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Teocomunicação Porto Alegre v. 42 n. 1 p. 5-18 jan./jun. 2012 Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-UsoNãoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported. A IGREJA EM SUAS ORIGENS: REVISITANDO OS ATOS DOS APÓSTOLOS THE CHURCH IN ITS ORIGINS: REVISITING THE ACTS OF THE APOSTLES Irineu José Rabuske* Resumo A partir da Conferência do Episcopado Latino-Americano em Aparecida, passou- se a falar em “discípulos missionários”. Nada mais sugestivo do que revisitar o livro dos Atos dos Apóstolos e o prototípico apóstolo das nações, Paulo. O livro de At, na verdade, narra os “atos” de Pedro e de Paulo. O apóstolo das nações torna-se paradigma para os discípulos missionários de nossos dias. PALAVRAS-CHAVE: Igreja primitiva. Missão. Apóstolo. Abstract Drawing from the Latin American Episcopal Conference in Aparecida, we started to talk about “missionary disciples”. Nothing is more suggestive than revisiting the book of Acts of the Apostles and the prototypical apostle of the nations, Paul. The book of At, in fact, narrates the “acts” of Peter and Paul. The apostle of nations becomes a paradigm for missionary disciples o four Day. KEYWORDS: Early Church. Mission. Apostle. Introdução As páginas que seguem têm seu lugar vivencial na própria sala de aula e espero que assim também sejam entendidas e reconhecidas. Desse modo, o texto tem função mais propedêutica do que polêmica, * Professor da Faculdade de Teologia da PUCRS. E-mail: <[email protected]>.

Teologia do Novo Testamento

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Teologia do Novo Testamento

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  • Teocomunicao Porto Alegre v. 42 n. 1 p. 5-18 jan./jun. 2012

    Os contedos deste peridico de acesso aberto esto licenciados sob os termos da LicenaCreative Commons Atribuio-UsoNoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported.

    A IGREJA EM SUAS ORIGENS: REvISItANDO OS AtOS DOS APStOLOS

    THE CHURCH IN ITS ORIGINS: REVISITING THE ACTS OF THE APOSTLES

    Irineu Jos Rabuske*

    Resumo

    A partir da Conferncia do Episcopado Latino-Americano em Aparecida, passou-se a falar em discpulos missionrios. Nada mais sugestivo do que revisitar o livro dos Atos dos Apstolos e o prototpico apstolo das naes, Paulo. O livro de At, na verdade, narra os atos de Pedro e de Paulo. O apstolo das naes torna-se paradigma para os discpulos missionrios de nossos dias.

    Palavras-chave: Igreja primitiva. Misso. Apstolo.

    Abstract

    Drawing from the Latin American Episcopal Conference in Aparecida, we started to talk about missionary disciples. Nothing is more suggestive than revisiting the book of Acts of the Apostles and the prototypical apostle of the nations, Paul. The book of At, in fact, narrates the acts of Peter and Paul. The apostle of nations becomes a paradigm for missionary disciples o four Day.

    Keywords: Early Church. Mission. Apostle.

    Introduo

    As pginas que seguem tm seu lugar vivencial na prpria sala de aula e espero que assim tambm sejam entendidas e reconhecidas. Desse modo, o texto tem funo mais propedutica do que polmica,

    * Professor da Faculdade de Teologia da PUCRS. E-mail: .

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    tendo em vista que a caminhada da Igreja no Novo Milnio continua decisivamente a se inspirar na caminhada das primeiras comunidades, nas origens crists. A leitura do livro dos At ilumina a caminhada da Igreja neste incio de Milnio, em sua busca constante de continuar fiel ao projeto de Jesus, como o foram as primeiras comunidades crists.

    A partir da Conferncia de Aparecida, consagrou-se o conceito discpulo missionrio. Nada mais adequado, portanto, revisitar a Igreja em suas origens, quando, no ardor da novidade, constituiu um movimento impulsionado pelo Esprito Santo e levado adiante pelos discpulos missionrios da primeira hora, entre os quais desponta, como figura maior, Paulo, o apstolo por excelncia. A partir de sua converso, tornou-se o discpulo missionrio por excelncia.

