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GEOGRAFIA URBANA Conteudista: GILMAR MASCARENHAS DI: Lívia Tafuri Giusti AULA 8 OS TEMPOS DA CIDADE: ELEMENTOS DE GEOGRAFIA HISTÓRICA Meta Nesta aula, vamos demonstrar a importância e as características principais da Geografia Histórica e o quanto ela nos ajuda a entender a cidade. Objetivos: Ao final dessa aula, esperamos que você seja capaz de: 1) Reconhecer a Geografia Histórica como um ramo problemático e ainda incipiente; 2) Identificar os dois caminhos principais da Geografia Histórica aplicados aos estudos urbanos: sincronia e diacronia; 3) Compreender o papel das forças pretéritas no espaço urbano atual.

Tempos Da Cidade

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Tempos da cidade - Gilmar Mascarenhas

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GEOGRAFIA URBANA

GEOGRAFIA URBANA

Conteudista: GILMAR MASCARENHAS

DI: Lvia Tafuri Giusti

AULA 8

OS TEMPOS DA CIDADE: ELEMENTOS DE GEOGRAFIA HISTRICA

Meta

Nesta aula, vamos demonstrar a importncia e as caractersticas principais da Geografia Histrica e o quanto ela nos ajuda a entender a cidade.

Objetivos:

Ao final dessa aula, esperamos que voc seja capaz de:

1) Reconhecer a Geografia Histrica como um ramo problemtico e ainda incipiente;

2) Identificar os dois caminhos principais da Geografia Histrica aplicados aos estudos urbanos: sincronia e diacronia;

3) Compreender o papel das foras pretritas no espao urbano atual.

1. Introduo

A Geografia nos ensina que, desde a pr-Histria, os homens travam contato direto e objetivo com a Natureza. Fazem-no basicamente atravs do trabalho e visando a satisfazer suas necessidades. Atravs desse contato, a Natureza sofre inmeras transformaes: uma rvore abatida gera madeira que, por sua vez, pode se transformar numa canoa ou numa estrutura usada para fins de habitao; se bem trabalhada, pode se transmutar numa afiada flecha; peles de animais abatidos se transformam em peas de abrigo para o frio ou em matria-prima para calados. E assim por diante.

A transformao da Natureza pela ao do Homem (um dos temas mais clssicos da Geografia) no se restringe gerao de novos objetos para o consumo humano; observando uma escala mais abrangente, vemos que paisagens inteiras podem ser criadas. Um matagal pode ser devastado e dar lugar a uma pastagem. Uma rea pantanosa pode se transformar em cultivo de arroz de vrzea. Um caminho estreito, aberto como uma trilha na mata, se aplainado e alargado, pode ser transformar numa estrada. Ali, onde existe um rio que precisava ser atravessado, surgiu uma ponte. Em suma, os homens (a sociedade) foram pouco a pouco transformando a Natureza. Em outras palavras, foram transformando o meio natural (como preferiram chamar os gegrafos de outrora), em meio geogrfico ou meio humanizado. Aquilo que Milton Santos preferiu chamar de meio tcnico.

Incio do Boxe explicativo

MEIO TCNICO

Na obra de Milton Santos, o meio tcnico corresponde ao conjunto de objetos criados pelo Homem, reunidos num determinado lugar ou regio. Neste sentido, o meio rural apresenta um meio tcnico mais simplificado, enquanto no espao urbano este meio mais denso e complexo, pela profuso de objetos tcnicos.

Fim do Boxe

Atravs dos sculos e milnios, a humanidade foi aprimorando cada vez mais a sua tcnica, e assim aumentando sua potncia transformadora. Rios de grande porte foram represados e transformaram-se em gigantescas usinas hidreltricas, como a de Itaipu. Tneis imensos atravessam montanhas ou percorrem trechos submarinos, como o fantstico Eurotnel, conectando Frana e Inglaterra. Essa lista de poderosas intervenes humanas na Natureza quase infinita, e algumas, por sua beleza, so monumentos considerados maravilhas do mundo antigo, tais como as Pirmides do Egito, o Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria.

O resultado de todo esse processo histrico de intervenes humanas a paisagem mundial que podemos hoje contemplar, repleta de grandes obras humanas. As cidades so apenas parte dessa imensa obra humana sobre a superfcie terrestre.

Figura 8.1: Pirmides do Egito.

Fonte: Janeiro de 2013. Autor: Gilmar Mascarenhas

Cada uma dessas obras tem uma certido de nascimento, como diria Milton Santos. Em outras palavras, tem uma data e um lugar de origem. Tem, portanto, uma idade. O Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, um monumento que surgiu em 1931. Isto significa que bem poucos cariocas atualmente ainda vivos assistiram sua construo, ou seja, chegaram a ver o Morro do Corcovado sem a grande estatua em seu cume. A Ponte Rio-Niteri, bem mais recente, foi inaugurada em 1975 e, portanto, completa 40 anos em 2015.

O fato que cada objeto da paisagem urbana tem sua idade. E quando olhamos para o que est nossa volta, o que vemos pura Histria: um conjunto de objetos, cada um com sua idade, mas todos falando do passado, das razes que levaram sua criao e das tcnicas que foram utilizadas em sua construo. Por isso, a Histria to importante para a Geografia: o espao geogrfico est recheado de Histria.

Imagem 8.2: Cristo Redentor e Ponte Rio-Niteri: Duas obras que marcam a paisagem do Rio de Janeiro.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cristo_Redentor#mediaviewer/File:Cristo_Redentor_-_Rio_de_Janeiro,_Brasil-crop.jpg

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ponte_Rio%E2%80%93Niter%C3%B3i#mediaviewer/File:Ponte_rio_niteroi.JPG

Quando o assunto cidade, essa constatao da importncia da Histria na conformao do espao geogrfico se torna ainda mais forte. Pois a cidade, muito mais do que a zona rural, acumula intervenes humanas passadas que resultaram em objetos de longa durao no tempo. So edifcios (hospitais, imveis residenciais) e obras de infraestrutura (tneis, viadutos, redes de gua e esgoto, etc.) que tendem a permanecer por muito tempo na paisagem. Tal durao tem a ver com o alto investimento realizado para sua construo e tem tambm a ver com o fato de continuarem sendo teis cidade. Na zona rural, ao contrrio, os investimentos no so, em geral, em equipamentos de grande porte. Ao mesmo tempo, a paisagem rural dinmica, variando sua morfologia conforme as demandas do mercado: uma fazenda de caf com solos cansados pode se transformar em um haras ou em um pesque-pague; uma plantao de cana-de-acar pode dar lugar ao moderno cultivo de soja. Tais alteraes no representam custo to elevado para o produtor. Por isso acontecem com certa frequncia.

