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Disciplina: Teologia do Antigo Testamento Prof. Dr. Nelson Kilpp Segundo tema: Monoteísmo no antigo Israel – uma fonte de conflitos? 1. Monoteísmo – um termo problemático O monoteísmo é um conceito controvertido entre teólogos e filósofos. Introduzido por filósofos do século XVII e XVIII, 1 o termo marcou profundamente a história da Europa moderna. O monoteísmo foi considerado a forma mais nobre da religião em contraposição ao politeísmo “primitivo” dos “pagãos”. Era tido como a forma verdadeira e racional da religião. Esta maneira de pensar justificou, muitas vezes, a subjugação e o massacre de povos politeístas, tidos como “primitivos” e religiosamente “subdesenvolvidos” e a destruição de culturas autóctones por invasores europeus cristãos. Diversas vezes, atribuiu-se ao monoteísmo uma vontade expansionista com a intenção de “converter” as nações “ignorantes” ao único Deus verdadeiro, que naturalmente é o “nosso” Deus, o Deus europeu, nunca o Deus dos outros. Internamente vinculou-se, muitas vezes, o monoteísmo a uma sociedade patriarcal e teocrática, que exige a submissão de todos a um governante absolutista, instituído pelo Deus supremo. 2 A fé monoteísta cristã também foi responsabilizada por estimular o extermínio de muçulmanos nas grandes cruzadas da Idade Média. Atualmente, o monoteísmo está sendo acusado de estar por trás do conflito entre judeus e palestinos – justamente duas religiões monoteístas. Será que toda esta violência contra povos e culturas do passado e do presente pode ser atribuída ao fato de pessoas crerem em um único Deus? 2. Algumas definições: Em primeiro lugar devemos clarear alguns conceitos. 3 O termo monoteísmo é utilizado para designar que existe apenas um único Deus, o Deus criador e mantenedor, o Senhor da história, o Deus do universo. Nega-se a existência de outras divindades. As diferentes experiências e manifestações religiosas são atribuídas a um mesmo e único Deus. Contudo, para descrever a realidade religiosa do antigo Israel na época do Antigo Testamento, o termo monolatria é mais adequado. A monolatria admite a existência de outros deuses e deusas, mas cultua e adora um único Deus. É o que pressupõe, por exemplo, o primeiro mandamento: “Não terás outros deuses 1 Conforme Gregor Ahn. Monotheismus I. In: Hans-Dietrich Betz et al. (ed.) Religion in Geschichte und Gegenwart. 4.ed.,V.5. Tübingen: Mohr Siebeck, 2002, col.1458, o termo “monoteísmo” foi cunhado pelo filósofo inglês Henry Moore, em 1660, mas foi desenvolvido especialmente pelos teóricos da teoria da evolução do século XVIII, como David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Charles de Brosse, e, no século XIX, por Auguste Comte, Herbert Spencer, entre outros (cf. Ake V. Strom. Monotheismus I. Religionsgeschichtlich. In: Gerhard Müller (ed.) Theologische Realenzyklopädie. V.23. Berlin: De Gruyter, 1994, p.234; Jürgen Moltmann. A unidade convidaditva do Deus uno e trino. Concilium 197, 1985, p.54). 2 Jürgen Moltmann. Op.cit., p.54s. Cf. também a crítica ao monoteísmo racionalista por parte de Joseph Comblin. Monoteísmo e religião popular. Concilium 197, 1985, p. 94s, 102s, a partir da perspectiva da religiosidade popular. 3 Cf. em especial. Hermann Vorländer. Der Monotheismus Israels als Antwort auf die Krise des Exils. In: Bernhard Lang (ed.) Der einzige Gott: Die Geburt des biblischen Monotheismus. München: Kösel, 1981, p. 93.

