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Teologia como ciência A teologia e as ciências são realidades históricas. Sua relação depende fundamentalmente do conceito que se tem de ciência e de teologia nos diferentes momentos da história. Varia, portanto, segundo se desenvolve a consciência humana e se modificam as condições sociais, cosmovisões, ideologias, interesses, em que tal relação se situa. a. Submissão da ciência à teologia Teologia e ciência viveram longa lua-de-mel ou, mais exatamente, matrimônio patriarcal de fidelidade. As ciências dependiam da teologia que desempenhava o papel de rainha. Tomás de Aquino, nesse contexto, define com rigor a relação entre teologia e ciência, servindo-se do conceito aristotélico de ciência e readaptando-o de tal modo que a teologia lhe realiza as condições básicas. Ciência define-se, neste sentido, como conhecimento certo e sempre válido, resultado de dedução lógica. Certo, porque procede de evidências primeiras e indemonstráveis. Dedutivo, porque articula as conclusões com os princípios universalmente válidos por meio de raciocínios necessários. Perfeito, porque atinge as coisas em seus princípios essenciais e necessários. Por conseguinte, ciência pretende conhecer, de maneira certa, as causas ou razões de ser. Teologia diz-se ciência, não no sentido de ter evidência imediata de seus princípios, a saber, das verdades reveladas, mas enquanto ciência subordinada à ciência de Deus. Os princípios da teologia só tornam-se evidentes na ciência mesma de Deus, i. é, na ciência que Deus tem de si. A teologia recebe da ciência de Deus — ciência subordinante — os seus princípios. Está em continuidade com essa ciência de Deus, em que as verdades reveladas participam da evidência divina pela revelação e fé. É conhecimento certo e dedutivo, mas a seu modo. A teologia, como ciência subalterna, subordina-se à ciência superior de Deus. Adquire, por isso, mais dignidade que aquelas que se fundam em princípios conhecidos à luz natural do intelecto e por si evidentes. Estribando-se na própria ciência de Deus, que não se pode equivocar nem pode enganar-nos, toda verdade teológica se faz normativa para as outras ciências. Em qualquer conflito de intelecção, a teologia nessa compreensão levava vantagem inegável. Tutelava, por isso, tranqüilamente todos os outros saberes humanos. 1

Teologia Como Ciência

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Teologia como cincia

A teologia e as cincias so realidades histricas. Sua relao depende fundamentalmente do conceito que se tem de cincia e de teologia nos diferentes momentos da histria. Varia, portanto, segundo se desenvolve a conscincia humana e se modificam as condies sociais, cosmovises, ideologias, interesses, em que tal relao se situa.

a. Submisso da cincia teologiaTeologia e cincia viveram longa lua-de-mel ou, mais exatamente, matrimnio patriarcal de fidelidade. As cincias dependiam da teologia que desempenhava o papel de rainha. Toms de Aquino, nesse contexto, define com rigor a relao entre teologia e cincia, servindo-se do conceito aristotlico de cincia e readaptando-o de tal modo que a teologia lhe realiza as condies bsicas.Cincia define-se, neste sentido, como conhecimento certo e sempre vlido, resultado de deduo lgica. Certo, porque procede de evidncias primeiras e indemonstrveis. Dedutivo, porque articula as concluses com os princpios universalmente vlidos por meio de raciocnios necessrios. Perfeito, porque atinge as coisas em seus princpios essenciais e necessrios. Por conseguinte, cincia pretende conhecer, de maneira certa, as causas ou razes de ser.Teologia diz-se cincia, no no sentido de ter evidncia imediata de seus princpios, a saber, das verdades reveladas, mas enquanto cincia subordinada cincia de Deus. Os princpios da teologia s tornam-se evidentes na cincia mesma de Deus, i. , na cincia que Deus tem de si. A teologia recebe da cincia de Deus cincia subordinante os seus princpios. Est em continuidade com essa cincia de Deus, em que as verdades reveladas participam da evidncia divina pela revelao e f. conhecimento certo e dedutivo, mas a seu modo.A teologia, como cincia subalterna, subordina-se cincia superior de Deus. Adquire, por isso, mais dignidade que aquelas que se fundam em princpios conhecidos luz natural do intelecto e por si evidentes.Estribando-se na prpria cincia de Deus, que no se pode equivocar nem pode enganar-nos, toda verdade teolgica se faz normativa para as outras cincias. Em qualquer conflito de inteleco, a teologia nessa compreenso levava vantagem inegvel. Tutelava, por isso, tranqilamente todos os outros saberes humanos.

