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Mário Videira; Caiti Hauck-Silva & Ísis Biazioli de Oliveira (Organizadores)

anais da terceira

jornada acadêmica discente

programa de pós-graduação em música

ISBN 978-85-7205-151-4

Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes 26 e 27 de novembro de 2015

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Imagem da capa: Hendrick ter Brugghen, Bagpipe Player (1624) Óleo sobre tela 100,7 x 82,9 cm. National Gallery of Art - Open Access (http://images.nga.gov)

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo J82a Jornada Acadêmica Discente do Programa de Pós-Graduação

em Música ECA/USP (3. : 2015: São Paulo) – (PPGMUS- ECA/USP) Anais ... / Mário Videira, Caiti Hauck-Silva, Ísis Biazioli de Oliveira (organizadores) – São Paulo: ECA-USP, 2015. 207 p. Trabalhos apresentados na jornada realizada de 26 a 27 de novembro de 2015, São Paulo. ISBN 978-85-7205-151-4 1. Música - Congressos I. Videira, Mário II. Hauck-Silva, Caiti III. Oliveira, Ísis Biazioli de. CDD 21.ed. – 780

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor Marco Antonio Zago

Pró-Reitora de Pós-Graduação Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch

Vice-Diretor Eduardo Henrique Soares Monteiro

DEPARTAMENTO DE MÚSICA

Chefe Monica Isabel Lucas

Vice-chefe Luís Antônio Eugênio Afonso

Secretária Luciana Del Sole Queiroz

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Comissão de Coordenação de Curso

Coordenador Mário Rodrigues Videira Júnior

Vice-coordenadora Adriana Lopes da Cunha Moreira

Membro Titular Rogério Luiz Moraes Costa

Suplentes Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta

Monica Isabel Lucas Régis Rossi Alves Faria

Secretária Tânia Delonero

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III JORNADA ACADÊMICA DISCENTE PPGMUS ECA/USP

Comissão Organizadora Adriana Lopes Moreira – ECA/USP

Caiti Hauck-Silva – ECA/USP Mário Videira – ECA/USP Rogério Costa – ECA/USP

Susana Igayara – ECA/USP

Comissão Científica Adriana Lopes Moreira – CMU/ECA/USP

Diósnio Machado Neto - FFCLRP/USP Fernando Iazzetta – CMU/ECA/USP Heloisa Duarte Valente – UNIP/USP

José Batista Dal Farra Martins – CAC/ECA/USP Marco Antônio da Silva Ramos – CMU/ECA/USP

Marcos Câmara de Castro - FFCLRP/USP Mário Videira – CMU/ECA/USP

Monica Isabel Lucas – CMU/ECA/USP Paulo de Tarso Salles – CMU/ECA/USP

Pedro Paulo Salles – CMU/ECA/USP Régis A. Faria - FFCLRP/USP

Rodolfo Coelho de Souza - FFCLRP/USP Rogério Moraes Costa – CMU/ECA/USP

Silvia Berg - FFCLRP/USP Susana Igayara – CMU/ECA/USP

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Sumário

Apresentação 17

ALBUQUERQUE, Joel - Análise estrutural do Choros nº2 de Heitor Villa-Lobos 19

ALIEL, Luzilei; COSTA, Rogério - Estudo de caso: Projeto Dimensões~; um olhar sobre comprovisações em ecologia sonora 27

AMALFI, Marcello - A relevância do aprendizado musical do ator durante a montagem teatral e o trabalho de Jean-Jacques Lemêtre no Théâtre du Soleil 35

BRUM, Marcelo A. - Processos de construção de um catálogo de obras de Luciano Gallet 44

CAMARGO, Luciano F.; SALLES, Paulo T. - A “Trilogia de Guerra” de Chostakóvitch 53

DANTAS, Laura F.; VALENTE, Heloisa A. D.- Processos de legitimação e ideário de modernidade na trajetória da MPB 62

DOMINGOS, Nathália - Solmização: afinação e nomeação das notas alteradas de acordo com o tratado A Briefe Introduction to the Skill of Song (c.1596) de William Bathe 70

FONTENELE, Ana Lúcia - Pixinguinha e os caminhos da orquestração brasileira: caso Carinhoso 78

FRAGOSO, Daisy - A pesquisa etnográfica em música: reflexões sobre metodologia 86

GABORIM-MOREIRA, Ana Lucia I.; RAMOS, Marco Antonio S. - Regência coral infanto-juvenil: desafios e dificuldades na construção de competências e habilidades 94

GABRIEL, Ana Paula A.; IGAYARA-SOUZA, Suzana Cecília - As performances da Paixão segundo São João de J.S.Bach de Furio Franceschini (1880-1976) e de Martin Braunwieser (1901-1991) em São Paulo: acervos e pesquisa documental 103

HELD, Marcus - Os tratados de Francesco Geminiani (1687-1762) 111

LLANOS, Fernando - Nem erudita, nem popular: por uma identidade transitiva do violão brasileiro 119

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MENEZES JR, Carlos Roberto F.; RAMOS, Marco Antonio S. - A ocorrência do hibridismo tonal/modal e do modalismo misto no repertório do Clube da Esquina nos anos de 1967 à 1979 125

MIRANDA, Paulo César C. - Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência 134

NICOLETTI, Daniela A. R; BERG, Silvia Maria P. C. - A arte de educar, a educação estética e a música na educação, sob a perspectiva do desenvolvimento humano integral, segundo Rudolf Steiner 142

OLIVEIRA, Carolina A.; IGAYARA-SOUZA Suzana C. - O perfil do regente-arranjador e a presença de arranjos no repertório coral brasileiro 151

OLIVEIRA, Ísis B.; VIDEIRA, Mario - A tríade aumentada em Liszt e o tratado de harmonia de Weitzmann: uma revisão bibliográfica 159

OLIVEIRA, Juliano - A contribuição da trilha musical cinematográfica na construção do imaginário mítico do velho oeste norte-americano num olhar semiótico 168

RIPKE, Juliana - A tópica canto de xangô: Villa-Lobos, o afro-brasileiro e a identidade nacional 176

SOARES, Eliel A. - Exemplos de figuras retóricas de interrupção e persuasão silêncio em José Maurício Nunes Garcia 184

ZANGHERI, Glaucio Adriano - A obra musical como objeto puramente intencional em Ingarden 192

RIBEIRO, Priscila - Toadas da Folia de Reis dos Prudêncio de Cajuru-SP: permanência e cantoria 200

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Apresentação

Terceira Jornada Acadêmica Discente PPGMUS – USP é um evento que tem o objetivo de integrar e promover o

intercâmbio científico e cultural da comunidade acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Música da ECA-USP. Este tipo de evento se torna ainda mais necessário neste momento em que a coordenação está empenhada em qualificar, verticalizar e integrar a produção científica e artística do nosso programa, tornando-o cada vez mais, uma referência de excelência no cenário da pós-graduação no Brasil.

Para que isto ocorra é fundamental que os alunos e professores troquem experiências, conheçam as pesquisas uns dos outros, constituam grupos de pesquisa e desenvolvam trabalhos consistentes e de qualidade. A programação da III Jornada Acadêmica foi composta de comunicações de artigos, palestras e mesas-redondas com alunos do PPGMUS e pesquisadores convidados, permitindo a divulgação e a troca de informações e experiências relacionadas às pesquisas desenvolvidas no âmbito da pós-graduação.

Esperamos que a leitura dos trabalhos apresentados seja proveitosa e que abra perspectivas de colaboração científica e artística entre os alunos e pesquisadores ligados ao programa.

A Comissão Organizadora

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Análise estrutural do Choros nº2 de Heitor Villa-Lobos

JOEL ALBUQUERQUE ECA/USP – [email protected]

ste trabalho se propõe a analisar a estrutura formal e harmônica do Choros nº2 (1924) de Heitor Villa-Lobos,

música para flauta e clarinete que compõe a série Choros, um conjunto de obras da década de 1920 que se caracterizam por fazerem menções a fragmentos e gestos idiomáticos do gênero popular urbano carioca de mesmo nome. Identificamos que se trata de uma peça inclinada para o uso de procedimentos composicionais pós-tonais, por essa razão optamos por escolher ferramentas de análise apropriadas para repertórios com este caráter. Decidimos pelo uso da Teoria dos Conjuntos1, uma proposta recorrente para a análise harmônica de músicas de compositores modernistas do início do século XX, entre os quais incluímos Villa-Lobos. Nos baseamos especificamente nos estudos apresentados por Joseph Straus em seu livro Introduction to Post-Tonal Theory (2005). Nosso propósito é identificar no Choros nº2 a presença recorrente de estruturas intervalares simétricas2, reiterando o que também observamos em nossa análise dos Choros nº4 e Choros nº7 (ALBUQUERQUE, 2014), apontando para uma suposta existência em segundo plano de elaborados princípios harmônicos relacionados a uma lógica racionalista, que serviriam de vigamento de sustentação para a empírica constelação de citações evidenciadas na face reconhecível destas músicas.

1 Seguindo esta proposta, consideraremos as doze alturas da escala cromática, independente de posições de oitava e enarmônicos, como equivalentes a um conjunto de doze números inteiros (Módulo 12), partindo de Dó=0, Réb/Dó#=1, Ré=2, e assim por diante. Estes números serão apresentados em um círculo similar ao mostrador de relógio (clockface), no qual apresentaremos as características simétricas de alguns dos recorrentes conjuntos intervalares utilizados por Villa-Lobos na obra elencada (STRAUS, 2005). 2 Estamos nos alinhando a estudos recentes que veem percebendo a presença recorrente de estruturas intervalares simétricas em obras de Villa-Lobos Conferir ALBUQUERQUE, 2014 e SALLES, 2009.

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Análise estrutural do “Choros nº2” de Heitor Villa-Lobos

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Pressupomos o seccionamento do Choros nº2 em três partes justapostas e um coda (Tab.1)3, coincidindo com a forma ABC que identificamos anteriormente em nossa análise dos Choros nº4 e Choros nº7 (ALBUQUERQUE, 2014)4, corroborando nossa hipótese de existir uma estrutura formal invariante entre alguns dos Choros de Villa-Lobos.

Seção A Seção B Seção C Coda c.1-13 c.14-23 c.24-48 c.49-54

Tabela 1: estrutura formal do Choros nº2

Além disso, encontramos similaridades estéticas entre estas três partes correspondentes dos três Choros elencados, contendo respectivamente uma seção A com perfil estruturalista mais extenso e manifesta ao ouvinte no primeiro plano, com predominante presença de amplas estruturas intervalares harmônicas regidas por eixos simétricos. Na seção B temos um momento mais lento e mais curto que os demais (uma espécie de transição entre as seções extremas), amparado por um cenário textural baseado em blocos harmônicos em letárgica transformação, trecho de caráter contemplativo e empírico em que as proporções intervalares simétricas surgem na superfície direcionando contornos melódicos de palíndromos (reflexão) e ostinatos (translação). À seção C é atribuída um caráter referencialista, trecho em que a camada superficial de alusões ao universo externo ganha maior densidade. No campo harmônico a menção é feita a gestos que remetem ao contexto tonal, como o uso de estruturas triádicas e coleções escalares, no entanto, não passam de mais um referimento em meio ao emaranhado de fragmentos

3 Interessante perceber que os tamanhos das seções do Choros nº2 têm uma equivalência entre si que se aproximam à série Fibonacci e à proporção áurea. Na série Fibonacci temos um recorte com a sequência 5, 8, 13 e 21, equivalente às somas de números de compassos 6, 10, 13 e 25, que correspondem respectivamente ao coda, seções B, A e C. Além disso, se pegarmos o total de compassos da obra (54) e dividirmos pelo fator de proporção áurea (φ=1,618), teremos um resultante (33,37) muito próximo ao valor de soma do número de compassos da seção C e coda (13+25=31), marcando o final da seção B como ponto de equilíbrio áureo da obra. 4 Assis (2009) também identificou a forma ABC no Choros nº5, inclusive com incidência de proporção áurea na disposição destas seções.

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Análise estrutural do “Choros nº2” de Heitor Villa-Lobos

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idiomáticos lançados sobre um engenhoso suporte harmônico pós-tonal. Ao final um coda que encerra as obras. Nossa proposição de que estes Choros analisados seguem a um mesmo princípio harmônico estruturalista baseado em proporções intervalares simétricas, aliado à coincidência de apresentarem um padrão formal bastante semelhante (ABC), contradiz o argumento recorrente em estudos mais antigos que apontavam para uma proposta composicional exclusivamente intuitiva e inexistência de um padrão formal invariante reconhecível que alinhasse todas as obras que compõem a série Choros.

No início do Choros nº2 (Fig.1) temos a sobreposição de duas camadas estratificadas distintas. Na parte superior temos a melodia da flauta baseada em uma coleção de sete entradas (Módulo 7): Dó diatônica (conjunto5 7-35), correspondente às alturas das teclas brancas do piano, um recorte do ciclo intervalar de cinco semitons C5 (equivalente às quartas e quintas justas diatônicas). Na voz inferior temos a melodia do clarinete baseada em uma coleção de doze entradas (Módulo 12): a escala cromática (conjunto 12-1), um ciclo intervalar de semitons C1 (equivalente às segundas menores e sétimas maiores diatônicas). Os contornos melódicos das duas vozes – saltos de quartas e quintas diatônicas na flauta e sequências de segundas diatônicas no clarinete – corroboram nossa hipótese de que esta oposição entre os ciclos C5 e C1 é propositiva.

Figura 1: oposição entre camadas diatônica (flauta) e cromática (clarinete) no início do Choros nº2 de Villa-Lobos

5 Utilizaremos a tabela de classes de conjunto de Allen Forte (STRAUS, 2005).

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Esta oposição entre os ciclos intervalares C1 e C5 (Fig.2) gera um encontro a cada três passos de cada ciclo6, decorrendo em quatro pontos invariantes (0369) dos quais as correspondentes alturas formam um conjunto 4-28 (tetracorde diminuto), que podemos interpretar como dois pares de trítonos relacionados nas extremidades de dois eixos7 perpendiculares entre si (eixo soma 0 (Dó(0)–Fá#(6)) versus eixo soma 6 (Mib(3)–Lá(9)), parâmetro que será retomado mais adiante em nossa análise. Temos entre os ciclos C1 e C5 um ciclo intervalar C3 invariante. Esse aspecto pode ser observado da figura abaixo:

Figura 2: relação entre os ciclos C1 e C5, invariância em torno do ciclo C3, gerando um conjunto 4-28

Esta relevância do conjunto 4-28 é levada ao contorno melódico superficial um pouco mais adiante, entre os compassos 10 e 12 (Fig.3), demostrada pelo destaque atribuído às alturas Fá, Láb, Si e Ré neste trecho, formando outro tetracorde diminuto e outros dois pares de trítonos relacionados nas extremidades de dois eixos perpendiculares entre si (Ré–Láb X Fá–Si).

6 Esta observação sobre o Choros nº2 foi feita pelo professor Paulo de Tarso Salles em aula da disciplina “Introdução à Teoria Transformacional e Neo-Riemanniana” (CMU5726), pertencente ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, durante o segundo semestre de 2015. 7 Vale destacar que apenas os seis eixos “pares” apresentam pares de alturas distantes por trítono em suas extremidades. Assim temos as extremidades Dó(0)–Fá#(6) para o eixo soma 0; Réb(1)–Láb(7) para o eixo soma 2; Ré(2)–Láb(8) para o eixo soma 4; Mib(3)–Lá(9) para o eixo soma 6; Mi(4)–Sib(10) para o eixo soma 8; Fá(5)–Si(11) para o eixo soma 10. Identificamos que muito regularmente Villa-Lobos constrói extensas estruturas harmônicas simétricas em torno de um deste eixos pares e destaca uma de suas extremidades como centro reiterado melodicamente por prolongamento.

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Figura 3: conjunto 4-28 sublinhado na superfície melódica (c.10-12, Choros nº2 de Villa-Lobos)

Uma prática composicional característica das obras de Villa-Lobos recorrente também no Choros nº2 é a oposição entre as alturas correspondentes às teclas pretas e brancas do piano8. Selecionamos o trecho entre os compassos 6 e 9 (Fig.4) onde esta técnica é aparente.

Figura 4: oposição entre “notas pretas” e “notas brancas”; reiteração das alturas Ré e Láb, corroborando as extremidades do eixo soma 4 invariante

Verificamos que, muito além de uma questão estritamente visual referente as cores das teclas do piano, esta disposição entre “notas pretas” (pentatônica, conjunto 5-35) e “notas brancas” (Dó diatônica, conjunto 7-35) implica em uma relação entre estruturas intervalares simétricas em torno do mesmo eixo soma 4 (entre as extremidades Ré(2) e Láb(8)) (Fig.5). Villa-Lobos evidencia esta consciência sobre a simetria intervalar inerente às coleções acima elencadas ao sublinhar por reiteração melódica as alturas que estão nas extremidades do eixo soma 4 (Ré como centro das “notas brancas” na voz do

8 Conferir OLIVEIRA, 1984.

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clarinete e Láb orientando as “notas pretas” da melodia da flauta). Outra observação interessante é que ambas as coleções são recortes opostos e complementares do ciclo intervalar C5.

Figura 5: eixo soma 4 (Ré–Láb) invariante entre as coleções de “notas brancas” e “notas pretas”; conjuntos 7-35 e 5-35 são recortes do ciclo C5

Na última seção da obra (C), entre os compassos 36-39 (Fig.6), temos a oposição entre as coleções Dó diatônica e Lá diatônica (distantes por classe de transposição T4), uma menção às construções escalares características do universo tonal, aqui reorientadas dentro de um contexto harmônico pós-tonal. Estas coleções aparecem estratificadas compondo camadas distintas neste trecho: o clarinete recorrendo a Dó diatônica e a flauta utilizando as alturas de Lá diatônica.

Figura 6: oposição entre Lá dia e Dó dia em camadas estratificadas

Estas duas coleções são simétricas em torno de eixos dispostos perpendicularmente entre si (Fig.7), uma retomada da relação entre pares de trítonos que formam o conjunto 4-28 apresentado no início do Choros. A coleção Dó diatônica está

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orientada em torno do eixo soma 4 (Ré–Láb), enquanto que Lá diatônica é regida pelo eixo soma 10 (Fá–Si) 9.

Figura 7: Dó dia e Lá dia relacionadas por eixos perpendiculares entre si

Sobreposições como esta de duas coleções diatônicas distantes por classe de transposição T4 geram um conjunto 10-5 (012345789A)10, invariantes em torno de um conjunto 4-23 (0257). Ambas as estruturas resultantes são recortes do ciclo intervalar C5 e simétricas em torno do mesmo eixo soma 1 (Fig.8).

