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Teoria e história da constituição do campo bibliotecológico espanhol HÉCTOR GUILHERMO ALFARO LÓPEZ Centro Universitário de Pesquisas Bibliotecológicas Universidade Nacional Autônoma do México 04510, México, D.F. E-mail: [email protected] Resumo Nesse texto, formula-se uma proposta técnico-histórica que permite compreender o processo mediante o qual se constitui o campo bibliotecológico. Tal proposta, no seu aspecto teórico, sustenta-se nos conceitos de Horizonte integrador social-histórico, campo de práticas sociais e infraestrutura do campo. Sendo assim, a realidade que expressam esses conceitos dá-se de maneira histórica; pois, somente, é adquirido todo seu caráter explicativo do modelo teórico, através do desenvolvimento histórico do campo de práticas. O exemplo que, aqui, se ilustra é a proposta da constituição do campo bibliotecológico espanhol durante o período de 1898 a 1936. I Um requerimento que se deixa escutar, cada vez com maior força, no terreno de uma investigação, é o da produção do conhecimento, a partir de uma plataforma interdisciplinar. Dessa forma, frente aos excessos e estreitezas em que se tem a especialidade. Como costuma ocorrer, o excesso torna a virtude um defeito. O saber especializado, que se fundamenta em um território perfeitamente recortado da realidade, consegue um aprofundamento antes não concebido no seu conhecimento, o que, por sua vez, tem provocado que esse saber ou disciplina avance como um raio e se desconecte de outras disciplinas. Então, aprofundamento e solidão são a virtude e o defeito das disciplinas hiperespecializadas. O investigador que segue esse raio fica atrapalhado na sela de uma visão fragmentada da realidade e de sua própria atividade investigadora, o que, obviamente, termina dando como resultado investigações, que a par das profundezas de sua especialização, são limitações na sua perspectiva. Portanto, ainda que a tendência dominante, na atualidade, seja a especialização, convém aumentar a necessidade de ampliar o olhar e, assim, abarcar uma maior quantidade de aspectos da realidade, o que se traduz na constituição de distintas disciplinas. Conjunção que, no entanto, tem sido entendida, na maioria dos casos, como interdisciplinaridade ou, em outros termos, adição de distintas disciplinas. Isto é, a uma disciplina agrega-se outra, sem que se perca seu perfil próprio. Isso, traduzido ao âmbito prático das instituições, significa a congregação de especialistas de diferentes áreas para abordar uma investigação comum, no qual cada um mostra a perspectiva de sua disciplina para o conhecimento de

Teoria e história da constituição do campo ... · integrador social-histórico, ... especialistas de diferentes áreas para abordar uma investigação comum, no ... também é

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Teoria e história da constituição do campo bibliotecológico espanhol

HÉCTOR GUILHERMO ALFARO LÓPEZCentro Universitário de Pesquisas Bibliotecológicas

Universidade Nacional Autônoma do México04510, México, D.F.

E-mail: [email protected]

Resumo

Nesse texto, formula-se uma proposta técnico-histórica que permitecompreender o processo mediante o qual se constitui o campo bibliotecológico.Tal proposta, no seu aspecto teórico, sustenta-se nos conceitos de Horizonteintegrador social-histórico, campo de práticas sociais e infraestrutura do campo.Sendo assim, a realidade que expressam esses conceitos dá-se de maneirahistórica; pois, somente, é adquirido todo seu caráter explicativo do modeloteórico, através do desenvolvimento histórico do campo de práticas. O exemploque, aqui, se ilustra é a proposta da constituição do campo bibliotecológicoespanhol durante o período de 1898 a 1936.

I

Um requerimento que se deixa escutar, cada vez com maior força, no terrenode uma investigação, é o da produção do conhecimento, a partir de umaplataforma interdisciplinar. Dessa forma, frente aos excessos e estreitezas emque se tem a especialidade. Como costuma ocorrer, o excesso torna a virtudeum defeito. O saber especializado, que se fundamenta em um territórioperfeitamente recortado da realidade, consegue um aprofundamento antes nãoconcebido no seu conhecimento, o que, por sua vez, tem provocado que essesaber ou disciplina avance como um raio e se desconecte de outras disciplinas.Então, aprofundamento e solidão são a virtude e o defeito das disciplinashiperespecializadas. O investigador que segue esse raio fica atrapalhado nasela de uma visão fragmentada da realidade e de sua própria atividadeinvestigadora, o que, obviamente, termina dando como resultado investigações,que a par das profundezas de sua especialização, são limitações na suaperspectiva. Portanto, ainda que a tendência dominante, na atualidade, seja aespecialização, convém aumentar a necessidade de ampliar o olhar e, assim,abarcar uma maior quantidade de aspectos da realidade, o que se traduz naconstituição de distintas disciplinas.

Conjunção que, no entanto, tem sido entendida, na maioria dos casos, comointerdisciplinaridade ou, em outros termos, adição de distintas disciplinas. Istoé, a uma disciplina agrega-se outra, sem que se perca seu perfil próprio. Isso,traduzido ao âmbito prático das instituições, significa a congregação deespecialistas de diferentes áreas para abordar uma investigação comum, noqual cada um mostra a perspectiva de sua disciplina para o conhecimento de

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um objeto. Assim, o objetivo da investigação é visto a partir de diversosângulos, que, por serem adicionados, supõem oferecer uma visão global,integral. De certo modo, isso se consegue, mas, no fundo, o que continuaprevalecendo é a especialização. Além disso, é uma especialização que se fazda esperança de se ter escapado da solidão ou, no pior dos casos (vale oparadoxo), de se ter uma perseverança do conhecimento especializado, quelhe permite semelhante metamorfose? O que impede que se possa subir a umconhecimento não interdisciplinar, senão verdadeiramente multidimensional?

A resposta, ainda que pareça excessivamente densa, encontra-se na históriaintelectual do Ocidente. O problema da especialização não é, somente, aíndole epistemológica, também é resultado de um projeto intelectual em que aEuropa (e mais amplamente o Ocidente) empenhou na história moderna de suacivilização. Fora do período renascentista, a história europeia está cindida porum racionalismo fundamentado no abstracionismo simplificador, que temproduzido o fragmento da totalidade. Alguém que tem refletido com lucidezsobre isso é o pensador Edgar Morin, quem afirma que o subjulgamento, quesofreu o Ocidente está relacionado com o paradigma de simplificação. Isto é,mesmo que se origine a partir daqueles princípios de conhecimento, poisseparam ou desarticulam as partes que integram a realidade. Então, isso dálugar aos princípios de abstração, disjunção e redução, cujo conjunto Morindefine como o paradigma de simplificação. Entretanto, este pensador indicaque quem, de fato, formulou, ainda que sem nome, o referido paradigma foi ofilósofo René Descartes, quem desarticula o sujeito pensante do objeto doconhecimento, isto é, a filosofia e a ciência. É importante destacar que afilosofia cartesiana postula como princípio a verdade das ideias claras edistintas, base do pensamento disjuntivo, seccionador. Dessa forma, esteparadigma, por um lado, tem dirigido o pensamento ocidental moderno epermitido grandes avanços na ciência e na filosofia, mas, por outro, tem setornado rara na comunicação entre ambos. Portanto, pior ainda, o princípio dedisjunção afastou, entre si, os três principais campos do conhecimentocientífico: a física, a biologia e a ciência do homem, mas o pensamentoocidental, ao buscar remediar isso, caiu em um excesso pior:

A única maneira de remediar esta disjunção foi através de outra simplificação: a redução do complexo ao simples (redução do biológico ao físico, do humano ao biológico). Uma hiperespecialização havia ainda de extrair e fragmentar o tecido complexo das realidades a fim de fazer crer que o corte arbitrário, operado sobre o real,era o real mesmo [...] tal conhecimento fundaria seu rigor e sua operacionalidade e a formalização, que tem desintegrado, mais e mais, os seres e os existentes por considerar realidades nada mais que as fórmulas e as equações que governam as entidades quantificadas. Finalmente, o pensamento simplificador é incapaz de conceber as conjunções do uno e do múltiplo (unitas multiplex). Ou unifica, abstratamente, anulando a diversidade ou, pelo contrário, justapõe a diversidade sem conceber a unicidade.1

1 E. Morin. Instituição ao pensamento complexo, Barcelona, Gedisa, 1994, p.30.

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Desse modo, Morin agrega que esse processo desembocou na inteligênciacega – definição equivalente ao que deu a Escola de Frankfurt de razãoinstrumental –, que “destrói o conjunto e as totalidades, distancia todos osobjetos de seus ambientes.” Sua cegueira radica na sua capacidadedesintegradora. É uma inteligência que é incapaz de conceber as múltiplasdimensões que compõem e articulam a realidade. Em suma, é um pensamentosimplificador que não pode abarcar a complexidade2 própria da totalidade. Comessa alternativa, Edgar Morin postula a substituição do “paradigma dedisjunção/redução/unidimensionalização, por um paradigma dedistinção/conjunção que permita distinguir sem desarticular, associar nemidentificar ou reduzir3”. A este último, Morim o denomina paradigma decomplexidade, o qual considera como via necessária para civilizar,verdadeiramente, o conhecimento.

