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TERAPIA COMUNITARIA E A INCLUSAO DO USUARIO DE ALCOOL NA COMUNIDADE E REDE DE SERVIÇOS - RELATO DE EXPERIENCIA Maria da Graça Pedrazzi Martini Pedagoga, especialista em Deficiência Mental, Recursos Humanos, Metodologia do Ensino Superior, Psicopedagogia Clínica e Institucional. Formação em Psicologia e Psiquiatria da Infância, Conselheira Familiar, Socioterapia, Heiki, Terapeuta Floral, Argilina, Cuidando do Cuidador e Terapia Comunitária. Atua como Coordenadora e Intervisora do Serviço de Terapia Comunitária no Município de Londrina – PR Membro da ABRATECOM – Associação Brasileira de Terapia Comunitária. Formadora de Terapeutas Comunitários pela ABRATECOM e Prefeitura Municipal de Londrina. Responsável pelo Pólo Formador - Londrina-PR. Dentre tantas experiências com a TC desde 2002 em Londrina-Pr, fiz um recorte desta, por tratar da questão do alcoolismo e da inclusão do usurário na comunidade, bem como o relato de crescimento individual e grupal, tantos dos terapeutas quanto da comunidade. As TCs são realizadas em dois grupos, a cada quinze dias, pela médica de família e terapeuta comunitária da UBS ( Unidade Básica de Saúde) da região. A Comunidade-destaque deste relato é considerada violenta, com alto índice de criminalidade, trafico e uso abusivo de álcool e outras drogas. A carência das famíllias vai desde a questão do desemprego, doenças, até uma grande desagregação familiar e comunitária. A insegurança da terapeuta e co-terapeutas em realizar a TC na pequena varanda da igreja católica é legitima. Mas o desejo de fazer a diferença e proporcionar saúde, autonomia e avanço para aquela comunidade é unânime em todos os profissionais daquela UBS. Sabemos que temos um grande desafio naquela comunidade, e esta UBS o enfrenta todos os dias em seu cotidiano de trabalho. A equipe vê a TC como uma ferramenta que a ajuda de forma lúdica e simples a incluir a comunidade na co-responsabilidade na solução dos problemas. Era quarta-feira, por volta das 14h30min. Eu cheguei à UBS. (Neste dia eu fui substituir a terapeuta que estava de licença médica e acompanhar a co-terapeuta em sua primeira experiência na roda da TC.) Lá estavam as co-terapeutas, coordenadora da UBS e as ACSs (agentes comunitários de saúde) cantando e alegrando o ambiente com as músicas da TC. Elas treinavam com entusiasmo!!! As TCs já acontecem a vários meses nesta comunidade, porém a terapeuta fazia sozinha. Só agora quatro ACSs fizeram o curso de co-terapeutas e começaram a colaborar efetivamente com a terapeuta fazendo o acolhimento e toda a preparação do território. (As ACSs se revezam no trabalho de co-terapia entre os dois grupos da região) Descemos até o local aonde iria acontecer a TC. Já chegava perto das 15h e as pessoas iam chegando lentamente... Havia uma reunião da bolsa-escola no mesmo horário.... -Acho que não vai ter TC dizia uma.

Terapia Comunitária e a inclusão do usuário de alcool na comunidade de redes e serviços

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Dentre tantas experiências com a TC desde 2002 em Londrina-Pr, fiz um recorte desta, por tratar da questão do alcoolismo e da inclusão do usurário na comunidade, bem como o relato de crescimento individual e grupal, tantos dos terapeutas quanto da comunidade.

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TERAPIA COMUNITARIA E A INCLUSAO DO USUARIO DE ALCOOL NA

COMUNIDADE E REDE DE SERVIÇOS - RELATO DE EXPERIENCIA

Maria da Graça Pedrazzi Martini

Pedagoga, especialista em Deficiência Mental, Recursos Humanos, Metodologia do Ensino

Superior, Psicopedagogia Clínica e Institucional. Formação em Psicologia e Psiquiatria da

Infância, Conselheira Familiar, Socioterapia, Heiki, Terapeuta Floral, Argilina, Cuidando do

Cuidador e Terapia Comunitária. Atua como Coordenadora e Intervisora do Serviço de Terapia

Comunitária no Município de Londrina – PR Membro da ABRATECOM – Associação Brasileira

de Terapia Comunitária. Formadora de Terapeutas Comunitários pela ABRATECOM e

Prefeitura Municipal de Londrina. Responsável pelo Pólo Formador - Londrina-PR.

Dentre tantas experiências com a TC desde 2002 em Londrina-Pr, fiz um recorte desta, por

tratar da questão do alcoolismo e da inclusão do usurário na comunidade, bem como o relato

de crescimento individual e grupal, tantos dos terapeutas quanto da comunidade.

As TCs são realizadas em dois grupos, a cada quinze dias, pela médica de família e terapeuta

comunitária da UBS ( Unidade Básica de Saúde) da região.