Figura 8: conjunto 10-5 gerado pela sobreposição de Dó dia e Lá dia, conjunto 4-23 invariante

9 Demonstramos outra relação entre coleções aproveitando os mesmos eixos perpendiculares (Re–Láb X Fá–Si) em nossa análise do início do Choros nº7 (ALBUQUERQUE, 2014). Villa-Lobos sobrepões as coleções Dó diatônica e Fá# diatônica, simétricas em torno do mesmo eixo soma 4 (Re–Láb). No entanto, o compositor toma o eixo perpendicular soma 10 aproveitando as duas alturas Fá e Si, extremidades desta segunda mediatriz e invariantes entre as duas coleções. Superficialmente, a altura Fá é destacada por reiteração melódica, corroborando o eixo perpendicular. Além disto, se invertemos Dó diatônica em torno do eixo soma 10 (Fá–Si), obteremos Fá# diatônica. 10 Sobreposições de pares de pentatônicas 5-35 de “notas pretas” versus “notas brancas” distantes uma classe de transposição T1 também geram o conjunto 10-5, relação que encontramos com frequência em diversos trechos da obra de Villa-Lobos. Para mais detalhes sobre as características estruturais harmônicas do conjunto 10-5 consultar nosso artigo “Relações de máxima parcimônia entre coleções de um conjunto 10-5” (ALBUQUERQUE; SALLES, 2014).

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Apesar do Choros nº2 apresentar uma superficial inclinação referencialista, justificada pela aparente menção a gestos característicos do choro popular e recorrendo a construções escalares que evocam o universo tonal diatônico, identificamos nesta breve análise um cenário harmônico regido por princípios pós-tonais tácitos em segundo plano, particularmente atrelados a proporcionais simétricas entre conjuntos intervalares. Este pano de fundo estruturalista, sobre o qual se sustenta um arcabouço empírico de referências ao espólio cultural brasileiro e a gestos idiomáticos da prática comum, não é apresentado explicitamente ao ouvinte, sendo necessário um trabalho de pesquisa mais detido, que, amparado por ferramentas de estudo apropriadas, possa demonstrar esses parâmetros composicionais com clareza. Esta foi a proposta deste trabalho: aportado em técnicas de análise oriundas do campo de aplicações da Teoria dos Conjuntos, procuramos compreender melhor este suposto racionalismo implícito utilizado por Villa-Lobos no gerenciamento da complexidade harmônica empregada em suas obras, interessados especificamente em estudar a presença de conjuntos intervalares gravitando em torno de eixos de simetria.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Joel. Simetria Intervalar e Rede de Coleções: Análise Estrutural dos ‘Choros nº4’ e ‘Choros nº7’ de Heitor Villa-Lobos. Dissertação de Mestrado em Processos de Criação Musical pela Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2014. ALBUQUERQUE, Joel; SALLES, Paulo de Tarso. Relações de máxima parcimônia entre coleções de um conjunto 10-5, XXIV Congresso da ANPPOM. São Paulo/SP, 2014. ASSIS, C. A. Fatores de coerência nos Choros nº5 (‘Alma brasileira’), de H. Villa-Lobos. Per Musi, Belo Horizonte, n. 20, p. 64-73, 2009. OLIVEIRA, Jamary. “Black key versus White key: a Villa-Lobos devise”, Latin American Music Review, vol. 5, nº1, p. 33-47, 1984. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. STRAUS, Joseph N. Introduction to Post Tonal Theory. 3ª ed. Upper Saddle River: Prentice-Hall, 2005.

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Estudo de caso: Projeto Dimensões~; um olhar sobre comprovisações em ecologia sonora

LUZILEI ALIEL ECA/USP - [email protected]

ROGÉRIO COSTA

ECA/USP - [email protected]

ste trabalho objetiva fazer um estudo de caso de uma das peças do projeto Dimensões. Dimensões trata-se de uma série de três comprovisações que se orientam em um

mistos de ecologia sonora, música úbiqua (Ubimus) e ecocomposição. Neste trabalho trataremos excepcionalmente da obra sonora “Citações~”. Previamente faremos um breve enfoque nos pilares teóricos que possibilitam a construção desta obra sonora.

Objetivos

Analisar a peça Citações~ dentro dos padrões da denominada comprovisação tendo à emergência sonora (causalidade circular) e as interações criativas (ancoragem) como objeto singular. Usaremos o MDF (modelo-dentro-fora) (KELLER & FERRAZ, 2010) para condição de validade criativa.

Ubimus, Marcação Temporal e Ancoragem

A priori trataremos do conceito de Ubimus. Este se refere ao campo de estudos das práticas músicas que se apoiam em estruturas móveis. (BARDRAM, 2005; COSTA et al. 2008; WEISER, 1991). Para estabelecer métodos comuns entre a estética da interação (uma das diretrizes fundamentais da obra sonora aqui estudada) e a pesquisa em ubimus, Keller et al. (2015) discute as propriedades materiais, que são o foco de duas metáforas de interação: a marcação temporal (PINHEIRO DA SILVA et al. 2013) e a marcação espacial (KELLER et al. 2011). Adotamos a marcação temporal e a marcação espacial

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para nos oferecer um suporte criativo capaz de determinar as escolhas individuais dos intérpretes, agindo como um instrumento regulador de interações. Sobre interações, utilizaremos a proposta de modelamento de elementos abstratos: a ancoragem. (KELLER et al. 2010). Este conceito teve forte estruturação nos processo composicional de Citações~.

Comprovisação

Não há ainda uma clara definição de como a comprovisação pode de fato impactar ou mesmo sua contribuição na área da ecocomposição. Este artigo buscou pontualmente demonstrar os esforços neste segmento. Utilizaremos para fundamentar nosso processo criativo o levantamento bibliográfico de quatro autores comprovisadores citados em Aliel (2015): Hannan (2006), Bhagwati (2014), Fujak (2011) e Dudas (2010).

Hannan (2006) propõe várias diretrizes para comprovisação tendo a intenção explicita de propósito. Em outras palavras, Hannan utiliza gravações de improvisações livres para produzir novas composições. O autor cita outros fatores preponderantes à sua visão sobre a comprovisação (ALIEL et al 2015) tais como: a adoção da metodologia de pesquisa; e a relevância sistemática e abrangente de dados musicais (biblioteca de eventos);

Bhagwati (2014) por sua vez nos proporciona importantes insights sobre as abordagens alternativas comprovisatórias para lidar com as contingências (improvisação) e controle (composição) tais como: elaboração dos múltiplos níveis da estrutura como um fluxograma de opções em que as decisões podem resultar em diversas formas de participação dos músicos, manter ou mesmo expandir os benefícios da composição determinística, bem como elementos interativos dentro do uso de fluxogramas procedimentais;

Ponderamos recorrências em práticas comprovisatórias associadas à literatura tratando da

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Estudo de Caso: Projeto Dimensões~; Um Olhar Sobre Comprovisações em Ecologia Sonora

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abordagem tecnológica. Dudas (2010) introduz estes fatores tecnológicos dentro da prática comprovisatória:

Improvisar com ferramentas tecnológicas, a fim de criar materiais pré-composicionais;

Por fim, levantamos os fundamentos onde Fujak (2010) propõe uma definição ampla com o propósito de emancipar e legitimar as práticas comprovisatórias. São levantados alguns pontos que, para tal coletivo são relevantes para uma estética comprovisatória, citaremos destes, os condizentes a peça aqui estudada:

· O princípio que articula em seus métodos a arte contemporânea transversal em analogia às situações da vida de forma transparente.

· A escolha consciente das mutações em processos composicionais como antecedentes. As diretrizes e a improvisação situada no contexto da utilização dos recursos tecnológicos;

· Algo que define a abertura ao espírito das metáforas de bricolagem, imagem - sônicas e texto-gesto;

Di Scipio e a Causalidade Circular

Encontramos um sistema linear quando sua saída (output) é proporcional a sua entrada (input), ou seja, os resultados são similares às causas. Para Sanfilippo e Valle, (2012) os resultados variáveis nas duas estruturas input e output proporcionam um sistema não linear. Um sistema de feedback é um típico sistema não linear resultante de um processo de causalidade circular (SANFILIPPO e VALLE, 2012) As causas (interações11) se realimentam através de efeitos, e o resultado de suas combinações podem quebrar a proporção linear de insumo-produto. Do ponto de vista musical, a não linearidade emerge-se em sistemas baseados em retroalimentação onde as mutações de variáveis internas podem resultar em comportamentos muito diferentes na saída

11 Adição dos autores.

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final. (SANFILIPPO e VALLE, 2012) Para Solomos (2013) graças a esta causalidade circular, Di Scipio redefiniu a noção usual em live eletronics, ou seja, o processo de "interação" (Di Scipio, 2003). Nesta concepção, a interação opera como um fluxo de informação: uma fonte de som que é transformada. Assim, na realidade, o sistema não é muito interativo. Para Di Scipio, a própria composição poderia ser à ação de compor interações. Ou como propomos em Citações~ a comprovisação de interações. Nas palavras de Di Scipio (2003):

O principal objetivo seria a criação de um sistema dinâmico que exibe um comportamento adaptativo às condições externas próxima, sendo capaz de interferir nas mesmas condições externas. [...] Uma espécie de auto-organização é, portanto, alcançado [...]. Aqui, "interação" é um elemento estrutural como um "sistema" a emergir [...]. Sistemas de interações só seriam indiretamente implementados em subprodutos de interdependências cuidadosamente arquitetadas entre os componentes do sistema [...]. Este é um movimento substancial de composição em música interativa intuído compor (comprovisar12) interações musicais e, talvez, mais precisamente, deve ser descrito como uma mudança no modo de criar sons através de meios interativos, direcionando para uma criação que busque interações com traços sonoros (DI SCIPIO, 2003, p. 271).

Com estas distintas fontes teóricas, procuramos

desenvolver nosso processo criativo da primeira peça, da série de três obras, Citações~.

Metodologia

Neste tópico trataremos das metodologias empregadas da construção da obra sonora comprovisatória: Citações~. Esta que é a primeira peça da série Dimensões. Citações~ é um duo para live electronics e voz que se propõe a misturar composição musical e improvisação em um sistema não linear.

12 Adição dos autores

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Live Electronics

Citações~ foi programado em Pure Data (PD) software desenvolvido por Puckete (1996). Citações~ fundamentalmente possui o conceito de causalidade circular proposto por Di Scipio (2003) como propriedade primária de procedimento. O patch em PD foi desenvolvido com dois processadores de delays. Os patchs de delay permitem ao usuário uma variação de atrasos sonoros entre 0 a 1000 m/s. Em conjunto com este processamento (delay) foi adicionado um modificador de parâmetro temporal dos objetos sonoros. Ou seja, qualquer sinal que passe pelo patch poderá ser configurado, a escolha do performer. Variações entre o período do objeto em uma taxa de 10 m/s a 20.000 m/s são cabíveis. Quanto menor a taxa selecionada, menor o tempo executado e quanto maior a taxa selecionada maior o tempo executado. Como Citações~ é um duo que se relaciona com a voz, pode-se por exemplo selecionar desde uma sílaba à uma oração e manter este conteúdo em looping pelo período desejado. Estes procedimentos: controle de delay e taxa de duração dos objetos sonoros, propõe a possibilidade de um jogo improvisatório sobre as interações da voz e com resíduos recorrentes de eventos passados que retornam, modificando as ações e escolhas interativas do performer no live electronics (sistema de feedback). Embora todo processo seja altamente organizado em algoritmo, criando a metáfora de uma composição fechada, são as contingências emergentes dos eventos do presente, e passado, que propõe significações futuras.

O patch permite seis buffers pré-gravados oriundos de outras performances de Citações~. Este processo condiz com as propostas de Hannan (2006) e Bhagwati (2014), ou seja, utilização de gravações de improvisações e banco de dados para produções, respectivamente.

Voz e Ubimus

Delay é o termo utilizado em processamento de áudio que indica atraso de um sinal de áudio, também sinônimo de reverberação ou eco em alguns casos. Sobre os procedimentos

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sobre a voz, iniciamos as escolhas sobre o poema Desejo de Cassiano Ricardo. Diversos procedimentos foram selecionados em determinadas palavras do poema. Por exemplo, a palavra morrer simbolizava o fim da peça. A princípio, a performer deveria ler o mais rápido possível o poema, sendo que a cada erro linguístico, a mesma deveria recomeçar a ler novamente. A intérprete utiliza ainda um tablet que contêm um patch desenvolvido em PD. A cada erro da intérprete, a mesma seleciona um botão no patch que grava 1000 m/s de informação. Cada nova seleção por parte da performer produz uma nova âncora de interação (KELLER, 2010), já que este conteúdo se conecta ao montante já existente e proporciona a emergência um novo conteúdo não existente no momento do input inicial. Embora o poema torne-se um processo fechado (composição), não permitindo, pelo menos no contexto dessa obra, variações sobre seu conteúdo, o erro linguístico torna-se o material pelo qual a performer improvisa (contingências). Ou seja, ela poderia errar tanto intencionalmente quanto inconscientemente, viabilizando resultados relativamente controlados. Outras possibilidades de modificação da comprovisação constam na mudança de andamento, dinâmica e altura. Outra proposta incluída dentro dos procedimentos improvisáveis no poema foi o conceito de fluxograma citado por Bhagwati (2014). Algumas palavras permitiam as possibilidades de escolhas por parte da performer. Por exemplo, a palavra deus concedia a escolha de uma leitura convencional, ou seja, da esquerda para a direita do poema ou ao inverso, ou seja, da direita para esquerda propondo novos paradigmas de erros e assim sendo, novas formas improvisatórias.

Análise

Utilizaremos o Modelo Dentro-Fora - MDF (FERRAZ; KELLER, 2014) para examinarmos os processos criativos da peça aqui discutida. Nesta proposta, são apresentadas duas formas de interação em sistemas musicais não-lineares, impelindos em estados homogêneos (forças de aglutinação) ou heterogêneos (forças de desagregação) (FERRAZ; KELLER

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2014, p. 5). É ainda estabelecido o conceito de “lixo criativo” para resultados não relevantes a obra sonora. Ao ser analisada sobre a ótica do MDF, Citações~ mantêm se em uma constância criativa, ou seja, a maior parte do material produzido são resultados criativos relevantes, pois são concebidos para possibilitar a viabilidade de interação entre performers. Entretanto, há um posicionamento aberto para a produção de conteúdos que possam ser considerados “lixos criativos” (o erro não intencional por parte da performer pode diversificar os resultados, validando-os ou não). Citações~ foi desenvolvido com o propósito de âncorar diversos eventos em um fluxo tanto temporal quanto de escolhas sendo que cada âncora age como disparador de novos eventos criativos. Todo o processo de aglutinação ou desagregação contida durante a execução da peça vem de marcações temporais (KELLER, 2010).

Conclusão

Citações~ é um duo para live electronics e voz que busca integrar múltiplos procedimentos tais como comprovisação e design em Ubimus. Existe sobre a construção da obra à preocupação no desenvolvimento de ciclos de interatividade através de marcações temporais (KELLER, 2010) em uma “causalidade circular” (DI SCIPIO, 2003), onde cada novo evento tem o intuído de emergir um sistema não linear criativo. Apoiado em recursos de parte compostas, e em partes improvisadas (comprovisação) obtivemos, segundo a análise do modelo MDF (FERRAZ; KELLER, 2014) um conteúdo válido aos modelos de prática criativa.

Referências bibliográficas

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A relevância do aprendizado musical do ator durante a montagem teatral e o trabalho de Jean-Jacques Lemêtre no Théâtre du Soleil

MARCELLO AMALFI ECA/USP - [email protected]

A música no teatro do encenador

o tomarmos a evolução recente do fazer teatral ocidental desde o surgimento do encenador moderno e

observarmos designadamente a trajetória do elemento música, verificaremos que ele foi ganhando evidência, chegando a figurar como campo de interesse específico para muitos artistas, sobretudo a partir do momento em que deixou de ser compreendida exclusivamente como a mera sobreposição de eventos de natureza acústica à encenação. Em certos casos, se tornou elemento estrutural dentro do processo de elaboração e execução teatral, acentuando assim sua interferência no trabalho de atores e encenadores, como afirma o russo Vsevolod Emilevitch Meyerhold (1873-1940):

Eu trabalho dez vezes mais facilmente com um ator que ama a música. É preciso habituar os atores à música desde a escola. Todos ficam contentes quando se utiliza uma música "para a atmosfera", mas raros são os que compreendem que a música é o melhor organizador do tempo em um espetáculo. O jogo do ator é, para falar de maneira figurada, seu duelo com o tempo. E aqui, a música é sua melhor aliada. Ela pode não ser ouvida, mas deve se fazer sentir. Sonho com um espetáculo ensaiado sobre uma música e representado sem música. Sem ela, - e com ela: pois o espetáculo, seus ritmos serão organizados de acordo com suas leis e cada intérprete a carregará em si. (PICON-VALIN,1989, p. 35-56)

De fato, a música permeou toda a carreira teatral de Meyerhold, ao ponto dele considerar a "educação musical como a base de (seu) trabalho de encenador", como observa Béatrice Picon-Valin:

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Nas encenações "clássicas" de Meyerhold, O Inspetor Geral, A desgraça de ter espírito, A Dama das camélias, a música - seus ritmos, seu fluxo e seus silêncios, suas pausas - penetra o teatro tanto como material organizado quanto como princípio organizador da ação cênica, do jogo do ator, do conjunto da composição meyerholdiana e de um modo de percepção dinâmica do público. Mas já em 1914, quando expõe para Tchekhov a concepção que tem de seu Jardim das cerejeiras, "abstrata como uma sinfonia de Tchaikovski", a música é para ele, não um fundo, mas a grade de interpretação de uma dramaturgia, um ponto de apoio para a composição cênica, um meio de triunfar sobre o naturalismo, uma vez que ela coloca em cena um ritmo que rompe com o mundo do cotidiano. Logo, e com o exemplo de Chaliapin, feliz síntese, segundo ele, de rítmica plástica e musical, modelo de "verdade teatral", Meyerhold afirma: "É pena que o ator do drama não esteja submetido ao autor pela precisão de uma rítmica que este lhe forneceria sob forma de partitura escrita". (PICON-VALIN,1989, p. 35-56)

Naturalmente, a utilização da música como princípio organizador cênico não foi invenção de Meyerhold, e tão pouco sua exclusividade. Há uma série de outros encenadores notáveis, como por exemplo, Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Peter Brook, Eugênio Barba e Robert Wilson que, à sua maneira, também a empregaram na construção de espetáculos teatrais. Entretanto, as palavras desse encenador russo nos servem como anacruse para a introdução de uma questão que acreditamos estar presente no dia-a-dia de todos que optam por trabalhar com música no teatro: o aprendizado musical do ator.