Em suma, a cidade um lugar de permanncias na paisagem. um espao histrico por natureza. Portanto, a geografia histrica muito importante para compreender o espao urbano. Eis o tema de nossa aula de hoje.

Vamos l?

2. O tempo na anlise geogrfica: as geografias do passado

Vimos, na Aula 2, o quanto a Geografia Tradicional valorizava a ao do tempo sobre o meio. O estudo da paisagem se definia pela verificao do longo processo de interveno humana sobre o meio natural. Mesmo ao estudar o espao urbano, meio no qual a Natureza encontra-se profundamente transformada, portanto quase invisvel, os gegrafos tradicionais a buscavam assim mesmo, como uma obsesso. Lembremos do roteiro de estudo criado por Pierre Monbeig: a primeira tarefa do estudo geogrfico de uma cidade recuperar seu stio original.

Stio, no caso, exatamente a condio natural do terreno (relevo, solos e hidrografia, principalmente) onde a cidade foi fundada. A partir desta constatao, a tarefa seguinte seria tentar resgatar o processo de evoluo do espao urbano: as benfeitorias criadas, os vetores (direes) da expanso da cidade, etc.

BOXE DE CURIOSIDADE

Histria X Geografia

Era comum, nos anos 1930 e 1940, por conta da influncia do positivismo na vida intelectual, que os cursos superiores de Geografia fossem unidos ao de Histria. Quem se formava em Geografia adquiria denso contedo de conhecimento histrico, e vice-versa. Temos vrios exemplos de pesquisadores que uniam Histria e Geografia, tais como Sergio Buarque de Hollanda e principalmente Caio Prado Junior (1907 - 1960), que foi inclusive scio da AGB (Associao dos Gegrafos Brasileiros) em So Paulo, mesmo no sendo gegrafo. Seus livros tornaram-se grandes clssicos e trazem abordagens bastante geogrficas, tais como em Histria Econmica do Brasil. Vale a pena ler Prado Jr.

Mais tarde, em 1955, atravs da lei 2.594, os cursos de Geografia e Histria se separaram definitivamente.

FIM DO BOXE

Um dos encontros entre Geografia e Histria, isto , uma das formas que assumiu a confluncia de tais ramos de estudo, foi a chamada GeoHistria, produzida em geral por historiadores. Seu foco central era verificar como os fatores geogrficos (leia-se fatores de ordem natural), tais como o clima, o relevo, a hidrografia, etc., atuavam como condicionantes do processo histrico. Havia nesta abordagem um forte componente de determinismo ambiental, que voc j deve ter estudado em outro momento do curso. Trata-se da valorizao excessiva do papel da Natureza nas relaes humanas e nos rumos da sociedade, como se os fatores naturais pudessem determinar o comportamento humano, sua cultura de um modo geral.

BOXE EXPLICATIVO

Determinismo Ambiental

Certamente, voc j estudou esse tema, provavelmente em Histria do Pensamento Geogrfico, no segundo perodo do curso. O determinismo ambiental uma forma de estudar a sociedade e sua relao com a Natureza, valorizando em excesso o papel dos fatores naturais, como se este pudessem determinar os rumo da sociedade.

FIM DO BOXE.

Um exemplo famoso de tese geohistrica aquele que tenta explicar o mapa poltico da Amrica do Sul a partir da geomorfologia geral deste continente. Tal estudo supunha que o relevo e a hidrografia cumpriram papel relevante na formao dos pases sul-americanos, tentando explicar por que a antiga Amrica Portuguesa se tornou um nico pas, o Brasil, enquanto a Amrica Espanhola se fracionou em diversos pases. Segundo esta abordagem, as terras que hoje compem o territrio brasileiro teriam facilitado a integrao poltica, pois temos vastas plancies e os planaltos so dissecados (menos acidentados), pela longa durao dos processos erosivos (rochas pr-cambrianas), alm de rios caudalosos e navegveis, com destaque para o rio So Francisco, conhecido como rio da integrao nacional.

Por outro lado, a Amrica Espanhola teria encontrado grandes dificuldades de integrao devido ao relevo montanhoso (a Cordilheira dos Andes) agindo de forma a dificultar a circulao de bens e pessoas.

Esta abordagem, notadamente determinista, apresenta claras limitaes. Ignora, por exemplo, o quanto povos anteriores aos espanhis conseguiram vencer o relevo andino e promover integrao territorial de vasto alcance, como foi o caso do Imprio Inca. E, no caso do Brasil, outros fatores parecem ter sido mais importantes que a conformao do relevo para a construo da unidade nacional. Lembremos que durante o sculo XIX, diversos movimentos sociais e polticos colocaram em risco tal unidade, tendendo fracionar o territrio em diversos pases, com destaque para o Gro-Par e a Repblica Farroupilha (Rio Grande do Sul). Foi preciso toda uma atuao diplomtica do Imprio (destaque para D. Pedro II), inclusive concedendo favores s oligarquias rurais, para evitar a fragmentao poltico-territorial do Brasil.

Voltemos evoluo do pensamento geogrfico. Vimos na Aula 3 que o advento da abordagem neopositivista (ou pragmtica) contribuiu para o divrcio entre Geografia e Histria, pois suas preocupaes centrais se voltavam para o futuro, para projetos de desenvolvimento local e regional. Em outras palavras, o passado pouco interessava. Felizmente, mais tarde, a Geografia Critica retomou os laos com a Histria, e o fez de forma distinta da Geografia Tradicional, conforme vimos na Aula 4, ao citar o trabalho do professor Mauricio de Almeida Abreu. Em funo da influncia marxista nos gegrafos crticos, o processo histrico deixou de ser tomado como uma sucesso linear de fatos (a velha Histria factual), geralmente conduzido pelos atores dominantes (reis, imperadores, poder pblico, heris nacionais, coronis) para se tornar um processo de aes movidas por todos os agentes sociais. Por este caminho, a vida cotidiana, que antes era desprezada pelos historiadores, passou a ser altamente valorizada.

Concedendo a palavra a Mauricio Abreu, que certamente teceu a mais importante contribuio no Brasil ao estudo das geografias do passado, vemos que:

No se pode negar que a abertura da disciplina ao materialismo histrico e dialtico veio revalorizar a dimenso temporal, antes maltratada pelos estudos clssicos ou renegada pelo neopositivismo. Ela no conseguiu, entretanto, revogar uma das leis frreas da geografia (...) que impe despoticamente disciplina o estudo do presente, legando Histria o estudo do passado. Uma lei nitidamente freudiana... (Abreu, 1998:21).