A Comunidade-destaque deste relato é considerada violenta, com alto índice de criminalidade,

trafico e uso abusivo de álcool e outras drogas. A carência das famíllias vai desde a questão do

desemprego, doenças, até uma grande desagregação familiar e comunitária. A insegurança da

terapeuta e co-terapeutas em realizar a TC na pequena varanda da igreja católica é legitima.

Mas o desejo de fazer a diferença e proporcionar saúde, autonomia e avanço para aquela

comunidade é unânime em todos os profissionais daquela UBS. Sabemos que temos um

grande desafio naquela comunidade, e esta UBS o enfrenta todos os dias em seu cotidiano de

trabalho. A equipe vê a TC como uma ferramenta que a ajuda de forma lúdica e simples a

incluir a comunidade na co-responsabilidade na solução dos problemas.

Era quarta-feira, por volta das 14h30min. Eu cheguei à UBS. (Neste dia eu fui substituir a

terapeuta que estava de licença médica e acompanhar a co-terapeuta em sua primeira

experiência na roda da TC.) Lá estavam as co-terapeutas, coordenadora da UBS e as ACSs

(agentes comunitários de saúde) cantando e alegrando o ambiente com as músicas da TC. Elas

treinavam com entusiasmo!!!

As TCs já acontecem a vários meses nesta comunidade, porém a terapeuta fazia sozinha. Só

agora quatro ACSs fizeram o curso de co-terapeutas e começaram a colaborar efetivamente

com a terapeuta fazendo o acolhimento e toda a preparação do território. (As ACSs se revezam

no trabalho de co-terapia entre os dois grupos da região)

Descemos até o local aonde iria acontecer a TC.

Já chegava perto das 15h e as pessoas iam chegando lentamente... Havia uma reunião da

bolsa-escola no mesmo horário....

-Acho que não vai ter TC dizia uma.

- Essa é a reunião do bolsa? Dizia outra pessoa.

Uma participante assídua já havia limpado o salão e providenciado água fresca para os

participantes.

Fazia muito calor...

Aos poucos íamos aumentando a roda de bancos e cadeiras. Chegavam pessoas idosas, com

andadores, com bengalas, jovens senhoras... Algumas crianças curiosas brincavam por perto...

Foram dados os informes da UBS enquanto aguardávamos a chegada das pessoas.

Demos inicio a TC. A co-terapeuta realizava sua primeira experiência com o apoio de sua

parceira. Depois do curso de acolhimento que fizeram elas se desdobravam em cuidados,

alegria e planejamento. Estavam felizes em colocar em prática o seu amor pela comunidade

através da TC. Já conheciam cada um e cada uma daquela região. Já haviam tentado serem

salvadoras da pátria e já sofreram decepções. Já se esgotaram e já tentaram desistir, mas a

missão de levar prevenção e saúde aos mais carentes era maior e então, continuavam ali,

firmes e fortes no trabalho servindo ao próximo através da arte de cuidar.

Dezoito ou vinte pessoas chegaram. Demos inicio ao acolhimento, aos passos da TC e em

seguida a escolha do tema. Foi eleito o caso da mãe que tem um filho de 37 anos, alcoólatra e

que não pára em trabalho nenhum por causa da bebida. Fica muito agressivo quando bebe.

Relata.a mãe.

Éh! Só pelo remelexo nas cadeiras parecia que na roda haveria muitas “coleguinhas de alma”

por ali.

E como não poderia faltar: Eis que chega um homem muito embriagado, cambaleando. A Co-

terapeuta que o conhecia há quatro anos já ia fazendo um gesto de “volte outro dia!!!!”

quando eu convidei-o a participar:

-Venha se achegue, e comecei a cantar Seja Bem Vindo Olele.

Não podia ser diferente. Uma representação viva do drama das famílias estava ali.

Como um bom “representante dos bêbados”, ele queria falar toda hora e tentava perturbar

um pouco. Mas foi capaz de aceitar os limites dados por mim. Seus olhos se encheram d’agua

várias vezes durante a TC. Sentiu-se aceito e acolhido pela comunidade técnica e comunidade

local (será que foi pela primeira vez???).

Não foi embora. Ficou sentado até o fim da TC. Levantou uma só vez e com certeza alguém

pensou: “graças a Deus, ele se vai e a TC vai continuar redondinha, sem nenhum

contratempo.” Que nada. Eu perguntei: “aonde vai??? Senta aí, já, já você vai falar da sua

experiência...” Ele sentou novamente. Para minha alegria e meu medo...(medo sim, não sabia

aonde ia dar. Ele estava muito bêbado e mais alguma coisa e o grupo fez um sinal de rejeição

logo no inicio, mas sempre entrego a Deus o meu trabalho, deixei então a intuição comandar.

Sempre que meu mental fica para escanteio eu me dou bem-risos)

A D. Maria (nome fictício) relatou sua história, fizemos perguntas e os motes foram lançados:

1-Quem já viveu algo parecido e o que fez para superar? Várias pessoas falaram de sua

experiência positiva e de superação. Muitos familiares não pararam de beber, mas os co-

dependentes aprenderam a cuidar de si.