O paradoxo envolvendo o aprendizado musical do ator

Desde o final do século XIX a configuração da relação música x teatro passou por constantes adaptações. No entanto, a partir do início do século XX, quando testemunhamos uma profusão de estilos, padrões estéticos e filosóficos, se tornou

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muito difícil a identificação de uma “escola” que possa definir em linhas gerais a produção artística de seu tempo. Consequentemente, encenadores e compositores proeminentes foram por vezes considerados “escolas” em si mesmos, como nos exemplos teatrais de Constantin Stanislavsky (1863 – 1938), Vsevolod Emilevich Meyerhold (1874 - 1940) e Bertolt Brecht (1898 – 1956), que são acompanhados paralelamente por exemplos musicais como Charles Ives (1874 – 1954), Jonh Cage (1912 – 1992) e Karlheinz Stockhausen (1928 - 2007). Este quadro se mantém em desenvolvimento até os dias atuais, quando as fronteiras entre as diferentes formas de expressão artística são deliberadamente colocadas à prova a cada nova realização. O processo de elaboração do espetáculo teatral vem se tornando cada vez mais singularizado, repleto de particularidades e especificidades. O mesmo ocorrendo com a prática de composição de sua música, que agora pode não ser perpassada pela cena (e vice-versa) apenas durante sua participação no jogo cênico, mas também durante sua elaboração.

Ao nos concentrarmos no aprendizado musical do ator que ocorre durante estes processos de elaboração cênica, verificaremos que ele se encontra ligado à um curioso paradoxo: a despeito do crescimento que o elemento música apresenta no fazer teatral ocidental, o seu processo de aprendizado dentro desse universo permanece pouco contemplado por pesquisas e estudos específicos. Não obstante as inúmeras e valorosas incursões que versam aquela música, a instrumentalização do ator para lidar com ela figura na maioria das vezes, salvo raras e louváveis exceções, como um assunto paralelo, coadjuvante dentre outros assuntos do tema.

No Brasil, estudos têm demonstrado que cursos para a formação de atores vêm enfrentando dificuldades ao prepara-los no campo do conhecimento musical13. Apesar grande maioria dos atores recém formados apresentar uma

13 Dentre estes estudos podemos destacar o realizado pelo Professor Dr. Ernani

Maletta, A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas.

2005. 370 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

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necessidade real de prolongar tal formação, poucos são os que recorrem a um aprendizado formal. Outrossim, a maior parcela desse contingente tem a continuidade de seus estudos musicais limitada aos episódios de aprendizagem que eventualmente ocorrem durante processos teatrais dos quais participam. Se por um lado tal cenário impõe ao ator o resgate de um conhecimento musical anteriormente adquirido, ou a necessidade do desenvolvimento de novas capacidades a cada montagem, por outro, ele revela a deletéria submissão das possibilidades da encenação às habilidades musicais de seus envolvidos. É certo que o mecanismo do resgate - da memória, do corpo, do gesto - é um dos pilares da construção teatral. É certo também que o fato de alguns artistas não possuírem profundo conhecimento sobre a música do teatro não chega a anular as possibilidades de sua utilização no contexto da construção e execução dos espetáculos. Mesmo assim, é difícil crer que essa conjuntura, em algum momento, não dificulte o processo.

Apesar de conceitos musicais como ritmo, contraponto, polifonia, andamento, e timbre surgirem com frequência em artigos e textos sobre teatro, e serem largamente utilizados nos palcos (independentemente do nível de consciência deste uso), o panorama ilustrado por estudos recentes vêm reforçar a ideia de que a questão sobre uma possível pedagogia musical para o ator ainda não foi devidamente inserida como parte da problemática teatral que nos é contemporânea, constituindo em si uma importante jazida inexplorada.

Não obstante estar relacionado a múltiplos fatores que variam a cada experiência criativa, este aprendizado musical episódico é na maioria das vezes um processo de capacitação do ator para a realização de tarefas específicas, com a finalidade de atender exclusivamente as necessidades inerentes a montagem do espetáculo no qual se está trabalhando. Isso faz com que o seu conteúdo seja determinado pelo coeficiente entre essas tarefas e a trajetória pessoal dos envolvidos, ou seja, suas capacidades musicais pré-adquiridas. Logo, o estudo deste processo pode representar um caminho para identificarmos as lacunas no conhecimento musical que os

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atores apresentam após sua formação, assim como os mecanismos e recursos pedagógicos utilizados para sana-las.

O trabalho de Jean-Jacques Lemêtre no Théâtre Du Soleil

Um campo de estudos que se apresenta propício para a problematização do aprendizado musical durante a montagem teatral é o trabalho realizado há mais de trinta e sete anos por Jean-Jacques Lemêtre na companhia francesa Théatre du Soleil. Sobretudo, devido a importância que a música assume na produção da trupe, e a consequente relevância que adquire o aprendizado musical vivenciado pelos atores durante a montagem, o qual se configura como um rico manancial de procedimentos e práticas.

É curioso observar que apesar da grande quantidade de textos, livros e artigos que versam sobre a música no Théâtre du Soleil (onde esse elemento é unanimemente apontado como um dos alicerces do processo de construção teatral), verificamos que raros são aqueles que repousam sobre questões inerentes ao intrínseco processo de seu aprendizado a que são submetidos os integrantes da trupe, independentemente de qualquer conhecimento musical prévio, ou de qual venha a ser o seu país de origem, visto que convivem atores de diferentes nacionalidades no Théâtrte du Soleil. Desde a primeira experiência de Jean-Jacques Lemêtre com Ariane Mnouchkine, o espetáculo Mephisto do Théâtre Du Soleil (que foi também a primeira experiência teatral do compositor), esta questão da transferência de conhecimento musical esteve presente, como descreve o músico:

Eu comecei esse trabalho como professor de música, encarregado de ensinar os atores e as atrizes a tocar diferentes instrumentos a fim de constituir orquestras para a encenação do espetáculo Mephisto, sobre a ascensão do nazismo, entre 1925 e 1939. Foi nesse momento específico que nós nos encontramos, Ariane Mnouchkine e eu. Nessa época eu tocava free jazz em Amsterdam e Copenhague, para

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você ver como eu estava longe do teatro... eu nunca tinha posto os pés em um teatro, a não ser que fosse para fazer música, claro. E eu pude ter à minha disposição - esse é o luxo do Théâtre Du Soleil - quarenta atores durante sete meses, seis horas e meia por dia, todos os dias. Então eu lhes ensinei a tocar todos os instrumentos: piano, contrabaixo, trompete, trombeta, trombone, percussão, bateria, violino, diferentes tipos de saxofone e muitos outros. E cada um tocava um instrumento diferente. No fim das contas, era um verdadeiro trabalho de professor de música, de ensino da técnica musical, do manejo de um instrumento, do treinamento do ouvido, do canto, da afinação. […] Durante sete meses nós trabalhamos sobre essas composições e, no final desse período, Ariane fez uma reunião com toda a equipe e nós fizemos um concerto completo com todas as músicas. E ela então escolheu quais ela queria para esta ou aquela cena do espetáculo. Porque eu não participava dos ensaios da peça, eu era apenas o professor de música. Acabei me tornando também compositor, escrevendo "no estilo de". Só depois de ela ter escolhido os momentos em que tal ou tal música iria se encaixar é que eu comecei a trabalhar no interior de cada cena para fazer se integrar todo esse material. [...] Para mim foi uma sorte poder começar a compor dessa maneira, parodiando um estilo, um período, porque eu tinha acabado de terminar os estudos de música, então eu sabia fazer isso muito bem. Mas eu tinha que pôr tudo isso em prática para o teatro, e isso ninguém tinha me ensinado. (AMALFI, 2011, p. 53)

Aqui o compositor revela que entendeu seu relacionamento inicial com a trupe teatral como o de um professor de música. Contudo, no final de sua fala, ele afirma que os seus estudos musicais, apesar de concluídos, não seriam suficientes para "pôr tudo isso em prática para o teatro", referindo-se às suas composições musicais e ao aprendizado musical dos atores. Ou seja, ele enxergara que a música que conhecia até então não era a mesma que ele precisaria "colocar a serviço da encenação ", e que ainda teria que aprender como fazer isso. Sobre o aprendizado de Lemêtre sobre uma música

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diferente, que excede os parâmetros acústicos, escrevemos no livro A Macro-Harmonia da música do teatro (2015)14:

Não é difícil entender porque Jean-Jacques Lemêtre afirma que a criação da música no Théâtre Du Soleil demanda um conhecimento para além dos sons e das figuras musicais. Afinal, ao abarcar elementos provenientes da encenação dirigida por Ariane Mnouchkine (como, por exemplo, a iluminação, o cenário, os figurinos), suas composições excedem os padrões e formatos que tradicionalmente pautam uma criação no universo musical. Tal característica reforça a idéia de que o processo de composição da música do teatro é algo muito específico, o que desde o princípio, no ciclo Les Shakespeares, exigiu por parte do compositor/intérprete uma severa adaptação, além da aquisição de um conhecimento aprofundado também a respeito da arte teatral. Jean-Jacques Lemêtre conta que para concretizar este aprendizado, foi essencial ter participado de todos os ensaios e apresentações da trupe após o espetáculo Mephisto. Hoje, com a experiência advinda da longa parceria artística com Ariane, o músico entende que o aprendizado permanece como um processo constante, renovado a cada espetáculo, especialmente porque não há um único processo de elaboração teatral que seja igual ao outro. (AMALFI, 2015, p. 95).

Ou seja, é notório o fato de que a formação musical para o ator difere da formação musical de um instrumentista em muitos aspectos, e por esta razão carece navegar por uma pedagogia própria. Ao ocorrer dentro de um processo de elaboração teatral, passa a lidar com fatores inerentes e exclusivos a ele. Dessa forma, em sendo inadequada e/ou insuficiente, penaliza não apenas o trabalho do ator, mas também o processo da construção teatral como um todo, posto que são indissociáveis, como explica Lemêtre:

14 AMALFI, Marcello. A Marcro-Harmonia da música do Teatro. 219 p. 1a Edição. ISBN: 9788581086552. São Paulo: Ed. Giostri, 2015.

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Eu funciono com as imagens sonoras. Eu uso as palavras que os atores compreendam. Eu não preciso me esconder atrás do vocabulário técnico de música. Por isso, eu tenho as imagens constituídas para cada ator que de alguma forma substitui o cenário, uma vez que no Théâtre Du Soleil a cena é nua. Estas imagens são também paralelas à luz, que elas desencadeiam muitas vezes. A música desempenha um papel centralizador: não sabemos muito bem quem dirige quem. É o ator que me conduz ou o contrário? Tudo isso acontece em um presente muito concreto. Nas tradições orientais, a música apoia o ator enquanto música. Com exceção da música pré-gravada parcialmente que acompanhou as danças do coro em Atreides, eu jamais apoio o ator como uma música de filme. Para mim, seria um pleonasmo. Eu narro alguma coisa ao mesmo tempo, eu completo suas visões. As imagens referem-se à multiplicidade de papéis que a música desempenha em diferentes momentos do espetáculo. Eu atuo como destino, Deus, os elementos: eu sou o ar, a água, o fogo... Eu atuo em cima e em baixo, eu sou a estrela que pisca e que observa o ator. Tudo isso é a paisagem. Eu também sou a música emocional do personagem, sua pequena música interior. Em certos momentos, esta música antecipa o destino do personagem. O espectador a recebe. Sem que ele percebesse novamente, ela o antecipa como uma mensageira... Eu conto um pouco da atmosfera que está em torno do personagem (que pode ser escrita como época ou área...). Eu digo aos músicos que estão comigo às vezes que a sua função é tocar tal imagem, tal tema. O alimento em um prato, estas são suas imagens. Eu nunca digo para tocarem dó sol ré la! (LALLIAS15 apud DUSIGNE, 2003, p. 53-56)

Nesta conjuntura, processos de aprendizado musical como aqueles que ocorrem durante as montagens do Théâtre Du Soleil se mostram capazes de revelar não somente as lacunas na formação do ator, mas igualmente os recursos aplicados para seu preenchimento. Consequentemente, seu estudo mais aprofundado poderá fomentar um olhar novo sobre uma questão tão relevante, sem limita-lo a perspectivas estritamente musicais ou teatrais.

15 Entrevista realizada por Jean-Claude LALLIAS em Paris, outubro de 2003.

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A relevância do aprendizado musical do ator durante a montagem teatral e o trabalho de Jean-Jacques Lemêtre no Théâtre du Soleil

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Referências bibliográficas

AMALFI, Marcello. A Marcro-Harmonia da música do Teatro. 219 p. 1a Edição. ISBN: 9788581086552. São Paulo: Ed. Giostri, 2015. DUSIGNE Jean-François, Le Théâtre du Soleil, des traditions orientales à la modernité occidentale, Paris: CNDP, 2003, pg. 53-56. Tradução nossa. Disponível em http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/a-propos-du-theatre-du-soleil/la-musique,284/la-musique-du-ver-a-soie?lang=fr . Acessado em Julho 2012. PICON-VALIN, Béatrice. A música no jogo do ator meyerholdiano In Le jeu de l'actor chez Meyerhold et Vakhtangov, Laboratoires d'études theatrales de l'Université de Haute Bretagne, Études & Documents, T. III, Paris, 1989, p. 35-56. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em http://www.grupotempo.com.br/tex_musmeyer.html . Acessado em Julho 2012.

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Processos de construção de um catálogo de obras de Luciano Gallet

MARCELO ALVES BRUM

ECA/USP - [email protected]

ste texto se ocupa de alguns balizamentos para uma nova proposta de catalogação da obra completa de Luciano

Gallet16, iniciativa que nasceu da necessidade de melhor entendermos o conjunto de obras do compositor para então pensarmos alguns de seus posicionamentos estéticos (e quiçá político-culturais) sob a perspectiva de sua produção musical17. Apesar de este não ser o primeiro esforço neste sentido18, por hora entendemos que é o mais completo dada a reunião do maior número de títulos (por incluir obras até então desconhecidas) e a apresentação de múltiplas possibilidades de consulta (devidamente expostas ao longo deste texto). Sobre o catálogo organizado e publicado por Luísa Gallet e Mário de Andrade em 1934, apesar de sua incompletude na listagem dos títulos, faz-se necessária uma deferência: é obra referencial no assunto, tanto pela iniciativa de publicidade das composições como pela veiculação de uma série de informações não encontradas em outros materiais consultados, e provavelmente advindas de seus contatos pessoais com Gallet.

16 Por “obras completas” entendemos a totalidade de sua composição musical, desde as partituras editadas até os manuscritos hoje em sua maioria depositados no Arquivo Luciano Gallet da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro – BAN-UFRJ. 17 Esta nova proposta de catálgo, ainda inédita, faz parte de nossa tese de doutorado, e tem previsão de publicidade para o ano de 2017. 18 Luciano Gallet mantinha sua produção organizada e por vezes até comentada e, três anos após a sua morte, Mário de Andrade e Luísa Gallet publicaram um catálogo de suas obras como apêndice do livro Estudos de Folclore (GALLET, 1934). Ainda, na BAN-UFRJ encontra-se um documento intitulado Índice por Ordem Cronológica, que parece tratar-se de um esboço de catálogo organizado pelo próprio compositor no final de sua vida. Por nossa vez, não é a primeira tentativa de compilação dessas informações: no trabalho Luciano Gallet e a Reforma do Instituto Nacional de Música (BRUM, 2008) já havíamos nos ocupado de projeto semelhante, porém menos ambicioso e, na época, com menor contribuição de informações inéditas e consultas a documentação de fonte primária.

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Processos de construção de um catálogo de obras de Luciano Gallet

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A obra de Luciano Gallet e nossas fontes de pesquisa

Luciano Gallet foi um músico de personalidade associativa e que tomou para si diversas frentes de trabalho e (pre)ocupações com a arte19. A atividade composicional respondeu apenas por uma de suas facetas, o que talvez explique seu envolvimento com a construção de uma arte bem fundamentada – por vezes assumindo compromissos com temáticas específicas, como no caso das harmonizações de canções brasileiras – em detrimento de uma preocupação com uma grande quantidade de obras legadas20. Sua produção contempla obras para piano (um ou mais executantes), música de câmara (diversas formações), obras sinfônicas e canções sacras e profanas, para solo ou coro, com acompanhamento de piano ou harmônio ou de orquestra de câmara.

Considerando que, inicialmente, uma proposta de construção de um catálogo de obras se ocupa da apresentação da totalidade da composição de um autor, não será neste espaço que nos deteremos em diálogos desta obra com a literatura musicológica brasileira – não obstante tenhamos-na consultado com objetivos pontuais. Para além, informações sobre a música de Gallet foram colhidas em parte em sua correspondência pessoal com Mário de Andrade21, em notícias de jornais da época, no Índice por Ordem Cronológica22 e, como se poderia esperar, nas próprias partituras. Quanto ao modelo de apresentação, apesar de alguns elementos de nossa proposta terem sidos por nós determinados, em parte respeitamos uma estrutura definida por Luísa Gallet Mário de Andrade (Gallet, 1934) e ainda aproveitamos o exemplo de

19Para maiores informações sobre este assunto ver Luciano Gallet e a Multiplicidade do Artista (BRUM, 2007). 20 Fato que cremos ratificar nosso posicionamento foi sua prática de retomada e transcrições de obras inicialmente concebidas para uma formação específica: aqui notamos uma preocupação com a valorização de algumas obras e sua veiculação em outros formatos – estimamos que sua produção global seja constituída por 70% de obras originais para determinadas formações e 30% de transcrições de suas próprias obras. 21Em pesquisas no Arquivo Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB-USP. 22Documento do Arquivo Luciano Gallet da BAN-UFRJ que se trata de uma lista das obras deste autor, elaborada quando ainda em vida.

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Processos de construção de um catálogo de obras de Luciano Gallet

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fichamento de Flávio Silva para os catálogos de Francisco Mignone e Camargo Guarnieri.

Planos de organização

Os critérios estabelecidos para a construção do catálogo foram sendo estabelecidos à medida das consultas aos materiais-base para sua elaboração, e diversas vezes características das obras impuseram novos balizamentos que culminaram em revisões no nosso plano de organização. Se por um lado ainda não podemos definir que esta é sua melhor maneira de apresentação, ao menos estamos certos de contemplarmos a totalidade do material consultado sempre com a preocupação de entender as informações coletadas dentro dos contextos possíveis.