BOXE DE CURIOSIDADE

A Geografia e a Questo Freudiana

Abreu est se referindo a Sigmund Freud (1856 - 1939). Mdico neurologista austraco, famoso mundialmente por ter inventado a psicanlise, supunha que todos os indivduos tinham certa dificuldade em lidar com o seu prprio passado. Acontecimentos difceis, ou traumticos, principalmente aqueles ocorridos na infncia, que geram mal-estar psicolgico, tendem a ser esquecidos, guardados (quase escondidos) no fundo do ba da memria. O mtodo psicanaltico, criado por Freud, corresponde a uma terapia que consiste em dilogo com o paciente de forma que ele abra a caixa onde guarda esses registros difceis de sua Histria. Na citao de M. Abreu, ele quer dizer que a Geografia tende a recusar o passado, prendendo-se apenas ao estudo do presente.

FIM DO BOXE

Diversos autores reconhecem este divrcio da Geografia com a Histria e seus efeitos nocivos no mbito terico-metodolgico. O gegrafo norte-americano Edward Soja (1993:47-9) trata esse perodo (que se delimita aproximadamente entre 1920 e 1970) como o da "involuo da geografia moderna", que se fecha progressivamente para estudar apenas os resultados do processo histrico na paisagem, abstendo-se dos debates tericos. Abreu (1998:21-2) critica, assim, o que ele chamou de "geografia da bomba de nutrons", a que se ocupa apenas das formas materiais que restaram na paisagem, isto , o cenrio resultado da Histria, em vez de tentar recuperar "o tempo do lugar" e as foras que produziram e deram significado quelas formas.

Um pequeno grupo de gegrafos vem, todavia, enfrentando este vazio de reflexo crtica e historicidade em nossa disciplina ao investir na possvel construo de uma nova geografia histrica, distinta dos enfoques tradicionais. O grande desafio reconstruir as "geografias do passado", realizando uma "geografia do movimento".

BOXE DE ATENO

Fique ligado!

Por tratar dos mais variados assuntos, a Geografia Histrica corresponde a uma peculiar e problemtica ramificao da Geografia: aquela que "no pode reivindicar um objeto de estudo perfeitamente definido" (Philo, 1996:269).

FIM DO BOXE

Incio da atividade 1

ATIVIDADE 1 (ATENDE AO OBJETIVO 1)

O ramo conhecido como Geografia Histrica foi muito pouco desenvolvido ao longo da Histria do pensamento geogrfico. Argumente, com suas palavras, as dificuldades que os gegrafos demonstraram at hoje para empreender estudos histricos.

ESPAO DE 8 LINHAs

RESPOSTA COMENTADA

Voc pode alegar que at o final da dcada de 1970, quando a corrente critica da Geografia veio tona, prevalecia certo divrcio entre Geografia e Histria, pois a corrente at ento predominante, o neopositivismo, preocupava-se eminentemente com o futuro, desprezando o passado. Ademais, a abordagem tradicional apenas via a Histria como uma sucesso de fatos, numa perspectiva linear, pouco explicativa.

FIM DA ATIVIDADE 1

A Geografia Histrica estuda o passado, porm, obviamente de forma distinta daquela operada pelos historiadores. O que interessa e cabe ao gegrafo no a reconstituio e explicao de quaisquer fatos, processos ou contextos passados, mas a verificao especifica da dimenso espacial desses fatos. Por exemplo, ao estudar a Revoluo Francesa, um historiador tem diante de si um conjunto muito vasto de possibilidades, tais como:

1) identificar os principais agentes histricos;

2) conhecer seus ideais;

3) analisar a repercusso de seus ideais e as resistncias;

4) estudar os efeitos da Revoluo.

Observe que nenhum desses temas propriamente geogrfico. O que pode ento fazer um gegrafo que quer estudar tal Revoluo? Para dar conta da dimenso espacial da Revoluo Francesa, ele pode verificar:

1) os locais de enfrentamento entre oponentes;

2) os registros na paisagem do que aconteceu durante a Revoluo;

3) o projeto territorial dos revolucionrios.

4) a formao territorial francesa do sculo XVIII como portadora de condies propcias para o desencadear do movimento revolucionrio.

Ao conhecer a diferena de abordagem entre Histria e Geografia Histrica, importante voc perceber que de um modo geral os historiadores negligenciam a dimenso espacial. E quando o fazem, tendem a nela reconhecer apenas o papel passivo de um palco para os acontecimentos da Histria. Em geral, nos poucos casos em que historiadores reconheceram o papel ativo do espao, o fizeram valorizando apenas condies naturais, como o clima ou o relevo, conforme vimos no caso da Geohistria, citada nesta aula.

Exemplo clssico desta perspectiva o entendimento de que a civilizao egpcia basicamente seria um produto do regime de cheias do generoso Rio Nilo, a fertilizar amplas superfcies do seu vale. Como tambm bastante conhecida a verso do papel do inverno rigoroso na derrota das tropas alems para os russos no final da II Guerra Mundial. Nesse sentido, os historiadores acabaram apelando para uma viso do tipo determinista, a do Determinismo Ambiental, conforme comentamos.

De forma resumida, o estudo geogrfico do passado pode se estruturar segundo dois caminhos metodolgicos: o estudo sincrnico e o diacrnico. O primeiro concentra seus esforos no estudo de um determinado contexto histrico, e procura compreend-lo de forma abrangente, considerando vrios fatores em ao em um mesmo momento. O segundo, por sua vez, opera na linha do tempo, estudando a evoluo histrica de um lugar ou de determinado fenmeno. Vamos aos exemplos, para facilitar sua compreenso. Comecemos pela via sincrnica.

Em 1922, por ocasio da celebrao do centenrio da Independncia do Brasil, foi desmontado, a golpes de jatos dgua, um morro argiloso localizado em pleno centro da Capital da Repblica, o Rio de Janeiro. Tal desmonte do morro visava abrir espao plano (uma vasta esplanada) para a construo do cenrio da grande celebrao nacional (A EXPOSIO INTERNACIONAL DE 1922). No se tratava de um morro qualquer. O famoso Morro do Castelo tinha imensa importncia histrica, pois ali teve inicio a longa Histria da Cidade Maravilhosa. Durante trs sculos e meio foi testemunha da Histria da cidade do Rio de Janeiro, quando no foi ele a prpria cidade, pequena e encravada no alto da colina. Escolhido pelos portugueses como stio privilegiado para se fundar a cidade, por suas condies de visibilidade da Baa de Guanabara e assim de proteo militar aos ataques inimigos, o morro abrigou desde 1567 as funes centrais e os principais edifcios do recm-fundado ncleo colonial. Foi demolido em 1922 por deciso governamental que nos privou definitivamente daquele inestimvel patrimnio.