    1 Questes introdutrias

    1.1 O ttulo1

    Estamos to habituados a ler e a ouvir o ttulo Atos dos Apstolos, que talvez nem nos passe pela cabea o fato de estarmos diante de um ttulo que na realidade no corresponde exatamente ao texto em questo. Acontece que originalmente no havia diviso entre o evangelho e o que hoje costumamos chamar de Atos dos Apstolos. Lucas teve em mente compor uma s obra, em dois volumes. No prlogo (Lc 1,1-4) o evangelista deixa bem clara sua inteno literria.

    Atos (grego prxeis) um gnero literrio especfico na literatura da antiguidade. Constitui-se na coletnea de histrias edificantes e em parte biogrficas de uma ou mais pessoas de certa fama. Na literatura apcrifa temos exemplos tpicos de atos, como por exemplo os Atos de Paulo e Tecla e outros.

    Em todo caso, a partir do sculo II, os padres da Igreja comeam a denominar nosso texto de Atos dos Apstolos, ou simplesmente de Atos. Lucas, como historiador, certamente no pensou em escrever exatamente no gnero literrio atos. Ele quis compor uma obra historiogrfica bem mais abrangente, englobando o seu evangelho e o atual livro dos Atos dos Apstolos.

    Observando um pouco mais atentamente o texto, pode-se com facilidade concordar que, na verdade, no temos diante de ns atos 1 Cf. HAENCHEN E. Die Apostelgeschichte, p. 11ss.

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    7A igreja em suas origens

    dos apstolos, e sim, apenas atos de Paulo.2 Os demais apstolos s so mencionados bem no incio da obra. Aps a converso de Paulo, s sobre este ltimo que o livro trata.

    1.2 O autorTradicionalmente, tem-se designado o autor como sendo Lucas, o

    companheiro de Paulo.3 Nunca foi cogitado outro nome com seriedade. Quem favorece a identidade argumentativa a prpria anlise interna de Atos. Argumenta-se que h unidade de estilo entre as sees ns e o restante do livro. Depois, comea-se a eliminar todos os outros possveis companheiros de Paulo. Restaria Lucas. Ento seria um cristo da primeira gerao.

    Esta hiptese, que vingou por muito tempo, no resiste crtica moderna. Os estudos da histria das formas foram aos poucos desfazendo esta possibilidade. Em primeiro lugar, h uma diferena entre o prprio Paulo e o autor de Atos quanto ao ttulo de apstolo: o prprio Paulo reivindica para si este ttulo (1Cor 1,1; 9,2) com igualdade de posio junto a Cefas e Tiago. Em At este ttulo ignorado: aqui Paulo visto como mero missionrio, igual a Barnab. Alm disso, Lucas elabora discursos de Paulo que no fecham com a teologia do Paulo das cartas autnticas. Tpico o discurso de Paulo no arepago (At 17,22b-33): Lucas mostra um Paulo todo condescendente com a religiosidade pag, enquanto o Paulo das espstolas autnticas no tem nada disso. O Paulo histrico, ao contrrio, polemiza constantemente com a religiosidade pag, na qual no v nenhum valor positivo. Para Paulo, a filosofia popular e a religiosidade pag no passam de ignorncia que escraviza. A partir de argumentos deste tipo que, com base, agora, no j clssico comentrio de Ernst Hnchen, no se aceita mais que Lucas, o companheiro de Paulo, seja autor dos Atos.4 A grande evoluo que se pode observar em At, leva os exegetas a admitirem, quase com 2 Cf. BOISMARD, M.- e LAMOUILLE, A. Lex Actes des Deus Aptres, p. 6ss. Como

    o prprio ttulo da obra indica, os autores consideram o livro cannico de At como narrativa das gestas de Pedro e, sobretudo, de Paulo.

    3 Esta hiptese tradicional baseia-se num indcio em Fm 24, onde Paulo cita um certo Lucas entre seus colaboradores. Este nome ocorre ainda em duas epstolas da tradio paulina: Cl 4,14 (Sadam-vos Lucas, o mdico amado, e Demas.) e 2Tm 4,11 (Somente Lucas est comigo...).

    4 Cf. Ernst HAENCHEN, Der Weg Jesu: eine Erklrung des Markus-Evangeliums un der kanonischen Parallelen, p. 1-41.

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    unanimidade, que o autor de At um cristo da segunda gerao, que escreve em alguma cidade helenista do imprio romano.