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Disciplina: Teologia do Antigo Testamento Prof. Dr. Nelson Kilpp

Segundo tema: Monoteísmo no antigo Israel – uma fonte de conflitos? 1. Monoteísmo – um termo problemático

O monoteísmo é um conceito controvertido entre teólogos e filósofos. Introduzido por filósofos do século XVII e XVIII,1 o termo marcou profundamente a história da Europa moderna. O monoteísmo foi considerado a forma mais nobre da religião em contraposição ao politeísmo “primitivo” dos “pagãos”. Era tido como a forma verdadeira e racional da religião. Esta maneira de pensar justificou, muitas vezes, a subjugação e o massacre de povos politeístas, tidos como “primitivos” e religiosamente “subdesenvolvidos” e a destruição de culturas autóctones por invasores europeus cristãos. Diversas vezes, atribuiu-se ao monoteísmo uma vontade expansionista com a intenção de “converter” as nações “ignorantes” ao único Deus verdadeiro, que naturalmente é o “nosso” Deus, o Deus europeu, nunca o Deus dos outros. Internamente vinculou-se, muitas vezes, o monoteísmo a uma sociedade patriarcal e teocrática, que exige a submissão de todos a um governante absolutista, instituído pelo Deus supremo.2 A fé monoteísta cristã também foi responsabilizada por estimular o extermínio de muçulmanos nas grandes cruzadas da Idade Média. Atualmente, o monoteísmo está sendo acusado de estar por trás do conflito entre judeus e palestinos – justamente duas religiões monoteístas. Será que toda esta violência contra povos e culturas do passado e do presente pode ser atribuída ao fato de pessoas crerem em um único Deus? 2. Algumas definições: Em primeiro lugar devemos clarear alguns conceitos.3 O termo monoteísmo é utilizado para designar que existe apenas um único Deus, o Deus criador e mantenedor, o Senhor da história, o Deus do universo. Nega-se a existência de outras divindades. As diferentes experiências e manifestações religiosas são atribuídas a um mesmo e único Deus. Contudo, para descrever a realidade religiosa do antigo Israel na época do Antigo Testamento, o termo monolatria é mais adequado. A monolatria admite a existência de outros deuses e deusas, mas cultua e adora um único Deus. É o que pressupõe, por exemplo, o primeiro mandamento: “Não terás outros deuses

1 Conforme Gregor Ahn. Monotheismus I. In: Hans-Dietrich Betz et al. (ed.) Religion in Geschichte und

Gegenwart. 4.ed.,V.5. Tübingen: Mohr Siebeck, 2002, col.1458, o termo “monoteísmo” foi cunhado pelo filósofo inglês Henry Moore, em 1660, mas foi desenvolvido especialmente pelos teóricos da teoria da evolução do século XVIII, como David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Charles de Brosse, e, no século XIX, por Auguste Comte, Herbert Spencer, entre outros (cf. Ake V. Strom. Monotheismus I. Religionsgeschichtlich. In: Gerhard Müller (ed.) Theologische Realenzyklopädie. V.23. Berlin: De Gruyter, 1994, p.234; Jürgen Moltmann. A unidade convidaditva do Deus uno e trino. Concilium 197, 1985, p.54). 2 Jürgen Moltmann. Op.cit., p.54s. Cf. também a crítica ao monoteísmo racionalista por parte de Joseph Comblin. Monoteísmo e religião popular. Concilium 197, 1985, p. 94s, 102s, a partir da perspectiva da religiosidade popular. 3 Cf. em especial. Hermann Vorländer. Der Monotheismus Israels als Antwort auf die Krise des Exils. In: Bernhard Lang (ed.) Der einzige Gott: Die Geburt des biblischen Monotheismus. München: Kösel, 1981, p. 93.