Mas, além das possibilidades de instaurar o paradigma de complexidade, comotudo o que isso acarreta, o interesse, aqui, é retomar a análise feita por Morinsobre a contradição, que atravessa o pensamento ocidental e que conduz aoparadigma de simplificação: condição de possibilidade de hiperespecialidade.Dessa forma, como se depreende do expressado pelo pensador, a estreitaespecialização – que domina, na produção do conhecimento, – não é umamera tendência de nossa época, sem que respondesse a claras linhas detensão que determinaram, historicamente, o projeto intelectual ocidental. Logo,apresenta-se como peso de um projeto histórico – não de uma moda –, o que,ostentado por seus êxitos intelectuais, dá força e perseverança aoconhecimento especializado. É importante destacar que este é o motivo que sepretende romper com a especialização, pois o que surge é a encoberta: ainterdisciplinaridade, visão ampla, mas segmentada de uma realidade ou, ditode outra maneira, ampliação da uni-dimensionalização, que se faz da funçãode espelhismo e, consequentemente, nos impede de ver a realidade como umtodo conectado e contínuo de múltiplas dimensões. Portanto, isso não implicaque o conhecimento interdisciplinar seja negativo, isto é, um passo adiante dapobreza da especialidade disjuntora, que deve conduzir ao conhecimentomultidimensional. Dessa maneira, a adição de várias perspectivas, paraacessar a observação global de uma dimensão da realidade, tem limpado ocaminho para uma perspectiva que pode compreender a interação de várias

2 “O que é complexidade? A primeira vista, a complexidade é um tecido (complexus: o que está tecidoem conjunto) de constituintes heterogêneos, inseparavelmente associados: apresenta o paradoxo douno e múltiplo. Ao olhar, com mais atenção, a complexidade, é efetivamente, o tecido de eventos, ações,interações, retroações, determinações, azares, que constituem nosso mundo fenomênico. Assim, é acomplexidade que se apresenta com as características inquietantes do enredado, do inexplicável, dadesordem, da ambiguidade, da incerteza... Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr ordem nosfenômenos, impedindo a desordem ao descartar o incerto, isto é, de selecionar os elementos de ordeme certeza, de excluir a ambiguidade, clarear, distinguir, hierarquizar..., mas tais operações, necessáriaspara a inteligibilidade, correm o risco de produzir cegueira, se não eliminar as outras características docomplexo; e, efetivamente, como se já tem indicado, nos tem tornado cegos”. Ibid, p.32.3 Ibid, p.34.

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dimensões do real. É necessário pontuar isso: não existe um ponto de vistaonisciente que observe a totalidade das dimensões da realidade. Por isso, nãoé uma limitante, pelo contrário, é – à semelhança do imperativo categóricokantiano – uma aspiração, já no terreno da investigação, que possibilita umavisão mais complexa do objeto estudado ao recortar-se sobre o fundo datotalidade.

II

O investigador que funde (não adiciona), em sua própria visão, múltiplasdisciplinas para abordar um objeto de conhecimento, está à disposição decompreender a multidimensionalidade naquele que se move, mas tem a plenaconsciência da impossibilidade oniabarcadora. Ao fundir múltiplas disciplinas,dentro de uma perspectiva pessoal, abrem-se seus limites de redutos fechadosde conhecimento para exibir as continuidades que, entre elas, preexistem, eque se correspondem melhor com a continuidade das múltiplas dimensões darealidade. Vale destacar o anterior, como prolegômenos, à proposta teóricaque, aqui, se exporá para analisar a história da constituição do campobibliotecológico. Proposta assinada, pois, pela aspiração a um conhecimentomultidimensional.

Relativamente, as recentes tendências seguidas pela ciência histórica têmaberto um amplo espectro de possibilidades para conhecer o passado a partirda utilização de conceitos, teorias, métodos e enfoques provenientes de outrasdisciplinas. Isto é, em consonância com o descobrimento de novos territórios(objetos) do conhecimento, dos quais se faz sua história (por exemplo, ahistória da leitura).4 Essa “revolução” sofrida pelo conhecimento histórico tem-se encerrado para que se siga fazendo uma historiografia especializada, ouseja, ajustada a suas tradições supostas, o que, por extensão, também é válidopara o conhecimento de outras disciplinas, tendo em conta o própriodesenvolvimento histórico. Tratar a história de uma disciplina implica observá-laem sua multidimensionalidade, ou seja, demonstrar o que venha a significarpela redução ao instrumental de outras disciplinas a fim de realizar talobservação. Não obstante, a utilização e combinação desses outrosinstrumentos não nos deve induzir a crer na derivação até o sincretismo, pelocontrário, deve representar a constituição de uma proposta teórica, apropriadaao conhecimento histórico da disciplina estudada, que, para nós, é abibliotecologia. Sendo assim, aqui, se exporão os fundamentos do modeloteórico apropriado para compreender o desenvolvimento histórico dabibliotecologia. Isto é, o modelo teórico será ilustrado como exemplo particular

4 Peter Burke (ed.). Formas de fazer história, Madri, Aliança Universidade, 1993; Burke, P., A Revolução historiográfica francesa. A escola dos Anais: 1929-1989, Barcelona, Gedisa, 1993.

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da história do campo bibliotecológico espanhol5. É necessário observar,primeiro, os elementos constitutivos e sua articulação do modelo enquanto tal.

Ao nos referirmos ao campo bibliotecológico, estamos deixando de distinguiruma das linhas conceituais que é apontada pela nossa proposta teórico-histórica. Isto é, a teoria sociológica sobre os campos de habitus social dePierre Bourdieu. Nela, vale ressaltar, o que tem sido, de antemão, apurado pelaminha crítica; com o fim de abstrair dela, unicamente, os elementos quepermitem uma melhor explicação de realidades, uma vez que, ainda, não tenhasido pensada tal teoria. Desse modo, Bourdieu elaborou sua teoria a partir dadesenvolvida realidade francesa. Ademais, os elementos que nos aporta aconcepção do sociológico francês foram conjugados com outras propostas,como os princípios que permitem compreender o movimento do real,postulados pelo teórico do pensamento complexo Edgar Morin. Isso é,finalmente, conectado como elementos conceituais próprios, de que resulta, emsuma, uma proposta teórica que pretende conduzir ao instrumental conceitual,apropriado para estudar o desenvolvimento histórico do campo bibliotecológicoe, mais especificamente, os campos bibliotecológicos nacionais. Logo, énecessário descrever os fundamentos da teoria bourdiana dos campos, a partirda definição que o próprio Bourdieu elabora:

Em termos analíticos, um campo pode definir-se como uma rede ou configuração de relações objetivas entre posições. Elas definem-se objetivamente em sua existência e nas determinações que impõem a seus ocupantes, sejam agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na sua estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital), cuja possessão implica no acesso a ganhos específicos, que estão em jogo dentro do campo – e, de passagem, por suas relações objetivas, com as demais posições (dominação, subordinação, homologação etc.). Nas sociedades, altamente diferenciadas, o cosmos social está constituído pelo conjunto desses microcosmos sociais autônomos, espaços de relações objetivas, que formam a base de uma lógica e uma necessidade específica, que são irredutíveis às que regem aos demais campos.

