

Tanis mirou-a, espantado.— Pretendo regenerá-lo — prosseguiu

Crysania — Irei agora para os meus aposentos,se alguém tiver a amabilidade de me guiar atéeles.

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Dezra avançou de imediato. Crysania deucalmamente as boas-noites a todos e depois a-companhou Dezra. Tanis seguiu-a com o olhar,sem saber o que dizer. Ouviu Riverwind murmu-rar qualquer coisa em Que-shu. Depois, Cara-mon gemeu de novo. Riverwind fez sinal a Ta-nis. Juntos, baixaram-se sobre o corpo inerte deCaramon e, com algum esforço, puseram o e-norme homem de pé.

— Em nome do abismo! O homem é pe-sado! — afirmou Tanis, vacilando sob o pesomorto do homem, ao mesmo tempo em que osbraços flácidos de Caramon ficaram suspensossobre os seus ombros. O cheiro pútrido da bebi-da dos anões por pouco não o fez vomitar.

— Como é que ele consegue beber aquelaporcaria? — disse Tanis para Riverwind ao arras-tarem o homem embriagado para a porta. Tikaseguia-os ansiosamente.

— Uma vez vi um guerreiro ser vítima detal maldição — grunhiu Riverwind — Morreu,atirando-se de um penhasco, perseguido por cri-aturas que apenas existiam no espírito dele.

— Eu deveria ficar... — murmurou Tanis.— Não pode lutar em vez de outra pessoa

— disse Riverwind firmemente — Sobretudoquando esta batalha é travada entre um homem ea sua própria alma.

Passava já da meia-noite quando Tanis eRiverwind chegaram com Caramon a casa e odespejaram sem qualquer cerimônia, para a camadele. Tanis nunca se sentira tão cansado na sua

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vida. Doíam-lhe os ombros por ter carregado opeso morto do guerreiro gigante. Estava exaustoe sentia-se impotente. As recordações do passa-do, outrora agradáveis, eram agora como velhasferidas, abertas e sangrando. E tinha ainda à suafrente horas de viagem a cavalo antes do ama-nhecer.

— Quem me dera poder ficar — repetiumais uma vez para Tika quando se juntaram comRiverwind fora da porta, olhando para a cidadeadormecida e tranqüila de Solace — Sinto-meresponsável...

— Não, Tanis — afirmou Tika calma-mente — Riverwind tem razão. Não pode lutaresta guerra. Tem agora a sua própria vida paraviver. Além do mais, nada pode fazer. Poderiaaté tornar as coisas ainda piores.

— É possível — Tanis franziu a sobran-celha — De qualquer forma, regressarei dentrode cerca de uma semana. Nessa altura falareicom Caramon.

— Será simpático da tua parte — Tikasuspirou e, depois de uma pausa, mudou de as-sunto — A propósito, o que quis dizer LadyCrysania sobre o fato de um kender vir aqui?Tasslehoff?

— Sim — disse Tanis, coçando a barba— Tem algo a ver com Raistlin, embora eu nãosaiba propriamente o quê. Encontramos Tass emPalanthas. Iniciou uma das suas histórias, alertei-a de que apenas metade do que ele afirmava eraverdade e que, mesmo essa metade, não passava

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de gabarolice, mas, provavelmente, convenceu-aa enviá-lo atrás de alguém que ela pensa poderajudar a regenerar Raistlin!

— A mulher pode ser uma eclesiástica sa-grada de Paladine — disse Riverwind com seve-ridade —, e que os deuses me perdoem se digomal de um dos seus escolhidos. Mas penso queela é doida — Tendo proferido o seu ponto devista, preparou-se para partir.

Tanis abanou a cabeça. Colocando umbraço em redor de Tika, beijou-a.

— Receio que Riverwind tenha razão —disse-lhe suavemente — Mantém Lady Crysaniasob vigilância enquanto estiver aqui. Falarei comElistan sobre ela quando regressarmos. Perguntoa mim mesmo o que saberia ele sobre este estra-nho projeto. Oh, e se Tasslehoff realmente apa-recer, não o deixe sair daqui, está bem? Não que-ro que ele vá até Qualinost! Já vou ter suficientesproblemas com Porthios e os duendes!

— Claro, Tanis — disse Tika suavemente.Por momentos, enroscou-se a ele, deixando-sereconfortar pela força e compaixão que podiasentir no toque e voz dele.

Tanis hesitou, abraçando-a, relutante emdeixá-la partir. Olhando para o interior da pe-quena casa, podia ouvir Caramon gritar no seusono.

— Tika... — começou. Mas ela afastou-se.— Parte agora, Tanis — disse, firmemen-

te — Tem uma longa cavalgada à sua frente.— Tika. Gostaria... — Mas nada do que

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ele dissesse poderia ajudar, e ambos o sabiam.Virando-se lentamente, seguiu caminho

atrás de Riverwind.Vendo-os partir, Tika sorriu.— É muito sensato, Tanis Semiduende.

Mas, desta vez, está enganado — disse para simesma, sozinha junto ao portal — Lady Crysa-nia não está louca. Está apaixonada.

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CAPÍTULO 4

Um exército de anões marchava em redordo quarto, as botas com pontas de aço fazendoTHUD, THUD, THUD. Cada anão empunhava ummartelo e, sempre que um deles passava pelacama, martelava contra a cabeça de Caramon.Este rosnava e agitava as mãos.

— Vão-se embora! — murmurou — Vão-se embora!

Mas os anões só responderam erguendo acama com os seus fortes ombros e fazendo-arodar num ritmo rápido, ao mesmo tempo emque continuavam a marchar, as botas batendo nochão de madeira THUD, THUD, THUD.

Caramon sentiu o estômago girando. De-pois de diversas tentativas desesperadas, conse-

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guiu saltar da cama rotativa e dar uns passos in-certos para o vaso, no canto do quarto. Depoisde vomitar, sentiu-se melhor. A cabeça ficoumais leve. Os anões desapareceram, embora sus-peitasse que estavam escondidos por debaixo dacama, à espera que ele se deitasse de novo.

Em vez de se deitar, abriu uma gaveta deuma mesinha de cabeceira onde guardava o pe-queno frasco com a bebida alcoólica dos anões.Não estava! Caramon franziu a sobrancelha. En-tão Tika estava outra vez brincando com isto, nãoera? Sorrindo com astúcia, Caramon cambaleoupara a enorme arca de roupas do outro lado dasala. Levantou a tampa e vasculhou por entretúnicas, calças e camisas que já não serviam noseu corpo obeso. Ali estava, enfiado numa botavelha.

Caramon sacou a tampa com ternura, be-beu um trago do líquido ardente, arrotou e sol-tou um suspiro. Pronto, o martelar na cabeçadesaparecera. Olhou em redor do quarto. Osanões que ficassem debaixo da cama. Não seimportava.

Ouviu o tinido de louça no outro quarto.Tika! Apressadamente, Caramon bebeu outrotrago, tapou o frasco e voltou a guardá-lo dentroda bota. Fechando a tampa com muito, muitocuidado, endireitou-se, passou uma mão pelocabelo emaranhado e preparou-se para sair paraa principal área habitacional. Foi então que repa-rou na sua imagem ao passar por um espelho.

— Muda de camisa — murmurou.

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Depois de muito esforço, conseguiu sairde dentro da nojenta camisa que vestia e atirou-apara um canto. E se se lavasse? Bah! O que eraele, um maricas? Cheirou a si mesmo e o seucheiro pareceu-lhe másculo. Muitas mulheresgostavam desse odor, achavam-no atraente, a-chavam-no a ele atraente! Nunca se queixavamou recusavam, não eram como Tika. Por que nãohaveria ela de aceitá-lo tal como era? Enfiou umacamisa limpa que encontrou aos pés da cama ecomeçou a sentir muita pena de si mesmo. Nin-guém o compreendia... a vida era dura... estavapassando agora uma má fase... mas isso iria mu-dar... era apenas uma questão de tempo... um diadestes... talvez amanhã...

Saindo atrapalhadamente do quarto, ten-tando parecer indiferente, Caramon atravessoucom pouca segurança a impecável e limpa sala deestar e deixou-se cair numa cadeira junto à mesaonde comiam. A cadeira estalou com o seu e-norme peso. Tika virou-se.

Captando o olhar dela, Caramon suspirou.Tika estava outra vez zangada. Tentou sorrir pa-ra ela, mas era um sorriso doentio e não resultou.Com os caracóis ruivos oscilando de raiva, virou-se e desapareceu através da porta da cozinha.Caramon estremeceu quando ouviu bater pesa-dos tachos de ferro. O ruído fez regressar os a-nões e os martelos. No espaço de alguns minu-tos, Tika voltou, trazendo um enorme prato debacon, bolos de milho frito e ovos. Atirou o pratopara a frente dele com tal força que os bolos sal-

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taram uns 90 cm no ar.Caramon estremeceu de novo. Ponderou

brevemente a hipótese de comer, considerando oestado do seu estômago, mas depois lembrou aoestômago quem é que mandava. Estava esfome-ado, nem se lembrava quando comera pela últi-ma vez. Tika sentou-se numa cadeira junto dele.Levantando a cabeça, viu os olhos verdes delaardendo. As sardas sobressaíam-lhe claramentena pele, sinal inequívoco de fúria.

— Muito bem — resmungou Caramon,enfiando comida na boca — Que fiz agora?

— Não se lembra — Era uma afirmação.Caramon pesquisou nas regiões nebulosas

da sua mente. Algo se agitou vagamente. Pareceque tinha estado num lugar qualquer a noite pas-sada. Permanecera em casa todo o dia, preparan-do-se. Prometera a Tika... mas ficara com sede.O frasco estava vazio. Fora apenas ao Throughpara beber um copo, depois para... onde... mas...

— Tive coisas para fazer — disse Cara-mon, evitando o olhar de Tika.

— Sim, nós vimos o que tinha para fazer— afirmou Tika, rispidamente — Coisas essasque te fizeram desmaiar mesmo aos pés de Ta-nis!

— Tanis! — Caramon deixou cair o garfo— Tanis... a noite passada... — Com um gemido,o grande homem deixou a cabeça dolorida afun-dar-se nas suas mãos.

— Fez uma bonita figura — prosseguiuTika, de voz presa — Em frente de toda a cida-

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de, para além de metade dos duendes de Krynn.Já para não mencionar os nossos velhos amigos— Chorava agora em silêncio — Os nossos me-lhores amigos...

Caramon gemeu de novo. Agora, tambémele chorava.

— Porquê? Porquê? — balbuciou — A-inda por cima perante Tanis... — As suas auto-recriminações foram interrompidas por um baterna porta da frente.

— Que foi agora? — murmurou Tika, le-vantando-se e limpando as lágrimas com a man-ga da blusa — Talvez seja Tanis, afinal de contas— Caramon ergueu a cabeça.

— Tenta, ao menos, parecer o homem quefora outrora — afirmou Tika, dirigindo-se para aporta.

Tirando a tranca, abriu-a.— Otik? — disse, espantada — O que é...

Para quem é essa comida?O estalajadeiro rotundo e idoso permane-

cia na entrada, com um prato de comida fume-gante nas mãos. Olhou para trás de Tika.

— Ela não está aqui? — perguntou, sur-preendido.

— Quem é que não está aqui? — replicouTika, confusa — Não está ninguém aqui.

— Oh! — O rosto de Otik ficou confuso.Absorto, começou a comer a comida do prato— Então, nesse caso, receio que o rapaz do es-tábulo tenha razão. Ela foi-se embora. E logoagora que eu tinha preparado este magnífico pe-

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queno-almoço.— Quem é que se foi embora? — pergun-

tou Tika desesperada, pensando que talvez ele sereferisse a Dezra.

— Lady Crysania. Não está no quarto. Ascoisas dela também não estão lá. E o rapaz doestábulo disse que esta manhã ela lhe pediu queselasse o cavalo e partiu. Pensei...

— Lady Crysania! — Tika respirou comdificuldade.

— Partiu, completamente só. Claro, ela...— O quê? — inquiriu Otik, ainda masti-

gando.— Nada — disse Tika, de rosto pálido —

Nada, Otik. Uh, é melhor regressar à estalagem.Eu... sou capaz de chegar um pouco tarde hoje.

— Claro, Tika — afirmou Otik suave-mente, depois de ver Caramon debruçado sobrea mesa — Vai quando puder— Levantou-se efoi comendo enquanto caminhava. Tika fechou aporta.

Vendo Tika regressar e sabendo que ia re-ceber uma bronca, Caramon ergueu-se, vacilan-do.

— Não estou me sentindo muito bem —disse. Arrastando-se pelo chão, entrou no quartoe fechou a porta atrás dele. Tika podia escutar osom de soluços vindo de dentro.

Sentou-se à mesa, pensando. Lady Crysa-nia partira e ia encontrar a floresta de Wayrethpelos seus próprios meios. Ou melhor, partiraem busca dela. Nunca ninguém a encontrara,

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segundo a lenda. Era ela quem nos encontrava!Tika estremeceu, lembrando-se das histórias deCaramon. A temível floresta constava dos mapasmas, quando comparados, nenhum mapa con-cordava na sua localização. E existia sempre umsímbolo de aviso junto dela. No centro, erguia-sea Torre da Alta Feitiçaria de Wayreth, onde todoo poder dos magos de Ansalon se concentrava.Bem, praticamente todos...

Com uma resolução súbita, Tika ergueu-see abriu para trás a porta do quarto. Entrando,encontrou Caramon sobre a cama, soluçando echorando como uma criança. Endurecendo ocoração contra esta visão de fazer dó, Tika cami-nhou com passos firmes para a arca da roupa.Ao abrir a tampa e ao começar a procurar porentre a roupa, localizou o frasco, mas limitou-sea atirá-lo para um canto do quarto. Então, mes-mo no fundo, deparou com aquilo que buscava.

A armadura de Caramon.Içando um coxote pela correia de couro,

Tika levantou-se e, virando-se, arremessou o me-tal polido direta-mente para Caramon.

Foi atingi-lo no ombro e depois caiu nochão, com barulho.

— Ai! — gritou o homem enorme, sen-tando-se — Em nome do abismo, Tika! Deixe-me em paz por...

— Vai atrás dela — disse Tika friamente,retirando outra peça da armadura — Vai atrásdela, nem que eu tenha que te arrastar daqui parafora num carrinho de mão!

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— Ah, perdão — disse um kender a umhomem que vadiava do lado da estrada nos arre-dores de Solace. O homem pousou de imediato amão sobre a bolsa — Estou à procura da casa deum amigo meu. Bem, para ser mais preciso, dedois amigos meus. Um é uma mulher, bonita,com caracóis ruivos. O nome dela é Tika Wa-ylan...

Fitando o kender, o homem estendeu umdedo.

— Fica lá para baixo.Tas olhou.— Ali? — disse, apontando, impressiona-

do — Aquela casa verdadeiramente magnífica nonovo bosque?

— O quê? — O homem soltou um risobreve e agudo — Do que é que lhe chamou?Verdadeiramente magnífica? Essa é boa — Ain-da rindo furtivamente, seguiu caminho, rindo-see contando ao mesmo tempo as moedas da suabolsa.

“Que homem rude!”, pensou Tas, enfian-do distraído a navalha de bolso do homem numadas suas algibeiras. Depois, esquecendo pronta-mente o incidente, o kender dirigiu-se à casa deTika. O seu olhar observava com prazer cadapormenor da bonita casa aninhada em segurançanos ramos da árvore ainda em crescimento.

— Fico tão satisfeito por Tika — afirmouTas para o que parecia ser um monte de roupascom pés que caminhava ao seu lado — E tam-

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bém por Caramon — acrescentou — Mas Tikanunca teve um verdadeiro lar. Como deve estarorgulhosa!

Ao aproximar-se da casa, Tas reparou queera um dos melhores edifícios de toda a cidade.Fora construído segundo os moldes das velhastradições de Solace. As curvas delicadas das ares-tas arqueadas foram moldadas de forma a pare-cerem fazer parte da própria árvore. Cada divi-são partia do corpo principal da casa, a madeiradas paredes era esculpida e polida para se asse-melhar ao tronco da árvore. A estrutura adequa-va-se com a forma da árvore, existindo umaharmonia pacífica entre o trabalho do homem eo da natureza, por forma a criar uma unidadeagradável. Tas sentiu um certo calor no coração,ao pensar nos seus dois amigos trabalhando evivendo numa habitação tão encantadora. En-tão...

— Engraçado — disse Tas para si mesmo—, gostaria de saber por que razão não há telha-do.

Ao aproximar-se, analisando mais deta-lhadamente a casa, reparou que faltava uma sériede coisas, entre elas um telhado. As grandes ares-tas arqueadas não serviam para outra coisa senãopara formar a estrutura de um telhado que nãoexistia. As paredes das divisões só existiam numaparte do edifício. O chão era constituído poruma simples plataforma.

Quando se encontrou por baixo dela, Tasespreitou para cima, interrogando-se com o que

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estaria se passando. Podia avistar martelos, ma-chados e serras espalhados no chão. Pelo aspec-to, não tinham sido utilizados há meses. A pró-pria estrutura revelava os efeitos da longa expo-sição aos elementos atmosféricos. Tas puxou oseu topete, pensativamente. O edifício preenchiatodas as exigências para ser a mais magnífica es-trutura em toda a cidade de Solace, se algumavez fosse terminado!

Depois, Tas alegrou-se. Uma seção da ca-sa estava terminada. Os vidros tinham sido cuida-dosamente colocados nas armações das janelas,as paredes estavam intactas, um telhado protegiaa divisão dos elementos. “Pelo menos, Tika dis-punha de um aposento”, pensou o kender. Mas,ao analisar com mais atenção esse aposento, oseu sorriso desvaneceu-se. Por cima da porta,podia ver distintamente, apesar de um poucodesgastada pelo tempo, a marca cuidadosamentefeita que denotava tratar-se da residência de umfeiticeiro.

— Devia ter desconfiado — disse Tas,abanando a cabeça. Olhou em redor — Bom,seguramente Tika e Caramon não devem viveraqui. Mas o homem disse... Oh!

Ao contornar a enorme árvore, deparoucom uma pequena casa, quase perdida no meiode ervas muito crescidas, oculta pela sombra daárvore. Obviamente construída apenas para ser-vir de residência temporária, tinha o aspecto deter se tornado muito permanente. Se alguma vezum edifício tivera um ar infeliz, ponderou Tas,

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fora este sem dúvida. As arestas curvavam numacarranca. A pintura estava estalada e caindo.Mesmo assim, havia flores nos vasos das janelase cortinas aos folhos. O kender suspirou.

Era então esta a casa de Tika, construídana sombra de um sonho.

Aproximando-se da pequena casa, ficouparado junto à porta, escutando com atenção.Vinha do interior uma estranha agitação. Podiaouvir pancadas surdas, vidros partindo-se e gri-tos.

— Penso que é melhor esperar aqui fora— disse Tas para o monte de roupa.

O monte resmungou e estatelou-se con-fortavelmente na estrada lamacenta no exteriorda casa. Tas olhou para aquilo, pouco seguro,mas depois encolheu os ombros e dirigiu-se paraa porta. Colocando a mão no puxador da porta,voltou-o e deu um passo em frente, esperandoentrar de imediato. Em vez disso, esmagou onariz contra a madeira. A porta estava trancada.

— Estranho — disse Tas, retrocedendo oolhando em redor — Em que estará Tika pen-sando? Portas trancadas! Que coisa bárbara. Eainda por cima com um ferrolho. Tenho a certe-za de que estão à minha espera... — Olhou parao ferrolho pensativamente. Os gritos continua-vam no interior. Pareceu-lhe ouvir a voz profun-da de Caramon.

— As coisas parecem interessantes lá den-tro — Tas olhou em redor e sentiu-se de novoanimado — A janela! Claro!

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Mas, depois de correr para a janela, Tasviu que também esta estava trancada.

— Nunca esperei tal coisa de Tika, sobre-tudo dela — afirmou o kender tristemente, para simesmo. Estudando o ferrolho, reparou que erabastante simples e que se abriria com facilidade.Do conjunto de ferramentas que retirou da bol-sa, Tas retirou um dispositivo para abrir fecha-duras, o qual constituía um direito inato de qual-quer kender. Inserindo-o, conferiu-lhe um toquede profissional e teve a satisfação de ouvir o fer-rolho estalar. Sorrindo feliz, abriu a porta de vi-dro e entrou. Pisava o chão sem fazer qualquerruído. Espreitando para trás, pela janela, avistouo monte disforme dormindo na sarjeta.

Aliviado quanto a esse aspecto, Tasslehofffez uma pausa para olhar em redor da casa, osseus olhos atentos assimilando tudo, as mãostocando em tudo.

— Nossa, que coisa interessante — pros-seguiu Tas com os seus comentários, ao dirigir-se para a porta por onde vinham os ruídos dealgo partindo-se — Tika não há de se importarque o estude por uns instantes. Voltarei a pô-loonde estava — O objeto foi parar à sua algibeira— E olhem para isto! Hu-oh, está rachado. Háde agradecer-me por avisá-la sobre isso — Maisum objeto deslizou para outra algibeira — E oque é que o prato da manteiga está fazendo aqui?Tenho certeza que Tika o guarda na despensa. Émelhor colocá-lo no seu devido lugar — O pratoda manteiga descansou num terceiro bolso.

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Nesta altura, Tas alcançara já a porta fe-chada. Voltando a maçaneta (ficou agradecidopelo fato de Tika não a ter trancado também!),entrou.

— Olá — disse, alegremente — Lem-bram-se de mim? Isto parece estar divertido!Posso participar? Dá-me algo que eu possa tam-bém atirar contra ele, Tika. Puxa, Caramon —Tas penetrou no quarto e dirigiu-se para ondeTika se encontrava, com uma couraça na mão,fitando-o com perfeita surpresa — O que sepassa contigo? Está com um aspecto horrível,simplesmente horrível! Diz-me, Tika, por que estáatirando a armadura contra Caramon? — inqui-riu Tas, pegando numa cota de malha e voltan-do-se de frente para o grande guerreiro, que sebarricara atrás da cama — Isto é algo que vocêsdois façam regularmente? Ouvi dizer que os ca-sais fazem coisas estranhas, mas isso parece re-almente pouco vulgar...

— Tasslehoff Burrfoot! — Tika recupe-rou o poder de falar — O que faze aqui, emnome dos deuses?

— Mas, tenho a certeza de que Tanis tedisse que eu vinha — afirmou Tas, arremessan-do a cota de malha de Caramon — Ah! Isto érealmente divertido! Deparei com a porta dafrente trancada — Tas lançou a Tika um olharde reprovação — Na verdade, tive que entrarpor uma janela — disse, severamente — Achoque devia mostrar um pouco mais de considera-ção. De qualquer forma, fiquei de me encontrar

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aqui com Lady Crysania e...Para espanto de Tas, Tika largou a coura-

ça, começou a chorar e deixou-se cair no chão.O kender olhou para Caramon, que se erguia de-trás do painel de madeira como um espírito er-guendo-se de uma sepultura. Caramon ficou o-lhando para Tika com uma expressão perdida emelancólica. Depois, abrindo caminho por entreas peças da armadura que se encontravam espa-lhadas pelo chão, ajoelhou-se ao lado dela.

— Tika — murmurou pateticamente, fa-zendo-lhe festas no ombro — Desculpa. Nãoqueria dizer nada daquilo que disse, sabe quenão! Amo-te! Sempre te amei. É que... não sei oque fazer!

— Sabe bem o que fazer! — gritou Tika.Afastando-o, ergueu-se — Acabei de te dizer!Lady Crysania está em perigo. Tem que ir procu-rá-la!

— Quem é esta Lady Crysania? — gritoutambém Caramon — Por que raios haveria deme importar se ela está em perigo ou não?

— Escuta-me, pelo menos uma vez na tuavida — rosnou Tika por entre dentes cerrados, aira secando-lhe as lágrimas — Lady Crysania éuma poderosa eclesiástica de Paladine, uma dasmais poderosas do mundo, depois de Elistan.Foi avisada em sonho que o mal de Raistlin po-deria destruir o mundo. Ela dirige-se à Torre daAlta Feitiçaria em Wayreth para falar com Par-Salian para...

— Para arranjar auxílio para destruí-lo,

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não é assim? — rosnou Caramon.— E se ajudassem? — respondeu-lhe Ti-

ka — Será que ele merece viver? Ele te matariasem pensar duas vezes!

Os olhos de Caramon reluziram de formaperigosa e o seu rosto corou. Tas retrocedeuvendo o homem cerrar o punho, mas Tika cami-nhou com firmeza até ele. Embora a cabeça delamal chegasse ao queixo do marido, Tas pensouque o homem se acalmasse perante tal irritaçãodela. A mão de Caramon abriu-se, fracamente.

— Mas não, Caramon — disse Tika seve-ramente —, ela não quer destruí-lo. É tão idiotaquanto você. Ama o seu irmão, que os deuses aajudem. Quer salvá-lo, fazê-lo virar as costas aomal.

Caramon fitou Tika, em interrogação. Asua expressão suavizou-se.

— É verdade? — perguntou.— Sim, Caramon — afirmou Tika, cansa-

da — Foi por isso que veio aqui, para te ver.Pensou que poderia ajudá-la. Depois, quando teviu a noite passada...

A cabeça de Caramon inclinou-se. Os seusolhos encheram-se de lágrimas.

— Uma mulher, uma estranha, quer aju-dar Raist. E arrisca a vida para fazê-lo. — Come-çou a choramingar de novo.

Tika fitou-o, desesperada.— Oh, pelo amor de... Vai atrás dela, Ca-

ramon! — gritou, batendo com o pé no chão —Ela nunca alcançará a torre pelos seus próprios

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meios. Sabe disso! Já esteve na floresta de Wa-yreth.

— Sim — afirmou Caramon, fungando— Fui com Raist. Levei-o lá, para que ele pudes-se encontrar a torre e fazer o teste. Aquele mal-dito teste! Servi-lhe de guarda. Ele necessitava demim... nessa altura.

— E Crysania precisa de você agora! —afirmou Tika severamente. Caramon permaneciaimóvel, irresoluto, e Tas viu o rosto de Tika ad-quirir linhas firmes e duras — Não dispõe demuito tempo para perder, se quiser apanhá-la.Lembra-se do caminho?

— Eu me lembro! — gritou Tas, excitado— Isto é, tenho um mapa — Tika e Caramonviraram-se para fitar o kender com grande surpre-sa. Ambos tinham se esquecido da sua presença.

— Não sei — replicou Caramon, obser-vando Tas dubiamente — Lembro-me bem dosseus mapas. Um deles conduziu-nos a um portoque não tinha nenhum mar!

— Isso não foi culpa minha! — gritouTas indignado — Até Tanis admitiu. O meu ma-pa foi desenhado antes de o Cataclismo ter arras-tado o mar. Mas tem que me levar contigo, Ca-ramon! Fiquei de me encontrar com Lady Crysa-nia. Ela enviou-me numa busca, numa verdadei-ra busca. E eu finalizei-a. Encontrei... — Ummovimento súbito despertou a atenção de Tas— Oh, aqui está ela.

Acenou com a mão e Tika e Caramon vol-taram-se para ver o disforme monte de roupas

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na entrada do quarto. Só que, agora, o monteadquirira dois olhos negros e desconfiados.

— Ter fome — disse o monte para Tas,em tom de acusação — Quando comermos?

— Fui em busca de Bupu — afirmou Tas-lehoff Burrfoot com orgulho.

— Mas, em nome do abismo, para quequer Lady Crysania uma anã boba? — disse Tika,confusa. Levara Bupu para a cozinha, dera-lheum bocado de pão seco e metade de um queijo,mandando-a depois de novo para a rua, o cheiroda anã não melhorava em nada o conforto dapequena casa. Bupu regressou feliz para a sarjeta,onde completou a refeição bebendo água de umapoça na rua.

— Oh, prometi que nada diria — afirmouTas, com importância. O kender auxiliava Cara-mon a apertar as correias da armadura, tarefabastante difícil, pois o grande homem estavaconsideravelmente maior do que da última vezque a usara. Quer Tika quer Tas esforçaram-seaté transpirarem, apertando as correias, empur-rando e enfiando gordura acumulada por debai-xo do metal.

Caramon resmungou e gemeu, mais pare-cendo um homem sendo estendido por cima deuma roda de tortura. A língua do enorme ho-mem lambia os lábios e o seu olhar cobiçosoatravessou mais de uma vez o quarto até ao pe-queno frasco que Tika lançara para um canto.

— Oh, então, Tas — pediu Tika, sabendoque o kender não conseguia guardar um segredo

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nem para salvar a própria vida — Tenho certezade que Lady Crysania não se importaria...

O rosto de Tas retorcia-se com o sofri-mento.

— Ela... ela fez-me prometer e jurar porPaladine, Tika! — O rosto do kender tornou-sesolene — E sabe que Fizban, quer dizer, Paladi-ne e eu somos amigos pessoais. — O kender fezuma pausa — Mete a barriga para dentro, Cara-mon — ordenou, irritado — Afinal, como é quechegou a este estado?

Apoiando um pé contra a coxa do grandehomem, Tas puxou. Caramon gritou de dor.

— Estou em perfeita forma — murmurouo grande homem irritado — É da armadura. Pa-rece que encolheu, ou qualquer coisa assim.

— Não sabia que este tipo de metal enco-lhia — afirmou Tas com interesse — Apostoque tem de ser aquecido! Como fez isso? Deveter feito muito, muito calor por aqui.

— Oh, cale-se! — rosnou Caramon.— Estava unicamente tentando ajudar —

disse Tas, ofendido — De qualquer forma, acer-ca de Lady Crysania — o seu rosto adquiriu umar grandioso —, dei o meu juramento sagrado. Oque posso dizer é que ela queria que lhe contassetudo aquilo de que me lembrasse sobre Raistlin.Assim fiz. E isto tem a ver com isso. Lady Cry-sania é, sem sombra de dúvida, uma pessoa ma-ravilhosa, Tika — prosseguiu Tas solenemente— Pode não ter reparado, mas não sou muitoreligioso. Regra geral, os kender não são. Mas não

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é necessário ser religioso para saber que há algode verdadeiramente bom em Lady Crysania. E tam-bém é esperta. Talvez ainda mais esperta do queTanis.

Os olhos de Tas reluziam de mistério eimportância.

— Acho que posso contar isto — afir-mou, num sussurro — Ela tem um plano! Umplano para tentar salvar Raistlin! Bupu faz partedo plano. Ela vai levá-la a Par-Salian!

Mesmo Caramon ficou com certas dúvi-das em relação a isto e, só para si, Tika começavaa pensar que talvez Riverwind e Tanis tivessemrazão. Talvez Lady Crysania estivesse louca.Mesmo assim, qualquer coisa que pudesse ajudarCaramon, que lhe pudesse conferir alguma espe-rança...

Mas, aparentemente, Caramon tambémrefletira no assunto.

— Sabem, a culpa foi toda deste Fis-Fistandoodle, ou como é que ele se chamava —disse, puxando as correias de couro onde estasmordiam na sua carne balofa — Aquele mago,sobre quem Fizban... uh... Paladine nos contou.E Par-Salian também sabe alguma coisa sobreisso! — O seu rosto iluminou-se — Havemos deconseguir. Trarei Raistlin para cá, tal como pla-nejamos, Tika! Pode mudar-se para o quarto quepreparamos para ele. Cuidaremos dele, você eeu. Na nossa nova casa. Vai tudo correr bem,mesmo bem! — Os olhos de Caramon brilha-vam. Tika não conseguia olhar para ele. Parecia-

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se tanto com o antigo Caramon, o Caramon queela amara...

Mantendo uma expressão austera, voltou-se abruptamente e dirigiu-se para o quarto.

— Vou buscar o resto das suas coisas...— Espera! — Caramon fê-la parar —

Não, uh... obrigado, Tika. Eu trato disso. E sefosse... uh... arranjar-nos qualquer coisa para le-varmos de comer?

— Eu ajudo — ofereceu-se Tas, encami-nhando-se avidamente para a cozinha.

— Muito bem — disse Tika. Estendendoa mão, agarrou no kender pelo cabelo que lhe caíapelas costas — Só um momento, TasslehoffBurrfoot. Não vai a lado nenhum sem se sentar eesvaziar cada uma das suas algibeiras!

Tas gemeu em protesto. Aproveitando-seda confusão, Caramon apressou-se regressandoao quarto e fechou a porta. Sem parar, foi direitoao canto e pegou no frasco. Abanando-o, verifi-cou que estava meio cheio. Sorrindo para simesmo de satisfação, atirou-o para dentro do seusaco, enchendo-o depois com mais umas peçasde roupa por cima.

— Estou pronto! — gritou alegrementepara Tika — Estou pronto — repetiu Caramondesconsolado, do portal.

Constituía uma visão ridícula. A armadurade dragão roubada, que usara durante os últimosmeses da campanha, fora completamente reno-vada pelo grande guerreiro depois de regressar aSolace. Retirara as mossas, limpara, polira e

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transformara-a de tal maneira que deixara de pa-recer-se com a original. Tivera o maior cuidadocom ela e depois guardara-a, carinhosamente.Estava ainda em excelentes condições. Só queagora, infelizmente, havia um espaço enormeentre a brilhante cota de malha negra que cobriao seu peito e o grande cinto que circundava a suarotunda cintura. Nem ele nem Tas conseguiramapertar as placas de metal que protegiam as per-nas em redor das coxas gordas. Guardara-as den-tro do seu saco. Gemeu quando ergueu o escudoe olhou para ele com ar desconfiado, como seestivesse certo que alguém o enchera com pesosde chumbo durante os dois últimos anos. O ta-lim não entrava no ventre inchado. Corando fu-rioso, enfiou a espada na velha bainha, colocan-do-a às costas.

Neste preciso momento, Tas foi obrigadoa olhar para o outro lado. O kender pensou que iarir mas ficou admirado quando deu consigoprestes a chorar.

— Pareço um idiota — murmurou Cara-mon, vendo Tas desviar rapidamente o olhar.Bupu fitava-o com olhos tão grandes como xíca-ras, a boca pendendo, aberta.

— Ele parecer mesmo meu Highbulp,Phudge I — suspirou Bupu.

A recordação viva do rei gordo e deslei-xado do clã de anões bobos de Xak Tsaroth sur-giu na mente de Tas. Agarrando na anã boba,enfiou-lhe um pedaço de pão na boca para calá-la. Mas os estragos já tinham sido feitos. Aparen-

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temente, também Caramon se recordava.— Está decidido — rosnou, corando e ar-

remessando o escudo para o átrio de madeira,onde este provocou um ruído estrondoso —Não vou! De qualquer forma, não passava deuma estúpida idéia! — Olhou em tom acusadorpara Tika e depois, voltando-se, encaminhou-separa a porta. Mas Tika pôs-se à sua frente.

— Não — afirmou ela, calmamente —Não vai regressar à minha casa, Caramon, atéregressar como uma pessoa íntegra.

— Ele parecer mais duas pessoas —murmurou Bupu numa voz abafada. Tas enfiou-lhe mais pão na boca.

— Só diz besteiras! — afirmou Caramonmalevolamente, pousando a mão no ombro dela— Sai da minha frente, Tika!

— Escuta-me, Caramon — disse Tika. Avoz era suave, mas penetrante; os olhos delaconseguiram captar e sustentar a atenção dogrande homem. Pôs a mão no peito dele e olhoupara o marido com ansiedade — Uma vez ofere-ceu-se para seguir Raistlin até às trevas. Recorda-se?

Caramon engoliu em seco e concordou. Oseu rosto empalideceu.

— Ele recusou — prosseguiu Tika cal-mamente —, dizendo que isso representaria asua morte. Mas, não compreende, Caramon, vocêseguiu-o até às trevas! E está morrendo aos pou-cos! O próprio Raistlin te disse para seguir o teucaminho e deixar que ele seguisse o seu. Mas

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você não o fez! Está tentando seguir os dois ca-minhos, Caramon. Metade de você vive nas tre-vas e a outra metade está tentando afogar na be-bida a dor e o horror que lá vê.

— A culpa é minha! — começou Cara-mon a balbuciar, a voz quebrando-se — A culpaé minha por ele se ter voltado para as vestes ne-gras. Fui eu quem o conduziu a isso! Foi o quePar-Salian tentou fazer-me ver...

Tika mordeu o lábio. Tas viu que o rostodela ficou ainda mais triste e austero devido à ira,mas ela nada exteriorizou.

— Talvez — foi tudo o que disse. Depois,respirou fundo — Não vai voltar para mim co-mo marido, ou mesmo como amigo, até regres-sar em paz contigo mesmo.

Caramon fitou-a, olhando para ela comose a visse pela primeira vez. O rosto de Tikamostrava-se resoluto e firme, os seus olhos ver-des límpidos e frios. Tas lembrou-se subitamentede vê-la combatendo draconianos no templo deNeraka, naquela última e horrível noite da guer-ra. A expressão era exatamente a mesma.

— Talvez tal nunca venha a acontecer —disse Caramon asperamente — Já alguma veztinha pensado nisso, minha linda senhora?

— Sim — replicou Tika com firmeza —Já pensei nisso. Adeus, Caramon.

Virando as costas ao marido, Tika dirigiu-se à porta da casa e fechou-a. Tas ouviu o ferro-lho sendo fechado. Caramon também ouviu erecuou perante o som. Cerrou os enormes pu-

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nhos e, por instantes, Tas receou que ele fossederrubar a porta. Depois, as mãos dele voltaramao normal. Irritado e tentando recuperar a digni-dade abalada, Caramon desceu do portal.

— Hei de mostrar-lhe — murmurou, aopartir com a armadura estalando e rangendo —Voltarei dentro de três ou quatro dias com essaLady Crysle-não-sei-o-quê. Depois falaremossobre os acontecimentos de hoje. Não pode mefazer isto! Não, por todos os deuses! Três, qua-tro dias, e há de suplicar para que eu venha paracasa. Mas talvez venha, ou talvez não...

Tas ficou imóvel, sem saber o que fazer.Atrás dele, no interior da casa, os seus bons ou-vidos de kender escutavam soluços dilacerantes.Sabia que Caramon, no meio das suas própriaslamúrias e enfiado na armadura nada conseguiaouvir. Mas, o que poderia ele fazer?

— Eu cuido dele, Tika! — gritou Tas, a-garrando em Bupu e apressando-se a seguir ogrande homem. Tas suspirou. De todas as aven-turas em que participara, esta era, certamente, aque começava pior.

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CAPÍTULO 5

Palanthas: a lendária cidade da beleza.Cidade que voltou as costas ao mundo e que mira

agora, com olhos de admiração, o seu próprio espelho.“Quem a descrevera assim?” Refletia Kiti-

ara, sentada às costas do seu dragão azul, Skie, aovoar com as muralhas da cidade à vista. O faleci-do e não chorado grão-lorde do dragão Ariakas,talvez. Soava a algo realmente pretensioso, a algoque ele diria. Mas Kit viu-se forçada a admitirque ele tinha razão em relação aos palanthianos.Ficaram tão aterrorizados ao ver a sua adoradacidade arruinada que negociaram uma paz emseparado com os grão-lordes. Tal só aconteceupouco antes da guerra terminar, quando era ób-vio que já não tinham nada a perder, unindo-se

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relutantemente aos outros para combater o po-der da Rainha das Trevas.

Graças ao sacrifício heróico dos cavaleirosde Solamnia, a cidade de Palanthas fora poupadaà destruição que caíra sobre outras cidades, taiscomo Solace e Tarsis. Kit, voando ao alcance dasflechas disparadas das muralhas, sorriu desde-nhosamente. Agora, e mais uma vez, Palanthasvoltara os olhos para o seu espelho, servindo-sedo novo influxo de prosperidade para melhoraro seu já lendário encanto.

Ao pensar nisto, Kitiara riu-se em voz altaao reparar na agitação nas muralhas da velha ci-dade. Há dois anos que um dragão azul não so-brevoava as muralhas. Podia imaginar o caos, opânico. Vagamente, no tranqüilo ar da noite, po-dia escutar o bater dos tambores e o chamamen-to claro dos clarins.

Também Skie podia escutar. O seu sangueagitou-se com os sons da guerra, e voltou umolho vermelho para Kitiara, rogando-lhe que re-considerasse.

— Não, meu animalzinho — afirmou Ki-tiara, estendendo a mão para lhe acariciar o pes-coço — Agora não é a hora! Mas, em breve... setivermos sucesso! Dentro em breve, prometo-te!

Skie viu-se forçado a contentar-se com is-so. Contudo, sentiu uma certa satisfação ao lan-çar uma nuvem de raios das mandíbulas abertas,escurecendo a muralha de pedra ao elevar-se,mantendo-se apenas fora do alcance das setas.As tropas dispersaram como formigas ao vê-lo

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aproximar-se, invadidos pelo receio dos dragões.Kitiara voou lenta e ociosamente. Nin-

guém se atrevia a tocar nela; existia um estado depaz entre os seus exércitos de Sanction e os pa-lanthianos, embora alguns cavaleiros tentassempersuadir os povos livres de Ansalon a unirem-see a atacarem Sanction, para onde Kitiara se reti-rara depois da guerra. Mas os palanthianos nãopodiam ser incomodados. A guerra terminara e otratado ficara sem efeito.

— E, em cada dia que passa, a minha for-ça e poder aumentam — disse Kit para eles aosobrevoar a cidade, reparando em tudo, armaze-nando-o na sua mente para futura referência.

Palanthas está construída como uma roda.Todos os edifícios importantes, o palácio do lor-de reinante, os departamentos governamentais eas antigas casas dos nobres, localizam-se no cen-tro. A cidade desenvolve-se a partir deste núcleo.No círculo seguinte, erguem-se as casas dos a-bastados homens das guildas, os “novos” ricos, eas casas de Verão daqueles que vivem fora dasmuralhas da cidade. Aqui ficam também os cen-tros educativos, incluindo a grande biblioteca deAstinus. Por fim, junto das muralhas da velhacidade, a praça do mercado e lojas de todos ostipos.

Oito largas avenidas estendem-se a partirdo centro da velha cidade, como raios de umaroda. Há árvores ao longo destas avenidas, árvo-res encantadoras, cujas folhas são como rendadourada ao longo de todo o ano. As avenidas

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conduzem ao porto do mar, ao norte, e aos seteportões da muralha da grande cidade.

Rodeando a muralha, Kit avistou a novacidade, construída exatamente como a velha ci-dade, com o mesmo padrão circular. Não exis-tem muralhas à volta da nova cidade, uma vezque as muralhas “desvalorizam o projeto geral”,tal como afirmou um dos lordes.

Kitiara sorriu. Não via onde estava a bele-za da cidade. As árvores não tinham qualquersignificado para ela. Podia olhar de cima, para asmaravilhas dos sete portões, sem sentir nenhumaemoção; bem, talvez um pouco. “Como seriafácil de capturar”, pensou com um suspiro.

Houve ainda dois edifícios que lhe desper-taram a atenção. Um estava a ser construído nocentro da cidade, um templo, dedicado a Paladi-ne. O outro edifício era o local para onde se diri-gia. E, sobre este, o seu olhar repousou pensati-vamente.

Erguia-se do solo, fazendo tal contrastecom a beleza da cidade ao seu redor que até oolhar frio e insensível de Kitiara o notou. Ele-vando-se das sombras que o cercavam como oosso de um dedo descorado, tinha uma fealdadeescura e retorcida, tanto mais horrível quanto,outrora, devia ter constituído o edifício maismagnífico de Palanthas: a antiga Torre da AltaFeitiçaria.

As sombras cercavam-na de dia e de noi-te, dado que era guardada por um bosque de e-normes carvalhos, as maiores árvores que cresci-

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am em Krynn e as mais faladas, com terror, portoda a gente. Ninguém podia saber com absolutacerteza, porque não havia ninguém, mesmo daraça kender, cujos elementos poucas coisas recei-am neste mundo, que pudesse andar por entre astrevas pavorosas destas árvores.

— O bosque de Shoikan — murmurouKitiara para um companheiro invisível — Ne-nhum ser vivente, seja de que raça for, se atrevea entrar lá. Pelo menos até ele chegar: o mestre dopassado e do presente — Se proferiu estas palavrascom escárnio na voz, foi um escárnio que sedesvaneceu quando Skie começou a circular cadavez mais perto daquele retalho de trevas.