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diante de (além) mim.” Outros deuses existem, mas não devem ser cultuados, pelo menos não em Israel. Esta exigência de adoração exclusiva de Javé, o Deus de Israel, ainda não constitui um monoteísmo, pois admite que outros povos cultuem suas próprias divindades. O termo henoteísmo, por sua vez, é usado para designar a adoração temporária de um único Deus, em épocas ou ocasiões especiais (p.ex., em época de peste). Uma divindade recebe, por um certo tempo, uma adoração privilegiada. Um pouco mais difícil é definir o que se entende por politeísmo. Este pressupõe a existência e o culto simultâneo a diversas divindades, que podem associar-se num panteão. No entanto, pode-se falar de politeísmo caso houver um único Deus supremo e uma série de outros seres celestiais inferiores ao seu lado ou a seu serviço? Ou, então, já se trata de politeísmo quando se admite uma personificação do mal semi-autônoma ao lado do Deus supremo? Se respondermos positivamente a essas questões, grande parte do povo brasileiro provavelmente é mais politeísta do que se imagina.4 3. A experiência de fé dos pais e das mães de Israel Queremos voltar o olhar para os testemunhos do Antigo Testamento. Vamos, a seguir, destacar cinco cenários (pontos 3 a 5) da história da fé do povo de Israel sob a ótica do tema. Falaremos, inicialmente, da fé dos pais e das mães de Israel. No princípio, o antigo Israel aparentemente foi politeísta. A Bíblia guarda a lembrança de que pelo menos os antepassados de Israel cultuavam outros deuses. Js 24,2 lembra que os pais de Abraão serviam a outros deuses: “Além do Rio habitavam outrora os vossos pais, Taré, pai de Abraão e de Nacor, e serviam a outros deuses”. Em Gn 35,2-4, Jacó sepulta, sob o carvalho de Siquém, imagens de divindades do lar (“deuses estrangeiros”) e objetos relacionados ao seu culto: “Jacó disse [...]: Lançai fora os deuses estrangeiros que estão no meio de nós [...]! Eles deram a Jacó todos os deuses estrangeiros que possuíam e os anéis que traziam nas orelhas, e Jacó os enterrou sob o carvalho que está junto de Siquém”. Talvez o texto reflita uma antiga tradição de sepultar imagens de divindades para expressar que os pais e as mães de Israel, em uma determinada época, deixaram de cultuar seus deuses para aderir ao Deus Javé. Embora as histórias dos chamados patriarcas (Gn 12 a 36) pressuponham, na atual configuração, um único Deus, Javé, elas ainda preservam indícios de que cada grupo patriarcal ou cada clã tinha, na origem, sua própria experiência religiosa. Testemunha disso é a forma como se designa a divindade de uma família ou clã patriarcal: El Avraham (“Deus de Abraão”), El Yitsh�aq (“Deus de Isaque”) ou

El Yaaqov (“Deus de Jacó”). Ou seja, cada patriarca parece ter tido o seu Deus pessoal, com o qual teve uma experiência bem particular. Isso é corroborado pelo cognome que o Deus de cada família patriarcal recebe: o Deus de Isaque, por exemplo, pode ser denominado de “terror de Isaque” (pah �ad Yitsh�aq; Gn 31,42.53)5; o Deus de Jacó também pode ser designado de “o poderoso de Jacó” (abbir Yaaqov; Gn 49,24; Sl 132,2.5)6. Esses epítetos mostram que cada patriarca teve a sua própria e bem particular experiência religiosa com o seu Deus. Poder-se-ia falar, portanto, que, na época patriarcal, havia diversas divindades, cada família tendo o seu próprio Deus guardião, que zelava pela sobrevivência e o bem-estar de seu grupo de protegidos e pela continuidade da família através do nascimento de um filho, da resolução de conflitos internos ou da busca da esposa adequada para os herdeiros. Esse era o âmbito de atuação e competência dessas divindades dos pais e das mães de Israel.

4 Neste aspecto concordo com Joseph Comblin, quando afirma que concretamente talvez “não exista nem monoteísmo nem politeísmo no sentido rigoroso dos termos, mas sempre algo intermediário entre os dois” (op.cit., p.94). 5 Alguns preferem traduzir, a partir de uma raiz acádica, “parente de Isaque” (cf. Bíblia de Jerusalém). 6 Ventila-se a possibilidade de reproduzir a expressão por “touro de Jacó”.