    1.3 Lucas, o historiador Permanece o nome Lucas por questo de comodidade e por

    causa da tradio. Em todo caso, este autor o nico, em todo o NT, que antes de iniciar sua obra (Lc-At), faz uma apresentao de si e dos seus propsitos (Lc 1,1-4). No incio de Lc, o autor diz que fez uma acurada pesquisa histrica sobre os fatos que ele vai narrar. Acrescenta no ser o nico, mas que outros tambm j fizeram isso. Portanto, Lucas apresenta-se como historiador. Isso, primeira vista, seria timo para ns, pois estaramos diante de uma fiel narrativa de como aconteceu a evoluo do movimento de Jesus, desde a pregao na Galileia at sua expanso at os confins da terra (At 1,8). H pessoas que de fato avaliaram e at continuam a avaliar At desta maneira. preciso, porm, ver se isso correto. Podemos honestamente ver em At uma fiel narrativa de toda evoluo do movimento de Jesus? Lucas um historiador confivel,5 nos moldes e nos padres da historiografia como ns hoje a entendemos?

    Procuremos, pois, identificar o conceito de histria que Lucas pode ter tido. Sendo uma pessoa do seu tempo, certamente no ter pensado diferente de outros historiadores da poca. Para ilustrar, temos um caso bastante prximo a Lucas. Trata-se do historiador judeu Flvio Josefo, que, tendo passado para o lado dos romanos, acompanhou a campanha militar de Vesapasiano e Tito contra Jerusalm nos anos 68-70. Ele narrou toda essa campanha militar no seu famoso livro A guerra judaica. Pois bem, nessa obra, Flvio Josefo narra a tomada da fortaleza de Massada, ao sul do Mar Morto. L estavam refugiados os saduceus. Resistiram por trs anos. Tinham consigo algumas pessoas da realeza judaica e acalentavam o sonho de reconstituir o estado autnomo. Por fim, os romanos escalaram, com estremo sacrifcio, um dos lados da fortaleza natural. L encontraram todos os resistentes mortos, degolados. Antes de morrer, o chefe fez um ardente discurso, dizendo, em resumo,

    5 Cf. CONZELMANN, Hans El Centro del Tiempo. Madrid: Ediciones Fax, 1974. A viso histrica de Lucas bem mais de ordem teolgica, como bem expe Conzelmann nessa obra fundamental para a compreenso redacional de Lc. Como em sua origem Lc e At eram uma obra s, em dois volumes, tambm necessrio t-la presente quando se estuda At.

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    que ns somos corpo e alma. Se morrermos, nossa alma vai para junto de Deus. Por isso, seria maior glria de Deus o suicdio coletivo, do que cair vergonhosamente na mo os pagos. Isso convenceu-os ao suicdio coletivo. Agora vem nossa pergunta: como Flvio Josefo sabe tudo isso? Ele diz no livro que uma mulher fugiu de l e lhe narrou esses fatos. No muito confivel. Alm do mais, o discurso de Eleazar tipicamente helenstico, no tem muito a ver com a teologia judaica. De modo que possvel duvidar de que Flvio Josefo esteja realmente narrando os fatos brutos. Antes, bem mais provvel que, em sua narrativa, esteja sendo guiado por outros critrios.

    Este exemplo pode ajudar-nos a entender a historiografia que se pra- ticava na antiguidade. No uma objetiva narrativa dos fatos, e sim uma narrativa que atende a certas ideias que o historiador quer defender.

    Lucas quer fazer a histria da Palavra e do Esprito, para que as pessoas de suas comunidades pudessem perceber qual era a sua identidade. Queria, alm disso, dar uma sacudida em suas comunidades para que voltassem ao primeiro fervor. Lucas tem a intuio de apresentar uma compreenso globalizante da peripcia da Palavra de Deus na vida da humanidade. Para ele, a histria, em sua totalidade, constitui-se de trs etapas ou tempos. A primeira a etapa das promessas, abarcando todo o At. A segunda, a etapa do cumprimento das promessas (Lc 4,16ss: hoje cumpriu-se...), o tempo da pregao de Jesus de Nazar. A terceira etapa a do Esprito Santo e da Igreja. Em At, Lucas descreve esta terceira etapa, estabelecendo uma ponte histrica das suas comunidades para as etapas anteriores. Essa constitui-se no grande objetivo que norteia Lucas, essa a sua grande meta.

