14
TEOLOGIA E PROFISSIO- NALIZAÇÃO

Teologia e profissionalização

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Teologia e profissionalização

Citation preview

Page 1: Teologia e profissionalização

TEOLOGIA E

PROFISSIO-

NALIZAÇÃO

Page 2: Teologia e profissionalização

Teologia e

Profissionalização

O teólogo como

profissional

Jean Bartoli

Page 3: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 2

Num mundo que parece aceitar os dogmas da produtividade e da

eficácia empresariais como critérios de realização pessoal e solução dos

problemas do nosso tempo, por que refletir sobre a profissionalização da

elaboração teológica ? Afinal, ver o teólogo como profissional com

carteira assinada, filiado à Central Única dos Teólogos, reivindicando

melhores condições de trabalho e, pior ainda, de remuneração, poderia

parecer uma concessão descabida ao Príncipe deste mundo e ser um

motivo suficiente para reanimar algumas fogueiras ainda não de todo

apagadas ! Aceitei porém o desafio de pensar no assunto e partilhar

algumas reflexões porque minha atuação profissional destes últimos anos

como consultor de empresa está me levando cada vez mais a resgatar

minha experiência de fé e de reflexão teológica. Esta começou na Ordem

Dominicana, nunca foi abandonada e está sendo agora retomada com

mais afinco num mestrado de ética teológica. Estas linhas são

obviamente muito influenciadas pelo contexto empresarial onde estou

atuando há mais de doze anos.

Quis imaginar quais perguntas outros profissionais, curiosos e

interessados na contribuição da T eologia para o encaminhamento de

alguns problemas atuais poderiam fazer a um teólogo preocupado em

oferecer sua colaboração. Eis algumas :

Quais oportunidades e desafios está enxergando e gostaria de

enfrentar no contexto atual ?

Quais são as competências essenciais que poderiam dar a seu

trabalho uma qualidade profissional ?

Qual poderia ser o seu papel profissional dentro do mundo

empresarial ?

OPORTUNIDADES E DESAFIOS :

Existe hoje uma busca crescente de “produtos” espirituais. Estes

produtos espirituais, como os materiais, são destinados a satisfazer os

desejos dos seus consumidores. Entre os desejos mais fortes : a paz de

espírito contra toda espécie de insegurança ou angústia, a auto-

realização vista como a conquista do “sucesso” pessoal e profissional

num contexto de selvageria competitiva, o status que garante a inclusão

no sistema e a possibilidade de controle sobre todos os aspectos da

própria existência para garantir uma convivência sem risco com os

outros. Daí a grande oportunidade para quem anuncia a possibilidade de

mudança de vida : que o digam todos os gurus com ou sem turbante que

aparecem na rua, nas telas de televisão ou em retrato “grandeur nature”

nas bancas de jornais. Prometem que tudo é possível, que os obstáculos

são aparentes, que praticamente tudo pode ser conseguido sem grandes

esforços, sob condição de seguir algumas receitas e de acreditar no

sábio de plantão.

Esta extensão da sociedade de consumo para os bens espirituais

pode ser considerada como oportunidade para os teólogos ? Expressa de

modo confuso uma necessidade real de pessoais reais e a teologia

precisa ser elaborada a partir de pessoas reais e para elas.

Page 4: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 3

Todavia nasce um paradoxo : ao mesmo tempo que essas pessoas

buscam soluções espirituais, espiritualistas ou místicas para seus

problemas, existe uma ojeriza a um esforço reflexivo desinteressado, que

não ofereça resultado imediato. Podemos, então, vislumbrar três grandes

desafios.

O primeiro desafio é mostrar que a busca de respostas espirituais

não pode acontecer só no nível emocional mas deve envolver a

inteligência. O envolvimento da inteligência é possível a partir da

aceitação de um processo reflexivo que comporta exigências de clareza e

precisão da linguagem. Mais : é inseparável de uma constante autocrítica

quanto à própria postura, os próprios preconceitos É um processo lento,

sujeito a idas e vindas, desestabilizador e, muitas vezes, doloroso. Todo

o contrário do que é prometido por uma certa literatura de auto-ajuda.