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Importante para a nossa análise é que a fé dessas famílias se caracterizava por ser interativa e integradora. A semelhança de vida e de experiências das diversas famílias e clãs e a necessidade de convivência e de mútuo relacionamento fizeram com que as diversas experiências religiosas fossem integradas. Os diversos “deuses” se tornaram gradativamente um só: “o Deus de meus pais”.7 Essa capacidade integradora está à base da tendência monolátrica ou monoteísta do antigo Israel. Ela não rejeita, a princípio, as outras experiências religiosas, mas busca integrar os elementos considerados relevantes. Até elementos religiosos novos e diferentes dos costumeiros foram, assim, incorporados sem maiores problemas à fé dos pais e das mães de Israel. Ao entrarem em contato com a população cananéia da Palestina, as famílias patriarcais adotaram os seus santuários e se apropriaram das histórias contadas nos mesmos.8 O antiqüíssimo santuário cananeu de Betel, por exemplo, tornou-se também lugar da manifestação do Deus de Jacó (Gn 28,10-22). O Deus de Betel foi identificado com o Deus de Jacó. Dessa forma, narrativas pré-israelitas em torno de divindades ou numes cananaeus locais foram incorporadas ao acervo religioso de Israel. Exemplo disso é a narrativa da luta de Jacó com Deus no Jaboque (Gn 32, 23-33). A antiga história pré-israelita tratava de um espírito fluvial que atacava os que atravessavam o vau do Jaboque à noite. Na história original, este espírito perdia suas forças ao raiar do dia. Ao incorporar esta narrativa em seu acervo religioso, a fé israelita identifica obviamente o nume fluvial com seu Deus, Javé, correndo, neste caso, inclusive o risco de adotar elementos de tensão teológica. Por exemplo: como um homem pode lutar com Deus e segurá-lo de tal forma que Deus tem que implorar para ser solto (v.27: “Deixa-me ir, pois já rompeu o dia.”)? Isso não afronta a onipotência divina? Essa tensão é trabalhada mais tarde pelo profeta Oséias: “Ele [=Jacó] lutou contra um anjo e venceu, ele [=Jacó] chorou e lhe implorou” (Os 12,5). Essa capacidade da religião dos pais de integrar experiências religiosas, muitas vezes atribuídas a divindades diferentes, tornou-se a base da futura monolatria ou monoteísmo de Israel. Nesse caso, um importante aspecto do monoteísmo teria sido a capacidade de dialogar com o diferente, adotando o que não contradizia frontalmente o tradicional e rejeitando somente o que rompia com a identidade do grupo.9 4. O Deus da nação10 Diferente é a experiência religiosa quando se fala, no Antigo Testamento, do Deus do povo, da confederação tribal, da monarquia, da nação ou do Estado. Neste âmbito suprafamiliar, Deus tem outras características e funções: ele tem a tarefa de conservar intacta a nação, defendê-la dos inimigos, sendo responsável, portanto, também pelas vitórias militares e pela preservação da autonomia política de um Estado. Neste âmbito, acreditava-se, no antigo Oriente, que cada nação ou império tinha o seu Deus maior, que defendia a integridade da “sua” nação e, muitas vezes, também a família real. O Antigo Testamento expressa essa realidade da seguinte forma: “Quando o Altíssimo (elyon) repartia as nações, quando espalhava os filhos de Adão, ele fixou as fronteiras para os povos, conforme o número dos 'filhos de Deus';11 mas a parte de Javé foi o seu povo, o lote de sua herança foi Jacó” (Dt 32,8s).

