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Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-UsoNãoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported. Teocomunicação Porto Alegre v. 43 n. 2 p. 325-355 jul./dez. 2013 TEOLOGIA NO RENASCIMENTO E NA REFORMA Theology in the Renaissance and the Reformation Urbano Zilles* Resumo Na Idade Média decadente, a teologia católica realizou-se no contexto de uma Igreja que passou pelo “cativeiro babilônico” e pelo “cisma do Ocidente”, que enfraqueceu a autoridade dos papas não só sobre o poder temporal de imperadores e reis, mas também fixou-se na doutrina dos grandes expoentes da Escolástica, desconsiderando a contribuição inovadora de filósofos e teólogos não escolásticos e dos grandes místicos. A teologia desvinculou-se, por um lado, das fontes bíblicas e, por outro, da vivência da fé. Dessa maneira, abriu-se espaço para a Reforma que dividiu o cristianismo do Ocidente e criou um abismo que separa a doutrina católica oficial do desenvolvimento científico- cultural desde o Renascimento até o Concílio Vaticano II. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Teologia. Humanismo. Renascimento. Reforma. Abstract In the low Middle Age the catholic theology happens in the context of a Church which passed a “babilonic captivity” and the occidental chismatic division of catholicism that not only weaked the authority of popes ower the temporal power of emperors and kings, but also fixed the official doctrine in scholasticism, without considering the contribution of non scholastic thinkers, theologians and mystics. The theology lost their biblical fountain and their ground in the experience of faith. In this way was given place for the Reform which divided the occidental Christianism and created a distance between the official catholic doctrine and the scientific and cultural development from the Renaissance until de second Vatican Council. KEYWORDS: Philosophy. Theology. Humanism. Renaissance. Reform. * Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nsa. Sra da Imaculada Conceição e Teologia pela Theologishe Hochschule Beuron. Doutorado em Teologia pela Universitat Münster. Atualmente é professor de Teologia na PUCRS.

Teologia No Renascimento e Na Reforma

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Teocomunicação Porto Alegre v. 43 n. 2 p. 325-355 jul./dez. 2013

TEOLOGIA NO RENASCIMENTO E NA REFORMA

Theology in the Renaissance and the Reformation

Urbano Zilles*

Resumo

Na Idade Média decadente, a teologia católica realizou-se no contexto de uma Igreja que passou pelo “cativeiro babilônico” e pelo “cisma do Ocidente”, que enfraqueceu a autoridade dos papas não só sobre o poder temporal de imperadores e reis, mas também fixou-se na doutrina dos grandes expoentes da Escolástica, desconsiderando a contribuição inovadora de filósofos e teólogos não escolásticos e dos grandes místicos. A teologia desvinculou-se, por um lado, das fontes bíblicas e, por outro, da vivência da fé. Dessa maneira, abriu-se espaço para a Reforma que dividiu o cristianismo do Ocidente e criou um abismo que separa a doutrina católica oficial do desenvolvimento científico-cultural desde o Renascimento até o Concílio Vaticano II.Palavras-chave: Filosofia. Teologia. Humanismo. Renascimento. Reforma.

Abstract

In the low Middle Age the catholic theology happens in the context of a Church which passed a “babilonic captivity” and the occidental chismatic division of catholicism that not only weaked the authority of popes ower the temporal power of emperors and kings, but also fixed the official doctrine in scholasticism, without considering the contribution of non scholastic thinkers, theologians and mystics. The theology lost their biblical fountain and their ground in the experience of faith. In this way was given place for the Reform which divided the occidental Christianism and created a distance between the official catholic doctrine and the scientific and cultural development from the Renaissance until de second Vatican Council. Keywords: Philosophy. Theology. Humanism. Renaissance. Reform.

*BacharelemFilosofiapelaFaculdadedeFilosofiaNsa.SradaImaculadaConceição e Teologia pela Theologishe Hochschule Beuron. Doutorado em Teologia pela UniversitatMünster.AtualmenteéprofessordeTeologianaPUCRS.

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A experiência da fé sempre se realiza em situações histórico-culturaisconcretase,porisso,tambéméessencialmentehistórica.Damesmaforma,a teologia,comoreflexãosobreaexperiênciada fé,éhistoricamente situada.Na evolução histórica da teologia, podemosdistinguir as seguintes etapas: a) Começos:até300d.C.ÉoperíododateologiadoNovoTestamento,dosapologistas,gnosticismo,docetismo,montanismo, novacionismo. b) Patrística (séc. IV ao VII): carateri- za-se pelo diálogo da fé com a cultura clássica helenístico-romana.Nesseperíodo,osdebatesgiramemtornodequestõescentraisda fécomo a doutrina sobre a Trindade (arianismo e subordinacionismo), sobreCristo(Calcedônia,monofisismo,monotelismo,nestorianismo),graça e predestinação (pelagianismo). c) Idade Média: elaboração esistematização do conteúdo da fé (Anselmo,Boaventura,Tomás deAquino)pelaEscolásticanoOcidente;1 d) Humanismo e Renascimento:2 em continuidade à teologia medieval, relativamente una, desenvolveu-se umasegundaescolástica,comtônicasubjetivanareflexão,desenvolvendotambém germes desagregadores (nominalismo) e reagindo contra o HumanismoecontraaReforma.d)Tempos recentes:natransiçãodoséculoXIXpara o séculoXX, instaurou-se a neoescolástica,menosfecundanateologiaquenafilosofia,decaráterrestauradoredefensivo.Evoluiunadoutrinasocial,mas foiumatrasonocampodaexegese;provocouumasituaçãoparadoxal,poisdeumladocombatiaofideísmoe,deoutro,sualutafoipoucoconvincenteporqueassumiuumaposturahostilemrelaçãoàmodernidadeeaodesenvolvimentocientífico.NoséculoXX,surgiramalgumastentativasreaisderenovaçãoprofundanateologiacatólica,atravésdavoltaàsfontes(renovaçãobíblica,litúrgica,patrística)quereceberamoavaleumimpulsodoConcílioVaticanoII.A

1 OprofessorAlessandroGhisalberti,emsuaobraAs raízes medievais do pensamento moderno (PortoAlegre: EDIPUCRS, 2001), distingue:Alta IdadeMédia, IdadeMédiaCentral(séc.XI-XII)eBaixaIdadeMédia.

2 Por humanismo,nosentidohistórico-cultural,aquientendemosoperíododoséculoXVeXVI,noqualhouveumaretomadadoestudodeautoresclássicosgreco-latinos.Ohomemjulgavatornar-semaishumanoemaisplenamentehomem,desenvolvendoassuascapacidadesfísicas,intelectuaisemoraisàimagemesemelhançadosgrandesmodelosdesabedoriaedeciência,dearteedevirtudequeaHéladeeRomatinhamrevelado em suas litterae humaniores.No sentido ideal, humanismodesignaumaconcepção domundo e da existência que tem por centro o homem, visto numavariedade de perspectivas. Por renascimento, no sentido temporal, designa-se, na sua primeirafasehistórica,ocultodashumaniores litterae queseidentifica,lato sensu, comomovimentodoHumanismo.Carateriza-sepelacanonizaçãohistórico-culturaldo reino do homem.

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nova teologia assumiu caráter pluralista, com um acento eminentemente hermenêutico,porvezes,comoriscoderenunciaràmetafísicaereduzir-seaumadescriçãofenomenológicadoespiritual.

Para entender a teologia nofinal da IdadeMédia, na época doHumanismo, do Renascimento e da Reforma, é preciso abordarbrevemente seu contexto histórico.Noperíodo de 1350 a 1517, umnovo tipo de teologia substituiu a escolástica; o papadoprimeiro setransferiudeRomaparaAvignon (1309)e,quando retornouaRoma(1377),umcismadividiuoCristianismodoOcidente.Namesmaépoca,a peste bubônica dizimava a populaçãodaEuropa.ORenascimentoreassumiuosvaloresdo ImpérioRomanopagão, tomandoaarteeaculturaanterioresaoCristianismocomoparâmetroaseguirecritériopeloqualtudodeveriaserjulgado.

DuranteaIdadeMédia,cabiaàIgreja,nãoaoindivíduo,ensinarpormeiodoclero.Oclérigoeratidocomo“mestre”,eleitoporDeus,eaelecabiamostraraopovoocaminhodasalvação,diziaRabanoMauro.3 AautoridadedesuadoutrinaestavaapoiadanaBíbliaenosescritosdosPadres.Ateologiaeraessencialmente“ciência”exegética.Opressupostoeraque,naBíblia,Deusreveloualgodesimesmoe,aomesmotempo,algodaverdadeiranaturezadacriação.Assim,RabanoMauro(784-856)afirmaqueaBíbliaexplicaomundotodo,poiselaexplicaaverdadeiranatureza das coisas. Por isso, o clérigo devia estar familiarizado com aBíblia.4Ora,atéoséculoXIIotrabalhoexegéticopredominavanosmosteiros,oque,emparte,explicaoconflitodamentalidadeaosurgiremos novos conhecimentos da ciência (heliocentrismo).

A exegese desenvolvida nos mosteiros, no período entre osséculos IX eXII, destinava-se, emprimeiro lugar, aosmonges, cujaatividadeespiritualconsistia,antesdetudo,emmeditarotextobíblico.Comentandoestetexto,aíencontravamaexpressãodesuamaisprofundaexperiênciapessoalehumana.Osmongesnãobuscavamumnovosaber,masumavisãosimbólicadacriação.Paraeles,otrabalhoespiritualeraapenasumapartedesuavidaaserviçodeDeus.OlemadeSãoBento,para seus monges, era Ora et labora (Rezaetrabalha).Questionamentos

3 RABANOMAURO. De institutione clericorum.PL107,297.4 RabanoMaurofoiabadenomosteirodeFuldae,depois,bispodeMainz.Emduasdesuasobras,espelhaasituaçãoespiritualdesuaépoca:a)De clericorum institutione, escrito para uso dos clérigos alemães de seu tempo; b)De universo é uma vasta enciclopédia,naqualrecolheaciênciacontemporânea,decarátersimbólico,religioso-moral,comoobjetivodeconhecerosignificadodascoisas,nãosuanatureza.

