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13 VOL 20 N o 1 JUN/JUL/AGO 2011 Tempos de mudança no Mundo Árabe Antonio de Aguiar Patriota The wave of popular protests in the Middle East and Northern Africa reveals a general desire for the full accom- plishment of basic rights – a phenomenon that has been experienced by different societies in different perio- ds of history. This article addresses the current situation in the Arab world from a Brazilian perspective and highlights the mostly peaceful homegrown nature of the manifestations for freedom of expression, economic opportunity and institutional progress. As manifestações no Oriente Médio e no Norte da África, que vêm sendo cha- madas de “Primavera de Jasmin”, têm colocado o Mundo Árabe em evidência e despertado interesse mundial nos últimos meses. Para nações como o Brasil, que tem – na expressão do secretário-geral da Liga dos Estados Árabes, Amr Moussa – “es- tendido a mão aos países da região”, as manifestações geram o desao de com- preender os processos que se desenvol- vem em um ambiente multiforme. O Mundo Árabe está longe de compor um bloco monolítico. A renda per capita varia de menos de US$ 1.000 em países como a Mauritânia a cerca de US$ 67 mil no Qatar, país cuja economia cresceu 19% em 2010. Sem ignorar as singularidades de cada país, é possível armar que as princi- pais motivações dos manifestantes são os anseios por oportunidades econômicas, maior participação política e liberdade de expressão. As demandas sociais ganham relevo particular num contexto em que mais da metade da população no Mundo Árabe tem menos de 25 anos. Os jovens querem mais emprego, maior realização pessoal e participação na construção de sociedades modernas. Apesar de representarem 5% da po- pulação mundial, os 22 países-membros da Liga dos Estados Árabes respondem por apenas 3% do PIB global (US$ 1,9 tri- lhão). O PIB de toda a Liga Árabe é equi- valente ao do Brasil. Isso demonstra o grande potencial de crescimento da re- gião, mas também os grandes desaos que devem ser superados. Está no Brasil a maior comunidade árabe fora do Oriente Médio. Mais de dez milhões de brasileiros possuem ascenden- tes na região. A imigração árabe para o Brasil iniciou-se há cerca de 130 anos, mas a inuência árabe na nossa cultura é mais antiga, e chegou-nos por intermédio da Península Ibérica. Recebidos no Brasil com tolerância e respeito, os árabes alcançaram posições de relevo em todas as áreas da vida nacional. É marcante a contribuição de brasileiros de origem árabe na medicina, na acade- Antonio de Aguiar Patriota é ministro das Relações Exteriores do Brasil.

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Tempos de mudança no Mundo ÁrabeAntonio de Aguiar Patriota

The wave of popular protests in the Middle East and Northern Africa reveals a general desire for the full accom-plishment of basic rights – a phenomenon that has been experienced by different societies in different perio-ds of history. This article addresses the current situation in the Arab world from a Brazilian perspective and highlights the mostly peaceful homegrown nature of the manifestations for freedom of expression, economic opportunity and institutional progress.

As manifestações no Oriente Médio e no Norte da África, que vêm sendo cha-madas de “Primavera de Jasmin”, têm colocado o Mundo Árabe em evidência e despertado interesse mundial nos últimos meses. Para nações como o Brasil, que tem – na expressão do secretário-geral da Liga dos Estados Árabes, Amr Moussa – “es-tendido a mão aos países da região”, as manifestações geram o desafi o de com-preender os processos que se desenvol-vem em um ambiente multiforme.

O Mundo Árabe está longe de compor um bloco monolítico. A renda per capita varia de menos de US$ 1.000 em países como a Mauritânia a cerca de US$ 67 mil no Qatar, país cuja economia cresceu 19% em 2010. Sem ignorar as singularidades de cada país, é possível afi rmar que as princi-pais motivações dos manifestantes são os anseios por oportunidades econômicas, maior participação política e liberdade de expressão. As demandas sociais ganham relevo particular num contexto em que mais da metade da população no Mundo Árabe tem menos de 25 anos. Os jovens querem mais emprego, maior realização

pessoal e participação na construção de sociedades modernas.

Apesar de representarem 5% da po-pulação mundial, os 22 países-membros da Liga dos Estados Árabes respondem por apenas 3% do PIB global (US$ 1,9 tri-lhão). O PIB de toda a Liga Árabe é equi-valente ao do Brasil. Isso demonstra o grande potencial de crescimento da re-gião, mas também os grandes desafi os que devem ser superados.

Está no Brasil a maior comunidade árabe fora do Oriente Médio. Mais de dez milhões de brasileiros possuem ascenden-tes na região. A imigração árabe para o Brasil iniciou-se há cerca de 130 anos, mas a infl uência árabe na nossa cultura é mais antiga, e chegou-nos por intermédio da Península Ibérica.

Recebidos no Brasil com tolerância e respeito, os árabes alcançaram posições de relevo em todas as áreas da vida nacional. É marcante a contribuição de brasileiros de origem árabe na medicina, na acade-

Antonio de Aguiar Patriota é ministro das Relações Exte riores do Brasil.

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mia, no comércio, na literatura e em tantas outras áreas.

A importância dessa comunidade ára-be-brasileira justifi caria per se o interesse do Brasil em aproximar-se do Mundo Ára-be, sendo surpreendente o relativo desco-nhecimento dessa região no Brasil. Tam-bém em relação ao Islã, que é diverso e complexo, não há em nosso país um co-nhecimento aprofundado, circunstância talvez associada ao fato de que os descen-dentes de árabes no Brasil são majoritaria-mente cristãos maronitas e ortodoxos.

O Brasil tem buscado, por diversos meios, aproximar-se dos países árabes e estabelecer mecanismos de interlocução privilegiada e cooperação com aquela re-gião. Nos últimos anos, abrimos Embai-xadas no Sudão, na Mauritânia, no Qatar e no Sultanato de Omã, além do Escri-tório de Representação na Palestina. O Brasil tem representação diplomática resi-dente em 17 dos 22 países-membros da Liga dos Estados Árabes, não estando presente apenas no Iêmen, Bahrein, Co-mores, Djibuti e Somália.

Em 2002, o Brasil tornou-se observador da Liga dos Estados Árabes, sendo o pri-meiro país latino-americano a obter esse status. Em 2005, o Brasil foi sede da pri-meira Cúpula América do Sul-Países Ára-bes (ASPA), mecanismo que se tem insti-tucionalizado e servido de plataforma para a formulação e execução de uma agenda cooperativa em uma variedade de temas que vão do comércio à cultura. Em 2009, teve lugar, em Doha, a II Cúpula ASPA, e a III Cúpula deverá realizar-se em 2011, no Peru. Essa aproximação refl ete-se no aumento do comércio entre o Brasil e os países árabes, de US$ 5,48 bilhões em 2003, ano em que a ideia da ASPA foi lan-çada, para US$ 19,58 bilhões em 2010.