Figura 8.3: Quadro deVtor Meirelles(c.1885) com uma vista panormica do morro do Castelo.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Morro_do_Castelo#/media/File:Victor_Meirelles_-_Estudo_para_Panorama_do_Rio_de_Janeiro_-_c._1885.jpg

O estudo de contexto de sua destruio (demolio) e seus efeitos imediatos assunto da Geografia Histrica de natureza diacrnica. No caso deste morro, podemos afirmar que o contexto histrico era fortemente marcado pelos ideais republicanos de modernidade. A cidade acabara de sofrer uma impactante reforma, a Reforma Passos, que simbolizou a afirmao da ordem burguesa na forma urbana. O prefeito Pereira Passos no arrasou este morro (apenas retirou um trecho de seu sop, que obstaculizava a futura grande reta que seria a gloriosa Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), mas consolidou na cidade toda uma atmosfera de apologia modernidade. Esta atmosfera, entendemos, tornou a sobrevivncia do Castelo ainda mais difcil, pois se no arrasou fisicamente a histrica colina, o fez com as poucas possibilidades de preservao que lhe restavam.

Abreu (1987:76) sugere outro corolrio da Reforma Passos de efeito negativo para o Castelo: ao abrir a Avenida Central, provocou uma supervalorizao dos terrenos anexos, aumentando assim a presso geral em favor da demolio do morro, ao deslocar o centro de gravitao dos interesses hegemnicos, at ento concentrados no Campo de Santana. Segundo Noronha Santos (1913:126), a abertura da grande avenida demandou a demolio do antigo casario e uma completa transformao topogrfica dos velhos e tradicionais becos, travessas e ladeiras que iam confinar no alto do morro.

Boxe explicativo:

A Reforma Passos

A Reforma empreendida pelo prefeito carioca Pereira Passos, entre 1902 e 1906, marcou profundamente a paisagem urbana. Dotado de amplos poderes concedidos pela Repblica, o prefeito promoveu verdadeira demolio de vielas, igrejas e casario colonial, para modernizar a cidade. Sua obra mais famosa foi a abertura da Avenida Central, mais tarde denominada Avenida Rio Branco. Seu discurso principal era libertar o Rio de Janeiro de seu passado colonial, rumo ao progresso. Expulsou cortios, pobres e ambulantes da rea central, dando incio a um processo de radical segregao socioespacial que ainda hoje marcante na cidade.

FIM DO BOXE

O desmonte do Morro do Castelo, algo que em nossos dias seria facilmente impedido, pelo imaginrio dominante que valoriza a preservao do patrimnio histrico, foi realizado devido ao contexto de valorizao do progresso a qualquer custo, e de condenao de nosso passado colonial. esse contexto de apologia da modernidade que se pode compreender a extino definitiva do bero da cidade.

Acabamos de apresentar um exemplo de anlise sincrnica. Passemos diacrnica, utilizando o mesmo exemplo: o Morro do Castelo.

A diferena que, desta vez, no limitaremos a abordagem a um nico perodo histrico especfico. Ao contrrio, vamos lidar com vrios perodos, e buscar o encadeamento entre eles, isto , como um determinado lugar se modificou no transcorrer de distintos perodos histricos.

Comecemos pela escolha dos colonizadores portugueses pelo Morro do Castelo, no primeiro sculo da Histria do Brasil. Desde o incio da colonizao os portugueses procuraram, ao longo do imenso litoral brasileiro, stios elevados, propcios fundao de ncleos urbanos. Assim nasceu o Rio de Janeiro, junto ao Morro Cara de Co, como uma frgil sentinela postada na entrada da baa ocupada por franceses em 1565. Aps a definitiva expulso dos franceses da Baa de Guanabara, em 1567, a Coroa Portuguesa resolveu, em medida de precauo, deslocar o ncleo original da cidade para o alto de uma colina mais afastada, baa adentro. A presena francesa durara 12 anos e deixara patente a necessidade de se fortalecer o sistema de defesa da recm-criada cidade. O stio primitivo revelara-se ponto estratgico de observao, porm muito vulnervel aos ataques de inimigos. A nova colina, alm de boa visibilidade e do seguro distanciamento, estava rodeada de pntanos e lagoas, como uma ilha de difcil acesso, condio estrategicamente favorvel do ponto de vista militar (CARVALHO, 1994:31). Comea assim a longa histria da colina que veio a se chamar mais tarde Morro do Castelo.

No topo da colina se edificou rapidamente uma fortificao, uma igreja e todo o aparato bsico da burocracia colonial, devidamente amuralhado. Esta primeira fase da geografia histrica do Morro do Castelo se caracteriza pela estratgia geopoltica portuguesa, de fundar ncleos urbanos voltados principalmente para a defesa militar do territrio recm-conquistado. No fosse esse contexto especfico, o morro prosseguiria em sua condio natural original.

Uma segunda fase j se faz sentir no sculo seguinte, o chamado seiscentismo (no sculo XVII), quando o crescimento da atividade econmica mercantil supera as preocupaes militares. A cidade, por isso, j crescia em direo plancie e ao porto, o que foi permitido pelos constantes aterros da extensa rea embrejada e impulsionado pela tranquilidade enfim propiciada pelo longo perodo sem invases estrangeiras. O Rio de Janeiro abandonara sua fase defensiva, para tornar-se um ncleo comercial porturio a servio de uma economia aucareira em rpida expanso. Com base em Paul Singer (1987), pode-se afirmar que a expanso do Setor de Mercado Externo cumpriu papel fundamental na transio da cidade da conquista para a cidade comercial. Neste sentido, a funo primordial da colina j no desfrutava da importncia de outrora, resultando em desvalorizao da velha acrpole.

Incio do Verbete:

Acrpole

Palavra de origem grega, que designa uma cidade construda na parte mais alta da regio onde se encontra, para fins de favorecer sua defesa contra ataques inimigos. Atenas um timo exemplo de acrpole. No Brasil, os colonizadores tiveram desde o incio clara preferncia por fundar acrpoles: Olinda (1535), Salvador (1549), Rio de Janeiro (1565) dentre outras.

Fim do Verbete

Comea ento certa desvalorizao do morro: a plancie receber os maiores investimentos urbansticos, ter os melhores edifcios, e at mesmo a S ser transferida do alto da colina para a beira-mar, em 1734 (A Casa do Governador foi transferida no sculo anterior).

Uma terceira fase na Histria do Castelo perceptvel no sculo XIX, com o inicio da industrializao carioca. Os ideais de progresso material se ampliam no calor das inovaes tecnolgicas e j se inicia o debate em torno do possvel arrasamento do indesejado Morro do Castelo, visando maior ventilao para fins higinicos e valorizao/modernizao da cidade. Restam no morro apenas moradores de baixo poder aquisitivo, que suportam a penria das ladeiras, o risco da runa e a falta de infraestrutura.