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dafilosofiaedaciênciaprofanapoucoafetavamàsuaespiritualidade.Contentavam-seemexporaopovoascientia sacrarum scripturarum.5

Osmosteiros,emgeral,situavam-senocampo,poissustentavam-secomaagricultura.Comosurgimentodascidadescomeçouumanovaera.ApartirdoséculoXI,aparecerammovimentosreligiososeculturaisderenovação.Osaberdeixoudeseromonopóliodosmonges.Comadensidadedemográficanascidades,houvenecessidadededivisãodotrabalho (clãs), tendo comoconsequência a especialização: padeiros,cabeleireiros,sapateiros,etc.Nessecontexto,desenvolveu-seumnovotipodeensino,umanovaclassedemestres.Essespassaramaescrevernãoparaosmosteiros,masparaoshabitantesdacidade.Ocentrodeeducação,aospoucos,passoudosmosteirosparaasescolascatedralíciasnasgrandescidades,quederamorigemàsprimeirasuniversidades.NoséculoXII,criaram-senovasformasdemonaquismo(premonstratenses,cistercienses,etc.),masconservou-seaformatradicionaldeformação.Essasnovasordensbuscavamnovasfontes(OrígenesePseudoDionísio),acentuando, em seus escritos, a psicologia da vontade e a experiência pessoal.Houvemongesqueatésaíramacampocontraaciênciadasnovas escolas: Pedro Damião (1007-1072) e Bernardo de Claraval(1090-1153).Criou-seumconflitoentreosdefensoresdaexperiênciamísticaeosdaperspicáciaintelectual,umanovaformulaçãodovelhoproblemadarelaçãoentreféerazão.

Entreosmestrespredominavamosclérigos,cujaprimeiratarefaera a de expor a Palavra de Deus. Por isso, nas novas escolas, o texto da Bíbliafoicolocadocomobasedeleitura.Osmestresapoiavam-senoscomentáriospatrísticosemonásticos.Comomuitasvezesesseseramdiscordantes,precisavamdeumaorganizaçãosistemáticaeharmoniosa.A organização ordenada da doutrina cristã encontrou sua expressãoreferencial no Liber sententiarumdePedroLombardo(finsdoséculoXI–1160),quesetornouomanualdeteologiadetodaaIdadeMédiaposterior.Oautorlecionoucercade20anosnaEscoladaCatedraldeParis.

Aos poucos, a curiosidade dos mestres dessas novas escolas levou-os paraalémdaBíbliaedosPadresdaIgreja,istoé,aosfilósofos.SurgiramestudosdalógicaaristotélicaedadoutrinadePlatão.HugodeSãoVitor(ca.1098-1141),emseuDidascalion,recorreuàterminologiafilosófica

5 LOHR,Charles.Teologiasmedievais. In:EICHER,Peter.Dicionário de conceitos fundamentais de teologia.SãoPaulo:Paulus,1993,p.917-918.

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paraateologiaeestabeleceuumadoutrinadaciência.Osclérigosnãomaispodiamtransmitir,ingenuamente,averdadedatradiçãoepregara Palavra de Deus. Doravante, também deveriam dominar as ciências dospagãoseharmonizá-lascomaSagrada Escritura.Confrontavam-sedoutrinasdosfilósofospagãoscomautorescristãos(auctoritates)e,nãoraro,surgiamconflitosentreosmistériosdaféeaciência.PreocupadoscomadoutrinadeAristótelessobreaeternidadedomundo, teólogosapelaram para as autoridades eclesiásticas.6Constatou-selogoadistânciaentreainterpretaçãotradicionaldaBíbliaeaimagemgregadomundo.Por isso,em1210e1215, foramproibidasaulas sobreafilosofiadanaturezaeametafísicadeAristótelesnaUniversidadedeParis.Apesardisso,aprimeirametadedoséculoXIIIfoidecisivaparaaconcepçãomedievaldeciênciaeaconcepçãodateologiacomociência.7

Poroutro lado,naAlta IdadeMédia, surgiuum tipo totalmentenovo de clérigo nas ordens mendicantes: franciscanos, dominicanos, etc. Procedentes de todas as camadas sociais, não se afastavam domundo para a solidão domosteiro. Emmissões pelomundo afora,tentavamresponderàsobjeçõesque se faziamcontraocristianismo.Para isso, recorriam ao conceito aristotélico de ciência na teologia, cujocampoprópriosãoasverdadesdafé.Mas,onovoclérigotambémdevia ocupar-se comos pressupostosfilosóficos das verdades da fé,apoiando-se na perfeição natural do homem. Recorria às verdadesfilosóficasfundamentaisparaexplicaraféacristãoseaindanãocristãos.Entreessasverdadesfundamentaisdestacam-seaexistênciadeDeus,suabondadeesuajustiçaea imortalidadedaalmahumana.Trata-sede verdades que são condições prévias necessárias para esclarecer,racionalmente,a fé.Quemmaisdesenvolveuessemétodo foiTomásdeAquino,quecomparaotrabalhoteológicocomodomédico,quesevolta para a natureza humana (elemento universal, comum a todos os homens)comooteólogoapelaaumabasenaturalparaaprofissãodafécristã.Enquantoametafísicaaristotélicaofereceosprincípioscomunsparaasverdadesfilosóficasfundamentais,aciênciateológicapartedosartigosdafécomoseusprincípiospróprios.

6 Ibidem,p.624-625.7 Nodia19demarçode1255,aFaculdadedasArtespublicounovoacordoquetornavaasobrasdeAristótelesobjetodeestudoobrigatório,naUniversidadedeParis.Nomesmo dia, a Faculdade das Artes tornou-se uma Faculdade em pé de igualdade com a de Medicina, de Direito e de Teologia, transformando-se numa Faculdade de Filosofiaecomeçouadesenvolverdoutrinasindependentesdateologia.

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1 Contexto político-cultural

A teologia escolástica medieval encontrou uma expressãomuito forte na Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), uma das obras primas da literatura universal.A peste bubônica vitimoumuitossacerdotes,mongesefreiras,faltandoquemlevasseadianteoserviço pastoral.Em substituição às celebrações litúrgicas, surgirammuitas celebrações comunitárias e devoções religiosas particulares.A transferênciadopapadoaAvignon(1309-1377)davaa impressão,aoscristãosocidentais,dequeopapaeraprisioneirodaFrança.Desdeo pontificado de Inocêncio III (1198-1216), na Igreja houve não sóum declínio do papado, mas uma crescente desconfiança do povofiel em relação a ele, pois foi forçado adeixarRomae alojar-se emAvignon.Como,nesseperíodo,todosospapasforamfranceses,pareciaque o papado se tornara uma instituição francesa. E isso criou umdistanciamentoentreInglaterra,queerainimigadaFrança,eopapado,pois,aosolhosdosingleses,eleeraumaliadodosfranceses.EmboraalutapelahegemoniapolíticaecomercialentreInglaterraeFrançajáfosseanterioràtransferênciadopapadodeRomaparaAvignon,elatrouxeumdesconfortomuitograndeparaosinglesesnasrelaçõescomopapadocujosefeitos,arigor,perduramatéhoje.QuandoopapaGregórioIXretornouaRoma,morrendodoismesesdepois,oscardeaiselegeramumpapaitaliano,comonomedeUrbanoVI(1378-1389).Estelogocrioutamanhahostilidadeeconfusãoentreoscardeais,quedozedosdezesseisdeclararam nula sua própria eleição anterior, elegendo o “antipapa”ClementeVII(1378-1394).Este,comseuscardeais,foiparaAvignon,iniciandoo“GrandeCismadoOcidente”.Quando,em1409,oConcíliodePisa quis superar a divisãoda Igreja, que tinhadois papas, criouumterceiro,comsedeemPisa.OConcíliodeConstança(01/11/1414)depôsostrês,pondofimaocisma,eelegeuopapaMartinhoV.8 Toda essasituaçãodeixouopovocristãomuitoconfuso.

Depois daRevoluçãoFrancesa e depois da queda do nazismo,muitas vezes se idealizou a unidadeda alta IdadeMédia comoumaespéciedeidadedeourodeumhumanismocristão.Mas,umatalunidade

8 MartinhoV, eleito, ratificou, oralmente, as decisões doConcílio deConstança edissolveu-o. Proibiu apelar do papa para o concílio. Proibiu, outrossim, o ataqueaosjudeuseobatismodeseusfilhosantesdos12anos.Mas,fraquejouadmitindoaoserviçodaCúriahomensmundanose inaugurouonepotismo, favorecendosuafamíliacomcargosnoEstadoPontifício.

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jamaisexistiu.TomásdeAquino já foielevadoàshonrasdosaltarespor JoãoXXII, o segundopapadeAvignon.Por isso, ele tornou-se,simplesmente,areferênciacentralequaseúnicaparaareflexãoteológicasobreafécristã.AexageradacentralizaçãodaobradeTomásdeAquinomuitas vezes obscureceu omérito e negligenciou a contribuição deoutrosgrandesfilósofoseteólogosdaépoca.Atradiçãodasobrasdessesteólogosefilósofospermaneceu,pormuitotempo,napenumbra.Isso,infelizmente,causouaimpressãodequeatransiçãoparaopensamentomoderno ocorreu por uma ruptura total com a philosophia perennis. Ora,talafirmaçãosomenteépossívelparaquemreduzaperspectivaàfilosofiaeàteologiadeTomás,ignorandoasobrasdeoutrospensadoresqueoprecederameoseguiramelimitando-seàletradoAquinatesemacompetênciadepensarosnovosproblemasnohorizontedeseuespírito.OshumanistaseosrepresentantesdopensamentomodernodoséculoXVI eram, na grandemaioria, cristãos que tentavamexpressar suasideiasna“visãodemundo”daépoca.

Pode falar-se da IdadeMédiaCentral, naEuropa, como tempodoOcidenteunidopelafécristã,comofenômenodeconsciência.EstaunidadedeconsciênciapredominadofimdoséculoXIatéofinaldoséculoXIIeseexpressanaideiadascruzadas,naideiada“guerrasanta”contraosheregesecismáticosparalibertaroslugaresdeperegrinaçãodaTerraSantados“inimigos”deDeus.Opapaconvocouopovopara“amais justade todasasguerras”,passandoaserreconhecidocomoa autoridade suprema.Mas, sua autoridade foi abalada até as raízes,quandoseconstatouqueasegurançanomundonãoerareal,poisascruzadas sequer conseguiram libertar a Terra Santa. Foi mais umadecepçãoparaquemdepositousuaconfiançanumaaçãomaldirigida.Talinsucesso,poucodepois,foiseguidopelocativeirobabilônico,emAvignon,epelocismadoOcidente.