7 Cf., a respeito, Werner H. Schmidt. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, p. 44ss. 8 Sobre as lendas dos santuários, cf. Werner H. Schmidt, op.cit., p. 60ss. 9 Walter Dietrich. Über Werden und Wesen des biblischen Monotheismus. In: Idem. “Theopolitik”: Studien zur Theologie und Ethik des Alten Testaments. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener,2002, p.73, fala em “monolatria inclusiva”. 10 Cf. para o que segue, em especial Erhard S. Gerstenberger. Theologies in the Old Testament. Minneapolis: Fortress, 2002, p.138ss,180ss; Werner H. Schmidt, op.cit., p.171ss, 178ss. 11 “Filhos de Deus” é a leitura da Septuaginta, que preservou o original; o texto massorético achou esse texto demasiadamente escandaloso e modificou-o, por isso, para “filhos de Israel”, o que obviamente não dá nenhum sentido.

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Para Israel, como para o antigo Oriente em geral, cada povo tem o seu próprio Deus maior. Javé escolheu Jacó-Israel como sua “parte” ou “lote”. Javé é o Deus de Israel; Israel é o povo de Javé. Existe um elo indissolúvel entre ambos. Mas isso não é exclusividade da fé israelita. Assim como Javé é Deus de Israel, Camos é o Deus de Moabe, Amun-Re é o Deus do Egito, Baal-Hadad, o Deus do arameus, Assur, o Deus dos assírios, Marduc, o Deus dos babilônios, etc. Temos aí um politeísmo com a tendência de afirmar, em cada povo ou nação, uma divindade maior como Deus do Estado. Essa tendência “monoteísta” interna, perceptível em quase todo o antigo Oriente, tinha a função de expressar a necessária unidade de um povo ou de um Estado. Os Estados e os impérios tinham interesse em acentuar esse monoteísmo, pois além de incentivar a coesão do povo em épocas de ameaça externa, ele geralmente solidificava o poder dos governantes. Por causa de sua função como defensor da nação, o Deus do Estado ou o Deus nacional geralmente adota traços de um Deus guerreiro, que lidera o “seu” exército nas batalhas e esmaga os “seus” inimigos.Também o Deus de Israel foi, por vezes, imaginado como sendo um Deus guerreiro, um comandante que lidera seus soldados na batalha: ele é o “Senhor dos exércitos”. Após uma sangrenta batalha de Israel, sob Josué, o texto bíblico conclui: “Não houve dia semelhante a este, nem antes nem depois dele, tendo Javé, assim, atendido a voz de um homem; porque Javé pelejou por Israel” (Js 10,14). No contexto de um dito sobre a arca, um paládio que garantia a presença de Deus nas batalhas, Nm 10,35 preserva um antigo grito de guerra: “Levanta-te, Javé, sejam dissipados os teus inimigos; e fujam diante de ti os que te aborrecem!” Poderíamos citar aqui diversos textos que narram batalhas sangrentas, todas elas justificadas pelo Deus nacional que defende o seu povo e derrota os inimigos. Devemos ser muito cautelosos na interpretação e no uso desses textos de violência, que se encontram especialmente nos livros de Josué e Juízes. Temos que admitir que, neste aspecto, Israel foi, na origem, igual a todas as outras nações. Foi um filho do seu tempo. A fé israelita ainda tinha que trabalhar teologicamente o conceito do Deus guerreiro. Isso vai acontecer, posteriormente, nos profetas bíblicos.12 Não se pode dizer que, nestes casos, o “monoteísmo” interno tenha sido responsável pelos conflitos entre as diversas nações. O que se pode dizer é que o conceito de um Deus do Estado ou do império podia ser utilizado não só para dar identidade e coesão ao povo, mas também para uni-lo em torno da defesa da pátria, contra os inimigos externos, e de projetos de expansão territorial. Isso se comprova na política imperialista dos poderosos impérios orientais para com as nações menores subjugadas. O grande império neo-assírio obrigava, por exemplo, as nações subjugadas a adotar os símbolos da religião assíria.13 Fazia parte da dominação imperialista impor o Deus do império, uma vez que este se havia demonstrado como sendo o mais forte. Nesse caso, a religião era utilizada para justificar a ambição e a opressão do poder imperial. 5. O Deus do Estado contra o Deus da família A imposição do Deus oficial do Estado também podia ocorrer para dentro, ou seja, sobre os membros da própria nação ou Estado. Após a unidade política de Israel estar ameaçada, no decorrer dos séculos VIII e VII a.C., por causa das constantes investidas imperialistas da Assíria, buscou-se, por exemplo, restabelecer a unidade e coesão do povo na chamada reforma deuteronômica, sob o rei Josias (622 a.C.). A reforma consistia em “purificar” a religião judaíta dos resquícios de cultos assírios e outros cultos “estrangeiros”, resgatar a unidade do povo, estabelecendo o culto a um