Para além de uma listagem de obras dispostas em ordem alfabética ou cronológica apresentamos uma série de tabelas e fichamentos onde não só ordenamos as composições de Luciano Gallet como indicamos diálogos entre elas – trata-se de uma idéia de ferramenta de busca e consulta que permite trânsito em três formatos de apresentação, diferentes e complementares. São eles um Quadro Geral de Obras, um Fichamento Individual de Obras e Tabelas de Obras por Formação, sendo que cada formatao de apresentação remete-se aos outras por meio de hiperlinks (no caso de manuseio em formato digital) e também por indicação de números de páginas para consulta. À primeira vista de consulta complexa, revela-se uma ferramenta de busca que não só se destina a apresentar o repertório (no sentido de dar a conhecer de sua existência) como a induzir o leitor a refletir sobre afinidades de obras entre si, sobre momentos da vida de Gallet, e sobre as relações do compositor com sua própria obra, seus intérpretes, situações de contato com o público e com outros artistas de então (compositores, poetas, etc.), numa visão panorâmica e contextualizada de sua produção nas décadas de 1910 e 192023.

23 O catálogo de obras em questão foi preparado de modo a ser veiculado juntamente com uma História de Vida de Luciano Gallet, o que favorece estas reflexões.

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Descrição da apresentação do material

O Quadro Geral de Obras se trata de uma simples listagem da produção de Luciano Gallet organizada em ordem cronológica de composição. Tem como principal função apresentar um panorama de suas composições e remeter o leitor aos fichamentos individuais de cada obra ou ciclos (grupos) de obras. Autoexplicativo, tem a seguinte apresentação:

Datação Título Formação Página(s) para consulta Referência

Figura 1: Quadro Geral de Obras

No campo “Título” também são listadas subtítulos e partes da obra (quando o caso de movimentos); “Página(s) para Consulta” se refere a quais páginas no catálogo o leitor encontrará mais informações sobre aquela obra, e a entrada “Referência” é um número atribuído a cada obra e que será o mesmo a cada apresentação desta, independentemente do local de apresentação onde esta obra se encontre.

Já o Fichamento Individual traz uma série de 94 entradas de peças individuais originais, transcrições de obras ou grupos de peças que formam ciclos. Cada ficha assim se apresenta:

N.º / Título da Obra Formação Local / Data de Composição Texto Dedicatória Edição e Revisão Estreia (data, local e intérpretes) Transcrição Comentários de Luciano Gallet Comentários Mário de Andrade Observações

Figura 2: Fichamento Individual

Como já explicitado, o número da obra será o mesmo número de referência a ela atribuída no Quadro Geral de Obras.

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O campo “texto” se refere ao autor da letra da canção (quando se aplicar)24; “transcrição” se ocupará em indicar se a obra foi ou não concebida originalmente para aquela formação, e “observações” é um campo propositalmente amplo, destinado tanto a trazer demais informações relevantes sobre a peça como a indicar em quais outras páginas do catálogo também serão encontradas referências à obra em questão. Este campo ainda se destina a apresentar discussões a respeito de divergências das fontes consultadas para o estabelecimento do catálogo.

Por fim, as Tabelas de Obras por Formação são um total de 08 (oito) quadros onde dispomos as composições agrupadas segundo a instrumentação (ou vozes) a que se dedicam, seguidas de mais 02 (duas) onde estão listadas suas obras sacras e suas harmonizações de canções folclóricas (independentemente de já terem aparecido nas tabelas por formação anteriores). São as seguintes: Piano Solo, Piano a 4 mãos, 2 Pianos (a duas ou quatro mãos), Canto e Piano ou Harmônio – obras sacras e profanas, Coros e Piano (com ou sem solita), Música de Câmara Instrumental, Grupo Instrumental ou Orquestra de Câmara (com ou sem canto solista ou coro), Orquestra Sinfônica, Obras Sacras e, por fim, Harmonizações de Canções Folclóricas (para canto e piano ou canto e instrumentos).

Problemas de Pesquisa

Diversos foram os problemas que se mostraram durante o processo de construção do catálogo. Por uma questão de espaço indicaremos aqui somente uma seleção destes, quais sejam: datação, determinações de ciclos e formação original.

Quanto à datação das obras deparamo-nos com as seguintes situações: a) disparidade de datas de obras em catálogos precedentes ou na literatura musicológica brasileira; b) alocação de ciclos cujas partes foram concebidas em épocas

24 Exclui-se a possibilidade de preencher este campo com o autor de um programa sobre o qual determinada obra teria sido baseada por entendermos que Luciano Gallet não compôs música sob argumentos.

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distintas; c) impossibilidade de determinação da datação de todas as obras em formato dd/mm/aaaa25; d) deduções de datas aproximadas. Quanto às diferentes datações encontradas em diferentes documentos, a solução escolhida foi indicar sempre a data constante no manuscrito autógrafo do compositor e apontar uma observação sobre os diferentes registros. Sobre os ciclos, consideramos a data da peça mais recente, ainda que apontássemos as demais. Referente ao formato da datação das obras, procurando respeitar a precisão com que Gallet as registrava, nossa ideia foi sempre manter o formato [dia/mês/ano]. Contudo, por vezes esta tarefa não foi possível e nos limitamos a indicar somente o mês e o ano de cada obra, ou ainda, somente o ano. De somente 1,3% das composições não conseguimos ter indicativos de datas de composição e, para estas, abrimos um espaço reservado – o que se constitui, portanto, uma exceção no critério de disposição cronológica. Já quanto às deduções de datas nos valemos de uma série de informações adicionais que nos permitissem inferir uma data aproximada de composição, como data de estreia (geralmente colhida em jornais) ou comentários do próprio compositor26.

A segunda questão se refere à dificuldade de entendimento da intenção ou não de que determinadas obras formassem ciclos. Por mais que alguns não levantem dúvidas (Suíte Popular, Suíte sobre temas negro-brasileiros, Turuna, Deux Chansons de Bilitis, Nhô Chico, Gurizada), há o caso de obras escritas em épocas distintas e que posteriormente foram publicadas com alguma indicação que sugere unicidade. É o caso de Suspira, Coração Triste e Morena, Morena, publicadas com o subtítulo de Duas Modinhas; ao que tudo indica, foram pensadas como duas peças que compõe esse grupo de “duas modinhas”; entretanto, é um caso isolado se considerarmos o total de 27 harmonizações de canções folclóricas concebidas por Gallet e publicadas em diversos moldes. Ainda sobre as

25 Luciano Gallet costumava, ao final de cada partitura, datar suas obras no formato “local, dd/m/aa” (sendo o mês em algarismo romano), o que estendemos para [“local”, dd/mm/aaaa], com a indicação do mês em algarismo arábico. 26 Como no caso de Alanguissement que, em carta a Mário de Andrade, Gallet registrou que teria saído “à maneira de Sonnet d’Arvers”.

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harmonizações apontamos a dificuldade de entendimento nesse sentido: tratam-se de diversas obras majoritariamente para canto ou coro e piano que foram publicadas em cadernos – o que poderia sugerir seu agrupamento como ciclos. Entretanto, dois fatores complicam sua disposição como tal: a) até o momento não pudemos precisar se as canções publicadas em conjunto foram pensadas como um ciclo ou se somente foram assim impressas por questões que ainda fogem à nossa compreensão; b) Gallet trabalhou com harmonizações num período de 06 anos27, além de todas estas obras apresentarem formações diversas e ainda muitas transcrições. Assim, não nos pareceu coerente entender todas essas obras como um grande ciclo intitulado Harmonizações de Canções Folclóricas. Deste modo, consideramos entradas individuais para cada canção no fichamento por entrada de dados (mesmo para as que foram compostas num mesmo ano) com o devido cuidado de observar os casos em que um título foi publicado em conjunto com outro.

Por fim, indicamos a problemática de definição da formação original algumas músicas e como exemplo citamos a Suíte Bucólica, obra que em catálogos e referências anteriores aparece como tendo sido concebida originalmente para orquestra com uma posterior redução para piano a quatro mãos. Uma consulta à datação dos manuscritos autógrafos desta obra nos revela que a partitura para piano a quatro mãos é anterior à partitura de orquestra28. Em outro caso temos Caxinguelê, diversas vezes indicado como um maxixe para piano solo (inclusive publicada), mas a única partitura encontrada até o momento (justo o manuscrito autógrafo) é para grupo instrumental.

Conclusões

27 Morena, Morena, a primeira, data de 1922, enquanto que Xangô, a última, data de 1928. 28 Aqui se levanta a questão de que talvez a partitura para piano a quatro não seja uma versão propriamente dita, mas sim um protótipo para a construção da obra sinfônica. Dado que os processos composicionais de Luciano Gallet não estão em pauta neste texto, nos limitamos a indicar as duas possibilidades.

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Entendemos que a construção de um catálogo depende de uma série de balizamentos e definições que respeitem características da própria obra a ser organizada. Para tanto, torna-se imprescindível o conhecimento dos objetos em questão, a história de vida do compositor e, principalmente, entender que o catálogo deverá ter o formato que o seu conteúdo permitir. Um engessamento, um modelo fixo a ser aplicado aos mais diversos conjuntos poderia ser prejudicial à tarefa de catalogação.

Especificamente no caso de Luciano Gallet, nossa ideia vem sendo determinar uma construção que obedeça todos os critérios aqui descritos (e ainda outros, oportunamente discutidos); estes, por sua vez, somam-se de modo que cada um seja complementar ao anterior e norteador para o estabelecimento do seguinte. Contando principalmente com a precisão de registros do próprio Gallet (partituras), com o seu Índice por Ordem Cronológica, com informações deveras preciosas do catálogo de 1934 e ainda com a consulta e programas de concerto, notícias e críticas de jornais da época vimos tentando apresentar o maior número de informações (e títulos) que estiverem ao nosso alcance, além de propor diálogos entre as obras e assim induzir o leitor a novas reflexões. Quanto aos problemas de catalogações, alocação de obras ou critérios de composição que porventura possam alterar a organização proposta, caso não nos seja possível apontar uma solução, nossa diretriz será a de sua exposição em detrimento de omissão.

Referências bibliográficas

BRUM, Marcelo Alves. Luciano Gallet a Reforma do Instituto Nacional de Música. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. ________. Luciano Gallet e a Multiplicidade do Artista. VII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. São Paulo, 2007. GALLET, Luciano. Estudos de Folclore. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs, 1934, p. 97-108. SILVA, Flávio. Francisco Mignone: catálogo de obras. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2007.

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SILVA, Flávio. (Org.) O Tempo e a Música. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial do Estado S. A., 2001.

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A “Trilogia de Guerra” de Chostakóvitch

LUCIANO DE FREITAS CAMARGO ECA/USP - [email protected]

PAULO DE TARSO SALLES

ECA/USP - [email protected]

elatos históricos apontam que Chostakóvitch concebeu as suas Sinfonias nº 7, 8 e 9 como uma grandiosa

“Trilogia de Guerra” (IÁKUBOV, 2012, p. 274). De fato, estas obras foram concebidas e executadas durante a Segunda Guerra Mundial, que na Rússia Soviética é chamada de “Grande Guerra Patriótica”. Porém, a terceira parte desta trilogia não correspondeu às expectativas sucitadas pela ideia original da trilogia.

A Sinfonia nº 7 foi composta em 1941, no início do período em que a cidade de Leningrado sofria o cerco do exército nazista. A partitura trazia a dedicatória “À cidade de Leningrado”, e por esta razão a obra passou a ser conhecida como Sinfonia nº 7 “Leningrado”, e é reconhecida por sua referência à longa resistência soviética ao cerco, que durou até o início de 1944.

A passagem mais conhecida da obra constitui uma marcha que surge na seção de desenvolvimento do primeiro movimento, que é parcialmente baseada na melodia Heut’ gehn wir ins Maxim da opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehár. A marcha é iniciada pela caixa clara em dinâmica piano. A melodia principal vai, aos poucos, tornando-se cada vez mais sonora, e com a adição de instrumentos provoca um aumento gradual do efetivo orquestral até alcançar um tutti aterrador. Esta seção foi designada por alguns estudiosos como o “Episódio da Invasão” (WOLKOW, 2006, p. 265). Em uma carta ao correspondente Pammler, o compositor declarou: “O tema de marcha de minha sinfonia incorpora a invasão agressiva do fascismo alemão. Essa compreensão deste tema é correta.

R

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Assim ele foi pensado por mim”29 (1970 apud FEUCHTNER, 2002, p. 143). É interessante como Chostakovitch consegue transformar uma melodia, que inicialmente soa como leve e popular, em uma música que expressa agressividade e violência. Este mesmo motivo, extraído da opereta de Lehár, foi utilizado posteriormente por Béla Bártok em seu Concerto para Orquestra (1943), obra também concebida durante o período da guerra, uma das últimas escritas por Bártok em seu exílio forçado nos EUA.

Bernd Feuchtner (2012, p. 145) assinala que o motivo inicial da melodia “Episódio da Invasão” apresenta uma relação de semelhança com um motivo extraído da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, associado a atos de violência retratados nesta que foi a segunda ópera de Chostakóvitch, e o designa como motivo “violência”, conforme exemplo 1.

Exemplo 1 – Derivação do motivo “violência” da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk e sua utilização na Sinfonia nº 7 “Leningrado” (FEUCHTNER, 2002, p.

145)

Antes mesmo de sua estreia a Sinfonia nº 7 já era uma lenda. Com as declarações controladas pela máquina estatal, o governo iniciou uma campanha de propaganda utilizando a obra como elemento político (WOLKOW, 2006, p. 272). Após ter utilizado a imagem de Chostakóvitch trajando uniforme militar durante o cerco, foi publicada na revista Sovietskoe Isskustvo em 18.09.1941 a seguinte declaração, atribuída ao compositor:

29 SCHOSTAKOWITSCH, Dmitri Dmitrievitsch. Erfahrungen: Aufsätze, Erinnerungen, Reden, Diskussionsbeiträge, Interviews, Briefe. Reclam, 1983, p. 249.

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Amigos: eu falo de Leningrado a vocês, enquanto nas entradas da cidade há combates ao inimigo. Eu falo do front. Ontem conclui o segundo movimento de minha nova, grande sinfonia. Se for possível concluir a obra, então a chamarei de Sétima Sinfonia. Eu faço este relato para que todos saibam: o perigo que corre a cidade de Leningrado não silenciou sua vida pulsante. (1941, apud FEUCHTNER, 2012, p. 14130)

A “imagem” da obra ficou desenhada pelos discursos e pela própria música. A proeminência do tópico militar e a composição de citações melódicas compõe um quadro musical narrativo que faz uma sensível alusão à guerra que eclodia. Sua grandiloquência, associada à utilização de melodias populares e do tópico coral ortodoxo eslavo identificam sua poética com as diretrizes do realismo socialista, que tanto interessava ao regime imposto por Stálin.

A Sinfonia nº 8 foi composta em 1943 e é identificada como a segunda parte desta trilogia. Sua expressão trágica e pesarosa constrói um memorial às milhares de vítimas da crueldade da guerra. Ivan Sollertinski, crítico musical e amigo do compositor, comentou sobre a obra:

[A Sinfonia nº 8] Constitui o direito à tragédia e à arte trágica. A tragédia não nasceu do pessimismo. Ela nasceu da maturidade, da força, da coragem, da liberdade moral e do conflito entre forças de vontade.” (1979, apud FEUCHTNER,

2002, p. 14931).

Por seu tom trágico, a obra foi acusada de não seguir às diretrizes do otimismo característico do realismo socialista. Por esta razão, as palavras de Sollertinski foram muito importantes como uma defesa da Sinfonia nº 8 frente à censura estatal, que com muita frequência impedia a apresentação de obras artísticas. O próprio compositor declarou: “Nessa obra eu procurei reproduzir a vivência do povo na terrível tragédia da

30 CHOSTAKÓVITCH, Dmitri Dmitrievich. Declaração de Leningrado, Sovietskoe Isskustvo, Moscou, 18.09.1941. 31 SOLLERTINSKI, Iwan. Von Mozart bis Schostakowitsch, Leipzig, 1979, p. 297.

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guerra. A Sinfonia nº 8 é uma resposta aos acontecimentos desses tempos difíceis.” (1956, apud BROCKHAUS, [19]61, p. 14132). Após o tom marcial da Sinfonia nº 7, e considerando os horrores vivenciados pela população de Leningrado durante o cerco que durou mais de 900 dias, a Sinfonia nº 8 foi compreendida como um ato de contrição pelos terríveis acontecimentos da guerra, uma sequência natural da narratividade bélica manifesta na Sinfonia nº 7. Em um depoimento dado ao autor do livro Memórias, Chostakovitch declarou:

A maioria de minhas sinfonias são lápides. Pessoas demais morreram e foram enterradas em lugares desconhecidos (...) só a música pode fazer [lápides] para eles. (...) Penso constantemente nestas pessoas e em cada uma de minhas obras maiores procuro relembrar dessas pessoas. (...) Mais tarde, toda a miséria foi rebaixada à guerra, como se somente durante a guerra havia assassinatos e tortura. Por isso as Sinfonias nº 7 e 8 são “Sinfonias de Guerra” (VOLKOV, 2004, p. 156, grifo nosso)

O tom contrito da Sinfonia nº 8, apesar de desviar-se dos princípios do realismo socialista, foi tolerado pelas autoridades, que permitiram a execução da obra.

A “Nona Sinfonia” de Chostakóvitch

Nos últimos meses da guerra a União Soviética já contemplava sua vitória, não só pela derrota das forças nazistas, mas também por observar a possibilidade de expansão de sua influência geopolítica. As Sinfonias nº 7 e 8 de Chostakóvitch foram apresentadas não só diversas vezes dentro da União Soviética como também no ocidente. Diversos regentes ocidentais disputavam o direito de estreia das obras, que foram vistas como as mais importantes obras musicais do período de guerra. Por isso havia uma grande expectativa,

32 CHOSTAKÓVITCH, Dmitri Dmitrievich. Pensamentos sobre um caminho trilhado. Sovietskaia Muzyka № 9, Moscou, 1956.

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tanto na União Soviética como em outros países de que Chostakóvitch completaria sua “Trilogia de Guerra”, criando uma “Nona Sinfonia” dedicada à vitória na Guerra (WOLKOW, 2006, p. 312). O próprio compositor encarregou-se de sucitar esta expectativa:

Sim, eu já estou pensando sobre a próxima, a Sinfonia nº 9. Caso eu encontre um texto adequado, eu gostaria de escrevê-la não só para orquestra, mas também para coro e solistas. Mas eu temo que por essa pretensão possam me acusar por uma imodesta analogia (1944, apud MEYER, 2008, p. 29433).