O segundo desafio é mostrar que o processo de busca de algumas

respostas não se confunde com o processo de busca de segurança que

pode estar na raiz dessa corrida desenfreada atrás de gurus. O teólogo

precisa desvencilhar-se daqueles que lhe farão esta proposta tentadora :

aplaque meus medos e seguirei cegamente todos os seus ensinamentos!

Convidar para a dúvida e o risco é inseparável de qualquer reflexão. Isso

tem um preço : o abandono da segurança a qualquer custo. Para o

próprio teólogo, o processo é ainda mais radical : sabe que o olhar de

Deus é sempre diferente do nosso. Deve estar em estado de dúvida

radical quanto à adequação do que ele diz com o que é :

“Com efeito, os meus pensamentos não são os vossos

pensamentos e os vossos caminhos não são os meus caminhos,

oráculo de Iahweh. Quanto os céus estão acima da terra, tanto os

meus caminhos estão acima de vossos caminhos e os meus

pensamentos acima de vossos pensamentos.” (Is. 56, 8-9).

O terceiro desafio é acreditar no potencial de mudança contido num

discurso teológico e mostrar como isso pode acontecer concretamente.

Nossa sociedade está ainda acostumada a considerar a teologia como

aliada do status quo; daí as reações iradas contra aqueles cujas prática e

reflexão ameaçam essa visão. Denunciar a precariedade do status quo

apontando suas causas é o começo. Ficar nisto pode levar ao imobilismo

da denúncia estéril. As discussões teológicas podem, hoje como nos

tempos de Bizâncio, parecer excessivamente abstratas, e, não raro,

intolerantes. Mais, os crentes das várias capelas envolvidas acabam se

sentindo como massas de manobra engajadas numa guerra sem fim.

Pior, a vitória de qualquer lado, provavelmente não vai significar uma

mudança concreta nas condições de vida reais dos seus seguidores.

Mostrar que o teólogo é uma pessoa inserida no mesmo mundo,

confrontada aos mesmos problemas e às mesmas interrogações, que

sofre, chora e também diz : “não sei”, pode ser o começo de uma

mudança de olhar sobre a teologia e o início da liberação de seu

potencial de mudança efetiva tanto do discurso como, sobretudo, da

prática. A teologia precisa provar mais uma vez sua capacidade de

responder à pergunta fundamental :

“O que devemos fazer ?” (At. 2, 37).

Page 5: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 4

Instigado por esses desafios, o candidato à profissão de teólogo

pode pôr-se a caminho ! Como profissional conversando com outros

profissionais, produzindo algo que ele quer útil para os outros, encontra

uma pergunta importante : como avaliar a qualidade profissional de sua

elaboração teológica ?

QUALIDADE PROFISSIONAL DA ELABORAÇÃO TEOLÓGICA :

Existem algumas palavras que acabam virando moda e chavões no

ambiente empresarial. Correspondem, porém, a preocupações

verdadeiras quanto a posturas que influem no desempenho das

organizações e na administração de suas relações internas. Duas dessas

palavras interessam a nossa reflexão : qualidade e profissionalismo.

Como estas duas palavras podem interessar a nossa reflexão sobre o

papel do teólogo ?

Nas empresas, a expressão “ser profissional” tem conotação de

competência, seriedade, dedicação e isenção. Quem se proclama um

bom profissional quer resgatar uma certa dimensão de gratuidade e de

amor à profissão que exerce, como manifestação de sua dignidade de

pessoa. Encontra igualmente nessa consciência um antídoto contra

certos tipos de manipulação. Consegue assim sair do imediatismo e

planejar, confiando na sua capacidade de conduzir a própria vida

profissional em função de objetivos e valores mais profundos e

permanentes. O profissionalismo é certamente um valor a ser cultivado. A

premência dos problemas a enfrentar, a consciência da miséria do

mundo, a resposta ao que é percebido como um apelo de Deus não

podem deixar esquecer : fazer teologia é antes de tudo um ato de fé, cuja

gratuidade transcende seus resultados imediatos. Uma pequena dose de

“sub specie eternitatis” não faz mal a ninguém, inclusive aos teólogos.