Das palavras supracitadas, deduz-se que, por um lado, um campo é o espaçoque ocupa uma série de participantes, por mediação dos habitus, que levamadiante. O sociólogo francês indica, por outro lado, que o espaço pode-seanalisar independentemente de seus ocupantes, pois o que importa é omovimento relacional entre as posições e não as características (gostos,personalidades etc.) dos participantes. Dessa maneira, o que se propõe, nadinâmica do campo, é a possessão de um capital específico, não reduzívelsomente ao econômico, uma vez que pode ser um capital de conhecimento ousimbólico, o qual compete por sua possessão, e deve estar dotado de umhabitus, uma atividade que é síntese de conhecimentos, crenças, técnicas; em

5 Ao nos referirmos, aqui, à bibliotecnologia espanhola não passamos por alto que, para os espanhóis, otermo usado é biblioteconomia, o qual incorpora algumas conotações distintas, as quais não serãoabandonadas. Sendo assim, por pensar, nesse texto, a perspectiva latino-americana emprega-se o termobibliotecologia.

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uma só palavra, o “ofício”. Logo, a luta pelo capital estabelece uma relação outensão de forças, entre os agentes ou instituições, que intervêm na discussão,a qual dispara o monopólio da violência (possuída pela autoridade de campo)em favor da conservação da estrutura de distribuição do capital específico.

Quem monopoliza o capital específico orienta-se até as estratégias deconservação e defesa da ortodoxia. Sendo assim, aqueles que dispõem demenos capital costumam ser mais jovens em relação os recém-chegados docampo. Estes se orientam para a utilização de estratégias de subversão, deheterodoxia. Dessa forma, perante a heterodoxia, os grupos dominantes docampo se veem forçados a “[...] produzir o discurso defensivo da ortodoxia6.”Então, todos os participantes comprometidos com um campo têm umaquantidade de interesses comuns que favorecem uma cumplicidade implícitaem todos os antagonismos. Essa cumplicidade contribui para a reprodução dojogo. Portanto, as estratégias de subversão em que se empenham os novos –os aspirantes – devem permanecer dentro de certos limites para não destruir ojogo, consequentemente o campo. São revoluções “limitadas, parciais” que nãopõem em perigo a axiomática fundamental, sobre a que se ergue o campo.

Conforme um campo se consolida, brota um corpo de conservadores: “[...] todaesta gente está comprometida com a conservação do que se produz no campo,isto é, seus interesses são de conservar e conservar-se conservando.” 7 Dessemodo, denota o estigma da história no campo e na obra produzida nele, pois opassado, que atua tanto no desenvolvimento do campo como na gestação daobra, converte-se em grupo fechado de conservadores: historiadores, biógrafose arquivistas. Então, a estrutura da obra é cristalizada, conservadoramente,pela horda de exegetas, comentadores, filólogos, intérpretes etc. Todos essesjustificam sua existência como crença de que são os únicos capacitados paradesentranhar o passado e dar explicação da obra, certificando o valor que lheatribui.

Linhas acima, fez-se menção ao tão pessoal conceito de Bourdieu sobre oshábitos. É necessário mensurar agora uma definição, pois o princípio dasestratégias implícitas nele responde a um mero cálculo cínico: “Quando a gentepode se limitar a deixar atuar seus hábitos para obedecer à necessidadeimanente do campo e satisfazer as necessidades inscritas nele, em nenhummomento, sente-se que está cumprindo um dever e, ainda menos, que busca amaximização do proveito (específico). Assim, tem-se a pretensão de se ver eser visto como persona perfeitamente desinteressada.” 8 Dessa forma, o hábitoé de cada indivíduo, pois o grupo busca impor-se no campo, mas mostrando-seatravés da tela simbólica do desinteresse. Ao encobrir-se, simbolicamente, o

6 P. Bordieu. “Algumas propriedades dos campos” em Sociologia e cultura, México, CONACULTRA, 1990,1990, p. 137.7Ibid., p.138. 8Ibid., p. 144.

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interesse, facilita-se o respeito até às regras estabelecidas do jogo, fazendocom que o campo siga prevendo – em terminologia de Norbert Elias – comoharmonia de tensões que se fecham sobre si mesma, fazendo-se autônoma; oque afasta o erro daquelas teorias sociais que concebem o campo, comoestruturas epifenomênicas da base econômica. Entretanto, não se pode deixarde lado que a teoria de Pierre Bourdieu tem uma limitante de centrar-se quasecomo exclusividade na dinâmica inter-relacional dos diversos campos. Logo,Bourdieu estabelece como certa essa última dinâmica, mas sem fundamentá-lateoricamente, o que finalmente vem a parcializar suas contribuições.

O movimento interativo dos distintos campos ajuda-nos a compreender o quepode ser definido como Horizonte integrador social-histórico, denominado,assim, porque integra a totalidade dos campos de práticas que produz umasociedade num momento histórico determinado. Assim, temos, por um lado, aunidade da totalidade: o Horizonte integrador e, por outro, temos o múltiplo: oscampos de práticas. Dessa forma, entre dois âmbitos ocorre o movimento quevai do uno ao múltiplo e, em sentido contrário, do múltiplo ao uno, próprio dacomplexidade do real, como anuncia Edgar Morin. Consequentemente, umaconcepção de semelhante índole nos permite entender, por exemplo, o campode práticas, em que repercutem no campo bibliotecológico. Então, semelhantedinâmica, entre os campos, forma o campo bibliotecológico (e, obviamente, emcada um dos demais campos) o ciclo ininterrupto, permanente. Portanto,deduz-se que carece de sentido ressaltar qual é a causa e qual é o efeito, ouqual é o determinante e qual é o determinado, entre campo e Horizonteintegrador. Sendo assim, o importante é assegurar em discernir quais são osprincípios que nos permitem compreender a dinâmica que rege os campos. E,ainda, quem postulou os princípios, nos quais haja sabido sua finalidade, quepodem nos ajudar a compreender essa dinâmica de Edgar Morin. Taisprincípios que, então, nos mostram o movimento do real são: dialógico, derecursividade organizacional e hologramático. Em suas próprias palavras:

O princípio dialógico nos permite manter a dualidade no seio da unidade, pois associa ostermos, ao mesmo tempo, complementares e antagonistas. O segundo princípio é derecursividade organizacional. Para dar significado a esse termo, eu utilizo o processo deredemoinho. Cada momento do redemoinho é produzido e produtor, ao mesmo tempo. Já oprocesso recursivo é aquele no qual os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas eprodutores daquilo que os produz. [...] o terceiro princípio é o hologramático. Neste, o físico,que é o menor ponto da imagem de holograma, contém a quase totalidade da informação doobjeto representado. Então, não somente a parte está no todo, bem como o todo se encontrana parte.

Os três princípios brindam-nos com a explicação que o movimento vai do unoao múltiplo e vice-versa, isto é, encadeamento do movimento, que Morinconceitua como a unitas multiplex: da unidade ao múltiplo. Dessa forma, aoconjugar o que se tomou da teoria de Bourdieu com os princípios enunciadospor Morin, pode-se deduzir, então, que dialogicamente os campos são

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antagonistas, devido às marcadas diferenças externas de seus respectivoshábitos, mas se complementam porque obedecem a lei geral que rege oscampos9 e que tem um caminho entre práticas diferentes. Já a recursividadefaz-se por práticas (habitus) de um campo que afetam as práticas dos outroscampos, que simultaneamente retroagem sobre aquelas. Hologramaticamente,em cada campo e, por conseguinte, em suas correspondentes práticas estácontida a quase integridade da informação (mentalidade, ideias, crenças,ideologia etc.) que torna coesos todos os campos e que, ao final das contas, éo elemento que conecta o Horizonte integrador socal-histórico. Logo, tudo issonos clarifica como é que cada uma das práticas dos distintos campos estácontida na totalidade do Horizonte integrador, já que cada prática inscreve suasformas nessa totalidade, com o que se confirma na unitas multiplex. Caberessaltar que os três princípios encontram-se interconectados, que em cada umconcorre com os outros e que não atuam por separado nem solitariamente.