b. Surgimento dos conflitosCom o advento da cincia moderna com Coprnico, Galileu Galilei e Newton, nascem os primeiros conflitos entre teologia e cincia. Aparece claro o choque entre as pretenses de ambas. A teologia, acostumada ao regime de cristandade, oferecia um sistema de representao completo e global da realidade, apoiado sobre a base da f, como princpio integrador e totalizador. As cincias modernas invertem o mtodo. Partem da experincia verificvel, matematizvel e tentam estudar os fenmenos, as causas segundas, em termos de leis fsicas, constantes, universalmente vlidas, independentemente do aval de outra cincia. Sua verdade se apia na racionalidade da experincia que se deixa repetir e verificar em determinadas condies. E suas verdades so pensadas em relao s coordenadas que elas mesmas se traam. A certeza j no se fundamenta nem na autoridade da Escritura nem na de filsofos da Antiguidade, mas em sua verificao experimental.O conceito moderno de cincia , por conseguinte, outro. Os conhecimentos, que formam o corpo terico das cincias, adquirem-se por meio de mtodos muito precisos de experimentao, nos quais as afirmaes se provam imediatamente, podem ser verificadas e por isso admitidas universalmente, desde que se respeitem as condies do experimento. As cincias pretendem ter um controle de todas as proposies pela experimentao. Seus conhecimentos so elaborados e controlados por procedimentos de demonstrao e verificao.Evidentemente, com esse conceito de cincia, viveu-se um primeiro momento de mtua condenao. A teologia no cumpria essas condies de cincia e, por isso, era rejeitada como tal. Por sua vez, a teologia adjudicava ao orgulho humano esta pretenso de absoluta autonomia. O processo contra Galileu Galilei se fez simbolicamente o marco deste conflito. Fato histrico assaz conhecido, que finalmente encontrou seu desfecho com o reconhecimento por parte da Igreja de seu equvoco e pela plena reabilitao do cientista italiano.

c. Soluo intermdia da harmonizao apologticaEm seguida, buscou-se harmonizao apologtica. Mantendo-se enquanto possvel as afirmaes teolgicas, bblicas ou outras, idnticas em sua materialidade literal, de um lado, e as afirmaes cientficas que pareciam contradiz-las, de outro, torciam-se os textos a tal ponto que se encontrava uma harmonizao. Nesta linha, tornou-se famoso o livro at hoje reeditado: E a Bblia tinha razo. Tal soluo precria no resistiu crise provocada pela considerao epistemolgica sobre os diferentes tipos de saber.

d. O momento da ruptura: positivismo da cinciaEntrou-se em nova fase de relacionamento. Da bela unidade tradicional passando pelo conflito, chegou-se ao divrcio com liberdade total para cada cnjuge. As cincias, independentemente da teologia, vo fixando sua episteme prpria, e a teologia esfora-se por ser ainda reconhecida com certa dignidade no consrcio das cincias. Inverte-se o cenrio. Antes as outras cincias mendigavam o beneplcito da teologia. A filosofia se dizia serva da teologia (ancilla theologiae). Agora a teologia debate-se para ser considerada com seriedade e no relegada ao mundo das fbulas.Cada mundo de saber explicita sua verdade prpria, intrasistmica, autnoma, irredutvel a qualquer outra. Ela se torna instncia crtica de si mesma e no de outras, nem se deixa criticar por outras. Reina viso positivo-hermenutica no sentido de que cada interpretao cientfica delimita ela mesma seu mundo de verdade, seus parmetros, sua objetividade. As cincias exatas reivindicam a explicao dos fenmenos por razes imanentes e verificveis em condies estabelecidas. As cincias humanas posicionam-se no universo do sentido das coisas. O modelo principal, cabia s cincias positivas, exatas, experimentais. As outras se moldavam por elas e eram tanto mais cincia quanto mais se aproximavam desse modelo positivista e empirista, que reduzia a cincia ao experimental e a experincia ao mbito do sensvel, relegando para o mundo subjetivo e fabuloso tudo o que transcendesse tal esfera sensvel e constatvel. Nesse sentido, cincia se dizia aquele conjunto de teses formado unicamente com o auxlio de mtodos precisos de experimentao. As afirmaes provam-se imediatamente por sua aptido em suscitar aplicaes concretas que efetivamente so admitidas por todos.Esta viso positivista marcou a compreenso vulgar de cincia, como se ela fosse baseada na evidncia slida e irrefutvel, e como se suas descobertas fossem inquestionveis com a pretenso de desvendar todas as reas da experincia humana. Seria questo de tempo. Ela gozaria de uma neutralidade irrefutvel, j que o cientista abordaria a realidade sem nenhum pressuposto.Evidentemente nesse quadro da cincia moderna, a teologia faz pobre papel. Tendo como objeto Deus, realidade transcendente e inexperimentvel no sentido positivista, ela alijada do mundo cientfico. O filsofo positivista A. Comte relegara a religio o mesmo vale para a teologia ao mundo da infncia da humanidade e das pessoas. A idade adulta da razo considera-a definitivamente superada como toda possvel f em Deus.