    1.4 Uma obra em dois volumes: Evangelho de Lucas e Atos dos Apstolos

    No se deve jamais perder de vista que estamos diante de um caso nico. Embora Lc seja um evangelho sintico, ele completado com uma segunda parte, ou segundo volume, constitudo pelos Atos. O descuido com este aspecto particular pode acarretar srias consequncias na avaliao exegtica de Atos. Muitos aspectos da comunidade de Lucas s podem ser detectados se, como adiante veremos, tambm levarmos em conta dados presentes no evangelho. O pensamento lucano apenas palpvel levando-se em conta o conjunto da obra.

    Em Lc 1,1-4 temos uma verdadeira introduo a toda a obra de Lc-At. L o autor apresenta-se de alguma maneira e, principalmente, fala

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    sobre o seu modo de proceder. J em At 1,1-5, no se trata de um prlogo propriamente dito, mas de um resumo do primeiro volume. Assim o autor proporciona ao leitor um engate para o segundo volume.

    2 Ambiente histrico

    Para identificar traos histricos, sociais e econmicos da comunidade em que Lucas escreveu os Atos, preciso recordar que, em sua origem, Lc e At foram escritos como uma obra s, em dois volumes. Assim sendo, precisa-se levar em conta no s o texto de At, mas tambm o de Lc. Segue-se, neste trabalho, o critrio da plausibilidade histrica: se h um indcio no texto, vai-se aos estudos histricos conferir se tal situao pensvel e admissvel.

    Em primeiro lugar, observa-se que Lc o evangelho mais incisivo em denunciar as contradies sociais.6 neste evangelho que vamos encontrar os textos mais contundentes contra a riqueza socialmente descomprometida. Basta lembrar a parbola do pobre Lzaro e do rico epulo (Lc 16, 19-31). Pode-se acrescentar a isso a parbola do bom samaritano (Lc 10,2937), a porta estreita (Lc 13,22-30). Haveria mais textos que mostram a radicalidade de Lucas.

    Com esses indcios, podemos comear a perguntar: Como a comunidade de Lucas?

    H indcios claros em Lc de que o evangelista no conhece a Palestina. Isso nos permite colocar sua comunidade numa regio helenista, provavelmente da sia proconsular. O mais provvel que a comunidade de Lucas, l pelos anos oitenta, esteja sendo um pequeno espelho do que era uma cidade helenista do imprio romano. Uma pequena burocracia romana que, em nome do imprio, coopta a classe dominante local, formando assim uma minoria privilegiada. A estes ainda se pode juntar comerciantes. Depois disso, vem a massa popular de escravos e trabalhadores autnomos.7

    Assim sendo, a comunidade de Lucas deve compor-se de uma minoria privileigiada e de uma maioria pobre e indigente. O prprio 6 Cf. Philip Francis ESLER, Community and Gospel in Luke-Acts: the social and

    political motivations of lucan theology. Cap. VII, The poor and the richt, p. 164-200. 7 Cf. W. MEEKS, Os primeiros cristos urbanos: O mundo social do apstolo Paulo.

    Trata-se de uma obra bsica para a compreenso das comunidades paulinas em ambiente urbano. Foi com Paulo que o Cristianismo deixou de ser um movimento rural para fixar-se na cidade.

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    apstolo Paulo, escrevendo aos cristos de Corinto, indica uma tal composio social. Na comunidade de Lucas deve haver militares e outros funcionrios do Imprio Romano.8

    3 Estrutura literria e temtica

    3.1 Observaes iniciaisIdentificar a estrutura literria de um escrito no coisa fcil. Para

    tanto, preciso, em primeiro lugar, estabelecer um ou mais critrios, pois o autor, geralmente, no deixa muito explcito o esquema que tinha ao escrever. O fato que, principalmente na antiguidade, o autor sempre tinha um esquema pr-estabelecido. Naquele tempo ningum podia dar-se ao luxo de sair escrevendo de qualquer jeito, uma vez que escrever era uma tarefa muito rdua e custava muito dinheiro em material e pessoal. Tudo seria mais fcil se o autor tivesse feito um sumrio, como ns hoje somos habituados a fazer ou a encontrar nos livros.

    Assim sendo, os autores, no caso dos Atos, identificam estruturas diversas, segundo os critrios que adotam.9 No nos ser possvel aqui dis- cutir cada proposta individualmente. Por questes de praticidade, apenas apresentaremos uma, que tem bastante aceitao entre os exegetas.