Temos buscado também contatos dire-tos com a Organização da Conferência Is-lâmica, organismo internacional com sede

em Jedá, na Arábia Saudita, que reúne 57 Estados com segmentos islâmicos signifi -cativos em suas populações. A Guiana e o Suriname são membros. O Brasil, apesar de ter comunidade de origem árabe majo-ritariamente maronita e ortodoxa, tem po-pulação islâmica maior que a da Guiana e a do Suriname.

O “11 de setembro” aprofundou estig-mas e simplifi cações preconceituosas em torno da segunda maior religião do mun-do (em número de fi éis), o Islã, e por ex-tensão, em torno do mundo árabe. Segun-do alguns analistas, qualquer tentativa de promover mudanças políticas na região estaria fadada ao fracasso, uma vez que a consequência mais provável seria o forta-lecimento do fundamentalismo.

A composição político-social dos gru-pos que vêm encabeçando os protestos por democracia no mundo árabe, bem co-mo sua forma de atuação pacífi ca e or-ganizada deitou por terra esse preconcei-to. O despertar de forças político-sociais para a expressão de suas legítimas deman-das demonstrou a pluralidade e vitalidade dessas sociedades.

As organizações islâmicas têm tido va-riado grau de participação nas manifesta-ções nos diferentes países, mas pode-se afi rmar que não houve caso, até o momen-to, em que tenham assumido a liderança preponderante nos movimentos de protes-to. A maior organização transnacional islâ-mica, de caráter conservador e não violen-to, a Irmandade Muçulmana, apoiou as manifestações no Egito e tem tido papel signifi cativo na Jordânia, mas sempre jun-to a outros grupos político-sociais.

Quando a ASPA foi lançada, no auge do temor do fundamentalismo, algumas vozes se levantaram contra a aproximação da América do Sul com o Mundo Árabe. Mas o Brasil e seus parceiros levaram adiante a ideia da Cúpula, justamentepara desdramatizar a agenda com foco

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TEMPOS DE MUDANÇA NO MUNDO ÁRABE

no terror, e para estabelecer uma agenda voltada para a cooperação econômica,política e cultural. Esse esforço, em um momento em que os islâmicos eram estig-matizados, criou condições para o fortale-cimento da confi ança entre o Brasil – a América do Sul – e o Mundo Árabe.

Como afi rmou a ex-secretária de Es-tado norte-americana Condoleezza Rice, durante décadas os EUA investiram na estabilidade no Mundo Árabe em de-trimento da democracia, sem alcançar qualquer dos dois objetivos. O status quo foi preferido por alguns, em detrimento da abertura política, em função de interes-ses eventualmente relacionados ao pe-tróleo ou devido a temores de que tentati-vas de democratização fossem sufocadas pelo extremismo.

O governo brasileiro pode fazer usode suas credenciais de país multiétnico, democrático, e em fase de desenvolvimen-to econômico e social acelerado, capaz de compreender as peculiaridades dos pro-cessos políticos de diferentes regiões; ca-paz de estabelecer diálogo respeitoso e não intrusivo com os países árabes e de cooperar em torno de uma agenda de pro-gresso econômico, social e institucional.

É responsabilidade da comunidade in-ternacional não agravar situações de tensão como a que vem ocorrendo na Líbia. O Brasil se preocupa com os impasses naque-le país. Apoiamos a decisão sem prece-dentes de suspender a Líbia do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. E apoiamos as fortes medidas da Resolução 1970 (embargo de armas, proibição de via-gens e congelamento de bens de Muammar Gaddafi e seu círculo de assessores mais próximos, submissão do assunto à Corte Penal Internacional), adotada por consenso pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. O governo do Brasil repudia o uso da violência contra mani fes tantes desarma-dos onde quer que ocorra. Favo recemos a

liberdade de expressão e soluções políticas alcançadas por meio do diálogo.

Juntamente com Alemanha, China,Índia e Rússia, optamos pela abstenção em relação à Resolução 1973, que criou uma zona de exclusão aérea na Líbia e autorizou medidas militares para a prote-ção da população civil. Essa posição não deve ser interpretada como tolerância an-te o comportamento das autoridades lí-bias ou como desconsideração das neces-sidades humanitárias.

Levamos em conta o chamado da Liga Árabe por medidas enérgicas que dessem fi m à violência, por meio de uma zona de exclusão aérea. No entanto, o texto dareferida Resolução contempla medidas que vão muito além do que a Liga dos Estados Árabes propugnava. Não esta-mos convencidos de que o uso da força como dispõe o parágrafo operativo 4 (“all necessary measures”) levará à realização do nosso objetivo comum – o fi m imedia-to da violência, a proteção de civis, um cessar-fogo, uma perspectiva de atenção às aspirações dos manifestantes por maior participação nas decisões sobre os desti-nos de suas sociedades.

Importante registrar que, nas manifes-tações dos últimos meses, os árabes absti-veram-se de atribuir a origem de suas frustrações a atores externos: os movimen-tos populares no Oriente Médio e no Nor-te da África têm-se caracterizado por se-rem espontâneos e locais.

Assim, inquieta-nos a possibilidade de que o emprego de força militar na região possa alterar tal narrativa. É nesse contex-to que o Brasil tem apoiado o “mapa do caminho” elaborado pela União Africana, focado no cessar-fogo, na atenção huma-nitária, na negociação, na transição para um processo eleitoral.

Creio ser importante, por fi m, tratar de um dos temas concernentes ao Oriente Médio que traz mais sério impacto para a

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paz e a segurança internacionais: o proces-so de paz árabe-israelense. A falta de re-sultados nos últimos anos leva a crer que seja o momento de incluir outras vozes e novas ideias no processo. Atualmente, as negociações não têm avançado de manei-ra signifi cativa. Essa é uma situação “bici-cleta”: se pararmos de pedalar, pode ha-ver um colapso.

A decisão do Brasil de reconhecer o Estado Palestino com base nas fronteiras de 1967 levou em consideração a necessi-dade premente de negociações justas e equilibradas para a paz. Essa decisão não deve ser vista como perda de fé em uma solução negociada.

Por meio do reconhecimento, o Brasil reafi rma sua posição de favorecer um Es-tado palestino democrático, geografi ca-mente coeso e economicamente viável, que viva em paz com o Estado de Israel – respeitadas as exigências de segurança is-raelenses. Vale lembrar que outros nove Estados sul-americanos também reconhe-ceram o Estado Palestino, e mais de cem o fi zeram em termos mundiais.

O Brasil, ancorado em sua tradição de diálogo, moderação, favorecimento da di-plomacia e resolução pacífi ca de contro-vérsias, está pronto a contribuir sempre que for chamado, para que as tensões no Oriente Médio tenham encaminhamento negociado. Parece-nos interessante o for-mato da Conferência de Anápolis (novem-bro de 2007), que reuniu representantes de Israel, da Palestina, e de mais de 40 países, incluindo representantes dos três países que compõem o Fórum de Diálogo IBAS (Índia, Brasil, África do Sul).