O dragão azul pousou nas ruas desertas eabandonadas perto do bosque de Shoikan. Kitesforçara-se por conseguir que Skie a levasse porcima do bosque até à própria torre. Mas Skie,embora fosse capaz de derramar o seu sangueaté à última gota pela sua senhora, recusou-se afazê-lo. Estava para além do seu poder. Nenhumser mortal, nem mesmo um dragão, conseguiaentrar naquele anel amaldiçoado de guardiões decarvalhos.

Skie olhou o bosque com ódio, os olhosvermelhos ardendo, enquanto as patas raspavamnervosas o pavimento de pedras. Deveria ter evi-tado que a sua senhora entrasse, mas já conheciaKitiara. Uma vez que estivesse empenhada numacoisa, nada podia detê-la. Assim, Skie envolveuas grandes e coriáceas asas em redor do corpo eobservou a bonita cidade, enquanto a sua mente

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pensava com prazer em chamas, fumaça e morte.Kitiara desmontou lentamente da sela do

dragão. A lua prateada, Solinari, era uma cabeçapálida e severa no céu. A sua gêmea, a lua verme-lha de Lunitari, mal acabara de subir e reluziaagora no horizonte como o pavio de uma velaem extinção. A luz suave de ambas as luas refle-tia-se na armadura à escala de dragão de Kitiara,dando-lhe uma cor fantasmagórica semelhanteao sangue.

Kit estudou o bosque com atenção, deuum passo na sua direção e depois estacou, ner-vosa. Atrás dela, escutou um ruído: as asas deSkie que procurava alertá-la.

— Vamos fugir deste lugar de maldição, senho-ra! Fujamos enquanto temos vida!

Kitiara engoliu em seco. Tinha a línguaseca e inchada. Os músculos do estômago con-traíam-se dolorosamente. Recordações vivas dasua primeira batalha regressaram-lhe à memória.Lembrou-se da primeira vez que enfrentara uminimigo e soubera que tinha de matar aquelehomem ou ela própria morreria. Depois entrega-ra-se à conquista com o manejo hábil da sua es-pada. Mas, isto?

— Tenho andado por muitos locais detrevas por esse mundo fora — disse Kit para asua companhia invisível, numa voz profunda ebaixa —, e nunca conheci o medo. Mas não con-sigo entrar aqui.

— Levanta bem na sua mão a jóia que elete deu — disse-lhe o companheiro, materializan-

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do-se na noite — Os guardiões do bosque fica-rão impotentes para te molestar.

Kitiara olhou para o denso anel de árvoresaltas. Os seus ramos, vastos e difusos, bloquea-vam a penetração da luz das luas e estrelas à noi-te, e do sol, de dia. Em redor das raízes, a noiteera perpétua. Nenhuma brisa suave tocava nosseus braços velhos, nenhum vento forte agitavaos grandes membros. Dizia-se que, mesmo du-rante os dias horríveis que antecederam o Cata-clismo, quando tempestades como nunca antestinham sido sentidas em Krynn varreram a terra,só as árvores do bosque de Shoikan não verga-ram à ira dos deuses.

Mas, mais aterrorizador do que a sua es-curidão eterna, era o eco da vida eterna que pul-sava dentro dele. Vida eterna, miséria e tormentoeternos...

— A minha cabeça acredita no que diz —respondeu Kitiara, estremecendo —, mas não omeu coração, Lorde Soth.

— Nesse caso, volta atrás — retorquiu ocavaleiro da morte, encolhendo os ombros —Mostra-lhe que o mais poderoso grão-lorde doDragão do mundo é um covarde.

Kitiara fitou Soth através das ranhurasoculares do capacete de dragão. Os seus olhoscastanhos reluziram e a sua mão cobriu, numespasmo, o punho da sua espada. Soth retribuiu-lhe o olhar, a chama cor-de-laranja brilhando nosglobos oculares em medonho escárnio. E, se osolhos dele riam dela, o que revelariam os olhos

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dourados do mago? Não seria riso, mas triunfo!Comprimindo fortemente os lábios, Kitia-

ra levou a mão à corrente que tinha ao pescoço,onde pendia o amuleto que Raistlin lhe enviara.Agarrando na corrente, deu-lhe um esticão rápi-do e soltou-a facilmente. Colocou então a jóia namão enluvada.

Negra como o sangue dos dragões, a jóiaera fria ao toque, irradiando uma corrente de arfrio mesmo através das pesadas luvas de couro.Sem ser polida, sem ser bonita, pesava na suapalma.

— Como podem vê-la os guardiões? —inquiriu Kitiara, fazendo incidir nela a luz dasluas — Veja, não brilha nem cintila. Parece que aúnica coisa que tenho na mão é um pedaço decarvão.

— Não pode ver a lua que brilha sobre ajóia da noite, o mesmo acontecendo com toda agente, com exceção daqueles que a idolatram —replicou Lorde Soth — Esses, e os mortos que,como eu, foram condenados à vida eterna. Nóspodemos vê-la! Para nós, o seu brilho é mais in-tenso do que qualquer outra luz no céu. Levanta-a bem alto, Kitiara, levanta-a bem e avança. Osguardiões não te farão parar. Retira o capacete,para que possam ver o seu rosto e a luz da jóiarefletida nos seus olhos.

Kitiara hesitou longamente. Depois, pen-sando no riso de escárnio de Raistlin ecoandonos ouvidos, o grão-lorde do Dragão retirou dacabeça o capacete de dragão com chifres. Per-

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maneceu imóvel, olhando em redor. Nenhumvento lhe agitou os caracóis negros. Sentiu suo-res frios deslizarem pela testa. Irritada, passou aluva pela face, a fim de removê-lo. Atrás dela,podia ouvir o dragão em lamúria, um som estra-nho, como nunca ouvira a Skie. A sua determi-nação vacilou. A mão que segurava a jóia estre-meceu.

— Eles alimentam-se do medo, Kitiara —disse Lorde Soth suavemente — Eleva a jóiabem alto, deixa que eles a vejam refletida nosseus olhos!

Mostra-lhe que é uma covarde! Essas palavrasecoavam na sua cabeça. Agarrando na jóia danoite e erguendo-a bem acima da cabeça, Kitiarapenetrou no bosque de Shoikan.

As trevas desceram, caindo tão repenti-namente sobre ela que Kitiara pensou, por ummomento horrível e paralisante, que tinham ce-gado-a. Só a visão dos olhos flamejantes de Lor-de Soth reluzindo no rosto pálido e esquelético atranqüilizou. Esforçou-se por permanecer calma,deixando que o momento debilitante de medo sedesvanecesse. Reparou então, pela primeira vez,que uma luz brilhava da jóia. Era uma luz in-comparável a qualquer outra que já tivesse visto.Não iluminava tanto as trevas que permitisse aKitiara distinguir tudo o que vivia dentro da es-curidão a partir da própria escuridão.

Através do poder da jóia, Kitiara conse-guiu começar a vislumbrar os troncos das árvo-res vivas. Avistava agora um caminho que se

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formava aos seus pés. Como um rio de noite,fluía em direção às árvores e teve a estranha sen-sação de flutuar ao longo dele.

Fascinada, observou os seus pés move-rem-se, transportando-a para frente sem a suaintervenção. O bosque tentara mantê-la afastada,compreendeu, horrorizada. Agora, arrastava-apara dentro dele!

Desesperadamente, esforçou-se por recu-perar o controle do seu próprio corpo. Por fim,ganhou, ou foi essa a sua impressão. Pelo menos,deixou de se mover. Mas, agora, nada podia fa-zer a não ser permanecer imóvel naquelas trevasmovediças e tremer, o corpo abalado por espas-mos de medo. Os ramos estalaram por cima de-la. Folhas roçaram-lhe o rosto. Freneticamente,Kit tentou afastá-las, mas depois parou. O toquedelas era frio, mas não desagradável. Era quasecomo uma carícia, um gesto de respeito. Forareconhecida, tomada como um deles. De imedia-to, Kit viu-se senhora de si mesma de novo. Er-guendo a cabeça, obrigou-se a olhar para o ca-minho.

Não se movia. Tal fora uma ilusão criadapelo seu próprio terror. Kit sorriu severamente.Até as próprias árvores se movimentavam! Des-viavam-se do caminho para a deixarem passar. Aconfiança de Kitiara aumentou. Seguiu pelo ca-minho com passos firmes e chegou a voltar-separa olhar, com ar triunfante, para Lorde Soth,que caminhava alguns passos atrás dela. Contu-do, o cavaleiro da morte parecia não reparar ne-

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la.— Está prestes a comunicar com os espí-

ritos seus companheiros — disse Kit para simesma com um riso que se transformou, subi-tamente, num grito de verdadeiro terror.

Algo lhe agarrara o tornozelo! Um frio degelar os ossos penetrava lentamente no seu cor-po, transformando o seu sangue e nervos emgelo. A dor era intensa. Gritou com o sofrimen-to. Agarrando-se à perna, Kitiara viu o que a ti-nha apertado: uma mão branca! Erguendo-se dosolo, os dedos ossudos envolviam firmemente oseu tornozelo. Sugava-lhe a vida, apercebeu-seKit, sentindo todo o calor do seu corpo apagar-se. Então, horrorizada, viu o pé começar a desa-parecer no solo lodoso.

O pânico varreu-lhe a mente. Frenetica-mente, deu pontapés na mão, tentando quebraro seu aperto de gelo. Mas esta prendia-a comforça e não tardou que uma outra mão se ergues-se do caminho negro e lhe agarrasse o outro tor-nozelo. Gritando de terror, Kitiara perdeu o e-quilíbrio e estatelou-se no chão.

— Não deixe cair a jóia — disse-lhe a vozsem vida de Lorde Soth —, senão eles arrastam-te para debaixo da terra!

Kitiara segurou bem na jóia, agarrando-ana mão ao mesmo tempo em que lutava e secontorcia, tentando escapar ao aperto mortal quea arrastava lentamente para baixo, para partilharda sua sepultura.

— Ajude-me! — gritou, ao mesmo tempo

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que o seu olhar confuso de terror procurava So-th.

— Não posso — respondeu o cavaleiroda morte, sombriamente — A minha magia nãofunciona aqui. A força da sua própria vontade étudo o que pode te salvar agora, Kitiara. Lem-bre-se da jóia...

Por momentos, Kitiara permaneceu imó-vel, estremecendo com o toque gelado. Então, aira trespassou-lhe o corpo. “Como se atreve ele afazer isto a mim!”, pensou, vendo mais uma vezos olhos dourados de escárnio gozando de suatortura. A irritação dissolveu o frio do medo efez desaparecer o pânico. Já estava calma. Sabiao que tinha que fazer. Lentamente, foi se er-guendo do solo lodoso. Depois, fria e delibera-damente, baixou a jóia até à mão esquelética e,estremecendo, tocou com ela na carne pálida.

Uma imprecação abafada ressoou das pro-fundezas do solo. A mão agitou-se, libertou otornozelo e deslizou de volta para as folhas apo-drecidas.

Rapidamente, Kitiara tocou com a jóia naoutra mão que a agarrava. Também esta desapa-receu. O grão-lorde do Dragão pôs-se de pé eolhou em redor. Depois ergueu a jóia no ar.

— Vêem isto, suas criaturas amaldiçoadasde morte viva? — gritou, de forma penetrante— Vocês não me impedirão! Passarei! Estão meouvindo? Passarei!

Não obteve resposta. Os ramos deixaramde estalar, as folhas permaneceram imóveis. De-

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pois de escoar mais alguns momentos de silên-cio, de jóia na mão, Kitiara prosseguiu a sua ca-minhada, amaldiçoando Raistlin entre dentes.Sentia a presença de Lorde Soth próximo dela.

— Já não falta muito — disse ele — Maisuma vez, Kitiara, foi digna da minha admiração.

Kitiara não respondeu. A ira tinha desapa-recido, deixando um buraco vazio no seu estô-mago, que se voltava a encher rapidamente commedo. Não confiava nela própria para falar. Mascontinuou andando, os olhos fitando severamen-te o caminho na sua frente. Em toda a sua volta,podia avistar os dedos escavando através do so-lo, buscando a carne viva que simultaneamentedesejavam e odiavam. Rostos pálidos e encova-dos miravam-na por entre as árvores, coisas ne-gras e disformes esvoaçavam junto dela, enchen-do o ar frio e viscoso com um aroma putrefatode morte e decadência.

Mas, embora a mão enluvada que conti-nha a jóia tremesse, nunca hesitou. Os dedossem carne não conseguiram detê-la. Os rostos debocas abertas bramiam em vão pelo seu sanguequente. Lentamente, os carvalhos continuavamafastando-se perante Kitiara, os ramos abrindo-se para lhe permitir a passagem.

Ali, no fim do caminho, estava Raistlin.— Devia matar-te, seu grande filho da

mãe! — afirmou Kitiara por entre os lábios en-torpecidos, a mão no punho da espada.

— Também estou extremamente feliz porte ver, minha irmã — replicou Raistlin na sua

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voz suave.Era a primeira vez que o irmão e a irmã se

viam desde há dois anos. Agora que se encontra-va fora das trevas das árvores, Kitiara conseguiuavistar o irmão, sob a luz pálida de Solinari. Rais-tlin usava vestes do melhor veludo preto. Pen-dendo dos seus ombros finos e levemente cur-vados, caíam em suaves pregas em redor do cor-po magro. Costurados no capuz que lhe cobria acabeça, estavam símbolos prateados; o seu rostopermanecia nas sombras, com exceção dos olhosdourados. O símbolo maior localizava-se no cen-tro: uma ampulheta. Outros símbolos prateadosreluziram à luz das luas, nos punhos das mangaslargas e cheias. Apoiou-se ao seu bastão de Ma-gius, o seu cristal, que só refletia a luz com ocomando de Raistlin, negro e frio, esculpidonuma garra dourada de um dragão.

— Devia matar-te! — repetiu Kitiara e,antes de se aperceber bem do que fizera, lançouum olhar ao cavaleiro da morte, que pareceu ad-quirir forma no meio das trevas do bosque. Nãofoi um olhar de comando mas de convite, umdesafio não expresso.

Raistlin sorriu, o sorriso raro que poucostinham visto. Ficou, no entanto, perdido nassombras do seu capuz.

— Lorde Soth — disse voltando-se paracumprimentar o cavaleiro da morte.

Kitiara mordeu o lábio quando os olhosde ampulheta de Raistlin estudaram a armadurado cavaleiro não morto. Ali estavam ainda gra-

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vados os símbolos de um cavaleiro de Solamnia(a Rosa, o Pica-Peixe e a Espada), mas estavamtodos enegrecidos como se a armadura tivessesido queimada.

— Cavaleiro da Rosa Negra — prosse-guiu Raistlin —, que morreu em chamas no Ca-taclismo antes da maldição da donzela duendeque você enganou ao ter arrastado para uma vidaamarga.

— Essa é a minha história — disse o ca-valeiro da morte sem se mover — E você é Rais-tlin, senhor do passado e do presente, o que foianunciado.

Ficaram os dois imóveis, olhando um parao outro, ambos se esquecendo de Kitiara que,sentindo o desafio silencioso e mortal entre osdois, se esqueceu da sua própria ira, sustendo arespiração para testemunhar o que iria acontecer.

— A sua magia é forte — comentou Rais-tlin. Um vento suave agitou os ramos dos carva-lhos e acariciou as pregas negras das vestes domago.

— Sim — respondeu Lorde Soth calma-mente — Posso matar com uma única palavra.Posso lançar uma bola de fogo para o meio dosmeus inimigos. Comando um esquadrão de es-queletos guerreiros que podem destruir com umsimples toque. Posso criar uma parede de gelopara proteger aqueles a quem sirvo. O invisível édiscernível aos meus olhos. Feitiços vulgares nãoresultam na minha presença.

Raistlin anuiu, as pregas do seu capuz

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movendo-se suavemente.Lorde South fitou o mago sem falar. Ca-

minhando na direção de Raistlin, parou apenas aalguns centímetros do frágil corpo do mago. Arespiração de Kitiara acelerou-se.

Depois, com um gesto cortês, o amaldiço-ado Cavaleiro de Solamnia colocou a mão sobrea parte da sua anatomia que contivera o seu co-ração.

— Mas, curvo-me com reverência na pre-sença de um mestre — disse Lorde Soth.

Kitiara mastigou o lábio, lançando umaexclamação. Raistlin olhou para ela rapidamente,com escárnio brilhando nos seus olhos douradosde ampulheta.

— Desapontada, querida irmã?Mas Kitiara estava já acostumada aos ven-

tos de mudança do destino. Analisara o inimigoe descobrira o que necessitava de saber. Podiaagora levar avante a sua batalha.

— Claro que não, irmãozinho — respon-deu ela com um sorriso que muitos achavam en-cantador — Afinal, foi a você que vim visitar.Há muito que não nos víamos. Está com bomaspecto.

— Ah, isso estou, querida irmã — disseRaistlin. Avançando, pousou a pequena mão so-bre o braço dela. Kitiara sobressaltou-se com otoque: a carne dele estava quente, como se esti-vesse ardendo em febre. Mas, reparando nos o-lhos atentos com que ele a observava, notandocada uma das suas reações, não vacilou. Ele sor-

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riu.— Passou tanto tempo desde a última vez

que nos vimos. Dois anos, não foi? Na verdade,faz agora na Primavera dois anos — continuou,em tom de conversa ocasional, mantendo o bra-ço de Kitiara sob a sua mão. A sua voz estavacheia de ironia — Foi no templo da Rainha dasTrevas, em Neraka, aquela noite fatal em que aminha rainha encontrou a sua perdição e foi ba-nida do mundo...

— Muito obrigada pela sua traição — dis-se Kitiara rudemente, tentando, sem sucesso,libertar-se do aperto dele. Raistlin mantinha amão sobre o braço de Kitiara. Embora fossemais alta e forte do que o frágil mago, e pare-cendo ser capaz de parti-lo em dois só com umgolpe de mãos, Kitiara, mesmo assim, desejavaintensamente afastar-se daquele toque ardente,mas não se atreveu a mover-se.

Raistlin riu e, arrastando-a com ele, con-duziu-a para os portões exteriores da Torre deAlta Feitiçaria.

— Vamos falar de traição, querida irmã?Não ficou delirante quando utilizei a minha ma-gia para destruir o escudo de proteção de LordeAriakas, fornecendo a Tanis Semiduende a opor-tunidade de enfiar a espada no corpo do seu se-nhor e amo? Não fui eu quem, com essa ação, tetornou no mais poderoso grão-lorde do dragãode Krynn?

— De grande coisa me serviu! — retor-quiu-lhe Kitiara, amargamente — Quase fui

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mantida prisioneira em Sanction pelos cavaleirosde Solamnia, que cercam o território por todosos lados! Guardada noite e dia por dragões dou-rados, cada movimento controlado. Os meusexércitos dispersaram-se, vagueando pelo país...

— Contudo, veio até aqui — disse Rais-tlin simplesmente — Os dragões dourados im-pediram-te? Os cavaleiros sabem que partiu?

Kitiara parou no caminho que conduzia àtorre, fitando o irmão com espanto.

— Foi obra sua?— Claro! — Raistlin encolheu os ombros

— Mas falaremos sobre estas questões mais tar-de, querida irmã — afirmou, enquanto cami-nhavam — Está com frio e com fome. O bos-que de Shoikan mexe com os nervos dos maisaudaciosos. Só uma outra pessoa passou comsucesso através dos seus limites, com o meu au-xílio, obviamente.

Esperava que se saísse bem, mas devoadmitir que fiquei um pouco surpreendido com acoragem de Lady Crysania...

— Lady Crysania! — repetiu Kitiara, a-tordoada — Uma Venerável Filha de Paladine!Permitiu a entrada dela... aqui?

— Não só permiti a entrada dela como aconvidei a vir aqui — respondeu Raistlin imper-turbável — Sem esse convite e um amuleto,nunca teria passado.

— E ela veio?— Oh, e com bastante ansiedade, devo

dizer-te — Foi a vez de Raistlin parar. Permane-

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ciam à entrada da Torre de Alta Feitiçaria. A luzdos archotes proveniente das janelas incidiu noseu rosto. Kitiara pôde vê-lo claramente. Os lá-bios estavam retorcidos num sorriso, os seusolhos planos e dourados reluziam frios e frágeiscomo a luz de um sol de Inverno — Com bas-tante ansiedade — repetiu, suavemente.

Kitiara começou a rir.Mais tarde, nessa noite, depois de as duas

luas terem desaparecido no céu, nas horas aindaescuras que antecediam o amanhecer, Kitiaraencontrava-se sentada no estúdio de Raistlin, umcopo de vinho tinto nas mãos, as sobrancelhasfranzidas.

O estúdio era confortável, ou pelo menosassim parecia. Havia cadeiras largas do melhormaterial e requintada construção sobre carpetesde lã fabricadas à mão, que só as pessoas maisabastadas de Krynn tinham posses para adquirir.Estava decorado com pinturas em tela de extra-vagantes bestas e flores coloridas que desperta-vam a atenção, tentando o observador a perder-se por longas horas na sua beleza. Aqui e ali, me-sas de madeira esculpidas, objetos raros e lindos,ou raros e espectrais, ornamentavam a divisão.

Mas a sua característica predominante e-ram os livros. A toda a volta existiam prateleirasfundas de madeira, com centenas e centenas delivros. Muitos tinham uma aparência muito se-melhante, todos encadernados a azul-escuro, de-corados com símbolos em prata. Era uma salaconfortável, mas apesar de um lume que ardia

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numa enorme lareira numa das extremidades doestúdio, havia no ar um frio que fazia estremeceros ossos. Kitiara não estava muito certa, mastinha a sensação que esse ar frio provinha doslivros.

Lorde Soth manteve-se bem longe da luzda fogueira, oculto nas sombras. Kit não podiavê-lo, mas tinha a percepção da sua presença, omesmo acontecendo com Raistlin. O mago en-contrava-se sentado em frente da meia-irmã,numa enorme cadeira por detrás de uma gigan-tesca mesa de madeira negra, esculpida de formatão hábil que as criaturas que a decoravam pare-ciam observar Kitiara com os seus olhos de ma-deira.

Sorrindo desconfortavelmente, bebeu ovinho, muito depressa. Embora estivesse acos-tumada a bebidas fortes, começava a sentir-setonta e detestava essa sensação. Significava queestava perdendo o controle. Irritada, arremessouo copo para longe dela, determinada a não bebermais.

— Esse seu plano é de doidos! — disse aRaistlin, irritada. Não lhe agradando sentir osseus olhos dourados sobre ela, Kitiara ergueu-see começou a andar pelo estúdio — Não faz sen-tido! Uma perda de tempo. Com a sua ajuda,poderíamos governar Ansalon, você e eu. Naverdade...

— Kitiara voltou-se repentinamente, orosto aceso de impetuosidade —, com o seu po-der poderíamos governar o mundo! Não preci-

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samos de Lady Crysania ou do nosso desajeitadoirmão...

— Governar o mundo — repetiu Raistlinsuavemente, com os olhos em fogo — Governaro mundo? Continua sem compreender, não é,querida irmã? Deixe-me esclarecer da forma maisclara que conseguir — Foi agora a sua vez de selevantar. Comprimindo as pequenas mãos sobrea mesa, inclinou-se para ela, como uma cobra —Pouco me interessa o mundo! — disse, suave-mente — Poderia governá-lo amanhã, se dese-jasse! Não quero.

— Não quer o mundo — Kit encolheu osombros, a voz azeda de sarcasmo — Nesse caso,só resta...

Kitiara quase mordeu a língua. Fitou Rais-tlin em interrogação. Nas sombras do estúdio, osolhos flamejantes de Lorde Soth reluziram deforma mais brilhante do que o próprio fogo.

— Agora compreende — Raistlin sorriude satisfação e voltou a sentar-se — Vê agora aimportância desta Venerável Filha de Paladine!Foi o destino quem a trouxe a mim, precisamen-te quando se aproximava a altura da minha via-gem.

Kitiara só conseguiu olhar para ele, horro-rizada. Por fim, encontrou a voz.

— Como... como pode saber que ela teseguirá? Certamente que não contou a ela!

— Apenas o suficiente para plantar a se-mente no peito dela — Raistlin sorriu, pensandonesse encontro. Recostando-se, levou os dedos

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magros aos lábios — A minha representação foi,muito honestamente, espetacular. Falei com relu-tância, as palavras retiradas de mim pela bondadee pureza dela. Foram saindo, manchadas de san-gue, e ela era minha... perdida devido à sua pró-pria piedade — Voltou ao presente, repentina-mente — Ela virá — disse, com frieza, inclinan-do-se novamente para a frente — Ela e aqueleidiota do meu irmão. Ele me servirá sem qual-quer propósito, é claro. Mas, também, é assimque ele faz tudo.

Kitiara levou a mão à cabeça, sentindo osangue pulsar. Não era efeito do vinho, estavaagora completamente sóbria. Era fúria e frustra-ção. “Ele poderia ajudar-me!”, pensou, irritada.É realmente tão poderoso quanto dizem. Aindamais! Mas é perfeitamente doido. Perdeu o juí-zo... Depois, espontaneamente, uma voz faloupara ela de algum lugar no seu íntimo: “E se elenão estiver doido? E se ele realmente pretendeavançar com isto?”

Friamente, Kitiara ponderou o plano dele,considerou-o cuidadosamente de todos os ângu-los. O que viu horrorizou-a. Ele não poderia ga-nhar! E, o que era pior, a arrastaria com ele!

Estes pensamentos passaram rapidamentepela mente de Kit, e nenhum deles foi reveladono seu rosto. Na verdade, o seu sorriso intensifi-cou-se. Muitos foram os homens que morreramtendo, como última visão, esse sorriso.

Raistlin poderia estar considerando issoquando olhou para ela intensamente.

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— Pode escolher o lado da vitória paravariar, minha irmã.

A convicção de Kitiara vacilou. Se ele con-seguisse concretizar o plano, isso representaria aglória! Glória! Krynn seria dela.

Kit olhou para o mago. Há vinte e oitoanos ele não passava de um bebê recém-nascido,doente e fraco, um frágil sósia do seu forte e ro-busto irmão gêmeo.

— Ele que morra. Será o melhor, a longoprazo — dissera a parteira. Nessa altura, Kitiaraera uma adolescente. Aterrorizada, ouvira a mãeconcordar, chorando.

Mas Kitiara recusara. Algo dentro delarespondera ao desafio. O bebê havia de viver!Ela faria com que ele vivesse, quer ele quisesseou não. “A minha primeira luta”, costumava di-zer orgulhosa às pessoas, “foi com os deuses. Eganhei!”

E agora! Kitiara estudou-o. Viu o homem.Viu, na sua mente, aquele frágil bebê. Abrupta-mente, virou-se.

— Tenho que regressar — afirmou, cal-çando as luvas.

— Contacte-me depois de voltar?— Se for bem sucedido, não haverá ne-

cessidade de te contactar — respondeu Raistlinsuavemente — Saberá!

Kitiara quase riu de escárnio, mas conte-ve-se rapidamente. Olhando para Lorde Soth,preparou-se para sair do estúdio.

— Então adeus, meu irmão — Embora

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controlada, não conseguiu evitar a expressão deira na voz — Lamento que não partilhe do meudesejo em relação às coisas boas desta vida! Pode-ríamos ter alcançado grandes feitos, você e eu!

— Adeus, Kitiara — disse Raistlin, a mãopequena solicitando a presença das formas som-brias daqueles que o serviam para que conduzis-sem os seus convidados à porta.

— Oh, a propósito — acrescentou, quan-do Kit já se encontrava prestes a sair —, devo-lhe a vida, querida irmã. Pelo menos foi o queme disseram. Só gostaria que soubesse que coma morte de Lorde Ariakas, que teria, sem dúvida,conseguido tirar-lhe a vida, considero a minhadívida paga. Não lhe devo nada!

Kitiara fitou os olhos dourados do mago,em busca de uma ameaça, uma promessa... o queseria? Mas nada encontrou. Absolutamente nada.Então, num instante, Raistlin proferiu uma pala-vra mágica e desapareceu da vista dela.

A saída do bosque de Shoikan não foi di-fícil. Os guardiões não queriam saber daquelesque deixavam a torre. Kitiara e Lorde Soth ca-minharam juntos, o cavaleiro da morte moven-do-se silenciosamente através do bosque, os seuspés não deixando qualquer marca sobre as folhasque jaziam mortas e apodreciam no solo. A Pri-mavera não chegava ao bosque de Shoikan.

Kitiara só falou quando alcançaram o pe-rímetro exterior das árvores e se encontraram nosólido pavimento de pedra da cidade de Palan-thas. O sol erguia-se, o céu passara do azul pro-

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fundo da noite para um cinzento-pálido. Aqui eali, passavam os palanthianos cujos negócios exi-giam que se levantassem cedo. Mais ao fundo darua, para lá dos edifícios abandonados que rode-avam a torre, Kitiara ouviu passos de marcha.Era o render da guarda na muralha. Encontrava-se de novo entre os vivos.

Respirou fundo e disse para Lorde Soth:— Ele tem que ser impedido.O cavaleiro da morte não fez qualquer

comentário. Não disse que sim nem que não.— Não será fácil, eu sei — disse Kitiara,

colocando o capacete de dragão na cabeça e ca-minhando apressadamente para Skie, que ergueraa cabeça em triunfo ao vê-la aproximar-se. Fa-zendo carinho no pescoço do seu dragão, Kitiaravirou-se para enfrentar o cavaleiro da morte.

— Mas não temos necessidade de nosconfrontarmos diretamente com Raistlin. O pro-jeto dele depende de Lady Crysania. É só tirá-lado caminho e o faremos parar. Na verdade, nemsequer precisará de vir a saber que tive algumacoisa a ver com isso. Muitos morreram ao tenta-rem penetrar na floresta de Wayreth. Não é ver-dade?

Lorde Soth concordou, os olhos ardentesreluzindo levemente.

— Você trata disso. Faça com que pareçaser... o destino — disse Kitiara — Aparentemen-te, o meu irmãozinho acredita nisso — Montouno dragão — Quando era pequeno, ensinei-lheque recusar-se a obedecer-me significava ser chi-

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coteado. Parece que precisa aprender a lição denovo!

Ao comando dela, as poderosas pernastraseiras de Skie afundaram-se no pavimento,estalando e partindo as pedras. Saltou para o ar,abriu as asas e penetrou no céu da manhã. Aspessoas de Palanthas sentiram uma sombra er-guer-se dos seus corações, mas foi tudo o queperceberam. Poucos foram os que viram o dra-gão, ou quem o montava, partir.

Lorde Soth permaneceu junto do limitedo bosque de Shoikan.

— Também eu acredito no destino, Kitia-ra — murmurou o cavaleiro da morte — O des-tino é o próprio homem quem o faz.

Olhando para cima, para as janelas daTorre de Alta Feitiçaria, Soth viu a luz extinguir-se da sala onde tinham estado. Por um breveinstante, a torre ficou envolta nas perpétuas tre-vas que pareciam pairar sobre ela, trevas essasque a luz do sol não conseguia penetrar. Então,uma luz acendeu, numa das divisões no alto datorre.

O laboratório do mago, a divisão escura esecreta onde Raistlin trabalhava com a sua magia.

— Quem irá ensinar a lição, pergunto amim mesmo? — murmurou Soth. Encolhendoos ombros, desapareceu, fundindo-se nas som-bras à medida que a luz do dia se aproximava.

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CAPITULO 6

— Vamos parar neste lugar — disse Ca-ramon, dirigindo-se para um edifício quase emruínas que se encontrava um pouco afastado docaminho, espreitando da floresta como uma fera— Talvez ela tivesse passado aqui.

— Ponho as minhas sérias dúvidas — a-firmou Tas, observando dubiamente o letreiroque pendia suspenso apenas por uma correia porcima da porta — A Cracked Mug não me parecepropriamente o local...

— Disparate — resmungou Caramon, talcomo resmungara mais vezes nesta viagem, detal forma que Tas perdera a conta —, ela temque comer. Mesmo as eclesiásticas de grandenível têm que comer. Ou talvez alguém aqui pre-

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sente tenha visto qualquer sinal dela no caminho.Nós não estamos com sorte.

— Não — murmurou Tasslehoff por en-tre dentes —, mas poderíamos ter mais sorte seprocurássemos na estrada e não em tabernas.

Andavam na estrada há já três dias, e asapreensões de Tas em relação a esta aventuratinham provado ser verdadeiras.

Regra geral, os kender são viajantes entusi-astas. Todos os kender se sentem atraídos pelodesejo de viajar quando rondam o seu vigésimoano. Nesta altura, partem alegremente para par-tes desconhecidas, com a única intenção de en-contrar aventura e quaisquer objetos belos, hor-ríveis ou curiosos, que possam, por mero acaso,cair nas suas algibeiras. Completamente imunes àemoção do medo, angustiados por uma curiosi-dade incansável, a população kender de Krynnnão era muito vasta, fato muito apreciado emtodo o Krynn.

Tasslehoff Burrfoot, que se aproximavaagora do seu trigésimo ano (pelo menos, tantoquanto se lembrava) era, na maioria dos aspec-tos, um kender típico. Viajara pelo continente deAnsolan, primeiro com os seus pais, antes deestes se instalarem definitivamente em Kende-rhome. Quando alcançou a idade própria, viajousozinho até conhecer Flint Fireforge, o anão fer-reiro e o seu amigo, Tanis Semiduende. Depoisde Sturm Brightblade, cavaleiro de Solamnia, eos gêmeos, Caramon e Raistlin, se terem juntadoa eles, Tas ficou envolvido na mais maravilhosa

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aventura da sua vida, a guerra de Lance.Mas, noutros aspectos, Tasslehoff não era

um kender típico, muito embora ele negasse sealguém mencionasse tal fato. A perda de duaspessoas de quem ele muito gostava, Sturm Bri-ghtblade e Flint, afetou profundamente o kender.Conhecera a emoção do medo, não o medo porsi, mas medo e preocupação por aqueles dequem gostava. A sua inquietação por Caramon,naquele preciso momento, era forte, e aumenta-va em cada dia que passava.

No início, a viagem fora divertida. Logoque Caramon ultrapassou a sua mágoa no respei-tante ao coração endurecido de Tika e à incapa-cidade do mundo em geral para compreendê-lo,bebera alguns tragos do frasco e sentira-se me-lhor. Depois de mais alguns tragos, começou acontar histórias sobre os dias em que prestouauxílio na perseguição de draconianos. Tas a-chou isto divertido e interessante. Embora tives-se de vigiar Bupu constantemente para não dei-xá-la ser atropelada por uma carroça ou entrarnuma poça de lama, gostou da manhã.

Quando a tarde chegou, já o frasco estavavazio, mas Caramon continuava de bom humor,prestando-se mesmo a escutar algumas das histó-rias de Tas, que o kender nunca se cansava de re-latar. Infelizmente, logo na melhor parte, quandoele escapava com o enorme mamute e os feiticei-ros lançavam relâmpagos contra ele, Caramondeparou com uma taberna.

— Vou só encher o frasco — disse e en-

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trou.Tas ia segui-lo quando viu Bupu fitando,

de boca aberta, a forja quente de ferreiro, do ou-tro lado da estrada. Compreendendo que ela po-deria queimar-se ou lançar fogo à cidade, ou asduas coisas, e sabendo que não a poderia levarpara a taberna (recusavam-se a servir anões bo-bos), Tas decidiu ficar cá fora a vigiá-la. Afinal,Caramon só ia demorar alguns minutos...

Duas horas mais tarde, o grande homemsaiu, com passos pouco firmes.

— Em nome do abismo, onde esteve? —inquiriu Tas, atirando-se a Caramon como umgato.

— Tomei apenas... apenas... — Caramonoscilava — uma para a... viagem.

— Estou empenhado numa busca! — gri-tou Tas, desesperado — A minha primeira bus-ca, que me foi confiada por uma pessoa impor-tante, que pode estar em perigo. E fiquei aquidetido por duas horas com um anão bobo! —Tas apontou para Bupu, que dormia numa vala— Nunca estive tão aborrecido, e você está en-charcado em bebida!

Caramon olhou para ele, com os lábioscerrados.

— Sabe uma coisa? — disse o enormehomem ao caminhar vacilante pela estrada —Começa a se parecer muito com Tika...

A partir daqui, as coisas começaram rapi-damente a correr mal.

Nessa noite, alcançaram a encruzilhada.

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— Vamos por aqui — disse Tas, apon-tando — Seguramente que Lady Crysania sabeque as pessoas vão tentar impedi-la. Há de tomaruma estrada pouco freqüentada para tentar en-ganar os seus perseguidores. Acho que devemostomar o mesmo caminho que seguimos há doisanos atrás, quando deixamos Solace...

— Disparate! — grunhiu Caramon — Éuma mulher e, para mais, uma eclesiástica. Deveter tomado o caminho mais fácil. Vamos porHaven.

Tas tivera as suas dúvidas em relação a es-ta decisão e as incertezas acabaram por trans-formar-se em certezas. Algumas milhas mais àfrente, chegaram a uma outra taberna.

Caramon entrou para descobrir se alguémvira uma pessoa que correspondesse à descriçãode Lady Crysania, deixando Tas, mais uma vez,com Bupu. Uma hora mais tarde o grande ho-mem apareceu, com o rosto corado e alegre.

— Então, alguém a viu? — inquiriu Tasirritado.

— Viu quem? Oh... ela. Não.E agora, dois dias depois, estavam apenas

a meio caminho de Haven. Mas o kender poderiater escrito um livro descrevendo as tabernas exis-tentes ao longo do percurso.

— Nos velhos tempos — fumegou Tas—, poderíamos ter ido e regressado a Tarsis le-vando este tempo!

— Nessa altura, era mais jovem e imaturo.O meu corpo amadureceu, e tenho que ir desen-

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volvendo a minha força — disse Caramon comarrogância —, pouco a pouco.

— Ele está desenvolvendo-se pouco apouco — disse Tas para si mesmo, severamente—, a força é que não!

Caramon não conseguia caminhar muitomais do que uma hora antes de se ver forçado asentar-se e a descansar. Por vezes, deitava-se nochão, gemendo de dor, com a transpiração co-brindo-lhe o rosto. Era preciso Tas, Bupu e ofrasco de bebida para o pôr de pé de novo. La-mentava-se amarga e continuamente. A armadu-ra provocava-lhe calor, tinha fome, o sol estavamuito quente, tinha sede. À noite, insistia queparassem numa estalagem reles. Tas desfrutavaentão do prazer de observar o grande homembeber até ficar inconsciente. Tas e o empregadoarrastavam-no depois para o quarto, onde dor-mia até ao meio da manhã.

Depois do terceiro dia (e da vigésima ta-berna) e ainda sem sinais de Lady Crysania, Tass-lehoff começava a pensar seriamente em regres-sar a Kenderhome, comprar uma casita jeitosa edespedir-se das aventuras.

Era perto de meio-dia quando chegaram àCracked Mug. Caramon desapareceu de imediatono interior. Recebendo um sinal que provinhados dedos dos pés, no interior dos seus sapatosnovos e verdes. Tas ficou junto de Bupu, olhan-do para o exterior do local degradado, em silên-cio severo.

-— Eu já não gostar disto — anunciou

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Bupu. Fitava Tas com ar acusador — Você dizerque nós encontrar homem bonito com vestesvermelhas. Tudo o que encontrar ser um bêbadogordo. Eu ir para casa, para Highbulp, Phudge I.

— Não, não vá embora! Ainda não! —gritou Tas desesperado — Havemos de encon-trar o... uh... homem bonito. Ou, pelo menos,uma mulher bonita que quer ajudar o homembonito. Talvez... talvez consigamos saber algumacoisa aqui.

Era óbvio que Bupu não acreditava nele.Nem o próprio Tas acreditava.

— Escuta — disse —, espera aqui pormim. Não devemos estar longe. Já sei, vou trazerqualquer coisa para comer. Promete que não vaiembora?

Bupu mordeu o lábio e olhou para Tasdesconfiada.

— Eu esperar — disse, sentando-se na es-trada lamacenta — Pelo menos até depois doalmoço.

Tas, com o queixo saliente espetado comfirmeza, seguiu Caramon para o interior da ta-berna. Ele e Caramon iam ter uma pequena con-versa...

Contudo, tal não foi necessário.— A vossa saúde, cavalheiros — disse

Caramon, erguendo um copo aos clientes deslei-xados que se reuniam no bar. Não havia muitos:um par de anões viajantes, sentados perto daporta, e um grupo de humanos, vestidos à guar-das-florestais, que levantaram as canecas, retribu-

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indo o brinde de Caramon.Tas sentou-se junto de Caramon, tão de-

primido que chegou a devolver uma bolsa que assuas mãos (sem que se apercebesse disso) retira-ram do cinto de um dos anões por quem passara.

— Penso que deixou cair isto — murmu-rou Tas, entregando-a ao anão, que o fitou sur-preendido.

— Andamos à procura de uma jovem se-nhora — disse Caramon, instalando-se para pas-sar a tarde. Recitou a descrição dela, tal como ofizera em cada taberna, desde que saíram de So-lace — Cabelo preto, baixa, delicada, rosto páli-do, vestes brancas. E uma ecle...

— Sim, nós a vimos — disse um dosguardas-florestais. A cerveja saltou da boca deCaramon.

— Viram? — conseguiu proferir, engas-gado. Tas empertigou-se.

— Onde? — inquiriu, ansiosamente.— Andava pelos bosques, a leste daqui —

disse o guarda, apontando o dedo.— Sim? — afirmou Caramon, com ar

desconfiado. — O que andavam vocês fazendopelos bosques?

— À caça de gnomos. Há uma recompen-sa por eles em Haven.

— Três moedas de ouro em troca de ore-lhas de gnomos — disse o amigo, com um sorri-so sem dentes —, se quiser tentar a sua sorte.

— E quanto à mulher? — inquiriu Tas.— Cá para mim, é doida — O homem

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abanou a cabeça.— Dissemos que as terras por ali estavam

cheias de gnomos e que não deveria continuarsó. Limitou-se a responder que estava nas mãosde Paladine, ou um nome qualquer assim, e queele cuidaria dela.

Caramon soltou um suspiro e levou a be-bida aos lábios.

— Não há dúvida que parece ser ela... Le-vantando-se, Tas retirou o copo da mão do e-norme homem.

— Que... — Caramon olhou para ele irri-tado.

— Vamos! — disse Tas, puxando por ele— Temos que partir! Muito obrigado pela ajuda— agradeceu, arrastando Caramon para a porta— Onde é que disse que a viu?

— A cerca de dez milhas a leste daqui.Encontram uma trilha nas traseiras da taberna.Parte da estrada principal. Sigam-na, e ela leva-osatravés da floresta. Costumava ser um atalho pa-ra Gateway, antes de ter se tornado muito peri-goso.

— Obrigado, mais uma vez! — Tas pu-xou Caramon, que continuava a protestar pelaporta fora.

— Que diabo, qual é a pressa? — rosnouCaramon irritado, libertando-se das mãos de Tas— Podíamos ao menos ter jantado...

— Caramon! — disse Tas agitado, quaseaos saltos.

— Pensa! Lembre-se! Não compreende

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onde ela está? Dez milhas a leste daqui! Vê... —Abrindo uma das suas algibeiras, Tas retirou umasérie de mapas. Apressadamente, passou a vistapor eles, deixando-os cair no chão com a pressa— Vê — repetiu finalmente, desenrolando um eatirando-o contra o rosto corado de Caramon.

O grande homem olhou para ele, tentan-do focar a visão.

— Huh?— Oh, por... Vê, aqui é onde estamos,

tanto quanto posso precisar. E aqui fica Haven,ainda a sul de nós. Deste lado fica Gateway. A-qui está a trilha a que eles se referiam e aqui... —o dedo de Tas apontou.

Caramon pestanejou.— Flor... flo... flo... floresta sombria. Pa-

rece-me familiar...— Claro que te parece familiar! Quase

morremos lá! — gritou Tas, acenando os braços— Foi preciso Raistlin para nos salvar...

Vendo Caramon franzir a sobrancelha,Tas apressou-se a continuar.