O Horizonte integrador e os campos de práticas específicas não são realidadesimutáveis nem unidimensionais, pois devem se conceber a partir de contextosconcretos, históricos, ao se ajustarem de acordo com as característicaspróprias desses contextos. Cognoscitivamente, por exemplo, o Horizonteintegrador pode ser concebido como totalidade num momento ou numa épocadeterminada. Dessa forma, a flexibilidade do conceito pode fazê-lo maisrestrito, o que nos permite concebê-lo como totalidade, já não mais comocontinente (por exemplo, Europa), senão num país (por exemplo, Espanha).Temos, portanto, o Horizonte integrador social-histórico espanhol, que, de fato,é o que aqui podemos considerar a totalidade no trânsito de relatividade, sendoproduto de ondas da história.

A historicidade do Horizonte integrador radica numa dupla dimensão, uma vezque é produto de um contexto (momento) específico e, por sua vez, reflete opassado (devir histórico) desse contexto. Sendo assim, esta dualidade aparticulariza e a distingue num Horizonte integrador do outro.Consequentemente, o contexto é âmbito de interação dos diversos campos depráticas sociais. Logo, essas e seus respectivos campos de desdobramentosão resultado de um longo e complexo desenvolvimento histórico. É importanteressaltar a distinção que se faz entre hábitos e prática social: o primeiro é aatividade concreta que promovem os integrantes de um campo, principalmente,na fase de autonomia, enquanto a segunda é considerada como o volume

9 “Cada vez que se estuda um campo novo [...] descobrem-se propriedades específicas, próprias de umcampo particular, ao mesmo tempo em que se contribui para o progresso do conhecimento dosmecanismos universais dos campos que se especificam em função de variáveis secundárias. Porexemplo, dessabido às variáveis nacionais, certos mecanismos genéricos como na luta entrepretendentes e dominantes, tomam formas diferentes. Entretanto, sabemos que, em quaisquer campos,encontraremos uma luta, cujas formas específicas farão que se busque cada vez mais, entre o recém-chegado, que trata de romper as fechaduras do direito de entrada, e o dominante que trata de defenderseu monopólio e de excluir a concorrência.” P. Bourdieu. “Algumas propriedades dos campos”, ed. cit., p.135.

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global e, por consequência, abstrato das atividades concretas ou hábitos quese dão na integridade do campo, pois isso ocorre quando se fala do campo deprática bibliotecológica. Prática que, ademais, se desdobra na dinâmica docampo de forma parcial e global. Portanto, quando um campo, como obibliotecnológico chega a sua completa autonomia, é que se ocorreu aconjunção de uma série de fatores, que se apresentam através do tempo e quealcançaram sua plenitude num momento determinado. Sendo assim, toda essahistória continua fazendo-se presente uma e outra vez em cada uma dasetapas de formação do campo, como também em sua fase de autonomia.Logo, o passado acompanha o presente de cada prática e seu correspondentecampo e, em última instância, desde que de onde procede a história dohorizonte integrador. É importante destacar que, ao estudar um Horizonteintegrador, deve-se entranhar na necessidade de remontar-se a suaespecificidade e a história a que se recorre.

Por outra parte, na sucinta exposição que se fez da teoria de Pierre Bourdieu,mostra-se a estrutura dos campos, quando estão claramente constituídos e sãoautônomos. Isso se deve porque, em suas obras, Pierre Bourdieu centra suaatenção na etapa da autonomia, na qual tem a virtude de evidenciar comprecisão às leis gerais que regem os campos e, assim, a pauta paracompreender suas especificidades. Isso deixa de fora o foco da fase prévia: daconstituição dos campos, fase que é constituição de possibilidade deautonomia. Tal fase caracteriza-se pela confrontação do que defino como ainfraestrutura do campo, que é o resultado da proximidade de várias práticasparciais que, ao conjugar-se, geram a prática global do campo. Globalidadeque fica perfeitamente constituída quando o campo alcança a autonomia. Aspráticas parciais que integram a infraestrutura não têm, necessariamente, omesmo grau de desenvolvimento (autodefinição), alguma pode haveralcançado com maior grau de depuração que as outras. Assim, se deveinterpretar como desequilíbrio ou decadência por parte das últimas. Oimportante é a conjunção que se dá entre elas, a partir de suas respectivasfunções. Vejamos isso com mais detalhe.

A expansão do conhecimento, e com ele uma multidão de disciplinasregionalizadas, conduzem à proliferação de pequenos orbes, do intricadomovimento da modernidade. Sendo assim, acabam constituindo-se comocampos de práticas especificamente sociais que, paulatinamente,encaminham-se para a autonomia e dão lugar à totalidade, como Horizonteintegrador (dos campos de práticas) social e histórico. Entretanto, como amesma natureza de modernidade produz um imparável movimento deespecialização que vai gestando-se novos campos de práticas sociais, aomesmo tempo que se dá o desprendimento de práticas que antes participam dadinâmica de outros campos. Este último se encontra em dois movimentos: noprimeiro, sucede que o campo, ao que previamente pertenciam tais práticas,tem-se reconfigurado; isto é, que tem seguido uma nova orientação, muito,

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provavelmente, até uma maior especialização, que já não se lhe é cabida. Nosegundo: têm-se surgido novas necessidades sociais, a partir da aceleração docampo histórico, o qual faz com que ocorram práticas de diversos campos quebuscam, por sua conta, satisfazer a demanda dessas necessidades. Como éde supor, ambos os movimentos podem ser complementares.

As praticas, desprendidas de outros campos, tendem a conjuntar-se na medidaem que depuram sua função. De fato, as semelhanças e contatos que sederam, entre suas funções, constituem a “força magnética” que tendem aconjuntá-las, para confrontar-se num campo em vias de constituição. Campoque se encontra no umbral de sua autonomia, quando sua dinâmica dá lugar àelaboração do discurso em que fica codificado o conhecimento próprio docampo a nível tanto pragmático como teórico. De fato, as práticas dos campossão práticas discursivas articuladas por princípios racionais. E é a racionalidadeimplícita nas práticas a que – conforme o campo vai constituindo-se eacumulando conhecimento e historicidade – cria o discurso, que, finalmente, darazão à mesma prática e, por fim, ao campo. Entretanto, o discurso gerado pelocampo deixa, gradualmente, a fenda do aleatório para transitar pela avenida danormalização axiomática, como explica Luis Villoro:

Então, o resultado dessa atividade se fixa no discurso, isto é, num conjunto de enunciados enlaçados entre si, que seguem uma ordem ou um sistema. A reflexão fica apressada, se detida em proposições concluintes, pois se expressa no conjunto de teses que podem se propor à aceitação ou resistência ao outro. O discurso [...], fixado em clausuras, definições, premissas, conclusões, se tornam independentes da atividade racional que o produzem, uma vez que objetivado, se dá por um produto acabado da razão. Já não serve só para comunicar o caminho da razão no processo inquisitivo, senão para expressar um conjunto de crenças que podem ou não se compartilhar.·.

Quando acontece isso, como indica Villoro, é porque o discurso se fecha nosmecanismos e estratégias que buscam controlá-lo. Tais mecanismos acabampor lhe conferir o status de disciplina cognoscitiva, como o põe em evidênciaMichel Foucault: “A disciplina é um princípio de controle da produção dodiscurso. Ela se fixa nos limites, por um jogo de identidade, que tem a forma deuma reatualizarão permanente das regras.” 10 Dessa forma, a instauração dadisciplina consolida e legitima cognoscitivamente o campo, uma vez que, nodiscurso idiossincrático (que se produz pela dinâmica própria do campo, e nãoque é produzido da importação na qual se extrapola ao contexto nacional)agita-se a ideologia que dá coesão ao campo. Logo, conforme o campo vai seconstituindo no início de sua interação com os demais campos é possívelresponder à dinâmica que esses produzem sobre ele, que, por sua vez,repercute nos outros, como nos explicam os princípios dialógico, derecursividade organizacional e hologramático. Portanto, o campo autonomizadose transfigura em disciplina e, por direito próprio, adquire um lugar no Horizonte

10 M. Foucault. A ordem do discurso, México, Tusquets, 1983, p. 31.

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integrador sobre ele. Sendo assim, dentro dessa lógica dos campos, não sepode falar de resistência a um campo em detrimento dos demais quandopertencem a um Horizonte integrador comum perfeitamente delimitado.