Que contribuição o IBAS poderia dar ao processo de paz? O Grupo é composto por democracias multiétnicas, que têmrelações de cooperação tanto com Israel como com os países árabes, e que trilham um caminho de desenvolvimento eco-nômico inclusivo. Os três Estados, que

participaram da Conferência de Anápolis, estão agora no Conselho de Segurança da ONU, o que lhes confere responsabilidade e oportunidade de se engajarem indivi-dual e coletivamente na promoção da paz na região.

A Declaração da VII Reunião Minis-terial do IBAS, de 8 de março deste ano, em Nova Délhi, faz menção à disposição de Brasil, Índia e África do Sul em coope-rar tanto para o bom encaminhamentoda questão Israel-Palestina como para o desenvolvimento de projetos que visema melhorias sociais e políticas nos territó-ris ocupados.

O Brasil participou da reunião de doa-dores à Palestina de Sharm-el Sheikh, em 2009, e vem desenvolvendo importantes projetos com as autoridades palestinas – em articulação com seus parceiros no IBAS –, como a construção de um Centro Esportivo em Ramala, a criação de ligas esportivas juvenis e capacitação de técni-cos; bem como a recuperação do Centro Hospitalar e Cultural da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino na Faixa de Gaza (Hospital Al Quds). Vale mencionar, ainda, projetos como o do Instituto Nacio-nal da Tecnologia de Informação, o Centro para Pessoas com Necessidades Especiais em Nablus, e o Centro de Treinamento Vocacional em Ramala. Caso haja interes-se dos países daquela região, o Fundo IBAS poderá ser crescentemente utilizado para fi nanciar a cooperação.

Ao mesmo tempo, entrou em vigor o Acordo de Livre Comércio entre Israel e Mercosul1, e desenvolvemos o diálogo político com Tel Aviv – após a primeira visita de um presidente brasileiro ao país, em 2010.

Um olhar livre de preconceitos revela que, apesar das especifi cidades de cada país e da existência de questões geopolíti-cas – como a questão Israel-Palestina – com poder de infl uenciar a evolução dos

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TEMPOS DE MUDANÇA NO MUNDO ÁRABE

acontecimentos na região como um todo, as manifestações no Mundo Árabe têm em comum aspirações básicas que, em dife-rentes momentos, aglutinaram movimen-tos populares em todo o mundo, inclusive no Brasil. Por essa razão, os países que passam por mudanças no Mundo Árabe merecem apoio de países amigos, com

vistas ao objetivo comum de construir sociedades mais justas, plurais, prósperas, que viabilizarão, enfi m, a construção da paz duradoura no Oriente Médio.

(Texto baseado em aula proferida naUniversidade de São Paulo,

em 22 de março de 2011)

Notas

1. Em agosto de 2010, foi assinado o segundo Acordo de Livre Comércio do Mercosul com um parceiro extrar-regional, o Egito (o primeiro foi Israel).

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Movimentos contra o autoritarismoAffonso Celso de Ouro Preto

A great revolt is taking place in the Middle East and North Africa. It has been already successful in Tunisia and Egypt. Protest grows in Syria. A civil war has emerged in Libya. Poverty is endemic in such countries. Governments are authoritarian, incompetent and often corrupt. Authoritarian regimes will probably prevail in tribal societies such as Yemen. It might also happen in societies divided according to religion such as Syria unless different sects express a capacity to negotiate agreements to share power. In consolidated states such as Egypt where a middle class and a civil society exist, we might see the emergence of democracies probably with an Islamic influence and a military presence.

Uma onda percorre o Mundo Árabe. Um vento de rebelião se generaliza. A bandeira é a mesma, em toda a parte. Con-denação aos regimes autoritários, ali ins-talados.

As massas árabes marcham contra su as tiranias. O movimento colheu o mundo de surpresa. Inclusive, aparentemente, servi-ços de inteligência como a CIA ou o MI5, os diplomatas, ONGs, centros de pesqui-sa, em diferentes áreas do planeta. Há poucas semanas atrás, por exemplo, a im-prensa, inclusive a especializada, discutia se o sucessor do presidente Mubarak, no Egito, seria o seu próprio fi lho Gamal ou algum general. A situação política mudou, hoje, radicalmente.

A convulsão surpreendeu na medida em que, no Ocidente, muitos julgavam, talvez com um elemento de islamofobia ou de arabofobia, que os regimes autoritá-rios corresponderiam à tradição e à cultu-ra dos países árabes. A alternativa aos re-gimes autoritários árabes seriam regimes islâmicos radicais que patrocinariam, ou poderiam patrocinar, a violência e o terro-rismo. O autoritarismo, em suma, implica-ria em paz e estabilidade. Não só atende-

ria à tradição local mas ainda contribuiria para a manutenção da ordem no mundo.

A defi nição das diferenças culturais entre o Mundo Árabe e os países de tradi-ção europeia justifi cariam as teorias de “choque de civilizações”. O que ocorre hoje parece desmentir essa imagem.

A rebelião, chamada de “Primavera Árabe”, começou com um protesto na Tu-nísia. O protesto cresceu a ponto de derru-bar o governo com a expulsão de um dita-dor, Ben Ali, cujo governo se prolongava havia dezenas de anos.

O exemplo da Tunísia repercutiu no Egito o mais importante país árabe, pela massa crítica que representa, pela sua po-sição estratégica e pela sua infl uência cul-tural. Ali também, após uma resistência de cerca de duas semanas, o chefe de Estado, general Mubarak, no poder também havia mais de trinta anos, foi obrigado a renun-ciar, dando lugar a um início de mudança de regime.

Affonso Celso de Ouro Preto é diplomata. Foi em -baixador do Brasil na Suécia, Áustria e China e, entre 2005 e 2009, embaixador especial para assuntos do Oriente Médio.

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A revolta agora sacode a Líbia com contornos de guerra civil generalizada e intervenção de forças aéreas ocidentais sob comando da OTAN, mas sem partici-pação direta de alguns países-membros como a Alemanha.

O Iêmen, socialmente arcaico, mas im-portante para os EUA pela contribuição na luta contra o Al-Qaeda e o pequeno (e também importante) emirado de Bahrein, base da esquadra norte-americana no Gol-fo Pérsico, foram atingidos pela rebelião. Igualmente a estratégica Síria. Sentem-se sacudidas no Marrocos e na Argélia.

Já se verifi caram situações gerais de revolta parecidas na história mundial dos últimos séculos. Os acontecimentos de ho-je lembram as revoluções de 1848.

Naquele momento começou um movi-mento popular na França que pôs abaixo o regime político ali existente e se expandiu em toda ou na maior parte da Europa. O ciclo de levantes repercutiu, até no Brasil, com a Revolta Praieira.

Após 1989 uma série de revoluções sa-cudiu a Europa Central e Oriental pondo fi m aos regimes comunistas.