— E se ela anda por lá sozinha? — inqui-riu, em tom solícito.

Caramon fitou a floresta, os olhos turvosespreitando a trilha estreita e a vegetação densa.Franziu ainda mais a sobrancelha.

— Penso que está à espera que eu a impe-ça de ir — resmungou.

— Bom, naturalmente que temos que im-pedi-la! — começou Tas, mas depois parou —Nunca teve essa intenção — disse o kender sua-

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vemente, fitando Caramon — Desde o inícioque nunca pretendia ir atrás dela. Ia apenas pas-sar por aqui uns dias, tomar umas bebidas, rirum pouco e depois voltar para Tika, dizer-lheque era um autêntico falhado, partindo do prin-cípio que ela te recebia de volta, tal como é cos-tume...

— E então, o que esperavas que fizesse— disse Caramon, desviando-se do olhar repro-vador de Tas — Como posso eu ajudar esta mu-lher a encontrar a Torre de Alta Feitiçaria, Tas?— Começou a choramingar — Não a quero en-contrar! Jurei que nunca mais me aproximariadaquele lugar maldito! Eles destruíram-no lá,Tas. Quando saiu de lá, a pele dele tinha aquelaestranha cor dourada. Deram-lhe aqueles olhosamaldiçoados e tudo o que ele agora vê é morte.Destruíram-lhe o corpo. Não podia respirar semtossir. E obrigaram-no... obrigaram-no a matar-me! — Caramon sufocou e enterrou o rosto nasmãos, soluçando de dor e estremecendo de ter-ror.

— Ele... ele não te matou, Caramon —disse Tas, sentindo-se completamente indefeso— Tanis contou-me. Tratava-se apenas de umaimagem sua. E ele estava doente, amedrontado esofrendo bastante dentro de si. Não sabia o quefazia...

Mas Caramon limitou-se a abanar a cabe-ça. E o kender, comovido, não conseguia censurá-lo. “Não admira que não queira voltar lá”, pen-sou Tas com remorsos. Talvez fosse melhor le-

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vá-lo para casa. Nas condições em que está, nãoservirá certamente de grande ajuda a ninguém.Mas depois, Tas lembrou-se de Lady Crysania,completamente só, penetrando na floresta som-bria...

— Uma vez falei com um espírito —murmurou Tas —, mas não tenho certeza de quese lembrem de mim. E há gnomos por aí. Em-bora não tenha medo deles, não creio que mesaia muito bem lutando com mais de três ouquatro.

Tasslehoff sentia-se perdido. Se ao menosTanis estivesse ali! O semi-duende sabia sempreo que dizer, o que fazer. Faria com que Caramondesse ouvidos à razão. Mas Tanis não se encon-trava ali, proferiu uma voz austera dentro dokender que, por vezes, suspeitava parecer-se coma de Flint. Terá você mesmo que resolver o as-sunto!

Não quero ser eu a resolver o assunto! —respondeu fracamente Tas, aguardando uns ins-tantes para ver se a voz respondia. Não o fez.Estava só.

— Caramon — afirmou Tas, tornando asua voz o mais profunda possível e esforçando-se por imitar Tanis —, escuta, só vem conoscoaté o limite da floresta de Wayreth. Depois podeir para casa. Provavelmente ficaremos em segu-rança a partir daí...

Mas Caramon não o escutava. Afundadoem bebida e auto-compaixão, caiu no chão. En-costando-se a uma árvore, balbuciou coisas inco-

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erentes sobre horrores anônimos, implorando aTika que o recebesse de novo.

Bupu levantou-se e colocou-se na frentedo grande guerreiro.

— Eu ir — disse, com desprezo — Se euquiser bêbados gordos e chorosos, encontrarmuitos na minha terra — Ergueu a cabeça e co-meçou a percorrer a estrada. Tas correu atrásdela, apanhou-a e arrastou-a de volta.

— Não, Bupu! Não pode ir! Estamosquase lá! Subitamente, a paciência de Tasslehoffesgotou-se.

Tanis não estava ali. Não havia ninguémque pudesse ajudá-lo. Era exatamente como navez em que ele quebrara a orbe do dragão. Tal-vez a sua atuação não estivesse correta, mas era aúnica solução que antevia.

Tas aproximou-se de Caramon e deu-lheum pontapé nas canelas.

— Al! — gritou Caramon. Surpreendido,olhou para Tas, com uma expressão intrigada norosto — Para que fez isso?

Em resposta, Tas deu-lhe novo pontapé,com força. Rosnando, Caramon agarrou na per-na.

— Eh, até que enfim nos divertimos umpouco — disse Bupu. Correndo para frente comentusiasmo, bateu em Caramon na outra perna— Eu ficar agora.

O grande homem rugiu. Agitando os pés,fitou Tas.

— Raios, Burrfoot, se este é um dos seus

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jogos...— Não se trata de um jogo, seu grande

animal! — gritou o kender — Decidi enfiar algumjuízo nessa cabeça, nem que seja a pontapé, é sóisso! Estou farto das suas lamúrias! Tudo o quefez, todos estes anos, foi lamentar-se! O nobreCaramon, sacrificando tudo pelo seu ingrato ir-mão. Querido Caramon, pondo sempre Raistlinem primeiro lugar! Bem... talvez o fizesse e tal-vez não. Começo a pensar que sempre pôs Ca-ramon em primeiro lugar! E talvez Raistlin sou-besse, bem no seu íntimo, o que começo a per-ceber agora! Só o fez porque te fazia sentir bem!Raistlin não precisava de você, você é que preci-sava dele! Viveu a vida dele porque tinha muitomedo para viver a sua própria!

Os olhos de Caramon reluziram fervoro-samente, o rosto empalideceu de ira. Ergueu-selentamente, de punhos cerrados.

— Foi longe demais, seu desgraçado...— Fui? — Tas gritava, saltitando para ci-

ma e para baixo — Bem, escuta isto, Caramon!Anda sempre lamentando-se de que ninguémprecisa de você. Já alguma vez parou para pensarque Raistlin precisa mais de você do que jamaisprecisou? E Lady Crysania também necessita devocê! E aí está você, um monte de banhas, como cérebro ensopado e com conversas patéticas!

Tasslehoff pensou por momentos que forarealmente longe demais. Caramon deu um passovacilante para frente, o rosto manchado, sarapin-tado e feio. Bupu deu um grito e enfiou-se atrás

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de Tas. O kender manteve-se firme, exatamentecomo atuara quando os furiosos lordes duendesestavam prestes a cortá-lo em dois por ter que-brado a orbe dragão. Caramon fitou-o severa-mente, o hálito transbordante de álcool quasefazendo Tas vomitar. Involuntariamente, fechouos olhos. Não por medo, mas pela terrível angús-tia e irritação visível no rosto de Caramon.

Permaneceu imóvel, à espera do golpeque, provavelmente, levaria o seu nariz até aooutro lado da cabeça.

Mas o golpe nunca chegou a ser desferido.Ouviu-se o som de ramos de árvores a serempartidos, e de uns pés enormes pisando densosarbustos.

Cautelosamente, Tas abriu os olhos. Ca-ramon desaparecera, esmagando tudo no seucaminho através da trilha que conduzia à flores-ta. Suspirando, Tas seguiu atrás dele. Bupu apa-receu de onde se escondera.

— Foi divertido — anunciou — Eu ficar,afinal de contas. Talvez brincarmos outra vez?

— Não me parece, Bupu — disse Tas, emtom miserável — Anda daí. Acho que é melhorirmos atrás dele.

— Oh, está bem — refletiu a anã, filoso-ficamente — Pode aparecer outro jogo, tão di-vertido como este.

— Sim — concordou Tas, absorto. Vi-rando-se, com receio de que alguém na estala-gem tivesse ouvido a conversa e pudesse causarproblemas, os olhos do kender abriram-se de es-

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panto.A taberna Cracked Mug desaparecera. O

edifício arruinado, o letreiro balançando numa sócorrente, os anões, os guardas florestais, o estala-jadeiro, mesmo o copo que Caramon levara aoslábios. Tudo desaparecera no ar do fim de tardecomo um mau sonho depois do despertar.

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CAPÍTULO 7

Canta quando os espíritos te agitam,Canta para os seus olhos que duplicam,A simples Jane transforma-se em adoráveis lindasQuando seis luas brilham no céu.Canta à coragem de um marinheiro,Canta enquanto os cotovelos se dobram,Um porto de rubi como teu ancoradouro,Iça três lençóis ao vento.Canta enquanto o coração é cordial,Canta ao absinto de inquietações,Canta aquele que busca a estrada imaginada,E o cão, e cada um dos seus pêlos.Todas as servas te amam,Cada cão teu amigo é,O que quer que digas é apenas aquilo que sentes,

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Por isso, iça três lençóis ao vento.

Quando a noite chegou, Caramon estavaperdido de bêbado.

Tasslehoff e Bupu apanharam o grandehomem quando este se encontrava no meio datrilha, bebendo a última gota do frasco. Inclinoua cabeça para trás, sacudindo-o para não perdernem um pingo. Quando finalmente baixou ofrasco, foi para espreitar para o interior, comdesapontamento. Oscilando de pé, abanou-o.

— Foi-se tudo — ouviu-o Tas dizer, emtom infeliz. O kender sentiu-se subitamente desa-nimado — Agora é que vão ser elas — afirmouTas para si mesmo, destroçado — Não lhe pos-so contar sobre a estalagem desaparecida. Sobre-tudo nas condições em que está, só iria tornar ascoisas piores!

Mas não se apercebera quão piores as coi-sas iriam ficar até se aproximar de Caramon e lhetocar no ombro. O grande homem deu meia vol-ta, em alarme embriagado.

— Que é? Quem está aí? — Olhou rapi-damente em redor da floresta que escurecia.

— Eu, aqui em baixo — disse Tas, emvoz baixa — Eu... eu só queria dizer que estouarrependido, Caramon, e...

— Uh? Oh... — Retorcendo vacilante,Caramon fitou-o e depois sorriu como um pa-lerma — Oh, olá, pequenino. Um kender — oseu olhar passou para Bupu — e uma anã bo-bo-bo-boba — terminou, rapidamente — Como se

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chamam?— O quê? — inquiriu Tas.— Como se chamam? — repetiu Cara-

mon com dignidade.— Você me conhece, Caramon — disse

Tas, surpreendido — Sou o Tasslehoff.— Eu Bupu — respondeu a anã, o rosto

alegrando-se, sem dúvida esperando que se tra-tasse de um outro jogo — Quem, ser tu?

— Sabe quem ele é — começou Tas irri-tado, mas quase engoliu a língua quando Cara-mon interrompeu.

— Chamo-me Raistlin — disse o grandehomem solenemente, fazendo uma reverênciacom pouca firmeza — Um-um grande e po-po-poderoso mago.

— Oh, deixe disso, Caramon! — replicouTas com desprezo — Já disse que te pedia des-culpas, por isso não...

— Caramon? — Os olhos do homem e-norme abriram-se muito e depois cerraram-seastutamente — Caramon está morto. Eu matei-o. Há muito tempo atrás, na Tor... na Torre... naTorre de Alta Feitiçaria.

— Pela barba de Reorx! — afirmou Tas.— Ele não ser Raistlin! — salientou Bu-

pu. Fez então uma pausa, olhando-o com dúvida— Ser?

— N-não! Claro que não — retorquiuTasslehoff.

— Não ser jogo divertido! — disse Bupucom firme decisão — Não gostar! Ele não ser

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homem bonito para mim. Ele gordo bêbado. Euir para casa — Olhou em redor.

— Para onde ser casa?— Agora não, Bupu! — O que estaria a-

contecendo? Tas interrogou-se. Segurando noseu topete, puxou o cabelo com força. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos e o kender suspirou dealívio. Por momentos, pensara que adormecerasem saber e andava girando num sonho estra-nho.

Mas, aparentemente, era tudo real, muitoreal. Ou, pelo menos, para ele. No que dizia res-peito a Caramon, a história era completamentediferente.

— Observa — dizia Caramon com ar so-lene, oscilando para trás e para frente — Voulançar um feitiço.

— Erguendo a mão, balbuciou uma sériede disparates.

— Comopoeirademão e ninhosderatos!Burrung! — Apontou para uma árvore — Poof— murmurou, inclinando-se para trás — Lança-te em chamas! Vamos! Vamos! Ardendo, arden-do, ardendo... exatamente como o pobre Cara-mon — Avançou, cambaleando pela trilha.

“Todas as servas te amam”, cantava. “Ca-da cão é teu amigo. O que quer que diga é ape-nas aquilo que sen-sente...”

Torcendo as mãos, Tas correu atrás ele.Bupu seguiu-o também.

— Árvore não queimar — disse para Tas,severamente.

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— Eu sei! — resmungou Tas — É que...ele pensa...

— Ele ser mau mágico. Minha vez — En-fiando a mão no enorme saco que a fazia cons-tantemente tropeçar, Bupu soltou um grito triun-fante e retirou um rato muito endurecido e mui-to morto.

— Agora não, Bupu... — começou Tas,sentindo que o que lhe restava da sua sanidadecomeçava a se esgotar. Caramon, na frente deles,deixara de cantar e gritava qualquer coisa sobrecobrir a floresta de teias de aranha.

— Vou dizer palavra mágica secreta —declarou Bupu — Você não escutar. Estragarsegredo.

— Não ouvirei — afirmou Tas, impacien-temente, tentando acompanhar Caramon que,apesar de oscilar, se movimentava a um passobastante largo.

— Você ter ouvido? — perguntou Bupu,seguindo atrás dele.

— Não — disse Tas, suspirando.— Por que não?— Disse-me para não ouvir! — gritou

Tas, desesperado.— Mas como saber se não ouvir se não

ouvir? — inquiriu Bupu, zangada — Você tentarroubar a palavra mágica secreta! Eu ir para casa.

A anã estacou, virou-se e começou a des-cer a trilha. Tas parou. Podia avistar Caramonsubindo uma árvore, invocando dragões, poraquilo que pensou ouvir. O grande homem não

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poderia sair dali, pelo menos por algum tempo.Praguejando baixo, o kender virou-se e correuatrás da anã.

— Pára, Bupu! — gritou freneticamente,agarrando numa série de trapos que pensou tra-tar-se do ombro dela.

— Juro, nunca roubaria a sua palavra má-gica secreta!

— Você roubar! — gritou, acenando-lhecom o rato morto — Você dizer!

— Disse o quê? — perguntou Tasslehoff,completamente confuso.

— Palavra mágica secreta! Você dizer! —Bupu gritava de raiva — Vê! Olha! — Levantan-do o rato morto, apontou para frente deles natrilha e gritou — Eu dizer agora palavra mágicasecreta: palavra mágica secreta! Pronto. Agora ver-mos alguma magia quente.

Tas levou as mãos à cabeça. Sentia-se ton-to.

— Olha! Olha! — gritou Bupu em tomtriunfante, apontando um dedo sujo — Ver? Eucomeçar fogo. Palavra mágica secreta nunca fa-lhar. Umphf. Maus mágicos... ele.

Olhando para baixo para a trilha, Tas pes-tanejou. Na verdade, havia chamas mais à frente.

— Vou definitivamente regressar a Ken-derhome... — afirmou Tas em tom suave para simesmo — Arranjo uma casinha... ou talvez vámorar durante uns meses com a família, até mesentir melhor.

— Quem está aí? — chamou uma voz

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clara e cristalina. Tas sentiu-se invadir por umasensação de alívio.

— É a fogueira de um acampamento! —balbuciou, quase histérico de tanta alegria. E avoz! Apressou-se a avançar, correndo através dastrevas em direção à luz — Sou eu... TasslehoffBurrfoot. Eu... oof!

O “oof” foi ocasionado pelo ato de Ca-ramon ter levantado o kender do chão, erguendo-o nos seus braços fortes, e colocando a mão so-bre a boca de Tas.

— Shhhh — murmurou Caramon juntodo ouvido de Tas. Os odores que vinham da bo-ca dele fizeram a cabeça do kender girar — Estáalguém ali!

— Mpf blsxtchscat! — Tas retorcia-sefreneticamente, tentando libertar-se do aperto deCaramon. O kender estava sendo lentamente asfi-xiado até à morte.

— Era exatamente quem eu pensava —sussurrou Caramon para si mesmo, ao mesmotempo em que a sua mão apertava com mais for-ça a boca de kender.

Tas começou a ver brilhantes estrelas a-zuis. Debatia-se desesperadamente, puxando asmãos de Caramon com toda a força, mas teriasido o fim da breve mas excitante vida do kenderse Bupu não aparecesse de súbito aos pés de Ca-ramon.

— Palavra mágica secreta! — gritou, ati-rando o rato morto contra o rosto de Caramon.A distante fogueira refletiu-se nos olhos negros

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do cadáver e reluziu nos dentes afiados num sor-riso perpétuo.

— Aiiii! — gritou Caramon, largando okender. Tas caiu pesadamente no solo, tentandorespirar.

— Que se passa aí? — disse uma voz fria,— Viemos... socorrê-la... — disse Tassle-

hoff, erguendo-se, tonto.Uma figura de vestes brancas com um a-

gasalho de peles apareceu na trilha à frente deles.Bupu mirou a figura com profunda suspeita.

— Palavra mágica secreta — disse a anã,acenando o rato morto para a Venerável Filha dePaladine.

— Há de perdoar-me por não me mostrarextremamente grata — disse Lady Crysania paraTasslehoff, quando se encontravam sentados emredor da fogueira, mais tarde.

— Eu sei. Lamento — replicou Tassle-hoff, numa postura de miserável — Estragueitudo. Geralmente é o que me acontece — pros-seguiu, angustiado — Pergunte a quem quer queseja. Já me disseram várias vezes que faço as pes-soas ficarem malucas, mas esta é a primeira vezque isso acontece realmente!

Fanhoso, o kender lançou um olhar ansio-so a Caramon. O grande homem estava sentadojunto da fogueira, embrulhado na capa. Aindasob a influência da potente bebida, umas vezesjulgava-se Caramon outras Raistlin. Como Ca-ramon, comia com sofreguidão, enfiando comidana boca sem parar. Depois, regalou-os com di-

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versas baladas obscenas, para deleite de Bupu,que o acompanhava fora de tempo e elevava avoz no coro. Tas via-se dividido entre a vontadede rir perdidamente ou rastejar para debaixo deuma rocha e morrer de vergonha.

Mas, decidiu o kender com um arrepio, Ca-ramon acabaria por vencer com cantigas obsce-nas e tudo, sobre o Caramon/Raistlin. A trans-formação ocorreu repentinamente, na verdade,mesmo no meio de uma canção. A armação dogrande homem derrubou-se para frente, Cara-mon começou a tossir e depois, olhando paraeles com olhos meio cerrados, ordenou friamen-te a si próprio que se calasse.

— Não foi você quem lhe fez isto — dis-se Lady Crysania para Tas, observando Caramoncom um olhar frio — É da bebida. Ele é grossei-ro, teimoso e, obviamente, um homem sem do-mínio de si. Permitiu que os seus apetites o go-vernassem. Estranho, não é, que ele e Raistlinsejam gêmeos? O irmão dele é tão controlado,tão disciplinado, inteligente e fino.

Ela encolheu os ombros.— Oh, não há dúvida que este pobre ho-

mem é digno de grande piedade — Levantando-se, dirigiu-se ao local onde o seu cavalo estavapreso e começou a desapertar o saco-cama quese encontrava atrás da sela — Hei de lembrar-medele nas minhas orações a Paladine.

— Tenho certeza de que as orações nãofarão mal — afirmou Tas com grandes dúvidas—, mas creio que um chá forte é o que ele ne-

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cessita neste momento.Lady Crysania voltou-se e fitou o kender

com um olhar de reprovação.— Tenho a certeza de que não quis blas-

femar. Portanto, tomarei as suas palavras com osentido com que foram proferidas. No entanto, epor favor, esforce-se por levar as coisas comuma atitude mais séria.

— Eu estava falando a sério — protestouTas — Tudo o que Caramon precisa é de algu-mas canecas de um bom chá forte...

As sobrancelhas de Lady Crysania ergue-ram-se de tal forma que Tas ficou em silêncio,embora não fizesse a mínima idéia do que disse-ra para aborrecê-la daquela forma. Começoutambém a tirar os seus cobertores, sentindo-semais abatido que nunca. Sentia-se exatamente domesmo modo quando cavalgara nas costas deum dragão, com Flint, durante a batalha das pla-nícies de Estwilde. O dragão lançara-se para asnuvens, mergulhando depois, rodopiando de umlado para o outro. Por alguns momentos, o altoera o baixo, o céu estivera por baixo, a terra porcima, e depois: uuupa! para o interior de umanuvem, e tudo se perdeu na neblina.

Sentia a mente como naquela vez. LadyCrysania admirava Raistlin e tinha dó de Cara-mon. Tas não estava certo, mas parecia tudo aocontrário. Depois, foi o caso de Caramon queera Caramon e que deixou de ser Caramon.

Estalagens que existiam num dado mo-mento e que desapareciam de seguida. Uma pa-

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lavra mágica secreta que lhe disseram para escu-tar quando sabia que não o deveria fazer. De-pois, fizera uma sugestão perfeitamente lógica ede senso comum sobre chá e fora repreendidopor blasfemar!

— Afinal — murmurou para si mesmo,sacudindo os cobertores —, Paladine e eu somosamigos pessoais íntimos. Ele saberia o que eu quisdizer.

Suspirando, o kender pousou a cabeça so-bre um manto enrolado. Bupu, agora perfeita-mente convencida de que Caramon era Raistlin,dormia profundamente, enroscada, com a cabeçadeitada com adoração sobre o pé do grande ho-mem. O próprio Caramon estava agora sentadotranqüilamente, de olhos cerrados, murmurandouma canção para si mesmo. De vez em quandotossia e, a dado momento, exigiu em voz alta queTas lhe trouxesse os seus livros de feitiços paraque pudesse estudar a sua magia. Mas pareciabastante calmo. Tas esperava que ele não tardas-se a adormecer, passando-lhe assim o efeito dabebida.

A fogueira foi se extinguindo. Lady Cry-sania estendeu os cobertores sobre uma cama defolhas que reunira para evitar a umidade. Tasbocejou. Ela estava saindo-se melhor do que eleesperara. Selecionara uma localização perfeita esensata para acampar, próximo da trilha, comum riacho de água corrente e límpida por perto.Como seria conveniente, por forma a não terque penetrar nesta floresta escura e assustadora...

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Floresta assustadora... o que é que isso lherecordava? Isto fê-lo despertar quando estavaprestes a adormecer. Algo importante. Florestaassustadora. Assombrações... falar com assom-brações...

— Floresta sombria! — disse alarmado,sentando-se imediatamente.

— O quê? — perguntou Lady Crysania,embrulhando-se no manto e preparando-se parase deitar.

— Floresta sombria! — repetiu Tas, alar-mado. Estava agora totalmente desperto — Es-tamos perto da floresta sombria. Viemos paraavisá-la! Trata-se de um lugar horrível. Podia terentrado lá inadvertidamente. Talvez já estejamoslá...

— Floresta sombria? — Os olhos de Ca-ramon abriram-se. Olhou à sua volta vagamente.

— Disparate — disse Lady Crysania con-fortavelmente instalada, ajustando, por baixo dacabeça, uma pequena almofada de viagem quetrouxera com ela — Não estamos na florestasombria, pelo menos por enquanto. Ainda fica acinco milhas de distância. Amanhã alcançaremosuma trilha que nos conduzirá até lá.

— Você... você quer ir lá! — disse Tas, o-fegante.

— É claro — afirmou Lady Crysania fri-amente — Vou lá para procurar auxílio do se-nhor da floresta. Levaria longos meses para via-jar daqui até à floresta de Wayreth, mesmo a ca-valo. Na floresta sombria, vivem dragões pratea-

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dos com o senhor da floresta. Me levarão emvôo até meu destino.

— Mas os espectros, o antigo rei morto eos seus seguidores...

— ...foram libertados do seu terrível cati-veiro quando responderam à chamada para lutarcontra os grão-lordes do dragão — replicouLady Crysania, com certa dureza — Deveria re-almente estudar a história da guerra, Tasslehoff.Sobretudo quando esteve envolvido nela. Quan-do as forças de humanos e duendes se combina-ram para recapturar Qualinesti, os espectros dafloresta sombria lutaram com eles, quebrandoassim o feitiço negro que os ligava a uma vidaterrível. Deixaram este mundo, para nunca maisserem vistos.

— Oh — afirmou Tas estupidamente.Depois de olhar em redor por momentos, sen-tou-se no saco-cama — Falei com eles — pros-seguiu, pensativamente — Foram muito simpáti-cos; um pouco bruscos nas suas idas e vindas,mas muito simpáticos. Torna-se um pouco tristepensar...

— Estou bastante cansada — interrom-peu Lady Crysania — E amanhã tenho um longocaminho a percorrer. Levarei a anã e seguireicaminho para a floresta sombria. Pode acompa-nhar o seu amigo embriagado de volta para casa,onde encontrará, assim espero, o auxílio de quenecessita. Agora, vá dormir.

— Não seria melhor que um de nós... fi-casse de vigia? — perguntou Tas, hesitante —

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Aqueles guardas florestais disseram... — Parousubitamente. Aqueles “guardas florestais” estive-ram na estalagem que já não existia.

— Que disparate. Paladine vigiará o nossodescanso — disse Lady Crysana rispidamente.Fechando os olhos, começou a recitar palavrassuaves de oração.

Tas engoliu em seco.— Pergunto a mim mesmo se conhece-

mos o mesmo Paladine? — inquiriu, pensandoem Fizban e sentindo-se muito só. Mas fez apergunta em voz baixa, pois não queria ser acu-sado outra vez de blasfemar. Deitando-se, con-torceu-se nos cobertores, mas não conseguiusentir-se confortável. Por fim, ainda bem acor-dado, sentou-se e encostou-se ao tronco de umaárvore. A noite primaveril estava fria, mas a frie-za não era desagradável. O céu estava limpo enão havia vento. As árvores sussurravam com assuas próprias conversas, sentindo vida nova cor-rendo nos troncos, despertando do seu longosono de Inverno. Passando a mão sobre o solo,Tas sentiu a relva nova desabrochar por debaixodas folhas velhas.

O kender suspirou. Estava uma noite agra-dável. Por que razão se sentia ele pouco à vonta-de? Aquilo foi um ruído? Um ramo partindo-se?Tas olhou em volta, sustendo a respiração paraescutar melhor. Nada. Silêncio. Olhando paracima para o céu, avistou a constelação de Paladi-ne, o dragão de platina, circundando a constela-ção de Gilean, as escalas de balança. Do lado

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oposto de Paladine, cada uma vigiando cuidado-samente a outra, encontrava-se a constelação daRainha das Trevas: Takhisis, o dragão de cincocabeças.

— Está muito distante aí em cima — dis-se Tas para o dragão de platina — E tem ummundo inteiro para vigiar, não apenas a nós. Te-nho a certeza de que não se importa se eu vigiartambém o nosso descanso esta noite. Sem qual-quer desrespeito, claro. É que tenho a sensaçãode que mais alguém aí em cima está também ob-servando esta noite, se é que me entende — Okender estremeceu — Não sei por que me sintotão esquisito assim de repente. Talvez seja porestar tão próximo da floresta sombria e... bem,aparentemente, sou responsável por toda a gen-te!

Era um pensamento desconfortável paraum kender. Tas estava acostumado a ser respon-sável por si mesmo mas, quando viajou com Ta-nis e com os outros, sempre houvera qualqueroutra pessoa responsável pelo grupo. Havia en-tão guerreiros fortes e hábeis...

Que foi aquilo? Desta vez, ouvira efetiva-mente qualquer coisa! Dando um salto, Tas ficouem silêncio, fitando a escuridão. Ouviu-se silên-cio, depois um ruído, e então...

Um esquilo. Tas libertou um suspiro quelhe veio dos pés.

— Já que estou de pé, vou pôr mais lenhana fogueira — disse para si mesmo. Avançando,olhou para Caramon e sentiu um aperto no cora-

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ção. Seria muito mais fácil ficar de guarda na es-curidão se soubesse que podia contar com o bra-ço forte de Caramon. Em vez disso, o guerreirocaíra de costas, de olhos fechados, de boca aber-ta, ressonando com contentamento embriagado.Enroscada na bota de Caramon, a cabeça sobreo pé dele, o ressonar de Bupu fundia-se com odele. Do lado oposto, o mais longe possível,Lady Crysania dormia pacificamente, a face sua-ve repousando sobre as mãos dobradas.

Com um suspiro, Tas lançou mais lenhana fogueira. Vendo-a atear, instalou-se sentadopara observar, fitando intensamente as árvorescobertas pela noite, cujas palavras sussurrantespossuíam agora um tom agourento. Então, láestava o ruído de novo.

— Esquilo! — murmurou Tas resoluto.Estaria aquela coisa movendo-se nas

sombras? Ouviu-se um estalar distinto — comoum ramo partindo-se em dois. Nenhum esquilofaria isso! Tas pesquisou a algibeira até que a suamão se fechou sobre uma pequena navalha.

A floresta movia-se! As árvores aproxi-mavam-se!

Tas tentou gritar um aviso, mas um ramofino agarrou-lhe no braço...

— Aiiii — gritou Tas, libertando-se e es-faqueando o ramo com a navalha.

Ouviu-se praguejar e um grito de dor. Oramo largou-o e Tas soltou um suspiro. Nenhu-ma árvore que ele conhecesse gritava de dor. Oque quer que estivessem enfrentando era vivo,

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respirava...— Ataque! — gritou o kender, caindo para

trás — Caramon! Ajuda-me! Caramon...Dois anos antes, o grande guerreiro teria

se levantado instantaneamente, a mão fechando-se sobre o punho da espada, alerta e pronto paralutar. Mas Tas, arrastando-se para ficar de costaspara a fogueira, a pequena navalha constituindo aúnica coisa que mantinha o que quer que fosseafastado, viu a cabeça de Caramon virar-se paraum dos lados, com a satisfação própria da em-briaguez.

— Lady Crysania! — gritou Tas louca-mente, avistando mais formas sombrias saindoda floresta — Acorde! Por favor, acorde!

Podia sentir agora o calor da fogueira.Mantendo sob vigilância as sombras ameaçado-ras, Tas estendeu a mão e pegou num pedaço demadeira em chamas, por uma das extremidades,desejou que fosse a extremidade fria. Erguendo-a, segurou-a à sua frente.

Houve movimento quando uma das cria-turas mergulhou na direção dele. Tas oscilou anavalha, fazendo-a retroceder. Mas, naquele ins-tante, quando a luz da madeira em brasa reluziusobre ela, Tas conseguiu avistar do que se trata-va.

— Caramon! — gritou — Draconianos!Lady Crysania estava agora acordada; Tas

viu-a sentar-se, olhando em redor em confusãosonolenta.

— A fogueira! — gritou Tas para ela, de-

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sesperadamente — Vá para perto do lume! —Tropeçando em Bupu, o kender deu um pontapéa Caramon — Draconianos! — gritou de novo.

Um dos olhos de Caramon abriu-se e de-pois o outro, fitando em redor, estonteado.

— Caramon! Graças aos deuses — afir-mou Tas aliviado.

Caramon sentou-se. Espreitando pelo a-campamento, completamente desorientado econfuso, era ainda suficientemente guerreiro pa-ra se aperceber da presença do perigo. Levan-tando-se vacilante, agarrou no punho da espadae arrotou.

— Que é? — murmurou, tentando focar avisão.

— Draconianos! — respondeu-lhe Tass-lehoff, saltando à volta como um pequeno de-mônio, vibrando a madeira acesa e a navalhacom tal vigor que conseguiu na verdade manteros inimigos afastados.

— Draconianos? — murmurou Caramon,olhando em redor em descrença. Vislumbrouentão de relance um rosto retorcido de réptil àluz da fogueira que se extinguia. Os seus olhosabriram-se muito — Draconianos! — rosnou —Tanis! Sturm! Venham a mim! Raistlin... a suamagia! Vamos dar cabo deles.

Sacando a espada da bainha, Caramon a-vançou com um grito estrondoso de guerra, ecaiu de rosto no chão. Bupu agarrava-se ao pédele.

— Oh, não! — rosnou Tas.

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Caramon estava deitado no chão, pestane-jando e abanando a cabeça em interrogação, ten-tando perceber o que o atingira. Bupu, rudemen-te despertada, começou a berrar de terror e dor,dando de seguida um pontapé no tornozelo deCaramon.

Tas avançou para auxiliar o guerreiro der-rubado, pelo menos para tirar Bupu de pertodele, quando ouviu um grito. Lady Crysania!Raios! Esquecera-se dela! Voltando-se, viu a e-clesiástica debatendo-se com um dos homensdragão.

Tas avançou para ele e esfaqueou-o sempiedade. Com um grito, este libertou Crysania,caiu para trás e o seu corpo transformou-se empedra aos pés de Tas. Mesmo a tempo, o kenderlembrou-se de retirar a navalha do cadáver empedra ou já não poderia recuperá-la.

Tas arrastou Crysania com ele para juntode Caramon, caído, que tentava libertar-se daanã, ainda presa à perna dele.

Os draconianos apertaram o cerco. O-lhando rapidamente em volta, Tas viu que esta-vam rodeados pelas criaturas. Mas por que nãoatacavam eles a toda a força? De que estavameles à espera?

— Está bem? — conseguiu perguntar aCrysania.

— Sim! — disse ela. Embora muito páli-da, parecia estar calma e, se é que estava assusta-da, mantinha o medo sob controle. Tas viu oslábios dela moverem-se, presumivelmente numa

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oração silenciosa. Os lábios do próprio kendercomprimiram-se.

— Tome, senhora — disse, atirando opedaço de madeira queimando para a mão dela— Acho que terá que combater e orar ao mesmotempo.

— Elistan fazia-o. Também eu posso fa-zê-lo — disse Crysania, a voz tremendo-lhe ape-nas levemente.

Foram gritadas ordens das sombras. Avoz não era draconiana. Tas não a perceberamuito bem. Apenas sabia que o simples fato detê-la escutado lhe provocara arrepios. Mas nãohavia tempo para pensar nisso agora. Os draco-nianos, com as línguas esticando-se para fora dasbocas, saltaram para cima deles.

Crysania empunhou o pedaço de madeiraem fogo desajeitadamente, mas foi o suficientepara que os draconianos hesitassem. Tas tentavaainda soltar Bupu de Caramon. Mas foi um dra-coniano que, inadvertidamente, veio no auxíliodeles. Empurrando Tas, o draconiano pousouuma mão com garras sobre Bupu.

Os anões bobos eram conhecidos por to-do o Krynn pela sua covardia e total incapacida-de de lutar em batalha. Mas... quando encostadosà parede, lutavam como ratos enfurecidos.

— Glupsludge! — gritou Bupu zangada e,deixando de atormentar o tornozelo de Cara-mon, enfiou os dentes na perna escamosa dodraconiano.

Bupu não tinha muitos dentes, mas os que

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tinha eram afiados; a mordedura foi dada commuita satisfação na carne verde do draconianopois não tinha comido grande coisa ao jantar.

O draconiano soltou um grito impressio-nante. Erguendo a espada, estava prestes a ter-minar com os dias de Bupu sobre Krynn quandoCaramon, girando para ver o que estava se pas-sando, amputou acidentalmente o braço da cria-tura. Bupu sentou-se para trás, lambendo os lá-bios, e olhou ansiosamente em redor, em buscade outra vítima.

— Viva! Caramon! — animou-se Tas, asua pequena navalha cortando aqui e ali, de for-ma tão rápida quanto uma cobra ao ataque. LadyCrysania deu com a madeira na cabeça de umdraconiano, gritando o nome de Paladine. A cria-tura caiu para frente.

Tanto quanto Tas podia avistar, só resta-vam uns dois ou três draconianos, e o kendercomeçou a sentir-se exuberante. As criaturasemboscavam-se fora do alcance da luz da foguei-ra, espreitando o grande guerreiro, Caramon, quese punha de pé. Avistado apenas através dassombras, tinha ainda a figura ameaçadora quepossuíra nos velhos tempos. A lâmina da suaespada reluzia perversamente nas chamas verme-lhas.

— Vai apanhá-los, Caramon! — gritouTas com entusiasmo — Corta-lhes as cabeças...

A voz do kender apagou-se quando Cara-mon se virou lentamente para enfrentá-los, comuma estranha expressão no rosto.

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— Não sou Caramon — disse, suavemen-te — Sou o gêmeo dele, Raistlin. Caramon mor-reu. Eu matei-o — Olhando para a espada queempunhava, o grande guerreiro largou-a, comose esta o ferisse — O que faço com aço frio nasmãos? — inquiriu, duramente — Não posso lan-çar feitiços com uma espada e um escudo!

Tasslehoff engoliu em seco, lançando umolhar alarmado aos draconianos. Podia vê-lostrocar olhares. Começaram a avançar lentamente,embora todos mantivessem os olhos fixos nogrande guerreiro, provavelmente suspeitando deuma armadilha de qualquer tipo.

— Não é Raistlin! É Caramon! — gritouTas desesperado, embora sem resultado. O cére-bro do homem continuava sob o efeito da bebi-da. Com a mente completamente desarticulada,Caramon fechou os olhos, ergueu as mãos e co-meçou a entoar.

— Antsnests silverash hookarah — murmu-rou, oscilando para frente e para trás.

O rosto sorridente de um draconiano sur-giu perante Tas. Houve um reluzir de aço e acabeça do kender pareceu explodir de dor...

Tas caiu no solo. Um líquido quente es-corria-lhe pelo rosto, cegando-o de um olho,penetrando na sua boca. Saboreou sangue. Esta-va cansado... muito cansado...

Mas a dor era terrível. Não o deixavadormir. Receava mover a cabeça, com medo que,se o fizesse, esta se separasse em duas partes.Assim, ficou deitado, completamente imóvel,

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observando o mundo através de um olho.Ouviu a anã gritar sem parar, como um

animal torturado, quando, subitamente, os gritoscessaram. Escutou um grito profundo de dor,um rosnar abafado e um corpo enorme estatelar-se no solo ao lado dele. Era Caramon, com san-gue jorrando da boca e os olhos muito abertos.

Tas não podia sentir tristeza. Não podiasentir nada a não ser a terrível dor de cabeça.Um enorme draconiano parou por cima dele, deespada na mão. Sabia que a criatura ia acabarcom ele. Tas não se importava. Acaba-me com ador, suplicou. Acaba com ela rapidamente.

Depois viu vestes brancas agitarem-se euma voz clara, dirigindo-se a Paladine. Os dra-conianos desapareceram abruptamente quandoescutaram o som de pés com garras rastejandopelos arbustos. As vestes brancas ajoelharam-sejunto dele e Tas sentiu a mão gentil sobre a suacabeça; escutou, de novo, o nome de Paladine. Ador desapareceu. Olhando para cima, viu a mãoda eclesiástica tocar em Caramon e as pálpebrasdo enorme homem fecharam-se num sono tran-qüilo.

“Está tudo bem!”, pensou Tas entusias-mado. Foram-se embora! Vamos ficar todosbem. Depois sentiu a mão estremecer. Recupe-rando alguns dos seus sentidos enquanto os po-deres de sarar da eclesiástica lhe percorriam ocorpo, o kender levantou a cabeça, espreitandopara a frente com o olho não ferido.

Vinha alguma coisa chegando. Algo força-

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ra os draconianos a retirar. Algo caminhava paraa luz da fogueira.

Tas tentou gritar em aviso, mas a gargantafechou-se. A sua mente parecia rodar sem parar.Por momentos, muito assustado e tonto parapensar com clareza, pensou que alguém mistura-ra aventuras na cabeça dele.

Viu Lady Crysania pôr-se de pé, as vestesbrancas varrendo a poeira junto da cabeça dele.Lentamente, começou a recuar perante a coisaque se aproximava furtivamente. Tas ouviu-achamar por Paladine, mas as palavras escaparamde lábios entorpecidos pelo terror.

O próprio Tas queria desesperadamentefechar o olho. O medo e a curiosidade combati-am no seu pequeno corpo. A curiosidade acaboupor vencer. Espreitando pelo olho não ferido,Tas observou a figura horrível aproximar-se cadavez mais da eclesiástica. A figura estava vestidacom a armadura de um cavaleiro solamnico, masessa armadura estava queimada e escurecida. Aochegar-se a Crysania, a figura estendeu um braçoque não terminava numa mão. Proferiu palavrasque não provinham de uma boca. Os olhos ti-nham uma cor laranja, as suas pernas transparen-tes caminharam por cima das cinzas da fogueira.A frieza das regiões onde se via forçado a habitareternamente fluía do seu corpo, congelando opróprio tutano nos ossos de Tas.

Com receio, Tas ergueu a cabeça. ViuLady Crysania recuar. Viu o cavaleiro da mortecaminhar para ela com passos lentos e firmes.

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O cavaleiro levantou a mão direita e apon-tou para Crysania, com um dedo pálido e emi-tindo uma luz fraca.

Tas sentiu-se invadir por um súbito terrorincontrolado.

— Não! — gemeu, tremendo, emboranão fizesse idéia de que coisa horrível estavaprestes a acontecer.

O cavaleiro disse uma palavra.— Morre.Nesse momento, Tas viu Lady Crysania

levantar a mão e agarrar no medalhão que usavaà volta do pescoço. Viu um raio de pura luzbranca ser emitida através dos seus dedos e de-pois caiu no chão, como que apunhalada pelodedo sem carne.

— Não! — ouviu-se Tasslehoff gritar. Viuos olhos cor-de-laranja voltarem-se para ele e,trevas frias e profundas, como as trevas de umtúmulo, selaram-lhe os olhos e fecharam-lhe aboca...

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CAPÍTULO 8

Dalamar aproximou-se medrosamente daporta do laboratório do mago, passando um de-do nervoso sobre os símbolos de proteção bor-dados no tecido das suas vestes negras ao ensaiarapressadamente diversos feitiços de defesa nasua mente. Uma certa dose de precaução nãodeveria ser considerada deslocada para qualquerjovem aprendiz aproximando-se dos aposentosinternos e secretos de um poderoso mestre. Masas precauções de Dalamar eram extraordinárias.E havia boas razões para isso. Dalamar tinhasegredos próprios para ocultar, e os olhos dou-rados e de ampulheta de Raistlin eram o quemais temia neste mundo.

Contudo, mais forte do que o seu receio,

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uma subcorrente de excitação pulsava no sanguede Dalamar, tal como sempre acontecia sempreque se encontrava junto desta porta. Vira coisasmaravilhosas no interior daquele aposento, ma-ravilhosas... temíveis...

Erguendo a mão direita, fez um sinal rá-pido no ar perante a porta e murmurou algumaspalavras na linguagem da magia. Não houve rea-ção. A porta não tinha qualquer feitiço sobre ela.Dalamar respirou com um pouco mais de facili-dade, ou talvez fosse um sinal de desapontamen-to. O seu mestre não estava envolvido em ne-nhuma mágica potente e poderosa, senão Rais-tlin teria elaborado um feitiço para manter a por-ta fechada. Baixando os olhos para o chão, oduende negro não avistou quaisquer luzes pordebaixo da pesada porta de madeira. Não lhecheirava a nada a não ser aos odores habituais deespeciarias e decadência. Dalamar pousou as cin-co pontas dos dedos da mão esquerda sobre aporta e aguardou em silêncio.

No espaço de tempo que o duende negrolevou respirando fundo, soou a ordem emitidasuavemente:

— Entre, Dalamar.Abraçando-se a si mesmo, Dalamar en-

trou no aposento quando a porta se abriu silen-ciosamente na sua frente. Raistlin encontrava-sesentado perante uma enorme e antiga mesa depedra, tão larga que um dos minotauros de raçaalta e de ombros largos, que viviam em Mithas,poderia se deitar sobre ela, estender-se a toda a

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altura e ainda sobraria espaço. A mesa de pedrae, na verdade, todo o laboratório, faziam partedas mobílias originais que Raistlin descobriraquando declarara a Torre de Alta Feitiçaria, emPalanthas, como sua.