Muitos compositores escreveram obras musicais celebrando a vitória na guerra, e a Sinfonia nº 9 de Chostakovitch era também esperada como tal, principalmente considerando o sucesso das sinfonias anteriores. Era esperada uma “Sinfonia da Vitória”, que completaria a trilogia de forma triunfal. Porém, a Sinfonia nº 9, apresentada pela primeira vez nas vésperas do fim da guerra, contraria radicalmente esta expectativa, gerando um incidente político – ela não apresenta qualquer elemento monumental, de nenhum ponto de vista. Trata-se de uma obra escrita para uma orquestra modesta, com menos de 25 minutos de duração, ou seja, em sua totalidade, ela é mais curta que o primeiro movimento da Sinfonia nº 7. Seu estilo haydniano leggero revela uma notável expressão satírica, em absoluto incompatível com a expectativa criada pela ideia da trilogia de guerra. Em uma carta a seu amigo Kara Karaev, Chostakóvitch explica: “Eu disse que as Sinfonias nº 7 e nº 8 são partes de uma trilogia sinfônica. Mas a Sinfonia nº 9 não é a terceira parte desta trilogia; esta, eu espero, será a Sinfonia nº 10” (1947, apud IÁKUBOV, 2012, p. 264, grifo nosso34).

O espírito de agudeza presente na obra se revela tanto nesta quebra de expectativa como também em elementos do texto musical. A essência da linguagem humorística é identificada através de transgressões sintáticas, pelo

33 ORLOV, G. Simfonii Chostakovitcha. Moscou, 1961, p. 221. 34 KARAGICHEVA, L. Shostakovich’s Letters to K. A. Karaev. Muzykalnaia Akademiya № 4. Moscou, 1997, p. 207.

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estabelecimento de nexos inesperados entre ideias incongruentes e a utilização ilógica de ideias (CASABLANCAS, 2014, p. 2). Em seu livro Musical Forces, Steve Larson (2012) propõe que os movimentos melódicos na música tonal sejam regidos por forças análogas às forças físicas de gravidade, inércia e magnetismo. A força melódica gravitacional impele ao movimento descendente; a inércia é representada pela tendência da continuidade nos movimentos melódicos, em especial pelos movimentos mais rápidos; já a força magnética é identificada com os movimentos de sensível e de resolução do trítono. Patrick McCreless (2010) observou o súbito deslocamento semitonal de centros tonais como elemento humorístico recorrente na música de Chostakóvitch. Confrontando esta observação com a teoria de Larson, pode-se afirmar que o deslocamento súbito de centro tonal caracteriza uma espécie de transgressão sintática que provoca uma sensação humorística. Várias outras ocorrências semelhantes podem ser observadas na Sinfonia nº 9, tais como a interrupção inusitada de linhas melódicas, excesso de saltos em intervalos distantes e a repetição insistente de elementos musicais banais sem desenvolvimento, provocando uma quebra de nexo formal. Além destes, a utilização de timbres extremos como um solo de flautim ou de um recitativo de fagote que não conduz a qualquer desenvolvimento temático são alguns dos elementos que fazem da Sinfonia nº 9 uma obra de nítida linguagem humorística, que contextualmente adquire uma dimensão irônica ou sarcástica, aproximando-a do conceito de carnavalização proposto por Mikhaíl Bakhtín (1981, p. 105)

Segundo os relatos da época, a apresentação da Sinfonia nº 9 teria deixado a plateia perplexa, não pelo enorme interesse que a obra suscitou, mas pela sensação de que provocaria um terrível efeito ao ser ouvida por Stálin, que certamente compreenderia a obra como uma troça juvenil, inimiga do povo e um desrespeito às instituições (WOLKOW, 2006, p. 313).

Porém, a reação de Stálin não foi imediata. As festividades pela vitória na guerra, os concertos e a inauguração de monumentos grandiosos não deveriam ser interrompidos por atos de perseguição. Somente em 1948, quando foi convocada uma conferência sobre música no Comitê

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Central do Partido Comunista da União Soviética, sobreveio a Chostakóvitch e a outros compositores expoentes da música soviética o grande golpe. Diferente do que ocorrera em 1936, quando uma ordem velada foi publicada em forma de artigo sem assinatura no jornal Pravda, a conferência liderada pelo comissário Andrei Jdánov reuniu mais de 70 dos mais proeminentes músicos soviéticos, promovendo debates e confrontos públicos a respeito do que deveria ser considerado formalismo em música, de forma que os compositores foram obrigados a reconhecer publicamente seus “erros” e terem suas obras sumariamente atacadas pelos burocratas do partido. Finalmente, em 11 de fevereiro de 1948 foi publicada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista, conhecida como Decreto Jdánov, com uma lista de compositores que representavam a linha formalista e inimiga do povo: foram nominados Chostakóvitch, Prokófiev, Khatchatúrian, Chebalín e Miaskóvski. Chostakóvitch foi afastado de suas atividades de professor nos Conservatórios de Moscou e Leningrado, além de ter suas obras banidas do repertório das grandes orquestras e teatros, assim como os demais compositores listados.

A Sinfonia nº 10

A estrita perseguição à música de Chostakóvitch continuou até 1953, com a morte de Stálin, não obstante terem sucedido neste período algumas investidas governamentais para manipular a música e as atividades públicas do compositor. A morte do ditador, no entanto, não significou um imediato arrefecimento das perseguições, mas somente o início de um longo processo, conhecido como “desestalinização” ou “degelo”.

A súbita morte do governante supremo foi homenageada com muitas demonstrações. Quando Chostakóvitch anunciou sua Sinfonia nº 10 ainda ocorriam homenagens ao ditador, e esta obra poderia ter sido vista também como uma delas. Mas o compositor decidiu que era chegada a hora de se completar sua “Trilogia de Guerra”. A obra apresenta uma ambiguidade latente, repleta de elementos subliminares. O constante emprego da escala dual (cf.

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CAMARGO, 2015) confere um estado contínuo de ambiguidade de caráter, mesclando sonoridades sombrias com explosões festivas. Segundo Vôlkov, o segundo movimento, caracterizado como uma dança cossaca, foi declarado pelo próprio compositor como “um retrato musical de Stálin” (WOLKOW, 2006, p. 387). Mais do que esta declaração, a música denota seu caráter – Stálin rejeitava sua origem georgiana, que muitas vezes induzia a uma associação com a rudeza e violência dos antigos cossacos. Diversas citações da ópera Boris Godunov de Mussorgski também revelam a proposta de denúncia da tirania. A caracterização do tópico militar, constantemente associado com o tópico ombra, cria uma atmosfera de opressão e temor. Por fim, a insistente repetição do motivo D-eS-C-H (na forma latina Ré-Mib-Dó-Si), que constitui um anagrama das iniciais do compositor na notação musical germânica, reitera seu discurso de oposição ao culto à personalidade, tão exaltado por Stálin.

A “Trilogia de Guerra” não seria então concluída por uma monumental “Sinfonia da Vitória Soviética”, mas sim por uma música que exalta o triunfo sobre toda a tirania, violência e a opressão do fascismo, em todas as suas expressões.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981 BROCKHAUS, Heinz Alfred. Dmitri Schostakowitsch. Mit einer Auswahl von Aufsätzen des Komponisten. Leipzig: Verlag Philipp Reclam Jun. [19]61. CAMARGO, Luciano de Freitas. Escala Dual – uma coleção singular da música de Chostakóvitch. Anais do XXV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música. Vitória, 2015. CAMARGO, Luciano de Freitas. O Discurso Sinfônico de Dmitri Chostakóvitch. Dissertação de Mestrado apresentada à ECA-USP. São Paulo, 2012. CASABLANCAS, Benet. El humor en la música. Broma, parodia e ironia. un ensayo. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2014. FEUCHTNER, Bernd. Dmitri Schostakowitsch "und Kunst geknebelt von der groben Macht": Künstlerische Identität und staatliche Repression. Kassel: Bärenreiter, 2002.

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A “Trilogia de Guerra” de Chostakóvitch

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IÁKUBOV, Manashir. Dmitri Shostakovich’s Tenth Symphony from Its Conception to Its Premiere. In: Симфония №10. Соч. 93. Новое собрание сочинений. Том 10. Moscou: DSCH, 2012. LARSON, Steve. Musical Forces. Bloomington: Indiana University Press, 2012. MCCRELESS, Patrick. Shostakovich’s politics of D minor and its neighbours, 1931-1949. In: Shostakovich Studies 2 edited by Pauline Fairclough. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. MEYER, Krzysztof. Schostakowitsch – Sein Leben, sein Werk, seine Zeit. Überarbeitete Neuausgabe. Aus dem Polnischen von Nina Kozlowsky. Mainz: Schott, 2008. VOLKOV, Solomon. Testimony. The Memoirs of Dmitri Shostakovich as Related to and Edited by Solomon Volkov. Pompton Plains: Limelight Editions, 2004. WOLKOW. Solomon. Stalin und Schostakowitsch: Der Diktator und sein Künstler. Berlin: Ullstein Buchverlage GmbH, 2006.

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Processos de legitimação e ideário de modernidade na trajetória da MPB

LAURA FIGUEIREDO DANTAS ECA/USP - [email protected]

HELOÍSA DE ARAÚJO DUARTE VALENTE

UNIP/USP - [email protected]

m 2004, numa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o compositor Chico Buarque, um dos baluartes da chamada MPB, sugere que a forma musical dominante

no Brasil do século XX, a canção, já não mais chama a atenção, por mais bem elaborada que seja. Segundo ele, “há quem sustente isso: como a ópera foi um fenômeno do século XIX, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século XX” (BUARQUE, 2004). Alguns estudiosos relacionaram o enunciado do artista com um suposto esgotamento da capacidade de ressonância e fixação memorialista da canção neste início de século XXI. O pesquisador e músico José Miguel Wisnik, inspirado na declaração de Chico, organizou, juntamente com o também músico Arthur Nestrovski, uma série de ‘aulas-show’ intitulada “O Fim da Canção” veiculada pelo programa Rádio Batuta, do Instituto Moreira Sales. De acordo com Wisnik,

Vivemos uma situação de simultaneidade muito grande de informações, com esse componente de que elas não vêm mais com certo frescor, certa inocência, como Dorival Caymmi ao fazer Coqueiro de Itapuã ou Maracangalha. É como se a cultura contemporânea tivesse se transformado numa espécie de superfície lisa, em que a gente desliza sem fixar um ponto, em que não é possível estabelecer um cânone muito definido (WISNIK, 2009).

Na esteira desse debate, busca-se aqui compreender como a sigla MPB, surgida nos anos 1960, com o advento dos festivais de música televisionados, tornou-se o segmento

E

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estético paradigmático de toda a música popular brasileira. Em contrapartida, no século XXI, setores da mídia tradicional já não parecem capazes de edificar novos representantes icônicos para este segmento. Ainda que o mesmo ideário de modernidade que forjou a MPB canônica dos anos 1960-70 circunde a estética de determinado grupo de compositores/artistas associados a uma ‘nova’ MPB no século XXI, esta parece incapaz de se impor, senão a partir de um processo de ‘espelhamento’. E aqui, em vez de suplantar a ‘velha’ MPB, fortalece-a, ainda mais, como referencial de uma identidade nacional.

A sigla MPB, surgida no contexto dos festivais de música televisionados a partir da década de 1960, viria a se consolidar com uma grade de programas televisivos regulares, veiculados entre os anos 1960 e 1970, a exemplo de O Fino da Bossa, Bossaudade, Jovem Guarda e Discoteca do Chacrinha. Assim, uma música popular de temática urbana, tida como mais elaborada e mais engajada politicamente, passava a ser grafada com as iniciais MPB, deixando de absorver a diversidade das músicas populares do país para representar um segmento midiatizado e distinto da tradição popular e outros já consolidados, tais como samba, rock, pop, baião, caracterizados por adotarem elementos estéticos fixos. Ao mesclar diferentes materiais sonoros, a chamada MPB deixava, portanto, de estar circunscrita a estruturas musicais específicas para se associar muito mais a determinadas correntes ideológicas e aos interesses de uma emergente indústria fonográfica. Ainda nos anos 1960, o caráter paradoxal da posição de excelência que seria ocupada pela MPB já se revelava no discurso que se identificava com as elites intelectuais de esquerda e, ao mesmo tempo, na difusão em larga escala pelos veículos de comunicação massa (a televisão, em particular). Portanto, o surgimento da MPB liga-se, por um lado, aos movimentos de politização de jovens artistas durante a ditadura militar, quando as discussões sobre a realidade social tornavam-se um dos motes principais das expressões artísticas da época; por outro, aos festivais de música televisionados que abririam as comportas de um mercado da música capitaneado pela indústria fonográfica.

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Essa ideia é reiterada pelo crítico Zuza Homem de Mello: “O primeiro Festival da TV Excelsior foi lançado no início de 1965, quando a emissora já era líder havia vários meses, segundo o Ibope” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 52). A partir de 1966, a emissora paulista Record inaugura a transmissão do seu primeiro festival de música, seguida pela Globo no ano seguinte, que começaria veicular a segunda edição do Festival Internacional da Canção. Entre 1965 e 1972, a televisão brasileira foi responsável por transmitir anualmente disputas entre artistas e compositores brasileiros que iriam integrar o cast das multinacionais e de suas representantes no Brasil. É interessante observar que, paralelamente aos festivais, ocorreria a expansão das vendas de produtos da indústria fonográfica. De acordo com dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (1995), em 1968 foram vendidas quase 15 milhões de unidades, entre compactos simples, duplos e LPs. Já em 1972, os números saltaram para pouco mais de 25,5 milhões de unidades vendidas.

É importante lembrar que, mesmo capitalizada pela indústria do disco, a popularidade da televisão esteve restrita, durante mais de uma década, a uma pequena parcela da população, habitante dos grandes centros urbanos. O Censo Demográfico de 1970, por exemplo, registra que apenas 27% das residências brasileiras possuíam aparelhos de TV, sendo que 75% destes estavam concentrados no eixo Rio-São Paulo. De acordo com os Boletins de Assistência da Televisão (CESOP, 2005), em 1967 a Rede Record era a líder em audiência em São Paulo com 24% da audiência. O estado contava ainda com os canais Bandeirantes, TV Cultura, Excelsior e Globo. Apenas a Rede Record e a Cultura ocupavam 32% de sua grade com programas de música. Em seguida, vinham Globo e Excelsior (ambas com 14%) e Bandeirantes (com 13% de programação musical). Verifica-se uma mudança no perfil da programação televisiva que coincide com o término das transmissões ininterruptas dos festivais de música. Estes, que eram os principais orientadores da grade da televisão em suas décadas iniciais, passariam a ter, nos anos 1970, uma pequena participação na audiência (3,8%), enquanto as telenovelas atingiriam, por sua vez, 26,1% desta (CESOP, 2005). Com as novelas, o mercado das trilhas sonoras, por sua vez,

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impulsionaria ainda mais a ascendente indústria do disco. “Um claro sintoma desse boom foi o crescimento obtido no período pela gravadora Som Livre, da Rede Globo, produzindo essencialmente trilhas” (DIAS, 2000, p. 59 e 60).

A ‘tradição inventada’ de uma ‘nação integrada’

A MPB que se consolidou a partir dos anos 1960 insere-se no ideário modernista de construção de uma identidade nacional no Brasil que acabou reverberando no âmbito político-ideológico da época. O processo de legitimação desse segmento musical, que ganhou posição de excelência a partir do século XX, estaria a serviço da construção de uma identidade nacional relacionada ao que o historiador Eric Hobsbawm ([1984]2015) denominou “tradição inventada”, a qual, segundo ele, incentiva “o sentido coletivo de superioridade das elites”. Para o autor, em lugar de se inculcar uma ideia de obediência nas classes inferiores, melhor que estas sejam encorajadas a se sentir mais iguais ou próximas de grupos dominantes, os quais estabelecem as tradições preponderantes (HOBSBAWN, 2015, p. 17 e 18). Em sua gênese, no entanto, a MPB expressaria as tensões intrínsecas e extrínsecas às obras abrigadas pela sigla e que seriam submetidas ao crivo não apenas da censura do regime militar, mas de uma indústria cultural emergente e promovida pelo Estado militar.

Ao comentar acerca da problemática da integração identitária, Renato Ortiz (1988, p. 181) afirma que a “indústria cultural adquire, portanto, a possibilidade de equacionar uma identidade nacional, mas reinterpretando-a em termos mercadológicos; a ideia de ‘nação integrada’ passa a representar a interligação dos consumidores potenciais espalhados pelo território nacional”. Somente no século XXI, com a expansão de um mercado cada vez mais heterogêneo e vinculado a formas autônomas de produção e distribuição de produtos culturais é que se firmariam novos modelos de negócio e, nessa conjuntura, uma ‘nova MPB’, a qual representaria a continuidade dos padrões reconhecidos como canônicos na canção brasileira. O termo apareceu em alguns

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setores da mídia, principalmente em jornais de grande circulação do país, a exemplo do jornal Folha de S. Paulo de 29 de abril de 2012 (Artistas fazem nova MPB mesmo sem apoio de grandes gravadoras), em matéria assinada por Marcus Pretto, e do Correio Braziliense em 17 de novembro de 2013 (Nova geração de artistas da música popular brasileira refuta o termo MPB), esta assinada por Gabriel de Sá e Igor Silveira. Assim, uma geração de compositores e “cantautores” – a maioria oriunda ou estabelecida no estado de São Paulo – começou a ganhar relativa visibilidade nas editorias de cultura dos principais impressos do país.

A ‘nova’ MPB abarcaria canções em que “a grande modificação se daria na incorporação da música eletrônica e dos ritmos pop contemporâneos aos gêneros tradicionais – o que não se configura propriamente em novidade quando pensamos na trajetória da Tropicália, por exemplo” (SALDANHA, 2008, p. 36). Essas novas canções seriam, portanto, o simulacro do ideário de modernidade da ‘velha’ MPB, construído por uma imprensa que, à maneira da televisão, segue atuando de forma territorializada, circunscrita a artistas atuantes na Região Sudeste do país, a partir de paralelismos e recorrências entre a música popular brasileira tornada icônica em meados do século XX e as expressões emergentes da canção nacional do século XXI.

É o caso da capa do LP Tropicália, lançado em 1968, que inspira a matéria da revista Serafina, de 2012, em que artistas da nova cena reproduzem a pose dos então tropicalistas.