Como em todos os movimentos histó-ricos de grande dimensão, seria difícil tentar explicar o protesto geral a que assis-timos, hoje, atribuindo-lhe uma só causa ou mesmo uma causa prioritária.

Em primeiro lugar, certamente, existem causas econômicas e sociais. Como países do Terceiro Mundo, as sociedades árabes são, na sua maioria, marcadas pela pobre-za e frequentemente, pela extrema pobre-za. Verifi cou-se, sem dúvida, nos últimos anos, um desenvolvimento econômico, como se pode ver pela leitura das estatísti-cas. No caso dos produtores de petróleo, uma expansão rápida e acentuada.

A pobreza, no entanto, é hoje mais do-lorosa ou sua existência é sentida como mais injusta diante das crescentes diferen-ças entre classes sociais, em praticamente

toda a região e que se acentuou com a ex-pansão econômica, a qual criou, em vários países, uma classe de novos ricos.

Alguns países haviam tentado seguir modelos neossocialistas ou pelo menos pro gramas de subvenções, em grande es-cala, de alimentos. Esses modelos represen-taram custos econômicos excessivamente elevados e tiveram de ser abandonadosou reduzidos.

O fi m da Guerra Fria acentuou a mu-dança de modelos econômicos. A econo-mia de mercado, o fi m ou a diminuição de subvenções para a alimentação contribuí-ram para acentuar, no curto ou médio prazo, as já existentes diferenças de distri-buição de renda. A grande crise de 2008 também repercutiu na região.

O desemprego e a falta de perspec ti-vas, particularmente para os mais jovens, marcam sociedades com altas taxas de natalidade, gerando ou acentuando um crescente sentimento de insatisfação.

Em segundo lugar, as crises de hoje expressam também, ou ainda mais, uma profunda insatisfação política.

Os regimes árabes, na sua quase tota-lidade, constituem ou constituíram, atéas presentes revoluções, regimes autori-tários. As exceções seriam o Líbano, único na sua complexidade confessional e os territórios palestinos ocupados, onde pelo menos em 2005-2006, celebraram-se ver-dadeiras disputas eleitorais abertas.

Os regimes autoritários instalados im-plicaram em governos pessoais, que se prolongaram por muitos anos.

Ben Ali, derrubado agora na Tunísia, e Mubarak, igualmente expulso do poder no Egito, governaram os seus países por mais de trinta anos.

O general Hosni Mubarak havia sido o sucessor de Sadat. Este havia sido o her-deiro do coronel Nasser. Juntos represen-tavam mais de sessenta anos de governo autoritário militar no Egito.

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MOVIMENTOS CONTRA O AUTORITARISMO

Esses regimes, hoje ameaçados ou subs-tituídos, foram populares e mesmo muito populares quando inaugurados. Represen-tavam, então, os ideais de um processo de renovação e de consolidação ou em certos casos, de criação das várias vertentes do nacionalismo árabe. Bem como a rejeição de Estados anteriores impopulares. Cons-tituíam, igualmente, tentativas de conci-liar a tradição religiosa da região com a complexa necessidade de adaptação à mo-dernidade percebida como necessária por todos (ou quase todos).

Agora, no caso do Egito, por exemplo, após sessenta anos de governo militar di-rigido até março passado pelo general Mu-barak, foi marcado ou foi atingido, pelos males que sempre caracterizaram o auto-ritarismo político, sobretudo em socieda-des do Terceiro Mundo, ou seja, a corrup-ção, o nepotismo, a incompetência. As suas respectivas políticas exteriores tampouco marcaram êxitos que atendessem às reivin-dicações ou sonhos nacionalistas.

Esses regimes, em suma, se desgas-taram e perderam a legitimidade de que haviam desfrutado no passado, há poucas dezenas de anos. Os grandes líderes po-pulistas e carismáticos dos anos cinquenta e sessenta como Nasser, Burguesa, o pri-meiro Assad e outros, já se foram. Os seus sucessores expressaram um clima de cres-cente mediocridade e de autoritarismo desprovido de qualquer áurea.

Vale lembrar, como pano de fundo, que os Estados árabes que hoje conhecemos foram colonizados a partir do século XIX pela França, a Grã-Bretanha e a Itália.

A França colonizou a África do Norte, a partir do século XIX, o chamado Zagreb onde se situam hoje o Marrocos, a Argélia e a Tunísia. A Itália, após anexar em 1911 as três províncias do então império otoma-no (a Tripolitana, a Cirenaica e o Fezzan), concedeu à sua nova colônia o antigo no-me greco-romano de Líbia.

A Grã-Bretanha ocupou o Egito a partir do século XIX. A anexação propriamente dita teve lugar em 1914, quando o país se tornou um protetorado britânico.

O império otomano, derrotado na Pri-meira Guerra como aliado da Alemanha, viu as suas províncias de população ára-be, ou majoritariamente árabe, serem re-partidas entre os vencedores, a França e a Grã-Bretanha.

Foi levada a cabo uma divisão negocia-da dessa região, que identifi camos como o Oriente Médio ou Crescente Fértil. A Fran-ça recebeu os territórios do que hoje co-nhecemos como o Líbano e a Síria. A Grã--Bretanha obteve a área que constitui hoje o Iraque, a Jordânia e o território onde se formaria o moderno Estado de Israel.

A divisão entre vencedores havia sido negociada antes mesmo do fi m das hosti-lidades, entre a França e a Grã-Bretanha, pelos famosos acordos Seites Picote.

A distribuição entre os vencedores da guerra de uma ampla área do império der-rotado constituiu, com a ocupação das antigas colônias alemãs na África e no Ex-tremo Oriente, a última expansão das po-tências coloniais europeias no mundo. Não foi efetuada qualquer consulta às po-pulações interessadas.

Os Estados árabes da região do Oriente Médio que hoje conhecemos não existiam até então, não correspondiam a Estados antigos ou modernos. Seus nomes moder-nos não eram sequer usados – representa-vam simples conjuntos de províncias do velho império otomano cujos limites, entre si, eram fl uidos. As fronteiras modernas foram estabelecidas por decisão do poder colonial, que escolheu, igualmente, as ca-pitais. Repetiam-se, aliás, os processos usa-dos no século XIX, para a determinação das fronteiras da África subsaariana.

Em muitos casos, a divisão de frontei-ras entre novos Estados obedecia a meros interesses específi cos do poder colonial,

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como no Iraque, onde se juntaram popula-ções árabes xiitas no sul, sunitas no centro e curdos, ou seja, não árabes, no norte. No Líbano, instalou-se um Estado onde, por ocasião de sua criação, os cristãos eram majoritários, mas hoje tendem a ser mino-ritários frente aos muçulmanos, sobretudo xiitas, cuja taxa de natalidade é mais ele-vada. Gerou-se, em suma, uma área fértil para futuros confl itos.

Após a Primeira Guerra, teve início a criação dos partidos nacionalistas: o Ward no Egito, o Baath na Síria e no Iraque, a FLN na Argélia, o Destour e o neo-Destour na Tunísia.