O prprio rei Dom Joo VI ordenou a demolio de trechos da velha muralha e outras antigas edificaes do Castelo que, por elevado risco de ruir, ameaavam a vida da populao local. Outro fator que nos surge como hiptese para aumentar as presses pelo arrasamento do Castelo foi a expanso do crescimento urbano no vetor em direo zona sul. At meados do sculo XIX, pode-se dizer que no se valorizava a condio litornea destes bairros. O uso do mar para banhos teraputicos era muito incipiente, e no havia ainda a ideologia que preconiza o residir prximo praia como estilo de vida saudvel e moderno (ABREU, 1987:47).

Por outro lado, a presena da corte portuguesa direcionava para a Cidade Nova e So Cristvo o vetor de expanso urbana de carter mais aristocrtico, alocando funes nobres e dotando tais reas de melhor infra-estrutura. A expanso urbana qualificada da zona sul demandar naturalmente conexo mais intensa com a rea central, e esta se fazia atravs de ruas acanhadas no estreito vale, situado entre os morros do Castelo e o de Santo Antnio, interpondo entre as classes abastadas e o ento requisitado centro da cidade, uma rea suja e empobrecida. Somente no sculo XX, a Avenida Central e a Avenida Beira-mar, e posteriormente o Aterro do Flamengo, alteraro completamente esta conexo zona sul-centro.

Enfim, a dinmica espacial da cidade mudou efetivamente neste sculo XIX. Bondes e trens, os novssimos meios de transporte, propiciaram grande expanso da malha urbana e um ritmo de circulao bem mais acelerado, aumentando o contraste entre a movimentao frentica da zona central (plana e vizinha) e a inrcia do Morro do Castelo. Bem como aprofundava-se o contraste entre os novos bairros, higinicos e arejados, como a Cidade Nova, e a paisagem desoladora do Castelo.

Acabamos de apresentar, em resumo, uma Geografia Histrica diacrnica do Morro do Castelo, pois demonstramos como aquela paisagem evoluiu ao longo do tempo. Buscamos correlacionar cada perodo histrico com a forma e as funes do morro, bem como seu significado para a cidade como um todo. Vimos que aquela colina j foi a zona mais valorizada e protegida da cidade, para aos poucos sofrer abandono, at culminar com seu aniquilamento.

Em suma, sincronia significa ao mesmo tempo, isto , a verificao de fatos e processos que ocorrem dentro de um mesmo contexto histrico, que no caso aqui estudado, foi a Repblica Velha no Brasil e mais precisamente o contexto de modernizao urbana daquele perodo. Diacronia, por sua vez, se refere ao dilogo (ou relao) entre tempos distintos. Em geral, se trata de processos evolutivos: a transformao de algo ao longo do tempo.

Incio da atividade 2

ATIVIDADE 2 (ATENDE AO OBJETIVO 2)

Leia o texto abaixo, sobre o Morro da Conceio, situado na zona porturia do Rio de Janeiro:

No transcorrer do sculo XVIII, sob o denso impulso do ciclo do ouro nas Minas Gerais, o Rio de Janeiro verifica grande crescimento econmico e demogrfico, tornando-se, no bojo de tais mudanas, a nova capital da Colnia em 1763. O Morro da Conceio, que at o incio deste sculo apresentava paisagem rural dominante, acolher um grande fixo: a Fortaleza da Conceio, erigida em 1713, logo aps a segunda invaso e expulso de franceses. que reforar a defesa da cidade, tornada principal porto de transaes do ouro. A grande edificao implica intensa circulao de soldados e equipamentos de artilharia pesada, que vo dotar o morro no apenas de um abrangente traado virio como de novos moradores e circulantes (...). Mais tarde, bondes e trens propiciaram grande expanso da malha urbana e um ritmo de circulao cotidiana bem mais acelerado, aumentando o contraste entre a movimentao frentica da zona central (plana e vizinha) e a inrcia do Morro da Conceio. Bem como se aprofundava o contraste entre os novos bairros, higinicos e arejados, como a Cidade Nova, e a forma compacta e quase medieval do velho morro. (...) A partir dos anos 1970, finalmente se instala na administrao urbana o debate mais efetivo em torno do patrimnio histrico. E assim, na dcada de oitenta se decreta o tombamento do M. da Conceio em seu conjunto. (MASCARENHAS, 2012)

Responda se o texto trata de uma abordagem diacrnica ou sincrnica. Justifique sua resposta.

ESPAO DE 5 LINHAS.

RESPOSTA COMENTADA

Devido ao estudo abranger distintos perodos histricos (os sculos XVIII e XIX, e finalmente a segunda metade do sculo XX), consiste em abordagem diacrnica. Em outras palavras, o Morro da Conceio foi analisado sob uma perspectiva evolutiva, considerando como o transcorrer da Histria foi afetando sua fisionomia, suas funes e seus significados.

FIM DA ATIVIDADE 2

3. Cidade Histria acumulada: o papel do passado na atualidade

Vimos na introduo desta aula como a humanidade foi acumulando, ao longo da Histria, diversas tcnicas e com elas foi operando transformaes cada vez mais impactantes na superfcie terrestre. A histria da cidade tambm resultado desse acmulo de intervenes humanas.

No Brasil, as cidades apresentam uma peculiaridade, devido a um aspecto da colonizao portuguesa. Ao contrrio da Amrica Espanhola, a ausncia de pedras preciosas e ouro (somente descobertas mais tarde), alm da proibio de imprensa, de indstrias e mesmo a ausncia de universidades, fez com que a economia colonial se concentrasse no setor primrio: agricultura, pecuria e extrativismo. Nessas condies, nossa urbanizao foi muito tmida. Nossos ncleos urbanos coloniais eram modestos, de pequeno porte e poucos recursos financeiros. Tambm, ao contrario do que aconteceu na Amrica Espanhola, onde o colonizador recorreu ao planejamento urbano minucioso (geometria de quadras perfeitas) para se afirmar diante de antigos imprios (incas, astecas, maias), aqui os portugueses no se preocuparam com planos detalhados, permitindo grande flexibilidade na organizao das cidades, que foram crescendo quase que espontaneamente.

O resultado desse quadro que nossas cidades coloniais, alm de seguirem o padro medieval europeu de vielas (ruas estreitas e sinuosas) e becos, produziram um traado virio catico, que se adequou quase sempre s circunstncias do terreno. O problema que no sculo XX, a economia brasileira passou a crescer velozmente, movida pela industrializao. Vieram os automveis, e o pas optou pelo modelo urbano norte-americano (rodoviarista).