12 Cf., por exemplo, o que Amós diz sobre o “dia de Javé”, em Am 5,18-20. 13 Sobre o assunto, confira, p.ex., H. Spieckermann. Juda und Assur in der Sargonidenzeit. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1982. Parte da reforma do rei Josias, em 622 a.C., consistiu em retirar do templo de Jerusalém os símbolos religiosos assírios (2 Rs 23), como se verá a seguir.

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único Deus, o Deus nacional Javé, num único lugar de culto, o templo oficial do Estado em Jerusalém. Dessa forma se acreditava poder restabelecer a autonomia política e religiosa. Ainda que se possa entender os objetivos maiores, o resultado dessa reforma deve ter sido devastador para as diversas práticas religiosas no âmbito da família e da aldeia. A pluralidade das manifestações religiosas entre o povo foi considerada “idolatria” por razões de sobrevivência do Estado (cf. Dt 12,2-6; 13,7-9; 14,1-2). Aquilo que podemos chamar de religiosidade popular na época foi considerado atentado contra o primeiro mandamento. O Deus do Estado extrapolou, por assim dizer, a sua competência, determinando também a religiosidade local e das famílias, na qual predominavam conceitos e práticas mais próximas das necessidades imediatas das pessoas. 14 Não sabemos se estas medidas se fizeram acompanhar de violência. Mas, de qualquer forma, podemos afirmar que, neste caso, o poder político impôs a seus súditos a fé no Deus nacional e a prática de culto oficial e, além disso, fomentou a discriminação e até “demonização” de práticas religiosas mais próximas do povo, com a justificativa de manter ou recriar a coesão deste povo numa situação de crise. Em casos como este, surgem normalmente inimizades e conflitos. A causa dos mesmos, no entanto, não deve ser buscada na fé em um Deus único, mas no fato de o poder tentar impor uma única imagem de Deus, aquela que se identifica com uma determinada política do Estado.15 Mas, isto certamente não é o mesmo que crer num Deus único, universal e soberano sobre todas as pessoas e nações. 6. Os inícios do monoteísmo em Israel Geralmente se vincula o nascimento do monoteísmo como nós o concebemos atualmente com a experiência do exílio babilônico.16 O Estado de Judá sucumbiu aos babilônios sob Nabucodonosor no início do século VI a.C., o que redundou na maior crise teológica e existencial do povo judaíta: o fim da autonomia política, a destruição da cidade santa e do templo de Salomão e a deportação de considerável parte da população para a Babilônia fizeram ruir os sustentáculos da fé israelita. O Deus do império babilônico comprovou ser mais poderoso que o Deus Javé. Perguntava-se se ainda era “vantajoso” seguir cultuando um Deus que se mostrou incapaz de proteger o seu povo e defender a sua própria “residência”. O povo se sente abandonado por Deus. Entre os exilados, um profeta anônimo – denominado pela pesquisa de Segundo-Isaías – busca trabalhar esse sentimento de abandono de Deus:

Sião dizia: 'Yahweh me abandonou; o Senhor se esqueceu de mim.' Por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti. Eis que te gravei nas palmas da mão, teus muros estão continuamente diante de mim. (Is 49,14-16)