As independências, às vezes por eta-pas, começaram também após a Primeira Guerra.

A Grã-Bretanha reconheceu a indepen-dência, então mais ou menos teórica, do Egito em 1922, após um forte movimento de protesto popular. A ocupação militar, todavia, se prolongaria até os anos cin-quenta. O Iraque também obteve em 1932 uma independência relativa, com a manu-tenção da ocupação estrangeira e a insta-lação de uma monarquia estreitamente li-gada à Grã-Bretanha. A Síria e o Líbano tornaram-se independentes por ocasião da Segunda Guerra com o enfraquecimen-to da França. O Estado de Israel foi procla-mado em 1948 e o resto da Palestina foi ocupada em 1967.

A África do Norte, francesa, separou--se da metrópole colonial e a partir de 1956 dividiu-se no Marrocos e na Tunísia. Na Argélia, após uma longa e particular-mente violenta guerra, a independência foi alcançada em 1962.

Essas independências decorreram da pressão dos movimentos nacionalistas e da rápida erosão, nas metrópoles euro-peias, da legitimidade do conceito de colo-nialismo. Essa perda de legitimidade se acentuou com os ventos, os ideais de liber-tação e de direitos humanos decorrentes

da Segunda Guerra, tornando difícil a manutenção dos colonialismos.

Os nacionalismos que assumiram opoder no Mundo Árabe oscilaram nas su-as respectivas linhas políticas. Inicialmen-te foram seculares, ou seja, não adotaram o laicismo de tipo europeu (ou francês), tampouco foram controlados por movi-mentos religiosos. Surgiram igualmente ideais de união do Mundo Árabe por cima das fronteiras impostas pelo poder colo-nial consideradas injustas ou artifi ciais. Eram os movimentos pan-arabistas que, apesar de importantes até os anos setenta e mesmo oitenta, se diluíram e perderam importância após os anos oitenta.

O verdadeiro desafi o aos movimentos seculares foi expresso pelos partidos re-ligiosos que cresceram a partir dos anos oitenta e noventa. Alguns desses movi-mentos eram antigos como a Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 no Egito.

Os movimentos religiosos constituíram ameaças aos poderes instalados, mas não assumiram controles políticos concretos no Mundo Árabe, exceto em áreas limita-das como a faixa de Gaza com o Hamas ou, parcialmente, no governo libanês, co-mo o Hezbollah. Alguns regimes autoritá-rios se justifi caram como barreiras contra os movimentos religiosos, como no Egito, frente a ameaça ou então percebida amea-ça, do islamismo expresso pela Irmandade Muçulmana, única oposição organizada ao regime do presidente Mubarak.

A experiência iraniana após a revolu-ção de 1979, que pode ter servido de exem-plo a certos islamismos, situou-se fora do Mundo Árabe e atende a uma problemáti-ca específi ca que não cabe analisar aqui.

Paradoxalmente esses movimentos re-ligiosos foram, inicialmente, percebidos pelos observadores ocidentais e mesmo por Israel, como organizações mais ou menos benignas dedicadas à caridade na tradição islâmica, constituindo opções na-

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cionalistas mais aceitáveis do que os na-cionalismos seculares (Al Fatah etc.) jul-gados, então, mais perigosos. Hoje esses julgamentos se inverteram.

Ao tentar apresentar, em breves pince-ladas, o Mundo Árabe, hoje, em ebulição, conviria mencionar, rapidamente, as prin-cipais características das modernas socie-dades da região.

Existem hoje, no Mundo Árabe, Esta-dos constituídos e consolidados. Em certos casos, como no Egito, há muito tempo, antes mesmo da conquista islâmica no sé-culo VII. O Egito, a partir do século XIX, emerge novamente como um Estado coeso e organizado. O país esteve sujeito à ocu-pação estrangeira, essencialmente, devido à importância estratégica do canal de Suez.

O passado egípcio constitui, para a população (e, sobretudo para as elites), motivo de orgulho, e consolida a cons-ciência de uma nacionalidade. Em suma, existe uma nação egípcia talvez indepen-dentemente de sua adesão emocional ao Mundo Árabe.

A Tunísia e os demais Estados do Ma-greb, colonizados pela França, apresentam também características de Estados orga-nizados. A colonização francesa transferiu a sua tradição administrativa centrali-zadora para esses territórios e a infl uência cultural foi intensa. A tal ponto, que a classe média desses países tende, ainda, a se comunicar usando a língua francesa. Cerca de cinco milhões de norte-africanos ou descendentes de norte-africanos vivem hoje na França, o que facilita o intercâm-bio (às vezes difícil) e contribui para ex-pandir conceitos europeus de administra-ção e vida política.

Existem, ainda, no Mundo Árabe, so-ciedades tribais ou eminentemente tribais, unidas, (em geral recentemente do ponto de vista histórico) de maneira frágil, por relações pessoais de fi delidade ou paren-tesco e que foram frequentemente admi-

nistradas, de maneira conjunta, pelo po-der colonial.

O Iêmen constituiria um bom exemplo dessa categoria. As tribos tradicionais, exis-tentes antes da criação de qualquer meca-nismo estatal institucionalizado, dividem o país. Existiam dois Iêmen, o Norte e o Sul, unidos de maneira precária apenas em 1990 e marcados por constantes guerras civis. O país hoje, ganha importância pela ajuda prestada aos EUA, na luta contrao Al-Qaeda.

A Líbia pode ser também considerada (até certo ponto) como tribal. A sua unida-de, frágil, decorre de seu farsante (e às vezes dramático) líder, o coronel Gaddafi , e do enriquecimento do litoral, decorrente do petróleo. A sociedade, todavia, é pro-fundamente dividida por tribos antigas como se verifi ca hoje na rebelião contra o governo central.

A Arábia Saudita, por sua vez, não foi colonizada (exceto sua parte ocidental), se formou somente em 1932, pelas conquis-tas da dinastia Saud. As maiores jazidas de petróleo do mundo, o controle das cidades santas de Meca e Medina, o culto vaabita – forma tradicional do Islã – e uma dinas-tia formada por inúmeros príncipes cons-tituem os elementos aglutinadores de uma sociedade também dividida em tribos, cuja união é recente. O peso do Estado central, graças aos recursos do petróleo, é muito elevado.

Encontram-se, também, no Mundo Ára-be, Estados e sociedades setoriais, ou seja , divididas em seitas ou comunidades reli-giosas.

O exemplo por excelência seria o Líba-no, onde convivem, frequentemente mal, dezoito confi ssões – muçulmanos sunitas, xiitas, drusos, católicos maronitas, cristãos ortodoxos etc. Tentou-se e tenta-se ainda distribuir o poder entre essas várias con-fi ssões com um êxito variável. O peso rela-tivo, inclusive econômico, das comunida-

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des, variou: certas comunidades cresceram e progrediram mais do que outras dispu-tando, consequentemente, o poder com mais energia, como se pode verifi car pelo peso, cada vez maior, dos xiitas, em detri-mento do poder mais antigo dos maroni-tas católicos, inicialmente favorecidos pe-lo poder francês.