Uma cidade como o Rio de Janeiro, em que parte expressiva de sua mancha urbana anterior era do automvel, apresenta hoje grandes problemas de trfego. O mesmo ocorre com Niteri. Trataremos melhor deste tema na aula sobre planejamento urbano. O que precisamos reter no momento o quanto o passado deixa um legado significativo para o futuro.

Ao olharmos para a paisagem urbana, podemos verificar a presena de objetos (casas, viadutos, praas, postes) oriundos de diferentes pocas. Mesmo sem saber exatamente quando surgiu determinado objeto em determinada cidade, possvel identificar sua origem com pequena margem de erro, quando temos uma noo de sua idade universal, isto , seu surgimento no mundo. O que diferente da idade do objeto no lugar, aquela que define a partir de quando determinado objeto se instalou em determinada localidade. O transporte metrovirio, por exemplo, j existe no mundo desde o final do sculo XIX, portanto, tem mais de 120 anos de idade universal, mas na cidade do Rio de Janeiro sua idade local de pouco mais de trinta anos. Na cidade de Salvador (Bahia), o metr foi inaugurado somente em 2014, abrangendo apenas cinco estaes. Segundo Milton Santos (1996, p.47):

As tcnicas so um fenmeno histrico. Por isso, possvel identificar o momento de sua origem. Esta datao tanto possvel escala de um lugar quanto escala do mundo.

Um exemplo clssico a ferrovia. Quando vemos uma estao de trem, por mais antiga que ela seja, no pode ser anterior ao sculo XIX, j que as ferrovias surgiram naquele sculo. Da mesma forma, no podemos supor que um edifcio de vinte andares tenha mais de um sculo de existncia, j que as tcnicas construtivas que permitem sua existncia (o concreto armado) no existem h tanto tempo. O estilo arquitetnico tambm nos ajuda a datar uma construo. Casas geminadas (sem separao fsica com a casa vizinha), com fachadas projetadas diretamente para a rua, com porta e janela que se abriam para o mundo exterior, fazem parte de um momento histrico passado, por varias razes:

1) no havia temor do contato direto com a via pblica, que hoje impe a construo de muros altos, recuos, etc.;

2) no havia intensa circulao de veculos nas ruas, o que tornou essas casas espaos desconfortveis, pelo barulho e pela sujeira (fuligem);

3) a prpria necessidade atual de haver garagem na residncia;

4) indisponibilidade de tcnicas construtivas que facilitassem a verticalizao do imvel.

Figura 8.4: Casario geminado predominantemente do sculo XIX, no Bairro Santo Antonio (Salvador-BA).

Fonte: Autor: Gilmar Mascarenhas, outubro 2014.

Tudo que argumentamos at aqui aponta para a vasta possibilidade de identificar na paisagem urbana atual o que restou de aes passadas, distinguindo, pela aparncia e pela tcnica utilizada, o novo do velho. Em alguns casos, formas espaciais perdem a razo de existir, pois no atendem mais s finalidades que justificaram sua construo. o caso de antigas linhas de bondes, que perderam utilidade com a desativao deste meio de transporte, substitudo pelos nibus. O asfalto recobriu os trilhos, mas na cidade do Rio de Janeiro, ainda encontramos em algumas ruas trechos metlicos que sobressaem na superfcie da rua, vestgios do passado despertando curiosidade dos mais jovens, que no tiveram oportunidade de conhecer o bonde.

Figura 8.5: Aspecto de rua de Santa Teresa (RJ) com trilhos de bonde.

Fonte: Autor: Gilmar Mascarenhas, outubro 2013.

BOXE DE CURIOSIDADE

Voc sabia?

Os bondes foram desativados no Rio de Janeiro entre o final dos anos 1950 e inicio da dcada seguinte. O nico bairro carioca a preservar o servio de bondes foi Santa Teresa, devido mobilizao de seus moradores em defesa deste meio de transporte, por valoriz-lo como bem histrico a ser preservado, bem como por consider-lo mais simptico e mais adequado topografia do bairro.

FIM DO BOXE

Em vez de condenados ao abandono ou inutilidade, como no exemplo dos trilhos de bondes, objetos e equipamentos antigos podem ser refuncionalizados, isto , adquirir uma nova funo, uma vez que a funo original deixou de fazer sentido. Podemos citar vrios exemplos, como o das antigas fontes de gua. Na cidade colonial brasileira no havia sistema de distribuio domiciliar de gua; ento, as pessoas tinham que ir buscar o precioso lquido em fontes naturais (rios, nascentes ou lenol subterrneo). Com o desenvolvimento urbano, surgiram as fontes, na forma de equipamentos de uso coletivo. Ali a populao vinha buscar gua, geralmente atravs dos escravos e transporte animal. Havia grande movimentao social em torno dessas fontes, tidas como ponto de encontro na cidade. Com a implantao dos modernos servios de captao e distribuio de gua, as fontes foram sendo desativadas. Muitas ainda esto presentes na paisagem urbana, e como sua gua perdeu potabilidade (validade para consumo humano), vem sendo usada de outras formas. Na cidade de Salvador (Bahia), muitas fontes construdas nos sculos XVIII e XIX servem hoje como pontos de lavagem informal de automveis, conforme a imagem abaixo.

Figura 8.6: Lavador de carros em fonte nas imediaes do Estdio Fonte Nova (Salvador-BA).

Fonte: Autor: Gilmar Mascarenhas, outubro 2014.

A permanncia na paisagem urbana de objetos geogrficos obsoletos (que perderam sua utilidade principal ou primordial) decorre, em geral, da prpria durabilidade material de tais objetos e do abandono. O abandono, por sua vez, um fenmeno eminentemente geogrfico, pois h uma evidente seletividade espacial: somente ocorre em zonas desvalorizadas da cidade. Em reas cobiadas pelas elites e pelo capital imobilirio, ao contrrio, sempre h investimentos (pblicos ou privados) para remoo de tudo aquilo que gera desconforto (rudos, poluio, etc.) ou desvalorizao do local. Vide o caso do Morro do Castelo, que pagou o preo de estar localizado em rea central. Cumpre notar que as fontes de gua da cidade de Salvador, que acabamos de citar, esto todas localizadas em bairros menos valorizados, por isso sobreviveram ao tempo. No Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro, havia um imenso chafariz, com a mesma funo de fonte, que foi destrudo para dar lugar a projeto de ajardinamento condizente com a importncia da localidade.