O grande e sombrio aposento pareciamuito mais amplo do que poderia possivelmenteser; no entanto, o duende negro nunca conseguiadeterminar se era o aposento em si que pareciamaior ou ele próprio que parecia menor sempreque lá entrava. Havia livros alinhados nas pare-des, tal como no estúdio do mago. Símbolos eescritas araneiformes reluziam através da poeiraamontoada nas suas lombadas. Em cima de me-sas à volta do aposento, havia garrafas de vidro ejarros com formas retorcidas, os seus conteúdosde cores brilhantes emitindo bolhas e fervilhan-do com poder oculto.

Aqui, neste laboratório, há muito atrás,fora forjada a grande e poderosa magia. Aqui, osfeiticeiros de todas as três vestes: o branco dobem, o vermelho da neutralidade, e o negro domal, uniram-se numa aliança para criar as orbesdragão, uma das quais estava agora na posse deRaistlin. Aqui, as três vestes tinham-se juntadonuma batalha final e desesperada para salvar assuas torres, os baluartes das suas forças, do rei-sacerdote de Istar e dos seus seguidores. Aquitinham falhado, acreditando que era melhor vi-ver derrotado do que em luta, sabendo que amagia deles poderia destruir o mundo.

Os magos viram-se forçados a abandonar

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esta torre, levando com eles os seus livros defeitiços e outros bens para a Torre de Alta Feiti-çaria, oculta no seio da floresta mágica de Wa-yreth. Foi quando abandonaram esta torre quelhe foi lançado um feitiço. O bosque de Shoikancrescera para guardá-la de todas as pessoas atéque, como se contava, “o senhor do passado edo presente regressasse com poder”.

E o senhor regressara. Encontrava-se ago-ra sentado no antigo laboratório, agachado porcima da mesa de pedra que fora retirada, há mui-to tempo atrás, do fundo do mar. Esculpida comsímbolos que repeliam todos os encantamentos,foi mantida fora de influências exteriores quepudessem afetar o trabalho do mago. A superfí-cie da mesa era macia e polida de tal forma quequase lhe dava um acabamento vidrado. Dalamarpodia ver as encadernações azul-escuras dos li-vros de feitiços que se encontravam por cima,refletidos à luz da vela.

Por cima da sua superfície, havia tambémoutros objetos; objetos medonhos e curiosos,horríveis e encantadores: os componentes defeitiços do mago. Era com estes que Raistlin tra-balhava agora. Analisava um livro de feitiços,murmurando palavras suaves ao mesmo tempoque esmagava qualquer coisa nos seus dedos de-licados, deixando-a escorrer para um frasco quetinha na mão.

— Shalafi — disse Dalamar em tom baixo,usando a palavra dos duendes para “mestre”.

Raistlin olhou para cima.

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Dalamar sentiu o mirar daqueles olhosdourados penetrarem no seu coração com umador indescritível. Um arrepio de medo percorreuo corpo do duende negro, as palavras: Ele sabe!fervilhavam no seu cérebro. Mas nenhuma des-tas emoções foi revelada exteriormente. As boni-tas feições do duende negro permaneceram fixas,inalteradas, frias. Os seus olhos suportaram fir-mes o olhar de Raistlin. As mãos permaneceramdobradas dentro das vestes, tal como era pró-prio.

Tão perigoso era este trabalho que, quan-do Eles consideraram necessário implantar umespião nos domínios do mago, solicitaram volun-tários, nenhum deles desejando tomar a respon-sabilidade de ordenar a alguém, a sangue-frio,que aceitasse esta missão suicida. Dalamar deraum passo em frente imediatamente.

A magia constituía o único lar de Dala-mar. Oriundo de Silvanesti, não aceitava nem eraaceito por essa nobre raça de duendes. Nascidonuma casta baixa, fora-lhe ensinado apenas omais rudimentar das artes mágicas, pois a apren-dizagem mais erudita era unicamente destinadaaos de sangue nobre. Mas Dalamar provara opoder, e este tornara-se a sua obsessão. Traba-lhava em segredo, estudando o proibido, apren-dendo prodígios reservados apenas aos magosduendes de elevada patente. As artes negras eramas que mais o impressionavam e assim, quandofoi descoberto trajando as vestes negras, que ne-nhum verdadeiro duende suportava sequer olhar,

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Dalamar foi expulso de sua casa e da sua nação.E ficou conhecido como um “duende negro”,aquele que está fora da luz. Tal fora convenientepara Dalamar, pois descobrira já que havia podernas trevas.

Desta forma, Dalamar aceitara a missão.Quando lhe perguntaram as razões por que seoferecia voluntariamente para arriscar a vida nes-te trabalho, respondera friamente:

— Arriscaria a minha alma pela oportuni-dade de estudar com o maior e mais poderoso danossa ordem que jamais viveu!

— Pode ser exatamente isso o que estáfazendo — retorquira-lhe uma voz triste.

A recordação dessa voz chegava a Dala-mar nos mais estranhos momentos, geralmentena escuridão da noite, que era tão escura no inte-rior da torre. Voltara a ouvi-la naquele instante.Dalamar esforçou-se por apagá-la da sua mente.

— Que é? — inquiriu Raistlin gentilmen-te.

O mago falava sempre de forma gentil esuave; por vezes a sua voz não passava de umsussurro. Dalamar presenciara já tempestadestremendas assolarem este aposento. Os relâmpa-gos fulgurantes e trovoadas estridentes deixa-ram-no parcialmente surdo durante dias. Estive-ra presente quando o mago convocara criaturasde níveis superiores e inferiores para executaremas suas ordens; os gritos e gemidos e impreca-ções emitidas por elas soavam ainda nos seussonhos, à noite. No entanto, apesar de tudo,

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nunca ouvira Raistlin levantar a voz. Aquele sus-surro suave e sibilante penetrava sempre no caose controlava-o.

— Estão ocorrendo acontecimentos nomundo exterior, Shalafi, que requerem a sua a-tenção.

— Sim? — Raistlin olhou de novo parabaixo, absorto no seu trabalho.

— Lady Crysania...A cabeça encapuzada de Raistlin ergueu-

se rapidamente. Dalamar, sentindo-se forçado apensar numa serpente ao ataque, deu involunta-riamente um passo atrás perante aquele intensoolhar.

— Que é? Fala! — Raistlin sibilou a pala-vra.

— O senhor... o senhor deve vir, Shalafi— proferiu Dalamar com dificuldade — Os vi-vos informaram...

O duende negro falava para o ar. Raistlintinha desaparecido.

Soltando um suspiro nervoso, o duendenegro pronunciou as palavras que o levariaminstantaneamente para o lado do seu mestre.

Muito abaixo da Torre de Alta Feitiçaria,localizada nas profundezas da terra, havia umapequena sala esculpida magicamente na rochaque suportava a torre. Esta sala não existia natorre desde sempre. Conhecida como a câmarada visão, era uma criação de Raistlin.

No centro da pequena sala de pedra fria,existia uma poça perfeitamente redonda de água

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parada e negra. Do centro desta poça estranha enão natural, brotava um jato de chama azul. Ele-vando-se até ao teto da câmara, ardia eternamen-te, de dia e de noite. E, à volta dela, sentavam-seeternamente, os vivos.

Embora sendo o mago mais poderoso quevivia em Krynn, o poder de Raistlin estava longede ser completo, e ninguém tinha mais noçãodisso do que o próprio mago. Via-se forçado alembrar-se dessa sua fraqueza quando penetravanesta sala, razão porque a evitava, quando possí-vel. Pois que aqui estavam os símbolos visíveis ecorpóreos dos seus insucessos: os vivos.

Criaturas miseráveis erroneamente criadaspor magia que correra mal, eram mantidos es-cravos nesta sala, servindo o seu criador. Aquiviviam as suas vidas torturadas, contorcendo-seem massas disformes em redor da poça ardente.Os seus corpos úmidos e brilhantes constituíamum carpete horrível para o chão, cujas pedras,tornadas escorregadias devido às suas massaslíquidas, só poderiam ser avistadas quando ascriaturas se afastavam para deixar passar o seucriador.

Contudo, apesar das suas vidas de dorconstante, os vivos nunca proferiam uma palavrade queixume. Era bem melhor a sua sina do quedaqueles que perambulavam pela torre, os queeram conhecidos como os mortos...

Raistlin materializou-se na câmara da vi-são, uma sombra negra emergindo das trevas. Achama azul refletia-se nos bordados prateados

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que decoravam as suas vestes, brilhando no teci-do preto. Dalamar surgiu ao seu lado, e os doiscaminharam para a plataforma junto da superfí-cie da água parada e negra.

— Onde? — inquiriu Raistlin.— Aqui, m-mestre — balbuciou um dos

vivos, apontando um apêndice disforme.Raistlin apressou-se a colocar-se ao lado

do ser, com Dalamar caminhando junto dele, asvestes negras emitindo um ruído suave e sussur-rante sobre o chão de pedra escorregadiço. Fi-tando a água, Raistlin instruiu Dalamar para pro-ceder da mesma forma. O duende negro olhoupara a superfície parada, avistando, por momen-tos, apenas o reflexo do jato de chama azul. Nes-sa altura, a chama e a água fundiram-se, depoissepararam-se e encontrou-se numa floresta. Umgrande macho humano, vestido com uma arma-dura de dimensões erradas, fitava o corpo deuma jovem fêmea humana, trajando vestes bran-cas. Um kender ajoelhava-se junto do corpo damulher, segurando a mão dela na sua. Dalamarouviu o homem grande falar de forma tão claracomo se tivesse estado ao lado dele.

— Ela está morta...— Eu... eu não estou bem certo, Caramon. Pen-

so...— Já vi a morte vezes sem conta, acredita em

mim. Está morta. E a culpa é toda minha... toda mi-nha...

— Caramon, grande imbecil! — rosnouRaistlin com uma imprecação — O que aconte-

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ceu? O que correu mal?Quando o mago falou, Dalamar viu o ken-

der olhar para cima rapidamente.— Disse alguma coisa? — perguntou o ken-

der ao grande humano, que trabalhava no solo.— Não. Foi apenas o vento.— O que está fazendo?— Cavando uma sepultura. Temos que enterrá-

la.— Enterrá-la? — Raistlin soltou um riso

breve e amargo — Oh, é claro, grande idiota! Éa única coisa que te ocorre fazer! — O magolibertou fumaça — Enterrá-la! Tenho que sabero que aconteceu! — Voltou-se para o vivo.

— O que viu?— E-eles a-acamparam nas á-árvores, m-

mestre — Caía espuma da boca da criatura, tor-nando o seu discurso quase incompreensível —D-draco m-matar...

— Draconianos? — repetiu Raistlin,completamente surpreendido — Perto de Sola-ce? De onde vieram?

— N-não saber! Não saber! — O vivo es-tava aterrorizado — E-eu...

— Shhh — avisou Dalamar, chamandonovamente a atenção do seu mestre para a poça,onde o kender discutia.

— Caramon, não pode enterrá-la! Ela...— Não temos alternativa. Sei que não é ade-

quado, mas Paladine cuidará para que a sua alma viajeem paz. Não podemos nos atrever a construir uma pirafunerária, com esses draconianos por aí...

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— Mas, Caramon, acho realmente que devia o-lhar para ela! Não há nem uma marca no seu corpo!

— Não quero olhar para ela! Está morta! Aculpa é minha! Vamos enterrá-la aqui. Depois regressa-mos a Solace, regressamos para cavar a minha própriasepultura...

— Caramon!— Vai buscar umas flores e deixe-me só.Dalamar viu o grande homem levantar a

terra úmida simplesmente com as mãos, atiran-do-a para o lado ao mesmo tempo em que aslágrimas lhe deslizavam pelo rosto. O kenderpermaneceu junto do corpo da mulher, indeciso,o rosto coberto de sangue seco e revelando umaexpressão mista de pesar e dúvida.

— Nenhuma marca, nenhuma ferida, dra-conianos surgindo do nada... — Raistlin franziua sobrancelha, pensativamente. Depois, de súbi-to, ajoelhou-se junto do vivo, que se afastou dele— Fala. Conte-me tudo. Preciso saber. Por quenão fui chamado mais cedo?

— O...os d...draco m...matar, m...mestre— balbuciou a voz do vivo, com grande sofri-mento — M...mas o g...grande h...homemm...matar também. D...depois a...aparecerg...grandes t...trevas! O...olhos de f...fogo. E...euf...ficar com m...medo. F... ficar com m... medode c... cair na á... água...

— Encontrei o vivo deitado à beira dapoça — informou Dalamar, friamente —, quan-do um dos outros me disse que algo de estranhoestava acontecendo. Olhei para a água. Conhe-

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cedor do seu interesse nesta fêmea humana, pen-sei que...

— Muito bem — murmurou Raistlin, in-terrompendo impacientemente a explicação deDalamar. Os olhos dourados do mago estreita-ram-se e os lábios comprimiram-se. Sentindo aira dele, o pobre vivo arrastou o corpo para omais longe possível do mago. Dalamar conteve arespiração. Mas a ira de Raistlin não lhe era diri-gida.

— Grandes trevas, olhos de fogo... LordeSoth! Então, minha irmã, traiu-me — murmurouRaistlin — Cheiro o seu medo, Kitiara! Grandecovarde! Poderia ter-te tornado na rainha destemundo. Poderia ter-te dado riqueza imensurável,poder ilimitado. Mas não. Não passa, afinal, deum reles verme!

Raistlin permaneceu em silêncio, ponde-rando, fitando a poça de águas paradas. Quandovoltou a falar, a sua voz era suave e letal.

— Não me esquecerei disto, minha queri-da irmã. Tem a felicidade de eu ter agora emmãos assuntos mais urgentes e importantes, ouestaria habitando com o lorde fantasma que teserve! — O punho fraco de Raistlin cerrou-se,mas depois, com um esforço óbvio, conseguiudescontrair-se — Mas, agora, o que fazer quantoa isto? Tenho que agir de alguma forma antesque o meu irmão plante a eclesiástica numa camade flores!

— Shalafi, o que aconteceu? — aventurouDalamar, com grande ousadia — Esta... mulher.

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O que representa ela para você? Não compreen-do.

Raistlin olhou para Dalamar irritado e pa-recia ir repreendê-lo pela sua impertinência. De-pois, o mago hesitou. Os seus olhos douradosreluziram com uma luz interior que fez Dalamarestremecer, antes de voltarem à sua expressãoimpassiva.

— Claro, aprendiz. Há de ficar sabendode tudo. Mas, primeiro...

Raistlin parou. Uma outra figura entraraem cena na floresta que observavam com tantaatenção. Era uma anã boba, revestida de traposbrilhantes e esfarrapados, arrastando atrás de sium enorme saco ao caminhar.

— Bupu! — murmurou Raistlin, o sorrisoraro tocando-lhe nos lábios — Excelente. Maisuma vez irá me servir, minha pequenina.

Estendendo a mão, Raistlin tocou na águaparada. Os vivos em redor da poça gritaram hor-rorizados, pois viram já muitos da sua espéciecaírem naquela água escura apenas para murchare definhar, tornando-se em nada mais do queuma coluna de fumaça, erguendo-se no ar comum grito. Mas Raistlin limitou-se a murmurarpalavras suaves, retirando depois a mão. Os de-dos estavam brancos como o mármore e um es-pasmo de dor rasgou-lhe o rosto. Apressada-mente, enfiou a mão numa algibeira das suasvestes.

— Observe — sussurrou, excitado.Dalamar fitou a água, vendo a anã apro-

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ximar-se da forma imóvel sem vida da mulher.— Eu ajudar.— Não, Bupu!— Você não gostar da minha magia! Eu ir para

casa. Mas primeiro eu ajudar linda senhora.— Mas o que, em nome do abismo... —

murmurou Dalamar.— Observe! — comandou Raistlin.Dalamar viu a pequena e imunda mão da

anã mergulhar no saco que trazia ao seu lado.Depois de remexer no interior durante algunsmomentos, emergiu com um objeto repugnante:um lagarto morto com uma tira de couro à voltado pescoço. Bupu aproximou-se da mulher e,quando o kender tentou impedi-la, ameaçou-ocom o pequeno punho cerrado. Com um suspiroe um olhar lateral para Caramon, que escavavafuriosamente, com o rosto transformado numamáscara de pesar e sangue, o kender deu um passoatrás. Bupu saltou para o lado da forma sem vidada mulher e, cuidadosamente, colocou o lagartomorto sobre o peito imóvel.

Dalamar tossiu.O peito da mulher moveu-se e as vestes

brancas estremeceram.Começou a respirar, profunda e tranqüi-

lamente.O kender soltou um grito.— Caramon! Bupu curou-a! Está viva! Olha!— Mas o que... — O grande homem parou

de cavar e avançou, fitando a anã boba com es-panto e receio.

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— Lagarto curar — disse Bupu em triunfo— Funciona sempre.

— Sim, minha pequenina — disse Raistlinainda sorrindo — Também resulta bem comtosses fortes, tanto quanto me recordo — Ace-nou a mão por cima da água parada. A voz domago tornou-se num cantar de embalar — Eagora dorme, meu irmão, antes que faça maisalguma coisa estúpida. Dorme, kender, dorme,pequena Bupu. E durma também, Lady Crysania,no reino onde Paladine a protege.

Ainda cantando, Raistlin fez um gestocom a mão.

— E agora vem, floresta de Wayreth. Ras-teja para cima deles enquanto dormem. Canta-lhes a sua cantiga mágica. Atrai-os para os seuscaminhos secretos.

O feitiço estava terminado. Levantando-se, Raistlin voltou-se para Dalamar.

— E você vem também, aprendiz — Ha-via um leve sarcasmo na voz dele que fez o du-ende negro estremecer — Vem ao meu estúdio.Chegou a hora de conversarmos.

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CAPÍTULO 9

Dalamar sentou-se na mesma cadeira queKitiara ocupara durante a sua visita. O duendenegro estava muito menos confortável, muitomenos seguro do que Kitiara estivera. Contudo,os seus receios mantinham-se bem contidos. Porfora, parecia descontraído, à vontade. As coresmais carregadas sobre as suas feições de duendepoderiam ser atribuídas, talvez, à sua excitaçãopelo fato de ter merecido a confiança do seumestre.

Dalamar já estivera no estúdio por diver-sas vezes, embora não na presença do seu mes-tre. Raistlin passava aqui as noites sozinho, len-do, estudando tomos que enchiam as paredes.Nessas ocasiões, ninguém se atrevia a perturbá-

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lo. Dalamar só entrava no estúdio durante o dia,e só quando Raistlin estava ocupado num outrolado qualquer. Nessas horas, o duende negroaprendiz tinha permissão, mais, era-lhe exigido,que estudasse ele próprio os livros de feitiços,isto é, alguns deles. Fora-lhe proibido abrir, ousequer tocar, naqueles que possuíam a encader-nação azul-escura.

Dalamar fizera-o uma vez, é claro. A en-cadernação tinha um toque intensamente frio,tão frio que lhe queimou a pele. Ignorando ador, conseguiu abrir a capa mas, depois de umaespreitadela, apressou-se a fechá-lo. As palavrasno interior estavam numa linguagem inarticula-da, incompreensível. E conseguira detectar ofeitiço de proteção lançado sobre eles. Qualquerpessoa que olhasse para os livros durante muitotempo sem a chave adequada para traduzi-los,enlouqueceria.

Vendo a mão ferida de Dalamar, Raistlinperguntara-lhe como é que isso acontecera. Oduende negro respondera calmamente que der-ramara um pouco de ácido de um componentede feitiço que estivera preparando. O mago su-premo sorrira e nada dissera. Não havia necessi-dade. Ambos compreenderam.

Mas, agora, encontrava-se no estúdio deRaistlin a seu convite, sentando-se aqui numabase mais ou menos igual à do seu mestre. Maisuma vez, Dalamar sentiu o velho receio origina-do pela excitação intoxicante.

Raistlin estava sentado na sua frente na

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mesa de madeira esculpida, com uma mão pou-sada sobre um espesso livro de feitiços de enca-dernação azul-escura. Os dedos do mago supre-mo acariciavam distraídos o livro, percorrendoos símbolos prateados sobre a capa. Os olhos deRaistlin fitavam Dalamar fixamente. O duendenegro não se moveu nem se agitou perante aque-le intenso e penetrante olhar.

— Era muito novo para ter feito o teste— disse Raistlin, abruptamente, na sua voz sua-ve.

Dalamar pestanejou. Não era disto que es-tava à espera.

— Não era tão novo quanto o senhor,Shalafi — respondeu o duende negro — Estouna casa dos 90, o que dá cerca de 25 dos vossosanos humanos. O senhor, creio, tinha apenas 21quando fez o teste.

— Sim — murmurou Raistlin, e umasombra passou pela pele tingida de dourado domago — Eu tinha... 21.

Dalamar viu a mão pousada sobre o livrode feitiços contorcer-se numa dor súbita; viu osolhos dourados reluzirem. O jovem aprendiznão ficou nada surpreendido perante esta revela-ção de emoção. O teste é exigido a qualquer ma-go que procure praticar as artes da magia numnível avançado. Administrado na Torre de AltaFeitiçaria de Wayreth, é conduzido pelos chefesdas três vestes. Pois, há muito tempo atrás, osutilizadores de magia de Krynn aperceberam-sedo que escapara aos clérigos. Para que o equilí-

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brio do mundo fosse mantido, o pêndulo deveriaoscilar livremente para trás e para frente entre ostrês: bem, mal, neutralidade. Se um deles cres-cesse de forma mais poderosa, qualquer deles, omundo começaria a tender para a sua destruição.

O teste é brutal. Os níveis mais elevadosde magia, onde o verdadeiro poder é conseguido,não são para os inaptos. O objetivo do teste éprecisamente livrar-se desses, permanentemente:a morte constitui a pena para o insucesso. Dala-mar ainda tinha pesadelos sobre o seu próprioteste, por isso podia compreender bem a reaçãode Raistlin.

— Eu passei — murmurou Raistlin, osolhos fitando esse tempo longínquo — Mas,quando saí daquele lugar terrível, estava comome vê agora. A minha pele tinha esta coloraçãodourada, o cabelo branco, e os meus olhos... —Regressou ao presente, para olhar fixamente paraDalamar — Sabe o que vejo com estes olhos deampulheta?

— Não, Shalafi.— Vejo o tempo tal como ele afeta todas

as coisas — replicou Raistlin — A carne humanadefinha perante estes olhos, as flores secam emorrem, as próprias rochas desfazem-se quandoas observo. Na minha visão é sempre Inverno.Mesmo você, Dalamar... — os olhos de Raistlincaptaram e cativaram o jovem aprendiz no seuhorrível olhar —, até a carne dos duendes, queenvelhece tão lentamente com a passagem dosanos, é como um aguaceiro na Primavera. Mes-

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mo no seu jovem rosto, Dalamar, vejo a marcada morte!

Dalamar estremeceu e, desta vez, nãoconseguiu ocultar as suas emoções. Involuntari-amente, encolheu-se para trás nos almofadões dacadeira. Um feitiço de proteção veio-lhe de ime-diato à mente, tal como, espontaneamente, umfeitiço com o intuito de ferir e não de defender.Idiota! Criticou-se, controlando-se rapidamente;que feitiço meu poderia matar a ele?

— É verdade, é verdade — murmurouRaistlin, respondendo aos pensamentos de Da-lamar, tal como fazia freqüentemente — Nãoexiste ninguém em Krynn com poder para memolestar. E seguramente que não é você, apren-diz. Mas é bravo. Tem coragem. Esteve muitasvezes ao meu lado no laboratório, enfrentandoaqueles que tenho arrastado dos níveis das suasexistências. Sabia que, bastava eu respirar na ho-ra indevida e eles arrancariam os corações vivosdos nossos corpos e os devorariam, enquantodefinhávamos perante eles em tormento.

— Foi um privilégio — murmurou Dala-mar.

— Sim — replicou Raistlin absorto, ospensamentos muito longe dali. Depois, ergueuuma sobrancelha — E sabia, não é verdade, quese tal acontecesse, eu me salvaria a mim mas nãoa você?

— Claro, Shalafi — respondeu Dalamarcom firmeza — Compreendo e aceito o risco —Os olhos do duende negro reluziram. Esquecen-

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do-se dos seus receios, a excitação o fez inclinar-se na cadeira — Não, Shalafi, eu convido os riscos!Sacrificaria tudo pela...

— Magia — terminou Raistlin.— Sim! Pela magia! — gritou Dalamar.— E pelo poder que ela confere — assen-

tiu Raistlin — É ambicioso. Mas... quão ambi-cioso, pergunto a mim mesmo? Procura, talvez,governar os homens da sua raça? Ou talvez umreino em qualquer lugar, mantendo o monarcacomo seu servo enquanto desfruta da riquezadas terras dele? Ou talvez uma aliança com al-gum lorde negro, tal como foi feito nos dias dosdragões, não há muito tempo atrás. A minha ir-mã, Kitiara, por exemplo, achou-te bastante a-traente. Ela gostaria de te ter por perto. Sobretu-do se tiver algumas artes mágicas que possa pra-ticar no quarto...

— Shalafi, eu nunca profanaria...Raistlin acenou uma mão.— Estava brincando, aprendiz. Mas per-

cebe o que quero dizer. Algum deles reflete osseus sonhos?

— Bem, claro que sim, Shalafi — Dalamarhesitou, confuso. Onde estaria conduzindo tudoaquilo? Para algumas informações que pudessecomunicar, desejou, mas, quanto poderia revelarde si mesmo? — Eu...

Raistlin interrompeu-o.— Sim, já vejo que cheguei perto da mar-

ca. Descobri as alturas da sua ambição. Nuncaadivinhou a minha?

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Dalamar sentiu uma emoção de alegriapercorrer-lhe o corpo. Fora para descobrir istoque o tinham enviado. O jovem mago respondeulentamente.

— Já tenho me interrogado muitas vezes,Shalafi. É tão poderoso... — Dalamar fez sinalpara a janela, através da qual se podiam avistar asluzes de Palanthas, reluzindo na noite — ...estacidade, esta terra de Solamnia, este continente deAnsalon poderiam ser seus.

— Este mundo poderia ser meu! — Rais-tlin sorriu, os lábios finos parcialmente separa-dos — Já avistamos as terras para lá dos mares,não é assim, aprendiz? Quando olhamos atravésda água flamejante, podemos vê-las e àqueles quelá habitam. Controlá-los seria a própria simplici-dade em si mesma...

Raistlin levantou-se. Caminhando para ajanela, fitou a cidade cintilante espalhada perantesi. Sentindo a excitação do seu mestre, Dalamardeixou a cadeira e seguiu-o.

— Poderia dar-te aquele reino, Dalamar— disse Raistlin suavemente. Puxou a cortinacom a mão, os seus olhos repousando sobre asluzes que brilhavam com mais calor do que asestrelas no céu — Poderia dar-te não só o go-verno dos miseráveis homens da sua raça, mastambém o controle de todos os kenders de Krynn— Raistlin encolheu os ombros — Poderia dar-te a minha irmã.

Voltando-se da janela, Raistlin enfrentouDalamar, que o observava ansiosamente.

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— Mas nada disso me interessa — gesti-culou Raistlin, deixando cair a cortina —, nada.A minha ambição é muito mais vasta.

— Mas, Shalafi, não sobra muita coisa pa-ra se recusar o mundo — Dalamar não compre-endia — A menos que tenha visto mundos paralá deste, invisíveis aos meus olhos...

— Mundos para lá deste? — ponderouRaistlin — Pensamento interessante. Talvez umdia deva considerar essa possibilidade. Mas não,não era a isso que me referia — O mago fez umapausa e, com um movimento da mão, chamouDalamar para mais perto de si — Já viu a grandeporta mesmo nas traseiras do laboratório? Aporta de aço, com símbolos de prata e ouro in-crustados? A porta sem fechadura?

— Sim, Shalafi — replicou Dalamar, sen-tindo um arrepio de frio percorrê-lo, que nem ocalor do corpo de Raistlin, tão próximo dele,conseguiu dispersar.

— Sabe onde conduz essa porta?— Sim... Shalafi — Um murmúrio.— E sabe por que não está aberta?— Não consegue abri-la, Shalafi. Só uma

pessoa de grande e poderosa magia e outra comverdadeiros poderes sagrados podem abrir, emconjunto... — Dalamar parou, a garganta cerran-do-se de medo, impedindo-o de falar.

— Sim — murmurou Raistlin —, enten-deu. “Uma pessoa com verdadeiros poderes sa-grados.” Agora sabe por que preciso dela! Agoracompreende as alturas e as profundezas da mi-

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nha ambição.— Isso é loucura! — conseguiu proferir

Dalamar, baixando depois os olhos, envergo-nhado — Perdoe-me, Shalafi, não quis faltar-lheao respeito.

— Não, e está certo. É loucura, com osmeus poderes limitados — Notava-se um tomde amargura na voz do mago — É por essa ra-zão que vou fazer uma viagem.

— Viagem? — Dalamar olhou para cima— Onde?

— Não é onde... é quando — corrigiuRaistlin — Tem me ouvido falar de Fistandanti-lus?

— Muitas vezes, Shalafi — disse Dalamar,com voz quase de reverência — O maior danossa ordem. Aqueles são os seus livros de feiti-ços, os que possuem a encadernação azul-escura.

— Inadequados — afirmou Raistlin, reve-lando quase desprezo perante toda a bibliotecacom um gesto — Já li todos, muitas vezes nestesanos que passaram, desde que obtive a chave dosseus segredos da própria Rainha das Trevas. Maseles só servem para me frustrar! — Raistlin cer-rou a mão magra — Leio estes livros de feitiçose detecto grandes lapsos, faltam volumes intei-ros! Talvez tivessem sido destruídos no Cata-clismo ou, mais tarde, nas guerras de Dwargateque provaram ter sido a causa da destruição deFistandantilus. Esses volumes que faltam, esteconhecimento que foi perdido, me fornecerão opoder de que necessito!

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— E assim, a sua viagem o levará... —Dalamar parou, em descrença.

— Atrás, no tempo — afirmou Raistlincalmamente — De volta aos dias que antecede-ram o Cataclismo, quando Fitandantilus estavano auge do seu poder.

Dalamar sentia-se tonto, os pensamentosagitando-se em confusão. O que diriam eles? Comtodas as suas especulações, seguramente não ti-nham previsto isto!

— Tenha calma, meu aprendiz — A vozsuave de Raistlin parecia chegar a Dalamar demuito longe — Isto te perturbou. Quer um pou-co de vinho?

O mago dirigiu-se a uma mesa. Erguendoa garrafa, encheu um pequeno copo com umlíquido cor de sangue e passou-o ao duende ne-gro. Dalamar aceitou-o com gratidão, ao come-çar a ver a mão tremendo. Raistlin serviu-setambém de um pequeno copo.

— Não bebo com freqüência este estra-nho vinho, mas, esta noite, penso que devemoscelebrar. Um brinde à... como disse?. Pessoa deverdadeiros poderes sagrados. Ou seja, à LadyCrysania!

Raistlin bebeu o vinho em pequenos tra-gos. Dalamar despejou o copo de uma só vez. Olíquido ardente provocou-lhe uma forte impres-são na garganta. Tossiu.

— Shalafi, se o vivo informou correta-mente, Lorde Soth lançou um feitiço de mortesobre Lady Crysania. Contudo, ela ainda vive.

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Concedeu-lhe a vida de novo?Raistlin abanou a cabeça.— Não, limitei-me a dar-lhe sinais visíveis

de vida para que o meu querido irmão não a en-terrasse. Não posso ter a certeza do que aconte-ceu, mas não é difícil de adivinhar. Vendo o ca-valeiro da morte perante ela e sabendo qual seriao seu destino, a Venerável Filha combateu o fei-tiço com a única arma que possuía, e se era po-derosa: o medalhão sagrado de Paladine. O deusprotegeu-a, transportando a alma dela para osreinos onde os deuses vivem, deixando o seucorpo apenas como uma carcaça sobre o solo.Não existe ninguém, nem mesmo eu, que consi-ga juntar de novo a alma e o corpo. Só um su-premo clérigo de Paladine tem esse poder.

— Elistan?— Bah, o homem está doente, moribun-

do...— Nesse caso, está perdida para si!— Não — afirmou Raistlin suavemente

— Não consegue compreender, aprendiz. Atra-vés da desatenção, perdi o controle. Mas recupe-rei-o rapidamente. Não apenas isso, tomarei estetrabalho em meu benefício. Neste preciso mo-mento, eles aproximam-se da Torre de Alta Fei-tiçaria. Crysania ia para lá, buscando o auxíliodos magos. Quando chegar, encontrará esse au-xílio, tal como o meu irmão.

— Quer que eles a ajudem? — inquiriuDalamar, confuso — Ela está planejando destru-í-lo!

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Raistlin bebericou o seu vinho em silên-cio, observando atentamente o jovem aprendiz.

— Pensa bem, Dalamar — disse, suave-mente —, pensa bem e há de compreender.Mas... — o mago pousou o copo vazio... — já teretive tempo suficiente.

Dalamar olhou pela janela. A lua verme-lha, Lunitari, começava a ficar fora de vista, a-fundando-se por detrás dos cumes negros dasmontanhas. A noite atingia o seu ponto médio.

— Tem que fazer a sua viagem e regressarantes de eu partir de manhã — prosseguiu Rais-tlin — Haverá sem dúvida instruções de últimahora, para além de muitas coisas que quero dei-xar ao seu cuidado. Ficará gerindo tudo, é claro,enquanto eu estiver fora.

Dalamar assentiu e depois franziu a so-brancelha.

— Falou na minha viagem, Shalafi? Nãovou a lado nenhum... — O duende negro parouao recordar-se que, com efeito, tinha onde ir, umrelatório a apresentar.

Raistlin observou o jovem duende em si-lêncio, o aspecto de compreensão horrorizadaque caiu sobre o rosto de Dalamar refletindo-senos olhos espelhados do mago.

Depois, lentamente, Raistlin avançou parao jovem aprendiz, as veste negras roçando-lhegentilmente pelos tornozelos. Paralisado peloterror, Dalamar não conseguia se mover. Nãoconseguia proferir feitiços de proteção. A suamente não conseguia pensar em nada, ver nada,

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com exceção de dois olhos planos, insensíveis edourados.

Lentamente, Raistlin ergueu a mão e pou-sou-a com suavidade sobre o peito de Dalamar,tocando nas vestes negras do jovem com as pon-tas dos cinco dedos.

A dor constituiu um verdadeiro suplício.O rosto de Dalamar ficou branco, os seus olhosabriram-se muito, tossiu de agonia. Mas o duen-de negro não conseguia afastar-se daquele toqueterrível. Capturado pelo olhar de Raistlin, Dala-mar nem tinha possibilidades de gritar.

— Conte-lhes exatamente aquilo que aca-bei de te transmitir — murmurou Raistlin —, eaquilo que possa ter adivinhado. E apresenta osmeus cumprimentos a Par-Salian... aprendiz

O mago retirou a mão.Dalamar caiu desfalecido no chão, aper-

tando o peito, gemendo. Raistlin contornou-o,sem lhe lançar sequer um olhar. O duende negropôde ouvi-lo saindo do aposento, o roçar suavedas vestes negras, a porta abrindo-se e fechando-se.

Num arrebatamento de dor, Dalamar ras-gou as vestes. Cinco fios de sangue, vermelhos ebrilhantes, escorriam-lhe pelo peito, encharcan-do o tecido negro, jorrando de cinco orifíciosque tinham sido queimados na sua carne.

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CAPÍTULO 10

— Caramon! Levante-se! Acorda!Não. Estou na minha sepultura. Aqui está

quente, por baixo do solo, quente e seguro. Nãopode me despertar, não pode chegar até mim.Estou escondido na lama, não pode me encon-trar.

— Caramon, tem que ver isto! Acorda!Uma mão dispersou a escuridão e tocou

nele.Não, Tika, vai embora! Já me restituiu a

vida uma vez, de volta para a dor e sofrimento.Devia ter me deixado no doce reino das trevaspor baixo do Mar Sangrento de Istar. Mas, porfim, encontrei a paz. Cavei a minha sepultura eenterrei-me.

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— Eh, Caramon, é melhor acordar e ver isto!Aquelas palavras! Eram familiares. Claro,

eu próprio as afirmei! Disse-as a Raistlin há mui-to tempo atrás, quando ele e eu viemos a florestapela primeira vez. Então, como posso estar aouvi-las? A menos que eu seja Raistlin... Ah, issoé...

Uma mão mexeu-lhe na pálpebra! Doisdedos estavam a abri-la! Perante o toque, o me-do percorreu a circulação sangüínea de Caramon,fazendo o seu coração começar a bater acelera-damente.

— Ahhhh! — Caramon rosnou alarmado,tentando rastejar pelo solo quando aquele olhoaberto à força avistou um rosto gigantesco es-preitando por cima dele, o rosto de uma anã bo-ba!

— Ele estar acordado — informou Bupu— Toma — disse para Tasslehoff —, seguraeste olho. Eu abrir outro olho.

— Não! — gritou Tas apressadamente.Arrastando Bupu para longe do guerreiro, Taspuxou-a para trás dele.

— Uh... vai buscar um pouco de água.— Boa idéia — observou Bupu e afastou-

se.— Está... está tudo bem, Caramon — a-

firmou Tas, ajoelhando-se ao lado do grandehomem e uns tapinhas para sossega-lo — Eraapenas Bupu. Desculpa, mas eu estava... uh...olhando para... bem, você verá, e esqueci-me detomar conta dela.

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Resmungando, Caramon cobriu o rostocom a mão. Com a ajuda de Tas, conseguiu sen-tar-se.

— Sonhei que estava morto — disse, pe-sadamente.

— Depois vi aquele rosto e soube que es-tava tudo acabado. Eu estava no abismo.

— Quem te dera estar — afirmou Tassombriamente. Caramon olhou para cima peran-te o tom invulgarmente sério do kender.

— Porquê? O que quer dizer? — inquiriu,severamente. Em vez de responder, Tas pergun-tou.

— Como se sente?Caramon carregou a sobrancelha.— Estou sóbrio, se é isso que quer saber

— murmurou o grande homem — E bem, pediaos deuses para não estar. Pronto.

Tasslehoff fitou-o Pensativamente por al-guns instantes e depois, lentamente, enfiou amão na algibeira e retirou uma garrafa revestidade couro.

— Toma, Caramon — disse, em tomcalmo —, se realmente pensa que precisa disso.

Os olhos do grande homem reluziram.Com ansiedade, estendeu uma mão que tremia epegou na garrafa. Tirou a rolha, cheirou-a, sorriue levou-a aos lábios.

— Pára de olhar para mim! — ordenou aTas.

— Des... desculpa — Tas corou. Levan-tou-se — V... vou procurar Lady Crysania...

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— Crysania... — Caramon baixou a garra-fa, sem prová-la. Esfregou os olhos — É verda-de. Esqueci-me dela. Boa idéia, vá procurá-la.Pegue ela e leve-a daqui. Você e aquela sua anã!Vão-se embora e deixem-me só! — Levando denovo a garrafa aos lábios, Caramon bebeu umlongo trago. Tossiu, baixou a garrafa e limpou aboca com a palma da mão — Então, vai-te —repetiu, olhando para Tas aborrecido —, sai da-qui! Todos vocês! Deixem-me só!

— Lamento, Caramon — disse Tas emtom tranqüilo — Bem desejava poder fazê-lo.Mas não podemos.

— Porquê? — resmungou Caramon. Tasrespirou fundo.

— Porque, se bem me recordo das histó-rias que Raistlin me contou, penso que a florestade Wayreth nos encontrou.

Por momentos, Caramon fitou Tas, os o-lhos raiados de sangue muito abertos.

— Isso é impossível — disse, após algunsmomentos, as palavras não passando de um sus-surro — Estamos a milhas de lá! Levou a mim ea Raist... demoramos dois meses para encontrara floresta! E a torre situa-se muito a sul daqui!Fica muito para lá de Qualinesti, de acordo como seu mapa — Caramon olhou para Tas malig-namente — Não é o mesmo mapa que mostrouTarsis junto do mar, não é?

— Pode ser — esquivou-se Tas, enrolan-do apressadamente o mapa e escondendo-o atrásdas costas — Tenho tantos... — Mudou rapida-

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mente de assunto — Mas Raistlin disse que erauma floresta mágica, pelo que penso pode ternos encontrado, se tal fosse o seu objetivo.

— É uma floresta mágica — murmurouCaramon, a voz profunda e tremendo — É umlugar de horror — Fechou os olhos e abanou acabeça, depois, subitamente, olhou para cima, orosto cheio de astúcia — Trata-se de um truque,não é? Um truque para evitar que beba! Bem,não vai resultar...

— Não é nenhum truque, Caramon —Tas suspirou. Depois, apontou — Olha para ali.É exatamente como Raistlin me descreveu umavez.

Voltando a cabeça, Caramon viu e estre-meceu, quer perante a visão, quer perante as a-margas memórias do seu irmão que lhe surgiram.

O local onde estavam acampados era umapequena clareira coberta de relva, a alguma dis-tância da trilha principal. Estava rodeada de bor-dos, pinheiros, nogueiras e mesmo alguns chou-pos. As árvores começavam a desabrochar. Ca-ramon olhara para elas enquanto cavava a sepul-tura de Crysania. Os ramos brilhavam com a luzdo sol do início da manhã, com o leve reluziramarelo-esverdeado da Primavera. Flores silves-tres brotavam nas suas raízes, as primeiras floresda Primavera: açafrão e violetas.

Ao olhar em redor, Caramon viu que estasmesmas árvores ainda os cercavam, de três lados.Mas, agora, no outro lado, o lado sul, as árvorestinham mudado.

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Estas árvores, na sua maioria mortas, er-guiam-se lado a lado, alinhadas de forma regular,fila após fila. Aqui e ali, quando se olhava maispara o interior da floresta, podia ser avistada umaárvore viva, vigiando como um oficial as fileirassilenciosas das suas tropas. O sol não brilhavanesta floresta. Uma neblina espessa e nociva li-bertava-se das árvores, obscurecendo a luz. Aspróprias árvores eram horríveis, retorcidas e dis-formes, os ramos mais parecendo grandes garrasarrastando o solo. Os ramos não se moviam,nenhum vento agitava as suas folhas mortas.Mas, o mais horroroso, as coisas no interior dafloresta moviam-se. Enquanto Caramon e Tasobservavam, puderam ver sombras esvoaçandopor entre os troncos, esquivando-se por entre osarbustos espinhosos mais baixos.

— Olha para isto — disse Tas. Ignorandoo grito alarmado de Caramon, o kender correu emdireção à floresta. Ao fazê-lo, as árvores afasta-ram-se! Abriu-se um caminho largo, conduzindodiretamente ao coração negro da floresta — Jáviu uma coisa assim? — gritou Tas pasmado,estacando antes de pisar o caminho — E, quan-do retrocedo...

O kender caminhou para trás, afastando-sedas árvores, e os troncos voltaram a unir-se, fe-chando fileiras, apresentando uma barreira sóli-da.

— Está certo — disse Caramon rouca-mente — É mesmo a floresta de Wayreth. Assimnos apareceu a nós, uma manhã — Baixou a ca-

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beça — Eu não queria entrar. Tentei impedirRaist. Mas ele não estava com medo! As árvoresafastaram-se para ele e entrou. “Fica junto demim, meu irmão”, disse-me, “e impedirei quealgum mal te aconteça”. Quantas vezes lhe disse-ra eu essas palavras? Ele não estava com medo!Eu sim!

De súbito, Caramon ergueu-se.— Vamos embora daqui! — Agarrando

freneticamente no saco-cama com as mãos tre-mendo, entornou o conteúdo da garrafa por ci-ma do cobertor.

— Não adianta — disse Tas laconicamen-te — Já tentei. Observe.

Voltando as costas para as árvores, o ken-der caminhou para norte. As árvores não se me-xeram. Mas, inexplicavelmente, Tasslehoff cami-nhava novamente na direção da floresta. Pormais que tentasse, para onde se virasse, acabavasempre caminhando em direção à neblina dasárvores, às fileiras do pesadelo.

Suspirando, Tas veio para junto de Cara-mon. O kender fitou solenemente os olhos turvosde lágrimas e vermelhos do grande homem eestendeu uma pequena mão, pousando-a no bra-ço antes forte do guerreiro.