A Síria pode igualmente (até certo pon-to) ser defi nida como sociedade setorial. A maioria da população, cerca de 70 % é su-nita. Existem, todavia, cristãos ortodoxos, cerca de 10%, drusos 6%, malauitas perto de 15%, bem como a minoria étnica curda perto de 6%.

Os malauitas, seita proveniente do xiis-mo, controlam os quadros superiores do exército (desde a época francesa). Dirigem assim o Estado, apesar de constituírem uma minoria. O presidente Bashar Assad, que assumiu o poder após seu pai, perten-ce a essa comunidade. O Estado sírio é secular por intermédio do Partido nacio-nalista Baath, fundado, aliás, por um sírio cristão ortodoxo. O partido constitui tam-bém fator aglutinador do país.

O Estado sofre ali a ameaça do protesto popular, sobretudo na parte meridional do país, e reage com força. É lícito ima-ginar, todavia, que se o regime perdesseo controle que exerce, o país enfrentaria uma situação de caos que não benefi ciaria nenhum de seus vizinhos (Israel, Iraque, Turquia, Líbano).

A manutenção da ordem malauita e do Partido Baath, ainda que possa não ser aprovada pelos seus aspetos autoritários, constitui certamente um mal menor. Para a região e, provavelmente, para as comu-nidades do país.

Existem, enfi m, certos regimes específi -cos, como as pequenas monarquias do Golfo. A maioria da população desses mi-ni-Estados não é (hoje) árabe, mas compos-ta de imigrantes importados para atender ao enriquecimento decorrente do petróleo.

Registram-se problemas específi cos como em Bahrein, onde, independente-mente dos estrangeiros, a parcela da po-pulação árabe é xiita na sua maioria. Os xiitas se rebelam hoje contra os sunitas que representam as classes privilegiadas e a monarquia.

O país, apesar de suas modestas di-mensões ganhou importância por consti-tuir o local, onde, como se mencionou, foi instalada uma das principais bases navais norte-americanas no Golfo.

Curiosamente, no Bahrein, a vizinha Arábia Saudita enviou forças para manter a ordem, aparentemente por solidarie-dade dinástica e para evitar contágios. A operação teve lugar, ao que tudo indica, sem consulta aos EUA. A intervenção sau-dita ao apoiar o regime contra a rebelião que enfrenta, constitui uma operação in-versa à que desenvolvem os países da OTAN na Líbia, onde se tenta defender uma rebelião contra o poder constituído.

A Jordânia, enfi m, representa um caso específi co, com uma população composta por uma maioria de (refugiados) palesti-nos e uma dinastia – da família hashemita – instalada pela Grã-Bretanha. Uma crise estrutural no país levaria ou poderia levar à criação de um poder palestino com re-percussões além das fronteiras do Estado.

Existe, no entanto, por cima de suas di-visões, uma unidade cultural nos países árabes. Mais do que um conjunto étnico, o Mundo Árabe constitui um universo cultu-ral. É perceptível igualmente a consciência (ou a imagem ou o mito consagrado) de um passado comum com os grandes califa-dos que dirigiram essa civilização, então unida, logo após a sua criação. Um orgulho de um longínquo passado glorioso, quan-do o Mundo Árabe esteve, certamente, à frente da Europa (talvez até o século XI).

A língua árabe é ofi cial em toda a re-gião, ainda que seja marcada por profun-das variações dialetais e que simultanea-

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mente existam minorias, como os curdos, que utilizam idiomas próprios.

Igualmente, no Mundo Árabe, perdura a humilhação, provavelmente ainda não superada, da colonização europeia bem como a já mencionada difi culdade de com-binar ou adaptar sua religião (predomi-nante – já que o Islã não inclui a totalidade do Mundo Árabe) à modernidade. Enfi m, a oposição a Israel, emocionalmente, une esse mundo.

Por outro lado, o processo histórico, as diferenças entre Estados, os vários graus de desenvolvimento econômico e social, as diferenças na organização das socieda-des, contribuem para criar ou manter dis-paridades no Mundo Árabe como se ten-tou mencionar acima.

Os Estados árabes são, em suma, si-multaneamente, semelhantes e diferentes. A sua diversidade ou sua unidade consti-tuíram temas de intenso debate político quando se avançaram tentativas de uni-dade árabe – hoje diluídas e substituídas pela ação dos nacionalismos limitados a Estados específi cos.

A grande revolta árabe a que assisti-mos levará, provavelmente, a consequên-cias ou desdobramentos diferentes segun-do as regiões e os países desse mundo heterogêneo, hoje unido pelo protesto.

Essa rebelião manifesta certas caracte-rísticas que convêm tentar registrar. O mo-vimento é secular (até agora). Não foi or-ganizado por movimentos religiosos. Estes simplesmente aderiram a uma revolta que já havia começado, mas não a planejaram nem a dirigiram.

A rebelião se desenvolve no quadro dos Estados existentes. As bandeiras da Tunísia, do Egito, do Iêmen, da Síria etc. foram e estão sendo usadas. Não se cogi-tou mais em pan-arabismo ou adesão a um novo califado. O movimento de 2011 consagrou, consolidou e confi rmou as an-tigas fronteiras coloniais que não parecem

mais serem postas em dúvida, exceto no caso de certos Estados tribais cuja unidade é frágil.

Os Estados atingidos pela rebelião são profundamente diferentes entre si, como foi dito. O primeiro governo a ruir foi o da pequena Tunísia, que havia instalado um sistema legal e social profundamente oci-dentalizado, com garantias aos direitos da mulher e códigos inspirados do Ocidente. Pouco depois, após o Egito, até certo pon-to secularizado, foi sacudido o Iêmen, tra-dicionalista e tribal. Em seguida, a Síria sectorial e baathista (e secular).

Em suma: foi visado o poder político que se eternizava, e não o conteúdo ou a defi nição desse poder político.

A revolta atingiu Estados de orientação conservadora como o Egito, a Tunísia o Iêmen, Bahrein e mesmo a Líbia, que se aproximara do Ocidente após 2003.

Mas também foi atingida a Síria, parte do Eixo do Mal do presidente Bush, an-tiga aliada da URSS durante a Guerra Fria e regime hoje criticado por dar abrigo ao Hamas e manter (até agora) um bomentendimento com o Irã. As suas relações se recompõe, hoje, muito lentamente, com os EUA.

A contestação, portanto, não parece se-guir uma linha específi ca política frente ao Mundo Ocidental ou ao secularismo, mas, simplesmente, contesta o poder.

A revolta não está associada a nenhum partido ou associação específi ca. Registra--se (até agora) uma grande difi culdade em distinguir lideranças.