2- O que leva uma pessoa a entrar na bebida e não conseguir sair dela?

Neste momento, todos os participantes da roda deram sua opinião: desgosto, tristeza, mas

companhias, falta de emprego, luto, um grande trauma, solidão, falta de amor da família etc...,

Sr. João (nome fictício), o homem bêbado, também respondeu:

- É desgosto dona, falta de emprego, falta de uma companheira. Um homem não consegue

viver assim, sem dinheiro... As lágrimas enchiam seus olhos novamente. A dor fora colocada

para fora. O Ser Divino que há nele apareceu. Apesar de todo o álcool e outras substâncias em

seu corpo ele foi capaz de refletir e se colocar como quem sofre. Foi visto como ser humano,

não só pela comunidade, pelos profissionais de saúde, mas principalmente por ele mesmo.

- A pessoa, não deixa a bebida dona, por falta de vergonha na cara disse ele. Neste momento

discutimos a questão da dependência química e que vai além da vontade da pessoa em parar.

O usurário e a família precisam de cuidado profissional e apoio comunitário;

3- O que a comunidade pode fazer para diminuir este problema de alcoolismo e o sofrimento

dos familiares (co-dependência)?

Vale destacar que, nos bairros de Londrina o alcoolismo e o sofrimento de familiares é o

segundo tema mais votado nas rodas das TCs. Este foi um momento muito rico, pois surgiram

duas lideranças que se comprometeram a articular um grupo de AA na comunidade. Falamos

também do apoio da família e da comunidade no tratamento do usuário de álcool e a

importância do autocuidado pelos sofrimentos causados pela co-dependência. Refletimos e eu

dei a informação sobre os redutores de danos do CAPS-AD que podem visitar o filho da D.

Maria que não quer aderir a nenhum tratamento e os recursos da rede de serviços para esta

problemática.

Após esta profunda reflexão entre o saber dos profissionais de saúde e saber da comunidade,

agradeci novamente a D. Maria e fomos para o encerramento.

O ritual de agregação foi impressionante. Cada um colocou seu bem estar, seu sentimento de

alegria por estar ai, a importância de conhecer a rede de serviços e o alivio que estavam

sentindo naquele momento. Eu fui até o João para contê-lo já que, às vezes, caía um pouco

para um lado, um pouco para outro e também estava eufórico demais por estar ali entre as

pessoas que mal o olhavam em outros contextos. Havia até quem já tinha desistido dele. Ele

parecia ser uma pedra no sapato da comunidade e dos profissionais que atendiam aquela

região.

Demos as mãos, cantamos, dissemos o que cada vai levando e o João ali, cai não cai... Se ele

fechava os olhos tombava. Então eu dizia:

- Não cai. Se segura!! Isso é para você. O apoio da comunidade é para você se fortalecer e sair

dessa.

E o João levou alegria, apoio, esperança, inclusão...

No momento dos abraços de despedida ele me disse:- eu posso te dar um abraço e um beijo?

Eu disse: Um abraço de respeito e amizade é o que eu mais quero. E eu abracei como se

abraça uma criança. E ele saiu a abraçar a todos., rindo feito mesmo uma criança... Abraçou as

vovós e também a agente comunitária (co-terapeuta) que pelo jeito era seu maior sonho e

nunca que tinha conseguido. (hahahahahaah!!!)

Ele ficou ali, se nutrindo do amor comunitário.

AH!!! Para encerrar, quero dizer que acho o João gostou de mim, pois me convidou para tomar

uma no boteco da Vila (hahahahah!!!!). Dei um peteleco no boné dele e convidei-o para vir

sóbrio na próxima TC.

E todos, aos poucos, bem devagar, do jeito que chegaram, foram saindo.... Sem pressa...

Com vontade de ficar....

João também, D Maria também, nós também...

Encaminhamentos: A equipe de co-terapeutas e UBS irão entrar em contato com o CAPS-AD e

solicitar um redutor de danos para visitar a casa da D. Maria e do João e informá-los do serviço

e das possibilidades de tratamento do alcoolismo; articulação com o AA para implantação do

grupo na comunidade; encaminhamentos de saúde para as outras participantes que não foram

escolhidas.

A avaliação no final da TC:

Choros e lágrimas de toda a equipe da UBS que participou da TC, pois falamos dos

preconceitos que a presença do João trouxe a tona.

Falamos da necessidade de nos conhecermos para cuidar do outro. Fizemos co-relação com o

que aprendemos no curso de co-terapeutas e o que é a verdadeira inclusão na prática.

Falamos dos nossos medos e das nossas mudanças...

Falamos de como dói mudar e de como é bom saber que não somos os mesmos depois de

cada Terapia Comunitária.

Sentimos na pele a necessidade de acreditar no potencial do outro e da comunidade.

Deixamos cada vez mais o lugar de salvadores da pátria para assumimos o lugar de co-

responsáveis para um mundo mais justo, mais acolhedor e mais solidário.

Não somos mais o mesmo depois do João, da Maria, do José, ...

Depois do colo da comunidade...

Crescemos.

Abraços Comunitários!