A palavra “profissão” possui como primeiro significado, segundo o

Aurélio, “ato ou efeito de professar”. Professar é reconhecer

publicamente, confessar. Talvez, a caraterística própria da profissão de

teólogo seja reconhecer publicamente e confessar que sua visão do

mundo e das pessoas é diferente, porque ele tenta ver o contexto

globalmente e pensa com paradigmas e com objetivos diferentes.

Na análise do contexto, nenhum dos seus aspectos

constitutivos é negado e o horizonte de compreensão

teológico nunca pode ser excludente. O teólogo trabalha com

a certeza de que sua condição de compreensão do universo

é aceitar submeter seu saber e suas dúvidas ao crivo da

Sabedoria de Deus

“que para os judeus é escândalo, para os gentios é

loucura” (1 Cor. 1,23).

Daí o teólogo viver uma crise permanente de paradigmas.

Seu modo de pensar, sentir e expressar seu pensamento e

seus sentimentos está constantemente sendo desafiado. Ele

está freqüentemente se surpreendendo no papel dos amigos

de Jó ou de Nicodemos, ou da Samaritana ou de tantos

Page 6: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 5

outros que nunca conseguem chegar juntos com seu

Interlocutor.

Quanto aos objetivos, são diferentes porque o teólogo, no ato

de sua profissão, nunca tem objetivo pessoal. Sua

recompensa pessoal mais valiosa é ouvir seu Mestre dizer :

“Assim também vós, quando tiverdes cumprido todas as

ordens, dizei : Somos servos inúteis, fizemos apenas o

que devíamos fazer.” (Lc. 17, 10).

Como falar de qualidade da elaboração teológica ? Considerando o

que diferencia a visão do teólogo em relação aos outros profissionais que

tentam pensar o mundo, onde ele pode buscar os critérios que lhe

permitam avaliar a qualidade do seu trabalho?

O primeiro aspecto que parece importante é a relevância que uma

obra teológica tem para as pessoas às quais se dirige. Nos processos de

busca da qualidade total, as empresas buscam critérios de medição

negativos (defeito zero) e positivos (correspondência a especificações

predeterminadas), reconhecendo porém que, longe de determinar a

qualidade, tais critérios são simples indicadores. Com efeito, a qualidade

é atribuída ao produto pela satisfação do cliente, sendo o resultado da

competência e do comprometimento das pessoas que participam dos

processos de fabricação e entrega dos produtos ou serviços.

Enquanto não toma consciência de seu poder real e de sua

dignidade de sujeito da atividade econômica, o cliente é um belo objeto

de manipulação. Quando começa a rejeitar o embuste, passa de simples

mal necessário a fim da atividade empresarial. Obviamente esta

preocupação com o cliente é parte da busca de um equilíbrio sempre

precário com outras variáveis, mas está sendo cada vez mais real. Uma

empresa que não consegue mais satisfazer seu cliente simplesmente

desaparece !

Essa digressão sobre o processo de mudança de enfoque no mundo

empresarial pode sugerir que refletir sobre a qualidade da elaboração

teológica exige uma indagação prévia : para quem o teólogo estaria

fazendo teologia ? Vejo três respostas possíveis :

para si mesmo : os critérios de qualidade resumem-se à bem-

aventurança da auto-beatificação de quem está repimpando-se

com o próprio ego, id e super-ego confundidos !

ad maiorem Dei gloriam ! Se for o Deus revelado por Jesus Cristo,

Ele demonstra grande preocupação com os frutos que brotam da

aceitação de Sua Palavra pelas pessoas que vivem numa história

determinada. Isto nos remete ao universo concreto das pessoas

que vão ter contato com a teologia elaborada.

para seus .... “consumidores” : a palavra pode parecer chocante

mas não deixa de fazer sentido. Afinal, escrevemos ou falamos

para alguém que quer tirar algo de bom para a própria vida do que

falamos e escrevemos.