A “Primavera Árabe”, enfi m, pelo que se pode verifi car pelas imagens transmiti-das, não constitui (aparentemente) uma rebelião da classe mais pobre. Nos países não tribais parece verifi car-se que o pro-testo representa massas urbanas, funcio-nários modestos, estudantes, baixa classe média, comerciários subalternos, mas não subproletários desesperados.

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Os protestos árabes se assemelham na medida em que constituem movimentos, mais ou menos espontâneos, de popula-ções que acreditam poder modifi car o seu destino, julgado injusto, ou tentam agir nesse sentido, sem aguardar uma ação de suas elites ou de partidos organizados. Es-ses movimentos agem em clima de vácuo político que expressa raiva e cansaço com o status quo. Não se apresentaram, ainda, pro-jetos ou programas para substituir a ordem injusta. Deseja-se, simplesmente der rubar ou eliminar essa ordem.

É curioso mencionar que os Estados ameaçados pela rebelião se revelaram (em muitos casos) mais frágeis do que se supu-nha. O regime egípcio, por exemplo, capi-tulou sem opor uma resistência de violên-cia elevada. Igualmente a Síria, que resiste ainda, já apresentou um projeto de conces-sões importantes – fi m da lei que conferia poderes excepcionais ao Estado etc.

Os regimes árabes demonstraram que eram autoritários, mas não totalitários, e seus aparelhos de repressão possuíam di-mensões limitadas ou então demonstra-ram uma incompetência maior do que a que se esperava. Possivelmente esses apa-relhos de repressão sentiram a falta delegitimidade dos regimes que deveriam defender. As resistências maiores foram registradas em Estados tribais de organi-zação mais primitiva onde, provavelmen-te, as fi delidades pessoais desempenha-ram um papel maior.

Quais serão as consequências dessa re-volta?

É, evidentemente, cedo demais para sequer tentar elaborar uma resposta. Po-dem-se apresentar apenas algumas obser-vações.

Muito provavelmente, o nacionalismo, sob uma forma que será difícil ainda deli-near, continuará a desempenhar o papel de pano de fundo da vida política. Tudo leva a crer que reconciliações semelhantes às

que tiveram lugar após a Segunda Guerra, na Europa, não ocorrerão.

Tudo leva a crer, ainda, que continuará a ser importante, a presença militar na vida política dos respectivos países ára-bes. As Forças Armadas inspiram um grande respeito em praticamente todos os Estados da região. Encarnam as respeti-vas nacionalidades. Representam um fa-tor de estabilidade. Foram e continuarão a ser o fi el da balança em situações de crise. O estamento militar constitui, ainda, um segmento importante das classes médias que existem.

É lícito imaginar, também, que a ordem que se instalará no Oriente Médio e na África do Norte, incluirá um elemento de islamismo. Não se criarão, provavelmente, Estados islâmicos. Todavia, o peso de par- tidos islâmicos, como a Irmandade Mu -çulmana, hoje reprimida, (no Egito) possi-velmente crescerá. Não está clara qual será a bandeira moderna dessa Irmandade após o longo período de repressão a que esteve sujeita.

Os partidos seculares também, prova-velmente, seguindo a sua tradição expres-sa desde as independências, reconhecerão a dimensão do islamismo nas respectivas culturas. É difícil apenas projetar, hoje, que grau alcançará essa dimensão ou im-pregnação islâmica.

A ausência de clero no culto sunita (contrariamente às Igrejas cristãs e, até certo ponto, ao xiismo) torna complexa qualquer avaliação da direção que os isla-mismos adotarão no Oriente Médio e na África do Norte.

Vemos uma revolta contra a tirania ou contra formas de tirania.

A constituição de Estados democrá-ticos ou a reivindicação de instalar estru-turas democráticas constituiria, em prin-cípio, consequência desses movimentos que condenam o autoritarismo e a tirania? (Ainda que a reivindicação pela democra-

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MOVIMENTOS CONTRA O AUTORITARISMO

cia não tenha sido sempre ou mesmo fre-quentemente levantada).

Caberia lembrar que, como se sabe, a democracia decorre de um processo lento (muito lento no caso do Ocidente). A ins-talação da democracia exigiria (prova-velmente) a existência de uma sociedade civil e o desenvolvimento, pelo menos parcial, de uma classe média e /ou uma tradição de participação popular no pro-cesso político.

Alguns Estados árabes preenchem, até certo ponto, essas características que im-plicariam na possibilidade de criação ou fortalecimento de novas normas de legi-timidade favoráveis a experiências de or-dem democrática. Seriam, essencialmente, os Estados consolidados. O maior deles, o Egito, certamente apresenta essas condi-ções favoráveis. O país gozou de um siste-ma político autônomo e no século XX sua monarquia, com regime liberal, (com as-petos negativos) não alcançou uma demo-cracia plena.

Os países do Zagreb (ex-francês) tam-bém. A pequena Tunísia, sobretudo, parece possuir as características necessárias que tenderiam para modelos democráticos, por constituir um Estado consolidado.

Essas sociedades do Oriente Médio e África do Norte, a que se fez referência, eventualmente, seguirão rotas que se apro-ximam da democracia, talvez adotando modelos próprios onde certos partidos se-riam inspirados por ou atenderiam aos princípios liberais semelhantes aos que se consolidam em certos Estados de cultura islâmica. A Turquia, como potência regio-nal respeitada, poderia servir de exemplo.

O regime turco, ao que tudo indica, desempenhará, provavelmente, um papel crescente em toda a região. A Turquia mo-derna apresenta um exemplo de secularis-mo institucionalizado desde as reformas de Kemal Ataturk, mas que se inclina, hoje, para um secularismo (já referido an-

teriormente) cuja linha aponta para uma reconciliação com o Islã e (relativamente) distante de qualquer modelo semelhante ao “laicismo estrito de tradição francesa”.

Já as chamadas sociedades tribais difi -cilmente alcançariam modelos democráti-cos na medida em que o poder tende a se basear, ali, em chefi as tradicionais ou em relações pessoais.

As sociedades sectárias exigiriam po-deres autoritários ou então, delicadas cos-turas políticas entre várias confi ssões, já tentadas no Líbano, mas cujo êxito parece complexo.

Caberia fazer uma referência específi ca à Arábia Saudita. O país não foi ou não foi ainda, sacudido pela onda de rebeliões do Mundo Árabe. A sua extrema importância como produtor de petróleo é amplamente conhecida. Se viesse a sofrer uma sacudida política, que já alcançou países próximos, as repercussões sobre os preços internacio-nais seriam, evidentemente, desastrosas para a economia mundial. No entanto, o poder do governo central, derivado da ri-queza do petróleo, é tamanho que lhe permitirá, provavelmente, amortizar qual-quer situação de crise, como já foi lembra-do acima.

De que maneira a crise árabe afetaráa sociedade internacional? O mundo ex-pressa perplexidade diante da revolta do Oriente Médio e da África do Norte.