III

O campo bibliotecológico – em sua etapa científica – é uma configuraçãorecente, datada de meados do século XIX, cujo momento decisivo deconstituição foi com o advento das bibliotecas públicas nos países anglo-saxões.11

Nessa evolução parece que há unanimidade em admitir que o momento decisivo fosse com a aparição da biblioteca pública no mundo anglo-saxão, o que acontece em meados do século XIX”. (Luisa Orera Orera (edit), Manual de Biblioteconomia, Madrid, Sínteses, 1997, p.24. )

Este movimento se deu mais tardiamente na Espanha (incluindo HispanoAmérica) de fato e até final desse século quando se dá, de maneira firme, aconstituição do campo bibliotecológico. Com uma delimitação não livre desimbolismo histórico, pode-se localizar o período de constituição do campobibliotecológico entre 1898 e 1931, e de sua autonomia de 1931 a 1936. Aimportância do ano de 1898 radica na perda das últimas colônias da EspanhaCuba, Porto Rico e Filipinas – entre os Estados Unidos, com o que ficavatotalmente fechado seu ciclo imperial. A efemeridade foi imortalizada pelosespanhóis com o tremendo qualificativo de “O Desastre”. Por um lado, 1936 é oano da derrota da II República ante as forças fascistas de Francisco Franco.Período após à aceleração da história da Espanha e que afetou todas as suasestruturas sociais e que, por consequência, repercutiu em todos os campos depráticas. Dessa maneira, fundamentalmente o período que me centrei parailustrar a proposta teórico-histórica antes exposta é o da constituição do campobibliotecológico hispânico entre 1898-1931; sobre tal fase de início deautonomia somente se fará algumas referências. Também cabe dizer que, aoindicar como centro de atenção esse período, não significa que excluíamosreferências às etapas anteriores, já que as duas práticas da infraestrutura,elegidas para fazer seu seguimento são a organização bibliotecária e asociedade leitora. Então seguir o desenvolvimento na autodefesa de ambaspráticas nos dá a pauta para compreender como o campo bibliotecológico foise constituindo até desembocar na autonomia, a qual foi truncada pela guerracivil. Portanto, se mostrará o importante papel que há conjugado a ideologia noprocesso.

No século XIX, Espanha foi arrasada pelas inércias do particularismo, quederam caminho a intermináveis conflitos e instabilidade, e afundaram as

11 “A evolução das Biblioteconomia científica terá seu advento no século XX que se corresponde comumas bibliotecas – centro de informação/ educação / recreio sociocultural, e com alguns bibliotecários /agentes difusores da informação. A biblioteconomia, nessa fase da ciência da seleção, organizada edifunde os fundos para livreiros e audiovisuais.

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contradições de abertura aos diversos campos de práticas sociais. O qual,como era de se esperar, marcou a orientação do Horizonte integrador. Nasegunda metade do século, essas contradições preambularam nos campos doseguinte século:

Desde 1874 até a etapa 1890-1898, o sistema social espanhol configura-se como um conjunto, regressivamente, estratificado, dotado de escassa ou nula promoção social interna, diante os estratos, em que ascensão só ocorreria em consequência dos conflitos classistas, nos quais as ambiguidades do tipo de dominação encontram-se na coexistência de supervivências estamentares com relações pseudo ou semi-modernas de racionalização industrial – ao desvirtuar a natureza dos mesmos e obscurecer seu sentido, levando-os a um catastrofismo paralisador e extremista, quando se fazem patentes. Os conflitos ocorridos devido às fases prévias imediatas ao primeiro estágio do trânsito da sociedade estamental à de classes. Estágio durante o qual as tensões sociais se encontram em aparente nível de instanciamento que, na realidade, preludia a fase posterior, está já preparada para desenvolver uma incipiente mudança qualitativa.12

Em meio ao conflitivo particularismo, entre regiões, as classes sociais, osgrupos, os partidos políticos e os indivíduos, se vão dando conta da ascensãoe consolidação da burguesia (que dentro da organização hispânicadecimonônica constitui-se como classe média) até a tomada de poder, o queconquista em 1868 sua facção republicana federal com a chamada “Gloriosarevolução”, e instaura a I República. Dessa maneira, a burguesia marca comsua digital de classe a sociedade espanhola, a qual se manifesta na integridadedos campos de práticas. A burguesia, então, converte-se no grupo aspirante aingressar nos campos para estabelecer seu domínio.

Como classe social em ascensão, é o que se pretende de forma mais urgenteresolver o problema que fratura a sua própria circunstância: a decadênciaespanhola para encontrar uma solução que conviesse a suas características declasse social. Para isso, foi necessário articular uma ideologia que alegitimasse, ou seja, que permitisse reorientar a incorporação e o consensosocial (primazia da vontade geral sobre a vontade privada), plataforma parasair da decadência. Essa ideologia foi o krausismo, um obscuro sistemafilosófico alemão criado por Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832), queteve uma sigilosa difusão no país de seu criador. Mais tênue foi ainda suainfluência em outros países europeus, pois na Espanha alcançou uma notávelfirmeza e converteu-se no removedor de estruturas esclerosadas e, por fim,dos campos de práticas sociais. O introdutor do krausismo na Espanha foiJulián Sanz del Río (1817-1869).

Quando uma filosofia originada num país desenvolvido é importada para umpaís menos desenvolvido se faz sobre certas condições, entre elas nãonecessariamente se encontram nos esplendores que a promovem como uma

12 Miguel Martínez Cuadrado. A burguesia conservadora (1874-1931). História da Espanha: Alfaguara VI,Madri, Aliança Universidade, pp. 343-344.

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filosofia rigorosa e verdadeira. É conjuntural que, para sua eleição, conte maissua origem metropolitana que sua grandeza intrínseca. O importante é que afilosofia eleita responda melhor à especificidade do contexto que a incorpora,com o que passa a cumprir (aparte das funções epistemológicas, éticas etc.) opapel de instrumento ideológico. Agora sim não se pode entender a ideologiasomente de maneira negativa: como falsa consciência também tem umadimensão afirmativa e coesa do Horizonte integrador social-histórico, ainda,obviamente, a partir do interesse de uma classe social particular. A classesocial, importada pelo krausismo na Espanha, é a burguesia liberal, pormediação de seu intelectual de bandeira Julián Sanz del Río.

Ao longo do magistério de Sanz del Río, ocorreu a luta do Krausismo paraimpor-se sobre as demais manifestações ideológicas que imperavam nomomento. Quando seu introdutor, na península, falece em 1869, o krausismo játinha conseguido se consolidar. Não é gratuito que ele coincida com oestabelecimento da I República (1868). Esta primeira fase da doutrina conclui-se com o advento da II República:

É conveniente distinguir duas etapas na história e desenvolvimento do krausismo espanhol: a que se estende desde 1854 (Revolução de Julho) até 1874 (Restauração), a que podemos denominar primeira geração krausista e a que tem seu arco entre 1874 e 1931, a chamada geração “institucionalista”, dirigida por Giner primeiro, logo por M. B. Cossío.13

A partir dos campos cultural e educativo, os krausistas projetam seu programaideológico renovador aos demais campos de práticas sociais. Recordemos osprincípios postulados por Edgar Morin: dialógico, de recursividadeorganizacional e hologramático, que evidenciam que as práticas de um camporepercutem nas práticas de outros campos. Assim, a prática cultural eeducativa dos krausitas repercutiram nos diversos campos. Sendo assim, eraimportante renovar esses dois mencionados campos para maiores parcelas dapopulação. Logo, os que tiveram acesso a isso contribuíram para aconcretização de uma grande meta krausista (burguesia liberal). Logo, arenovação cultural começou a dar seus melhores frutos com a famosa geraçãode 98, integrada por um grupo de intelectuais determinados, formados no climakrausista. Portanto, esta transformação alcançou seu esplendor com a geraçãodo 31, pois, em torno a tal geração, tem-se o período considerado como umaIdade de Prata da cultura espanhola, visto que transluz o Século de Ouro.

Quanto à promoção educativa, o krausismo realiza sua melhor conquista com acriação da Instituição Livre de Ensino (1876), fundada por Francisco Giner deLos Ríos, discípulo dileto de Julián Sanz del Río, como uma alternativa aorestabelecimento das normas tradicionais do ensino do dogma católico queleva a cabo a Restauração. Da Instituição Livre de Ensino, desencadearam dos

13 K. Ch. F. Krause. Ideal da humanidade para a vida, Barcelona, Planeta – De Agostini, 1996, IntroduçãoAlegre y Gorri, Antonio, p. 24.