Conforme o mesmo profeta, o desastre que aconteceu não foi sinal da impotência do Deus de Israel nem foi destino cego. Pelo contrário, tudo foi resultado da culpa do próprio povo: Deus repudiou seu povo, por causa da sua maldade (Is 50,1; 40,2). Além disso, o fato de ter cumprido o que fora anunciado anteriormente pelos profetas comprova que esse Deus não é fraco, mas poderoso (43,9; 44,7s). O desânimo, a impotência, a falta de perspectiva dos exilados leva o profeta a reafirmar que

14 Martin Rose. Der Ausschliesslichkeitsanspruch Jahwes: Deuteronomische Schultheologie und die

Volksfrömmigkeit in der späten Königszeit. Stuttgart: Kohlhammer, 1975, p.265ss. 15 De acordo com Walter Dietrich, op.cit., p.79, violência e opressão geralmente surgem quando a religião (não só a monoteísta) se unir com o poder e não houver o devido controle político ou uma ética autocrítica. 16 Cf. Mark S. Smith. The Origins of Biblical Monotheism. Israel's Polytheistic Background and the Ugaritic

Texts. New York: Oxford University Press, 2001, p.9s, 153s; Hermann Vorländer, op.cit., 86, 94, 101ss.; Erhard S. Gerstenberger, op.cit., p.215ss.

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Javé é poderoso e único. O Deus do povo esmagado e humilhado torna-se o Deus universal.17 É ele que estava por trás dos acontecimentos do passado, é ele que, no futuro, tomará a mão de Ciro, o rei persa, para vencer as nações opressoras e permitir o retorno do povo deportado (Is 45). Neste contexto “pastoral” aparecem as afirmações mais claras do que podemos chamar de monoteísmo. “Eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há Deus” (Is 44,6); ou: “Antes de mim nenhum Deus foi formado e depois de mim não haverá nenhum. Eu, eu sou Iahweh, e fora de mim não há Salvador” (43,10s). Estas afirmações monoteístas são, na realidade, tentativas de reafirmar ao povo que o seu Deus aparentemente fraco é o único capaz de ajudar.18 Os ídolos babilônicos são de madeira e de metal e, por isso, não são capazes de ajudar (44,9-20). Após perder as instituições que formavam as bases de sua religião e após ser derrotado e humilhado pelo império babilônico, o povo de Israel conseguiu manter sua identidade e sua fé na reafirmação do poder salvador de seu Deus, Javé. Além dessa dimensão existencial e pastoral, certamente a experiência num país estrangeiro e multiétnico contribuiu para uma visão mais abrangente de seu Deus. Javé não está confinado ao “seu” território, ao “seu” templo em Jerusalém e ao “seu” povo; ele também se faz presente em terras estrangeiras; o seu poder extrapola limites espaciais e étnicos. A sua atuação não está restrita aos próprios exilados. Deus concede o bem-estar aos seus fiéis através do bem-estar de toda a cidade – não-israelita – onde os exilados vivem (Jr 29,7). 7. Entre o fechamento e a abertura A mais clara noção de monoteísmo Israel teve quando estava derrotado e impotente. É claro que, nestas condições, o monoteísmo serviu para preservar e resgatar a identidade, quando não havia nenhuma outra instituição capaz de fazê-lo. Por motivos óbvios, este “monoteísmo” não levou a nenhum confronto político com o império. A comunidade judaíta era uma minoria impotente, perdida no grande império babilônico. O monoteísmo possibilitou a sobrevivência do povo. A conflitos essa exigência monolátrica levou somente mais tarde, na época de Esdras e Neemias, quando o contexto já era outro: parte do povo havia retornado à pátria e reconstituído a comunidade judaica em torno do templo de Jerusalém. Vivia, agora, em relativa liberdade, com certa autonomia para gerir os assuntos políticos e religiosos. Na ânsia de não perder a sua identidade religiosa e com medo de influências estrangeiras, o poder religioso e político constituído, com o favor do império persa, promoveu uma repressão dos que não professavam a fé no Deus único Javé, assim como era concebida pelos ex-deportados. Na metade do século V, Esdras e Neemias tomaram, em nome desse “monoteísmo”, medidas políticas drásticas como a expulsão de não-israelitas, a dissolução de matrimônios mistos e a “demonização” de experiências religiosas que não seguiam a cartilha dos judaítas exilados que haviam retornado à sua pátria. Neste caso, nem se trata de um determinado Deus que foi imposto a outro, pois os moradores da Palestina que não pertenciam ao grupo dos regressos do exílio cultuavam o mesmo Deus Javé. Trata-se, isto sim, de uma determinada expressão religiosa e prática de culto que se impôs, à força, a uma outra tida por não suficientemente pura. Mas o uso da força para impor uma determinada prática religiosa não impediu que vozes contrárias à xenofobia se manifestassem com muita ousadia. Um profeta desconhecido da época afirma que a casa do Deus de Israel não será casa de oração somente para Israel, mas para todas as nações (Is 56,7). Também o autor do livro de Jonas quer que os seus leitores entendam que o Deus de Israel está em toda a parte e que ele ouve e atende o clamor das pessoas de todas as religiões. Ele ouve as orações e aceita a manifestação religiosa dos marinheiros pagãos e dos habitantes de Nínive. No