Foram sacudidas ou estremecidas as alianças existentes, estreitas no caso do Egito, com os EUA e Israel, cujos interes-ses foram afetados (até agora) de maneira negativa.

São signifi cativos certos gestos como o trânsito de navios de guerra iranianos pe-lo canal de Suez. Por outro lado, comenta--se que o Egito pediria uma revisão dos contratos de exportação de gás para Israel (e a Jordânia). O Egito, em suma, se distan-cia de Israel, sem que, ao que tudo indica, possa ocorrer uma confrontação armada

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diante da consciência geral, na região, da superioridade militar israelense.

Como foi amplamente divulgado, após o início do confl ito armado na Líbia, os paí-ses europeus França e Grã-Bretanha con-centraram sua atenção na guerra civil que se iniciara naquele país. A estratégia do con-trole do espaço aéreo, já usada em Kosovo e no Iraque, foi apresentada como solução para impedir o êxito das forças do coronel Gaddafi . Essa ação se justifi cou na resolu-ção da ONU destinada a proteger as popu-lações civis (a qual não autoriza uma ação destinada à mudança de regime na Líbia ).

Os EUA adotaram uma posição relati-vamente cautelosa. Inicialmente, aceitaram dirigir as operações aéreas. Poucos dias depois, passaram o comando das opera-ções à OTAN e praticamente se retiraram das operações, prestando uma assistência, basicamente, logística.

A resistência do coronel Gaddafi se mostrou mais tenaz do que havia sido previsto. Apesar dos ataques da OTAN (ou melhor, de parte da OTAN), a guerra civil continua e se delineia um impasse.

Duas observações podem ser apresen-tadas. A primeira diria respeito aos limites do poder norte-americano. Os EUA já en-frentam a guerra no Afeganistão. O confl i-to no Iraque não foi ainda resolvido. Um terceiro confl ito num país islâmico parece-ria excessivo, além de ser muito custoso. A crise na Líbia diz respeito mais aos euro-peus que aos interesses norte-americanos. A grande potência reconhece, claramente, limites ao seu poder e transfere responsa-bilidades para outros poderes.

A segunda observação se refere à Líbia propriamente dita. Apesar da exposição midiática, verifi cada no mundo inteiro, o país desempenha um papel muito limita-do no Mundo Árabe.

O que ocorre na Líbia pouco repercutirá no Oriente Médio ou na África do Norte. A Líbia é mais importante como país africano

do que como potência árabe. Foi prestada assistência líbia a vários países africanos in-clusive, aparentemente, à ANC sul-africana.

A Líbia, enfi m, é também importante para Europa, em particular para a Itália, como barreira para a temida imigração clandestina em direção ao continente eu-ropeu, inclusive, a que tem por origem a África subsaariana. O país, ainda, consti-tui um produtor apenas médio de petró-leo e a suspensão de sua produção atinge os preços mundiais simplesmente por mo-tivos especulativos.

Os países europeus ou certos países europeus, basicamente França e Grã-Bre-tanha, após a atitude prudente dos EUA, tentam desempenhar na Líbia um papel de grandes potências que agem numa área de seu interesse específi co (essa linha já se registrara na chamada Guerra de Suez em 1956, e não foi, então, bem-sucedida).

Os ataques aéreos à Líbia do coronel Gad dafi , começaram com bombardeios fran co-britânicos. Existiriam, inclusive, mo-tivos de política interna que favoreceriam os atos do governo francês, os quais podem ser interpretados como a expressão de uma política de prestígio com motivos eleitorais.

A ofensiva europeia já levou sinais de dúvida ou insatisfação a várias nações, in-clusive aos BRICs, na medida em que o mandato da ONU aprovado no CSNU, so-bre a Líbia, diz respeito à proteção de po-pulações civis e não à mudança de regime, a qual constitui precedente delicado, ainda que se apresentem motivos éticos para a sua execução.

A mudança de regime, ainda, possivel-mente exigiria uma intervenção militar por terra e participação na guerra civil que ali se desenvolve, o que não constitui opção fácil.

O poder europeu mostra hoje os seus limites e parece encontrar difi culdades em pôr fi m ao reinado do coronel Gadda-fi . A solução, possivelmente, tenderá a ser política.

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Paradoxalmente, por outro lado, odesenvolvimento de operações militares na Líbia poderia contribuir (por enquan-to) para a defesa do Irã. Qualquer ataque ao território iraniano constituiria, com os confl itos de Afeganistão, Iraque (ainda não totalmente resolvido) e agora Líbia, numa quarta operação militar frente a um país islâmico. Uma opção delicada, com o preço do petróleo no nível de 120 dólares por barril, forças aéreas norte--americanas engajadas no Mediterrâneo e tendo os EUA, as suas bases no Golfo Pérsico e Bahrein perto de uma situação de revolta. Em suma, a situação na Líbia pareceria sugerir prudência, também, frente ao Irã.

No que diz respeito ao Brasil, já fomos alcançados pela alta dos preços do petró-leo decorrentes do confl ito líbio. Por outro lado, o Brasil agiu com cautela. Absteve-se no Conselho de Segurança do voto na re-solução referente ao controle aéreo da Lí-bia, adotando linha semelhante à da Ale-manha, Rússia, China e Índia. A prudência demonstrada pelos EUA e pela Alemanha na questão do uso da força naquele país parece, como já dito, confi rmar que o uso da força ali poderia constituir uma opção basicamente europeia, ou melhor, de cer-tos países europeus, mas não, necessaria-mente, da comunidade mundial.

Tentando apresentar uma conclusão ge-ral diante da complexidade do quadro po-

lítico que sempre existiu no Oriente Médio e em nível menor na África do Norte, veri-fi camos hoje os contornos de um verdadei-ro caleidoscópio. Podemos afi rmar que o Mundo Árabe não voltará a ser o que foi. As manifestações da “rua árabe”, que hoje se expressam desordenadamente, talvez não impliquem sempre em mudanças posi-tivas de regime. Serão, no entanto, escuta-das pelos respectivos governos, com aten-ção e talvez com preocupação.

O ideal ou o sonho da democracia esta-rá presente com mais força do que nunca na região. A sua consagração, como ocor-reu na maior parte da América Latina, se-rá certamente mais lenta. Os países da re-gião continuam a enfrentar o complexo problema da adaptação de seus eventuais secularismos à tradição islâmica. Proble-ma complexo, mas não impossível de re-solver como se verifi cou em outras socie-dades do mundo islâmico como a Turquia e a Indonésia.

Seria possível imaginar, fi nalmente, que a “Primavera” a que assistimos correspon-da a um verdadeiro despertar de um uni-verso cujas relações foram frequentemente (mas não sempre) complexas, no passado, com o Ocidente. Talvez seja possível explo-rar ou dar início à exploração de novos caminhos que permitam verdadeiros diá-logos do resto do mundo, inclusive o oci-dental, com uma comunidade herdeira de uma grande civilização.

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