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quadros intelectuais que reconfiguraram diversos campos de práticas ou quecontribuíram para a constituição dos outros, pelo fato de serem impulsores edirigentes da II República. Dessa forma, o krausismo marcou com sua digitalideológica os diversos campos de práticas, pois as mudanças produzidas noscampos cultural e educativo provocaram que se desprendessem disso (e deoutros campos) várias práticas. Conforme depuravam as funções delas, foramconjuntando-se, dando lugar à infraestrutura, sobre a que se erigiu o campobibliotecológico. Com o intuito de, então, encaminhar-se até a autonomia, aqual ficou plasmada com o discurso, no âmbito prático de María Moliner, emseu Plano de organização geral de bibliotecas, e, a nível abstrato com JoséOrtega e Gasset em sua Missão de bibliotecário. Entretanto, sigamos agora oprocesso de autodefinição das duas práticas (fase de constituição do campo)que assinalamos em linhas atrás: a organização bibliotecária e a sociedadeleitora.

A organização bibliotecária não é entendida aqui exclusivamente comoorganização interna das bibliotecas de maneira principal, mas como aarticulação das políticas que conduziram à criação da rede bibliotecária quecobria o território nacional e cujo fim era acercar as bibliotecas à coletividade. Éimportante destacar que políticas foram gestando-se diante de movimentos, demudanças e de necessidades sociais. A organização bibliotecária na Espanhafoi resultado de uma tardia tomada de consciência até o início do reinado deIsabel II, na segunda metade do século XIX14, sobre a necessidade de protegero patrimônio bibliográfico da nação. A este fim, obedecia o decreto de 1858,expedido pelo marquês de Corbera para instalar a retícula bibliotecáriahispânica:

A organização bibliotecária espanhola surgiu, pois, para conservar o patrimônio documental e bibliográfico da nação, que continha, segundo o decreto mencionado, as provas dos direitos dos particulares e do Estado, a experiência de muitos e os tesourosda humana sabedoria.15

14 Isso não quer dizer que, anteriormente, não houvesse existido a preocupação em criar umaorganização bibliotecária. De fato, foi, no século XVIII, quando do espírito da Ilustração se dá o maiorinteresse pela organização bibliotecária e busca-se dotá-la de fundos bibliográficos próprios para opúblico a que estava destinada. As Sociedades Econômicas de Amigos do País foram as que buscaramlevar adiante esse projeto que, entretanto, teve um influxo limitado. O projeto foi retomado pelosilustrados das Cortes de Cádiz (1810), os quais para evitar a destruição e o saque bibliográficoocasionado pela guerra de independência contra a França criaram uma Comissão de Bibliotecas, cujotrabalho consistia em localizar e recolher os fundos dispersos das bibliotecas destruídas. Com esse fundocriaram a Biblioteca de Cortes, que foi organizada pelo bibliotecário Bartolomeu José Galardo, na medidaem que crescia a importância de bibliotecas públicas, uma vez que seus objetivos não estavam noempréstimo, senão na bibliografia e na erudição. Este projeto é concluído quando o reacionárioFernando VII transfere as Cortes para Madrid para depois dissolvê-las. (Cf. Amparo García Quadrado.“Aproximação à organização bibliotecária espanhola no século XVIII”, Investigação Bibliotecológica,Revista Semestral; julho – dezembro 1997, volume 11, número 23. México, CUIB – UNAM, pp. 102-136.15Hipólito Escolar Sobrino. O compromisso intelectual de bibliotecários e editores, Madri, FundaçãoGermán Sánchez Ruipérez e Edições Pirâmide, 1989, p.49.)

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O acontecimento que eclodiu essa tomada de consciência foi a expedição dasleis de Desmortização de Mendizabal, que decretavam a nacionalização dosbens dos mosteiros. O Governo tomou, assim, a possessão dos livros,documentos e objetos artísticos e despertou, com isso, o interesse da classepolítica pelos arquivos e bibliotecas16. Era mister armazenar os bensexpropriados numa organização bibliotecária que os protegesse, inclusive,contra os usuários populares. Tal organização estava sustentada no projetoconservador e de conservação, não de difusão, atitude que marcou com suadigital a organização interna das bibliotecas, mais destinadas, então, para oseruditos e investigadores, quem tinham os conhecimentos apropriados paraabordar o acervo bibliográfico e documental expropriado dos mosteiros. Daí aambiguidade e limitações que caracterizam essa organização bibliotecária.

Em 1869 temos o ano da burguesia liberal no poder graças à “Gloriosarevolução”, as bibliotecas populares foram monopolizadas por uma minoriaintelectual, mediante uma intensa atividade durante o breve período de 1869 a1874. O impulso só foi freado com o advento da Restauração, o qual não tevedisposição para dar apoio a esse projeto. Cabe assinalar que, nessaorganização bibliotecária, somente foi contemplada a classe média intelectual,de forte influência krausista, que gradualmente foi ampliando seu raio de ação,sobretudo depois da criação da Instituição Livre de Ensino, de cujos grupossurgiram os intelectuais, que dariam uma maior definição à organizaçãobibliotecária para que, nos fins do século, definissem majoritariamente suafunção e se convertessem em parte da infraestrutura do campo bibliotecológicoem vias de constituição. Esse momento fica marcado com a chegada, em1897, do famoso polígrafo Marcelino Menéndez Pelayo à Direção da BibliotecaNacional.

Durante a administração de Menéndez Pelayo, consegue-se consolidar aorganização bibliotecária espanhola, o que significa que paralelamente define-se dentro dela a possessão do poder a partir da luta pelo capital simbólico e osconhecimentos acumulados em seu desenvolvimento. Vejamos este caso comoexemplo das lutas pelo poder que se deram nas práticas da infraestrutura docampo bibliotecológico.

Recordemos que, como expusemos anteriormente, para Pierre Bourdieu, umhábito define-se em torno à possessão do capital, que circula em cada campo.Isso implica uma concorrência entre os distintos participantes nos campos. Osquais fazem do capital o poder que gera o monopólio da violência legítima.Assim, é possível orientar o campo como também conservar ou defender aortodoxia. Sendo assim, desde o momento em que a prática (parcial) se

16 No imediato, isso se concentrou com a promulgação em 1857 da Lei de Instrução Pública de ClaudioMoyano, em que se reconhecia a obrigação do Governo em criar em cada província ao menos umabiblioteca pública.

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desprende e depura, a partir de outro campo, gera-se um capital (parcial) que,da mesma maneira, se separa e decanta do campo anterior. Ao redor dessecapital parcial se congregam os movimentos dos participantes a fim de possuí-lo. Logo, o capital se incrementa, ao conjuntar-se com outros capitais dasdemais práticas parciais da infraestrutura do campo, em vias de consolidação,dando lugar ao capital global, que circulará no campo uma vez autonomizado eque será disputado pelos participantes dele. A administração de MarcelinoMenéndez Pelayo nos mostra, com clareza, essa luta (parcial) na prática daorganização bibliotecária.

Desde o momento em que começaram a se dar no século XIX as tentativaspara dar forma à organização bibliotecária na Espanha, se dispara a dinâmicade seus atores para fazer-se o capital (que também começa a gerar nesseinstante) e, por consequência, fazer-se o poder. Os grupos de tendênciamonárquica e clerical se posicionaram desde o princípio da organizaçãobibliotecária e a orientam segundo sua própria tendência ideológica, seudomínio que se prolonga até os anos prévios à ascensão da II República.Entretanto, o melhor momento de detenção do poder, nessa prática parcial, sedá com a chegada de Menéndez Pelayo à Direção da Biblioteca Nacional,quem, ademais, se anexava à Direção do Corpo Facultativo, uma vez que era omais destacado intelectual de cunho conservador.

As características do capital do conhecimento que possuía e nas quesustentava seu domínio e do seu grupo, eram de formação erudita ehumanística, que para o início do século já resultavam conservadoras. Amaioria dos integrantes desse grupo era egressa da Escola de Diplomacia,onde receberam uma formação eminentemente histórica e literária: educaçãopor demais erudita e elitista. Semelhante grupo era o coro de fundo que faziaressaltar a primeira voz, a de Marcelino Menéndez Pelayo17. Seu pensamentoaclarado em historicismo imperava no pensamento bibliotecário peninsular.