Desde as últimas décadas do séculoXIII, anuncia-se, todavia,em diversos campos, uma mudança profunda da situação socialque repercute sobre a reflexãofilosófica e teológica: estagnaçãododesenvolvimento econômico e conflitos provocados pela fome.Em1291 terminaram as cruzadas. Depois da condenação das “tesesaverroistas”,em1277,aUniversidadedeParisperdeu,paulatinamente,sua fama de centro do saber científico doOcidente. Em vista dasinterferências das autoridades eclesiásticas, ela transformou-se em centrodacensuradosdebatesabertos.Comafalsaavaliaçãodasituaçãoentre o poder reivindicado e a realidade política, Bonifácio VIII

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ampliouaautodestruiçãodaautoridadepapal.AtravésdabulaUnam Sanctam, de 1302, ele reivindicou o poder espiritual supremo na terra, acreditandoque,assim,poderiacolocartodoopodertemporalaseuserviçoejulgá-lo.Comissoextrapoloutodososlimites,9enfraqueceuo papado, cada vezmais, chegando ao cume no grande “cisma doOcidente” (1378-1415), e esse enfraquecimento prosseguiu comospapas do Renascimento. Desenvolveram-se, entre o povo, novosmovimentosdepiedade,nosquais leigosexerceramuma liderança.Pela publicação de obras filosóficas e teológicas – além daDivina Commedia de Dante – na língua popular, leigos participaram nosacontecimentoseclesiásticosenadiscussãocientíficadeproblemasatuaisefundamentais.Apestebubônica,queseespalharaemmeadosdoséculoXII,chegouadizimarmaisdeumterçodapopulaçãodaEuropaocidental,nãopoupandoosclérigos.Tudoissofezcomqueas pessoas se questionassem sobre o sentido da própria existência.Diantedetodosessesnovosdesafios,adiscussãoescolásticaperdeuointeresse.Eoquesurgiuemsubstituição?

Haviaumasériedeautores,comoRaimundoLull(1232-1316),MestreEckhart (1260-1328) eGuilherme deOckham (1287-1349),cujo pensamento muito rico foi pouco estudado, mas, certamente, poderia contribuir para umamelhor compreensão da filosofia e dateologia da época e oferecer elementos para superar o abismoque,aindahoje,separaaIgrejadarealevoluçãohistóricadasociedade.SãoautoresquedificilmenteseenquadramnaEscolástica.OpensamentodeOckham,todaviaexerceugrandeinfluêncianofinaldaIdadeMédiaenaReforma.

RaimundoLull foi um leigo que, por primeiro, escreveu suasobras filosóficas e teológicas na línguamaterna, criando o catalãoliterário. Em 1274 redigiu sua obra Ars inveniendi veritatem querecebeu,maistarde,otítuloArs Magna. A ideia fundamental de uma mathesis universalisfascinouautorescomoNicolaudeCusae,maistarde, Leibniz.

9 AIgrejainvocavaadoaçãodoimperadorConstantinoI,atravésdaqualconcediaaospapasogovernodeRoma,daItáliaedetodaparteocidentaldoImpérioRomano.Mas, em 1440, o humanista Lorenzo Valla, através de uma análise filológicadetalhada,provouqueocitadodocumentoeraumafraude.AbulaUnam sanctam de BonifácioVIII,datadade18/11/1302,cf.emDH 870-875,terminacomaspalavras:“Edeclaramos,enunciamos,definimosque,paratodahumanacriatura,énecessárioparaasalvaçãosubmeter-seaoRomanoPontífice”(DH n.875).

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Lull interpreta a relação entre filosofia e teologia de maneiradiferente de Tomás de Aquino e de Boaventura. Ele quer tratarfilosoficamente todos os objetos do saber, incluindoosmistérios daTrindadeedaencarnaçãodoVerbo,poisquerdirigir-seamuçulmanosejudeus,afimdeconvencê-losdamensagemcristãcomosargumentosdarazão.Emborahajasemelhançacomoprogramadafides quaerens intellectumdeAnselmo,éprecisoatenderàoriginalidadecaraterísticado método da Ars lulliana,semparalelosnatradiçãocristã.LullpartedeumconsensodafilosofiadareligiãoquantoàindubitáveldignidadedeDeusemtodasasreligiõesquechegaramàcontemplação.

Escreveu, portanto, suaArs Magna como objetivo de pô-la aserviçodaconversãodosinfiéis.Estaobramereceu-lhegrandefama.Lullpartedaconvicçãodaunidadedaverdadee,depois,buscaummétodo para demonstrar as verdades da fé aos infiéis pormeio de“razões necessárias”. Coloca em Deus uma série de princípiosessenciais como bondade, eternidade, grandeza, poder, sabedoria, etc. e relaciona esses princípios ou atributos com sua semelhançanascriaturas.Cria,dessemodo,umalógicacomparativamaterialouontológica,naqualomovimentodosconceitossegueomovimentoda realidade.

Lull buscava um pensamento universal, para além do cristianismo. Leigo, pai de família, natural da ilha de Palma deMallorca, ondeconviveu com a cultura islâmica, dedicou-se ao estudo de línguasestrangeiras,sobretudodoárabe,paracomunicar-secomnãocristãos.10

Quandofranciscanosedominicanos,napassagemdoséculoXIIparaoséculoXIII,seexpandiamparaoNorte,aíencontraramofenômenodeummovimentoautônomodemulheres,quepartiudaHolanda.Elasdefendiam uma forma de vida semelhante à das ordens mendicantes e sustentavam-se com trabalhos manuais. Dentro desse movimento, cerca do ano 1300, Marguerite Porete (1250-1260 a 1310) escreveu o Espelho das almas simples que,em1310,foiqueimado,solenemente,juntocomsua autora, em Paris.11Entretanto,suaobraforatraduzidaparaquatrolínguas, obtendo ampla divulgação. Obras místicas, de semelhanteteor, escreveram a holandesa Hadewijch (1230-1260) e Mechthild de

10Em 1376, o papa Gregório XI condenou a doutrina de Lull, acusando-a deracionalismo.Posteriormente,MartinhoVdeclarouabulapapalsub-reptíciaenula.

11 VERWEYEN, Hansjürgen.Philosophie und Theologie. Darmstadt:WBG, 2005, p. 214.

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Magdeburgo(1208-1297).12Essasobrasexpressamapreocupaçãoeomedodenãoencontrarasalvaçãodaprópriaalma.

Omovimentoreligiosodesignadodebeguinismo,surgidonoséculoXI nosPaísesBaixos e naRenânia, pode ser consideradoprecursordascongregaçõescomvotostemporáriosedosinstitutosreligiosos.Oshomens eram conhecidos como begardos e as mulhres como beguinas. Entreessasmulheresquelevavamvidasanta,algumassãoveneradascomoSantaMariad’OignieseSantaDucelina.DepoisdacondenaçãodosexagerospeloConcíliodeVienne(1311-1317),adotaramaregradealgumasdasOrdensTerceirasouadeSantoAgostinho,permanecendoumpequenogrupofiel ao espírito primitivo até hoje.NaFrança, osseguidoresdobeguinismo somente se extinguiramcomaRevoluçãoFrnacesa. Mas na Bélgica, onde tiveram seu máximo esplendor, nos séculosXVII eXVIII, as beguinas ainda perduramaté hoje emAntuérpia,Bruges,GandeMalinas.

Nessa linha,MestreEckhart,dominicano,naturaldeHochheim,por duas vezes lecionou teologia na Universidade de Paris (1302-1303 e1311-1312),foipioneironocaminhodafilosofiaparaamísticadeseutempo.Eleapresentaumpensamentonãosistematizado,comoobjetivodeinterpretarumamisteriosaexperiênciaespiritual.Porisso,édifícilexporsuasideiascomfidelidade.OtemacentraldetodasuadoutrinapareceseraperfeitauniãodaalmaaDeus,queéosentidoúltimodaexistênciahumana.OnúcleocentraldopensamentodeMestreEckhartéformadopelaimanênciaetranscendênciadoUno,queestáemtudoe, aomesmo tempo, acimade tudo; age sobreouniversodos seres,quedeledependeme,contudo,permaneceintocávelnasuaeminência.Dessamaneira, nasce a tensãodialética entre identidade e diferençaemtodaarealidade,queéimageme,comotal,afirmaçãoenegaçãoao

12Pouco depois, conhecemos fenômeno semelhante na Inglaterra. Neste sentido,caberiadestacarJulianadeNorwich(1342-1413)quese tornouconhecidaporsuaobra Revelações do Divino Amor, emduasversões: umamais longa e outramaisbreve.Sobre esse assunto cf.FLORES, JosuéSoares.A maternidade de Deus em Juliana de Norwich.Dissertação(MestradoemTeologia)–FaculdadedeTeologia,Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. A.Ghisalbertiafirmaque“umpontoaltodocristianismomedievalrepresentamasobras de teologiamística que chegaramaté nós: nelas encontramoso testemunhodeumapráticadacontemplaçãocristãqueatingeosumbraisdauniãoestática,doarroubo do espírito do crente, quando pode sobrevir o domdivino da introduçãoinstantâneana condição sobre-humana, chamada êxtase, subtraída ao espaço e aotempo”(op.cit.,p.23).

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mesmotempo.Oserfinitoédistintodetodososoutros,edoOutroporsercriado,limitado,radicalmentemúltiploenãopodeestaremtodososoutros,masDeus, comoUnidade infinita e Identidadeabsoluta, éindistinção,ouseja,unidadeparadoxal,imanenteatudo,sememnadase dissolver e, simultaneamente, exterior a todas as coisas, sem se excluir da realidade.

OfranciscanoGuilhermedeOckhamestudouemOxford,onde,na qualidade de bacharel em teologia, comentou as Sentenças de PedroLombardo(entre1317-1319).Éconsideradooiniciadordavia moderna.13 Foi impedido de exercer o magistério por ter sido acusado pelo chanceler João Lutterell de heresia.14 Mas, estudos recentes proporcionam-nos uma nova imagemdeOckham, bemdiferente datradicional.Segundonovasinterpretações,elenãocontesta,globalmente,as doutrinas escolásticas, mas tenta conciliar a filosofia aristotélicacomomaisgenuínopensamento franciscano.Optou,decididamente,pelosseressingulareseconcretos,únicosobjetosdavontadecriadorade Deus e, consequentemente, negou o universal imanente, formal(Escoto)oupotencial(TomásdeAquino)paraexpressar,logicamente,o contingentismo radical do mundo criado, de acordo com o primeiro artigodocredocristão.15SegundoOckham,admitirumanatureza,noseiodocontingente,representaumaconcessãoaorealismoplatônicoeequivaleaimporumlimiteàliberdadeabsolutadeDeus.SomentepelarevelaçãofoidadoaohomemconhecerqueseufimúltimoéDeus.ParaOckham,Deus pode fazer tudoquenão inclua contradição, ou seja,Deuscomporta-sesempresabiamente,poistodooseuquererpositivoéracionaleordenado.Ofilósofoinglêsnãonegaumasemelhançaentreos

13Aristóteleseateologiaescolástica,queoseguiu,pressupunhamquetodasascoisasdanaturezaerammaisquedetalhesempiricamenteperceptíveis,poisincluíamumaessência,umaformametafísica.SegundoOckham,ohomemformaosconceitosdeessênciasuniversaisparaordenarosfenômenosdentrodeumtodomaior.