Page 7: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 6

Considerando que a terceira resposta parece a mais sensata, é

urgente sair da torre de marfim e começar a escutar, não apenas ouvir, o

que as pessoas têm a dizer sobre a teologia produzida.

O segundo aspecto pelo qual podemos analisar a qualidade da

elaboração teológica diz respeito ao comprometimento e à competência

de quem faz teologia.

A questão do comprometimento é algo de pessoal e eclesial. A

responsabilidade do teólogo vivendo neste mundo e nesta época

aumenta na medida em que cresce nas pessoas o afastamento da

atitude passiva de pura aceitação da palavra de uma autoridade que se

autoproclama magisterial. Ao mesmo tempo, existe uma tendência à

submissão indiscriminada a quem exercita o magistério dissimulado do

conformismo aos vários pensamentos únicos existentes neste momento.

O teólogo não pode nem quer mais ser o mero tradutor de quem se

considera o arauto dos ukases vindos do alto. Deve porém tomar o

cuidado de não se apropriar do próprio papel, tornando-se simplesmente

a fonte dos novos oráculos ! É um dos interlocutores possíveis de quem

busca o sentido da própria vida e dos próprios compromissos com os

outros seres humanos.

Quanto à competência, o maior problema está na sua definição. As

organizações empresariais estão em busca de quadros de referências

que permitam melhor avaliá-la num contexto de mudanças onde os

métiers e as qualificações profissionais não obedecem mais a critérios

rígidos de funções definidas. As consultorias que ajudam as empresas na

tarefa de definir melhor as contribuições oferecidas pelos profissionais

tendem a analisar a competência por três pontos de vista : os

conhecimentos, as habilidades e a postura.

Existe talvez uma possível analogia com a profissão de teólogo. Se

quiser pensar o seu próprio papel como protagonista na construção de

uma visão da realidade em que está envolvido e que quer ajudar a

transformar dialogando com outras pessoas e com outros profissionais

engajados no mesmo esforço mas provenientes de outro horizonte de

compreensão, ele terá de submeter-se à avaliação da própria

competência. Será cobrado quanto à relevância dos seus conhecimentos;

suas habilidades e, principalmente, sua postura estarão sempre sendo

analisadas e questionadas.

As cobranças quanto ao conhecimento podem ocorrer em relação a

dois objetos : sua visão do mundo e sua visão de Deus.

Visão do mundo : existe uma busca de instrumentos que

permitam uma visão mais sistêmica da complexidade da

realidade devido a uma tomada de consciência da limitação

das tentativas de explicação mais lineares e unívocas.

Embora devendo lutar contra o preconceito de ser visto como

portador de uma visão sistemática, predeterminada e

fechada, o teólogo aparece, também, como tendo chaves de

interpretação que permitem considerar variáveis importantes

na definição do sentido da vida pessoal e social. As

Page 8: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 7

abordagens comportamentais atualmente usadas nos

estudos organizacionais revelam-se insuficientes para

enfrentar a complexidade maior do tecido de relações em que

estão inseridas as empresas.

Visão de Deus : a busca do sagrado, da dimensão espiritual

da vida, dentro de um contexto reconhecido como complexo,

é real. Procura-se uma presença à qual se pede segurança,

bem-estar, sucesso e afastamento de qualquer tipo de mal.

Esta busca é individual e, embora envolva uma certa

preocupação com os outros, não chega a despertar a

consciência de que Deus está presente e atuante em todas

as dimensões da história de cada homem bem como da

humanidade. O teólogo vai contribuir explicitando todas as

conseqüências do anúncio evangélico no âmbito individual e

social. Mais, deve ajudar a desmascarar as restrições

mentais suscetíveis de afetar a profissão de fé que pretende

ser adesão a este anúncio.