— Caramon, é o único que já atravessou afloresta! É o único que sabe o caminho. E aindahá outro pormenor — Tas apontou. Caramonvirou a cabeça — Perguntaou sobre Lady Crysa-nia. Ali está ela. Está viva, mas está morta aomesmo tempo. A pele dela parece gelo. Os seus

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olhos fixam algo de terrível. Respira, o coraçãobate, mas é como se lhe corresse no corpo aque-la coisa feita de especiarias que os duendes utili-zam para preservarem os seus mortos! — O ken-der respirou fundo.

— Temos que arranjar auxílio para ela,Caramon. Talvez ali... — Tas apontou para afloresta — ...os magos possam auxiliá-la! Eu nãoposso transportá-la — Ergueu as mãos, numgesto de desalento — Preciso de você, Caramon!Ela precisa de você! Acho que lhe deve ao me-nos isso.

— Dado que a culpa é minha por ter-lheacontecido aquilo? — murmurou Caramon ru-demente.

— Não, não me referia a isso — disseTas, baixando a cabeça e passando a mão pelosolhos — Acho que a culpa não foi de ninguém.

— Não, a culpa é minha — replicou Ca-ramon. Tas olhou para ele, escutando um tom navoz de Caramon que já não ouvia há muito tem-po. O homem enorme pôs-se de pé, fitando agarrafa na mão — Está na hora de enfrentar aminha situação. Tenho culpado toda a gente:Raistlin, Tika... Mas sempre soube, bem no ínti-mo, que o culpado era eu. Chegou até mim, na-quele sonho. Estava deitado no fundo de umasepultura e apercebi-me, isto é o fundo! Nãoposso descer mais. Ou permaneço aqui e permi-to que joguem a terra em cima de mim, tal comoeu ia enterrar Crysania, ou saio daqui para fora— Caramon suspirou, um suspiro longo e fun-

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do. Depois, com súbita resolução, colocou a ro-lha na garrafa e devolveu-a a Tas — Toma —disse, suavemente — Vai ser uma escalada longa,e vou precisar de ajuda, assim espero. Mas nãodesse tipo de ajuda.

— Oh, Caramon! — Tas enroscou osbraços em redor da cintura do grande homem,abraçando-o fortemente — Eu não estava commedo daquela floresta mal-assombrada, palavraque não. Mas não sabia como iria atravessá-lasozinho. Já para não falar em Lady Crysania e...Oh, Caramon! Estou tão feliz por ter voltado!Eu...

— Pronto, pronto — murmurou Cara-mon, corando de vergonha e afastando Tassle-hoff gentilmente — Está tudo bem. Não sei exa-tamente que tipo de ajuda posso prestar. Sentium medo de morte da primeira vez que penetreinaquele lugar. Mas tem razão. Talvez eles pos-sam ajudar Crysania — O rosto de Caramon en-dureceu — Talvez possam também responder aalgumas perguntas que tenho para fazer a respei-to de Raist. Agora, para onde foi aquela anã? E...— olhou para o seu cinto — onde está a minhaadaga?

— Qual adaga? — inquiriu Tas, olhandoem redor para a floresta.

Estendendo a mão, de rosto austero, Ca-ramon apanhou o kender. O seu olhar focou ocinto de Tas. Este seguiu-lhe o olhar. Os seusolhos abriram-se de espanto.

— Referia-se a esta adaga? Com os diabos,

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como terá ela ido parar aí? — disse, pensativa-mente — Aposto que a deixou cair, durante aluta.

— Sim — murmurou Caramon. Resmun-gando, puxou a adaga e estava a colocá-la de no-vo na sua bainha quando escutou um ruído atrásdele. Virando-se rapidamente em alarme, rece-beu um balde cheio de água gelada na cara.

— Ele estar acordado agora — anunciouBupu complacentemente, largando o balde.

Enquanto secava as roupas, Caramon sen-tou-se estudando as árvores, o rosto contorcidodevido à dor das recordações. Por fim, soltandoum suspiro, vestiu-se, verificou as armas e levan-tou-se. De imediato, Tasslehoff deslocou-se parao seu lado.

— Vamos! — disse, ansioso. Caramon es-tacou.

— Para a floresta? — inquiriu, nova vozdesamparada.

— Mas, é claro! — disse Tas, estupefato— Para onde haveria de ser?

Caramon franziu a sobrancelha, depoissuspirou e abanou a cabeça.

— Não, Tas — afirmou, asperamente —Você fica aqui com Lady Crysania. Escute-me —disse, em resposta ao olhar de protesto indigna-do do kender —, vou só entrar na floresta para...eh... dar uma olhada.

— Acha que há alguma coisa lá, não éverdade? — Tas acusou o grande homem — Épor isso que quer que fique de fora! Vai penetrar

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ali e haverá um grande combate. Provavelmentedará cabo do que estiver lá e eu não assistirei anada!

— Duvido — murmurou Caramon. O-lhando com apreensão para a floresta coberta deneblina, apertou o cinto da espada.

— Pelo menos podia me dizer o que pen-sa que é — afirmou Tas — E, Caramon, o quedevo fazer se ela te matar? Depois posso entrar?Quanto tempo devo esperar? Poderá matar-teem, digamos, cinco minutos? Não que eu acredi-te que isso aconteça — acrescentou, rapidamen-te, vendo os olhos de Caramon abrirem-se muito— Mas deveria realmente saber, isto é, já que vaime deixar aqui em comando.

Bupu estudou o guerreiro, profundamenteconcentrada.

— Eu dizer... dois minutos. Ela mata-oem dois minutos. Quer fazer aposta? — Olhoupara Tas.

Caramon olhou severamente para os doise depois libertou outro suspiro. Tas estava ape-nas a ser lógico, afinal de contas.

— Não sei bem o que me espera —murmurou Caramon.

— Lembro-me que, da última vez, nós...nós encontramos uma coisa... uma aparição. Es-sa coisa... Raist... — Caramon ficou em silêncio— Não sei o que devem fazer — disse, após al-guns momentos. De ombros abatidos, virou-se ecomeçou a caminhar lentamente em direção àfloresta — O melhor que puderem, acho.

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— Eu ter bonita cobra aqui, eu dizer doisminutos — afirmou Bupu para Tas, remexendono saco — O que por em jogo?

— Shhh — disse Tas suavemente, obser-vando Caramon a afastar-se. Depois, abanando acabeça, foi-se sentar ao lado de Crysania, deitadano chão, os olhos sem visão fitando o céu. Gen-tilmente, Tas puxou o capuz branco da eclesiás-tica por cima da cabeça dela, encobrindo-a dosraios solares. Tentara, sem êxito, fechar aquelesolhos abertos, mas era como se a carne dela ti-vesse se tornado mármore.

Raistlin parecia caminhar ao lado de Ca-ramon a cada passo que este dava ao penetrar nafloresta. O guerreiro quase podia ouvir o leveroçar das vestes vermelhas do irmão, nessa épo-ca eram vermelhas! Podia escutar a voz do ir-mão, sempre gentil, sempre suave, mas com a-quele leve toque de sarcasmo que tantas vezesofendera os seus amigos. Mas nunca incomodaraCaramon. Compreendera ou, de qualquer forma,pensara que compreendera.

As árvores na floresta moveram-se subi-tamente perante a aproximação de Caramon, talcomo acontecera quando o kender se aproximara.

“Tal como se moveram quando nos apro-ximamos... há quantos anos”, pensou Caramon?“Sete? Só se tinham passado sete anos?” Não,apercebeu-se tristemente. Fora uma vida inteira,uma vida para ambos.

Quando Caramon alcançou o limite dafloresta, o nevoeiro pairava ao longo do solo,

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arrefecendo-lhe os tornozelos com um frio quepenetrava através da carne até os ossos. As árvo-res fitavam-no, os ramos retorcendo-se em ago-nia. Lembrou-se dos bosques torturados de Sil-vanesti e isso trouxe-lhe mais recordações doirmão. Caramon ficou imóvel por instantes, fi-tando a floresta. Podia avistar as formas negras esombrias à sua espera. E Raistlin não estava pre-sente para mantê-las afastadas. Desta vez não.

— Nunca tive medo de nada até ter en-trado na floresta de Wayreth — disse Caramonpara si mesmo em voz baixa — Só lá entrei daúltima vez porque estava comigo, meu irmão. Sóa sua coragem me fez avançar. Como posso ago-ra entrar ali sem você? Trata-se de magia. Eu nãoentendo nada de magia! Não sei como combatercontra ela! Que hipóteses tenho eu? — Caramontapou os olhos com as mãos para apagar a visãohorrível — Não posso penetrar aí — disse, des-troçado — É pedir-me muito!

Puxando a espada de dentro da bainha,empunhou-a. As mãos tremiam-lhe de tal manei-ra que quase deixou cair a arma.

— Hah! — disse, amargamente — Vê?Não conseguiria lutar com uma criança. É-meexigido muito. Não há esperança. Não há espe-rança...

“É fácil ter-se esperança na Primavera, guerreiro,quando o tempo está quente e as árvores vallenwoodsverdes. É fácil ter-se esperança no Verão, quando as val-lenwoods reluzem de ouro. É fácil ter esperança noOutono, quando as vallenwoods estão tão vermelhas

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quanto sangue vivo. Mas, no Inverno, quando o ar é duroe frio e os céus estão cinzentos, será que a vallenwoodmorre, guerreiro?”

— Quem falou? — gritou Caramon, o-lhando em redor, enlouquecido, agarrando naespada, com a mão tremendo.

“Que faz a vallenwood no Inverno, guerreiro,quando tudo está imerso nas trevas e mesmo o sol estágelado? Cava mais fundo, guerreiro. Manda as suas raí-zes para baixo, para baixo, para o interior do solo, parabaixo para o calor do coração do mundo. Aí, bem nofundo, a vallenwood encontra o seu alimento para aju-dá-la a sobreviver às trevas e ao frio, por forma a poderdesabrochar de novo na Primavera”.

— E então? — perguntou Caramon emtom desconfiado, retrocedendo um passo e o-lhando em redor.

“Então, você está agora no Inverno mais negro dasua vida, guerreiro. E também você terá que cavar bemfundo para encontrar o calor e a força que te ajudarão asobreviver ao frio intenso e às terríveis trevas. Já não dis-põe do desabrochar da Primavera nem do vigor do Verão.Terá que encontrar a força de que necessita no seu cora-ção, na sua alma. Então, tal como as vallenwoods,crescerá novamente”.

— As suas palavras são bonitas... — co-meçou Caramon, franzindo a sobrancelha, nãoconfiando nesta conversa de Primavera e árvo-res. Mas não conseguiu terminar, a respiraçãoconteve-se na sua garganta.

A floresta alterava-se perante os seus o-lhos.

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As árvores retorcidas e decadentes endi-reitaram-se enquanto olhava para elas, erguendoos ramos para os céus, crescendo, crescendo,crescendo. Inclinou de tal maneira a cabeça paratrás que quase perdeu o equilíbrio, mas mesmoassim, não conseguia avistar o cume das árvores.Eram árvores vallenwood! Exatamente como asque havia em Solace antes da chegada dos dra-gões. Ao observá-las com espanto, viu que a vidasurgia dos ramos secos: brotaram botões verdes,floriram em folhas verdes reluzentes e adquiri-ram um tom dourado de Verão. As estações iammudando ao ritmo da sua respiração.

O nevoeiro desapareceu, sendo substituí-do por uma fragrância adocicada oriunda dasbonitas flores que se entrelaçaram por entre asraízes das vallemwoods. A escuridão na florestadesapareceu, o sol derramou a sua luz forte so-bre as árvores oscilantes. E, no momento emque a luz do sol tocou nas folhas das árvores, ocanto dos pássaros encheu o ar perfumado.

Tranqüila está a floresta, tranqüilas as suas per-feitas mansões

Onde já não crescemos nem nos degradamos, asnossas árvores

[sempre verdes,A fruta madura cai, riachos calmos e transparen-

tesComo vidro, como o coração em repouso neste dia

perpétuo.Debaixo destes ramos a submissão condescendente

do movimento,

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As questões de chilreios, de amor, deixadas nasfronteiras Com todas as febres, os insucessos dememória.Tranqüila está a floresta, tranqüilas as suas per-feitas mansões.E luz após luz, luz que dissipa as trevas,Por debaixo destes ramos nenhuma sombra, pois

a sombra[foi esquecidaNo calor da luz e no odor frio das folhasOnde crescemos e nos degradamos; nunca mais,

pois as nossas[árvores estarão sempre verdes.Aqui há tranqüilidade, e a música surge após osilêncio,Aqui, no fim do mundo imaginado, onde a clari-dadeCompleta os sentidos, há muito perpetuado ondeobservávamosFruta madura que nunca cai, riachos calmos etransparentes.Onde as lágrimas são secadas dos nossos rostos,

ou apaziguadas,Calmas como um riacho em perfeitos países de

paz,E o viajante abre, permitindo a viagem da luzComo ar, como o coração em repouso neste dia

perpétuo.Tranqüila está a floresta, tranqüilas as suas per-

feitas mansõesOnde já não crescemos nem nos degradamos, as

nossas

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[árvores sempre verdes,A fruta madura que nunca cai, riachos calmos e

transparentesComo o ar, como o coração em repouso neste dia

perpétuo.

Os olhos de Caramon encheram-se de lá-grimas. A beleza da canção trespassou-lhe o co-ração. Havia esperança!

No interior da floresta, encontraria todasas respostas! Encontraria o auxílio que buscava.

— Caramon! — Tasslehoff saltava paracima e para baixo de excitação — Caramon, quemaravilha! Como conseguiu? Ouve os pássaros?Vamos! Depressa.

— Crysania... — disse Caramon, come-çando a voltar para trás — Teremos de improvi-sar uma padiola. Terá que ajudar... — Mas, antesque pudesse terminar, parou, fitando, espantado,duas figuras de vestes brancas que saíam dosbosques dourados. Os seus capuzes estavam pu-xados para cima da cabeça, ocultando-lhes o ros-to. Ambos lhe fizeram uma reverência solene,atravessando depois a clareira para o local ondeCrysania dormia o seu sono de morte. Erguendoo corpo dela com facilidade, carregaram-na parajunto de Caramon. Pararam quando alcançaramo limite da floresta, voltando as cabeças encapu-zadas e olhando para ele com expectativa.

— Penso que estão à espera que entreprimeiro, Caramon — disse Tas alegremente —Vai à frente, vou buscar Bupu.

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A anã permanecia no centro da clareira,mirando a floresta com profunda suspeita, queCaramon, olhando para as duas figuras de vestesbrancas, depressa partilhou.

— Quem são vocês? — perguntou.Não responderam. Ficaram imóveis, a-

guardando.— Que importa quem eles são! — disse

Tas, agarrando impacientemente em Bupu e ar-rastando-a, com o saco a bater-lhe nos pés.

Caramon franziu a sobrancelha.— Vão vocês à frente — Gesticulou para

as figuras de vestes brancas. Eles nada disseramnem se moveram.

— Por que estão à espera que penetrenessa floresta? — Caramon deu um passo atrás— Vão à frente — gesticulou —, levem-na paraa torre. Vocês podem ajudá-la. Não precisam demim...

As figuras não falaram, mas uma ergueu amão, apontando.

— Vamos, Caramon — disse Tas — O-lha, parece que está nos convidando!

— Eles não nos molestarão, irmão... Fomos con-vidados! — As palavras de Raistlin, proferidas hásete anos atrás.

— Magos nos convidando. Não confioneles — Caramon repetiu suavemente a respostaque dera naquela altura.

De súbito, o ar encheu-se de riso, um risoestranho, sinistro, murmurado. Bupu lançou osbraços em redor da perna de Caramon, agarran-

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do-se a ele aterrada. Mesmo Tasslehoff pareciaum pouco perturbado. Então surgiu uma voz, talcomo a que Caramon escutara há sete anos atrás.

— Isso inclui a mim, querido irmão?

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CAPÍTULO 11

A aparição horrível aproximava-se cadavez mais. Crysania via-se possuída por um medocomo nunca antes sentira, um medo que nuncaacreditara que pudesse existir. Ao retroceder pe-rante ela, Crysania, pela primeira vez na sua vida,enfrentou a morte: a sua própria morte. Não eraa transição tranqüila para um reino abençoadoque ela sempre acreditara existir. Era dor impie-dosa e trevas assustadoras, dias e noites eternosinvejando os vivos.

Tentou gritar por ajuda, mas a voz falhou-lhe. De qualquer forma, nada podia ajudá-la. Oguerreiro embriagado estava estendido na suaprópria poça de sangue. As suas artes de curatinham-no salvo, mas iria dormir durante muitas

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horas. Nada podia auxiliar contra esta...A figura negra ia avançando, cada vez

mais. “Corre!”, gritou-lhe a mente. Os membrosnão lhe obedeciam. Tudo o que conseguiu foidar uns passos atrás e, então, o seu corpo pare-ceu mover-se por sua própria vontade e não deacordo com o seu comando. Nem conseguiadesviar o olhar dele. As luzes cintilantes cor-de-laranja que via nos seus olhos mantinham-napresa.

Ele ergueu uma mão, uma mão espectral.Crysania podia ver através dela; na verdade, po-dia ver através dele as árvores obscurecidas pelanoite. A lua prateada estava no céu, mas não erao seu brilhante luar que reluzia da armadura an-tiga de um cavaleiro solamnico há muito faleci-do. A criatura emitia uma luz maléfica, brilhandocom energia da sua decadência corrupta. A mãodele ergueu-se cada vez mais e Crysania sabiaque, quando a mão estivesse ao nível do seu co-ração, ela morreria.

Através dos lábios entorpecidos pelo me-do, Crysania pronunciou um nome, “Paladine”, eorou. O medo não a abandonou, não conseguiaainda arrebatar a sua alma daquele terrível olhar.Mas a mão foi até à garganta. Agarrando no me-dalhão, arrancou-o do pescoço. Sentindo as suasforças esgotarem-se, a consciência decair, Crysa-nia ergueu a mão. O medalhão de platina apa-nhou a luz de Solinari e reluziu com um tom a-zul-branco. A terrível aparição disse: “Morre!”

Crysania sentiu-se cair. O seu corpo atin-

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giu o solo, mas o solo não a apanhou. Caía atra-vés dele, ou para longe dele. Caindo... caindo...fechando os olhos... dormindo... sonhando...

Encontrava-se num bosque de carvalhos.Mãos brancas agarravam-lhe os pés, bocas aber-tas tentavam beber-lhe o sangue. As trevas eramintermináveis, as árvores zombavam dela, os ra-mos rangentes riam de forma horrível.

— Crysania — disse uma voz suave emurmurante.

Que era aquilo, que pronunciara o seunome das sombras dos carvalhos? Podia avistá-lo, numa clareira, vestido de negro.

— Crysania — repetiu a voz.— Raistlin! — Soluçou de agradecimento.

Saindo do bosque de carvalhos aterrorizador,afastando as mãos de ossos brancos que queriamarrastá-la para que se juntasse ao seu tormentointerminável. Crysania sentiu uns braços finosapoiá-la. Sentiu o estranho toque ardente de de-dos magros.

— Descanse em paz, Venerável Filha —disse a voz suavemente. Tremendo nos seus bra-ços, Crysania fechou os olhos — As suas prova-ções terminaram. Atravessou o bosque em segu-rança. Não tinha nada a recear, senhora. Possuíaa minha proteção.

— Sim — murmurou Crysania. A suamão tocou na testa, onde os lábios dele tinhamse comprimido contra a sua pele. Depois, aper-cebendo-se do que passara e apercebendo-setambém que permitira que ele testemunhasse a

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sua fraqueza, Crysania afastou os braços do ma-go. Dando uns passos atrás, olhou-o com frieza.

— Por que se faz rodear de coisas tão idi-otas? — inquiriu — Por que sente necessidadede ter tais... tais guardiões? — A voz tremia-lhe,embora contra sua vontade.

Raistlin olhou para ela suavemente, os o-lhos dourados brilhando à luz do bastão.

— De que tipo de guardiões se rodeia vo-cê, Venerável Filha? — perguntou — Que tor-mentos teria de enfrentar se pusesse pé nos ter-renos sagrados do templo?

Crysania abriu a boca para uma respostaseca, mas as palavras morreram-lhe nos lábios.Na verdade, o templo era solo sagrado. Sagradocomo era Paladine, se algum dos que adoravam aRainha das Trevas entrasse nos seus limites, sen-tiria a ira de Paladine. Crysania viu Raistlin sorrir,os lábios finos retorcidos. Sentiu a sua pele co-rar. Como era ele capaz de fazer isto com ela?Nunca nenhum homem a conseguira humilhartanto! Nunca nenhum homem lhe perturbaratanto a mente!

Desde a noite em que conhecera Raistlin,na casa de Astinus, Crysania não conseguira ex-pulsá-lo dos seus pensamentos. Estava ansiosapor visitar a torre esta noite. Sentia-se simultane-amente ansiosa e amedrontada. Contara a Elistantoda a conversa que tivera com Raistlin, tudo,isto é, exceto a “proteção” que ele lhe dera. Dealguma forma, não se viu capaz de contar a Elis-tan que Raistlin lhe tocara, que a... Não, nunca o

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poderia mencionar.Elistan já ficara bastante aborrecido. Co-

nhecia Raistlin, conhecia-o desde há longa data.O mago encontrava-se entre os companheirosque libertaram o clérigo da prisão de Vermina-ard, em Pax Tharkas. Elistan nunca gostara ouconfiara em Raistlin mas, também, nunca nin-guém confiara. O clérigo não ficara surpreendidoquando soube que o jovem mago vestira as ves-tes negras. Não ficou surpreendido quando ou-viu Crysania falar do aviso de Paladine. Estava,isso sim, surpreendido com a reação de Crysaniapara se encontrar com Raistlin. Ficou surpreen-dido, e alarmado, quando ouviu dizer que Crysa-nia fora convidada a visitar Raistlin na torre, lo-cal onde batia agora o coração do mal em Krynn.Elistan teria proibido Crysania de ir, mas o livrearbítrio constituía um dos ensinamentos dosdeuses.

Comunicou a Crysania os seus pensamen-tos e ela escutou-os respeitosamente. Mas partirapara a torre, arrastada por um chamariz que elanão conseguia compreender, embora tivesse ditoa Elistan que se tratava de “salvar o mundo”.

— O mundo não está com grandes pro-blemas — replicara Elistan, gravemente.

Mas Crysania não quis escutar.— Entre — disse Raistlin — Um pouco

de vinho fará desaparecer as más recordaçõesdaquilo que teve de enfrentar — Observava-aatentamente — É muito corajosa, Venerável Fi-lha — afirmou, e Crysania não sentiu qualquer

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sarcasmo na sua voz — Poucos há que conse-guem sobreviver ao terror do bosque.

Virou-se então de costas para ela e Crysa-nia ficou satisfeita por ele o ter feito. Sentia-secorar com o elogio dele.

— Fique perto de mim — avisou ao ca-minhar na sua frente, as vestes negras roçandosuavemente nos tornozelos — Mantenha-se soba luz do meu bastão.

Crysania procedeu como lhe foi pedido,reparando, ao caminhar perto dele, como a luzdo bastão fazia com que as suas vestes brancasbrilhassem de forma tão fria como a luz da luaprateada, um forte contraste com o estranho ca-lor que a lua derramava sobre as suaves vestesnegras aveludadas de Raistlin.

Conduziu-a através dos temíveis portões.Fitou-os com curiosidade, lembrando-se da as-sustadora história do mago diabólico que se ati-rara para cima deles, amaldiçoando-os ao morrer.Coisas murmuravam e tagarelavam à sua volta.Mais do que uma vez se voltara para o som, sen-tindo dedos frios sobre o pescoço ou o toque deuma mão gelada sobre a sua. Mais do que umavez, viu movimento pelo canto do olho mas,quando olhava, nunca via nada. Uma neblinaerguia-se do solo, com o cheiro da decomposi-ção, fazendo-lhe doer os ossos. Começou a tre-mer de forma incontrolável e quando, de súbito,olhou para trás e avistou dois olhos separados dequalquer corpo a fitá-la, deu um passo apressadopara frente e enfiou a mão em redor do braço

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magro de Raistlin.Ele fitou-a com curiosidade e um suave

divertimento que a fez corar de novo.— Não há necessidade de estar com me-

do — disse, simplesmente — Aqui sou o mestre.Não deixarei que nenhum mal lhe aconteça.

— E... eu não estou com medo — repli-cou, embora soubesse que ele podia sentir o seucorpo tremendo — Eu... sentia-me apenas... in-segura dos meus passos, é só isso.

— Peço desculpa, Venerável Filha — dis-se Raistlin e, agora, ela não tinha a certeza se ha-via sarcasmo na voz dele ou não — Foi indelica-deza da minha parte fazê-la caminhar por estelugar desconhecido sem lhe ter oferecido osmeus préstimos. Acha que o caminho agora émais fácil?

— Sim, muito — respondeu ela, corandoprofundamente devido àquele estranho olhar.

Ele nada disse, limitando-se a sorrir. Elabaixou os olhos, incapaz de enfrentá-lo e reco-meçaram a andar. Crysania repreendeu-se pelomedo que sentiu durante todo o percurso até àtorre, mas não retirou a mão do braço do mago.Nenhum deles voltou a falar até alcançarem aporta da torre. Era uma porta simples de madei-ra, com símbolos esculpidos do lado de fora dasua superfície.

Raistlin não proferiu palavra, não fezqualquer movimento que Crysania pudesse vermas, quando se aproximaram, a porta abriu-selentamente. A luz jorrou para o exterior e Crysa-

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nia sentiu-se tão encantada com a sua claridade ecalor acolhedor que, por instantes, não avistou asilhueta de uma outra figura que se recortavacontra a luz.

Quando reparou, estacou e retrocedeu, a-larmada.

Raistlin tocou-lhe na mão, com os seusdedos finos e ardentes.

— É apenas o meu aprendiz, VenerávelFilha — disse — Dalamar é de carne e osso, ca-minha entre os vivos, pelo menos por enquanto.

Crysania não compreendeu a última ob-servação, nem lhe prestou grande atenção, mes-mo quando ouviu o riso contido na voz de Rais-tlin. Estava muito espantada pelo fato de pessoasvivas habitarem ali. Que estupidez, disse a simesma. Que tipo de monstro pensei eu que estehomem era? É um homem, mais nada. É huma-no, é de carne e osso. Este pensamento a fezsentir-se aliviada e sentiu-se mais descontraída.Entrando, quase se sentiu ela mesma. Estendeu amão ao jovem aprendiz, tal como teria feito aum novo acólito.

— O meu aprendiz, Dalamar — disseRaistlin, gesticulando na direção dele —, LadyCrysania, Venerável Filha de Paladine.

— Lady Crysania — disse o aprendiz coma solenidade apropriada, aceitando a mão dela elevando-a aos lábios, fazendo uma pequena reve-rência. Ergueu depois a cabeça e o capuz negroque lhe ocultava o rosto caiu para trás.

— Um duende! — afirmou Crysania. A

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mão dela permaneceu na dele — Mas, isso não épossível — começou, confusa — Servindo omal...

— Sou um duende negro, Venerável Filha— disse o aprendiz e sentiu uma certa amargurana voz dele — Pelo menos, é isso o que o meupovo chama.

Crysania murmurou, embaraçada.— Peço desculpa. Não quis...Ficou em silêncio, não sabendo para onde

olhar. Quase podia sentir Raistlin rindo-se dela.Mais uma vez, ele apanhara-a um pouco descon-trolada. Irritada, retirou a mão do aperto frio doaprendiz e puxou a outra mão do braço de Rais-tlin.

— A Venerável Filha teve uma viagemmuito cansativa — disse Raistlin — Por favor,leva-a ao meu estúdio e serve-lhe um copo devinho. Com a sua permissão, Lady Crysania — omago fez uma reverência —, há algumas ques-tões que exigem a minha atenção. Dalamar,qualquer coisa que a senhora solicitar, será feitade imediato.

— Certamente, Shalafi — respondeu Da-lamar respeitosamente.

Crysania ficou em silêncio enquanto Rais-tlin partia, sentindo-se subitamente aliviada eextremamente cansada. Deveria ser assim que oguerreiro se sentia, batalhando pela sua vida con-tra um oponente hábil, observou em silêncio aoseguir o aprendiz por umas escadas estreitas emespiral.

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O estúdio de Raistlin não era nada do queela estava à espera.

De que estava eu à espera, perguntou a simesma. Seguramente que não era deste aposentoagradável com estranhos e fascinantes livros. Omobiliário era atraente e confortável, uma lareiraacesa no centro, enchendo a sala de um calorque era bem-vindo depois do frio que passaracaminhando para a torre. O vinho que Dalamarserviu era delicioso. O calor da fogueira pareceupenetrar no seu sangue ao tomar um pequenotrago.

Dalamar trouxe uma pequena mesa demadeira esculpida, que posicionou à direita dela.Sobre ela, colocou uma taça de frutos e um pãoainda quente.

— Que fruta é esta — inquiriu Crysania,pegando numa peça e examinando-a com curio-sidade — Nunca vi nada parecido.

— Com efeito, Venerável Filha — res-pondeu Dalamar, sorrindo. Ao contrário deRaistlin, reparou Dalamar, o sorriso do jovemaprendiz refletia-se nos seus olhos.

— Shalafi manda-os buscar à ilha de Mi-thas

— Mithas? — repetiu Crysania, espantada— Mas isso fica do outro lado do mundo! Osminotauros vivem aí! Não permitem que nin-guém penetre no reino deles! Quem os traz?

Teve uma visão súbita e terrível do servoque podia ter sido convocado para trazer taisdelícias, a tal mestre. Apressadamente, voltou a

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colocar a fruta na taça.— Experimente, Lady Crysania — disse

Dalamar sem qualquer indício de malícia na voz— Verá que é realmente deliciosa. A saúde doShalafi é delicada. Existem poucas coisas que eleconsegue tolerar. Subsiste com pouco mais doque com esta fruta, pão e vinho.

O medo de Crysania desvaneceu-se.— Sim — murmurou, os olhos desvian-

do-se para a porta, involuntariamente — Ele éterrivelmente fraco. E aquela tosse horrível... —A voz dela era suave de piedade.

— Tosse? Oh, sim — afirmou Dalamar—, a... tosse dele — Não continuou e, se Crysaniaachou esse fato estranho, depressa o esqueceu,ao contemplar o aposento.

O aprendiz ficou imóvel por alguns ins-tantes, à espera de saber se ela necessitava dequalquer outra coisa. Vendo que Crysania nãofalava, fez uma reverência.

— Se não precisa de mais nada, senhora,vou-me retirar. Tenho de continuar os meuspróprios estudos.

— Claro. Ficarei bem aqui — respondeuCrysania, regressando dos seus pensamentos —Então, ele é o seu professor — afirmou, perce-bendo de súbito desse fato. Era agora a sua vezde olhar atentamente para Dalamar.

— Ele é bom professor? Aprende com e-le?

— É o mais dotado de todos na nossa or-dem, Lady Crysania — disse Dalamar suavemen-

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te — É brilhante, hábil, controlado. Só houveuma pessoa de iguais poderes: o grande Fistan-dantilus. E o meu Shalafi é jovem, tem apenas 28anos. Se viver, pode bem...

— Se viver? — repetiu Crysania, sentin-do-se de imediato irritada consigo mesma por terdeixado escapar um tom de preocupação na voz.Estava certo sentir preocupação, disse a si mes-ma. Afinal, ele é uma das criaturas de Deus. E avida é sagrada.

— A arte acarreta muitos perigos, minhasenhora — dizia Dalamar — E agora, se me derlicença...

— Certamente — murmurou Crysania.Fazendo nova reverência, Dalamar saiu

em silêncio do aposento, fechando a porta atrásde si. Brincando com o copo de vinho, Crysaniafitou as chamas dançando, perdida em pensa-mentos. Não ouviu a porta abrir-se, se é que re-almente se abriu. Sentiu dedos tocarem-lhe nocabelo. Estremecendo, virou-se, apenas para verRaistlin sentado numa cadeira de madeira de cos-tas altas, por detrás da sua mesa.

— Quer que mande buscar mais algumacoisa? Está tudo do seu agrado? — inquiriu, e-ducadamente.

— S...sim — afirmou Crysania com de-terminação, pousando o copo de vinho para queele não visse a sua mão tremer — Está tudo per-feito. Mais do que perfeito, para ser sincera. Oseu aprendiz... Dalamar? É encantador.

— É verdade — disse Raistlin secamente.

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Juntou as pontas dos cinco dedos de cada mão epousou-as sobre a mesa.

— Que mãos maravilhosas você tem —afirmou Crysania, sem pensar — Como os dedossão delgados e flexíveis, e tão delicados — Aper-cebendo-se, de súbito, do que acabara de dizer,corou e disse, vigorosamente: — M... mas e... eupenso que tal é um requisito para a sua arte...

— Sim — respondeu Raistlin, sorrindo e,desta vez, Crysania pensou ver realmente prazerno sorriso dele. Ergueu a mão à luz emitida pelaschamas — Quando eu era criança, espantava edeleitava o meu irmão com os truques que estasmãos podiam executar, mesmo naquela época —Retirando uma moeda de ouro de uma das algi-beiras secretas das suas vestes, Raistlin colocou amoeda em cima dos nós da mão. Sem qualqueresforço, a fez dançar, rodopiar e girar pela mão.Brilhava dentro e fora dos seus dedos. Voandopara o ar, desapareceu, voltando a aparecer nasua outra mão. Crysania estava francamente en-cantada. Raistlin olhou para ela e a mulher avis-tou o sorriso de prazer transformar-se num dedor amarga.

— Sim — disse —, era a minha habilida-de, o meu talento. Divertia as outras crianças.Por vezes evitava que me magoassem.

— O magoassem? — inquiriu Crysaniacom hesitação, impressionada pela dor quetransparecia na sua voz.

Ele não respondeu de imediato, os olhosfixos na moeda de ouro que continha ainda na

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mão. Depois, respirou fundo.— Posso imaginar a sua infância — mur-

murou ele — Vêm de uma família abastada, peloque me disseram. Deve ter sido amada, abrigada,protegida. Devem ter-lhe dado tudo o que queri-a. Foi admirada, procurada e, mais tarde, amada.

Crysania não conseguiu responder. Sentiu-se dominada por um sentimento de culpa.

— Como a minha infância foi diferente— De novo, o sorriso de dor amarga — O meuapelido era o Fininho. Era magro e fraco. E muitoesperto. Eram uns perfeitos idiotas! As suas am-bições eram tão tolas. Era o que acontecia com omeu irmão, que nunca pensou com maior pro-fundidade do que quando considerava o seu pra-to de comida! Ou a minha irmã, que viu que oúnico processo de atingir os seus fins era a espa-da. Sim, era fraco. Sim, eles protegiam-me. Mas,um dia, jurei que não necessitaria da proteçãodeles! Eu próprio me tornaria alguém, utilizandoo meu dom, a minha magia!

As mãos cerraram-se e a pele tingida dedourado empalideceu. Subitamente, começou atossir, retorcendo-se, tosse essa que agitava o seucorpo frágil. Crysania levantou-se, o coração do-endo-lhe de ver tamanho sofrimento. Mas elefez-lhe sinal para que se sentasse. Puxando umlenço do interior de uma algibeira, limpou o san-gue dos lábios.

— E este foi o preço que paguei pela mi-nha magia — disse, quando se sentiu em condi-ções de falar novamente. A sua voz não passava

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de um suspiro — Despedaçaram-me o corpo ederam-me esta visão amaldiçoada, para que tudoo que avistasse perante os meus olhos estivessemorrendo. Mas valeu a pena, valeu mesmo a pe-na! Pois tenho aquilo que desejava: poder. Nãopreciso deles, de nenhum deles, nunca mais.

— Mas esse poder é mau! — disse Crysa-nia, inclinando-se para a frente na cadeira e fi-tando Raistlin com ansiedade.

— Será? — inquiriu Raistlin subitamente.A voz era suave — A ambição é má? A busca dopoder para controlar os outros é má? Se assim é,receio, Lady Crysania, que terá de trocar essasvestes brancas por outras negras.

— Como se atreve? — gritou Crysania,chocada — Eu não...

— Ah, mas o fato é que o fez — replicouRaistlin com um encolher de ombros — Nãoteria trabalhado tão duramente para se encontrarna posição elevada de que dispõe na igreja sem asua quota de ambição, de desejo de poder — Eraagora a vez dele de se inclinar para frente —Não tem dito sempre a si mesma que há algo denotável que está destinada a fazer? “A minha vidaserá diferente da dos outros. Eu não me satisfaçoem ficar sentada vendo o mundo passar. Querodar-lhe forma, controlá-lo moldá-lo!”

Cativada pelo olhar ardente de Raistlin,Crysania não conseguia se mover ou proferiruma palavra. Como podia ele saber? perguntou asi mesma, aterrorizada. Conseguirá ler os segre-dos do meu coração?

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— Isso é mau, Lady Crysania? — repetiuRaistlin gentil e insistentemente.

Lentamente, Crysania abanou a cabeça.Lentamente, levou a mão às têmporas que lateja-vam. Não, não era mau. Pelo menos na maneiracomo ele colocou a questão, embora houvessealgo que não estava bem certo. Não conseguiapensar. Estava muito confusa. Tudo o que lhepassava na mente era: “Como somos parecidos, ele eeu!”

Raistlin ficou em silêncio, à espera que elafalasse. Tinha que dizer alguma coisa. Pegou a-pressadamente no copo de vinho, para ter tempode reunir os seus pensamentos dispersos.

— Talvez tenha esses desejos — disseCrysania, esforçando-se por encontrar as pala-vras —, mas, se assim é, a ambição não é paramim mesma. Utilizo as minhas faculdades e ta-lentos para os outros, para auxiliar os outros.Utilizo-os para a igreja...

— Para a igreja! — zombou Raistlin.A confusão de Crysania desvaneceu-se,

sendo substituída por uma irritação fria.— Sim — replicou ela, sentindo-se em

terreno seguro e firme, rodeada pela força da suafé — Foi o poder do bem, o poder de Paladine,que erradicou o mal do mundo. É esse poderque procuro. Esse poder que...

— Erradicou o mal? — interrompeu Rais-tlin.

Crysania pestanejou. Tinha sido levada pe-los seus pensamentos. Não sabia exatamente o

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que estava dizendo.— Mas, claro...— Contudo, o mal e o sofrimento ainda

permanecem no mundo — persistiu Raistlin.— Devido a pessoas como você! — gri-

tou Crysania com fervor.— Ah, não, Venerável Filha — disse Rais-

tlin — Tal não é devido a nenhum dos meus a-tos. Veja... — Fez sinal com uma mão para queela se aproximasse enquanto com a outra, procu-rava outra vez qualquer coisa nas algibeiras se-cretas das suas vestes.

Com cautela e suspeita súbita, Crysanianão se moveu, fitando o objeto que ele retiroupara fora. Era uma pequena peça redonda decristal, reluzindo com muitas cores, muito seme-lhante a uma bola de gude de uma criança. Le-vantando um suporte de prata, que se encontra-va num dos cantos da sua mesa, Raistlin colocoua bola por cima. A coisa parecia cômica, muitopequena para o suporte ornamentado. Depois,Crysania quase sentiu a respiração falhar-lhe. Obola crescia! Ou talvez ela estivesse encolhendo!Não podia estar bem certa. Mas o globo de vidrotinha agora o tamanho certo e repousava confor-tavelmente sobre o suporte de prata.

— Olhe para ele — disse Raistlin suave-mente.

— Não — Crysania afastou-se para trás,olhando com receio para o globo — O que éisso?

— Um orbe dragão — replicou Raistlin,

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com um olhar que a cativou — É o único queresta em Krynn. Obedece aos meus comandos.Não permitirá que você venha com maus instin-tos. Veja no interior do orbe, Lady Crysania, amenos que receie a verdade.

— Como posso ter certeza de que me re-velará a verdade? — inquiriu Crysania, com avoz estremecendo — Como posso ter certeza deque não me mostrará apenas aquilo que lhe dis-ser para me mostrar?

— Se conhece o modo como os orbesdragão foram feitos há muito tempo atrás —replicou Raistlin —, saberá que foram criadospelas três vestes, a branca, a negra e a vermelha.Não são ferramentas do mal, não são ferramen-tas do bem. São tudo e nada. Você usa o meda-lhão de Paladine — o sarcasmo regressara — e éforte na sua fé. Poderia eu forçá-la a ver aquiloque não quisesse ver?

— Que irei ver? — murmurou Crysania, acuriosidade e um estranho fascínio fazendo-aaproximar-se da mesa.

— Apenas aquilo que os seus olhos já vi-ram, mas se recusaram a encarar.

Raistlin colocou os dedos finos sobre ovidro, entoando palavras de comando. De formahesitante, Crysania inclinou-se sobre a mesa eolhou para o interior do orbe dragão. De início,não avistou nada dentro do globo de vidro a nãoser uma leve cor esverdeada. Depois, deu umpasso atrás. Havia mãos no interior do orbe!Mãos que se estendiam...

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— Nada receie — murmurou Raistlin —As mãos dirigem-se a mim.

E, com efeito, ao mesmo tempo em queele dizia estas palavras, Crysania viu as mãosdentro do orbe esticarem-se e tocarem nas mãosde Raistlin. A imagem desvaneceu-se. Cores vi-brantes agitaram-se loucamente por instantes nointerior do orbe, fazendo Crysania ficar atordoa-da com as suas luzes e o seu brilho. Depois,também elas desapareceram. Viu...

— Palanthas — disse, perplexa. Flutuan-do nas neblinas da manhã, podia ver toda a cida-de, reluzindo como uma pérola, estendendo-seperante os seus olhos. Depois, a cidade começoua correr para ela ou talvez ela estivesse caindopara dentro da cidade. Pairava agora sobre a no-va cidade, agora sobre a muralha, agora no inte-rior da velha cidade. O templo de Paladine er-gueu-se perante ela, os lindos e sagrados terrenostranqüilos e serenos na luz do sol da manhã.Depois, estava no interior do templo, fitandouma parede alta.

Crysania conseguiu falar.— Que é isto? — perguntou.— Nunca o viu? — replicou Raistlin —

Este beco tão próximo dos terrenos sagrados?Crysania abanou a cabeça.— N...não — respondeu, com voz inse-

gura — E, no entanto, devo ter visto. Vivi emPalanthas toda a minha vida. Conheço tudo o...

— Não, senhora — disse Raistlin, as pon-tas dos dedos acariciando levemente a superfície

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cristalina do orbe do dragão — Conhece muitopouco.

Crysania não pôde responder. Aparente-mente, ele dizia a verdade, pois não conheciaesta parte da cidade. Cheio de detritos, o becoera escuro e lúgubre. A luz do sol da manhã nãoencontrava passagem através dos edifícios que seinclinavam sobre a rua, como se não dispuses-sem de mais energia para se manterem eretos.Crysania reconhecia agora os edifícios. Vira-osdo lado da frente. Eram utilizados para armaze-nar tudo, desde cereais a pipas de vinho e cerve-ja. Mas como eram diferentes vistos da frente! Equem eram aquelas pessoas, aquelas pessoas mi-seráveis?

— Vivem ali — respondeu Raistlin à per-gunta não formulada.

— Onde? — inquiriu Crysania, horroriza-da — Ali? Porquê?

— Vivem onde podem. Escondendo-seno coração da cidade como larvas, alimentando-se da sua decadência. Quanto a porquê? — Rais-tlin encolheu os ombros — Não têm mais ladonenhum para ir.

— Mas isto é terrível! Direi a Elistan. Nósos ajudaremos, daremos dinheiro...

— Elistan sabe — disse Raistlin suave-mente.

— Não, não pode saber! Isso é impossí-vel!

— Você sabia. Se não sobre isto, pelomenos estava ao corrente de lugares não tão a-

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prazíveis na sua aprazível cidade.— Não é verdade... — começou Crysania

irritada, mas depois parou. As recordações iamchegando até ela em ondas — A mãe virando-lhe o rosto ao passarem de carruagem por certoslocais da cidade, o pai correndo rapidamente ascortinas das janelas da carruagem ou inclinando-se para fora para pedir ao cocheiro que tomasseum caminho diferente.