14JoãoLutterelacusouOckham,em1323,juntoaopapaJoãoXXII,emAvinhão,deheresia,apontando56proposiçõessuspeitasdeseuComentário às Sentenças.QuandooministrogeraldosfranciscanostambémfoichamadoaAvinhão,porcausadeumadivergenteinterpretaçãodapobrezafranciscana,depoisdediscussões,ogeralMiguelCesenaeOckhamfugiramparaaItáliaembuscadeproteçãojuntoaoimperadorLuísdaBaviera.Excomungados,ambosrefugiaram-seemMunique.

15G.Ockhamdefendeaconcepçãodequeosuniversaissomenteexistemnoespíritohumano,nãoforadele.Segundoele,arealidadeéconstituídaapenasdeindivíduose os universais são igualmente coisas individuais: signos no espírito humano. Ageneralidadedouniversalsomentedizrespeitoàsuafunçãodesigno,poispode ser signo de várias coisas.

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seres, mas apenas a existência de uma realidade, diferente da realidade própriadecadasersingulareconcreto.Assim,ouniversalperdecaráterrepresentativo, transformando-se num sinalmeramente significativoe referencial.Este é, em resumo, o nominalismoou conceptualismorealistadeOckham.Porisso,A.Ghisalbertiafirma:

Ahistoriografiamaisrecenteadmitiu,definitivamente,doisaspectosbásicosdaobradeGuilhermedeOckham.Emprimeiro lugar,omestre inglês, iniciador da via moderna,nãofoium“nominalista”no sentido negativo do termo.16

Ele introduziu uma perspectiva nova no campo da filosofia,reivindicando“oprimadodoindivíduoemrelaçãoaogêneroeàespécie,como presença irrepetível e inextinguível, em um cosmos criado eordenadopelo‘poderinfinitodocriador’”.17Ockhamtambémassumiuumaposturacríticaemrelaçãoaousodoaristotelismonateologia,poisestavaconvencidodequeestadeveriaestruturar-sesegundocategoriasfundamentalmentebíblicas,comohoje,sobretudodepoisdoVaticanoII,édepraxenateologiacatólica.

Ora,sempreémaisfácilparaaautoridadesilenciarouexcomungarpensadores críticos, quando lhe falta a competência de discutir osproblemas que formulam. Quando a autoridade carece da força doargumento é seduzida, facilmente, a apelar ao argumento da força.Na passagem da Idade Média para os tempos modernos, fizeramfalta à hierarquia da Igreja a contribuição crítica deRaimundoLull,MestreEckhart,GuilhermedeOckhameoutroscomoDante,PetrarcaeBoccaccio.A reduçãodafilosofia e da teologia às formulações deTomásdeAquinoeBoaventura,pormelhoresquesejam,empobreceuaIgrejanoconfrontocomosnovosproblemasdamodernidadeporquelhefaltouoespíritodoAquinate.Ockham,alémdisso,ofereceuumacontribuição essencial para o desenvolvimento da ciênciamoderna,pois a novidade da época foi a aplicação sistemática dométodo daanáliseedasíntese.Asciênciasdanaturezaindagamdo“átomo”oudaúltimaunidadeindivisíveldascoisas.Nomundosocialpergunta-se,analiticamente,peloindivíduocomounidadeindivisíveldasociedadeeapartirdeinúmeraspartículaslivresconstruirumaordemjusta,atravésdo contrato social.

16GUISALBERTI,op.cit., p. 45.17Ibidem.

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Na transição da IdadeMédia para os temposmodernos, cabe,outrossim,umlugarsingularaNicolaudeCusa(1401-1464),bispoecardeal.Elenãopertenceàumacorrente,mastambémnãocompartilhaas sutilezas escolásticas. Aprende no contato com os precursores do Renascimento e doHumanismo, ultrapassando suas ideias. Suaobrafilosófico-teológica não apresenta um sistema organizado. É umhomemquetranscendesuaépoca,nateoriaenaprática,antecipandoamodernidade.

NicolaudeCusafoi,semdúvida,umdosfilósofosmaisoriginaisecriativos.Maisquefilósofo,foi,sobretudo,teólogo,homemdaIgrejanafronteiradedoismundosemtensão:omedievaleorenascentista.Seupensamentoeratãocorajosoquepodiaenglobaracoincidênciadosopostoseadoutaignorância.EmA Douta ignorância(1440),NicolaudeCusaexpõesuateologianegativa.Aideiacentraléa“coincidênciadosopostos”.Ohomemfazpartedomundodadualidade,masparaelevar-se até Deus, ele deve atingir o lugar onde os opostos se resolvem na unidade, ou coincidem em Deus.18Entretanto,seupensamentofilosóficoeteológico,infelizmente,foilevadopoucoasériopelateologiacatólica.19 OprojetodoCusanobaseava-senumduplofundamento:a)Somenteatravésdeumamediaçãofilosófica,organizadasistematicamente,podelegitimar-seuniversalmenteafécristã,perantearazãolivre.b)Elenãoacreditanorecursoàforça,masnodiálogocomoutrasreligiões.

Nicolau de Cusa conhece as três grandes concepções sobre arelaçãoentreféeciência,herdadasdapatrística:credo ut intelligam; intelligo ut credam; credo quia absurdum.Mas,nãoadereànenhuma,talequal,poisentendeessarelaçãoapartirdasorigensdeseufilosofar.Segundoele,arelaçãoentreféeciênciaéintegradoraenãodialética,demodoquenãoopõeapurafé(sola fides) ao conhecimento absoluto.

18CUSA,Nicolaude.A douta ignorância.TraduçãodeReinholdoAloysioUllmann.PortoAlegre: EDIPUCRS, 2002. No capítulo IV lemos: “Às oposições convêmsomente aquelas coisas que admitem algo que excede e algo que é excedido elhes convêm diferentemente; mas de nenhum modo elas convêm ao máximoabsolutamente,porestaralémdetodaoposição.Comooabsolutamentemáximoédemodoabsolutoematotudoquantopodeexistir,edetalmodosemqualqueroposição,desortequeomínimocoincidecomomáximo,entãoigualmenteestáacimadetodaafirmaçãoenegação”(p.49).

19Em1964, por ocasiãodo5ºCentenário demorte, a editoraHerder deViena, sobcoordenaçãodoProf.LeoGabriel,publicouumaediçãobilíngue(latimealemão),emtrêsvolumes,dasobrasfilosófico-teológicasdeNicolaudeCusa.

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Olugardamaiorconcretude,narelaçãoentreféeciência,paraoCusano,éohomem.E,aorigemdafilosofiadeNicolaudeCusaestánarelaçãoimediatadoserpessoaldohomemcomarealidadeenoprocessomediadordateoria.Emtodapossibilidade,segundoele,pressupõe-sedeterminadosprincípiosquesósecompreendematravésdafé,comaqualseconsegueavisãodaquiloquesequerinvestigar.Cadapessoaquequeiraalcançaraciência,deverácrernela.Portanto,aféincluitudoqueéracional.Opensamentoracionaléodesenvolvimentodafé.Nessesentido,féeciêncianãoseopõem,masencontram-senumarelaçãoderealizaçãoimediataeobjetividademediada;umarelaçãocujaexistênciaéopressupostodoserteórico-práticodohomem.Porisso,adquiriraatitudedafésignifica,emprimeirolugar,conquistarateoriaviva,poisoespíritorealizadoéodesenvolvimentodafé.20

Enfim,nofinaldaIdadeMédia,encontramosgrandesfilósofoseteólogosquetrabalhamcomoconceitoplatônicodeciência,colocandoa filosofia da matemática a serviço da teologia, pensadores comoNicolaudeCusa,RaimundoLull,etc.Emsuavisãodemundo,maisdeterminadaporPlatãoqueporAristóteles,há,porumlado,espaçoparaaespiritualidademísticae,poroutro,nascem,deformaembrionária,asciênciasmodernas.AobradeNicolaudeCusarompecomatradição,pois o número passa a ser a imagem originária e a meta da visãodecorrentedaprópria razão.Na imagemorigináriadeDeus, formaeconfiguraçõescoincidem.Demaneiraembrionária,nelejáencontramosamodernaautocompreensãodohomem.

2 Transição da Idade Média para o Renascimento

Nessecontexto,noséculoXV,comaascensãodafamíliadosMedici,desenvolveu-seemFlorençaumaformadeRenascimentoeHumanismocomsuavisãodo“novohomem”.AascensãodosMediciàliderançapolíticaeculturalnaItáliafoifavorecidapordiferentesfatores,nalutapelopoderentreasCidades-EstadoeoEstadodaIgreja.Comobanqueiros,osMedicigozavamdeumaposiçãoimportantejuntoàCúriapontifícia.Destaca- ram-sepelomodocomotransformaramarepúblicalivredeFlorença,comsuainfraestruturacomplexa,numgrandedomínio.Paraisso,colaborousua capacidade de, como mecenas, instrumentalizar arte e ciência.

20 GABRIEL,Leo.Introdução.In:KUES,Nikolausvon.Die philosophisch-teologischen Schriften.Viena:Herder,1989,v.I,p.XXI-XXIV.

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Os Medici projetaram-se como construtores da República deFlorença, e foram reconhecidos no mundo, sobretudo como patro- cinadores da arte de imprimir e da arte educativa como seu meio de comunicação mais eficiente. Essas artes, ligadas aos progressos damatemática,contribuíramparadesenvolvernovasformasdeterminantesdoRenascimento e doBarroco.OsMedici patrocinaram renomadosartistas na sua corte, dando-lhesgrandes tarefas na construção sacraeprofana,incluindorenomadospintoresdaépoca.Porsuainfluência,concorrerame rivalizaramcomdoispapasemecenasnocomeçodoRenascimentonaItália:NicolauV(1447-1455)ePioII(1458-1464).