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O jornalista Ronaldo Bressane, autor da matéria “Ninguém é de ninguém”, publicada pela Revista Trip, em junho de 2009, cuja imagem (quadro abaixo) remonta à capa da Revista Realidade, de 1966, busca referendar os novos nomes da música popular brasileira novamente partindo de uma relação de espelhamento com artistas do segmento que se tornaram referenciais no século XX. Diferentemente da primeira imagem, no entanto, na qual aparecem nomes que, em geral, estavam na chamada ‘linha de frente’ dos trabalhos artísticos (ou seja, cantores, instrumentistas e compositores), a segunda imagem apresenta como protagonistas da nova cena musical também produtores e arranjadores. A nova representação da MPB corrobora a ideia dos processos colaborativos de criação, produção e difusão desses produtos.

Hoje, quem se isolar dos aspectos menos artísticos de seu trabalho some. Não funciona ficar no canto criando, à sombra de uma gravadora ou de um produtor. O artista precisa se mover para todos os lados, às vezes se ocupando de tarefas nada musicais [...]. Faz sentido a aproximação de artistas e

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bandas de gêneros musicais distantes. Isso não tem nada a ver com movimento: a liga é mais forma que conteúdo, mais modo de trabalho que programa artístico. (BRESSANE, 2009).

Considerações finais

Desde os anos 1960, a legitimação de um segmento difuso chamado MPB tenta reafirmar um centro hegemônico estético que seja representante de uma identidade cultural. No século XXI, no entanto, a despeito da atuação ainda territorializada e circunscrita da mídia tradicional – a mesma que cunhou o rótulo “nova MPB” - em uma geração de artistas atuantes, principalmente, na metrópole paulistana (e que eventualmente ‘ocupariam’ o espaço de reconhecimento reservado aos nomes icônicos da sigla), a perspectiva de uma ação hegemônica, no sentido de forjar uma ‘nova MPB’ consentida por uma maioria, parece improvável.

Os critérios de legitimação, que passaram a girar em torno dos novos modelos colaborativos de negócio, e não mais das criações em si, entre outros aspectos característicos de um contexto de ofertas infinitas e de mediação globalizada, parecem incapazes de estabelecer novos ícones no segmento

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MPB. Essas novas canções seriam, portanto, o simulacro do ideário de modernidade da ‘velha’ MPB, reforçando-a (e não suplantando-a) como referencial de uma identidade nacional.

Referências Bibliográficas

BRESSANE, Ronaldo. Ninguém é de ninguém – A nova realidade, 11 de jun. 2009. Revista Trip. Disponível em http://revistatrip.uol.com.br/revista/178/especial/ninguem-e-de-ninguem-a-nova-realidade.html. Acesso: 23 mar. 2015 BOURDIEU, Pierre. A distinção crítica social do julgamento. Tradução Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz – indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 1ª ed., São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2000. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (organizadores). A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante, 10ª ed. São Paulo. Paz e Terra, 2015. HOMEM DE MELLO, Zuza. A era dos festivais – uma parábola, todos os cantos, 2003. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/6691987/A-Era-Dos-Festivais-Zuza-Homem-de-Mello#scribd . Acesso: 17 de fev. 2015. NESTROVSKI, Arthur; WISNIK, José M.. Especial Rádio Batuta – O fim da canção – programas 13, 14, 15 e 16. Rádio Batuta – Instituto Moreira Sales, 2009. Disponível em http://ims.uol.com.br/Radio/D695. Acesso 10 de set. 2012. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988. SALDANHA, Rafael Machado. Estudando a MPB: reflexões sobre a MPB, Nova MPB e o que o público entende por isso. 2008. Dissertação (Mestrado Profissionalizante em Bens Culturais e Projetos Sociais). Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

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Solmização: afinação e nomeação das notas alteradas de acordo com o tratado A Briefe Introduction to the Skill of Song (c.1596) de William Bathe

NATHÁLIA DOMINGOS ECA/USP - [email protected]

aseada em seis Vozes (ut, ré, mi, fá, sol, lá) que correspondiam às primeiras sílabas de cada verso do

Hino a São João Ut queant laxis, a solmização é uma das antigas práticas de solfejo que se difundiu por toda Europa a partir do século XI. De acordo com Hughes (Grove Music Online), trata-se do uso de sílabas associadas às alturas dos sons como dispositivo mnemônico para indicar os intervalos melódicos.

Em suma, a solmização baseia-se em três principais Deduções (hexacorde) cujas notas iniciais recaem em G, C, F. Cada uma das Deduções é classificada de acordo com a sua Propriedade: a primeira Dedução, estabelecida em G, contém o

Si natural ( quadratum) e por este motivo é classificada b durum; a segunda Dedução, fundamentada em C, não atinge a nota Si e por isso é naturalis; a terceira Dedução, com início em F, apresenta o Si (b rotundum) e é classificada b molle.

Figura 3. Relação intervalar das três Deduções e suas Propriedades.

No entanto, as melodias excediam esta extensão e o cantor deveria fazer a mutação, ou seja, transitar entre as Deduções para continuar a solmização acima do lá ou abaixo do ut. Resumidamente, a mutação no continente europeu consiste na seguinte regra: ocorre sempre na sílaba ré se a melodia estiver ascendendo e na Voz lá se a melodia estiver descendendo. As Deduções b durum e naturalis são usadas durante as mutações nas melodias em cantus durus (Figura 2).

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Figura 2. Mutação entre Deduções b durum e naturalis praticada no continente - escala ascendente e descendente.

Por outro lado, as Deduções b molle e naturalis são requisitadas durante as mutações nas melodias em cantus mollis (Figura 3).

Figura 3. Mutação entre Deduções b molle e naturalis praticada no continente - escala ascendente e descendente.

De acordo com Barnett (2002, p 436), a solmização inglesa difere notadamente daquela praticada e ensinada no continente europeu, apesar de terem o mesmo fundamento. Em seu A Briefe Introduction to the Skill of Song, por exemplo, Bathe

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(c. 1596) expõe o que ele chama de “Regra do ut” para o posicionamento da Voz ut. Ao posicionar corretamente o ut, as demais sílabas seguem o que ele chama “ordem da subida e da descida”. Para Bathe (c. 1596), o ut pode ser posicionado em três locais: em G (ausência de bemol na clave); em C (um bemol na clave); em F (dois bemois na clave).

Solmização: afinação e nomeação das notas alteradas de acordo com William Bathe (c. 1596)

Após discursar sobre as regras para a localização do ut, Bathe (c. 1596, f Avi v) discute o emprego de bemois e sustenidos. Para Karnes (2005, p. 29), A Briefe Introduction to the Skill of Song foi o primeiro texto inglês a estabelecer normas específicas para a afinação dos acidentes a seus leitores. Bathe provê dois exemplos dos quais o primeiro apresenta uma nota alterada pelo bemol (Figura 4), ao passo que o segundo, uma nota alterada pelo sustenido (Figura 10).

Figura 4. Afinação da nota alterada pelo bemol (BATHE, c. 1596, f Bii a).

Para afinação da nota alterada pelo bemol, deve-se partir da “ordem da subida e da descida” (Figura 6), além da “Regra do ut” fornecidos por Bathe. Como descrito anteriormente, o ut pode ser posicionado em três locais: em G (ausência de bemol na clave); em C (um bemol na clave); em F (dois bemois na clave). Bathe (c. 1596, f Avi v) também sugere a substituição das sílabas ut-ré por sol-lá por uma questão de eufonia (euphoniae gratiae).

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Figura 5. Localizações do ut de acordo com a armadura de clave.

Figura 6. “Ordem da subida e da descida” das seis sílabas de solmização (BATHE, c. 1596, f Aiiij v).

Note que o exemplo da Figura 4 não possui bemol na armadura de clave. Portanto, o cantor deve identificar que a sílaba ut está posicionada em G (Signo g sol ré ut). Fazendo as devidas substituições (ut-ré para sol-lá), a primeira nota, instituída no Signo dd lá sol, deve ser solmizada com a Voz sol e a próxima nota, com a Voz fá (Figura 7).

Figura 7. Primeira parte da solmização com a nota alterada pelo bemol – ut posicionado no Signo g sol ré ut.

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No entanto, a nota subsequente é um Si e não pertence a esta “ordem da subida”, isto é, escala. Segundo Karnes (2005, p. 30), o aparecimento de um bemol na nota Si indica que o ut deve se acomodar em C (Signo cc sol fá). Na verdade, é como se aquela passagem possuísse um bemol no início do pentagrama. O discípulo, reconhecendo este fato, deve adaptar a solmização do trecho para refletir esta alteração na localização do ut. Logo, o Signo cc sol fá passa a se chamar sol e a nota alterada Si torna-se fá (Figura 8).

Figura 8. Segunda parte da solmização com nota alterada pelo bemol – ut posicionado no Signo cc sol fá.

Como exposto por Karnes (2005, p. 30), esta renomeação permite que o cantor afine corretamente o intervalo de um tom entre Dó-Si . Após afinar este intervalo empregando as sílabas sol-fá, o cantor deve retornar ao início e renomear as notas de acordo com a sua respectiva “ordem da subida e da descida”. Consequentemente, as duas primeiras notas pertencem a ordem que possui o ut no Signo g sol ré ut e a terceira nota está relacionada à ordem que apresenta o ut no Signo cc sol fá. Portanto, a sequência de notas Ré-Dó-Si deve ser solmizada sol-fá-fá.

Figura 9. Solmização do exemplo com nota alterada pelo bemol.

O segundo exemplo dado por Bathe possui uma nota com sustenido e o procedimento de solmização é idêntico ao descrito anteriormente.

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Figura 10. Afinação da nota alterada pelo sustenido (BATHE, c. 1596, f Bii a).

Em primeiro lugar, deve-se solmizar o excerto seguindo a “Regra do ut”. Assim, a ausência de bemol na armadura demonstra que o ut deve ser posicionado em G (Signo g sol ré ut).

Figura 11. Primeira parte da solmização com nota alterada pelo sustenido – ut posicionado no Signo g sol ré ut.

Ao se deparar com a nota alterada pelo sustenido, o aprendiz deve visualizar que o ut se posiciona uma terça maior abaixo daquela nota alterada. Desta forma, o ut passa a se localizar no Signo d lá sol ré permitindo que a sílaba mi recaia na nota alterada facilitando, então, a afinação do intervalo de semitom (Sol-Fá ) com as Vozes fá-mi (Figura 12).

Figura 12. Segunda parte da solmização com nota alterada pelo sustenido – ut posicionado no Signo d lá sol ré.

Entretanto, este é apenas um artifício utilizado para auxiliar o cantor na afinação durante o processo de solmização e não significa o deslocamento do ut para uma nova “ordem da subida e da descida”, como ocorre com o bemol. Sendo assim,

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após afinar esta parte que contém a nota alterada utilizando as Vozes imaginárias (mi-fá), o cantor deve retornar ao início e solmizar a passagem empregando as sílabas conforme sua “ordem da subida” inicial, como pode ser verificado na Figura 13.

Figura 13. Solmização do exemplo com nota alterada pelo sustenido.

Em suma, como descrito por Karnes (2005, p. 31), o processo mental pelo qual o estudante do método de Bathe utiliza para afinar as notas alteradas pelos sustenidos é semelhante aquele exigido para afinar as notas alteradas pelos bemois. Primeiramente, deve-se iniciar o canto de acordo com a “ordem da subida e da descida” determinada pela armadura de clave no início do pentagrama. Se a nota estiver alterada pelo sustenido, o cantor deve imaginar que o ut está localizado uma terça maior abaixo daquela nota alterada para afinar corretamente o semitom com as sílabas mi-fá. Em seguida, o cantor deve retornar ao início e trocar o nome das notas de acordo com a “ordem da subida” original mantendo a afinação do semitom. Como apontado por Owens (1998, p. 198), bemois alteram o ut, enquanto sustenidos mudam a afinação (altura da nota) sem afetar a sílaba de solmização.

Considerações finais

A solmização é importante para o estudo e para a prática do repertório do século XVI, uma vez que a música era fundamentada neste sistema.

A obra de William Bathe é representativa por fornecer instruções práticas sobre a solmização. Diferentemente da maioria dos autores ingleses daquela época, Bathe provê informações detalhadas sobre o procedimento que deveria ser

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adotado pelo jovem cantor aprendiz para a correta afinação e nomeação das notas alteradas durante a solmização. Por isto, ainda hoje ela é importante fonte para o aprendizado da solmização.

Por fim, este estudo possibilita o melhor entendimento da prática musical e do repertório musical inglês daquela época, uma vez que Bathe se destaca pela sua proposta didática da solmização de notas alteradas.

Referencias bibliográficas

BARNETT, G. Solmization and key in English theory. In: CHRISTENSEN, T. (Ed.). The Cambridge History of Western Music Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. cap. 13, p. 435-441. BATHE, William. A Briefe Introduction to the Skill of Song: concerning the practise, set forth by William Bathe Gentleman. London: Thomas Este, [c. 1596]. 21f. HUGHES, A.; GERSON-KIWI, E. “Solmization”. Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press. Disponível em: <http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/26154>. Acesso em: 23 jan. 2013. KARNES, K. C. (Ed.). A Briefe Introduction to the Skill of Song by William Bathe. Burlington: Ashgate, 2005. 137 p. OWENS, J. A. Concepts of Pitch in English Music Theory, c. 1560-1640. In: JUDD, C. C. (Ed.). Tonal Structures in Early Music. New York and London: Garland, 1998. p. 183-246.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo apoio financeiro a esta pesquisa (FAPESP- Processo nº 2012/24030-3). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

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Pixinguinha e os caminhos da orquestração brasileira: caso Carinhoso

ANA LÚCIA FONTENELE UFAC-ECA/USP - [email protected]

Introdução

presente artigo se propõe a analisar a trajetória de Pixinguinha como arranjador dos grupos musicais e

pequenas orquestras, as quais fundou e atuou como musico, compositor e arranjador. Para tanto iremos realizar um estudo comparado dos arranjos do Carinhoso, dois deles realizados por Pixinguinha em 1928 e 1929 e um deles, de 1937, de autoria de Pixinguinha e provável coautoria de Radamés Gnattali, que teve o cantor Orlando Silva como intérprete.

Nosso projeto de tese pretende observar os arranjos de Pixinguinha para orquestra popular realizados na entre os anos de 1947 a 1959, fase madura da sua carreira. Através desses arranjos instrumentais Pixinguinha realiza um resgate dos contextos social e musical que permearam a sua formação musical. Tais arranjos retratam a sua familiaridade com o tipo de musicalidade35 que caracteriza o período de formação da música popular urbana no Brasil do final do século XIX e início do século XX. Nesse período surgiram práticas musicais que iriam consolidar o gênero choro e o samba maxixado.

Apesar de atuar no mercado fonográfico brasileiro, principalmente como arranjador em gravações da fase elétrica do disco e em grupos musicais de programas radiofônicos, Pixinguinha pôde demonstrar, em seus arranjos para os diversos grupos instrumentais dos quais participou, o legado musical da época do princípio do choro e das bandas militares. O compositor atuou ainda na fase inicial do samba, no Rio de

35 O termo musicalidade, numa perspectiva ligada à etnomusicologia, envolve aspectos que, segundo Mukuna (2008, p.13), vão além do estudo dos aspectos musicais, “enquanto seu objetivo é de contribuir para a compreensão de seus criadores, os seres humanos”.

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Janeiro, nas primeiras décadas do século XX. Pixinguinha e seus amigos, entre eles, Donga e João da Baiana, participavam dos encontros nas casas das tias baianas, onde eram vivenciados momentos de criação musical coletiva, como também dos batuques dos terreiros de candomblé (CABRAL, 2007).

Pixinguinha como arranjador

As primeiras experiências de Pixinguinha como arranjador ocorreram a partir do trabalho com os grupos que liderou desde a época da dissolução do Os Oito Batutas36, por volta de 1928, com o surgimento da Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Essa orquestra foi criada, com cerca de 40 músicos, para apresentar-se em uma exposição promovida pelo Automóvel Clube do Brasil. Nas gravações realizadas por essa orquestra, composta apenas de sopros, o número de instrumentistas é menor (ARAGÃO, 2001).

Em seguida, a partir de 1929, o compositor foi diretor e arranjador da Orquestra Victor Brasileira, como também de outros grupos musicais como O Pessoal da Guarda Velha e Os Diabos do Céu. Alguns dos melhores músicos do Rio de Janeiro, muitos deles companheiros de Pixinguinha de períodos anteriores, passaram a integrar a Orquestra Victor Brasileira. Em paralelo aos arranjos realizados para acompanhar os cantores da época, Pixinguinha sempre realizou arranjos instrumentais, iniciados a partir de 1928, para a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga.

Muitos dos músicos escolhidos por Pixinguinha para integrarem essas orquestras populares e grupos musicais dirigidos por ele, como também ele próprio, eram considerados exóticos, exatamente por preservar e expressar em suas práticas musicais as características típicas da música popular urbana vivenciada por eles na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX (CABRAL, 2010). Segundo Aragão (2001, p.70), ‘a música dos artistas “típicos”, dos quais faria parte Pixinguinha, deveria estar imune a elementos musicais não

36 Grupo inicialmente nomeado como Orquestra Típica Os Oito Batutas, em 1919.

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natos, conservando-se sempre “pura” – apesar de sempre prescindir de um tratamento musical “correto”’.

Pixinguinha e os primeiros arranjos do Carinhoso

É interessante observarmos, dentre os arranjos instrumentais realizados por Pixinguinha nesse período, o perfil de três arranjos para a música Carinhoso, realizados em 1928 (para orquestra de sopros); em 1929 (para orquestra RCA Victor). Nessas versões, de 1928 e 1929, o Carinhoso estava mais ligado ao choro e seria, segundo Pixinguinha, uma polca lenta (CABRAL, 2007.

O primeiro registro do Carinhoso foi realizado em 1928 para a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Apesar da música ter sido criada em 1917, segundo Cabral (2007), o Carinhoso foi mantido guardado por Pixinguinha, pois o compositor achava que a peça não estaria completa. Faltava-lhe uma terceira parte. Em 1929, o mesmo arranjo foi adaptado por Pixinguinha para um concurso de arranjos promovido pela RCA Victor Brasileira, o qual obteve o prêmio de melhor arranjo. Nesse arranjo foi incorporado o timbre das cordas e, ainda no mesmo ano, o arranjo foi registrado pela Orquestra Victor Brasileira, (ALBIN, 2015).

Alguns críticos da época assinalaram, de forma negativa, uma influência jazzística nesses primeiros arranjos do Carinhoso. O próprio Pixinguinha reconheceu, em entrevista concedida em 196637, a influência do jazz no primeiro arranjo realizado por ele para o Carinhoso, em 1928. Os arranjos de 1928 e 1929 foram criados em uma nova fase musical de Pixinguinha, na qual elementos do jazz americano passam a ser utilizados por ele. Tais influências foram por ele apreendidas quando da sua estadia em Paris, em 1922, com o grupo Les Batutes, e no seu retorno ao Brasil, quando Pixinguinha passa a atuar como arranjador da Victor Brasileira, a partir de 1929.