A cena apagou-se, as cores desvaneceram-se, desapareceram e foram sendo substituídaspor outra e depois outra. Crysania observava,com grande sofrimento enquanto o mago retira-va a fachada branco-pérola da cidade, revelandoa negridão e corrupção que havia por baixo. Ba-res, bordéis, antros de jogos, os cais, as docas...todos salientavam a sua recusa à miséria e sofri-mento perante a visão chocada de Crysania. Jánão podia desviar o rosto nem havia cortinaspara serem cerradas. Raistlin arrastou-a para den-tro, levou-a para junto dos desesperados, dosesfomeados, dos miseráveis, dos esquecidos.

— Não — suplicou, abanando a cabeça etentando afastar-se da secretária — Por favor,não me mostre mais.

Mas Raistlin revelou-se impiedoso. Denovo as cores se desvaneceram e saíram de Pa-lanthas. O orbe do dragão transportou-os emredor do mundo e, para onde quer que Crysaniaolhasse, avistava mais horrores. Anões bobos,uma raça rejeitada pelos seus parentes anões,vivendo miseravelmente em qualquer parte de

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Krynn onde pudessem encontrar o que maisninguém queria. Humanos levando uma existên-cia de infortúnio em terras onde a chuva deixarade cair. Os duendes Wilder, escravizados peloseu próprio povo. Clérigos servindo-se do seupoder para enganar e acumular grandes riquezasà custa daqueles que neles depositavam a suaconfiança.

Era demais. Com um grito de desespero,Crysania cobriu o rosto com as mãos. A sala os-cilou aos seus pés. Vacilou e quase caiu. Depois,sentiu-se rodear pelos braços de Raistlin. Sentiuaquele calor estranho e ardente que provinha docorpo dele e o toque suave do veludo negro.Havia no ar um cheiro de condimentos, pétalasde rosas e outros odores ainda mais misteriosos.Podia escutar a respiração dele agitar-se nos seuspulmões.

Gentilmente, Raistlin conduziu Crysaniapara a cadeira. Esta sentou-se, libertando-se ra-pidamente do toque dele. A aproximação domago era simultaneamente repelente e atraente,fazendo aumentar os seus sentimentos de perdae de confusão. Desejou ardentemente que Elis-tan ali estivesse. Ele saberia, ele compreenderia.Porque tinha que haver uma explicação! Tal so-frimento terrível, tal mal não deveria ser permiti-do. Sentindo-se vazia, fitou a fogueira.

— Não somos assim tão diferentes — Avoz de Raistlin parecia vir das chamas — Eu vi-vo na minha torre, devotando-me aos meus es-tudos. Você vive na sua torre, devotando-se à

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sua fé. E o mundo gira à nossa volta.— E isso é um verdadeiro mal — disse

Crysania para as chamas — Ficarmos sentados enada fazermos.

— Compreende agora — proferiu Raistlin— Já não me satisfaço em ficar sentado obser-vando. Estudei durante longos anos por umarazão, com um objetivo. E, agora, tal já se en-contra ao meu alcance. Eu farei diferença, Crysa-nia. Eu mudarei o mundo. Esse é o meu plano.

Crysania olhou para cima rapidamente. Asua fé fora abalada, mas o seu núcleo era forte.

— O seu plano! É o plano sobre o qualPaladine me alertou no meu sonho. Esse planopara alterar o mundo provocará a sua destruição!— A sua mão cerrou-se no regaço — Não deveir avante com ele! Paladine...

Raistlin fez um gesto de impaciência coma mão. Os seus olhos dourados reluziram pormomentos e Crysania retrocedeu, vislumbrandoos fogos em combustão dentro do homem.

— Paladine não me impedirá — afirmouRaistlin —, pois pretendo aniquilar o seu maiorinimigo.

Crysania fitou o mago, não compreen-dendo. Que inimigo poderia ser esse? Que ini-migo poderia Paladine ter neste mundo? Então,o que Raistlin pretendia tornou-se claro. Crysa-nia sentiu o sangue esvair-se do rosto, um medofrio a fez estremecer convulsivamente. Incapazde falar, abanou a cabeça. A enormidade da am-bição dele e os seus desejos eram muito temíveis,

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muito impossíveis para poderem sequer ser ava-liados.

— Escute — disse ele, suavemente —Tornarei claro...

E contou-lhe os seus planos. Pareceu-lheter ficado sentada durante horas a fio perante afogueira, presa pelo brilho dos seus olhos estra-nhos e dourados, hipnotizada pelo som da suavoz suave e sussurrante, ouvindo-o falar das ma-ravilhas descobertas em Fistandantilus.

A voz de Raistlin ficou em silêncio. Cry-sania permaneceu sentada por longos momen-tos, perdida e vagueando por um reino distantede qualquer um que ela conhecesse. O fogo ardiabaixo na hora cinzenta antes da madrugada. Asala ficou com mais claridade. Crysania estreme-ceu no aposento subitamente frio.

Raistlin tossiu e Crysania olhou para ele,perplexa. Estava pálido de cansaço, os olhos pa-reciam febris, as mãos tremiam-lhe. Crysania le-vantou-se.

— Peço desculpa — disse, em tom baixo— Mantive-o acordado a noite toda e você nãoestá bem. Tenho que partir.

Raistlin ergueu-se ao mesmo tempo queela.

— Não se preocupe com a minha saúde,Venerável Filha — disse, com um sorriso retor-cido — O fogo que arde dentro de mim é com-bustível suficiente para aquecer este corpo des-troçado. Dalamar a acompanhará na travessia dobosque de Shoikan, se quiser.

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— Sim, obrigada — murmurou Crysania.Esquecera-se de que tinha de voltar àquele lugarhorrível. Respirando fundo, estendeu a mão aRaistlin — Obrigada por se encontrar comigo —disse, em tom formal — Espero...

Raistlin tomou a mão dela na sua e o to-que da sua carne suave queimava. Crysania o-lhou-o nos olhos. Viu-se refletida, uma mulherincolor vestida de branco, o rosto emolduradopor um cabelo negro.

— Não pode me fazer isto — murmurouCrysania — Está errado, tem que ser impedido— Apertou-lhe a mão com força.

— Prove-me que será errado — respon-deu Raistlin, puxando-a para si — Mostre-meque é mau. Convença-me de que os processosdo bem são a forma de salvar o mundo.

— Me escutará? — inquiriu Crysania an-siosamente — Encontra-se rodeado pelas trevas.Como posso chegar até você?

— As trevas afastaram-se, não foi? —respondeu Raistlin — As trevas afastaram-se evocê passou.

— Sim... — Crysania percebeu de súbitoo toque da mão dele, do calor do seu corpo. Co-rando desconfortavelmente, deu um passo atrás.Retirando a mão do aperto dele, esfregou-a in-conscientemente, como se doesse.

— Adeus, Raistlin Majere — disse, semlhe fitar os olhos.

— Adeus, Venerável Filha de Paladine —respondeu ele.

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Aporta abriu-se e Dalamar apareceu, em-bora Crysania não tivesse ouvido Raistlin solici-tar a presença do jovem aprendiz. Puxando ocapuz branco para cima da cabeça, Crysania vol-tou as costas a Raistlin e saiu pela porta. Deslo-cando-se ao longo do corredor cinzento de pe-dra, podia sentir os olhos dourados dele ardendoatravés das suas vestes. Quando chegou à estreitaescada em espiral que a levaria ao piso inferior, avoz dele chegou até ela.

— Talvez Paladine não a tenha enviadopara me impedir, Lady Crysania. Talvez a tenhaenviado para ajudar.

Crysania parou e olhou para trás. Raistlindesaparecera e o corredor estava deserto. Dala-mar encontrava-se junto dela em silêncio, aguar-dando.

Lentamente, agarrando nas vestes brancaspara não tropeçar, Crysania desceu as escadas.

E continuou a descer... para baixo... parabaixo... para um sono interminável.

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CAPÍTULO 12

A Torre de Alta Feitiçaria, em Wayreth,fora, durante séculos, o ponto principal de magiaem todo o continente de Ansalon. Aqui tinhamsido conduzidos os magos, quando o rei sacer-dote os convocara das outras torres. Aqui ti-nham vindo, deixando a torre em Istar, agorasob as águas do Mar Sangrento, deixando a torreamaldiçoada e escurecida em Palanthas.

A torre em Wayreth era uma estruturaimponente, uma visão que não inquietava. Asmuralhas exteriores formavam um triângulo e-quilátero. Uma pequena torre erguia-se em cadaângulo da perfeita forma geométrica. No centroelevavam-se as duas torres principais, levementeinclinadas, apenas um pouco retorcidas, o sufici-

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ente para fazer o observador pestanejar e dizerpara si mesmo, não estão tortas?

As paredes eram construídas em pedranegra. Extremamente polidas, reluziam à luz dosol e, à noite, refletiam a luz de duas luas e espe-lhavam a escuridão da terceira. Havia símbolosesculpidos na superfície de pedra, símbolos depoder e força, proteção e vigilância; símbolosque uniam as pedras umas às outras; símbolosque uniam as pedras ao solo. Os cumes das mu-ralhas eram lisos. Não havia ameias para solda-dos destinados a lutar contra os homens. Nãoexistia essa necessidade.

Distante de quaisquer centros de civiliza-ção, a torre de Wayreth encontrava-se cercadapelo seu bosque mágico. Aí não entrava ninguémque não pertencesse à casa; ninguém lá ia semconvite. Desta forma, os magos protegiam o seuúltimo bastião de força, guardando-o bem domundo exterior.

Sim, a torre não estava desprovida de vi-da. Ambiciosos aprendizes de utilização de ma-gia vinham de todo o mundo para fazer o rigo-roso, e por vezes fatal, teste. Chegavam diaria-mente feiticeiros de elevado nível, prosseguindoos seus estudos, reuniões, discussões, conduzin-do perigosas e delicadas experiências. Para estes,a torre estava aberta de dia e de noite. Podiamentrar e sair a seu belo prazer: vestes negras, ves-tes vermelhas, vestes brancas.

Embora muito contraditórias nas suas fi-losofias, nos seus pontos de vista e modo de vi-

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ver com o mundo, todas as vestes se reuniam empaz na torre. Os debates eram tolerados unica-mente porque serviam para fazer avançar a arte.Luta, fosse de que tipo fosse, era proibida, a pu-nição era uma morte rápida e terrível.

A arte. Era o que unia a todos. Era a suaprimeira lealdade, independentemente de quemfossem, de quem servissem, da cor das vestesque usassem. Os jovens utilizadores de magiaque enfrentavam calmamente a morte quandoconcordavam em fazer o teste, compreendiamestas regras. Os velhos feiticeiros que vinham atélá para respirar pela última vez e serem sepulta-dos dentro das muralhas que lhes eram familia-res, compreendiam estas regras. A arte, magia.Era parente, amante, esposa, criança. Era solo,fogo, ar, água. Era vida. Era morte. Estava paraalém da morte.

Par-Salian pensava em tudo isto, num dosaposentos da torre localizada mais a norte, ob-servando Caramon e a sua pequena comitiva a-vançando em direção aos portões.

Enquanto Caramon se lembrava do pas-sado, também Par-Salian o fazia. Alguns tenta-vam adivinhar se seria com pesar.

Não, disse em silêncio, observando Cara-mon subindo o caminho, os acessórios de bata-lha tilintando contra as coxas flácidas. Não la-mento o passado. Foi-me dada uma escolha ter-rível e optei.

Quem questiona os deuses? Eles exigiramuma espada. Encontrei uma. E, tal como todas

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as espadas, tinha dois gumes.Caramon e os que o acompanhavam al-

cançaram o portão exterior. Não havia guardas.Uma pequena campainha de prata tocou nos a-posentos de Par-Salian.

O velho mago ergueu a mão. Os portõesabriram-se.

Era já crepúsculo quando atravessaram osportões exteriores da Torre de Alta Feitiçaria.Tas olhou em redor, perplexo. Ainda há momen-tos atrás era manhã. Ou, pelo menos, pareciamanhã! Olhando para cima, pode avistar raiosvermelhos rasgando o céu, refletindo-se nas pa-redes de pedra polida da torre.

Tas abanou a cabeça.— Como é que alguém pode afirmar que

horas são por aqui? — perguntou a si mesmo.Encontrava-se num vasto pátio cercado por mu-ralhas exteriores e pelas duas torres interiores. Opátio parecia severo e pobre. Pavimentado comlajes cinzentas, tinha um aspecto frio e poucoacolhedor. Não cresciam flores, nem havia ne-nhuma árvore que quebrasse a monotonia dapedra cinzenta. E estava vazio, reparou Tas comdesapontamento. Não havia absolutamente nin-guém por ali, ninguém à vista.

Ou havia? Tas notou um movimento pelocanto do olho, uma figura branca. Contudo, aovirar-se rapidamente, ficou abismado por ver quetinha desaparecido! Não estava ninguém ali. De-pois viu, pelo canto do outro olho, um rosto,uma mão e a manga de uma veste vermelha. O-

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lhou para a figura diretamente, e desapareceu!Subitamente, Tas ficou com a impressão de queestava rodeado por pessoas, vindo e indo, falan-do, ou apenas sentando-se e olhando, mesmodormindo! Contudo, o pátio continuava silencio-so e vazio.

— Estes devem ser magos que vieram fa-zer o teste! — afirmou Tas com reverência —Raistlin contou-me que eles vinham de toda aparte, mas nunca imaginei nada assim! Será queeles podem me ver? Acha que poderia tocarnum, Caramon, se eu... Caramon?

Tas pestanejou. Caramon desaparecera!Bupu desaparecera! As figuras de vestes brancase Lady Crysania tinham desaparecido. Encontra-va-se só!

Não por muito tempo. Avistou-se umaluz amarela, um cheiro horrível, e um mago devestes negras surgiu na sua frente. O mago es-tendeu uma mão, uma mão de mulher.

— Foi convocado.Tas engoliu em seco. Lentamente, esten-

deu a mão. Os dedos da mulher cerraram-se so-bre o seu pulso. Estremeceu perante o toquefrio.

— Se calhar vão fazer magia comigo! —disse para si mesmo, esperançoso.

O pátio, as muralhas de pedra negra, osraios vermelhos de luz solar, a laje cinzenta, tudocomeçou a dissolver-se em redor de Tas, escor-rendo pelas extremidades da sua visão comouma pintura molhada pela chuva. Perfeitamente

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deleitado, o kender sentiu as vestes negras da mu-lher envolverem-no. Ela puxou-o para cima, atéchegarem ao queixo dele...

Quando Tasslehoff recuperou os sentidos,estava deitado num chão de pedra muito duro emuito frio. Junto dele, Bupu ressonava ruidosa-mente. Caramon estava sentado, abanando a ca-beça, tentando afastar as teias de aranha.

— Ui — Tas esfregou a parte de trás dopescoço — Que raio de alojamentos, Caramon— resmungou, levantando-se — Era de esperarque conseguissem arranjar umas camas por meioda magia. E se queriam que uma pessoa dormis-se uma sesta, por que é que não se limitaram adizê-lo, em vez de... oh...

Ouvindo Tas parar de falar de forma es-tranha, Caramon olhou para cima rapidamente.Não se encontravam sós.

— Conheço este local — murmurou Ca-ramon. Estavam numa grande câmara escavadaem obsidiana.

Era tão extensa que o seu perímetro seperdia na sombra, tão elevada que o teto estavaobscurecido na sombra. Não existiam pilares desuporte nem iluminação. Contudo, havia luz,embora a sua fonte fosse desconhecida. Tratava-se de uma luz pálida e branca e não amarela. Friae melancólica, não transmitia qualquer calor.

Da última vez que Caramon estivera nestacâmara, a luz brilhava sobre um velho homem,trajando vestes brancas, sentado numa grandecadeira de pedra. Desta vez, a luz incidia sobre o

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mesmo homem velho, mas já não se encontravasozinho. Estava rodeado por um semicírculo decadeiras de pedra, vinte e uma, para ser maispreciso. O homem velho de vestes brancas sen-tava-se ao centro. A sua esquerda, três figurasindistintas: se eram homens ou mulheres, huma-nos ou de uma outra raça, era difícil de dizer. Oscapuzes estavam puxados para cima dos rostos.Trajavam vestes vermelhas. À esquerda deles,sentavam-se seis figuras, todos vestidos de ne-gro. Uma cadeira entre eles encontrava-se vazia.À direita do homem de idade sentavam-se maisquatro figuras de vestes vermelhas e à direita de-les, seis todos vestidos de branco. Lady Crysaniaencontrava-se deitada no chão perante eles, ocorpo sobre um catre branco, coberto por umpano branco.

De toda a assembléia, apenas o rosto dohomem velho era visível.

— Boa noite — disse Tasslehoff, fazendoreverências e andando para trás, fazendo maisreverências e andando para trás até ir de encon-tro a Caramon — Quem são estas pessoas? —murmurou o kender em voz alta — E o que elesestão fazendo no nosso quarto?

— O velho do centro é Par-Salian — dis-se Caramon suavemente — E não estamos numquarto. Esta é a câmara central, a câmara dosmagos ou qualquer coisa assim. É melhor acor-dar a anã boba.

— Bupu! — Tas deu um pontapé à anãque ressonava.

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— Ir passear — resmungou, voltando-separa o outro lado, de olhos firmemente fechados— Ir embora. Mim dormir.

— Bupu! — Tas estava desesperado; osolhos do velho homem pareciam trespassá-lo —Eh, acorda. Jantar.

— Jantar! — Abrindo os olhos, Bupu deuum salto, pondo-se de pé. Olhando em redoransiosamente, avistou as vinte figuras de vestes,sentadas em silêncio, os rostos encapuzados in-visíveis.

Bupu soltou um grito como um coelhotorturado. Com um salto convulsivo, atirou-separa Caramon e envolveu os braços em redor dotornozelo dele, num aperto mortal. Conscientedos olhos reluzentes pousados sobre ele, Cara-mon tentou libertar-se dela, mas tal foi impossí-vel. Bupu agarrava-se a ele como um polvo, tre-mendo, espreitando os magos em terror. Porfim, Caramon desistiu.

O rosto do velho homem revelou o quepoderia ter sido um sorriso. Tas viu Caramonolhar para baixo, com consciência, para a suaroupa mal-cheirosa. Viu o grande homem passara mão pelo rosto não barbeado e pelo cabelodesgrenhado. Embaraçado, corou desconforta-velmente. Depois, a sua expressão endureceu.Quando falou, foi com uma dignidade simples.

— Par-Salian — afirmou Caramon, as pa-lavras ecoando num tom muito alto na câmaravasta e sombria —, recorda-se de mim?

— Recordo-me de ti, guerreiro — disse o

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mago. A sua voz, embora suave, era, contudo,perfeitamente audível em toda a câmara. Umsuspiro moribundo teria sido ouvido em toda asala.

Nada mais disse. Nenhum dos outros ma-gos falou. Caramon movia-se de forma descon-fortável. Por fim, gesticulou para Lady Crysania.

— Trouxe-a aqui, na esperança de quepudessem auxiliá-la. É possível? Ela ficará bem?

— Se ficará bem ou não, não está em nos-sas mãos — respondeu Par-Salian — Está paraalém das nossas possibilidades cuidar dela. Paraprotegê-la do feitiço que o cavaleiro da mortelançou sobre ela, feitiço esse que, seguramente,teria significado a sua morte, Paladine escutou assuas últimas palavras e enviou a alma dela parahabitar nos seus reinos de paz.

A cabeça de Caramon fez uma mesura.— A culpa é minha — disse, apressada-

mente — E... eu não estive à altura da confiançaque ela depositou em mim. Poderia ter...

— Tê-la protegido? — Par-Salian abanoua cabeça. — Não, guerreiro, não poderia tê-laprotegido do cavaleiro da rosa negra. Se o ten-tasse, teria perdido a sua própria vida. Não é as-sim, kender?

Tas, sentindo sobre si os olhos azuis dovelho homem, sentiu o corpo estremecer.

— S... sim — afirmou, com firmeza —E... eu vi o... àquilo — Tasslehoff estremeceu.

— Esta é a resposta de quem não conheceo medo — disse Par-Salian gentilmente — Não,

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guerreiro, não se culpe por isso. E não perca asesperanças em relação a ela. Embora nem nóspróprios consigamos devolver a alma ao seucorpo, sabemos quem pode fazê-lo. Mas, primei-ro, diga-me por que nos procurava Lady Crysa-nia. Sabemos que ela andava em busca da flores-ta de Wayreth.

— Não sei bem porquê — afirmou Ca-ramon.

— Ela veio por causa de Raistlin — res-pondeu Tas, satisfeito por poder ajudar. A vozdele soou penetrante e destoou no silêncio dacâmara. O nome produziu um som estranho.Par-Salian franziu a sobrancelha e Caramon vol-tou-se para ele. As cabeças encapuzadas dos ma-gos agitaram-se levemente, como se estivessemolhando uns para os outros, e as vestes roçaramum pouco. Tas engoliu em seco e ficou em silên-cio.

— Raistlin — o nome foi levemente sibi-lado através dos lábios de Par-Salian. Fitou Ca-ramon intensamente.

— Que assuntos pode ter uma eclesiásticado bem com o seu irmão? Por que razão fez elaesta perigosa viagem para se encontrar com ele?

Caramon abanou a cabeça, não querendo,ou não conseguindo, falar.

— Conhece o mal que ele segue? — pros-seguiu Par-Salian severamente.

Caramon recusou-se teimosamente a res-ponder, o olhar fixo no chão de pedra.

— Eu sei... — começou Tas, mas Par-

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Salian fez um leve movimento com a mão e okender calou-se.

— Sabe que agora acreditamos que elepretende conquistar o mundo? — continuouPar-Salian, as suas palavras implacáveis atingindoCaramon como dardos. Tas podia ver o enormehomem recuar — Unido à sua meia-irmã, Kitia-ra, ou a dama negra, como é conhecida no seiodas nossas tropas, Raistlin começou a reunir e-xércitos. Dispõe de dragões, cidadelas voadoras.E, além do mais, sabemos...

Uma voz de escárnio ecoou na câmara.— Você não sabe de nada, supremo. Não

passa de um idiota!As palavras caíram como gotas de água

sobre um lago tranqüilo, causando ondas de mo-vimento que se difundiram por entre os magos.Perplexo, Tas virou-se, procurando a fonte daestranha voz e viu, por detrás dele, uma figuraemergindo das sombras. As suas vestes negrasroçaram ao passar por eles para enfrentar Par-Salian. Nesse instante, a figura retirou o capuz.

Tas sentiu Caramon ficar tenso.— Que é? — murmurou o kender, incapaz

de ver.— Um duende negro! — sussurrou Ca-

ramon.— Verdade? — disse Tas, os olhos relu-

zindo — Sabe, em todos os anos que tenho vivi-do em Krynn, nunca vi um duende negro — Okender avançou, sendo de imediato agarrado pelocolarinho da túnica. Tas remexeu-se irritado

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quando Caramon o arrastou para trás, mas nemPar-Salian nem a figura de vestes negras parece-ram reparar na interrupção.

— Penso que deve se explicar, Dalamar— disse Par-Salian suavemente — Por que souum idiota?

— Conquistar o mundo! — zombou Da-lamar — Ele não planeja conquistar o mundo! Omundo não significa nada para ele. Poderia ter omundo amanhã, esta noite, se assim o desejasse!

— Nesse caso, o que pretende ele? — Es-ta pergunta foi formulada por um mago de ves-tes vermelhas sentado junto de Par-Salian.

Tas, espreitando em redor do braço deCaramon, avistou as feições delicadas e cruéis doduende negro descontraírem-se num sorriso,sorriso esse que fez o kender estremecer.

— Quer tornar-se num deus — respon-deu Dalamar calmamente — Irá desafiar a Rai-nha das Trevas pessoalmente. Esse é o seu pla-no.

Os magos nada disseram, não se move-ram, mas o silêncio pareceu agitar-se entre elescomo se tivesse sido atravessado por correntesde ar, quando fitaram Dalamar com olhos relu-zentes e parados.

Então, Par-Salian suspirou.— Penso que você o valorizou em exces-

so.Ouviu-se o som de roupa sendo rasgada.

Tas viu os braços do duende negro abrirem-sedespedaçando o tecido das suas vestes.

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— Será isto valorizá-lo em excesso? —gritou Dalamar. Os magos inclinaram-se parafrente, uma respiração ofegante varrendo a vastacâmara como um vento gelado. Tas esforçou-sepor ver, mas a mão de Caramon mantinha-obem preso. Irritado, Tas olhou para cima, para orosto de Caramon. Não estaria ele curioso? MasCaramon não parecia minimamente perturbado.

— Que vêem é a marca da mão dele sobremim — silvou Dalamar — Mesmo agora, a dor équase insuportável — O jovem duende fez umapausa, acrescentando depois com os dentes cer-rados — Disse-me que lhe enviasse as saudaçõesdele, Par-Salian!

A cabeça do grande mago inclinou-se. Amão que se ergueu para apoiar tremia como queentorpecida. Pareceu velho, fraco, cansado. Pormomentos, o mago ficou sentado de olhos co-bertos. Depois, levantou a cabeça e olhou inten-samente para Dalamar.

— Então... confirmam-se os nossos maistemíveis receios — Os olhos de Par-Salian es-treitaram-se de forma inquisidora — Ele sabe,nesse caso, que nós te enviamos...

— Para espiá-lo? — Dalamar riu-se, a-margamente — Sim, sabe! — O duende negrocuspiu as palavras — Sempre o soube. Tem es-tado utilizando-me, utilizando-nos a todos, paraalcançar os seus próprios objetivos.

— Acho tudo isto muito difícil de acredi-tar — afirmou o mago de vestes vermelhas, nu-ma voz suave — Todos admitimos que o jovem

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Raistlin é sem dúvida poderoso, mas acho estaconversa de desafiar uma deusa ridícula... naverdade, bastante ridícula.

Registraram-se sons de concordância vin-dos de ambas as metades do semicírculo.

— Ah, acha que sim? — perguntou Da-lamar, e havia uma suavidade letal na sua voz —Nesse caso, deixem-me dizer-lhes, seus idiotas,que não fazem idéia do significado da palavrapoder. Não quando se relaciona com ele! Não po-dem sequer imaginar as profundezas do seu po-der ou avistar as alturas a que se eleva: Eu posso!Já assisti — Por instantes, Dalamar parou, a vozperdendo a irritação e enchendo-se de admiração— Presenciei coisas tais que nenhum de vocês seatreveu a imaginar! Caminhei pelos reinos dossonhos com os olhos abertos! Vi beleza de fazerdespedaçar o coração. Penetrei em pesadelos...testemunhei horrores — estremeceu —, horro-res tão inomináveis e terríveis que suplicaria queme matassem para não ter de vê-los de novo! —Dalamar olhou em redor do semicírculo, abran-gendo a todos com os seus olhos flamejantes enegros — E todos estes prodígios ele convocou,ele lhes deu vida com a sua magia.

Não houve qualquer som, ninguém semoveu.

— Revela-se sensato por ter receio, su-premo — a voz de Dalamar tornou-se num sim-ples murmúrio — Mas, por muito que receie,não o receia o suficiente. Oh, sim, falta-lhe opoder para atravessar aquele temível limiar. Mas

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irá encontrar esse poder. No preciso momentoem que vos conto isto, prepara-se para umagrande viagem. Quando eu regressar, amanhã,ele partirá.

Par-Salian ergueu a cabeça.— Quando regressará? — inquiriu, cho-

cado — Mas ele sabe quem você é... um espião,enviado por nós, a assembléia, os seus colegas— O olhar do grande mago incidiu na cadeiraque permanecia vazia entre os das vestes negras,e depois levantou-se — Não, jovem Dalamar. Émuito corajoso, mas não posso permitir que vol-te para o que seria, sem dúvida, uma morte detortura às suas mãos.

— Não pode me impedir — disse Dala-mar, e não havia qualquer emoção na sua voz —Já o afirmei antes... daria a minha alma para es-tudar com pessoas como ele. E agora, emborame custe a vida, permanecerei com ele. Está àespera que eu regresse. Vai deixar a Torre de Al-ta Feitiçaria ao meu cuidado durante a sua au-sência.

— Vai deixá-lo vigiando? — disse o magode vestes vermelhas, em tom dúbio — A você,que o traiu?

— Ele me conhece — respondeu Dala-mar rispidamente — Sabe que me aprisionou.Feriu-me o corpo e secou-me a alma e, mesmoassim, voltarei para a teia. Nem serei eu o pri-meiro — Dalamar fez sinal para a forma imóvele branca deitada na padiola na sua frente. De-pois, virando-se ligeiramente, o duende negro

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fitou Caramon — Serei, irmão? — disse, comdesprezo.

Por fim, Caramon pareceu adquirir vida.Sacudindo, irado, Bupu do pé, o guerreiro deuum passo em frente, e o kender e a anã seguiram-no de perto.

— Quem é este? — inquiriu Caramon,franzindo a sobrancelha para o duende negro —O que se passa aqui? De quem é que estão falan-do?

Antes que Par-Salian pudesse responder,Dalamar virou-se para enfrentar o enorme guer-reiro.

— Chamo-me Dalamar — disse o duendenegro friamente — E estou falando do seu ir-mão gêmeo, Raistlin. Ele é o meu mestre. Eusou o seu aprendiz. Sou, para além disso, umespião, enviado por esta venerável companhiaque tem perante si, para informá-los dos atos doseu irmão.

Caramon não respondeu. Podia nem terescutado. Os seus olhos, esbugalhados de hor-ror, encontravam-se fixos no peito do duendenegro. Seguindo o olhar de Caramon, Tas avis-tou cinco orifícios queimados e ensangüentadosna carne de Dalamar. O kender engoliu em seco,sentindo-se subitamente fraco.

— Sim, foi a mão do seu irmão quem fezisto — observou Dalamar, adivinhando os pen-samentos de Caramon. Sorrindo severamente, oduende negro agarrou nas extremidades das ves-tes negras e rasgadas e juntou-as, ocultando as

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feridas — Não tem importância — murmurou—, não é mais do que aquilo que eu merecia.

Caramon virou a cara, o rosto tão pálidoque Tas enfiou a sua mão na do grande homem,com medo que ele caísse ao chão. Dalamar fitavaCaramon com desprezo.

— Que se passa? — perguntou — Não oachava capaz de uma coisa destas? — O duendenegro abanou a cabeça em descrença, os olhosvarrendo a assembléia perante si.

— Não, você é igual aos outros. Idiotas...todos vocês, uns idiotas!

Os magos murmuraram em conjunto, al-gumas vozes irritadas, outras receosas, a maioriainquisidora. Por fim, Par-Salian levantou a mãopara que se fizesse silêncio.

— Diz-nos, Dalamar, quais são os planosdele. A menos que, obviamente, ele te tenha im-pedido de falar nisso — Havia um tom de ironiana voz do mago que não escapou ao duende ne-gro.

— Não — Dalamar sorriu — Estou aocorrente dos planos dele. Isto é, de alguns deles.Até me pediu que eles fossem transmitidos comprecisão.

Perante isto, foram murmuradas palavrase algumas afirmações de escárnio. Mas Par-Salianpareceu ainda mais preocupado, se é que tal erapossível.

— Continua — proferiu, quase sem voz.Dalamar respirou fundo.

— Ele vai viajar atrás no tempo, aos dias

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que antecederam o Cataclismo, quando o grandeFistandantilus se encontrava no auge do seu po-der. É intenção do meu Shalafi reunir-se comeste grande mago, estudar com ele e recuperar ostrabalhos de Fistandantilus que sabemos que fo-ram perdidos durante o Cataclismo. O meu Sha-lafi acredita, por aquilo que tem lido nos livros defeitiços que levou da grande biblioteca em Palan-thas, que Fistandantilus aprendeu como atraves-sar o limite que existe entre Deus e o homem.Desta forma, o grande feiticeiro conseguiu pro-longar a sua vida depois do Cataclismo para lutarna guerra dos anões. Desta forma, conseguiusobreviver à terrível explosão que devastou asterras de Dergoth. Assim, conseguiu viver até terencontrado um novo esconderijo para sua alma.

— Não compreendo nada disto! Digam-me o que está acontecendo! — exigiu Caramon,avançando irritado — Ou derrubarei este localsobre as vossas miseráveis cabeças! Quem é esteFistandantilus? O que tem ele a ver com o meuirmão?

— Shhh — disse Tas, olhando com apre-ensão para os magos.

— Nós compreendemos, kenderken — re-plicou Par-Salian, sorrindo gentilmente para Tas— Compreendemos a ira e mágoa dele. E eleestá certo, devemos-lhe uma explicação — Ovelho mago suspirou — Talvez eu tenha feitomal. Mas... teria eu tido outra escolha? Onde es-taríamos hoje se não tivesse tomado a decisãoque tomei?

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Tas viu Par-Salian voltar-se para olhar pa-ra os magos que se sentavam à sua volta de am-bos os lados e, subitamente, o kender compreen-deu que a resposta de Par-Salian se destinavatanto a eles como a Caramon. Muitos lançaramos capuzes para trás e Tas podia agora avistar-lhes os rostos. A ira marcava os rostos daquelesque trajavam vestes negras, a tristeza e o receiorefletiam-se nos rostos pálidos dos que usavamas brancas. Das vestes vermelhas, um homemem particular despertou a atenção de Tas, sobre-tudo porque a sua expressão era suave, impassí-vel, embora os olhos se revelassem negros e agi-tados. Tratava-se do mago que pusera em dúvidao poder de Raistlin. Pareceu a Tas que era paraeste homem em particular que Par-Salian dirigiuas suas palavras.

— Há sete anos atrás, Paladine apareceu-me — Os olhos de Par-Salian fitavam as som-bras — O grande deus alertou-me sobre o e-norme terror que iria cair sobre o mundo. A Ra-inha das Trevas despertara os dragões do mal epreparava-se para lançar a guerra sobre as pesso-as, com o intuito de conquistá-las. “Escolha umdos elementos da tua ordem para combater estemal”, disse-me Paladine. “Escolha bem, pois estapessoa será como uma espada para trespassar aescuridão. Nada lhe poderá contar sobre o futu-ro porque, dependendo das decisões dele e dasdecisões de outros, se erguerá ou mergulhará ovosso mundo na noite eterna”.

Par-Salian foi interrompido por vozes

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zangadas, vindas essencialmente daqueles quetrajavam as vestes negras. Par-Salian olhou paraeles, os olhos flamejando. Nesse instante, Tasviu revelar-se o poder e autoridade que emana-vam do fraco e velho mago.

— Sim, talvez devesse ter trazido a ques-tão perante a assembléia — disse Par-Salian coma voz cortante — Mas, naquela época, senti, talcomo sinto agora, que só a mim cabia essa deci-são. Sabia bem as horas que a assembléia iria dis-cutir, sabia bem que nenhum de vocês iria con-cordar! Tomei a minha decisão. Alguém entrevocês põe em causa o meu direito de fazê-lo?

Tas conteve a respiração, sentindo a ira dePar-Salian rolar pela câmara como um trovão. Asvestes negras voltaram a sentar-se nos seus ban-cos de pedra, murmurando. Par-Salian fiou emsilêncio por momentos, voltando-se depois paraCaramon; o seu olhar severo suavizou-se.

— Escolhi Raistlin — disse. Caramonfranziu a sobrancelha.

— Porquê? — inquiriu.— Tinha as minhas razões — disse Par-

Salian gentilmente — Não posso explicar algu-mas delas, nem mesmo agora. Mas posso dizer-lhe isto — ele nasceu com o dom. E isso é muitoimportante. A magia vive no íntimo do seu ir-mão. Sabia que, desde o primeiro dia que Raistlincomeçou a freqüentar a escola, o seu própriomestre o receava? Como é possível ensinar umaluno que sabe mais que o professor? E, combi-nado com o dom da magia está a inteligência. A

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mente de Raistlin nunca está em descanso. Pro-cura conhecimento, exige respostas. E é corajo-so; talvez mais corajoso do que você, guerreiro.Combate a dor em cada dia da sua vida. Enfren-tou a morte mais do que uma vez e venceu-a.Nada receia, nem as trevas nem a luz. E a suaalma... — Par-Salian fez uma pausa — A almadele arde de ambição, de desejo de poder, dedesejo de mais conhecimento. Eu sabia que na-da, nem mesmo o receio da morte, o impediriade atingir os seus objetivos. E sabia que os obje-tivos que ele procurava atingir poderiam benefi-ciar o mundo, mesmo que ele, por si próprio,escolhesse voltar-lhes as costas.

Par-Salian parou. Quando voltou a falar,foi com mágoa.

— Mas, primeiro, teve que fazer o teste.— Deveria ter previsto os resultados —

disse o mago de vestes vermelhas, falando nomesmo tom suave — Todos sabíamos que eleestava à espera disso, que...

— Não tive outra alternativa — afirmouPar-Salian de imediato, os olhos azuis flamejan-do — O tempo esgotava-se. O tempo do mundoesgotava-se. O jovem homem tinha que fazer oteste e assimilar o que aprendera. Eu não podiaadiar por mais tempo.

Caramon olhava de um para o outro.— Sabia que Rais se encontrava em peri-

go quando o trouxe aqui?— Há sempre perigo — respondeu Par-

Salian — O teste tem como objetivo fazer so-

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bressair aqueles que podem ser inofensivos parasi mesmos, para a Ordem, para os inocentes nomundo — Levou a mão à cabeça, esfregando asfrontes — Lembre-se ainda que o teste tambémserve para ensinar. Era nosso desígnio ensinar aoseu irmão a compaixão para abrandar a sua am-bição egoísta; esperávamos ensinar-lhe a clemên-cia, a piedade. E foi talvez na minha ânsia de en-sinar que cometi um erro. Esqueci-me de Fis-tandantilus.

— Fistandantilus? — disse Caramon, con-fuso — Esqueceu-se dele? O que quer dizer comisso? Por aquilo que disse, esse velho mágicoestá morto.

— Morto? Não — O rosto de Par-Saliantornou-se mais sério — A explosão que matoumilhares nas guerras dos anões e deixou sem vi-da uma terra que ainda hoje se encontra devasta-da e improdutiva não matou Fistandantilus. Asua magia era suficientemente poderosa paraderrotar a própria morte. Deslocou-se para umoutro plano de existência, um plano que ficalonge daqui, contudo não suficientemente longe.Observava constantemente, ligando o seu tem-po, em busca de um corpo que aceitasse a suaalma. E encontrou esse corpo: o do seu irmão.

Caramon escutava num silêncio tenso, orosto branco de morte. Pelo canto do olho, Tasviu Bupu andando para trás. Agarrou-lhe a mãoe segurou-a com força, evitando que a anã ater-rorizada saísse correndo da câmara.

— Quem sabe que acordo fizeram os dois

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durante o teste? Nenhum de nós, provavelmente— Par-Salian sorriu levemente — O que eu sei éisto. Raistlin passou com êxito, mas a saúde deleenfraqueceu. Talvez tivesse sobrevivido ao testefinal, a confrontação com o duende negro, seFistandantilus não o tivesse ajudado. Talvez não.

— O tivesse ajudado? Ele salvou-lhe a vi-da?

Par-Salian encolheu os ombros.— Só sabemos isto, guerreiro: não foi ne-

nhum de nós que deixou o seu irmão com aquelapele tingida de dourado. O duende negro lançou-lhe uma bola de fogo e Raistlin sobreviveu. Im-possível, é claro...

— Não para Fistandantilus — interrom-peu o mago da veste vermelha.

— Não — concordou Par-Salian triste-mente —, para Fistandantilus não era impossí-vel. Questionei-me nessa altura, mas não conse-gui investigar. Os acontecimentos no mundoatingiam o clímax. O seu irmão era ele próprioquando saiu do teste. Mais fraco, obviamente,mas outra coisa não seria de esperar. E eu estavacerto — Par-Salian lançou um olhar rápido etriunfante em redor do semicírculo —, ele era fortena sua magia! Que outra pessoa poderia ter ganhopoder sobre um orbe dragão sem vários anos deestudo?

— É claro — afirmou o mago de vestesvermelhas —, ele teve a ajuda de quem possuíaanos de estudo.

Par-Salian franziu a sobrancelha e não

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respondeu.— Deixem-me ver se estou compreen-

dendo — disse Caramon para o mago de vestebranca — Esse Fistandantilus... apoderou-se daalma de Raistlin? Foi ele quem obrigou Raistlin atomar as vestes negras.

— A decisão coube apenas ao seu irmão— respondeu Par-Salian duramente — Tal comoaconteceu a todos nós.

— Não acredito! — gritou Caramon —Não foi Raistlin quem tomou essa decisão. Estãomentindo, todos vocês! Torturaram o meu irmãoe depois, um dos seus velhos feiticeiros reclamouo que restava do seu corpo! — As palavras deCaramon estrondaram na câmara, fazendo comque as sombras dançassem, em alarme.

Tas viu Par-Salian olhar para o guerreiroseveramente, e o kender encolheu-se, à espera dofeitiço que reduziria Caramon a um mero frango.Tal nunca aconteceu. O único som era a respira-ção pesada de Caramon.

— Vou fazê-lo voltar — disse Caramonfinalmente, as lágrimas enchendo-lhe os olhos— Se ele pode voltar atrás no tempo para se re-unir com esse velho feiticeiro, também eu posso.Vocês podem me mandar. Depois, encontro esseFistandantilus e mato-o. Então, Raist será... —Dissimulou um soluço, esforçando-se por secontrolar — Será Raist de novo. E esquecerátoda essa patetice de desafiar a Rainha das Tre-vas e... de se tornar num deus.

O semicírculo tornou-se um caos. As vo-

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zes ergueram-se de irritação.— Impossível! Ele alterará a história! Foi

longe demais, Par-Salian...O mago de vestes brancas ergueu-se e, vi-

rando-se, fitou cada um dos magos no semicírcu-lo, os seus olhos dirigindo-se a cada um indivi-dualmente. Tas podia sentir a comunicação si-lenciosa, rápida e marcante como um relâmpago.

Caramon limpou os olhos com a mão, fi-tando os magos em tom desafiador. Lentamente,todos se voltaram sentando nos seus lugares.Mas Tas viu mãos tremerem, viu rostos nãoconvencidos, rostos cheios de irritação. O magode vestes vermelhas fitava Par-Salian especulati-vamente, com uma sobrancelha erguida. Depois,também ele se sentou. Par-Salian lançou um o-lhar final e rápido em redor da assembléia antesde se voltar para Caramon.

— Vamos considerar a sua proposta —disse Par-Salian — É possível que resulte. Segu-ramente, não é nada de que ele esteja à espera...

Dalamar começou a rir.

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CAPÍTULO 13

— Que ele esteja à espera? — Dalamar riuaté mal conseguir respirar — Ele planejou tudoisto! Acreditam que este grande idiota — acenoupara Caramon — poderia ter encontrado o ca-minho para aqui pelos seus próprios meios?Quando as criaturas das trevas perseguiram Ta-nis Semiduende e Lady Crysania, perseguiramsem nunca os capturarem, quem pensam que asenviou? Mesmo o encontro com o cavaleiro damorte, encontro esse planejado pela irmã, encon-tro que poderia ter arruinado os seus planos, omeu Shalafi o tomou para seu próprio benefício.Porque, sem dúvida, vocês são tão idiotas quevão mandar esta mulher, Lady Crysania, de voltano tempo para os únicos que a podem curar: o

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rei-sacerdote e os seus seguidores. Vão mandá-laatrás no tempo para se encontrar com Raistlin!Não apenas isso, vão até fazê-la acompanhar-sedeste homem, o irmão dele, como guarda-costas.Exatamente o que o Shalafi quer.

Tas viu os dedos de Par-Salian agarrarem-se como garras aos braços da sua cadeira de pe-dra, os olhos do velho homem reluzindo perigo-samente.

— Já passamos o suficiente com os seusinsultos, Dalamar — disse Par-Salian — Come-ço a pensar que a sua lealdade para com o seuShalafi é muito grande. Se isso é verdade, a suautilidade para com esta assembléia terminou.

Ignorando a ameaça, Dalamar sorriu a-margamente.

— O meu Shalafi... — repetiu suavementee depois suspirou. Um estremecimento convul-sionou o seu corpo magro. Depois, agarrandonas roupas rasgadas, fez uma reverência.