Em relação às habilidades, parece que se reconhece ao teólogo uma

espécie de delegação da tarefa de reflexão. A problemática que ele traz à

tona está presente em todo ser humano, de um modo mais ou menos

consciente e premente. Como não se sabe bem o que fazer com isso,

passa-se ao teólogo a incumbência de levar adiante a tarefa de

esclarecer a misteriosa realidade, tornando-a acessível com uma

linguagem mais clara. Para isto podem contribuir algumas habilidades

chaves :

hermenêutica : interpretar os vários aspectos de uma mesma

realidade através de uma referência evangélica explícita. É o

diferencial que deve ser assumido para poder entabular um

diálogo eficaz, embora... tenso, com os outros protagonistas

sobre as reconhecidas contradições e ambigüidades cada

vez mais percebidas na sociedade e no mundo empresarial.

É abrir a possibilidade de sair de alguns impasses que

impedem mudanças de comportamento e de ação.

dialética : a dificuldade é passar da interpretação que deve ser global à praxis empresarial que acontece na ambigüidade

e na precariedade de um contexto de muitas variáveis. O

desafio do teólogo é ao mesmo tempo desenvolver seu

trabalho de interpretação e reconhecer a autonomia de

decisão de quem tem responsabilidade de conduzir a ação

empresarial. A partir das decisões tomadas, recomeça seu

trabalho de interpretação e avaliação das decisões tomadas

e da ação decorrente. A convivência não será fácil !

discernimento : talvez seja a competência mais desejada e

invejada por quem tem responsabilidades no mundo

econômico empresarial. O discernimento dos espíritos tem

um vasto campo de aplicação, desde as escolhas

estratégicas fundamentais até a avaliação de muitos

Page 9: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 8

problemas intra-empresariais. Muitos conflitos têm de ser

colocados no seu verdadeiro enfoque : o choque entre

egoísmos antagônicos que se recusam a ceder em função de

um bem comum para todos os membros da organização ou

da sociedade. As explicações psicológicas, sociológicas ou

econômicas são cada vez mais percebidas como

insuficientes para a avaliação de certas situações ou de

certas orientações. A interpretação teológica de uma

determinada situação deve permitir maior conscientização

das responsabilidade de cada ator. A grande questão é

aceitar pagar o preço da mudança de um discurso

escamoteador para um discurso mais responsabilizador.

rigor : substitui o “achismo” por um saber consistente e

elaborado, permitindo perceber o que é essencial à revisão

de paradigmas. Propicia a busca de instrumentos mais

adequados para agir em conformidade com o sentido

descoberto. É fácil e tentador refugiar-se em algumas

considerações gerais e inócuas sobre os insondáveis

desígnios de Deus, fugindo das perguntas existenciais e

concretas sobre as contradições aparentes mas

questionadoras desta “providência”, à primeira vista tão

esquisita. O rigor, nesse caso, consiste em estimular as

pessoas a não se contentarem com falsas respostas

genéricas e indicar alguns caminhos pelos quais se pode

achar uma ação mais coerente com o Evangelho.

simplicidade e prudência.

“Eis que eu vos envio como ovelhas entre lobos. Por isso, sede prudentes como as serpentes e sem malícia

como as pombas.” (Mt. 10, 16).

O ambiente empresarial preza muito as feras (palavra aliás

muito usada para qualificar e elogiar o perfil de alguns

executivos !). Portanto a prudência é necessária para não

prejudicar um possível diálogo em nome de uma ingenuidade

despropositada.

autenticidade.

“Seja o vosso „sim‟, sim, e o vosso „não‟, não. O que

passa disso vem do Maligno.” (Mt. 5, 37).

A prudência de esperar o momento mais propício para uma

tentativa de diálogo ou de intervenção não significa instalar-

se numa postura dúbia. As soluções concretas podem não

escapar da ambigüidade. No meio das feras, porém, a

integridade do propósito e da postura é esperado e será

respeitado, o que não significa que as intervenções serão

sempre bem recebidas !

Enfim,

Page 10: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 9

“Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas

aos porcos, para que não as pisem e, voltando-se contra vós, vos

estraçalhem.” (Mt. 7, 6).

Há momentos em que essa frase se aplica perfeitamente. É preciso

ter o discernimento de percebê-los. Contudo, é preciso, também, resistir

à vaidade de considerar que esse momento chegou simplesmente

porque nossa inteligência recusou o esforço de ouvir e nossa impaciência

rejeita a humildade e a abnegação do diálogo.