O caso mais famoso, no Brasil, de sobrevivncia de formas passadas pelo abandono a cidade de Ouro Preto (MG): desde o final do sculo XIX, quando deixou de ser capital mineira, foi praticamente abandonada. O mesmo ocorreu com a cidade de Parati (RJ), que desde meados do sculo XIX perdeu funes porturias e viu sua populao se reduzir drasticamente, levando a runas parte de seu importante casario histrico.

Figura 8.7: Ouro Preto, em Minas Gerais ( esquerda), e Paraty, no Rio de Janeiro ( direita): arquiteturas coloniais preservadas atravs do tempo.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ouro_Preto#mediaviewer/File:OuroPretoView.jpg

http://pt.wikipedia.org/wiki/Paraty#mediaviewer/File:Paraty_09_2007_59.JPG

H tambm os casos de objetos que, mesmo tendo perdido completamente sua utilidade, persistem pela prpria durabilidade do material, como o caso das fortificaes do perodo colonial. Imagine o quo trabalhoso e dispendioso a demolio de uma fortaleza. Claro que, se o objeto estiver localizado em rea de forte interesse imobilirio, tende a existir capital e motivao suficientes para sua destruio. Assim ocorreu com as grandes muralhas que cercavam as cidades medievais europeias. Em sua grande maioria foram destrudas, para favorecer a expanso urbana a partir do sculo XIX. As que sobreviveram ao tempo, tiveram a sorte de cercar cidades economicamente estagnadas, inserindo-se ento na lista de objetos que permaneceram na paisagem pelo abandono.

Percebemos ento que o destino histrico dos objetos geogrficos est condicionado a alguns fatores, tais como capacidade de reaproveitamento, resistncia fsica do material e, mais do que tudo, sua localizao.

Aos objetos que permaneceram na paisagem, os que sobreviveram ao tempo, Milton Santos denomina rugosidades. Portanto, fortalezas, muralhas, casario histrico, fontes de gua, castelos e outros objetos antigos so rugosidades.

Para acentuar o papel da localizao e da dinmica socioespacial na formao das rugosidades, Milton Santos (1996, p. 36) afirma que:

As rugosidades no podem ser apenas encaradas como heranas fsico-territoriais, mas tambm como heranas socioterritoriais ou sociogeogrficas. (...) O valor de um dado elemento do espao, seja ele o objeto tcnico mais concreto ou mais performante, dado pelo conjunto da sociedade, e se exprime atravs da realidade do espao em que se encaixou.

O autor estende sua teoria a todos os objetos presentes no espao geogrfico, e no apenas para as rugosidades. Em suma, ele afirma que nenhum objeto est isolado na paisagem. Cada objeto se relaciona com o todo, isto , com outros objetos e com a dinmica geral da sociedade. Um mesmo objeto, de acordo com sua localizao, ter funes, valores e significados distintos. Este ponto vai nos conduzir parte final desta aula, para entender como a herana do passado, que por muito tempo foi considerada algo indesejado, se tornou altamente valorizada pela via da patrimonializao. Patrimonializar significa, por parte de um ente estatal, atribuir valor simblico a determinado objeto (ou performance, quando se trata de patrimnio imaterial) que corre risco de extino, de modo a justificar polticas de preservao.

Figura 8.8: Em Annecy, na Frana, o Palais de lIle, construdo no leito do rio e situado no centro da cidade, surgiu como residncia fortificada, depois foi utilizado como priso. Hoje funciona como museu. Uma rugosidade que, por seu aspecto pitoresco e sua localizao privilegiada, foi refuncionalizada para fins turstico-culturais.

Fonte: Autor: Gilmar Mascarenhas, janeiro 2013.

A cidade pode ser ento tomada como um texto, cuja leitura mais completa est ao alcance apenas daqueles que dominam alguns conhecimentos da histria das tcnicas (advento do automvel, da eletrificao, dos elevadores que permitiram a verticalizao da cidade, etc.) e da Histria em geral.

Nas ltimas dcadas, as polticas de preservao do patrimnio histrico adquiriram fora crescente. Atravs delas, objetos do passado passaram a ser valorizados, recebendo incentivo para sua preservao e maior destaque na paisagem. Importante registrar que a valorizao dos bens histricos no nova, j que desde o sculo XVIII existem museus, e desde o final do sculo XIX existem polticas de tombamento (preservao garantida) de edifcio e monumentos histricos. No Brasil, tal atitude chegou um pouco mais tarde, mais precisamente em 1937, com a criao do IPHAN (Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional).

O que h de novo neste processo de patrimonializao a impressionante ampliao do leque de objetos e prticas passiveis de serem patrimonializadas. Quando o IPHAN foi criado, seu objetivo era bastante restrito, se comparado ao atual, pois se destinava a identificar um leque reduzido de monumentos de valor histrico e artstico-arquitetnico. Uma casa que tivesse sido residncia de uma grande personalidade, por exemplo, no era considerada patrimnio histrico. Foi assim que, no bairro do Cosme Velho (Rio de Janeiro), foi demolida nos anos 1970 a casa onde residiu Machado de Assis, nosso maior escritor de todos os tempos. Caso no fosse demolida, seria hoje um espao cultural de visitao a mais na cidade, tal qual, em Salvador, se tornou a Casa do Rio Vermelho, onde residiram Jorge Amado e Zlia Gattai.

O que mais importa para a Geografia o quanto o processo de valorizao da Histria, que resultou na expanso da patrimonializao, afeta a dinmica socioespacial. Seu efeito mais importante foi a recuperao de reas urbanas degradadas, geralmente zonas porturias, bairros industriais e determinadas reas centrais. No Rio de Janeiro, a zona porturia, que vivia prolongado processo de abandono, vive hoje um imenso projeto de recuperao, com elevados investimentos pblicos e privados, o denominado projeto Porto Maravilha. Ao mesmo tempo, cidades histricas que pareciam condenadas runa passaram a receber investimentos importantes, como o caso de Ouro Preto (em Minas Gerais) e Paraty (no Rio de Janeiro), que depois de um tempo de abandono foram revitalizadas e hoje so famosos destinos tursticos.

O que motiva tal investimento no apenas a dimenso cultural-ideolgica, de reconhecer o valor histrico. Trata-se de uma motivao econmica, associada diretamente ao turismo e ao setor imobilirio. Em suma, se antes determinados objetos eram uma espcie de indesejvel pedra no caminho para a acumulao capitalista, hoje se tornaram um fator positivo.