    Antes, porm, uma palavra prtica. Independentemente de qual estrutura se adote, o mais universalmente aceito com respeito a Atos de que o Conclio de Jerusalm (At 15) funciona como elo de ligao entre duas partes praticamente simtricas. A primeira (At 1,1-14, 28) relata as origens do movimento cristo at o encontro de Paulo com as colunas da Igreja e o consequente acerto entre as partes (At 15,1-35). A segunda parte (At 15,36-28) em que e narram as viagens apostlicas de Paulo e sua equipe missionria e a fundao das comunidades, concluindo com a presena de Paulo em Roma, pregando abertamente a Palavra, sem sofrer nenhum obstculo.

    8 Em Lc 7,1-10 temos um exemplo. Trata-e a da cura do servo do centurio. No texto de Lc claro que o evangelista est pensando num centurio romano. Lucas quem o v assim. Esta narrativa, porm, de origem palestinense antiga, pois consta na fonte Q. S que na fonte Q improvvel que se pense em termos de misso entre os gentios. Portanto, l deve ter-se tratado de um soldado judeu mesmo. Lucas, porm, que j no sabe destas coisas, transforma-o em centurio romano. Em At 10, 1ss, temos outro indcio da presena de funcionrios romanos na comunidade de Lucas: Pedro vai casa do centurio romano Cornlio.

    9 Cf. J. COMBLIN, Atos dos Apstolos, v. 1, p. 66s; cf, tambm R. FABRIS, Atos dos Apstolos, So Paulo: Paulus, 1984, p. 27-43.

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    Para identificar uma estrutura mais detalhada de At, preciso ter em conta certos critrios. Seguiremos a proposta de R. Fabris.10 Para a identificao da estrutura, o autor leva em conta trs critrios:

    a) as diferentes formas literrias: trechos narrativos; discursos e esquemas-frmulas de resumo ou sumrios. Lucas recolhe materiais em sua pesquisa e os translada para estas formas. Os trechos narrativos do forma literria aos acontecimentos. Os discursos representam o esforo de interpretao dos acontecimentos. Esquemas-frmulas de resumo ou sumrios, funcionam como elos de ligao entre um e outro ciclo narrativo.

    b) As etapas do desenvolvimento missionrio: Jerusalm e Antioquia so os dois polos de expanso da primeira parte de At. Centros intermedirios Samaria e Cesareia, onde pela primeira vez o grupo cristo reconhecido como igreja de pleno direito. Depois, sempre mantendo como referncia Jerusalm e Antioquia, o centro de gravidade se desloca para fora da Palestina: s vezes nos centros urbanos da Macednia (Filipos e Tessalnica) e da Grcia (Atenas e Corinto) ou da sia Proconsular (Trade e feso). Por final, com a priso de Paulo, volta-se novamente Palestina (Jerusalm e Cesareia), agora com a perspectiva orientada diretamente para Roma, onde Paulo chega, com uma pequena comitiva.

    c) Textos indicadores temticos: H alguns textos que explicita- mente funcionam como orientadores temticos. Um exemplo At 1,8: a se traa idealmente o futuro do grupo. Nestas palavras, indica-se o percurso histrico-geogrfico e tambm da misso crist: de Jerusalm at os confins da terra (At 1,8). Outro texto At 28,28. Por fim, o ltimo versculo (At 28,31) tem tambm esta funo, resumindo em estilo denso e preciso a atividade missionria de Paulo no centro do mundo pago.

    Com base nesses critrios, tendo presente tambm o plano teolgico mais abrangente de Lucas, que se pode detectar lendo a obra completa Lc-At, possvel identificar um plano em Atos. Mesmo tendo presentes estes critrios, cada autor apresenta alguma particularidade em sua proposta de estrutura. Isso, porm, no se constitui em dificuldade 10 Cf. R. FABRIS, Atos dos Apstolos, p. 27-43.

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    maior. Mesmo a diviso em 3, 4 ou 5 partes ou sees, possvel com base nesses mesmos critrios. Estamos longe da unanimidade.11

    3.2 Descrio das cinco sees

    Primeira seo: 1,1-5,42.Na primeira seo, tematiza-se a origem da Igreja de Jerusalm,

    tendo como evento de fundao o dom do Esprito Santo em Pentecostes (cf. At 2).