— Estou apanhado no meio, como foi opropósito dele — murmurou o duende negro —Já não sei a quem sirvo, se é que sirvo alguém —Levantou os olhos escuros e o seu aspecto as-sombrado fez doer o coração de Tas — Mas istosei: se algum de vocês tentasse entrar na torredurante a ausência dele, o mataria. Devo a Rais-tlin essa lealdade. No entanto, receio-o tantoquanto vocês. Os ajudarei, se puder.

As mãos de Par-Salian descontraíram-se,embora continuasse fitando Dalamar severamen-te.

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— Não consigo perceber por que razãoRaistlin te contou os seus planos. Seguramente,sabe que tentaremos qualquer ação para evitarque ele tenha sucesso nas suas ambições aterro-rizadoras.

— Porque, tal como a mim, tem-no exa-tamente onde o quer — disse Dalamar. Subita-mente, cambaleou, o rosto pálido de dor e can-saço. Par-Salian fez um gesto e uma cadeira ma-terializou-se no meio das sombras. O duendenegro atirou-se para ela — Deve acompanhar osplanos dele. Deve mandar este homem atrás notempo — gesticulou para Caramon —, acompa-nhado pela mulher. É o único processo que elepossui para obter sucesso...

— E é o único meio que temos para im-pedi-lo — disse Par-Salian, em voz baixa —Mas, porquê Lady Crysania? Que possível inte-resse poderá ele ter numa tão boa, tão pura...

— Tão poderosa — disse Dalamar comum sorriso severo — Por aquilo que conseguiureunir das escritas de Fistandantilus que aindaexistem, precisa de um clérigo para ir com elepara enfrentar a terrível rainha. E só um clérigodo bem tem o poder suficiente para desafiar arainha e abrir a porta das trevas. Oh, Lady Cry-sania não foi a primeira escolha do Shalafi. Tinhauns planos vagos para se servir do moribundoElistan, mas isso não interessa. O desenrolar dosacontecimentos, contudo, fez com que LadyCrysania lhe caísse nas mãos. Pode-se afirmarisso literalmente. Ela é boa, forte na sua crença,

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poderosa...— E atraída pelo mal como a traça pela

chama — murmurou Par-Salian, olhando paraCrysania com grande mágoa.

Tas, observando Caramon, tentou adivi-nhar se o grande homem estaria absorvendo me-tade do que estava se passando. Revelava umaexpressão vaga e distraída, como se não estivessecerto de onde estava ou de quem era. Tas aba-nou a cabeça, em dúvida. Iam enviá-lo para trásno tempo?

— Raistlin tem outros motivos para que-rer que esta mulher e o irmão recuem no tempocom ele, disso podem estar certos — afirmou omago de vestes vermelhas para Par-Salian —Não abriu todo o seu jogo, nem de longe. Con-tou-nos, através do nosso agente, apenas o sufi-ciente para nos deixar confusos. Digo que de-vemos contrariar os planos dele!

Par-Salian não respondeu. Mas, erguendoa cabeça, fitou Caramon por longos instantes eos seus olhos eram de uma tristeza tal que des-pedaçou o coração de Tas. Depois, abanando acabeça, baixou o olhar, fixando o conjunto dassuas vestes. Bupu choramingava e Tas fazia-lhecarinho absorto. O kender, pouco à vontade, ten-tou adivinhar a razão daquele estranho olhar di-rigido a Caramon. Seguramente que não o envia-riam para uma morte certa. No entanto, não se-ria isso que iriam fazer se o mandassem emborano estado em que se encontrava agora: doente,deprimido, confuso? Tas apoiou-se ora num pé

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ora noutro e depois bocejou. Ninguém estavalhe prestando a mínima atenção. Toda esta con-versa era aborrecida. Além do mais, tinha fome.Se iam mandar Caramon atrás no tempo, desejouque avançassem com isso.

Subitamente, sentiu parte da sua mente (aparte que escutava Par-Salian) arrastar a outraparte. Apressadamente, Tas uniu as duas partespara escutar o que estava sendo dito.

Dalamar falava.— Ela passou a noite no estúdio dele.

Não sei o que foi discutido, mas sei que, quandofoi embora de manhã, parecia perturbada e aba-tida. As últimas palavras que proferiu para elaforam: “Já lhe ocorreu que Paladine não a envioupara me impedir, mas para me ajudar?”.

— E qual foi a resposta dela?— Não lhe respondeu — replicou Dala-

mar — Caminhou pela torre e depois pelo bos-que como alguém que não consegue ver nemouvir.

— Que não consigo compreender é o quefez Lady Crysania viajar até aqui para buscar anossa ajuda para mandá-la de volta. Seguramenteque sabia que recusaríamos tal pedido! — afir-mou o mago de vestes vermelhas.

— Eu posso responder a isso! — disseTasslehoff, falando antes de pensar.

Agora Par-Salian prestava-lhe atenção, a-gora todos os magos do semicírculo lhe presta-vam atenção. Todas as cabeças se voltaram nadireção dele. Tas falara com espíritos na floresta

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sombria, falara no conselho da pedra brancamas, por momentos, sentiu-se intimidado peran-te esta audiência silenciosa e solene. Sobretudoquando lhe ocorreu o que tinha para dizer.

— Por favor, Tasslehoff Burrfoot — Par-Salian falou com grande cortesia —, diga-nos oque sabe — O mago sorriu — Então, talvezpossamos encerrar a reunião e você possa jantar.

Tas corou, perguntando a si mesmo sePar-Salian podia ver através da sua cabeça e leros pensamentos no seu cérebro, como lia pala-vras impressas em pergaminho.

— Oh, sim, jantar seria uma maravilha.Mas, agora, hum... sobre Lady Crysania — Tasfez uma pausa para reunir os pensamentos, lan-çando-se de seguida na sua história — Bom, no-tem que não tenho absoluta certeza sobre isto.Apenas sei pelo pouco que consegui apanharaqui e ali. Para começar pelo princípio, conheciLady Crysania quando me encontrava em Palan-thas visitando o meu amigo, Tanis Semiduende.Conhecem-no? E Laurana, o general dourado?Combati com eles na guerra do Lance. Ajudei asalvar Laurana da Rainha das Trevas — O kenderfalava com orgulho — Alguma vez ouviram essahistória? Estava no templo, em Neraka...

A sobrancelha de Par-Salian ergueu-se a-penas levemente e Tas interrompeu-se.

— Uh, b...bem, e...eu conto isso depois.De qualquer forma, encontrei Lady Crysania emcasa de Tanis e ouvi os planos deles de viajarpara Solace, para verem Caramon. Tal como as

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coisas aconteceram, e... eu como que... bem, en-contrei uma carta que Lady Crysania escrevera aElistan. Penso que deve ter caído da algibeiradela.

O kender parou para respirar. Os lábios dePar-Salian retorceram-se, mas conseguiu evitarsorrir.

— Li-a — continuou Tas, agradando-lheagora a atenção da sua assistência —, apenascom a intenção de ver se era importante. Afinalde contas, ela podia tê-la jogado fora. Na carta,dizia que estava mais, uh, como é que era, “fir-memente convencida do que nunca, depois daminha conversa com Tanis, de que havia bemem Raistlin e de que ele podia ser desviado docaminho do mal. Tenho de convencer os magosdisto”. De qualquer forma vi que a carta era im-portante, pelo que lha fui entregar. Ficou muitoagradecida por tê-la de volta — afirmou Tas so-lenemente.

— Não tinham percebido de que a tinhaperdido.

Par-Salian colocou os dedos sobre os lá-bios para controlá-los.

— Disse-lhe que podia contar muitas his-tórias sobre Raistlin, se as quisesse escutar. Res-pondeu-me que gostaria muito, pelo que lhecontei todas as histórias em que consegui pensar.Estava particularmente interessada naquelas quelhe contei sobre Bupu...

— Se ao menos conseguisse encontrar aanã boba! — disse-me uma noite — Estou certa

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de que conseguiria convencer Par-Salian de quehá esperança, de que ele pode ser regenerado!

Perante estas palavras, um dos elementosdas vestes negras riu-se. Par-Salian olhou dura-mente nessa direção e os feiticeiros calaram-se.Mas Tas avistou muitos deles, sobretudo os dasvestes negras, cruzarem os braços à frente dopeito, irritados. Podia avistar os olhos reluzindonas sombras dos seus capuzes.

— Uh, eu não quis ofender ninguém —afirmou Tas — Sempre pensei que Raistlin fica-va melhor vestido de preto, atendendo à peledourada e tudo isso. Certamente que eu não a-credito que toda a gente tem que ser boa, é claro.Fizban, ele é todo Paladine, somos grandes ami-gos íntimos, Paladine e eu... De qualquer forma,Fizban dizia que tinha de haver equilíbrio nomundo, que lutávamos para restabelecer o equi-líbrio no mundo, que lutávamos para restabele-cer o equilíbrio. Então isso quer dizer que tantotem de haver vestes negras como brancas, não é?

— Sabemos o que quer dizer, kenderken —afirmou Par-Salian gentilmente — Os nossosirmãos não ficaram ofendidos com as suas pala-vras. A ira deles dirige-se a outro lado. Nem todaa gente no mundo é tão sensato como o grandeFizban, o Fabuloso.

Tas suspirou.— Às vezes, sinto a falta dele. Mas, onde

eu estava? Ah, sim, Bupu. Foi quando tive a idéi-a. Talvez se Bupu contasse a sua história, os ma-gos acreditassem nela, disse para Lady Crysania.

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Ela concordou e ofereci-me para ir procurar Bu-pu. Não ia a Xak Tsaroth desde que Goldmoonmatou o dragão negro e representava apenas umpequeno salto do local onde me encontrava eTanis disse que não havia problema em relação aele. Na verdade, ficou bastante satisfeito por mever partir.

— O Highpulp deixou-me trazer Bupu de-pois de... uh... uma pequena discussão e algunsitens interessantes que possuía na minha algibeira.Levei Bupu para Solace, mas Tanis já tinha par-tido, tal como Lady Crysania. Caramon estava...— Tas parou, ouvindo Caramon tossir atrás dele— Caramon estava... não estava se sentindo mui-to bem, mas Tika, que é a mulher de Caramon euma grande amiga minha, de qualquer forma,Tika disse que tínhamos de ir atrás de Lady Cry-sania, porque a floresta de Wayreth era um localterrível e... sem ofensa, claro, mas alguma vezpararam para pensar que a vossa floresta é real-mente assustadora? Quero dizer, não é acolhedo-ra — Tas fitou os magos severamente — e nãosei como a deixam andar por aí à solta! Pensoque se trata de irresponsabilidade!

Os ombros de Par-Salian agitaram-se.— Bom, é tudo o que sei — afirmou Tas

— E ali está Bupu, e ela pode... — Tas parou,olhando à sua volta — Para onde foi ela?

— Aqui está — disse Caramon severa-mente, arrastando a anã detrás das suas costas,onde esta se encolhera, completamente aterrori-zada. Vendo os magos a fitá-la, a anã deu um

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grito e caiu no chão, um amarfanhado de roupasesfarrapadas estremecendo.

— Acho que é melhor ser você a contar-nos a história dela — disse Par-Salian para Tas— Isto é, se conseguir.

— Sim — replicou Tas, subitamente sub-jugado — Sei o que Lady Crysania queria que eucontasse. Aconteceu tempos atrás durante aguerra, quando nos encontrávamos em Xak Tsa-roth. Os únicos que conheciam alguma coisadaquela cidade eram os anões bobos. Mas a mai-oria não quis nos ajudar. Raistlin lançou um fei-tiço de atração sobre um deles: Bupu. Atraçãonão é a palavra apropriada para o efeito provo-cado em Bupu. Apaixonou-se por ele — Tas fezuma pausa, suspirando, prosseguindo depoisnum tom de remorso — Alguns de nós achamosa situação engraçada, creio. Mas o mesmo nãoaconteceu com Raistlin. Foi realmente cordialpara ela, chegando ao ponto de salvar-lhe a vidauma vez, quando os draconianos nos atacaram.Bom, depois de deixarmos Xak Tsaroth, Bupuveio conosco. Não suportava a idéia de se sepa-rar de Raistlin.

A voz de Tas baixou de tom.— Uma noite, acordei. Ouvi Bupu chorar.

Ia para me dirigir a ela, mas vi que Raistlin tam-bém a escutara. Tinha saudades de casa. Queriaregressar ao seu povo, mas não conseguia deixá-lo. Não sei o que ele lhe disse, mas o vi colocar amão sobre a cabeça dela. E pareceu-me que po-dia ver uma luz reluzindo em redor de Bupu.

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Depois, mandou-a para casa. Tinha que atraves-sar uma terra cheia de terríveis criaturas mas, dealguma forma, eu sabia que ela estaria em segu-rança. E estava mesmo — terminou Tas, sole-nemente.

Registrou-se um momento de silêncio e,de seguida, pareceu que todos os magos começa-ram a falar ao mesmo tempo. Os das vestes ne-gras abanavam a cabeça. Dalamar sorriu comdesprezo.

— O kender estava sonhando — escarne-ceu.

— De qualquer forma, quem acredita emkenders? — disse um.

Os que envergavam as vestes vermelhas eas vestes brancas pareciam pensativos e perple-xos.

— Se isso é verdade — disse um —, tal-vez o tivesse julgado mal. Talvez devêssemostomar esta oportunidade, por muito parca queseja.

Por fim, Par-Salian ergueu uma mão, pe-dindo silêncio.

— Admito que se trata de um aconteci-mento em que é difícil acreditar — afirmou, porfim — Não quero com isto ferir a sua susceptibi-lidade, Tasslehoff Burrfoot — acrescentou gen-tilmente, sorrindo para o kender indignado —Mas todos sabemos que a sua raça tem uma ten-dência lamentável para, uh, exagerar. Para mim éóbvio que Raistlin se limitou a lançar um encan-to sobre esta criatura — Par-Salian falou com

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desprezo —, a fim de utilizá-la e...— Mim não ser criatura!Bupu ergueu o rosto manchado de lágri-

mas e lama do chão, o cabelo eriçado como umgato assanhado. Olhando para Par-Salian, levan-tou-se e avançou, tropeçando por cima do sacoque trazia e estatelou-se no chão. Sem desani-mar, a anã levantou-se e enfrentou Par-Salian.

— Mim saber nada sobre grandes e pode-rosos feiticeiros — Bupu acenou uma mão i-munda — Mim saber nada sobre feitiço de atra-ção. Mim saber que magia estar aqui — vascu-lhou o saco e tirou para fora o rato morto, osci-lando-o na direção de Par-Salian —, e saber queo homem que falarem aqui ser bom homem. Elesimpático comigo — Aconchegando o rato mor-to ao peito, Bupu fitou Par-Salian com lágrimasnos olhos — Os outros, o homem grande, okender, riem-se de Bupu. Olham para mim comose fosse uma espécie de inseto.

Bupu esfregou os olhos. Tas tinha um nóna garganta e sentia-se inferior a um inseto.

Bupu prosseguiu, falando suavemente.— Mim saber o meu aspecto — As mãos

imundas tentaram, em vão, alisar o vestido, dei-xando rastos de sujeira por toda a parte — Mimsaber não ser bonita, como a senhora ali estendi-da — A anã boba fungou, passou a mão pelonariz e, erguendo a cabeça, olhou para Par-Salianem tom desafiador — Mas ele não me chamar“criatura”! Ele chamar-me “pequenina”. Peque-nina — repetiu.

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Por instantes, ficou em silêncio, recor-dando. Depois, soltou um suspiro.

— M... mim querer ficar com ele. Mas eledizer-me “não”. Ele dizer que tinha de percorrerestradas escuras. Ele dizer-me que queria mimem segurança. Ele pousar a mão na minha cabe-ça — Bupu baixou a cabeça, como que lembran-do-se —, e senti um calor dentro de mim. De-pois ele dizer-me: “Adeus, Bupu”. Ele chamar-me “pequenina”. — Olhando em redor, Bupufitou o semicírculo — Ele nunca rir de mim —afirmou, soluçando — Nunca! — Começou achorar.

Os únicos sons na câmara, por momen-tos, foram os soluços da anã. Caramon colocouas mãos sobre o rosto, subjugado. Tas respiroufundo e procurou um lenço nas algibeiras. Apósalguns instantes, Par-Salian ergueu-se na cadeirade pedra e veio colocar-se na frente da anã boba,que o observava com suspeita e soluçava aomesmo tempo.

O grande mago estendeu a mão.— Peço desculpa, Bupu — afirmou, com

gravidade —, se te ofendi. Devo confessar queproferi aquelas palavras cruéis com intenção, naesperança que se zangasse o suficiente para con-tar a sua história. Porque, só assim, poderíamoster a certeza quanto à verdade — Par-Salian co-locou a mão na cabeça de Bupu, o rosto contraí-do e cansado, mas simultaneamente exuberante— Talvez não tivéssemos falhado, talvez ele te-nha aprendido alguma compaixão — murmurou.

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Gentilmente, afagou o cabelo espesso da anãboba — Não, Raistlin nunca teria rido de você,pequenina. Ele sabia, ele recordava-se. Houvemuitas pessoas que riram dele.

Tas não conseguia ver através das lágri-mas e escutou Caramon chorar em silêncio juntode si. O kender assoou o nariz no lenço e depoisfoi buscar Bupu, que fazia bolhas na orla da ves-te branca de Par-Salian.

— Foi então por este motivo que LadyCrysania efetuou esta viagem? — perguntou Par-Salian a Tas, quando o kender se aproximou. Omago fitou a forma imóvel, branca e fria esten-dida por debaixo do lençol, os olhos dela fitan-do, sem ver, as trevas sombrias — Ela crê queconsegue reacender a centelha de bondade quenós tentamos e falhamos?

— Sim — respondeu Tas, subitamentepouco à vontade perante os olhos azuis pene-trantes do mago.

— E por que razão quer ela conseguir is-so? — persistiu Par-Salian.

Tas arrastou Bupu até esta ficar de pé epassou-lhe o lenço, tentando ignorar o fato deque ela o fitava espantada, não fazendo, obvia-mente, idéia do que deveria fazer com ele. Asso-ou o nariz na orla do vestido.

— Uh, bem, Tika disse... — Tas parou,corando.

— Que disse Tika? — inquiriu Par-Saliansuavemente.

— Tika disse — Tas engoliu em seco —

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Tika disse que ela o fazia... porque ela o amava, aRaistlin.

Par-Salian assentiu. O seu olhar voltou-separa Caramon.

— E quanto a você, gêmeo? — pergun-tou, subitamente. A cabeça de Caramon ergueu-se e fitou Par-Salian com olhos assombrados.

— Ainda o ama? Disse que voltaria atrásno tempo para destruir Fistandantilus. O perigoque irá enfrentar será enorme. Ama o seu irmãoo suficiente para efetuar esta arriscada viagem?Para arriscar a sua vida por ele, tal como estasenhora o fez? Lembre-se, antes de responder,que não vai voltar atrás numa demanda para sal-var o mundo. Vai voltar atrás numa demandapara salvar uma alma, nada mais. Nada menos.

Os lábios de Caramon moveram-se, masnenhum som foi emitido por eles. Contudo, oseu rosto iluminava-se de alegria, de uma felici-dade que emanava do seu íntimo. Só conseguiuassentir com a cabeça.

Par-Salian virou-se para enfrentar a as-sembléia reunida.

— Tomei a minha decisão — começou.Um elemento das vestes negras ergueu-se

e puxou o capuz para trás. Tas viu que se tratavada mulher que o trouxera para ali. A irritaçãoardia-lhe nos olhos. Fez um movimento rápido ecortante com a mão.

— Desafiamos esta decisão, Par-Salian —disse, em tom baixo — E sabe que isso significaque não pode lançar o feitiço.

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— O mestre da torre pode lançar o feitiçosozinho, Ladonna — replicou Par-Salian seve-ramente — Esse poder é concedido a todos osmestres. Foi deste modo que Raistlin descobriuo segredo quando se tornou mestre da torre, emPalanthas. Não necessito do auxílio quer devermelhos quer de negros.

Ouviu-se um burburinho vindo das vestesvermelhas; muitos olhando para as vestes negrase assentindo em concordância. Ladonna sorriu.

— Com efeito, supremo — disse —, es-tou ao corrente de tal fato. Não precisa de nóspara lançar o feitiço, mas, mesmo assim, precisade nós. Necessita da nossa cooperação, Par-Salian, da nossa cooperação silenciosa, de outraforma, as sombras da nossa magia se erguerão eencobrirão a luz da lua prateada. E você falhará.

O rosto de Par-Salian tornou-se frio ecinzento.

— E quanto à vida desta mulher? — in-quiriu, gesticulando para Crysania.

— Que significa para nós a vida de umaeclesiástica de Paladine? — desdenhou Ladonna— As nossas preocupações são muito maiores enão devem ser discutidas em frente de estranhos.Mande estes embora — fez sinal para Caramon— e nos reuniremos em privado.

— Penso que é o mais sensato, Par-Salian— disse o mago de vestes vermelhas suavemente— Os nossos hóspedes estão cansados e comfome, e achariam os nossos desacordos familia-res muito aborrecidos.

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— Muito bem — afirmou Par-Salian a-bruptamente.

Mas Tas podia descortinar a ira do magode vestes brancas quando se virou para eles —Serão convocados mais tarde.

— Espere! — gritou Caramon —, exijoestar presente! Eu...

O grande homem parou, quase estrangu-lando a si mesmo. A câmara desaparecera, osmagos tinham desaparecido, as cadeiras de pedratinham desaparecido. Caramon gritava para umaparede.

Meio tonto Tas olhou em redor. Ele, Ca-ramon e Bupu encontravam-se num quarto con-fortável, que poderia ter vindo da estalagem LastHome. Ardia uma fogueira numa lareira e, numdos lados, existiam camas confortáveis. Umamesa posta com comida estava perto da lareira, oaroma do pão recentemente cozido e de carneassada fazia-lhes crescer água na boca. Tas suspi-rou de prazer.

— Penso que este é o local mais maravi-lhoso no mundo inteiro — disse.

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CAPÍTULO 14

O velho mago de vestes brancas encon-trava-se num estúdio muito semelhante ao deRaistlin na torre de Palanthas, com a exceção deque os livros existentes nas prateleiras de Par-Salian eram encadernados em couro branco. Ossímbolos prateados traçados nas lombadas e nascapas brilhavam à luz de um fogo estaladiço. Pa-ra alguém que entrasse, a sala pareceria quente eabafada. Mas Par-Salian sentia o frio da idadepenetrando nos seus ossos. Para ele, a sala estavabastante confortável.

Encontrava-se sentado à secretária, os o-lhos fixos nas chamas. Assustou-se um poucocom um leve bater na porta e, suspirando, disse,suavemente:

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— Entre.Um jovem mago de vestes brancas abriu a

porta, fazendo uma reverência ao mago de vestesnegras que passou por ele, tal como devia fazeralguém da sua posição. Ela aceitou a homena-gem sem comentários. Atirando o capuz paratrás, passou por ele e entrou no estúdio de Par-Salian, parando na entrada. O mago de vestesbrancas fechou suavemente a porta, deixando asós os dois chefes das suas ordens.

Ladonna lançou um olhar rápido e pene-trante pela sala. A maior parte encontrava-semergulhada nas sombras, constituindo a lareira aúnica fonte de luz. Mesmo se os cortinados ti-nham sido corridos, bloqueando a passagem dobrilho das luas. Erguendo uma mão, Ladonnamurmurou algumas palavras suaves. Diversosartigos na sala começaram a brilhar com uma luzestranha e avermelhada, indicando que tinhampropriedades mágicas: um bastão encostado auma parede, um prisma de cristal sobre a secre-tária de Par-Salian, um candelabro, uma ampu-lheta gigantesca e diversos anéis nos dedos dohomem de idade, entre outros. Estes artigos nãopareceram alarmar Ladonna, que se limitou aolhar para cada um deles e a assentir. Depois,satisfeita, sentou-se numa cadeira junto da mesa.Par-Salian observava-a com um leve sorriso norosto enrugado.

— Não há criaturas do além ocultando-senos cantos, Ladonna, posso assegurar-te — disseo velho mago secamente — Se quisesse ter-lhe

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banido deste nível, já o teria feito há muito, mi-nha querida.

— Quando éramos novos? — Ladonnatirou o capuz. O seu cabelo cinzento-metálicopenteado numa complicada trança enrolada àvolta da cabeça, emoldurava um rosto cuja bele-za era realçada pelas rugas da idade, as quais pa-reciam ter sido desenhadas por um artista de ta-lento, de tal forma salientavam a sua inteligênciae sabedoria negra.

— Teria sido uma verdadeira disputa, Su-premo.

— Deixa o título, Ladonna — disse Par-Salian.

— Conhecemo-nos há muito tempo paraisso.

— Conhecemo-nos há muito tempo ebem, Par-Salian — afirmou Ladonna com umsorriso — Bastante bem — murmurou suave-mente, os olhos voltando-se para a fogueira.

— Regressaria à sua juventude, Ladonna?— inquiriu Par-Salian.

Ela não respondeu por momentos. De-pois, olhou para ele e encolheu os ombros.

— Trocar o poder, sabedoria e prática porquê? Sangue quente? Não me parece, meu queri-do. E você?

— Teria respondido o mesmo há vinteanos atrás — disse Par-Salian, esfregando astêmporas — Mas, agora... interrogo-me.

— Não vim aqui para relembrar velhostempos, por mais agradáveis que sejam — profe-

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riu Ladonna, a voz subitamente severa e fria —Vim para me opor a esta loucura — Inclinou-separa frente, os olhos negros flamejando — Es-pero que não esteja falando sério, Par-Salian.Nem mesmo você pode ter um coração tão moleou uma cabeça tão tola, que mande aquele estú-pido humano viajar no tempo para tentar impe-dir Fistandantilus? Pensa no perigo! Ele podealterar a história! Nós podemos deixar de existir!

— Bah! Ladonna, pensa você! — inter-rompeu Par-Salian — O tempo é um grande rioflutuante, mais vasto e mais largo do que qual-quer rio que conhecemos. Se atirar uma pedra àágua corrente, a água pára subitamente? A cor-rente começa a correr ao contrário? Muda o seucurso e começa a correr numa outra direção?Claro que não! A pedra cria algumas ondas nasuperfície, talvez, mas depois afunda-se. O riosegue o seu curso, tal como sempre fez.

— Que está me dizendo? — perguntouLadonna, olhando com estranheza para Par-Salian.

— Que Caramon e Crysania são pedras,minha querida. Afetarão tanto o fluxo do tempoquanto duas rochas atiradas para o Thon-Tsalarin afetariam o seu curso. São pedras... —repetiu.

— Subestimamos Raistlin, diz Dalamar—interrompeu Ladonna — Ele deve estar forte-mente seguro do sucesso que irá ter, ou nuncacorreria esse risco. Não é nenhum idiota, Par-Salian.

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— Está seguro de que adquirirá a magia.Nisso não o poderemos impedir. Mas essa magianão terá significado para ele sem a eclesiástica.Precisa de Crysania — O mago das vestes bran-cas suspirou — E é por essa razão que necessi-tamos de mandá-la atrás no tempo .

— Não consigo ver...— Ela tem que morrer, Ladonna! — a-

firmou Par-Salian rudemente — Tenho que in-vocar uma visão para que perceba? Tem que serenviada para um tempo em que todos os clérigosse transformaram nesta terra. Raistlin disse queteríamos que mandá-la para trás. Não teríamosoutra alternativa. Tal como ele próprio afirmou,é esse o processo de que dispomos para contra-riar os seus planos! É a sua maior esperança, e oseu maior receio. Precisa levá-la com ele ao por-tão, mas precisa que ela vá de livre vontade. Des-ta forma, planeja abalar-lhe a fé, desiludi-la o su-ficiente para que Crysania trabalhe com ele —Par-Salian acenou a mão, irritado — Estamosperdendo tempo. Ele parte de manhã. Temosque agir de imediato.

— Nesse caso, mantém-na aqui! — disseLadonna com desdém — Parece-me bastantesimples.

Par-Salian abanou a cabeça.— Ele se limitaria a regressar em busca

dela. E, nessa altura, já possuiria a magia. Terá opoder para fazer o que bem quiser.

— Mata-a.— Isso já foi tentado e falhamos. Além

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do mais, poderias mesmo você, com as suas ar-tes, matá-la enquanto estivesse sob a proteção dePaladine?

— Nesse caso, talvez o deus evite que elavá?

— Não. O augúrio que lancei era neutro.Paladine deixou a questão nas nossas mãos. Cry-sania não passa aqui de um vegetal, e nunca vol-tará a ser outra coisa, dado que não há ninguémvivo que lhe possa conceder de novo a vida. Tal-vez Paladine deseje que ela morra num local etempo onde a sua morte tenha significado, paraque possa preencher o seu ciclo de vida.

— Pelo que vai mandá-la para a morte —murmurou Ladonna, olhando para Par-Saliancom perplexidade — As suas vestes brancas fica-rão manchadas com sangue vermelho, meu ve-lho amigo.

Par-Salian bateu com a mão sobre a mesa,o rosto contorcido com o sofrimento.

— Isto não me agrada, raios! Mas, o queposso fazer? Não percebe a situação em que es-tou envolvido? Quem se senta agora como chefedas vestes negras?

— Eu — replicou Ladonna.— Quem se sentará como chefe, se ele re-

gressar vitorioso?Ladonna franziu a sobrancelha e não res-

pondeu.— Precisamente. Os meus dias estão con-

tados, Ladonna. Eu sei. Oh — gesticulou —, osmeus poderes ainda são grandes. Talvez nunca

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tivessem sido tão grandes. Mas, todas as manhãsquando acordo, sinto o medo. Será hoje o dia emque falhará? Todas as vezes que tenho dificulda-de em me lembrar de um feitiço, estremeço. Umdia, bem sei, não conseguirei recordar-me daspalavras corretas.

— Fechou os olhos — Estou cansado,Ladonna, muito cansado. Não quero fazer maisnada senão ficar nesta sala, junto da fogueiraquente, e registrar o conhecimento que adquiriatravés dos anos. Contudo, não me atrevo a vaci-lar agora, pois sei quem tomaria o meu lugar.

O velho mago suspirou.— Escolherei o meu sucessor, Ladonna

— disse, suavemente — Não quero a minha po-sição arrancada das minhas mãos. O que ponhoaqui em jogo é muito mais do que você.

— Talvez não — disse Ladonna, fitandoas chamas.

— Se ele regressar vitorioso, deixará dehaver uma assembléia. Seremos todos seus ser-vos — As suas mãos cerraram-se — Continuo aopor-me a isto, Par-Salian! O perigo é muitogrande! Deixe-a ficar aqui, deixa que Raistlin a-prenda o que puder com Fistandantilus. Pode-mos tratar dele quando regressar! É poderoso, éclaro, mas serão necessários anos de prática parapoder dominar as artes que Fistandantilus co-nhecia quando morreu! Poderemos servir-nosdesse tempo para nos armarmos contra ele! Po-demos...

Ouviram-se ruídos nas sombras da sala.

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Ladonna virou-se alarmada, a mão dirigindo-sede imediato a uma algibeira secreta nas suas ves-tes.

— Tenha calma, Ladonna — disse umavoz suave.

— Não precisa gastar energia num feitiçode proteção. Não sou nenhuma criatura do além,tal como Par-Salian já afirmou — A figura pene-trou na luz da fogueira, as vestes vermelhas relu-zindo suavemente.

Ladonna voltou a sentar-se com um sus-piro, mas havia um brilho de cólera nos seus o-lhos que teria feito um aprendiz retroceder demedo.

— Não, Justarius — disse, friamente —,não é uma criatura do além. Então conseguiuesconder-se de mim? Como se tornou esperto,veste vermelha — Voltando-se na cadeira, fitouPar-Salian com desprezo — Está ficando velho,meu amigo, se pediu ajuda para lidar comigo!

— Oh, estou certo que Par-Salian está tãosurpreendido por me ver aqui quanto você, La-donna — afirmou Justarius. Envolvendo-se nasvestes, caminhou lentamente para frente para sesentar numa outra cadeira diante da mesa de Par-Salian. Coxeava ao caminhar, o pé esquerdo ar-rastando-se no chão. Raistlin não fora o únicomago a ficar ferido no teste.

Justarius sorriu.— Embora o supremo tenha se tornado

bastante hábil a ocultar as suas sensações — a-crescentou.

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— Sabia da sua presença — afirmou Par-Salian suavemente — Conhece-me melhor doque isso, meu amigo.

Justarius encolheu os ombros.— Pouco importa. Estava interessado em

saber o que tinha para dizer a Ladonna...— Teria dito o mesmo a você.— Talvez menos, porque eu não teria dis-

cutido como ela. Concordo contigo, desde o iní-cio. Mas isso porque sabemos a verdade, você eeu.

— Que verdade? — repetiu Ladonna. Oseu olhar ia de Justarius para Par-Salian, os olhosdilatados de ira.

— Terá que lhe mostrar — disse Justari-us, ainda no mesmo tom de voz suave — Deoutro modo, não ficará convencida. Prove-lhecomo o perigo é grande.

— Não me mostrarão nada! — disse La-donna, com voz trêmula — Não acreditaria emnada que vocês dois planejassem...

— Então, permita que seja ela própria afazê-lo — sugeriu Justarius, encolhendo os om-bros.

Par-Salian franziu a sobrancelha e depois,com ar carregado, empurrou o prisma de cristalque estava sobre a secretária na direção dela.Apontou.

— O bastão que se encontra no cantopertencia a Fistandantilus, o maior, o mais pode-roso feiticeiro que jamais viveu. Lança um feitiçode visão, Ladonna. Olha para o bastão.

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Ladonna tocou no prisma com hesitação,o olhar deslocando-se mais uma vez com suspei-ta de Par-Salian para Justarius e de novo para oprisma.

— Vamos! — afirmou Par-Salian — Nãoo adulterei — As sobrancelhas cinzentas uniram-se — Sabe que não consigo mentir para você,Ladonna.

— Embora possa mentir aos outros —disse Justarius suavemente.

Par-Salian lançou um olhar zangado aomago de vestes vermelhas, mas não lhe respon-deu.

Ladonna pegou no cristal com súbita re-solução. Segurando-o na mão, ergueu-o até osolhos, entoando palavras de som duro e agudo.Um arco-íris de luz saiu do prisma para o sim-ples bastão de madeira que se encontrava encos-tado num canto sombrio do estúdio.

O arco-íris expandiu-se ao jorrar do cristalpara cercar todo o bastão. Depois oscilou e aglu-tinou-se, formando-se à imagem tremeluzente doproprietário do bastão.

Ladonna fitou a imagem por longos mo-mentos, baixando depois o prisma do nível dosolhos. No momento em que lhe retirou a suaconcentração, a imagem desapareceu e a luz doarco-íris desvaneceu-se. O rosto dela estava páli-do.

— Então, Ladonna? — perguntou Par-Salian calmamente, após alguns instantes — A-vançamos?

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— Deixe-me ver o feitiço de viagem notempo — respondeu, a voz insegura.

Par-Salian fez um gesto de impaciência— Sabes que isso não é possível, Ladon-

na! Só os mestres da torre podem saber esse fei-tiço...

— Estou no meu direito de ver a descri-ção, pelo menos — replicou Ladonna friamente— Oculta da minha visão os componentes e aspalavras, se assim quiser. Mas exijo ver os resul-tados esperados — A sua expressão endureceu— Perdoe-me se não confio em você, velho a-migo, como antes confiaria. Mas as suas vestesparecem estar a tornando-se tão cinzentas quan-to o seu cabelo.

Justarius sorriu, como se isto o divertisse.Par-Salian permaneceu sentado por mo-

mentos, sem saber o que fazer.— Amanhã de manhã, amigo — murmu-

rou Justarius. Irritado, Par-Salian levantou-se.Enfiando a mão por debaixo das vestes, retirouuma chave de prata que usava em redor do pes-coço, numa corrente de prata, a chave que ape-nas o mestre de uma Torre de Alta Feitiçaria po-dia usar. Antes existiam cinco; agora, só resta-vam duas. Enquanto Par-Salian retirava a chavedo pescoço e a inseria num baú de madeira es-culpida que se encontrava junto da mesa, todosos três magos presentes se interrogavam em si-lêncio se Raistlin estaria, naquele preciso mo-mento, fazendo exatamente a mesma coisa coma chave que ele possuía, talvez até retirando o

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livro de feitiços, encadernado a prata. Talvez atéfolheando lentamente e com reverência as mes-mas páginas, lançando o olhar aos feitiços co-nhecidos apenas pelos mestres das torres.

Par-Salian abriu o livro, murmurandoprimeiro as palavras prescritas que só os mestresconheciam. Se não o tivesse feito, o livro lhe te-ria desaparecido da mão. Chegando à página cor-reta, levantou o prisma do local onde Ladonna opousara e colocou-o por cima da página, repe-tindo as mesmas palavras duras e cortantes queLadonna utilizara.

A luz de arco-íris saiu do prisma, ilumi-nando a página. Com um comando de Par-Salian, a luz do prisma foi incidir numa paredevazia no lado oposto a eles.

— Vê — disse Par-Salian, a irritação aindapatente na sua voz — Ali na parede. Lê a descri-ção do feitiço.

Ladonna e Justarius voltaram-se para a pa-rede onde podiam ler as palavras que o prismalhes apresentava. Nem Ladonna nem Justariusconseguiam ler os componentes necessários ouas palavras exigidas. Pareciam palavras desarticu-ladas, quer através da arte de Par-Salian quer dascondições impostas pelo próprio feitiço. Mas adescrição do feitiço era clara.

A possibilidade de recuar no tempo é acessível aduendes, humanos e ogros, dado que foram estas as raçascriadas pelos deuses no princípio dos tempos e, por isso,podem viajar no seu fluxo. O feitiço não pode ser usadopor anões, gnomos ou kenders, uma vez que a criação

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destas raças se tratou de um acidente, não previsto pelosdeuses. (Ver a Pedra Cinzenta, de Gargath, supl. G.)A introdução de qualquer destas raças numa época ante-rior poderia ter sérias repercussões no presente, embora sedesconheçam quais possam ser. (Uma anotação nacaligrafia vacilante de Par-Salian continha a pala-vra “draconiano” inserida por entre as raças pro-ibidas.)

Existem, contudo, perigos que aquele que lançaro feitiço deve ter presentes antes de continuar. Se aqueleque lançar o feitiço morrer quando se encontrar numaépoca recuada no tempo, tal não afetará nada no futuro,pois será como se o usuário do feitiço morresse no presente.A morte dele ou dela não afetará nem o passado nem opresente nem o futuro, exceto na forma que os teria nor-malmente afetado. Por esse motivo, não gastamos energiaem qualquer tipo de feitiço de proteção.

Aquele que usa o feitiço não terá capacidade paraalterar ou afetar o que ocorreu anteriormente, seja de queforma for. Trata-se de uma precaução óbvia. Desta for-ma, este feitiço só é realmente proveitoso para estudar. Foiesse o propósito com que foi concebido. (Mais uma ano-tação, desta vez numa caligrafia muito mais anti-ga do que a de Par-Salian, acrescenta à margem:“Não é possível evitar o Cataclismo. Assim o aprende-mos com grande sofrimento e com grande custo. Que aalma dele repouse com Paladine.”)

— Então foi isso o que lhe aconteceu —disse Justarius com um assobio de surpresa —Esse foi um segredo bem guardado.

— Foram loucos por terem chegado atentá-lo — afirmou Par-Salian —, mas estavam

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desesperados.— Tal como nós estamos — acrescentou

Ladonna amargamente — Bem, há mais?— Sim, a página seguinte — replicou Par-

Salian.Se aquele que lançar o feitiço não recuar ele pró-

prio no tempo, mas enviar outra pessoa (favor tomar ematenção as precauções raciais da página anterior) ele ouela devem equipar o viajante com um dispositivo que pos-sa ser ativado de livre vontade, fazendo regressar o viajan-te ao seu próprio tempo. A descrição de tais dispositivos ea sua manufatura é a que se segue...

— E por aí adiante — disse Par-Salian. Aluz de arco-íris desapareceu, engolida na mão domago quando Par-Salian fechou os dedos em seuredor — O resto é a descrição dos detalhes téc-nicos do fabrico desse dispositivo. Eu tenho umantigo. O darei a Caramon.

A ênfase que conferiu ao nome do ho-mem foi inconsciente, mas todos os presentes nasala o notaram. Ladonna sorriu, as mãos acarici-ando suavemente as suas vestes negras. Justariusabanou a cabeça. O próprio Par-Salian, aperce-bendo-se das implicações, afundou-se na suacadeira, o rosto carregado de preocupação.

— Então Caramon irá utilizá-lo sozinho— disse Justarius — Compreendo por que va-mos mandar Crysania. Ela deve voltar atrás notempo, para nunca mais regressar. Mas, Cara-mon?

— Caramon é a minha redenção — dissePar-Salian sem olhar para cima. O velho mago

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fitava as mãos, que repousavam, tremendo, so-bre o livro de feitiços aberto — Vai iniciar umaviagem para salvar uma alma, tal como lhe disse.Mas não será a alma do irmão — Par-Salian o-lhou para cima, os olhos cheios de dor. Fitouprimeiro Justarius e depois Ladonna. Ambos seuniram ao olhar, com completo entendimento.

— A verdade pode destruí-lo — afirmouJustarius.

— Existe muito pouco para destruir, sequerem a minha opinião — observou Ladonnafriamente. Levantou-se. Justarius ergueu-se tam-bém, vacilando um pouco até recuperar o equilí-brio sobre a perna aleijada — Desde que te vejalivre da mulher, pouco me importa o que façacom o homem, Par-Salian. Se crê que lavará osangue das suas vestes, nesse caso auxilia-o —Sorriu severamente — De certa forma, acho istobastante engraçado. Talvez que, ao envelhecer-mos, não sejamos assim tão diferentes, pois não,meu querido?

— Existem diferenças, Ladonna — dissePar-Salian, sorrindo — São os contornos distin-tos que começam a turvar-se na nossa visão. Issosignifica que as vestes negras apoiarão a minhadecisão?

— Parece que não temos alternativa —respondeu Ladonna sem emoção — Se falhar...

— Goza a minha queda — disse Par-Salian.

— Assim farei — respondeu a mulher su-avemente —, tanto mais que será provavelmente

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a última coisa que gozarei nesta vida. Adeus, Par-Salian.

— Adeus, Ladonna — disse.— Uma mulher sensata — observou Jus-

tarius, quando a porta se fechou atrás dela.— Uma rival digna de si, meu amigo —

Par-Salian regressou ao seu lugar por detrás dasecretária — Vou gostar de vê-los debatendopela minha posição.

— Espero sinceramente que tenha opor-tunidade para isso — disse Justarius, de mão naporta — Quando vai lançar o feitiço?

— De manhã cedo — respondeu Par-Salian, falando pesadamente — São necessáriosdias de preparação. Já passei longas horas traba-lhando nele.

— E quanto a assistência?— Não é necessária, nem sequer de um

aprendiz. Ficarei exausto no final. Trate da des-convocação da assembléia, por favor, meu ami-go.

— Certamente. E quanto ao kender e à a-nã?

— Mande a anã para casa com alguns pe-quenos tesouros de que ela possa gostar. Quantoao kender... — Par-Salian sorriu — pode mandá-lo para onde ele quiser ir, com exceção das luas,é claro. No respeitante a tesouros, estou certoque ele próprio trata de reuni-los antes de partir.Pesquise, sem ele notar, as suas algibeiras mas, senão tiver nada de importante, deixe-o ficar como que encontrar.

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Justarius assentiu.— E Dalamar?O rosto de Par-Salian tornou-se severo.— Sem dúvida que o duende negro já par-

tiu. Ele não podia deixar o seu Shalafi à espera —Os dedos de Par-Salian bateram na mesa, e acara revelava frustração — O charme que Rais-tlin possui é bastante estranho! Nunca o conhe-ceu, não é? Não. Eu próprio o senti e não consi-go compreender...