e. Momento hermenuticoA discusso vai mais longe. A dvida, a suspeita, a crtica bateram s portas da pretenso objetivista e empirista da concepo positivista da cincia. A experincia cientfica, exemplar mximo do dado objetivo, envolvida pela suspeita hermenutica e ideolgica. Hermenutica, ao afirmar-se que no h puro dado. Todo dado interpretado. A experincia tem a face objetiva da presena do dado, mas tambm implica a percepo desse objeto pelo sujeito que o penetra e o exprime em linguagem. E, ao fazer isso, interpreta-o. Suspeita ideolgica, porque todo conhecimento reflete interesse. Rui o universo frio e assptico do conceito positivista de cincia. Por revelar viso interessada e querer passar por absoluta e apodtica, torna-se equivocada.Institui-se a distino entre o xito instrumental da cincia que permite prever corretamente o funcionamento do mundo natural e as teorias cientficas pelas quais os cientistas descrevem tal funcionamento de modo complexo e objetivo. Enquanto h unicidade e neutralidade da cincia no controle e previso do comportamento de nosso mundo, h diversidade de teorias explicativas, conflitivas entre si e carregadas de valor. Se a cincia instrumental se rege pela perfeita adequao ao mundo fsico, as teorias, por sua vez, se definem pela coerncia interna e pelo fato de obter consenso entre os cientistas.Com efeito, a multiplicidade de possveis interpretaes impede de recorrer correspondncia emprica pela via da verificao. Questiona-se ento a objetividade absoluta e impessoal das teorias cientficas.Caminha-se, assim, para novo patamar de relao. Toda experincia, tambm a cientfica, ao converter-se em teoria, reflete a interpretao do sujeito, traduzida em determinada linguagem. Este sujeito pode ser a comunidade cientfica, que se relaciona com o objeto mediante modelos, categorias ou paradigmas. Ela os constri para captar e interpretar o dado em discurso cientfico. Ora, sob este aspecto, todas as cincias, inclusive a teologia, sofrem esse mesmo procedimento. Submetem-se a este mesmo estatuto epistemolgico. Em outros termos, toda cincia interpreta modelarmente a realidade, seja explicando-a, seja dando-lhe sentido, ao compreend-la. Explica interpretando, interpreta explicando.A viso positivista pretendia pr a subjetividade totalmente entre parnteses. Entretanto, a subjetividade entra no centro da concepo de cincia. No se trata de um sujeito abstrato, nem de uma razo pura, mas da coletividade pesquisadora e geradora de cincia. H uma subjetividade coletiva inserida na histria, articulada num horizonte sociopoltico e movida por interesse.Mais. As teorias de W Heisenberg e N. Bohr levam adiante a reflexo, sobretudo em relao ao mundo atmico. No se consegue nenhuma previso de comportamento global nesse microcosmo. As partculas no podem ser conhecidas em si mesmas, mas somente em sua relao com o observador. A ocular do observador define tambm o fenmeno e no simplesmente o capta.A comunidade cientfica trabalha com paradigmas, que exprimem o conjunto de pressupostos conceituais e metodolgicos de determinada tradio cientfica e a partir dos quais os fenmenos so interpretados. Quando, porm, novo fenmeno descoberto relevante j no cabe dentro desse paradigma, elabora-se outro diferente daquele vigente, sob o influxo da intuio genial de algum cientista. Acontece uma revoluo cientfica, como sucedeu nos casos da passagem do paradigma ptolomaico para o newtoniano, e deste para o einsteiniano.Os interesses das cincias exatas e das cincias humanas revelam-se diversos. Mas so interesses. As primeiras buscam um acmulo de informaes com o objetivo de dominar com