    Destaque especial cabe a Pedro e sua palavra, como porta-voz dos doze. Seu discurso inflamado caracterstico do lder de um novo grupo em formao.

    A comunidade Santa: trplice perseverana na palavra, na comunho fraterna e na frao do po/prece (cf. At 2,42-47; 4,32-35; 5,12,16).12

    Comea o conflito entre os apstolos e os representantes dos saduceus (templo): apesar da intimidao, continuam sua misso. A vida da comunidade tem aprovao popular. Esta seo fecha com a nota de entusiasmo em 5,42.

    Segunda seo: 6,1-12,25Aqui o cenrio torna-se mais rico, com diferentes protagonistas e

    campos de ao missionria.1 Estvo: figura destacada por dois captulos. Ele o lder

    dos 7 diconos. Os diconos so o grupo eleito para funcionar como hierarquia dos judeus cristos de lngua grega. Animado pela fora do Esprito Santo, Estvo, com grande capacidade de falar (oratria), rebate os judeus helenistas. Seus discursos atingem tambm as instituies sagradas do templo e da Lei de Moiss bem como o conjunto das observncias legais judaicas. Esse confronto acaba causando o martrio de Estvo. Seu grupo, os cristos helenistas, perseguidos, so obrigados a sair da cidade.

    11 Cf. SILVA, Cssio Murilo Dias da e RABUSKE, Irineu J., in: Evangelhos e Atos dos Apstolos; novssima traduo dos originais, p. 219, na introduo a At, seguindo o critrio do texto programtico de At 1,8, propem a seguinte diviso: 1,1-11: Vnculo com o Evangelho de Lucas; 1,12 8,1a: Em Jerusalm; 8,1b 12,25: Em toda a Judeia e Samaria; 13,1 28,31: At os Confins da Terra.

    12 Os textos citados referem-se aos trs sumrios referentes comunidade primitiva. Da vasta literatura acerca desses sumrios e de sua avaliao histrica, cf. HENGEL, Martin, Propriedad y Riqueza em el Cristianismo Primitivo.

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    2 Felipe: tambm um dos 7 diconos. Com a perseguio dos cristos helenistas, ele se dirige, animado pelo Esprito Santo, aos Samaritanos.

    3 A converso de Saulo: de perseguidor, chamado a ser testemunha do Senhor que lhe apareceu no caminho de Damasco. Sua atividade inicial em Damasco e em Jerusalm provoca reao violenta dos judeus.

    4 Pedro, na casa de Cornlio: o primeiro gesto de abertura oficial ao mundo pago. Anuncia o Evangelho na casa deste oficial romano e reconhece a ao do Esprito Santo que desce sobre os pagos, semelhana do que acontecera em Jerusalm no Pentecostes. Nasce aqui a primeira Igreja entre os pagos, por iniciativa divina, como devem reconhecer Pedro, os demais apstolos e os cristos de Jerusalm. Estes ltimos no tinham gostado da atitude de Pedro que aceitou hospitalidade na casa de um pago, coisa abjeta para os padres judaicos. Com este gesto de Pedro (e do Esprito Santo), est oficialmente inaugurada a misso.

    5 Antioquia: narra-se agora a misso em Antioquia, onde se pode identificar a primeira comunidade crist mista.

    6 Barnab e Paulo fazem em Antioquia sua primeira experincia como catequistas.

    7 Rompimento com o Judasmo: antes de passar para a misso no mundo fora da Palestina, Lc narra de maneira muito dramtica a definitiva separao do Judasmo. Tiago, irmo de Joo, torna-se o segundo mrtir cristo sob a perseguio de Herodes Agripa I. Pedro foge da priso. Vai ainda reaparecer rapidamente no Conclio de Jerusalm para ento no mais ser mencionado. Lucas privilegia a misso de Paulo, que daqui em diante ser o grande protagonista.

    Terceira seo: 13,1-15,35Esta seo quase exclusivamente dedicada primeira misso fora

    da Palestina. A comunidade de Antioquia: aqui inicia a primeira misso.