— Talvez eu possa — disse Justarius —Todos nós já tivemos uma ocasião na vida emque se riram de nós. Todos nós tivemos ciúmesde um irmão ou irmã. Sentimos dor e sofremos,tal como ele sofreu. E todos nós desejamos pos-suir, nem que fosse uma única vez, o poder deesmagar os nossos inimigos! Temos pena dele,odiamo-lo. Receamo-lo, tudo porque existe neleum pouco de todos nós, embora só o admitamosna mais completa escuridão da noite.

— Se é que alguma vez o admitimos a nóspróprios. Aquela desgraçada eclesiástica! Paraque se foi envolver! — Par-Salian apertou a ca-beça com as mãos que tremiam.

— Adeus, meu amigo — disse Justariusgentilmente.

— Esperarei por você no exterior do la-boratório, para o caso de necessitar de ajudaquando tudo terminar.

— Obrigado — murmurou Par-Saliansem erguer a cabeça.

Justarius saiu do estúdio. Fechando a por-

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ta com muita pressa, a orla das suas vestes ver-melhas ficou presa e viu-se forçado a abri-la denovo para se libertar. Antes de fechar de novo aporta, ouviu alguém que chorava.

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CAPÍTULO 15

Tasslehoff Burrfoot estava aborrecido.E, como toda a gente sabe, não há nada

mais perigoso em Krynn do que um kender abor-recido.

Tas, Bupu e Caramon tinham acabado arefeição, uma refeição bastante enfadonha. Ca-ramon, perdido nos seus pensamentos, não pro-feriu uma palavra; sentou-se envolto num pro-fundo silêncio enquanto, completamente absor-to, devorou praticamente tudo o que estava àvista. Bupu nem se sentou. Agarrando numa ti-gela, levou o conteúdo à boca com as mãos, en-fiando-o na boca com uma rapidez há muito a-prendida nas mesas de jantar dos anões bobos.Pousando essa, passou para outra e limpou uma

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travessa de molho de carne, a manteiga, o açúcare as natas e, por fim, meia travessa de batatas deleite, antes que Tas percebesse o que estava a-contecendo. Salvou, mesmo a tempo, um saleiro.

— Bom — disse Tas alegremente. Afas-tando o prato vazio, tentou ignorar a visão deBupu agarrando nele e lambendo-o até ficar lim-po — Sinto-me muito melhor. E você, Cara-mon? Vamos explorar!

— Explorar! — Caramon lançou-lhe umolhar tão horrorizado que Tas foi, momentane-amente, apanhado de surpresa — Está louco?Eu não poria pé fora dessa porta por nenhumariqueza existente em Krynn!

— A sério? — perguntou Tas ansiosa-mente — E por que não? Oh, diga-me, Cara-mon! O que há lá fora?

— Não sei — O grande homem estreme-ceu — Mas é, seguramente, algo terrível.

— Não vi nenhum guarda...— Não, e existe uma boa razão para isso

— afirmou Caramon — Não são precisos guar-das neste local. Estou detectando esse seu olhar,Tasslehoff, e esquece isso imediatamente! Mes-mo que conseguisse sair — Caramon lançou umolhar assustado à porta do quarto —, o que du-vido, ia provavelmente cair nos braços de umcadáver, ou pior!

Os olhos de Tas abriram-se muito. Con-seguiu, contudo, soltar uma exclamação de pra-zer. Olhando para baixo, para os seus sapatos,murmurou:

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— Sim, acho que tem razão, Caramon.Tinha me esquecido onde nos encontrávamos.

— Pareceu-me que sim — respondeu Ca-ramon severamente. Esfregando os ombros do-ridos, o grande homem gemeu — Estou terri-velmente cansado. Tenho que dormir um pouco.Você e a não-sei-o-quê façam o mesmo. Estábem?

— Claro, Caramon — disse Tasslehoff.Bupu, arrotando satisfeita, já tinha se en-

volvido numa manta em frente da lareira, servin-do-se dos restos da tigela com batatas de leitecomo almofada.

Caramon fitou o kender com ar desconfia-do. Tas assumiu o ar mais inocente que um ken-der poderia assumir, cujo resultado foi Caramonacenar um dedo para ele severamente.

— Promete que não deixará esta sala,Tasslehoff Burrfoot. Promete como prometeriaa... digamos, a Tanis, se ele aqui estivesse.

— Prometo — afirmou Tas solenemente— tal como prometeria a Tanis... se ele estivesseaqui.

— Ótimo — Caramon suspirou e deitou-se para cima de uma cama que estalou em pro-testo, o colchão afundando-se quase até ao soa-lho devido ao peso do grande homem — Pensoque alguém nos acordará quando decidirem oque vão fazer.

— Vai mesmo voltar atrás no tempo, Ca-ramon? — inquiriu Tas, sentando-se na sua pró-pria cama fingindo estar desapertando as botas.

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— Sim, claro. Não é nada por aí além —murmurou Caramon sonolento — Agora, vaidormir e... obrigado, Tas. Tem sido... tem sido...uma grande ajuda... — As palavras passaram aum ressonar.

Tas permaneceu completamente imóvel,esperando até que a respiração de Caramon setornasse regular. Não levou muito tempo, dadoque o grande homem estava, quer emocionalquer fisicamente, exausto. Olhando para o rostopálido, preocupado e manchado de lágrimas deCaramon, o kender sentiu, por momentos, remor-sos. Mas os kenders estavam habituados a lidarcom remorsos tal como os humanos estavamhabituados a lidar com picadas de mosquitos.

— Ele nunca saberá que saí — disse Taspara si mesmo, ao passar, sem qualquer ruído,pela cama de Caramon — E, na verdade, não lheprometi que não iria a lado algum. Prometi a Ta-nis. E Tanis não está aqui, pelo que a promessanão conta. Além disso, estou certo de que elehaveria de querer explorar, se não estivesse tãocansado.

Quando Tas passou pelo corpo imundode Bupu, já se convencera firmemente de queCaramon lhe ordenara que pesquisasse um pou-co antes de ir deitar. Tentou a maçaneta da portacom apreensão, recordando o aviso de Caramon.Mas esta abriu-se facilmente. Nesse caso, somosconvidados e não prisioneiros. A menos que es-tivesse um cadáver de guarda lá fora. Tas enfioua cabeça por fora da porta. Olhou para o corre-

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dor, de ambos os lados. Nada. Nem um cadáverà vista. Suspirando um pouco de desapontamen-to, Tas saiu e fechou a porta suavemente atrásdele.

O corredor alongava-se à sua esquerda e àsua direita, desaparecendo em cantos sombriosem ambas as extremidades. Era frio e vazio. E-xistiam outras portas que davam para o corredor,todas elas escuras, todas elas fechadas. Não haviadecoração de qualquer tipo, nenhuma tapeçariapendurada nas paredes, nenhum carpete cobrin-do o chão de pedra. Não havia sequer luzes, nemtochas, nem velas. Aparentemente, os magosdeveriam vir munidos com luz, no caso de per-correrem a escuridão.

Uma janela, numa das extremidades, per-mitia que a luz de Solinari, a lua prateada, se fil-trasse através dos seus painéis de vidro, mas eratudo. O resto do corredor encontrava-se total-mente mergulhado na escuridão. Era muito tardepara que Tas pensasse em voltar ao quarto parair buscar uma vela. Não. Se Caramon despertas-se, poderia não se lembrar que pedira ao kenderpara ir explorar.

— Vou entrar num destes quartos e tragouma vela emprestada — disse Tas para si mesmo— Além disso, é um bom processo para conhe-cer pessoas.

Deslizando pelo corredor, mais silenciosodo que os raios lunares que dançavam no chão,Tas alcançou a porta seguinte.

— Não vou bater, para o caso de estarem

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dormindo — refletiu e, com cuidado, girou amaçaneta — Ah, trancada! — disse, sentindo-seimensamente entusiasmado. Isso lhe daria algu-ma coisa para fazer durante alguns momentos,pelo menos. Puxando suas ferramentas, esten-deu-as para o luar, selecionando o ferro de di-mensões adequadas para esta fechadura.

— Espero que não esteja trancada pormagia — murmurou, o pensamento súbito fa-zendo-o gelar. Sabia que os mágicos por vezesfaziam isso, hábito esse que os kenders considera-vam como muito pouco ético. Mas, talvez, naTorre de Alta Feitiçaria, rodeados de magos, elesnão considerassem isso necessário — Quero di-zer, poderia aparecer alguém que se limitasse adeitar a porta abaixo, raciocinou Tas.

Como seria de esperar, a fechadura abriu-se facilmente. Com o coração batendo de tantaexcitação, Tas abriu a porta sem ruído e esprei-tou para dentro. O quarto estava iluminado ape-nas com o leve brilho de uma fogueira em extin-ção. Pôs-se à escuta. Não conseguia ouvir nin-guém lá dentro, nenhum som de ressonar ourespirar, entrou, caminhando suavemente. Osseus olhos perspicazes encontraram a cama. Es-tava vazia. Não se encontrava ninguém ali.

— Nesse caso não vão se importar queleve a vela emprestada — disse o kender para si,feliz. Encontrando um castiçal, acendeu o paviocom um carvão em brasa. Depois, entregou-seaos prazeres de examinar os pertences do ocu-pante, reparando, ao fazê-lo, que, quem quer que

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habitasse nesse quarto, não era uma pessoa muitoarrumada.

Cerca de duas horas e muitos quartos de-pois, Tas regressava, cansado, ao seu próprioquarto, as algibeiras repletas com os artigos maisfascinantes, que ele estava inteiramente determi-nado a devolver aos seus proprietários na manhãseguinte. Muitos deles foram apanhados em cimade mesas, para onde tinham, obviamente, sidoatirados ao acaso. Encontrou alguns no chão(estava certo de que os proprietários os tinhamperdido) e salvara inclusive alguns das algibeirasde vestes que deveriam ir para lavar, pelo que,nestes casos, os artigos teriam se perdido.

Olhando ao longo do corredor, recebeu,contudo, um grande choque, ao avistar luz queincidia por debaixo da porta deles!

— Caramon! — Engoliu em seco, mas,nesse momento, uma centena de desculpas plau-síveis por ter saído do quarto penetraram no seucérebro. Ou, talvez, Caramon não tivesse aindadado pela falta dele. Talvez estivesse bebendo.Considerando esta possibilidade, Tas caminhouna ponta dos pés para a porta fechada do quartoe encostou o ouvido, à escuta.

Ouviu vozes. Reconheceu de imediato ade Bupu. A outra... franziu a sobrancelha. Pare-cia-lhe familiar... onde a tinha ouvido?

— Sim, mas mandá-la de volta para Hi-ghpulp, se é para aí que quer ir. Mas, primeiro,tem que me dizer onde fica Highpulp.

A voz parecia levemente desesperada. A-

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parentemente, isto estava passando-se já há al-gum tempo. Tas espreitou pela fechadura. Podiaavistar Bupu, o cabelo manchado com batatas deleite, mirando com desconfiança uma figura devestes vermelhas. Tas recordava-se agora ondeescutara a voz: era o homem da assembléia, a-quele que não parava de questionar Par-Salian!

— Highbulp! — repetiu Bupu indignada— Não Highpulp! É Highbulp é onde vivo.Mande-me para casa.

— Sim, claro. Diga-me então, onde vive?— Onde fica Highbulp.— E onde fica Highpulbulp? — pergun-

tou o mago de vestes vermelhas, em tom de de-sespero.

— Onde vivo — afirmou Bupu sucinta-mente — Já tinha dito. Tem ouvidos por debai-xo desse capuz? Talvez ser surdo — A anã desa-pareceu da visão de Tas por momentos, mergu-lhando para o seu saco. Quando voltou a apare-cer, tinha na mão mais um lagarto morto comuma tira de couro em redor da cauda — Eu cu-rar. Enfia a cauda no ouvido e...

— Obrigado — disse o mago apressada-mente —, mas posso assegurar-lhe que ouçoperfeitamente. Uh, como se chama à sua casa?Qual é o nome?

— O Pitt. Com dois tês. Nome pomposo,huh? — disse Bupu com orgulho — Foi idéia deHighbulp. Ele comer uma vez um livro. Apren-der muito. Tudo aqui — Deu leves palmadas noestômago.

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Tas colocou a mão sobre a boca para evi-tar rir. O mago de vestes vermelhas sentia tam-bém um problema similar. Tas viu os ombros dohomem abanarem por debaixo das vestes verme-lhas, e levou algum tempo para responder.Quando o fez, a sua voz transmitia um leve es-tremecimento.

— Como... como é que os humanos cha-mam o vosso... ao... uh... Pitt?

Tas viu Bupu franzir o sobrolho.— Nome estúpido. Parece alguém cus-

pindo. Skroth.— Skroth — repetiu o mago de vestes

vermelhas, perplexo — Skroth — murmurou.Depois, estalou os dedos — Já me lembro. Okender proferiu-o na assembléia. Xak Tsaroth?

— Mim já ter dito isso. Ter a certeza deque não querer lagarto para curar ouvidos? Põe-se a cauda...

Libertando um suspiro de alívio, o magode vestes vermelhas estendeu a mão por cima dacabeça de Bupu. Soltando o que parecia ser pópor cima dela (Bupu espirrou violentamente),Tas ouviu o mago entoar estranhas palavras.

— Mim ir agora para casa? — inquiriuBupu, esperançosamente.

O mago não respondeu. Continuava ento-ando.

— Ele não querer ser simpático — mur-murou para si mesma, espirrando outra vez en-quanto o pó lhe ia cobrindo lentamente o cabeloe o corpo — Nenhum deles simpático. Não co-

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mo o meu homem bonito — Limpou o nariz,fungando — Ele não se rir... ele chamar-me “pe-quenina”.

O pó sobre a anã começou a adquirir umleve brilho amarelo. Tas tossiu levemente. O bri-lho foi aumentando de intensidade, mudando decor, tornando-se num amarelo-esverdeado, de-pois verde, depois verde-azulado, depois azul e,subitamente...

— Bupu! — murmurou Tas. A anã bobadesaparecera!

— E o próximo sou eu! — percebeu Tas,horrorizado. Seguramente que o mago de vestesvermelhas atravessava o quarto em direção à ca-ma onde o cuidadoso kender simulara o seu vultopara que Caramon não se preocupasse no casode acordar.

— Tasslehoff Burrfoot — chamou o ma-go de vestes vermelhas em tom suave. Colocara-se fora de visão de Tas. O kender ficou como quepetrificado, esperando que o mago descobrisseque ele não se encontrava no quarto. Não queele receasse ser apanhado. Estava acostumado aser apanhado e seguramente conseguiria condu-zir o assunto de acordo com a sua vontade. Masreceava ser mandado para casa! Eles não estavamcertamente à espera que Caramon fosse a algumlado sem ele, não é?

— Caramon precisa de mim! — murmurouTas para si mesmo, com grande aflição — Elesnão sabem como ele está em má forma. O quelhe teria acontecido se eu não estivesse ao pé

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dele, para tirá-lo dos problemas?— Tasslehoff — repetiu a voz do mago

de vestes vermelhas. Devia estar aproximando-seda cama.

Apressadamente, a mão de Tas mergulhouna algibeira. Retirando uma série de tralha, espe-rou encontrar alguma coisa útil. Abrindo a pe-quena mão, aproximou-a do castiçal. Tirara umanel, uma uva e um monte de cera para o bigode.A cera e a uva estavam, obviamente, fora dequestão. Atirou-as para o chão.

— Caramon! — Tas ouviu o mago devestes vermelhas chamá-lo severamente. Pôdeouvir Caramon resmungar e roncar e imaginou omago a abaná-lo — Caramon, acorde. Onde estáo kender?

Tentando ignorar o que se passava noquarto, Tas concentrou-se no exame do anel.Provavelmente era mágico. Apanhara-o no ter-ceiro quarto à esquerda. Ou teria sido no quarto?E os anéis mágicos habitualmente funcionavamsó por serem usados. Tas era perito no assunto.Acidentalmente, colocara uma vez um anel má-gico que o teletransportara de imediato para opalácio de um feiticeiro mau. Existiam todas aspossibilidades de que este pudesse fazer o mes-mo. Não fazia idéia de quais seriam as proprie-dades do anel.

Talvez houvesse qualquer pista no anel?Tas voltou-o, quase o deixando cair com a

pressa. Graças aos deuses que Caramon era tãodifícil de despertar!

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Tratava-se de um anel simples, esculpidoem marfim, com duas pequenas pedras cor-de-rosa. Havia alguns símbolos traçados na parteinterior. Tas lembrou-se dos seus óculos de visãomágicos, mas estavam perdidos em Neraka, amenos que algum draconiano os estivesse usan-do.

— Qu... qu... — balbuciava Caramon —Kender? Disse-lhe... não vá lá fora... cadáveres...

— Raios! — O mago de vestes vermelhascaminhava para a porta.

Por favor, Fizban!, murmurou o kender, seainda se lembra de mim, o que não acredito, em-bora ainda possa acontecer: eu era aquele queestava sempre encontrando o seu chapéu. Porfavor, Fizban! Não deixe que eles mandem Ca-ramon sem mim. Transforma este objeto numanel de invisibilidade. Ou, pelo menos, num anelde qualquer coisa que impeça que eles me captu-rem!

Cerrando firmemente os olhos para nãopoder ver qualquer coisa horrível que pudesseter invocado acidentalmente, Tas pôs o anel nopolegar. (No último instante, abriu os olhos, paranão perder qualquer coisa horrível que pudesseter invocado.)

Primeiro, nada aconteceu. Podia escutaros passos do mago de vestes vermelhas aproxi-mando-se cada vez mais da porta.

Depois, algo estava acontecendo, emboranão propriamente aquilo que Tas esperara. Ocorredor crescia! Ouviu-se um som nos ouvidos

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do kender e as paredes passaram por ele e o tetoafastou-se. De boca aberta, viu a porta crescercada vez mais, até ficar com dimensões imensas.

“Que fiz?” perguntou-se Tas, alarmado.Terei feito a torre crescer? Acha que alguém vainotar? Se notarem, ficarão muito aborrecidos?

A enorme porta abriu-se com uma rajadade vento que quase derrubou o kender. Um e-norme mago de vestes vermelhas enchia a entra-da.

— Um gigante! — balbuciou Tas — Nãosó fiz a torre crescer, como fiz crescer os magos!Oh, meus deuses. Acho que vão reparar nisso!Pelo menos da primeira vez que tentarem calçaros sapatos! E tenho certeza de que ficarão abor-recidos. Eu ficaria, se tivesse 6 m de altura e aminha roupa deixasse de me servir.

Mas o mago de vestes vermelhas não pa-receu nada perturbado pelo fato de ter aumenta-do, para grande surpresa de Tas. Limitou-se aespreitar para o corredor, gritando:

— Tasslehoff Burrfoot!Chegou mesmo a olhar para o local onde

Tas se encontrava e não o avistou!— Oh, obrigado, Fizban! — afirmou o

kender. Depois tossiu. A sua voz tinha um somrealmente estranho. Em forma de experiência,repetiu: — Fizban?— De novo tossiu.

Nesse instante, o mago de vestes verme-lhas olhou para baixo — Ah, ah! E de que quar-to você escapou, meu pequeno amigo? — disseo mago.

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Tasslehoff viu, apavorado, uma mão gi-gantesca estender-se para ele! Os dedos aproxi-mavam-se cada vez mais. Tas estava tão perplexoque não conseguiu correr ou fazer qualquer coisasenão aguardar que aquela mão gigantesca o a-garrasse. Depois, tudo terminaria! O mandariaminstantaneamente para casa, se não lhe aplicas-sem um castigo mais severo por aumentar da-quela forma a torre deles quando ele não estavabem certo de que eles a queriam aumentada.

A mão pairou sobre ele e pegou-o pelacauda.

“Pela cauda!”, pensou Tas, desvairado, re-torcendo-se no ar quando a mão o levantou dochão. “Não tenho nenhuma cauda! Mas devo ter!A mão agarrou-me por alguma coisa!”

Virando a cabeça, Tas viu que, efetiva-mente, tinha uma cauda! Não só uma cauda, masquatro pés cor-de-rosa! Quatro! E, em vez deperneiras azuis brilhantes, tinha pêlo branco!

— Vejamos então — estrondou uma vozsevera junto a um dos seus ouvidos —, respon-da-me, pequeno roedor! É familiar de quem?

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CAPÍTULO 16

Familiar! Tasslehoff considerou esta pala-vra. Familiar... Algumas conversas com Raistlinregressaram à sua mente febril.

— Alguns mágicos têm animais que estãoligados aos seus comandos — dissera-lhe Rais-tlin uma vez — Estes animais, ou familiares,como são chamados, podem atuar como umaextensão dos próprios sentidos de um mago.Podem ir a locais onde ele não pode entrar, vercoisas que ele é incapaz de ver, escutar conversasque ele não foi convidado a partilhar.

Nessa época, Tasslehoff pensara que erauma idéia estupenda, embora se lembrasse queRaistlin não se sentira impressionado. Pareciaconsiderar tal fato uma fraqueza, estar tão for-

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temente dependente de um outro ser.— Então, responda-me? — exigiu o mago

de vestes vermelhas, abanando Tasslehoff pelacauda. O sangue corria para a sua cabeça, fazen-do-o ficar tonto, para além de que estar presopela cauda era bastante doloroso, já para nãofalar de dignidade! Tudo o que pôde fazer, pormomentos, foi dar graças por Flint não podervê-lo.

“Parece”, pensou Tas, “que os familiarespodem falar.” Espero que falem a língua vulgar,e não alguma coisa estranha, como a língua dosratos, por exemplo.

— Eu... eu... uh... pertenço a, qual seriaum bom nome para um mago?, Fa... Faikus —disse Tas, lembrando-se de Raistlin usar estenome ligado a um colega estudante, há muitotempo atrás.

— Ah — disse o mago de vestes verme-lhas, franzindo a sobrancelha —, devia ter per-cebido. Anda fazendo algum serviço ao seu mes-tre ou simplesmente passeando?

Felizmente para Tas, o mago segurou okender de outro modo, libertando-lhe a cauda eagarrando-o firmemente na mão. As patas dafrente do kender repousavam agora no polegar domago de vestes vermelhas, os seus olhos salien-tes e de um vermelho vivo fitavam os do mago,frios e negros.

“Que devo responder?” interrogou-se Tasfreneticamente. Nenhuma das hipóteses pareciamuito boa.

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— É... é a minha n...noite de folga — dis-se Tas, no que esperava ser um tom indignadode guinchar.

— Humpf! — replicou o mago — Temandado muito tempo com aquele preguiçoso doFaikus, essa é que é a verdade. Falarei com essejovem pela manhã. Quanto a você, não, não pre-cisa começar a contorcer-se! Esqueceu que ofamiliar de Sudora ronda os corredores à noite?Poderia ter sido a sobremesa de Marigold! Vemcomigo. Depois de terminar os assuntos destanoite, devolvo-lhe ao seu mestre.

Tas, que estava preparado para enfiar osseus afiados pequenos dentes no polegar do ma-go, pensou melhor na questão. “Terminar osassuntos desta noite!” Claro, tinha que tratar deCaramon! Isto era melhor do que ser invisível!Aproveitaria a carona!

O kender pendeu a cabeça no que imagi-nou ser uma expressão de rato revelando humil-dade e contrição. Pareceu satisfazer o mago devestes vermelhas, pois sorriu de forma preocu-pada e começou a procurar nas algibeiras, embusca de qualquer coisa.

— O que aconteceu, Justarius? — Ali es-tava Caramon, com ar estonteado e ainda meioadormecido. Espreitou vagamente para um ladoe outro do corredor — Encontrou Tas?

— O kender? Não — O mago sorriu denovo, desta vez com algum pesar — Pode de-morar algum tempo até o encontrarmos, receio...dado que os kenders são muito hábeis em escon-

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der-se.— Não vão machucá-lo? — perguntou

Caramon ansiosamente, tão ansiosamente queTas sentiu pena do grande homem e desejou po-der tranqüilizá-lo.

— Não, claro que não — respondeu Jus-tarius, ainda procurando alguma coisa por entreas vestes — Embora, acrescentou, como um se-gundo pensamento —, ele possa inadvertida-mente ferir a si próprio. Há objetos espalhadospor aí com que não se deve brincar. Bom, estápronto?

— Na verdade, não gostaria de partir atéTas ter voltado e eu saber que ele está bem —afirmou Caramon com teimosia.

— Receio que não tenha alternativa —disse o mago e Tas ouviu a voz do homem ficarmais fria — O seu irmão vai iniciar a viagem demanhã. Deve preparar-se para ir também nessahora. São necessárias horas para que Par-Salianmemorize e lance este complexo feitiço. Ele já oiniciou. Na verdade, já perdi muito tempo à pro-cura do kender. Estamos atrasados. Venha.

— Espere... as minhas coisas... — afirmouCaramon, pateticamente — A minha espada.

— Não precisa se incomodar com nadadisso — respondeu Justarius. Aparentementeencontrando aquilo que buscava, retirou um sacode seda do bolso das vestes — Não pode voltaratrás no tempo com qualquer arma ou dispositi-vo deste período para o qual vai viajar.

Caramon olhou para o seu corpo, espan-

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tado.— Q... quer dizer que terei que trocar de

roupa? Não terei uma espada? Que...“E vocês vão mandar este homem atrás

no tempo sozinho!” pensou Tas, indignado. Nãoduraria mais de cinco minutos. Cinco minutos,se tanto! Não, por todos os deuses, eu...

Exatamente o que o kender ia fazer não sesabe, pois foi enfiado de cabeça para baixo nosaco de seda!

Tudo ficou escuro. Rolou para o fundo dosaco, pés sobre a cauda, aterrando de cabeça. Dealgum lugar dentro de si provinha um medo hor-rível de se encontrar de costas, numa posiçãovulnerável. Freneticamente, esforçou-se para en-direitar, esgravatando nos lados escorregadiçosdo saco com os pés com garras. Por fim, conse-guiu ficar direito, e a terrível sensação apaziguou-se.

“Então, esta é a sensação de ser invadidopelo pânico”, pensou Tas com um suspiro. Nãome agrada nada, isso é certo. E sinto-me muitosatisfeito pelos kenders não ficarem assim, regrageral. E agora?

Esforçando-se para se acalmar e parar aaceleração do coração, Tas aconchegou-se nofundo do saco de seda e tentou pensar no quedeveria fazer a seguir. Parecia que perdera o queestava se passando quando começou a luta nointerior do saco, pois, pondo-se à escuta, pôdeouvir o som de duas pessoas caminhando porum corredor de pedra; os pés pesados e de botas

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de Caramon, e os passos arrastados do mago.Sentia também um leve movimento oscilante epodia escutar o roçar suave de tecido contra te-cido. Ocorreu-lhe subitamente que, sem dúvida,o mago de vestes vermelhas pendurou o saco emque se encontrava no cinto!

— Que devo fazer quando chegar lá?Como vou voltar para cá depois de...

Era a voz de Caramon, um pouco abafadapelo saco de pano mas ainda bastante clara.

— Tudo isso lhe será explicado — A vozdo mago revelava grande paciência — Pergunto-me... Está com dúvidas, talvez tenha pensadomelhor. Se assim for, deve-nos informar agora...

— Não — A voz de Caramon exprimiafirmeza, firmeza como não revelava há muito —Não, não estou com dúvidas. Irei. Levarei LadyCrysania nesta viagem no tempo. É por minhaculpa que ela está assim, independentemente doque o velhote diga. Farei tudo ao meu alcancepara que ela receba o auxílio de que necessita ecuidarei desse Fistandantilus para vocês.

— M... m... m...Tas escutou esse “m... m... m...” embora

duvidasse que Caramon tivesse ouvido. O gran-de homem afirmava o que ia fazer a Fistandanti-lus quando o apanhasse. Mas Tas sentiu-se gelar,tal como sentira quando Par-Salian lançou aqueleestranho e triste olhar a Caramon na câmara. Okender, esquecendo onde se encontrava, guin-chou de frustração.

— Shhh — murmurou Justarius, fazendo

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carícias no saco com a mão — É apenas por al-gum tempo, depois volta à sua jaula, para comermilho.

— Huh? — disse Caramon. Tas quaseconseguia ver a expressão surpreendida do gran-de homem. O kender rangeu os pequenos dentes.A palavra “jaula” avivou-lhe uma imagem me-donha na sua mente e um pensamento verdadei-ramente alarmante ocorreu-lhe. “E se não consi-go voltar a ser quem sou?”

— Oh, não é contigo! — apressou-se adizer o mago — Estava falando com o meu ami-go peludo. Está ficando agitado. Se não estivés-semos atrasados, o levaria de volta neste instante— Tas não se moveu — Bom, parece que ficoumais calmo. O que estava dizendo?

Tas não prestou mais atenção. Miseravel-mente, agarrou-se ao saco com os pequenos pésenquanto este balançava para trás e para frente,batendo gentilmente contra a anca do mago, quecaminhava coxeando. Seguramente que o feitiçopoderia ter o efeito inverso se o anel fosse reti-rado, não era?

Os dedos de Tas desejavam tentar paraver. O último anel mágico que colocara não saía!E se acontecesse o mesmo com este? Estariacondenado a viver com pêlo branco e pés cor-de-rosa para sempre? Perante este pensamento,Tas envolveu um pé em redor do anel que estavaainda enfiado num dedo e quase conseguiu reti-rá-lo, apenas para ter certeza.

Mas o pensamento de sair do saco de se-

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da, como um kender de tamanho natural, e aterraraos pés do mago, chegou-lhe à mente. Forçou asua pequena pata a parar. Não. Ao menos, destemodo, estava sendo levado para o mesmo localpara onde conduziam Caramon. Se nada maisfosse possível, voltaria atrás no tempo sob aforma de rato. Podia haver coisas piores...

“Como ia sair do saco?”O coração do kender quase lhe caiu aos

pés. Claro que sair dali seria fácil se assumisse asua forma. Só que, depois, apanhavam-no emandavam-no para casa! Mas, se permanecesseum rato, acabaria comendo milho com Fai-kus!O kender grunhiu e baixou-se, enfiando o narizentre as patas. Esta era, de longe, a pior situaçãoem que jamais se encontrara em toda a sua vida,mesmo contando com a vez em que os dois fei-ticeiros o apanharam escapando com o seu ma-mute de lã. Acima de tudo, começava a sentir-senauseado, devido ao movimento oscilante dosaco.

— O verdadeiro erro foi ter feito uma ra-ção a Fizban — disse o kender a si mesmo, tris-temente — Pode ser Paladine, na realidade, masaposto que, em algum lugar, o velho mago estádivertindo-se muito com tudo isto.

O fato de pensar em Fizban e em comotinha saudades do louco e velho mago não estavaajudando Tas a sentir-se melhor, e tentou, maisuma vez, concentrar-se no local onde se encon-trava, na esperança de arranjar um processo desaída. Fitou a escuridão sedosa e, subitamente...

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— Grande idiota! — disse para si mesmo,excitado — Que kender tão desmiolado, dadoque já não sou um kender! Sou um rato... e tenhodentes!

Apressadamente, Tas fez uma experiência.No início, não conseguiu agarrar o tecido escor-regadiço e mais uma vez se sentiu desesperado.

— Tenta a costura, idiota — repreendeu-se severamente, e enfiou os dentes no local quejuntava o tecido. Cedeu quase de imediato quan-do os dentes afiados a cortaram. Tas rompeumais alguns pontos e não tardou a avistar qual-quer coisa vermelha, as vestes do mago! Apa-nhou uma lufada de ar fresco (o que teria aquelehomem ali guardado!) e sentiu-se tão entusias-mado que se apressou a mastigar mais um poucode tecido.

Depois parou. Se alargasse mais o orifício,cairia. E ainda não estava preparado, pelo menospor enquanto. Pelo menos enquanto não termi-nassem o que estavam fazendo, fosse o que fos-se. Aparentemente, não era longe. Ocorreu a Tasque tinham vindo subindo uma série de escadashá já algum tempo. Podia ouvir Caramon ofe-gando devido ao exercício pouco habitual emesmo o mago de vestes vermelhas parecia umpouco cansado.

— Por que razão não nos transporta atra-vés de uma magia para esse laboratório? — gru-nhiu Caramon, arquejando.

— Não! — respondeu Justarius suave-mente, a voz traindo o seu pavor — Posso sentir

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o próprio ar zunir e estalar com o poder que Par-Salian expande para executar este feitiço. Nãopermitiria que um pequeno feitiço meu pertur-basse as forças que estão operando aqui esta noi-te!

Tas estremeceu perante estas palavras pordebaixo dos seus pêlos e pensou que Caramonpodia ter agido de igual forma, pois ouviu ogrande homem tossir nervosamente e depoiscontinuar subindo em silêncio. Subitamente, pa-raram.

— Já chegamos?— inquiriu Caramon,tentando manter uma voz firme.

— Sim — surgiu a resposta murmurada.Tas esforçou-se para ouvir — O conduzirei aolongo destes últimos degraus e depois, quandoalcançarmos a porta que existe lá em cima, a a-brirei muito suavemente para que entre. Nãoprofira nem uma palavra! Não diga nada quepossa perturbar Par-Salian na sua concentração.Este feitiço exige dias de preparação...

— Quer dizer que ele já sabia, há dias, queiria fazer isto? — interrompeu Caramon dura-mente.

— Chiu! — ordenou Justarius e a sua vozrevelou irritação — Claro que ele sabia que essaera uma possibilidade. Tinha que estar prepara-do. Ainda bem que o fez, pois não fazíamos i-déia de que o seu irmão iria atuar tão cedo! —Tas ouviu o homem respirar fundo. Quando fa-lou de novo, foi num tom mais calmo — Agora,repito, quando subirmos estes últimos degraus...

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não diga nem uma palavra! Compreendido?— Sim — Caramon parecia subjugado.— Faça exatamente o que Par-Salian lhe

mandar fazer. Não faça perguntas! Limite-se aobedecer. Pode fazer isso?

— Sim — Caramon parecia ainda maissubjugado. Tas detectou um pequeno tremor naresposta do grande homem.

Ele está com medo, apercebeu-se Tas.Pobre Caramon. Por que eles estão fazendo isto?Não compreendo. Há aqui mais qualquer coisaem jogo. Bom, está decidido. Pouco me importase perturbar a concentração de Par-Salian. Tereique arriscar. De alguma forma, seja como for,vou com Caramon! Ele precisa de mim. Alémdisso — o kender suspirou —, viajar atrás notempo! Que maravilha...

— Muito bem — Justarius hesitou e Tassentiu o corpo dele ficar tenso e rígido — Des-peço-me aqui, Caramon. Que os deuses o acom-panhem. O que vai fazer é perigoso... para todosnós. Nunca conseguiria compreender, nem delonge, o perigo envolvido — Estas últimas pala-vras foram ditas ern voz tão baixa que só Tas asouviu e as orelhas do kender arrebitaram-se emalarme. Depois, o mago de vestes vermelhassuspirou — Desejava poder-lhe dizer que o seuirmão o merece.

— Merece, sim — afirmou Caramon fir-memente — Verá.

— Rogo a Gilean para que esteja certo...Agora, está preparado?

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— Sim.Tas ouviu um ruído que lhe pareceu ser o

mago encapuzado baixando a cabeça. Depois,começaram a mover-se de novo, subindo as es-cadas lentamente. O kender espreitou pelo buracono fundo do saco, observando os degraus som-brios passarem por baixo dele. Só disporia dealguns segundos, sabia.

As escadas terminaram. Podia ver um lar-go patamar de pedra por baixo. “Chegou a ho-ra!” disse a si mesmo, engolindo em seco. Ouviuo mesmo ruído de há pouco e sentiu o corpo domago mover-se. Uma porta rangeu. Rapidamen-te, os dentes afiados de Tas cortaram os restan-tes pontos que mantinham a bainha unida. Escu-tou os passos lentos de Caramon entrando pelaporta. Ouviu a porta começar a fechar-se...

A costura cedeu. Tas caiu do saco. Ocor-reu-lhe o pensamento se os ratos cairiam semprede pé, como os gatos. (Uma vez deixara cair umgato do telhado da sua casa para ver se esse ve-lho ditado era verdadeiro. Era, com efeito.)Quando chegou ao chão começou a correr. Aporta estava fechada e o mago de vestes verme-lhas voltara-se para descer. Sem parar para olharem redor, o kender lançou-se rápida e silenciosa-mente pelo soalho. Comprimindo o seu pequenocorpo, penetrou pela fenda entre a porta e ochão e mergulhou, por debaixo de uma estantejunto da parede.

Tas parou para respirar e escutar.E se Justarius descobrisse que ele escapa-

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ra? Voltaria atrás para procurá-lo?“Pára com isso”, disse Tas a si mesmo,

“severamente. Ele nunca saberá onde cai. Dequalquer forma, nunca voltará aqui. Pode per-turbar o feitiço.”

Após alguns momentos, o pequeno cora-ção do kender abrandou o ritmo, pelo que pôdeescutar por cima do sangue que batia nos seusouvidos. Infelizmente, os seus ouvidos poucolhe disseram. Podia escutar um leve murmurar,como se alguém estivesse ensaiando para umapeça de rua. Podia ouvir Caramon tentar recupe-rar o fôlego depois da longa escalada e, mesmoassim, manter uma respiração abafada, de formaa não perturbar o mago. As botas de couro dogrande homem estalaram quando começou aapoiar-se, ora num pé ora no outro.

Mas foi tudo.— Tenho que ver! — disse Tas para si

mesmo — De outra forma não saberei o queestá se passando.

Rastejando para sair debaixo da estante, okender começou verdadeiramente a sentir o pe-queno e singular mundo onde penetrara. Era ummundo de migalhas, um mundo de bolas de po-eira e fios, de alfinetes e cinza, de pétalas de rosasecas e folhas de chá úmidas. O insignificantetornou-se, subitamente, num mundo próprio. Omobiliário elevava-se acima dele, como as árvo-res numa floresta, e servindo o mesmo fim: ofe-recia-lhe cobertura. A chama de uma vela era osol e Caramon um gigante monstruoso.

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Tas circundou os enormes pés do ho-mem. Captando um movimento pelo canto doolho, avistou um pé com chinelo por debaixo deuma veste branca. Par-Salian. Rapidamente, Taslançou-se para o lado oposto da divisão, a qualestava, felizmente, apenas iluminada por velas.

Então, Tas estacou. Já estivera uma vezno laboratório de um mago, quando usou aquelemaldito anel de teletransporte. As visões estra-nhas e magníficas que lá vira permaneceram comele; estacou precisamente antes de pisar o interi-or de um círculo desenhado no chão de pedracom pó prateado. Dentro do círculo, que reluziaà luz das velas, jazia Lady Crysania, os olhos quenão viam ainda fitando o nada, o rosto tão bran-co quanto o lençol que a cobria.

Seria ali que a magia seria executada!O pêlo erguendo-se na parte detrás do

pescoço, Tas apressou-se recuando, afastando-sedo caminho e abrigando-se no interior de umabacia derrubado. Fora do círculo estava Par-Salian, as vestes brancas brilhando com uma luzestranha. Nas mãos, tinha um objeto cravejadode jóias que reluziam à medida que o voltava.Parecia-se com um cetro que Tas vira uma vezum rei Nordmaar empunhar; contudo, este obje-to parecia muito mais fascinante. Estava faceta-do e encaixado da forma mais singular. Partesdele moviam-se, como Tas pôde constatar, en-quanto, o que era mais extraordinário ainda, ou-tras partes se moviam sem se mover! Enquantoobservava, Par-Salian manipulava o objeto com

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grande destreza, dobrando, inclinando e torcen-do, até ficar do tamanho de um ovo. Murmuran-do estranhas palavras, o mago supremo deixou-ocair no bolso das suas vestes.

Depois, embora Tas pudesse jurar quePar-Salian nunca dera um passo, viu-o no interi-or do círculo prateado, junto da figura inerte deCrysania. O mago inclinou-se para ela e Tas viu-o colocar qualquer coisa nas pregas das vestesdela. Depois, Par-Salian começou a entoar a lin-guagem de magia, movendo as mãos envelheci-das sobre ela, em círculos cada vez menores. O-lhando rapidamente para Caramon, Tas avistou-o junto do círculo, com uma estranha expressãono rosto. Era a expressão de alguém que erapouco familiar num local mas que, mesmo assim,se sentia completamente em casa.

“É claro”, pensou Tas ansiosamente, “elecrescera com a magia.” Talvez isto fosse comoestar de novo com o irmão.

Par-Salian levantou-se e o kender ficouchocado com a alteração que ocorrera no ho-mem. O rosto dele envelhecera anos, apresenta-va uma cor acinzentada e ele vacilou ao erguer-se. Fez um gesto para Caramon e o homem a-vançou, pisando cuidadosamente o pó prateado.O rosto fixo num transe de sonho, ficou silen-cioso ao lado da figura imóvel de Crysania.

Par-Salian retirou o dispositivo do bolso eestendeu-o a Caramon. O grande homem colo-cou a mão sobre ele e, por momentos, ficaramos dois a segurá-lo. Tas viu os lábios de Cara-

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mon moverem-se, embora não escutasse qual-quer som. Era como se o guerreiro estivesse len-do para si mesmo, memorizando informaçõescomunicadas através de magia. Depois, Caramonparou de falar. Par-Salian ergueu as mãos e, como movimento, içou-se do chão e flutuou parafora do círculo, para as trevas sombrias do labo-ratório.

Tas já não conseguia ver, mas podia escu-tar a voz dele. A entoação aumentou de intensi-dade e, de súbito, uma parede de luz prateadajorrou do círculo traçado no chão. Era tão inten-sa que fez os olhos vermelhos e de rato de Tasarderem, mas o kender não podia desviar o olhar.Par-Salian gritava agora, com uma voz tão eleva-da que até as pedras da sala começaram a res-ponder num coro de vozes que provinha dasprofundezas do solo.

Tas fiava a brilhante cortina de poder. Nointerior dela, podia avistar Caramon junto deCrysania, ainda segurando o dispositivo na mão.Depois, Tas soltou um pequeno ruído que nãoprovocou mais barulho na sala do que a respira-ção de um rato. Podia ainda ver o laboratórioatravés da cortina brilhante, mas agora pareciaacender-se e apagar-se, como que lutando pelasua própria existência. E, quando se apagou, okender avistou um outro lugar qualquer! Flores-tas, cidades, lagos e oceanos passaram diante desi, vindo e indo, pessoas avistadas por instantes edepois desaparecendo, substituídas por outras.

O corpo de Caramon começou a pulsar

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com a mesma regularidade das estranhas visõesao permanecer no interior da coluna de luz.Também Crysania umas vezes parecia presente,outras não.

Lágrimas rolaram pelo focinho agitado deTas, deslizando-lhe pelos bigodes.

“Caramon vai iniciar a maior aventura detodos os tempos!” pensou o kender. “E vai medeixar para trás!”

Por um instante de tormento, Tas comba-teu consigo mesmo. Tudo o que no seu íntimoera lógico e consciencioso e semelhante a Tanisdizia-lhe: “Tasslehoff, não seja idiota. Isto égrande magia. E muito provável que estraguetudo!” Tas escutou essa voz, mas estava sendoarrastada pelos cânticos e pelo cantar das pedrase, em breve, desapareceu por completo...

Par-Salian nunca ouviu o pequeno guin-cho. Perdido lançando o feitiço, captou apenasum leve movimento pelo canto do olho. Muitotarde, avistou o rato saindo do esconderijo, diri-gindo-se diretamente para a parede de luz prate-ada! Horrorizado, Par-Salian parou de entoar eas vozes das pedras morreram. No silêncio, po-dia agora escutar a voz baixa:

— Não me deixe, Caramon! Não me dei-xe! Sabe nos problemas em que se meteu semmim!

O rato correu através do pó prateado,deixando um rasto brilhante atrás de si e lançou-se para o círculo iluminado. Par-Salian escutouum pequeno ruído metálico e viu um anel rolar

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sobre o chão de pedra. Avistou uma terceira fi-gura materializar-se no círculo e sentiu-se horro-rizado. Depois, as figuras pulsantes desaparece-ram. A luz do círculo foi absorvida por umgrande remoinho e o laboratório ficou mergu-lhado nas trevas.

Fraco e exausto, Par-Salian caiu no chão.O seu último pensamento, antes de perder aconsciência, foi terrível.

Enviara um kender através do tempo.

Continua no Volume 2

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