NocomeçodoséculoXVI,asituaçãoemFlorençaeRomamudouradicalmente,poisaFrançamostrarainteresseemtodaItália.SófoiimpedidapelaligaentreEspanha,Habsburg,InglaterraeosEstadositalianos.Ojogolivre,entrepolíticaculturalepoder,foiabsorvidoemfavordosinteressesdopoder.Comisso,implantou-seumadecadênciapeloabusodopoderespiritual,atravésdospapasdoRenascimento:AlexandreVI(1492-1503)eJúlioII(1503-1513).LeãoX(1513-1521),o primeiroMedici no trono pontifício, surdo ao grito por reforma,continuou a construçãodabasílicadeSãoPedro, sendoomecenasdeartistascomoMiguelÂngelo(1475-1564)eRafael(1483-1520).MasosrecursosparaaobradabasílicaedospaláciosforamtiradosdaCúriaedoEstadodaIgreja.Dessarte,LeãomanteveodomíniodesuafamíliaemFlorença.ACúriapontifíciatambémbuscourecursosparaconcluirabasílicaeospaláciospontifíciosatravésdavendadasindulgências, recorrendo à plenitude do poder papal, com promessas bemcalculadasparagarantirum lugarnocéu.Nasituaçãoconfusaopovobuscavaapoioemalgopalpável,comoocultodasrelíquiaseperegrinações aos lugares santos.Ora, ahierarquia explorou essatendênciadapiedadepopular.Séculosantes,opapajáconvocaraascruzadas, com a garantia das indulgências, ou seja, com a promessa doperdãodaspenastemporaisdospecados.OserdorepresentantedeCristona terraadquiriu,assim,realidadenaaparênciaestética,masperdeu a credibilidade.

HansjürgenVerweyen,professoreméritodeteologiafundamentalna Universidade de Freiburg, distingue dois momentos importantes na artedoRenascimento,comoparteirado“homemnovo”:

a) As catedrais góticas já eram obras magistrais das formasgeométricas.Mas, essas obras como tais não enfocavam aforça criativa do homem.Aharmonia de suas formas antes

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indicavaparaaprofundidadedeumser,sobreoqualohomemnãodispõe.Asproporções claras e visíveis das construçõesrenascentistasmanifestam,imediatamente,aforçacriadoradomestrehumanoeopoderdeseuspatrões.Háumaseduçãoparao senhorio imanente a essa arte.

b) A descoberta da perspectiva ultrapassa o renascimento da antiga famadasbelasaparências.Elatemparticipaçãoessencialnosurgimentodeumanovaautoconsciência.ComP.Florenskijpodedizer-seque,napinturaperspectivista, sevêopecadooriginal dos novos tempos.21

A arte da perspectiva, como potência do homem, tornou-se o meioparaumareferênciadamodernidadeabertaaoinfinito.Apinturaperspectivista conduz o sujeito para o infinito, ou seja, na épocacolonialista,despertaaideiadequeopoderdohomemseampliaparaalém de todas as fronteiras.22 À arte da perspectiva ineremmuitaspossibilidades.E isso semanifesta nohumanismo renascentista, quesoube explorá-las, como bem já o mostrara a obra A visão de Deus (1453)deNicolaudeCusa.23

A visão de Deus representaumpontoaltonahistóriadateologia.Eissosecompreendeaoconsiderarascircunstânciasdesuaorigem.Nelaconfluemdoismovimentos:a)NicolaudeCusaconcluiuseusestudosmatemáticos em 1453, com a obra De mathematicis complementis e enviou o escrito, juntamente com um comentário De theologicis complementis,aopapaNicolauV.Essecomentáriopodeserconsideradoum primeiro projeto do De visione Dei. b) Ao mesmo tempo, como bispo de Brixen, permaneceu em correspondência com o mosteiro de SãoQuirino,juntoaoTegernsee,entãoemestadodereforma.Aquestãocentraldadiscussãoera saber emqueconsiste a teologia mística.Oenvio de A visão de Deus aos monges constitui o apogeu desse debate.

A visão de Deus é umameditação que gira em torno de umaimagem,naqualotemafundamentaléaperspectivapararefletirsobreaessênciadeDeus,quetudovêeévistoportodossem,contudo,servisto.AimagemescolhidapeloCusanoensinaqueosaberhumanoéumasimplesconjetura,umsimplesprojetodeaproximaçãodaverdade.Seoobservadorcaminhadeumlugarparaoutro,semperderdevistaa

21 VERWEYEN,op.cit.,p.27.22 Ibidem,p.238.23CUSA,Nicolaude.A visão de Deus.Lisboa:CalousteGulbenkian,1988.

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imagem,elepercebequeoolhar,quepartedessaimagem,abrangetodasas perspectivas na coincidentia oppositorum. Teologicamente é decisiva aafirmaçãonocapítuloVI:“Oteuolhar,Senhor,éatuaface.Porisso,quem te olha com face amorosa não encontrará senão a tua face, a olhá-loamorosamente”.24EmudandodeperspectivadavisãodeDeus:

Contemploagoranoespelho,naimagem,noenigma,avidaeternaporque ela não é senão a visão bem-aventurada, na qual jamaisdeixas de me olhar com o máximo amor, até o mais profundo da minha alma.25

Estacompletamudançadeperspectivacorrespondeauma teoriado conhecimento, segundo a qual o apóstolo Paulo criticou a “razãognóstica”.Ora,aoladodessasexplicações,fundadasnaEscrituraenaTradição,quedificilmenteteriammotivadoadivisãodaIgrejaocidental,predominaumateologiafilosóficaqueébemdiferentedoDiscurso sobre a dignidade do homem,dePicodellaMirandola,quecontémsuasideiasfundamentais e foi acolhido, comgrande entusiasmo, no círculo doshumanistas.SegundoPico,“nascemosparaseroquequeremosser”.26 EmtudoohomemquersercomoDeus.Sequeremos,podemossê-lo.Éverdadeque,segundoojovemfilósofoitaliano,foiDeusquecolocounohomemogermeparatornar-seoescultordesuaprópriavida.Picobuscareconciliarfilosofia e teologia comomestrasno caminhoque conduzparaDeus.Masfrenteàutopiadeumapazuniversal,entrefilosofiaseteologiasdetodaespécie,irrompeuumgrandeimprevisto:aReforma.

Enquantoosescritoresdapatrística,emgeral,combatemasoutrasreligiõeseTomásdeAquinoseatinhaaessaposição,considerandoatodascomo um mal,27NicolaudeCusaexpõe,pelaprimeiravez,demaneira 24CUSA,Nicolaude.A visão de Deus.Lisboa:CalousteGulbenkian,1988,p.150.25Ibidem,p.145.26Cf. comentário deZILLES,Urbano.Pessoa e dignidade humana. Curitiba:CRV,

2012, p. 64-66. Pico della Mirandola escreveu seu texto Oratio de hominis dignitate aos24anosdeidade.Queriadefender900tesesdefilosofiaperanteumjúri.Suasteses,entretanto,foramcondenadasporInocêncioVIIIeoautorfoiexcomungado.SegundoE.Cassirer,essediscursodePicodellaMirandolacontém“aquintessênciade suas ideias fundamentais”. Cf. PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. A dignidade do homem.SãoPaulo:GRD,1988.

27 S. th. II-II, q.10, a.11.DizTomásdeAquino: “Os ritos, porém, de outros infiéis,que nada de verdade ou de utilidade apresentam, não devem ser tolerados a nãoserparaevitaralgummal;istoé,oescândalooudissídioquepoderiamprovirouoimpedimentodasalvaçãodaquelesque,aospoucos,setolerados,seconverteriamàfé”.

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explícita,osfundamentosfilosóficoseteológicosdeumatolerânciareal.Podem resumir-se suas principais ideias a respeito: o Logos, a Palavra deDeus,querreuniratodososhomens,masrespeitandosuanatureza,queéaimagemdeDeus.Segundoele,todososhomenssãoreflexosdo Logosdivino,querespeitanelesofundamentodesuarazãoedesualiberdade.Neste ponto, da tolerância em relação às outras religiões,suaposturaérevolucionárianaépoca.ElevêtambémnapregaçãodeMaoméumreflexodoLogosdivino,umapalavraqueprocededeDeus.DescobresemelhançasprofundasentreossacramentoscristãoseosritosdeoutrasreligiõeseachaquerefletemapresençadomesmoLogos no mundo.Éa traduçãodeumemesmomistériodivinoparadiferenteslinguagenssimbólicas.28

3 Humanismo e Renascimento

Em1414terminouocisma,masopapadoestavaprofundamenteenfraquecido, pois a vaidade humana comprometeu seriamente acredibilidadedaIgreja.EntreaentronizaçãodeClementeV,em1305,eaentronizaçãodeMartinhoV,em1414,passou-semaisdeumséculo.Como se tudo isso não bastasse, o papaMartinhoV, que foi eleitopeloConcílio,logodepoisdeeleito,traiuseuseleitoresconciliaristas,afirmandoquenenhumconcíliopoderiamanter a autoridade sobreopapado.Nessecontexto,tambémnãohaviaclimaparagrandesreflexõesteológicas.Liam-seescritoresmísticoscristãoscomoEckhart (1260-1328), Tauler (1300-1361),29 Suzo (1295-1360),30 entre outros. EmfinsdoséculoXIV,noNorteda Itália,nascidades-estado,sobretudoemFlorençaeRoma,iniciouummovimentocomplexoquemudouogostoliterário,artísticoefilosóficodaEuropainstruída.EmFlorença,o movimentocontavacomoapoiodafamíliaMedicie,depois,emRoma 28Cf.MASSEIN,Pierre.TeologíayReligiones.In:POUPARD,Paul(Org.).Diccionário

de las religiones.Barcelona:Herder,1987,p.1739.29JohannesTauler é ummístico alemão, dominicano, discípulo deEckhart.Depoisde ordenado sacerdote, tornou-se exímio pregador e grande mestre espiritual. Éconsiderado umverdadeiro precursor de São João daCruz.Dele apenas existemsermões,algumascartasetrêsinstruções.

30ObeatoHenriqueSuzo,dominicano, foiumescritormístico.FoialunodomestreEckhartecolegadeTauler.Entresuasobrasdestacam-seLivro da Verdade (1327) e Livro da eterna sabedoria (1328). Parece ser o mais acessível dos místicos alemães.