Os conhecimentos, como as habilidades, são apenas a ponta do

iceberg. O que está por baixo da linha de água ? Ante a importância do

que será dito pelo teólogo, seus leitores ou ouvintes vão sempre analisar

e questionar sua postura para validar suas afirmações ou para se

defender delas. Assim, a postura de solidariedade e engajamento em

relação ao mundo e de testemunho da Presença e da Compaixão de

Deus pode ser a marca própria de sua abordagem.

Solidariedade e engajamento no mundo : deve existir uma

familiaridade com os anseios, as angústias, as alegrias e os

sofrimentos mais profundos do homem e das comunidades onde

vive. Ninguém mais está disposto a aceitar um discurso solidário

e engajado proferido por alguém que se apresenta

concretamente desligado da vida real. Procuram-se teólogos que

compartilhem a precariedade da condição e das certezas

humanas, a fragilidade da sociedade na qual estão inseridos, a

luta do dia a dia para conseguir o pão e a alegria de descobrir

junto com os outros um pouco da luz que lhes ilumina o caminho

e a esperança.

Testemunho da Presença e da Compaixão de Deus : por mais descrente e gozador que possa parecer o possível consumidor da

produção teológica, ele espera algo de diferente da pessoa que

se apresenta como teólogo. É até difícil definir isto. De quem se

atreve a falar sobre Deus e Suas relações com os homens, não

se espera a mesmice dos discursos cheios de boas intenções e

demagogia, das oposições simplistas, dos chavões surrados e da

adesão acrítica às penúltimas modas (a última sendo sempre

penúltima) provindas de qualquer horizonte ideológico. No fundo,

espera-se alguém que testemunhe a realidade de uma

experiência de fé na Compaixão de Deus presente em Jesus

Cristo. Quem aceitará trilhar novos caminhos sem a credibilidade

de um testemunho enraizado em maior familiaridade com a

Presença de Deus adquirida numa experiência constante de

contemplação, de diálogo com o mundo e de reflexão sobre a

leitura dos acontecimentos históricos, dos mais globais aos mais

singelos.

Page 11: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 10

QUAL PODERIA SER O PAPEL DO TEÓLOGO NO MUNDO

EMPRESARIAL ?

Por experiência profissional, esta é uma pergunta com a qual estou

sendo confrontado diariamente. Devo confessar que até agora não tenho

uma resposta clara. É uma indagação que considero importante para

aqueles que sentem a empresa como um dos lugares mais importantes

para o destino dos seres humanos que nela transacionam e da

humanidade em geral. As decisões empresariais afetam a economia, o

meio-ambiente, a política e outras dimensões da vida pessoal, familiar e

social. Tento avançar na reflexão a partir da análise de algumas atitudes

possíveis frente ao mundo empresarial.

A primeira poderia ser a recusa categórica do contato com o mundo empresarial, analisando-o de fora e ignorando sua lógica própria.

Considerá-lo simplesmente como a parte do sistema econômico/social

geradora da opressão e da exclusão a serem combatidas.

A segunda seria considerar que as empresas são formadas de seres

humanos; que os empresários são seres humanos; que como nos outros

setores da sociedade, existem bons e maus empresários.

Consequentemente, as empresas conduzidas por empresários bons

cristãos podem ser uma antecipação do paraíso na terra enquanto as

outras, conduzidas por empresários pagãos e gananciosos, são a

antecâmara do inferno.

Estas duas atitudes pecam pelo simplismo e pela ingenuidade. Seus

defensores serão ótimos alvos de manipulação para os interessados em

não aprofundar a reflexão sobre o fenômeno empresarial. Este merece

pelo menos um pouco de atenção dos teólogos já que uma parcela

significativa da população brasileira e mundial, por bem ou por mal, gasta

de oito a dez horas do seu dia trabalhando nas empresas.