O conservadorismo desse grupo e, de seu chefe, ficou cabalmente marcadonas três disposições que se ditaram baixo sua responsabilidade em modos deconservação da organização bibliotecária (isso em consonância, obviamente,com os pressupostos de seu próprio capital de conhecimento) já estabelecido.A 1ª. Supressão (1900) da velha Escola de Diplomática se incorporava àFaculdade de Filosofia e Letras de Madrid para formar uma terceira secção, ade História. Dessa forma, considerava-se que tal escola havia cumprido seu

17 “Não foi sua [de Menéndez Pelayo] toda a culpa por essa tendência elitista. Uma parte considerávelcabia aos bibliotecários que formavam seu coro, que haviam desejado e visto com alegria sua chegada àdireção da Biblioteca Nacional. Eram os mais ilustres, procedentes da Escola Diplomática, onde haviarecebido uma formação erudita e onde lhes haviam inculcado amor pelos estudos históricos e literários.Seu peso intelectual não era depreciável: em 1910 havia 14 catedráticos da universidade que,previamente, haviam sido membros do Corpo Facultativo e os membros, em atividade, ocupavam 14cadeiras titulares e 41 adjuntas nas Academias Espanhola, da História e de Belas Artes”. H. EscolarSobrino. Op. Cit., p. 158.

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ciclo, mas o certo é que dela não saíram notáveis bibliotecários, nemprofissionais preocupados em difundir os livros entre a comunidade. A 2ª.Instauração do Regulamento de bibliotecas públicas (1901) foi estimada comoo melhor tratado de bibliotecologia até o momento na Espanha. De fato,prefigura o discurso que concatenará o campo bibliotecológico, quando iniciasua autonomia, ademais de que se enriquece, notavelmente, o capital doconhecimento do campo. O Regulamento, certamente, embasava-se noscritérios arcaicos, próprios do pensamento de Menéndez Pelayo, quem, a partirdo púlpito elitista (diferenciação e distinção), remoneava como e quemdeveriam facilitar-lhe os livros18. Implantaram-se as Instruções para a redaçãode catálogos, das quais se sentia justificadamente orgulhoso MenéndezPelayo. Em suma, estas três disposições tornaram marcadas dentro do espíritoconservador decimonônico.

Assim, o ilustre polígrafo e seu grupo, em consonância com sua formação eatitude de antiquários, não souberam e não quiseram ver as aceleradastransformações que a nova centúria traria consigo para Espanha. Eenfrentaram-se, desde a trincheira monárquica, clerical, historicista edecimonônica, à imparável marcha da modernidade, que encarnava amudança, a qual era comandada pelo Kraussismo e a Instituição Livre deEnsino. Contra isso, lutou, sem concessões Menéndez Pelalyo, pois para eleeram entusiastas da influência que tinha a Igreja na educação dos espanhóis.Com a virada do século, uma nova geração deixa-se escutar e é a que levaadiante a campanha para destituir a Menéndez Pelayo da direção da BibliotecaNacional. Eram, precisamente, os liberais e anticoléricos que deixavam,paulatinamente, seu passo em todos os âmbitos da vida nacional. Em 1910,havia triunfado os liberais e republicanos nas eleições para as Cortes e, comisso, havia força para atacar a organização bibliotecária, representada na figurade Marcelino Menéndez Pelayo:

Talvez, também, a campanha refletia umas necessidades sociais que, por novas, eram depreciadas por Menéndez Pelayo. É mais ele, com sua influência sobre os bibliotecários, os havia impulsionado a desentender-se delas por considerá-las de pouco interesse cultural. Em realidade, a campanha foi um sintoma do enfrentamento de duas tendências do pensamento bibliotecário espanhol, a historicista ou menedezpelayista, orientada ao estudo do passado, e a modernista e popular, que considerava muito mais importante o conhecimento da produção intelectual e artística nova e viva, que refletia o grande desenvolvimento científico dos séculos XIX e XX e, ainda, satisfazer as necessidades dos leitores, surgidos entre as classes populares,

18 Considerava-se falta grave de um bibliotecário que permitisse que se pusessem fixas soltas docatálogo em mão de pessoa distante à biblioteca. Exigia-se, além de não levar a cabeça coberta nas salasabertas ao público, que tivesse: “uma autorização especial para os que desejassem romances, peças deteatro e demais obras de passatempo como, também, deveriam justificar seu propósito de estudo osque, por mais de um dia, quisessem usar coleções de periódicos que houvesse romances. Somente pormotivos singulares, certamente, se poderia facilitar livros obscenos. E nem se proporcionaria livros emformato rústico ou não encadernados”. Ibid, p. 141.

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que reivindicaram seus direitos políticos, econômicos e culturais, às vezes com extraordinária violência.19

O processo de autodefinição da organização bibliotecária, realizado durante agestão de Menéndez Pelayo, acelera-se a partir da luta entre os detentores dopoder e os aspirantes de cunho liberal a ele. Inclusive, nessa luta, está acondição de possibilidade para estes desenvolverem-se. Os aspirantes, porsua vez, põem em circulação um novo capital de conhecimento, condizentecom sua concepção científica e técnica20, que responde ao novo tipo denecessidade social, criada pelo avanço da burguesia e, com ela, o das classespopulares. Agora a organização bibliotecária devia responder não aosinteresses elitistas, eruditos e conservadores, mas sim à alfabetização e aproximidade dos livros às classes populares. Dessa maneira, o projetokrausista de modernização de Espanha – em que estava implícito nos gruposliberais que atacaram a Menéndez Pelayo – consegue um triunfo e dá umpasso adiante para pleitear o poder da organização bibliotecária, em renúnciadeste em 191021. Logo, os usos conservadores, instaurados por ele naBiblioteca Nacional, foram destituídos em 1930, com a chegada da direção deMiguel Artigas Ferrando, claro representante da nova orientação liberalrepublicana, quem de imediato permite o acesso de toda a população àbiblioteca. Com Artigas Ferrando, os liberais finalmente instauram o poder naorganização bibliotecária. No momento em que esta se conjuga com outraspraticas da infraestrutura, inicia-se a autonomia do campo bibliotecário.

Um ano depois da renúncia de Marcelino Menéndez Pelayo, criam-se asprimeiras bibliotecas populares em Madrid e Barcelona por Real Decreto (10 denovembro de 1911). Entretanto, por falta de recursos, estas não se ampliaram.Em 1912 (Real Decreto 22 de novembro), aconselha-se a criação das secçõespopulares nas bibliotecas universitárias e provinciais. Nesta trajetória de auto-definição da organização bibliotecária, merece especial menção a rede debibliotecas populares criada em 1915 na Catalunha pelo impulso do filósofoEugenio D’Ors. Tratava-se de bibliotecas autônomas, que incrementavam afunção intermediária entre as grandes bibliotecas especializadas e os leitoresde pequenas localidades. Essas bibliotecas populares eram manejadas poregressos da Escola de Bibliotecários de Barcelona e os leitores tinham livre

19 Ibid., p. 15320 Seguindo a inspiração de Ortega y Gasset para essa nova geração, a salvação (modernização) daEspanha não se encontrava no estudo de sua história sem assumir o pensamento contemporâneo. O quevinha a significar: cultivo das ciências puras, práticas e especulativas.21 A campanha contra desatou-se na impressa madrilena em agosto de 1910. Nela, buscava-se mostrarque sua gestão, frente à Biblioteca Nacional, era um completo fracasso. Essa era a argumentaçãojornalística: “A biblioteca é utilizada somente pelo diretor e pelos encarregados que trabalham para ele.Assim, podendo monopolizar dessa maneira uma biblioteca, nada mais fácil por ser um monstro deerudição. Entretanto, a esse preço um Menéndez Pelayo resulta muito caro porque impede a formaçãode muitíssimos Menéndez-Pelayos que, sem dúvida, pudessem vir surgir se os meios de estudo nãotivessem sido absorvidos todos por ele somente”. Citado por Hipólito Escolar do artigo de H. Vilar naresista Nosso tempo 1910, O compromisso intelectual de bibliotecários e editores, ed. cit., p.143.