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comoapoiodospapas.Essemovimento foichamadoRenascimentoporqueexaltouaculturadaantiguidadegreco-romanaeafilosofiadePlatão.“Ateologiaescolásticafoiconsideradaáridaemseuconteúdoe bárbara em seu estilo literário”.31 Enquanto naAlemanha homenscomoNicolaudeCusa(1401-1464)eErasmo(1466-1536),fundiramo saber clássico do Renascimento e a piedade bíblica num huma- nismo explicitamente cristão, o pensamento dos italianos renas- centistas como Petrarca, Ficino e Pico della Mirandola era de cunho mais secular.

A teologia filosófica do humanismo italiano é uma viagemaventureiraparanovasdescobertasnomundodoespírito.Ela rompeosestreitoslimitesdeumaescolásticadoutrinariamentepetrificada.Elatransmite preciosos tesouros para a modernidade, contribuindo para um novotratamentohermenêuticodetextosantigoseparaumaconsideraçãohistórico-críticadedocumentoscristãos.Emoutraspalavras,lançouasbases para uma abertura a um cristianismo atualizado, um cristianismo com forte elemento místico, integrado no mundo da embrionáriatecnociência.OhumanismoevidenciavaanecessidadedeumarevisãofundamentaldoestudodaBíbliaedostextospatrísticos.

Éprecisolembrarque,noanode1277,obispodeParispublicarauma célebre lista de 219 sentenças condenadas, distinguindo 179doutrinasfilosóficaserrônease40teológicas.Surgiuumaperseguiçãoaerrosdoutrináriosqueforamcensuradosporque,navisãodealgunsteólogos,significavamdesviodafécatólica.Assim,teólogoscomeçarama apontar listas de errores philosophorum.Muitasopiniõesdoutrináriaseramqualificadasdeperigosas,nocivasou,pelomenos,suspeitas.Nãofaltaram as controvérsias teológicas. No decreto de condenação de1277,dizia-se:“Poiselesdizemquealgoéverdadeirodeacordocomafilosofia,masnãodeacordocomafécatólica,comosehouvesseduasverdadescontraditórias”.Nessasituação,opoderpapalapelou,cadavezmais,àautoridadedoclero,noqueserefereàtransmissãodaherançacristã,processando-seuma“reservademercado”dateologiaaoclero.Por um lado, a Igreja se clericalizou e, por outro, dentrodoprópriocristianismo nascem tendências laicizantes.

Emvistadasexigências,muitasvezesexageradas,dos teólogospapaisparaimporaautoridadedaSantaSé,Ockhamtentarapôrlimites

31RYAN,HerbertJ.AIgrejanahistória.In:RAUSCH,ThomasP.(Org.).Introdução à Teologia.2.ed.SãoPaulo:Paulus,2009,p.95-125.

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aoautoritarismodopapa.ParasuperarocismadoOcidentequando,simultaneamente,haviatrêspapas(Roma,AvignonePisa),oConcíliode Constança (1414) votou por nações, afirmando sua autoridadesupremasobreaIgreja,paraforçarospapasdeRomaePisaàrenúnciaedeporodeAvignon.Muitos,porconsequência lógica,aderiramaoconciliarismo,ou seja, à doutrina segundoaqual o concílio enãoopapaéaúltimainstâncianasdecisõesdaIgreja.Aliás,pareciadifícilencontraroutrasolução,emvistadosfatosocorridos.32

O humanismo italiano doQuattrocento exerceu uma profunda influênciasobre todooOcidente,demodoqueocentroespiritualsetransferiu deParis para a Itália.NaEspanha o arcebispo deToledo,cardealXimenes deCisneros, umhumanista decidido, realizouumareforma da Igreja antes da Reforma de Lutero. Henrique VIII, naInglaterra, assessorou-se do humanista Thomas Morus, que depoiseliminou.

AsituaçãonaAlemanhaeradeinsegurança.Opovoeraexploradopelahierarquiaeclesiásticaegritavapormudança,propagandoamísticaeadevoçãomoderna,33naesperançadeencontrarguiasespirituaisseguroseconfiáveis.Nasuniversidadesopunham-setomismoeockhamismo,ouseja,a“viaantiga”ea“viamoderna”.MaisqueemoutraspartesdaEuropa,naAlemanhaohumanismoatingiragrandepartedoscidadãos,nãosóaselites,poisaimpressãodelivrosfacilitaraacirculaçãodasnovasideias.Assim,todoaquelequesabialereescrevereraconfrontadocomasconquistasdoHumanismo.NessecontextoaconteceuodebateentreErasmoeLuterosobreolivre-arbítrio.

32OdecretoHaec sancta,aprovadona5ªsessão,afirma:“Legitimamentecongregadono Espírito Santo, constituindo concílio geral e representando a Igreja católicamilitante,esteconcíliotemseupoderimediatamentedeCristo;etodos,qualquerqueseja seu estado ou dignidade, incluso o papa, está obrigado a obedecê-lo em matérias relacionadascomafé,aerradicaçãodaditaheresiaeareformageraldaIgrejadeDeusnacabeçaenosmembros”.Terminoucomocisma,elegendoMartinhoVqueentronizou, em 26/11/1417.

33 A devotio modernaéummovimentodeespiritualidadecristã,quesurgiunosmeiosreligiososflamengosdoséculoXIV,influenciadopelasdoutrinasdeSantoAgostinho.Essemovimentoconcebiaaasceseespiritualcristã,dentrodapráticamonástica,comoserviçoaDeus,salientando,todavia,apreeminênciadacaridadecomoexpressãodaunião espiritual comDeus.Dava-sepreferência àmeditaçãopessoal em relaçãoàespeculaçãointelectual.Dentrodessemovimento,nasceramobrasmarcantescomoa Imitação de Cristo deTomásKempis.Enfim, adevoçãomodernapropunhaumestilodevidacristãmaiscontemplativoeinteriorizante.Nessamesmalinha,situa-sea prática dos Exercícios espirituaissegundoométododeSantoInáciodeLoyola.

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ErasmodeRotterdam(1466-1536)jáeraconhecidocomoumdosteólogosmaisfamososdaEuropaquandoLuteroentrouemcena.Elefoiordenadosacerdoteem1492.Em1519,quandoErasmoseencontravaem Lovaina, recebeu uma carta de Lutero, convidando-o a aderir à Reforma.Elerespondeubenevolamente,recomendandoaLuteroquenãorecorresseàviolência.

Adificuldadecentraldadiscussão,entreErasmoeLutero,residenofatodeambosterempartidodeumconceitoinsuficientedeliberdade.Naquestãodaliberdadedivina,LuteroseguiaatradiçãodeG.deOckhame,quantoàliberdadehumana,limitara-seàliberdadedeescolha.Em1524,forçadopelascircunstâncias,Erasmoposicionou-se,porescrito,contra as teses deterministas de Lutero em De libero arbítrio,aoqualLutero respondeu com De servo arbitrio (1525).Erasmoreplicoucomo Hyperaspistes (o defensor), criticando o trabalho do movimento luterano.NoEnchiridion militis christiani (1503),Erasmo ironiza omonaquismoeacorrupçãodocleroeexaltaumaespiritualidadevoltadaàformaçãodohomeminterior,baseadanoamoraDeuseaopróximo,opondotalformaçãoàspráticasmeramenteexterioresdareligiosidadepopular.Nofundo,Erasmofoiumpacifista.Quando,em1535,opapaofereceu-lheochapéucardinalício,recusou-o.

LuterotinhacomocolegaFelipeMelanchton(1497-1560)que,apartirde1518,tambémfoiprofessornaUniversidadedeWittenberg.Ele era tido como um dos principais humanistas de seu tempo,incansável no empenho para obter umamediação conciliadora noconflitoentreRomaeaReforma.Nadiscussãosobreolivre-arbítriohumano mostrou paciência, pois Lutero o convencera da causa da reforma. Permaneceu seu amigo e conselheiro até a morte, sem renunciaràcrítica.

Melanchton foi conselheiro daDieta deEspira e participou doencontro de teólogos (Zwinglio-Lutero) deMarburgo. Na Dieta deAugsburg (1530), redigiu a Confessio Augustana e sua Apologia. Para Trento (1551) compôs aConfessio Saxonica. Depois de entrar em conflitocommuitosteólogosprotestantes,morreusolitário.Em1521Melanchton,comoLutero,afirmaraqueavontadehumananãoeralivre,emvistadapredestinação.DepoisdefazerumcomentárioàCartaaos Colossenses,em1527,todavia,moderousuaposição,reconhecendoqueohomemélivreparaaceitaravontadedeDeus.Emoutraspalavras,passouaaceitarumatohumanolivre.SuaobramaisconhecidaéLoci communes (1521),naqualdefendeasposiçõesluteranasetornou-seum

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dosclássicosdateologialuterana.OpróprioLuterodiziaque“depoisdaSagradaEscrituranãohálivromelhor”.34

4 A Reforma e a divisão do cristianismo ocidental

Nocontextodeumpapadoenfraquecidoedoidealdocristianismoemcrise,naIgrejadoséculoXVI,omovimentoreligiosodaReforma,desejadahámuitotempo,assumiuforma.Essemovimentoqueriaavivara fée simplificarapráticacristã,atravésdapregaçãodoEvangelho.Partindodohumanismocristão,doamoràBíbliaedaorientaçãonopensamentodeSantoAgostinho,ummovimentoconciliaristaemsuavisãode Igrejaecríticodopapadorenascentista, foiencabeçadoporMartinhoLutero(1483-1546)eJoãoCalvino(1509-1564).

AIgreja,noseucaminhohistórico,semprenecessitadereforma:ecclesia semper reformanda.Nelaocorreramgrandesreformasligadasaosmovimentos deSãoBento, deCluny,GregórioVII e as ordensmendicantes.NofimdaIdadeMédia,haviaumasituaçãodedecadênciatãogravequeexigiamudançasprofundasnacabeçaenosmembros.Porumlado,haviaumamundanizaçãoeumfiscalismoexageradodacúriaromana,doepiscopadoedoclero,decadênciadoscostumesedeficiênciasnaformaçãodoclero,umverdadeiroproletariadoclerical.Poroutro,napiedadepopular,reinavaumexteriorismo,criandoumaperturbaçãoreligiosanoseiodopovo,quedesejavaumapiedadeinteriorizada.Alémdisso,haviaumaperturbaçãosocialpelapassagemdaeconomiaagráriaàmonetáriaeoconsequenteiníciododesenvolvimentoparaoEstadomoderno.