    Personagens principais so Paulo e Barnab. A eles associa-se Joo Marcos, que novamente se separa do grupo, antes que passem para a Anatlia. Agora Paulo toma a liderana e as iniciativas. Paulo e Barnab dirigem-se aos cristos da dispora nas cidades da Anatlia. Em Antioquia da Pisdia, Paulo fala aos judeus na sinagoga. Diante da recusa destes, decide-se a dirigir-se diretamente aos pagos. A reao

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    15A igreja em suas origens

    violenta dos judeus os obriga a irem adiante, para localidades tais como Icnio, Listra e Derbe. Esta primeira misso concluda em Antioquia da Sria, de onde a misso havia partido. Retornam contando como Deus fez abrir a porta da f aos gentios ( At 14,27).

    Diante disso os cristos de origem judaica reagem. No conseguem aceitar a entrada de pago no movimento cristo. No os reconhecem como iguais, se no passarem primeiro pelo ritual de submisso lei judaica. No est em questo apenas o mtodo missionrio de Paulo, mas o prprio conceito de salvao. Pode algum alcanar a salvao sem se tornar primeiro judeu? Paulo vai a Jerusalm, onde uma assembleia dos apstolos e de representantes da Igreja local, sob a presidncia de Tiago, decide a favor da liberdade dos pagos convertidos. Temos um documento com as concluses desse assim chamado Conclio de Jerusalm. Esse documento confirma a ideia de uma nica Igreja, formada agora tanto de judeus como de pagos que se converteram ao movimento de Jesus. Prepara-se assim o clima para a nova misso de Paulo, nas cidades da bacia oriental do Medi- terrneo.

    Quarta seo: 15,36-20,38Aqui o tema a grande viagem missionria de Paulo. 1) Vai

    Macednia/Grcia. Permanece em Corinto por um ano e meio. 2) Segue para a sia, ficando por l durante trs anos, sendo feso o ponto de referncia.13

    A viagem ideal inicia em Jerusalm e termina na sia, em feso. Durante esta viagem, podem-se observar aventuras, projetos e tribulaes de Paulo, acompanhado de seus colaboradores Silas, Timteo, quila com Priscila e os representantes das comunidades dos centros mais importantes, tais como Filipos, Tessalnica, Corinto, feso e Trade. Esta longa viagem mostra o confronto do Cristianismo representado por Paulo, com o ambiente e pensamento pago, tanto o intelectual de Atenas como o mais popular de feso. Tambm pode-se observar a resistncia dos judeus nestas cidades, que tentam apresentar o movimento cristo como politicamente perigoso s autoridades romanas.

    13 Cf. BECKER, Jrgen, Apstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia, p. 40; 127; 186-188.

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    Quinta seo: 21,1-28,31Esta seo recebe tambm o ttulo de Paixo de Paulo.14 Aps a

    longa viagem pela dispora, Paulo chega a Jerusalm e preso no trio de Templo, acusado de profanar o recinto sagrado, trazendo para a um pago. A interveno da autoridade romana permite a Paulo evadir-se das manobras e atentados dos judeus. Paulo acusado, em sucessivas audincias, de desrespeito s instituies judaicas (principalmente ao templo) e perturbao da ordem pblica (movimento cristo como movimento antirromano). Para tentar uma sada, Paulo vale-se de sua condio de cidado romano, apelando ao imperador. Comea a viagem para Roma. O navio em que vai naufraga na ilha de Malta. Os sobreviventes so a recolhidos e passam o inverno. Depois continuam a viagem em outro navio at Putoli. Da seguem a p at Roma.

    Em Roma Paulo tenta novamente contato com os judeus, que, porm, o rejeitam, fazendo com que o apstolo rompa definitivamente com eles, dirigindo-se agora somente aos pagos durante os dois anos de priso na capital do mundo. Com isso Lucas atinge seu objetivo, como historiador. De Jerusalm, por etapas sucessivas, o anncio da Palavra atingiu o universo todo, representado por Roma, onde Paulo podia pregar sem sofrer nenhuma importunao, bem ao contrrio do que havia ocorrido ao longo de toda a carreira missionria do Apstolo.