17 Erhard s. Gerstenberger, op.cit., p.217. 18 Hermann Vorländer, op.cit., p.94, afirma que o monoteísmo do Segundo-Isaías tem significado “pastoral-soteriológico”.

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livro de Jonas, a prática religiosa da comunidade judaica é apenas uma entre muitas. E nem sempre a prática da comunidade judaica é a mais pura, espontânea e altruísta. A atuação despojada dos marinheiros pagãos, em Jn 1, por exemplo, está em flagrante contraposição à atitude mesquinha do judeu Jonas dentro do barco. De fato, se é o mesmo Deus que governa todo o universo e todas as nações, as práticas religiosas dos povos devem estar relacionadas, direta ou indiretamente, com esse Deus único. E o mesmo zelo com que o Deus de Israel intercede em favor do “seu” povo, Israel, em caso de necessidade e opressão, fará com que Deus interfira em favor de outras nações – inclusive inimigas de Israel, como os assírios de Nínive – para salvá-las da destruição. O livro de Jonas termina com uma pergunta: “Eu não teria pena de Nínive, a grande cidade, onde há mais de cento e vinte mil seres humanos, que não distinguem entre direita e esquerda, assim como muitos animais?” (Jn 4,11).19 Cabe ao leitor e à leitora responder se a misericórdia de Deus é válida também para os “outros” ou não. 8. Conclusão O respeito às experiências religiosas dos outros, assim como praticada pelos clãs ancestrais de Israel, é a atitude mais adequada à confissão de que há somente um único Deus, ainda que ele se manifeste de formas diferentes. Somos todos criaturas deste Deus; todas as nossas experiências religiosas devem, portanto, estar relacionadas com ele. Este Deus está presente nas manifestações religiosas das diversas culturas. A demonização de outras práticas representa, portanto, uma afronta ao próprio Deus universal. Mas a história nos ensina que o poder costuma acentuar, privilegiar ou impor um determinado Deus, ou melhor, uma determinada maneira de entender Deus e de cultuá-lo. O objetivo pode ser o de unir um povo em torno de uma causa comum, para preservar a sua identidade e existência. O objetivo, no entanto, pode também ser o de eliminar manifestações religiosas locais e populares para fortalecer, internamente, uma elite governante ou favorecer, externamente, uma política imperialista. Mas isso é uma instrumentalização do monoteísmo em favor de objetivos políticos e não pode ser identificado com uma autêntica convicção monoteísta.

19 Cf. meu comentário a respeito de Jn 1 e Jn 4, em Nelson Kilpp. Jonas. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1994.