NaAlemanhahaviaumclimapreparadopelohumanismo,lideradoporErasmo:propunhaadevotio moderna,faziaumacríticaprocedenteà Igrejadaépocaebuscavaumafundamentaçãobíblicamaissólida.Na teologia e nafilosofiapredominava, entre os reformadores e nasuniversidades, o nominalismo (via moderna).Entreopovopersistiamseitas:osvaldenses,oshussitas,etc.OsmentoresdaReforma(Lutero,

34Em 1537,Melanchton assinou os artigos deEsmalcalda, com a restrição de queaceitaria um papado reformado: “Eu, Filipe Melanchton, também considero osartigos acima corretos e cristãos.Quanto ao papa, entretanto, penso que, caso sedisponha a admitir o evangelho, tambémnós lhepodemos conceder, por amordapazedaunidadegeraldoscristãosquetambémestãosobeleepossamestarsobelefuturamente,asuperioridadesobreosbisposqueelepossuiiure humano”.Livro de Concórdia.PortoAlegre:Ed.Concórdia;SãoLeopoldo:Sinodal,1980,p.340.

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Zwinglio,MelanchtoneCalvino),cadaumdelescontavacomoapoiodenumerososamigos,tantodocleroquantoleigos,ecidadesinteiras,comseuspríncipeseautoridades,colocaram-sedoladodaReforma.

Considera-se comodata de início daReforma a publicaçãodastesesdeWittenberg (31/10/1517)sobreas indulgências,emboraesseescritoaindanãocontivesseprogramadereforma.Noandamentodoprocesso deRoma contraLutero, entrou em cena o príncipe eleitorFrederico daSaxônia, defendendo-o.ELutero, em1520, define suaposição e seu programa de reforma, através dos escritosÀ nobreza cristã da nação alemã; Acerca do cativeiro babilônico da Igreja; e Sobre a liberdade do cristão. Lutero também passou a contar com o apoiodeumfortemovimentopopular.ApartirdabuladeexcomunhãodeLutero, em janeiro de 1521, aReforma espalhou-se rapidamentepelaEuropa:Alemanha,Suíça,Dinamarca,Holanda,Inglaterra,França,Suécia,FinlândiaeNoruega.CidadeseEstadosinteirosdaAlemanhasubstituíramosritostradicionaisdecultopela“missaalemã”eaordemdeserviçodivinodeLuteroqueelepublicaraem1526.Emfevereirode1529,oReichstagexigiuqueosterritóriosquetinhamsubstituídoaliturgiadaIgrejavoltassemapermiti-laequedevolvessemosbenseclesiásticos confiscados. Os territórios luteranos, representados noReichstag, protestaram, formal e oficialmente, contra essas ordens.Desdeentão,osreformadorespassaramaserchamadosprotestantes.

A resposta às questões levantadas pelos reformadores demoroumuitoporpartedeRoma,poisoConcíliodeTrentorealizou-seapenasnoperíodode1545-1563,quandojáeratardeparaumareconciliação.Nasituaçãoentãocriada,seriadifícilumareconciliaçãodevidoàformaçãodeconfissões,combaseterritorialepoliticamenteorientada.AsfrentesendurecidaslevaramàguerradosTrintaAnos(1618-1648).NaDietadeAugsburgo(1555),oimperadorCarlosVjátevequereconheceracisãoreligiosa da Alemanha.

SeguindoopensamentodeDunsScotus,WilliamOckham(1285-1349)eGabrielBiel(1420-1495),35 os reformadores salientaram tanto

35 GabrielBielestudouemHeidelbergeErfurt.ElefundouaFaculdadedeTeologiadeTübingeneingressounaCongregaçãodosCônegosRegularesdeSantoAgostinho.Entre seus escritosdestacam-seoComentário às Sentenças e a Expositio canonis missae, escritos que exerceramgrande influência nos séculosXVI eXVII.NelesLutero se inspirou para elaborar sua doutrina da predestinação. Foi seguidor deOckham,acentuandoaabsolutavontadedeDeus,demodoqueasalvaçãodohomem,segundoele,dependeexclusivamentedagraçadivina.

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opoder absolutodeDeus, queumapessoa, por suaspróprias forçasnaturais, poderia realizar um ato moralmente bom, aceitável a Deus, sem agarantiadequeDeusaceitariaqualqueraçãomoralmenteboa.Ora,essanovateologiaemrelaçãoàsalvaçãotrouxemedoeinsegurançaparaosfiéisqueestavamimpedidosdoacessoimediatoaossacramentos.Paraaliviaromedoeaincertezasobreasalvação,causadospelateologiadeBieleOckham,Lutero,baseando-seemtextosdoNovoTestamento,pregavaqueoPai,comcerteza,aceitavaJesuscomofundamentodenossa salvação.Somos salvos, nãopormérito de nossas ações,masexclusivamentepelaféemJesus,queéagrandegraçadeDeus.

A via moderna colocava ênfase na prioridade e na liberdade da vontadedivina (Ockham,Biel), afirmandoquenadaobriga aDeus asalvar-nos.Senossavidaformeritóriapelacondutamoral,issoporsinãogarantenossasalvação.SevivemosdeacordocomaLeideDeuspodemosconjeturarquenossasalvaçãoéprovável,maseladependedagratuidadeabsolutadainiciativadivina.Nessecontexto,LuteroconcluiquesóDeusemCristoéoprincípiodenossajustiça.Aféensina-nosqueDeusescolheconsiderar-noscomoseajustiçadeCristofosseanossa,maselenãofazdependerajustificaçãodenossafé,comoerroneamente,muitasvezes,setemafirmado.Afééumaconsequênciadajustificação,queéadecisãodeDeusnosimputarajustiçaeafédeCristo.LuterobuscaauniãodofielaCristoedessaunidadedependeadecisãodeDeusque,apartirdaí,éapreendidapelafé.AideiadesantificaçãonaIgreja,pelaviacomunitáriaesacramental,nãosubmeteDeusauma“obrigação”,poisajustiçadeCristo,celebradanossacramentos,ésempredom,totalmentegratuito e incondicional. Nessa questão da justificação, certamentehouveinterpretaçõesradicaisdeambososlados,IgrejacatólicaeIgrejaluterana,umadiscussãoquedurouséculose,somentenofinaldoséculoXX,católicoseluteranoschegaramaumasoluçãoconjunta.36

ComoprofessordeBíblianaUniversidadedeWittenberg,Luteroatuavanumainstituiçãocomprometidacomohumanismocristão,querejeitavaaescolásticaeensinavateologiaatravésdoestudodaBíbliaedosPadresdaIgreja.Elesepropunhaumateologiaorientadadecididamente,porumlado,naBíbliae,poroutro,existencial.Porisso,nocentrode

36Em1997,aIgrejacatólicaeaFederação luteranamundialchegaramaumacordoquantoàdoutrinadajustificação,numadeclaraçãoconjunta.Em1998,Romaaprovouessadeclaração.Cf.LACOSTE,Jean-Yves(Dir.).Dicionário crítico de teologia.SãoPaulo: Paulinas, 2004.

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sua teologia está o sola scriptura,quenãosignificaqueselimitaráacomentáriosescriturísticos.Maseleé,antesdetudo,umprofessordeexegesedoAntigoTestamento.Compreende-sequequisesselivrar-sedasexageradasinfluênciasfilosóficasdaépoca.LuteroquisreconduzirateologiaaoCristocrucificado(theologia crucis) da teologia paulina, opondo-a a uma “teologia da glória”. Segundo ele, alguém se torna“teólogonaexperiênciavividadafé”.Emoutraspalavras,CristoéoCristoporsuamissão,porterconsagradoseuministérioparatornar-semeusalvadoreredentor.Portanto,ateologialuteranafaladeDeusenãoseresumeaumaciênciadaexistênciacrente.ÉodiscursodeumaféembuscadesuasalvaçãoemDeus.

GabrielBiel,seguindoOckham,expuseratrêsproblemas:1)Quetipo de notitia é a teologia: scientia vel sapientia (ciênciaousabedoria)?2)Aquestãodaunidadeda teologiaouaquestãodo seu subjectum; 3)Ateologiaépráticaouespeculativa?Luterorespondequeateologiaé uma sapientia experimentalisqueédeterminadapelatríade:oração,meditaçãoetentatio e vê a unidade, seu subjectum, no acontecimento dramáticodajustificação.Superaaalternativa,seateologiaépráticaouespeculativa,apontandoafécomovidapassiva(paraqueavidaativa,comsuasobras,eavidacontemplativa,comsuasespeculações,nãonosseduzam). Portanto, Lutero, frade agostiniano, decide-se a favor de uma teologiamonástica,poisnãovisaàarteuniversitáriadadiscussão,masaumateologiapastoralbaseadanaféealimentadapelameditaçãodotextosagrado.Segundoele,ateologiaémenosciênciadeprincípioseessênciasqueciênciadahistóriaedaexperiência,poiséumasabedoriainfinitaquenuncaseaprendeemsuatotalidade.

AocontráriodeLutero,ohumanistaalemãoFelipeMelanchtonusava pouco o termo teologia, empregando, geralmente, a palavra doctrina christiana ou, ainda, doctrina ecclesiae, mas compartilha com eleaideiadequeateologiadeveserciênciadahistóriaedaexperiência,constituída a partir daSagradaEscritura.Melanchtonvê a chavedateologia na Carta de Paulo aos Romanos para interpretar os demais textos bíblicos. Nisso, ele é o pai da autodefinição do cristianismoreformado,sendoseguidoporLuteroeCalvino.

Melanchton critica a Escolástica porque, na sua recepção deAristóteles,separouadialéticadagramáticaedaretóricae,demaneiraabstrata,uniuadialéticaàmetafísica.Comissoadialéticase tornouespeculativaeinútil.Deacordocomohumanismo,Melanchtonvinculaadialéticaàretóricaeàgramática.

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ComarecepçãodePlatãonoRenascimento, reviveoconceitode teologiadoneoplatonismo,mas, nofinal do séculoXVI, comorenascimentodeAristóteles,ametafísicatambémretornouaocânonprotestante de ciência, conduzindo a teologia por métodos semelhantes aos da escolástica tomista, como scientia practica, tendo como princípiodoconhecimentoteológicoaSagradaEscritura.Entretanto,não fundamenta a evidência da Escritura de maneira platônico-agostiniananointelectodafé,masnotestemunhodoEspíritoSantoque se liga, conforme o artigo 5º daConfessio Augustana (1530), aoEvangelho publicamente proclamado.37A teologia é, então, umhábito do intelecto prático, haurido da Palavra de Deus, escrita sobre averdadeirareligião,paraque,porseuexercício,ohomempecadorchegueàeternasalvação.