Um dos melhores exemplos dessa inverso de perspectiva o famoso Pelourinho, em Salvador. A rea mais antiga da cidade, sua base primeira, correspondendo ao um traado urbano do sculo XVI, passou por longo processo de desvalorizao desde meados do sculo XIX, quando as elites soteropolitanas, movidas pelo cosmopolitismo e pelo discurso higienista, trocaram seus antigos casares coloniais por novas manses no bairro da Vitria. O largo do Pelourinho (onde havia a forca colonial) e suas adjacncias foram se tornando zona de marginalidade e prostituio de baixa renda. A situao piorou a partir dos anos 1970, quando a capital baiana criou nova centralidade, em torno do Iguatemi e do CAB (Centro Administrativo da Bahia), esvaziando ainda mais de atividades econmicas a velha rea central.

Verbete

Soteropolitano: Nome utilizado para denominar quem nasce ou aquilo que relativo cidade de Salvador, na Bahia.

Fim do verbete

O Pelourinho, como tantas outras zonas de obsolescncia, se tornou um lugar perigoso e renegado pela cidade, condenado ao abandono, at que em 1993 uma grande reforma foi realizada. A populao pobre foi removida, muitos cortios foram arrasados para dar lugar a espaos culturais e outros foram reformados, tornando-se pousadas, restaurantes e comrcio sofisticado. O Convento do Carmo (instituio catlica) foi transformado em hotel de elevado padro. O Pel (como popularmente conhecido) foi reconquistado pelo turismo, que alis um dos setores mais importantes da economia baiana, mas como devemos realar, custa da remoo forada da populao residente. Para muitos, esta remoo fez o bairro perder sua alma, tornando-se um enclave turstico.

Na atualidade, como decorrncia da revitalizao do Pel, um bairro adjacente, chamado Santo Antnio, se transformou na bola da vez. Seu traado colonial e seu casario histrico, ocupado majoritariamente por segmentos sociais de mdia-baixa renda, so hoje alvo de poderosos interesses imobilirios. J surgiram no bairro atelis, bares sofisticados e pousadas, revelando o processo de transformao radical em curso. Grandes empresrios vm investindo na aquisio de imveis, que se encontram desocupados espera do melhor momento para utilizao lucrativa. E assim o bairro, que antes apresentava vida comunitria intensa (um quartier vivant, diriam os franceses), possui aspecto cada vez mais desolado. A sociedade civil organizada vem denunciando o processo de gentrificao.

Boxe de verbete

Gentrificao: vem do idioma ingls, da raiz gentry, que significa aristocracia, nobreza. Logo, gentrificar significa enobrecer ou elitizar. Nos estudos urbanos, dizemos que um local est se gentrificando quando um intenso processo de valorizao promove a remoo da populao original, substituda por moradores de maior poder aquisitivo, bem como por servios mais nobres, tais como atelis, restaurantes de alto padro, etc.

Fim do Verbete

Chegamos ento pergunta central desta ltima parte da aula: indagar sobre como o passado influencia o presente nas cidades. Uma pergunta fundamental, pois a importncia da Geografia Histrica decorre diretamente da resposta que podemos dar. Em suma, o passado nos deixa um imenso legado na geografia da cidade. Este legado corresponde a um conjunto de objetos e prpria estrutura espacial da cidade, em suas zonas de origem mais antiga.

Por mais que a cidade sofra constantes transformaes fsicas (criao de tneis, de metr, de vias expressas), o legado persiste na paisagem. Felizmente, a Humanidade tem encontrado formas de conviver com este legado, pela via da valorizao do patrimnio histrico, ainda que, em muitos casos, o processo de patrimonializao atenda mais a interesses privados que ao bem comum.

Incio da atividade 3

ATIVIDADE 3 (ATENDE AO OBJETIVO 3)

Vimos que, com o tempo, objetos vo envelhecendo e perdendo sua funo e utilidade. Mesmo assim, muitas vezes, eles persistem na paisagem urbana e acabam sendo reaproveitados, seja pelos setores populares, seja pelos setores hegemnicos. Cite trs fatores que permitem tal persistncia de objetos na paisagem urbana.

ESPAO DE 7 LINHAS.

RESPOSTA COMENTADA

Os trs fatores citados nesta aula so:

1) a durabilidade ou resistncia material de tais objetos, que encarecem sua demolio;

2) a desvalorizao do local onde o objeto est inserido, gerando abandono, desestmulo ao investimento;

3) a valorizao simblica dos bens histricos, ocorrida sobretudo a partir dos anos 1970, garantindo polticas de preservao de tais objetos.

FIM DA ATIVIDADE 3

Concluso

Em suas aulas, Abreu dizia que toda geografia : presente do passado, presente histrico, ou um presente de ento. Portanto, no h como estudar o presente sem recorrer aos processos histricos. Ademais, a Geografia no se restringe ao presente, podendo estudar o presente de ento, isto , a dinmica socioespacial de determinada localidade em determinado contexto histrico.

Nesta aula, vimos o quanto o passado importante para a compreenso do presente. No caso da Geografia Urbana, todo um conjunto de processos histricos, incluindo aqueles ligados evoluo das tcnicas, contribui para a estruturao do espao urbano, pois este traz, em sua paisagem, elementos do passado.

Resumo

Vimos inicialmente que Geografia Histrica um ramo ainda pouco desenvolvido, por encontrar alguns obstculos, dificuldades e preconceitos. O divrcio entre Geografia e Histria, ocorrido nos anos 1950, ainda ecoa entre ns. No entanto, apresenta grande potencial de expanso.

Vimos tambm os dois principais caminhos que podem ser percorridos pelo estudo histrico-geogrfico: diacronia e sincronia. E o quanto cada um deles oferece uma contribuio particular ao entendimento dos fenmenos urbanos associados ao passado.

Por fim, e como parte mais importante desta aula, procuramos demonstrar o quanto a Geografia histrica pode nos ajudar a entender a cidade. Assim fizemos, considerando diversas dimenses, tais como o legado do passado expresso em rugosidades, e o papel contemporneo das polticas de preservao do patrimnio histrico.

Referncias

ABREU, Mauricio A. Evoluo Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. 147p.

ABREU, Mauricio A. Sobre a Memria das Cidades. Territrio, Rio de Janeiro, LAGET/UFRJ, ano III, num.4, p. 5-26, jan/jun 1998.

MASCARENHAS, G.Tempos e espaos de um lugar na metrpole: o morro da Conceio (Rio de Janeiro/RJ). In: ALMEIDA, M.G.; OLIVEIRA, K.A.T; ARRAIS, T.A. (Org.). Metrpoles : teoria e pesquisa sobre a dinmica metropolitana. 1ed. Goinia: Cnone Editorial, 2012, v. 1, p. 33-46

MASCARENHAS, G.. Espao, tempo e paisagem no Morro do Castelo: obsolescncia e morte de um lugar. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 8, p. 67-77, 2000.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espao: Tcnica e Tempo, Razo e Emoo. So Paulo: Hucitec, 1996.