    Concluso

    Lucas elabora, a seu modo, uma histria das origens crists. No se trata de uma histria segundo nossa compreenso moderna. A narrativa tem um carter especificamente teleolgico:15 Lucas pretende, mediante uma narrativa teolgica, apresentar a evoluo da Igreja em suas origens. Isso ajuda os cristos de suas comunidades a perceberem as prprias razes de sua identidade. Pode-se encontrar nesta histria como o Esprito e a Palavra se expandem desde a Palestina at os confins do mundo. A tese de Lucas a de que existe um nexo de continuidade, ininterrupto, desde o primeiro anncio de Jesus na sinagoga de Nazar (Lc 4,16ss), passando pelo anncio feito pelos apstolos em Jerusalm e na Palestina, estendendo-se at s comunidades helensticas da Grcia,

    14 Em At 21 inicia uma nova fase na vida do apstolo Paulo, para a qual no dispomos de nenhum documento paulino, cf. BECKER, Jrgen, Apstolo Paulo: vida, obra e teologia, p. 371.

    15 Cf. Rinaldo FABRIS, Atti degli Apostoli, p. 32ss.

  • Teocomunicao, Porto Alegre, v. 42, n. 1, p. 5-18, jan./jun. 2012

    17A igreja em suas origens

    sia e, por fim, na prpria capital do imprio, Roma. Atinge-se assim o que programaticamente dito em At 1,8: Mas recebereis uma fora, a do Esprito Santo que descer sobre vs, e sereis minhas testemunhas em Jerusalm, em toda a Judeia e a Samaria, e at os confins da terra.

    Lucas escreve um perodo em que o Cristianismo, como fenmeno religioso, ainda est a caminho de sua autonomia. Lucas, teologicamente, antev o resultado que a marcha da Palavra atingir. De Jerusalm (At 1,8), chegar at os confins da terra. Essa a vocao universal da Igreja. Vencendo todo tipo de obstculo, a Palavra atingir esse final, antevisto simbolicamente na ltima cena, com o apstolo Paulo pregando com toda a ousadia e liberdade em sua priso domiciliar em Roma (At 28,30-31) .16

    A histria das origens crists serve ainda hoje de marco referencial para a insero da Igreja no momento histrico atual.17 lendo as origens da Igreja que ser possvel discernir como poderia configurar-se a sua concreta presena e atuao neste novo milnio que est apenas nos seus incios.

    RefernciasBECKER, Jrgen. Apstolo Paulo: vida, obra e teologia. Traduo de Irineu J. Rabuske. So Paulo: Academia Crist, 2007.BOISMARD, M.-.; LAMOUILLE, A. Les actes des deux Aptres. Paris: Gabalda, 1990. Vol. 1: Introduction Textes. (tudes Bibliques, nouvelle srie 12).COMBLIN, Jos. Atos dos Apstolos. Petrpolis: Vozes/Imprensa Metodista/Sinodal, 1988-1989. Vol. 1. (Comentrio Bblico NT).CONZELMANN, Hans. El centro del tiempo. Madrid: Ediciones Fax, 1974.ESLER, Philip Franscis. Community and Gospel in luke-acts: the social and political motivations of lucan theology. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.EVANGELHOS E ATOS DOS APSTOLOS: Novsima traduo dos originais. Traduo, introdues e notas de Cssio Murilo Dias da Silva e Irineu J. Rabuske. So Paulo: Loyola, 2011.

    FABRIS, Rinaldo. Atos dos Apstolos. So Paulo: Edies Paulinas, 1984.FABRIS, Rinaldo. Atti degli Apostoli. Roma: Borla, 1984.

    16 Cf. COMBLIN, Jos. Atos dos Apstolos, v. 1, p. 38ss.17 Para uma leitura pastoral, til a obra de Pablo RICHARD, O movimento de Jesus

    depois da ressurreio: uma interpretao libertadora dos Atos dos Apstolos.

  • Teocomunicao, Porto Alegre, v. 42, n. 1, p. 5-18, jan./jun. 2012

    18 RAbUSkE, I. J.

    HAENCHEN, Ernst. Der Weg Jesu: eine Erklrung des Markus-Evangeliums un der kanonischen Parallelen. 2. ed. Berlin: W. de Gruyter, 1968.

    HAENCHEN, Ernst. Die Apostelgeschichte. Goettingen: Vandenhoek & Ruprecht, 1956.HENGEL, Martin. Propriedad y riqueza en el cristianismo primitivo. Bilbao, Descle de Brouwer, 1984.MEEKS, Wayne. Os primeiros cristos urbanos: o mundo social do apstolo Paulo. So Paulo: Paulus, 1992.RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreio: uma interpretao libertadora dos Atos dos Apstolos. So Paulo: Paulinas, 1999.

    Recebido: 21/03/2012Avaliado: 26/03/2012