AconcepçãodeciênciadeLuterorompeoconceitoescolásticodeteologiapeloseutratocomostextosbíblicos,dandoumaatualidadeelinguagem existencial ao conhecimento de Deus. Por isso, teologia para elenãoéumaciênciadeprincípiosouessências,masumaciênciadahistóriaedaexperiência; teologiaé,paraele,umasabedoriainfinita,porque nunca se esgota sua compreensão.38 A teologia, como hoje praticada noOcidente, é, pois, o resultado da confluência de váriosfatoresheterogêneos,entreosquaiscabeconsideraroprotestodeM.LuterocontraaEscolásticaemvigornasuaépocaeareorganizaçãodas relações entre filosofia e teologia. Lutero forneceu uma duplaperspectiva à teologia. De um lado, uma orientação decididamentebíblica e, de outro, uma interpretação decididamente existencial.OsteólogosprotestantesdoséculoXVII,entretanto,organizamateologiademaneiratãosistemáticaquantooscatólicos.

ParapurificarateologiaeaIgrejadeumaalienaçãofilosófica,LuteroapontaparaoCristocrucificadodateologiapaulina.Nisso,certamente,

37Diz o artigo 5º da Confissão deAugsburg (1530): “Para conseguirmos essa fé,instituiuDeusoofíciodapregação,dando-nosoevangelhoeossacramentos,pelosquais,comopormeios,dá o Espírito Santo,queoperaafé,ondeequandolheapraz,naquelesqueouvemoevangelho,oqualensinaquetemospelosméritosdeCristo,nãopelosnossos,umDeusgracioso,seocremos”.Livro de Concórdia.TraduçãoenotasdeArnaldoSchüler.PortoAlegre:Ed.Concórdia;SãoLeopoldo:Sinodal,1980,p. 30.

38A IgrejaAnglicana resumiu seus símbolos de fé, desde o começo, em diversosdocumentos como o Common Prayer Book (1549/52), os39 Articles of Religion (1563/71) e os Lambeth Quadrilateral (1888),masnãoproduziuumagrandetradiçãodeteologiasistemáticaprópria.

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tinharazão,poisaescolásticadecadentemuitosedistanciaradaBíbliaedomundoreal.AIgreja,comadecadênciadocleroeavaidademundanadetrêspapasaomesmotempo(cismadoOcidente),pareciaumbarcoàderiva.Ofimdocismanãoacabaracomaânsiadopoderdospapas.Luterotambémtinharazãoaoproporumateologiaexperiencial,ouseja,alguémsetornateólogonãosomentepelaespeculaçãofilosófica,mastambémnaexperiênciavividadafé.Oerrofoiabsolutizarseuspontosde vista.

A Reforma trouxe algumas contribuições importantes para ateologia:a)ReavivouaconsciêncianaIgrejasobreopapelfundamentaldaSagradaEscrituracomofontedefé,estimulouapregação,acatequeseefomentouocantoreligioso.b)SacudiuaIgreja,despertando-aparauma lenta renovação teológicae religiosa.Poroutro lado,adoutrinade Lutero sobre os “dois reinos”, deu um impulso ao processo desecularização começado no fim da IdadeMédia.Do ponto de vistada história, aReforma significa a ruptura doCristianismoocidental,surgindoafragmentaçãodeumaIgrejaplural.AIgrejacatólica,depoisda Reforma, não é determinada pela teologia, mas pelo magistériodopapaedosbispos.E,esteexpressaaverdade,independentementeda evolução histórico-cultural, pois, até o século XX, omagistériocompreendesuamissãodemaneiraessencialmentea-histórica.Porisso,éprecisodistinguirumateologiacatólica“moderna”deumateologianos tempos modernos.

5 Consequências

O Concílio de Trento não chegou ao desejado entendimento com o protestantismo,mas definiu um programa de renovação daIgreja,esclarecendocomoosbatizadosrecebemodomdavidaeternadoPai,atravésdoEspíritoSanto,comoossacramentosproduzematransformaçãodoscristãosemCristo.Trentoprovocouumanotávelrenovaçãodavida litúrgicaesacramentaldaIgreja.39Novasordensreligiosas, como a dos jesuítas, e ordensmais antigas, como a dos

39Na23ªsessão,Trentodecidiusobreaseleção,formaçãoeadmissãodoscandidatosàsordens.Prescreveuacriaçãodecolégiosparaesteefeito,osfuturosseminários,visandoaumamelhorformaçãodoclero.Esteconcíliofoiabertoa13/12/1545,comapresençade26bispos, 5 superiores gerais (comdireito de voto) e 42 teólogos.Noúltimoperíodo(1562-1563),alémdos4legadospapais,estavampresentes105bispos,4abades,4superioresgeraisenumerososteólogos.

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carmelitas,reanimadapelosesforçosdeTeresadeÁvila(1515-1582)eJoãodaCruz(1542-1591),estimularamavidaespiritualemissio- nários foram enviados para as novas terras da América, para as costasdaÁfrica,paraaÍndia,Filipinas,ChinaeJapão.Entretanto,aIgrejacatólicanãoseabriuànovavisãodemundo,paraumatolerânciaevangélica.Por isso,continuaramasguerras religiosasnoNortedaEuropa.Poroutrolado,parausufruirdeliberdade,muitoseuropeusemigraramparaaAmérica.NaEuropa,ointeressereligiosocomeçouaesmorecer, passando o interesse intelectual da teologia para a ciência, paraostrabalhosdeGalileu,deNewtoneparaafilosofiadeDescarteseLocke.Aculturaeuropeiatornou-se,cadavezmais,secular.

Ateologiaeuropeia,anteriorao“séculodasluzes”(séc.IV-XVII),foi elaborada num contexto sociocultural relativamente homogêneo e, porisso,érelativamenteunaatéaReforma.Comodesenvolvimentodoempirismo,paraateologia,surgeaaporiafundamentalqueresidenofatodenelaseverificar,noplanodoconhecimento,aconjugaçãodonaturaledosobrenatural.Avisãoempíricaedinâmicadomundotrouxeproblemas insolúveisapartirdavisãoestáticadomundoeosnovosdesafiossãoformulados,cadavezmais,apartirdasciências.Ora,atéessemomento,ateologiaselimitavaadialogarcomasfilosofiase,quaseexclusivamentecomoplatonismo(Agostinho)eoaristotelismo(Tomás deAquino).A racionalidade da ciência moderna tem suasraízesnapaixãodefilósofosecientistasmedievaispelarazãonoplanoda pesquisa empírica. Basta lembrar o peso que tiveram na ciênciarenascentistaenarevoluçãocientíficamodernaascientia experimentalis deRogérioBacon(1220-1292),oprincípiodaverificaçãoempírica,aartecombinatória.40

No círculo dos humanistas de Florença, a teologia filosóficatinha traços neoplatônicos e gnósticos, representando algo novo eoriginal.Rompeuaestagnaçãodaescolásticadecadente,sem,contudo,atingir o nível crítico domedievo áureo das escolas catedralícias edasprimeirasuniversidades.Sobopatrocíniodepoderososmecenas,aAcademiaestavaprotegidacontraascondenaçõesde reisepapas.A arte da época e de seu meio anuncia a beleza e a dignidade do homem,transmitindograndestesourosàmodernidade.Éconsiderávela maneira do humanismo renascentista interpretar velhos textos. Mas ohumanismo,derepente,resultounadivisãopelaReforma.Enquantoestavisava,antesdetudo,umarenovaçãoespiritual,oRenascimento

40GHISALBERTI,op.cit.,p.20.

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e o Humanismo italianos caraterizavam-se por tendências fortemente seculares.

Com a Reforma apareceu um novo problema: teologia bíblicaou teologia de conclusões? Por teologia bíblica entende-se, aqui, oouvirsistemáticodaRevelaçãodivina,talcomoseencontraexplícitaouimplicitamentetestemunhadanaBíblia.Porteologia de conclusões entende-se aquela que tem como objeto não o Deus revelado notestemunhobíblico,mas as conclusõesobtidas a partir da revelação,porraciocíniodedutivo.Ateologiabíblicaprimeirofoielaboradaporautores protestantes, constituindo-se, aos poucos, numa disciplina para protestantes e católicos, ainda antes da primeira guerramundial.Ateologiadeconclusões,naqual,muitasvezes,seexagerouopapeldadedução,raramentefoipartilhadaporgrandesteólogos.Historicamente,nocontextodohumanismoprotestantedoséculoXVIII,surgeotermo“teologia dogmática” para designar numerosos tratados de teologiacatólica. Esta, embora a designação seja recente, entende-se comocontinuidadeda tradiçãodosPadres da Igreja e daEscolástica, comfundamentosnaEscritura,eaduplafunçãodeproporodogmadaIgrejaeresponderaosquestionamentosdacrítica.ApartirdoConcílioVaticanoII,naIgrejacatólica,passaacaraterizar-seadogmática,nohorizontedahistóriadasalvação,comoumahermenêuticadamensagemcristã,comointerpretaçãodoEvangelhodeCristotestemunhadonasSagradasEscrituras.

NaIdadeMédia,atraduçãolatinadaBíblia(Vulgata) e os textos gregosdaAntiguidadeeram,geralmente,consideradosautênticos.Oshumanistas do Renascimento queriam voltar às fontes originais. OConcíliodeTrento,em1546,definiuaVulgata como critério para o usoeclesiástico.Eestecritériopassouavigorarparaadogmáticaeapastoral,naIgrejacatólica,atéoséculoXX.

Desdeosprimeirosapologetas,ateologiacristãpartedoaxiomadequeafécristãpodeedeveserresponsabilizadaperanteoforodalivrerazão.Mas,estepontoeradiscutidopeloshumanistasereformadores,emboraafilosofia,desdeofinalda IdadeMédiaatéoséculoXVIII,sempre incluísse no seu caminho a instância da transcendência.Assim, essa instância transcendental aparece tanto nos filósofos doRenascimento(MarsílioFicino,PicodellaMirandola)quantonasobrasfilosóficasdeDescartes,Leibniz,WolffeKant.41

41Ibidem,p.17.

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O cristianismo medieval, em geral, apresenta fortes traços deintolerância religiosa e, de certa maneira, é opressor e triunfalista.A ideia de tolerância religiosa amadureceunos temposmodernos e,paulatinamente,comoestabelecimentodasdiversasconfissõescristãsdaReformaprotestante,masjáseencontradeformaembrionáriaemNicolaudeCusa.

Referências

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Recebido:30/07/2013Avaliado:07/08/2013