37 Artigo baseado em entrevista concedida por Pixinguinha a João Baptista Borges Pereira em 1966. Conf. PEREIRA, João Baptista (1997).

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A autoria do arranjo de 1937

No arranjo do Carinhoso de 1937, provavelmente feito por Pixinguinha, com letra de João de Barro, a música é executada inteira em versão instrumental para, posteriormente, entrar a voz do solista, o cantor Orlando Silva. Nesse sentido é importante observarmos a valorização conferida ao arranjo no âmbito das gravações de cunho comercial nesse período.

O acompanhamento do Carinhoso nesse arranjo foi feito pelo Grupo Regional da RCA Victor e Radamés Gnattali participou nessa gravação como pianista do grupo composto, segundo Cabral (2007), por piano, flauta, dois clarinetes, contrabaixo, violão, cavaquinho e bateria.

Alguns autores (MC CANN, 2004 e MARCONDES, 1998) creditam a Radamés Gnattali a autoria do arranjo do Carinhoso e da valsa Rosa38, diante de fatos que vinham colocando Pixinguinha à margem dos trabalhos profissionais, principalmente na RCA Victor Brasileira (MC CANN, 2004). Além de Pixinguinha atuavam como arranjadores na Victor Brasileira: Radamés Gnattali, Iberê Gomes Grosso e Célio Nogueira, entre outros (CABRAL, 2007).

A seguinte introdução, creditada a Radamés Gnattali, na verdade foi criada por Pixinguinha para o arranjo editado pela E. S. Mangione S. A, em 193639, e registrada em disco pela primeira vez nessa gravação de 1937. Pixinguinha utiliza-se de uma progressão harmônica, já utilizada na música erudita, e no contexto do jazz, o acorde SubV/V, um acorde de dominante, meio tom acima do acorde de dominante da tonalidade principal, que em geral substitui esse acorde (dominante primário) na cadência para a dominante ou para a tônica (PEREIRA, Marco, 2011, p. 71). Nesse caso da introdução do Carinhoso o acorde é o Db7, do segundo compasso que resolve no acorde de F (I grau (tônica) de FáM). No terceiro compasso acontece um outro recurso de sofisticação harmônica, acordes

38 Ambas as músicas são de Pixinguinha com letra de João de Barro (Carinhoso) e Otávio de Souza (Rosa). 39 Data confirmada por representante da Editora Mangione em e-mail do dia 02.11.2015.

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analisados como uma sequência de acordes dominantes secundários do acorde dominante da tonalidade da tônica (D7- G7).

Figura 1.

Um recurso resultante de uma sequência melódico-cromática de acompanhamento derivada de notas da progressão harmônica utilizado por Pixinguinha no arranjo de 1928 tornou-se imprescindível em todas as versões posteriores do Carinhoso (Figura 2).

Figura 2.

Tal arranjo foi feito para um tipo de formação de orquestra popular muita utilizada em pequenas orquestras de salão, composta por sopros: madeiras (flauta, clarineta, sax alto e sax tenor), metais (trompete e trombone), piano e violinos (em divisi).

Segundo Braga (2002), arranjadores como Pixinguinha e, mais tarde, o próprio Radamés, sofriam pressão por parte de diretores de gravadoras e rádios no sentido de realizarem orquestrações de cunho sinfônico e “americanizadas” para a música popular brasileira. A partir da seguinte citação de Radamés Gnattali, presente em Barbosa e Devos (1984)40 apud Braga (2002), temos indícios da possível autoria de algum arranjo do Carinhoso, como também o relato da pressão sofrida pelos arranjadores brasileiros na década de 1930:

40 BARBOSA, Valdinha e DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali, o eterno experimentador. FUNARTE. Rio de Janeiro, 1984.

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No tempo da RCA, na rua do Mercado, começou a Rádio Transmissora41. E lá o americano Mr. Evans, que era dublê de gerente e diretor artístico [além de gravador] queria dar tons mais profissionais às gravações, a fim de competir com mais apuro com o disco estrangeiro que chegava ao Brasil com belos arranjos orquestrais. Naquela época ouvia-se muita música estrangeira. Mr. Evans me pediu para organizar uma orquestra grande. Eu organizei: cordas completas [violinos, violas, violoncelos e contrabaixos], duas flautas, clarineta, quatro saxes, três pistons, dois trombones, trompas. Uma orquestra grande. Então ele contratou um arranjador paulista o Galvão, que tinha estudado arranjo nos Estados Unidos. Aqui não tinha ninguém que escrevesse a coisa mais sinfônica – jazz sinfônico. Eu era o regente da orquestra. O Galvão fez os arranjos e eu gostei. Comecei a estudar aquelas partes e comecei a aprender. E depois eu fiz o arranjo de Carinhoso no mesmo estilo (BRAGA 2002, p.109).

Por outro lado, em entrevista concedida em 1966, Pixinguinha dá o seguinte depoimento com relação ao Carinhoso:

Compus o Carinhoso mais ou menos em 1920. Era uma peça instrumental, com bastante influência do jazz americano. Em 1934, o diretor da gravadora, um americano alto, me disse com aquele sotaque: ‘Pixanguinha, quer gravar Carinhoso?’. Concordei e comecei o trabalho para adaptá-lo na linha samba-canção (PEREIRA, João Baptista, 1997, p.82).

Finalmente, a partir das premissas aqui citadas como os depoimentos de Pixinguinha e Radamés Gnattali acerca dos arranjos conclui-se que o arranjo pode ter sido feito através de uma coautoria entre os dois arranjadores, ou apenas por Pixinguinha. Porém, como citado anteriormente, a introdução presente no arranjo de 1937 foi realmente criada por

41 A Rádio Transmissora foi inaugurada em janeiro de 1936 no Rio de Janeiro (BRAGA, 2002).

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Pixinguinha, a partir da confirmação da data da edição do arranjo impresso42 de Pixinguinha, de 1936.

Considerações Finais

Podemos considerar que o nível de sofisticação, buscado por Pixinguinha nos arranjos do Carinhoso de 1928 e 1929 atinge o mais alto grau no registro, de 1937. Para Cabral (2007, pg.145), desde os arranjos do final da década de 1920 Pixinguinha “abrasileirou as orquestrações de forma tão nítida e radical que se pode dizer, sem qualquer medo de errar, que foi ele o grande pioneiro da orquestração para a música popular brasileira”.

Segundo Cabral (2007, p.183), “Pixinguinha, com os contrapontos mais requintados, aperfeiçoando o que ouvira desde menino no oficlide de Irineu de Almeida, abriu novos caminhos para a música instrumental brasileira”. Uma das manifestações mais fortes dessa tendência foram as criações de Pixinguinha, ao saxofone, para as interpretações da dupla Pixinguinha e Benedito Lacerda.

Na fase madura da carreira de Pixinguinha, tal característica musical, entre outras, marcaram os arranjos da série “Orquestra Brasília”, editados entre1946 e 1948 pela Editora Irmãos Vitale, os arranjos realizados para a orquestra do programa radiofônico O Pessoal da Velha Guarda (de 1947 a 1952), como também para os arranjos do Grupo da Velha Guarda, presentes nas gravações dos LPs do selo Sinter (de 1955 a 1959). Tais arranjos são objetos de análise da presente pesquisa iniciada em março de 2014 no Programa de Pós-Graduação em Música da ECA-USP, sob a orientação do compositor Marcos Câmara de Castro.

42 Data confirmada pela editora Mangione S. A. em resposta a e-mail da autora em 30.11.2015.

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Referências bibliográficas

ARAGÃO, Paulo. Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro (1929 a 1935). 2001. 126f. Dissertação (Mestrado em Música Brasileira) - Programa de Pós-Graduação em Música. Centro de Letras e Artes. Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. BRAGA, Luiz Otávio, R. C. A invenção da Música Popular Brasileira: de 1930 ao final do Estado Novo. 2002. 408f. Tese (Doutorado em História Social). Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. Rio de Janeiro: Funarte, 2007. MARCONDES, Marcos Antonio (Ed.) Enciclopédia da Música Brasileira: popular, erudita e folclórica. Reimpr. Da 2ª ed. São Paulo: Art Editora e Publifolha, 1998. MC CANN, Bryn. Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil. Durham & London: Duke University Press, 2004. MUKUNA, Kazadi Wa. Sobre a busca da verdade na etnomusicologia. Um ponto de vista. Revista USP, São Paulo, n.77, p. 12-2, março/maio, 2008. PEREIRA, João Baptista Borges. Pixinguinha. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 42, p. 77-87, 1997. PEREIRA, Marco. Cadernos de Harmonia. vl. 2. Rio de Janeiro: Garbolights Produções Artísticas, 2011. TAAG, Philip. Analisando a música popular: teoria, método e prática. Revista Em Pauta. Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ. Rio de Janeiro, v.14 – n. 23, p. 5-42, 2003.

Partituras e websites ALBIN, Ricardo C. http://www.dicionariompb.com.br/pixinguinha. Acesso em: 13 de set 2015. IMS, Muitas vezes “Carinhoso”: de 1928 a 1959. https://soundcloud.com/search?q=Muitas%20vezes%20Carinhoso%20-%20de%201928. Canal Instituto Moreira Sales no Aplicativo SoundCloud, 2015. Acesso em: 07 de set 2015. VIANNA, Alfredo da Rocha(Pixinguinha) e DE BARRO, João (Braguinha). Carinhoso: samba estylisado. Série “A Melodia”. Mangione S. A. (E. S. M. 989). São Paulo e Rio de Janeiro, 1936. 8 partituras (9 p.). Piano, sax tenor, sax alto, clarino, flauta, piston, trombone ou cello e violinos.

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DAISY FRAGOSO ECA/USP - [email protected]

ntre os anos de 2013 e 2015 foi desenvolvida uma pesquisa de mestrado43 que, em linhas bem gerais, pretendeu analisar os resultados das experiências sociais, culturais e musicais compartilhadas durante dois

anos entre dois grupos corais infantis pertencentes a culturas distintas. Um dos grupos era formado por cerca de 15 crianças guarani Mbya44 da aldeia Tenondé Porã45, lideradas pelo seu avô ou pai, o cacique e xeramoĩ46 Elias Vera. Já o grupo seguinte pertencia a um centro comunitário47, e, deste coro, faziam parte 17 crianças não indígenas, entre cinco e onze anos.

Ao longo do trabalho, estes grupos infantis se reuniram na aldeia guarani e fora dela por diversas vezes para que cantassem e brincassem juntos e para conversar sobre os mais variados assuntos. A principal tarefa do pesquisador era, assim, acompanhar tais momentos de modo que, a partir deles, fossem levantados dados que permitissem algumas reflexões acerca da inclusão de canções de diferentes povos e culturas no repertório escolar e/ou coral não indígena.

43Pesquisa intitulada “Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas” e desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Música da USP, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Salles. 44Há, entre os Guarani que vivem no Brasil, uma divisão em Guarani Mbya, Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá. Tais etnias diferem entre si quanto à língua, quanto à religião, quanto à música etc. Neste trabalho, tratamos dos Guarani Mbya, assim, quando houver referência aos Guarani, deve-se subentender “Guarani Mbya”. 45 Aldeia localizada no bairro de Parelheiros, zona sul da cidade de São Paulo. 46Tradução literal: “meu avô”. Nome também pelo qual são chamados os xamãs (MACEDO, 2013, p. 190). No entanto, Elias Vera, cacique e xeramoĩ da aldeia Tenondé Porã, traduz “xeramoĩ” como “pajé”. 47 Centro comunitário localizado no bairro de Santo Amaro, zona sul da cidade de São Paulo.

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Com os objetivos da pesquisa bem definidos, foi preciso traçar um percurso metodológico que permitisse que tais metas de trabalho fossem alcançadas, e sobre este caminho é que este artigo pretende refletir.

Ainda que os protagonistas do trabalho fossem os dois grupos infantis, havia ainda um terceiro grupo que, inevitavelmente, envolveu-se com a pesquisa: os adultos guarani48 com quem me relacionei durante o trabalho. Desse modo, a pesquisa contemplou três grupos de trabalho que ora conversavam entre si e se relacionavam, ora eram trabalhados separadamente: o coro infantil guarani, o coro infantil não indígena e o grupo de adultos guarani.

Essa dinâmica exigiu que a metodologia fosse pensada considerando as especificidades de cada grupo e de cada combinação que surgia nos diferentes momentos do trabalho. Isto é, a pesquisa, como um todo, tinha caráter etnográfico e etnomusicológico, mas a escolha das ferramentas que seriam utilizadas (entrevista aberta e semiestruturada, grupos focais, art-based research49 e observação participativa) era feita considerando a especificidade do grupo e da situação. Além disso, havia momentos em que as atividades eram promovidas e conduzidas por mim; havia outros que, considerando a dinamicidade das relações humanas, escapavam àquilo que eu havia planejado; e havia ainda aqueles em que o planejado era justamente que não houvesse planejamento, metodologicamente falando.

Por conta disso, a metodologia de trabalho não poderia estar engessada, mas deveria ser plástica, flexível e, muitas vezes, elaborada instantaneamente. Contudo, é relevante notar que não se trata de uma metodologia solta, despreparada e pensada ao acaso; ao contrário, trata-se de pensar que o rigor de uma pesquisa está justamente na sensibilidade de moldar, alterar ou até mesmo inventar os caminhos e ferramentas metodológicos em função da dinamicidade das relações

48 Estes eram pais, tios ou irmãos das crianças indígenas participantes. Todos parentes diretos e indiretos do xeramoĩ Elias. 49 Pesquisa baseada nas artes.

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construídas entre os grupos pesquisados e o pesquisador. É preciso, aponta o sociólogo,

[...] tentar, em cada caso, mobilizar todas as técnicas que, dada a definição do objeto, possam parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas de recolha dos dados, são praticamente utilizáveis. [...] Em suma, a pesquisa é uma coisa demasiado séria e demasiado difícil para se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor, e se ficar privado deste ou daquele recurso entre os vários que podem ser oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais da disciplina – e das disciplinas vizinhas: etnologia, economia, história. Apetecia-me dizer: “É proibido proibir” ou “Livrai-vos dos cães de guarda metodológicos”. Evidentemente, a liberdade extrema que eu prego, e que me parece ser de bom senso, tem como contrapartida uma extrema vigilância das condições de utilização das técnicas, da sua adequação ao problema posto e às condições de seu emprego (BOURDIEU, 1989, p.26, grifos do autor).

No entanto, a compreensão de uma metodologia dinâmica, que se vai fazendo na medida em que o trabalho vai-se desenhando, só tomou forma quando eu já estava em campo.

Dentre muitos exemplos de situações que alteraram o trajeto do trabalho e que me fizeram repensar a metodologia50 (e que são narrados no trabalho original), o primeiro sobre o qual discorro aqui aconteceu logo após o primeiro encontro entre os dois grupos corais na aldeia. O planejamento original que eu fizera consistia em, logo após este encontro, voltar à aldeia, sozinha, para recolher algumas canções guarani. Em seguida, eu as ensinaria ao grupo não indígena para que depois os dois corais cantassem juntos em algum outro momento ao final da pesquisa. No entanto, ao contar às crianças não indígenas que voltaria à Tenondé Porã, quase todas pediram para ir comigo. O argumento usado para voltarem à aldeia era que gostariam de, em suas palavras, rever os amigos que

50 Estes e outros exemplos são narrados no trabalho original.

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fizeram. Assim, organizaram uma lista para que fossem pequenos grupos por vez.

Ainda que, no planejamento original eu tivesse a intenção de que nestes poucos encontros as crianças não indigenas recolhessem alguns dados comigo registrando-os por meio de fotos e vídeos e em seus diários de campo51, só pude perceber a relevância da presença delas nas visitas futuras à aldeia quando elas já estavam lá. Isso ficou evidente quando, logo no encontro seguinte (que faria sozinha, mas acabei acompanhada), pedi às crianças guarani que registrassem a primeira visita em desenhos e, ao contrário do primeiro painel realizado com as crianças não indígenas, os Guarani não registraram um momento sequer da primeira visita que o grupo não indígena fizera. No entanto, a presença de algumas crianças não indígenas neste novo encontro, fez com que as crianças de ambos os grupos criassem laços que a primeira visita não havia dado conta de criar: as crianças pintaram umas os rostos das outras, perguntaram seus nomes, cantaram e, ao final, prometeram-se que se veriam mais vezes.

Após esse episódio, repensei a metodologia:

[...] de uma metodologia para as crianças, [...] passamos a uma metodologia com as crianças, uma metodologia da qual as crianças, guarani ou não, pudessem fazer parte efetivamente como sujeitos atuantes no trabalho que tratava delas mesmas (FRAGOSO, 2015, p. 152),

e fazendo com que as experiências não somente sociais, mas também musicais que as crianças compartilharam entre si fossem mais significativas não somente para a pesquisa, mas, principalmente, para os grupos envolvidos.

Além disso, em se tratando de uma pesquisa que implica um trabalho de campo como é o caso da pesquisa etnográfica, não adiantava que a relação de confiança a que

51 Cada criança não indígena tinha um diário de campo onde faziam seus registros individuais.

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todo pesquisador almeja fosse estabelecida somente entre mim e os Guarani. Era preciso que as crianças envolvidas no trabalho também construíssem relações de confiança entre si, e, para tal, era primeiramente necessário dar-lhes voz, de modo a escrever junto comigo as linhas do trabalho que, mais uma vez, tratava delas. Assim, mudadas as configurações e a periodicidade dos encontros entre os grupos infantis, a metodologia passou a exigir não somente outras ferramentas, mas também diferentes formas de manipular aquelas pensadas anteriormente, alterando, inclusive, a maneira como eram compreendidos os papeis que as crianças desempenhavam no trabalho, passando de objeto de pesquisa para sujeito desta. Isso significa, ao final, perceber uma criança atuante,

que tem papel ativo na constituição das relações sociais em que se engaja [...]. [Que] interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papeis que assume e de suas relações (COHN, 2009, p. 28).

Paralelamente, o trabalho feito de recolha de canções guarani também fez-me refletir sobre a flexibilidade do trabalho metodológico. Em campo, a primeira impressão (que mais tarde entendi ser equivocada) que tive era que as crianças guarani pareciam sempre pouco dispostas a me ensinar alguma canção, e isto prejudicava um dos objetivos traçados que consistia em, justamente, recolher canções guarani que pudessem ser usadas em sala de aula.