A terceira atitude poderia partir do princípio de que as empresas são parte de um sistema com regras e objetivos próprios, independentemente

do credo e das intenções de tal ou tal empresário. Ao mesmo tempo é um

sistema operado por pessoas, para pessoas e em função de pessoas;

portanto, é e deve ser objeto de uma reflexão teológica como qualquer

outra realidade humana. Afinal, acreditamos que Deus continua presente

nas pessoas mesmo quando adentram o portão de uma fábrica ou

entram no elevador de um prédio de escritórios !

A partir dessa constatação banal, o teólogo que quiser começar a pôr a mão na massa logo perceberá que nunca pertencerá ao sistema,

mesmo que consiga penetrá-lo. O sistema empresarial nacional ou

transnacional se parece com a aristocracia de antes da Revolução

Francesa. As cortes estão radicadas em países mas criam entre si uma

rede de relações, de valores, de objetivos e de poder que transcende as

fronteiras nacionais. Existem alianças e casamentos que lembram as

alianças e os casamentos reais. De vez em quando, surgem

conspirações que parecem ter sido urdidas por alguns sucessores dos

Médici. Os novos condottieri são mais conhecidos por seus sobrenomes

prestigiosos (IBM, Unilever etc...) do que por seus próprios nomes.

Page 12: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 11

O teólogo, porém, pode começar a ser acolhido quando uma

empresa percebe que alguns conflitos organizacionais não conseguem

ser solucionados pelo arsenal das medidas comportamentais e

motivacionais convencionais e que os psicólogos e sociólogos de plantão

começam a baixar os braços. A porta de entrada será o exercício de

discernimento da última chance para entender o que está podre no reino

da Dinamarca! Nesse contexto, o teólogo poderia começar a atuar

como... o bobo da corte ! Não é nem vai ser considerado membro da

corte : seus objetivos não estão situados no mesmo horizonte que

aqueles dos membros plenos da corte; não faz parte dos profissionais

que se dedicam diretamente ao crescimento e à perpetuação do sistema

produtivo. No início, poderá ser simplesmente tolerado para dizer alto o

que muitos pensam baixo, mas não querem ou não conseguem dizer por

estarem demais envolvidos.

Se permanecer neste papel por muito tempo, corre o risco de se

esvaziar porque, nesse ambiente, a denúncia de problemas só pode ser

encarada como primeiro passo para a apresentação de soluções. O

desafio é mostrar que as soluções habituais, até então usadas com

relativo sucesso, não funcionam mais porque estão sendo geradas a

partir de um paradigma empresarial tradicional, elaborado dentro de uma

lógica liberal, revista e corrigida pelo neo-liberalismo e que,

reconhecidamente, está perdendo fôlego. A briga começa a esquentar

quando as premissas de possíveis saídas são enunciadas e confrontadas

aos padrões tradicionais de análise. Propor, por exemplo, uma

hermenêutica abrangente do dogma empresarial da competitividade,

mostrando todas suas implicações internas e externas na vida das

empresas promete alguns bons embates ! Infelizmente, não dá para

“construir e plantar” sem antes “arrancar e destruir, exterminar e demolir”

(Jr. 1, 10). Dizer que os questionamentos não serão facilmente aceitos

não significa que serão recusados para sempre, principalmente porque

os impasses são cada vez mais freqüentes e graves.

Passada essa etapa, cada protagonista deve, ao mesmo tempo, ter

consciência das próprias competências e de suas limitações. Trata-se de

evoluir juntos, numa reflexão que parte da complexidade da realidade e

de todas as suas variáveis, para que o teólogo juntamente com os outros

participantes, tente arquitetar abordagens sistêmicas que possam levar a

soluções mais duradouras. A consciência dos vários horizontes de tempo

e de compreensão com os quais cada um trabalha pode ajudar a

relativizar conflitos de compreensão e de interpretação.

Para tanto, é preciso que o teólogo saia de uma postura de puro

pesquisador dedicado unicamente à elaboração dos considerandos para

aceitar pensar a relação entre idealismo e realismo, realidade e utopia, o

ideal e o possível. Essa tentativa será feita a partir de um ponto de

referência que é a Palavra de Deus, sempre imperfeitamente realizada na

nossa realidade mas absoluta na sua exigência :

“Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é

perfeito.” (Mt. 5,48).