xito a natureza e seus processos. E, ao lado desse interesse geral, somam-se outros interesses ainda mais ideolgicos. Quando a comunidade cientfica americana investiu para produzir a bomba napalm, certamente esteve presente o interesse geral de domnio das leis qumicas. Mas por que precisamente a bomba napalm e no outra composio qumica? Isso j no se explica, nem pela pura objetividade das leis qumicas, nem pelo interesse geral de conhecimento e domnio da natureza, mas revela conexes econmico-polticas, ligadas guerra do Vietn.Os interesses epistemolgicos das cincias humanas aparecem mais claramente vinculados com o objetivo de incrementar, ampliar a interao e comunicao entre as pessoas dentro de um universo de sentido. Elas usam modelos e paradigmas que permitem ao ser humano situar-se em suas relaes consigo, com os outros e com o mundo, por meio do conhecimento de seus mecanismos e de seu sentido em vista de construir vida mais humana. Evidentemente, a liberdade humana pode perfeitamente inverter o interesse fundamental que justifica o nome de cincias humanas, ao orientar seu estudo e pesquisa no sentido de ampliar a explorao sobre o ser humano (...).A teologia utiliza tambm modelos e paradigmas para entender seu objeto central, a saber, a autocomunicao de Deus na histria em aes e palavras. Tem o mesmo estatuto epistemolgico no sentido de aproximar-se da revelao de Deus com categorias, matrizes, paradigmas interpretativos, hauridos da filosofia e das experincias humanas. Alm disso, deixa-se mover pelo interesse maior de interpretar a Palavra de Deus para dentro da histria humana em vista de sua libertao. Infelizmente, tambm a liberdade humana pode transgredir esse estatuto emancipatrio da teologia, como cincia humana hermenutica, e transform-la em uma teia do processo de dominao. A clareza da percepo, no s dessa possibilidade, mas de sua concretizao em determinadas categorias teolgicas, levou J. L. Segundo ao projeto teolgico de Libertao da teologia.A teologia, fiel ao seu propsito ltimo e fundamental de ser libertadora, intenta dialogar com as outras cincias exatas e humanas no sentido de mutuamente se criticarem e se estimularem em vista da concretizao do projeto emancipatrio, sentido ltimo de toda cincia feita pelo ser humano. Nesse movimento de compreender o mundo, criando modelos interpretativos e transformadores, e de dar-lhe sentido, as cincias podem dialogar com a teologia, cujo nico escopo desvelar o sentido ltimo e transcendente da vida humana. Pois ela priva com o mistrio de Deus, realidade ltima e fundante de todo sentido e de toda cincia. A mais positiva e exata cincia remete, em ltima instncia, ao mistrio do ser, do real Deus , como um no-saber que sustenta todo saber. E a teologia vive desse e para esse mistrio. Nesse nvel se restabelece plenamente o dilogo entre teologia e cincia.

f. ConclusoA teologia cumpre determinadas funes da cincia, mas que tambm no responde a outras. Diz-se cincia de maneira original. A cincia, enquanto voltada para o mundo do fenmeno, do constatvel, do verificvel, e, portanto, sujeita ao processo de verificao e comprovao de suas verdades pela via da experimentao ou da simulao, no corresponde natureza da teologia. Uma vez aceita a pluralidade dos jogos lingsticos, dos diversos saberes, das diferentes maneiras de conduzir o prprio mtodo, de pautar seu rigor terico e de fazer parte de uma comunidade cientfica como expresso moderna de cincia, a teologia faz-lhe pleno jus.

Joo Batista Libanio, da obra: "Introduo Teologia", Loyola, 2010, 4 ed, cap.2.

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