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acesso a toda tipo de documentos. E em Madrid também no ano de 1915frutificaram as ideais do historiador Rafael Altamira (homem da Instituição Livrede Ensino) com relação à criação de bibliotecas populares, as que foramconfiadas ao Corpo Facultativo de Bibliotecários.22 A partir da década de 20, aauto-definição da organização bibliotecária é imparável, o que produz umamaior conjunção com outras práticas de infraestrutura e as leva a desembocarna autonomia do campo bibliotecário durante a II República. Sigamos agora oprocesso de auto-definição de outras das práticas de infraestrutura.

A sociedade leitora espanhola respondeu em seu desenvolvimento àscircunstâncias específicas que o contexto oferecia. Entretanto, paracompreender isso devemos definir primeiro o que é que aqui deve-secompreender por sociedade leitora, o que não necessariamente implica quecada um de seus integrantes, de maneira plena, fossem leitores, sem que issocontradiga o fundamento da sociedade leitora que representa o livro (e, porextensão, os demais tipos de impressos), o qual, como expressa RogerChartier:

[...] está instalado, no coração mesmo da cultura dos analfabetos, presente nos rituais dos espaços públicos de lugares de trabalho. Graças à palavra que os decifra, graças àimagem que se repete se tornam acessíveis, inclusive, para aqueles incapazes de ler o que somente podem ter por si mesmos assim uma compreensão rudimentar.23

O impresso, ao filtrar-se nos espaços privados, acaba por invadir os espaçosda subjetividade. Assim, a sociedade leitora se conecta e encadeia-se desde ointerior de seus membros, os quais respondem à força unificadora que irradia oimpresso24. A ordem dos livros inicia sua gênese, na modernidade ocidental, nomomento em que o livro deixa de ser uma mera extensão da transmissão oralpara tornar-se, com o passar do tempo (dependendo de cada contexto), emunidade centralizadora que passa a reger a sociedade leitora, conformando-seem rumo da centralidade do impresso. Na Espanha, a sociedade leitora em seusentido plenamente moderno foi se constituindo, ao mesmo tempo, ao longo dacentúria passada, mas a fase de clara auto-definição deu-se até o caso de talsociedade, quando a ordem dos livros, torna-se firmemente consolidada. Emconsequência de tal organização bibliotecária, começa-se sua auto-definiçãopara permitir o acesso às bibliotecas e, por fim, aos livros para os maisampliados setores da população, o que mostra a conjunção que vai dando-seentre essas práticas da infraestrutura do campo bibliotecológico a partir desuas funções.

22Como anteriormente Rafael Altamira teve a iniciativa, desde a Direção Geral de Ensino Primário, decriar uma biblioteca popular circulante destinada às escolas públicas no intuito de estimular a aflição daleitura e difundir elementos de cultura geral.23 R. Chartier. O mundo como representação. História cultural: entre prática e representação, Barcelona, Gedisa, 1992, p. 117.24 Cf. Meu estudo: “Os usos da leitura e a representação cultural: elementos para uma teoria da leitura” no volume coletivo A informação no início da era eletrônica. Informação, sociedade e tecnologia, México, CUIB-UNAM, 1988.

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Como anteriormente exposto, a ascensão da burguesia até meados da centúriapassada transformou a anacrônica ordem constitucional que imperava naEspanha. Dessa forma, a classe media liberal composta principalmente porcomerciantes e funcionários abarcava também a camada mais ilustrada,composta por profissionais e intelectuais (escritores e jornalistas), os quais,pelo avanço de classe social, marcavam as pautas culturais e educativas, entreos quais ocupava um lugar estratégico na leitura. Mediante a leitura, aburguesia evidenciava essa dinâmica que gradualmente a conduzia ao poder.Era uma classe social inquieta, aspirante de estar atualizada e o instrumento,imediato, criado por ela para satisfazer tal necessidade foram as publicaçõesperiódicas (revistas e jornais): “É a nova classe media, a burguesiarecentemente liberalizada e, talvez, por isso, liberalizante já que se mostravainquisitiva e propicia à novidade e petulante aos iconoclastas, a quedeterminava a fundação desses admiráveis instrumentos de divulgaçãocultural.”25

As publicações periódicas contribuíram para a consolidação da ordem doslivros e, com isso, repercutiu numa melhor integração da sociedade leitora. Olivro adquire, então, uma maior influência ao ser estimado como instrumentoprivilegiado pela burguesia, dado que ele exporia seu pensamento e aspirações(de conhecimento, ascensão e poder). Essa classe social promove a difusão doimpresso, que por concessão dela instala em sua própria subjetividade e seconverte no seu meio de identidade. Desse modo, o impulso dado à leitura pelaclasse média provocou que os sectores populares, por sua vez, aspirassemformar parte da sociedade leitora.26 A consolidação da sociedade leitora teveeco no processo de desenvolvimento do país auspicioso pelo impulso burguês,que leva às classes populares a incorporar-se a esse desenvolvimento. Aincipiente industrialização e com ela a progressiva urbanização da Espanha,incentivam um aumento no número de alfabetizados, o qual ascende,constantemente, ao longo da segunda metade do século XIX:

Em 1860 y 1920, produz-se, então, um forte aumento do número de alfabetização, que se multiplica por três, somando-se também as mulheres supõem mais de 55%, com todas as consequências que podemos imaginar para o progresso da comunicação escrita e impressa e para o mercado potencial, inclusive se, como é provável, um bom número de alfabetizados oficialmente analfabetos funcionais.

A evolução do número de alfabetizados e de seu papel pelo território espanholaparece que está muito ligado a fenômenos demográficos (polos de atração de

25 Juan López Morillas. O krausismo espanhol. Perfil de uma aventura intelectual, México, FCE, 1956, p.188. 26 “Ademais, as massas populares, paulatinamente, foram enquadrando-se de forma lenta, mas,progressivamente, nos partidos políticos, aspiravam a integrar-se no mundo do pensamento atual, e aburguesia, a que pertencia escritores e jornalistas, era consciente de seu papel na nova sociedade e dedo domínio da palavra escrita, e desejava expor seu pensamento e ter fácil acesso ao livro para, assim,conhecer os escritos de seus contemporâneos, que analisavam os problemas que afetavam a seusmembros e descrevia sua maneira de ser e seus costumes”. Hipólito Escolar. Op. cit., p. 157.

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Catalunha, do País Vasco e de Valência) que afetam o centro da Espanha,salvo Madri, em benefício da periferia e, no campo, em beneficio das cidades.27

Entretanto, cabe assinalar que o aumento de alfabetizados não foi resultado deum claro e sistemático projeto nacional, senão que se deve aos bons ofícios dealgumas instituições e de particulares. Foi somente durante a II Repúblicaquando se gestou um autêntico projeto nacional para reduzir o analfabetismo.Como o maior acesso de uma maior porcentagem da população à culturaimpressa nas décadas finais do século passado e as primeiras desta centúriapermitiu a consolidação paulatina da ordem dos livros, que assim começou aarticular e dirigir a sociedade leitora. A qual, por sua vez, conforme se auto-definia, exigia satisfazer sua demanda (acesso) de livros, o que deviaresponder à organização bibliotecária. Esta resposta permitia, por um lado, aformação do bibliotecário (o ensino bibliotecário é outra das práticas dainfraestrutura do campo bibliotecológico que aqui foi analisada) capacitado paracumprir com essa missão. Formação que, por outro lado, tinha que estarsintonizada com as mudanças que também experimentava a organizaçãobibliotecária em sua própria auto-definição. O anterior exemplifica, pois, aodefender a função de uma prática, tende a conjugar-se como a função deoutras práticas da mesma infraestrutura. Por último, somente cabe ressaltarque as diversas práticas, que conformaram a infraestrutura do campobibliotecológico espanhol, encaixaram até a autonomia com a ascensão da IIRepública. A qual ficou marcada com a gestação do discurso, representadopelos já mencionados textos de María Moliner e José Ortega e Gasset. Aautonomia e o discurso do campo bibliotecológico, explicados pela propostateórico-histórica que aqui desenvolvemos serão analisados em outro lugar.

27 Jean Francois Botrel. Livros, imprensa e leitura na Espanha do século XIX, Madri, Fundação Germán Sánchez Ruipérez y Edições Pirámide, 1993, pp. 319-320.