Page 13: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 12

A posição cômoda mas estéril de quem lembra ou dita os grandes

princípios gerais e deixa aos envolvidos na prática social do dia a dia a

elaboração de soluções concretas, nunca abdicando porém do seu papel

de preposto à antecipação do Juiz Universal, precisa ser abandonada

porque não é mais levada a sério. Renunciar ao conforto do ex catedra e

mergulhar na batalha significa participar da elaboração de soluções

imperfeitas, limitadas, criticáveis e, às vezes, ambíguas. Manter as mãos

puras pode significar que já foram perdidas há muito tempo por falta de

uso !

Este seria um possível roteiro de atuação do teólogo dentro da

organização empresarial. Tenho encontrado alguns executivos

interessados em estudar teologia. Não vi ainda empresários ou

executivos contratarem teólogos como tais. Não desisto de ver isto

acontecer um dia, talvez não tão distante !

QUE PERSPECTIVAS SE ABREM NO BRASIL PARA A TEOLOGIA

COMO PROFISSÃO ?

Podemos tentar responder a esta questão considerando dois pontos

de vista : o ponto de vista eclesial e o ponto de vista da sociedade civil.

Do ponto de vista eclesial, será que nossos pastores consideram

com a clareza necessária e suficiente os teólogos como parceiros no

trabalho pastoral ? Talvez sejam considerados mais como subordinados

encarregados de explicitar ordens e diretrizes. Em muitos ambientes

sociais (inclusive nas empresas), está cada vez mais claro que uma

relação hierárquica não impede a parceria entre o superior e o

subordinado, porque se percebe que a onisciência só existe em Deus :

consequentemente não pode ser transmitida por via hierárquica ! Se essa

parceria for valiosa e importante para que a Igreja possa corresponder

mais plenamente à missão recebida, deve ser valorizada como um

ministério e uma profissão. Já que a escravidão foi abolida, deve ser bem

remunerada, permitindo que mais leigos possam exercê-la de modo

digno e eficaz. A pergunta talvez seja : será que se quer que a reflexão

teológica seja exercida por leigos ou prefere-se que continue

fundamentalmente nas mãos do clero, dos religiosos e das religiosas ?

Do ponto de vista da sociedade civil e das empresas, o teólogo

continua visto como um estranho no ninho, gozando de uma certa

simpatia por causa de um reconhecido background intelectual. Não

enfrenta tantos preconceitos. Existe uma consciência mais forte da

necessidade de analisar os cenários a partir de todas as variáveis

possíveis e o teólogo pode passar a ser considerado um interlocutor

reconhecido nesse esforço comum. A grande questão é estabelecer

pontos de contato com o mundo empresarial para que o teólogo possa

passar a atuar. Aí começará a caminhada que tentamos analisar neste

trabalho. Não imagino porém, nem desejo, que o teólogo seja empregado

com vínculo fixo pelas empresas. Seu status seria de um consultor,

remunerado em função do trabalho produzido.

Page 14: Teologia e profissionalização

O teólogo como profissional 13

Terminando, tenho plena consciência de quanto estas reflexões são

incipientes. O que me encoraja a propô-las é a certeza do que vale a

pena tentar encontrar caminhos para que o teólogo possa desempenhar

seu papel, perscrutar com a inteligência e o coração a presença atuante

de Deus num dos ambientes onde a nossa história se constrói

quotidianamente dentro de paradigmas e a partir de decisões que

precisam ser confrontadas com a Palavra. E que possa fazê-lo sendo

presente e atuante no ambiente empresarial.

BIBLIOGRAFIA : livros de análise dos problemas de management que

estimularam a minha reflexão.

• Décider ou ne pas décider

Bruno Jorrosson

Maxima Laurent du Mesnil Éditeur, 1994

• A ciência e a arte de ser dirigente

Paulo Roberto Motta

Record, 1991

• Competindo pelo futuro

Gary Hamel, C.K. Prahalad

Editora Campus, 1995

• Manager dans la complexité

Dominique Genelot

INSEP Éditions, 1992