Certa vez, porém, mostrei às crianças guarani uma das canções que eu havia aprendido para o primeiro encontro entre os coros52. Animadas, disseram-me: “Canta outra”. Mas eu só sabia uma. Em seguida, começaram a cantar uma canção que eu não conhecia53. Pedi que me ensinassem, mas o que consegui foi somente a gravação em vídeo delas cantando.

52 Kyrĩgue’i peju jajerojy (FRAGOSO, 2015, p. 62, 85) 53 Apykaxu xiĩ’i oveve (ibidem, p. 71-72, 87-88)

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Na visita seguinte, não havia conseguido ainda aprender a letra da última canção, mas sabia tocar sua melodia no teclado. Empolgadas, pediram para eu tocar outra canção, mas eu só sabia esta e a anterior. Então, deixaram-me gravar mais uma. Com o tempo, na medida em que ia me familiarizando com a língua, eu já era capaz de cantar uma letra ou outra e, então, as crianças iam me corrigindo. Os adultos também se envolveram neste processo, levando-me à gratificante aprovação orgulhosa do xeramoĩ Elias, tanto por saber a canção quanto por conseguir pronunciar e traduzir seu texto corretamente.

O porquê, resumidamente, de os Guarani não me ensinarem as canções foi-se revelando aos poucos por meio de brincadeiras das quais eu participava e do convívio com eles, até que, somente por este convívio, pude compreender que eles me ensinavam como haviam aprendido e da maneira como concebiam a aprendizagem: pela vivência, como descreve Jera Poty Mirĩ:

[...] tudo se aprende, tudo se sente com a família, na casa, na vivência. As crianças são pessoas que vão copiando as outras pessoas mais adultas do seu lado. As crianças são pessoas que vão copiando as outras pessoas mais adultas do seu lado. Quando fui em uma aldeia do Guarani Mbya lá no Paraguai, vi uma coisa que já não vejo mais aqui na Tenonde e é uma coisa muito especial, muito especial mesmo. As mulheres mais velhas tinham o yrupë'i, que é um tipo de peneira, onde se coloca o milho depois de socado, e então vai mexendo, assopra... As mulheres adultas tinham um pilão grande e as meninas pequenininhas tinham cada qual sua peneira pequenininha, sua madeira pequenininha e seu pilão pequenininho. Elas faziam exatamente o que a mãe fazia. A mãe do lado não falava “é assim!”, ou “não, não é assim!”. A criança ficava em silêncio, só observando como que desce a madeira, como que mexe o milho na cuia, no pilão pra lá, pra cá. O Guarani aprende vendo, assim... (Entrevista realizada por HAIBARA e MACEDO, mas ainda não publicada54).

54Entrevista ainda não publicada realizada por Alice Haibara, Joana Cabral e Valéria Macedo em 18 de dezembro de 2013.

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Certa vez, por exemplo, perguntei a Ueliton Tupã Mirĩ Ju como aprendera a tocar violão. “Eu vi. Vi e aprendi”, respondeu-me ele. Nesta declaração, “ver e aprender” não significa somente “olhar, imitar para, então, aprender”; mas, mais que isso, traduz-se em “viver e aprender” (FRAGOSO, 2015, p. 178). Neste sentido, as crianças guarani me envolviam em situações em que, pela vivência, pelo viver eu pudesse ver e aprender. Assim, entendi que, para os Guarani, o “mostrar como se faz” era o próprio fazer (MACEDO, 2013, p. 206), de modo que passei a fazer mais e, portanto, a aprender mais.

No entanto, mesmo a descoberta de como “aprender a aprender” só poderia acontecer em campo, afinal, era necessário que primeiramente eu apreendesse a cultura guarani para que chegasse a essa conclusão; aliás, tal apreensão, igualmente, só se viabilizaria pela vivência, pelo viver.

O mesmo parece acontecer com o trabalho metodológico de uma pesquisa etnográfica e etnomusicológica. Estando disposto a tratar com seriedade o trabalho a que se foi proposto realizar, é preciso ir além das gravações das canções e das conversas sobre música. Parece-me válido, neste sentido, considerar que as experiências individuais dos envolvidos e a junção destas e de seus diferentes modos de perceber o mundo é que viabilizam e justificam as escolhas metodológicas. Tais escolhas, porém, precisam ser sensíveis tanto às experiências dos indivíduos quanto aos próprios indivíduos participantes deste jogo de trocas, aprendizados e vivências.

Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. (5. Ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. COHN, Clarice. Antropologia da criança. (2. Ed). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. FRAGOSO, Daisy Alves. Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas. Dissertação de mestrado. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2015.

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MACEDO, Valeria. De encontros nos corpos guarani. Ilha – Revista de Antropologia, UFSC, Santa Catarina, v. 15, n. 2, p. 181-210, jul./dez. 2013. Agradecimentos

Ao Elias Vera, Iara e suas crianças; às crianças do Tico-tico Coral Infantil; ao Centro Comunitário Verde Oliva; à Carob House pela contribuição com esta pesquisa. Ha’evete!

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Regência coral infanto-juvenil: desafios e dificuldades na construção de competências e habilidades

ANA LÚCIA IARA GABORIM MOREIRA ECA/USP - [email protected]

MARCO ANTONIO DA SILVA RAMOS

ECA/USP - [email protected]

Regência Coral Infantojuvenil pode ser compreendida como uma prática musical que se constrói sobre

processos de ensino-aprendizagem e se consolida na performance artística. Essa área de atuação exige um amplo domínio de competências e habilidades diversificadas, principalmente nos campos musical, artístico e pedagógico. Ao nos referirmos a esse domínio, entendemos que:

competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que usamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Ser competente não é apenas responder a um estímulo e realizar uma série de comportamentos, mas, sobretudo, ser capaz de, voluntariamente, selecionar as informações necessárias para regular sua ação ou mesmo inibir as reações inadequadas. (MOSÉ, 2013, p.69, grifo nosso).

Tendo por base estas definições, pode-se inferir que as competências e habilidades no campo da Regência demandam o estudo de um referencial teórico consolidado somado a uma série de experiências de âmbito prático. Contudo, quando um trabalho coral se inicia, exigindo do regente uma posição de liderança frente a um grupo infantojuvenil, surge uma série de dificuldades e desafios até então desconhecidos e pouco discutidos no campo de atuação da regência – que é, ao mesmo

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tempo, bastante diverso e abrangente. Muitas vezes, o regente se vê diante de um projeto coral que traz em si uma forte responsabilidade social, no qual tomadas de decisão são necessárias - o que lhe exige, ainda, o cumprimento de funções administrativas, burocráticas e de gerência de relações humanas – e para as quais, geralmente, não está preparado.

Diante dessa problemática e da escassez de bibliografia nessa área, elaboramos uma pesquisa de Doutorado que traz uma abordagem teórico-prática da regência coral infantojuvenil, discutindo essencialmente a própria Regência, a Técnica Vocal e Educação Musical – saberes que consideramos essenciais a esse campo de investigação. Por fim, analisamos a experiência de um projeto de extensão universitária que vêm demonstrar como um trabalho de educação musical pelo canto coral pode ser estruturado, constituindo uma pesquisa-ação. De forma bastante pontual, abordaremos a seguir alguns itens fundamentais dessa discussão levantada pela pesquisa.

Contexto – dificuldades e desafios

A investigação parte de uma pesquisa social realizada com regentes corais (oriundos das cinco regiões brasileiras) que discursam sobre a realidade que têm enfrentado em seu trabalho junto aos coros infantojuvenis. De maneira geral, esses problemas estão ligados a dois principais fatores: a formação técnico-musical do regente e a estrutura que é oferecida para o funcionamento dos coros.

Quanto aos elementos estruturais, verificamos em nossa pesquisa que cada projeto coral surge a partir de uma necessidade, uma determinação ou uma motivação, que pode ser pessoal ou de um grupo. Essas variantes geralmente determinam o início de um projeto, que nem sempre tem referências para sua realização – e isso ocorre com muita frequência em nosso país. Dessa forma, os coros se configuram de maneiras muito diferenciadas, com características próprias, mas nem sempre com uma estrutura que atenda às suas necessidades, e assim muitos grupos acabam se dissolvendo antes mesmo de apresentarem resultados satisfatórios. Uma das participantes de nossa pesquisa enfatiza que um dos

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maiores desafios atuais do regente brasileiro é “encontrar apoio público e privado para manter o trabalho com dignidade, pois o ambiente transforma o meio, e sem condições básicas de estrutura não conseguimos realizar um trabalho com qualidade” (regente de São Paulo, SP). Diante disso, os elementos que consideramos essenciais para o estabelecimento de qualquer tipo de coro – em seus pressupostos vocais, musicais e educacionais – se resumem em: 1) uma equipe de trabalho, que auxilie o regente (principalmente assistente de regência, instrumentista e monitores para atender às necessidades das crianças, podendo também incluir um preparador vocal e um profissional das Artes Cênicas ou da Dança para trabalhar a expressão corporal); 2) espaço físico adequado – levando em conta os seguintes fatores: o tamanho do local (suficiente para o número de coralistas), a limpeza, a ventilação, a iluminação, a temperatura, a acústica (levando em consideração a reverberação e a influência de sons externos), o mobiliário (incluindo cadeiras apropriadas para que os coralistas possam se sentar confortavelmente e em uma posição apropriada para cantar), a organização dos materiais e até mesmo a decoração do local, para proporcionar aos participantes do coro uma sensação de bem-estar; 3) periodicidade e duração dos ensaios adequada à realidade e às necessidades do grupo, sendo que, de acordo com a nossa pesquisa, um tempo de 120 a 150 minutos semanais é considerado bastante razoável para a realização dos objetivos do coro; 4) a escolha do repertório adequado, que leve em conta as possibilidades vocais infantis e os conhecimentos musicais a serem desenvolvidos pelo grupo. E, vinculada a todos esses elementos, uma previsão de recursos financeiros suficientes para a provisão de materiais, de forma que o projeto possa se manter com dignidade, trazendo satisfação aos seus participantes e assim se desenvolva com plenitude em âmbito musical e educacional.

Saberes e conhecimentos na formação do regente

No que diz respeito à formação, é importante frisar que “são poucos os cursos disponíveis para preparação, capacitação e

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aprimoramento de regentes de coro infantojuvenil” no Brasil, conforme ressalta um regente de Curitiba(PR), participante de nossa pesquisa. Esse é um problema de grandes proporções que ultrapassa as delimitações de uma tese, portanto, o que nos propusemos a realizar foi um estudo teórico aprofundado sobre os saberes e conhecimentos que, a nosso ver, deveriam fazer parte da formação de qualquer regente coral. Esse estudo se inicia pela técnica de Regência, que engloba: o estabelecimento da postura e a consciência corporal; a independência e a coordenação dos movimentos no gestual (partindo do pulso e expandindo para a automatização dos padrões métricos e de outros gestos que indicam expressividade e induzem o caráter da obra); o uso da expressão facial e do olhar; a condução da respiração; a comunicabilidade entre regente e coralistas; a percepção vocal e musical; o domínio do texto – em seus aspectos lingüísticos e idiomáticos; a eficácia na organização e condução do ensaio. Nesse aspecto, é importante que haja um planejamento a curto e a longo prazo, na estruturação dos objetivos a serem alcançados pelo coro.

Outro aspecto fundamental na formação do regente que se dedica à área coral é a sua própria construção na área do Canto, ou seja, o domínio da Técnica Vocal. Carlos Alberto Figueiredo (2006, p. 11) escreve sobre esse híbrido papel do regente e as demandas de sua função:

ao ter que lidar com vozes, é necessário que o regente coral experimente em si mesmo as várias técnicas existentes para uma emissão vocal consciente. Assim sendo, um estudo de técnica vocal individual, de preferência com um professor experiente e aberto a diferentes tendências, é absolutamente necessário para um regente coral (FIGUEIREDO, 2006, p.11).

É preciso considerar que o regente geralmente é o modelo vocal a ser seguido, pois os coralistas em geral não têm conhecimento sobre a técnica vocal. Daí surge a concepção do regente-cantor, que deve ser capaz de executar com segurança e destreza qualquer trecho musical que precise ser cantado

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pelos coralistas, e ao mesmo tempo, capaz de ensinar como se canta. No caso do coro infantojuvenil, essa responsabilidade é ainda mais séria, pois as vozes ainda estão em formação e facilmente tendem à imitação e reprodução.

Assim, para que possa trabalhar com vozes em desenvolvimento, o regente precisa ter conhecimentos básicos de Fisiologia Vocal; saber os fundamentos da emissão vocal (que dizem respeito à respiração, fonação, ressonância e articulação) e conhecer as possibilidades e limites da voz infantil, para que possa estruturar um trabalho de educação musical pela voz de modo eficiente. Contudo, muitos regentes participantes de nossa pesquisa afirmaram ter dificuldades com relação à Técnica vocal, relatando não saberem “como desempenhar um bom trabalho vocal no coro infantojuvenil” (regente de João Pessoa – PB) e não se sentirem capacitados em relação ao trabalho que envolve “preparação (vocal) correta, conhecimentos fisiológicos e vocais da criança em seu pleno desenvolvimento” (regente de Serra – ES). Diante dessa realidade, procuramos apresentar na tese uma série de exercícios de preparação vocal de forma didática e ao mesmo tempo lúdica, visando o entendimento do regente enquanto cantor e também como educador musical. Assim, concebemos o regente como um educador em sua essência e partimos para discussões no campo da Educação Musical, integrando o conjunto de saberes imprescindíveis ao regente coral infantojuvenil.

Em nossa compreensão psicopedagógica da Regência, não nos atemos a teorias ou teóricos específicos da área de Educação Musical, o que nos daria uma visão parcial e talvez limitada das possibilidades educacionais de um coro, mas estudamos com profundidade as relações entre essa área e o campo da Regência. A regente americana Doreen Rao (1990) nos apresenta uma definição bastante precisa dessa relação:

a educação musical através da performance coral é um meio de ensinar às crianças como fazer e como compreender música; um meio de pesquisar com profundidade os elementos musicais, forma e estilo expressos nas obras que estão sendo estudadas; um meio de ensinar habilidades

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vocais, habilidades de leitura e conhecimentos musicais, e um meio de apreciar a música em si mesma (...) A educação musical realizada nos ensaios enfatizam o desenvolvimento da musicalidade – a compreensão musical e a prática vocal combinadas com a performance artística (RAO, 1990, p.6).

Atentamos para o fato de que não estamos tratando de uma relação inédita em nosso país, de forma que deveríamos considerar tudo o que já fora vivenciado em tempos anteriores, avaliar o que pôde ser construído com essa experiência e diante disso, nos valermos daquilo que é mais positivo e significativo nessa relação – que, indubitavelmente, precisa ser repensada e discutida em nosso contexto. Após 40 anos sem educação musical nas escolas, essa relação entre Canto, Coral e Educação se desestruturou, de forma que cantar em um coro hoje é uma experiência reservada a uma pequena parte de nossa população. Por isso, é comum a falta de valorização ou o desinteresse por essa atividade em âmbito geral – o que é uma queixa recorrente na fala dos regentes em atividade. Na prática, muitos regentes admitem que não têm embasamento suficiente na área de Educação Musical, embora reconheçam que essa lacuna lhes traga uma série de dificuldades e desafios no trabalho coral.

De maneira suscinta, podemos destacar algumas concepções nessa área que orientam o trabalho do regente. Primeiramente, a Educação Musical tem como alvo a compreensão musical do educando, isto é, estimular a função crítica, a análise e a reflexão, conceber a música como linguagem e apropriar-se dela como meio de expressão a partir da escuta, conforme nos coloca Sekeff (2002, p.136). Contudo, o processo de ensino-aprendizagem musical não se limita à formação musical, mas visa contribuir para a formação integral do ser humano. Conduzir as crianças a cantar é, portanto, proporcionar-lhes uma experiência significativa, que contribui para a sua própria formação integral: enquanto cantam, os coralistas se desenvolvem intelectual, artística, emocional e socialmente.

Educar musicalmente também implica em proporcionar ao educando uma experiência estética que integra sentidos,

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razão, sentimento e imaginação (SEKEFF, 2002, p.120). Os pesquisadores ingleses Welch e Adams, nesse sentido, destacam a afetividade como um componente fundamental na educação musical: “o aspecto afetivo da música está intrinsecamente entrelaçado com nossas experiências e atitudes conscientes em relação à música. A emoção é um poderoso motivador no aprendizado musical” (WELCH;ADAMS, 2003, p.4). Os pesquisadores destacam ainda que a educação musical envolve tanto a educação na música quanto pela música e apontam a importância de uma prática musical “regular, sistemática e estruturada” (id., p.10) orientada pelo professor. Dessa forma, faz-se uso constante da memória, a leitura se torna mais fluente, os alunos se aproximam de modelos musicais consistentes, os objetivos do estudo se tornam mais claros e os alunos participam de seu desenvolvimento enquanto performers, na medida em que promovem a reflexão sobre seu próprio processo de aprendizagem e criam estratégias para aperfeiçoá-la.

Na área do canto coral, Doreen Rao (1990) estabelece, como uma das premissas para seu trabalho, que toda a criança tem uma habilidade natural para a prática musical, em uma proposta que não escolhe crianças consideradas mais “afinadas” ou “talentosas”. Diante disso, o que podemos ter como fundamento em nosso trabalho é justamente o aperfeiçoamento contínuo do regente, enquanto educador que domina a música e enquanto intérprete que domina a prática educativa, para que possa educar musicalmente em todos esses aspectos mencionados com competência e habilidade, superando suas dificuldades e desafios.

A Regência Coral Infantojuvenil pressupõe, ainda, o conhecimento de exercícios, dinâmicas e atividades de âmbito prático que precisam ser preparados, necessariamente, para que se estabeleça a rotina de ensaios e apresentações de um coro. Porém, isso só pode ser conquistado na vivência direta junto a um grupo e é algo que transcende tudo aquilo que poderia ser escrito em uma tese. Procuramos apresentar em nossa pesquisa, com o máximo de detalhamento, uma experiência concreta realizada em um contexto universitário,

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que será publicada posteriormente. Devido às delimitações desse artigo, o que podemos concluir é que a Regência, a Técnica Vocal e a Educação Musical constituem uma tripla gama de conhecimentos que se somam e se fundem na formação e na atuação de um regente. Quanto mais preparo (isto é, estudo) puder ser realizado nessas áreas, maior será a segurança do regente frente a um coro infantojuvenil e mais consistente será o trabalho artístico-musical a ser desenvolvido, mesmo que a prática ainda seja algo a se construir.

Algumas considerações

Diante do exposto, podemos considerar que a experiência do regente e seu nivel de conhecimento musical são edificados ao longo de anos de estudo e transparecem no resultado musical que seu grupo apresenta. Esse resultado, por sua vez, é construído ao longo de muitos ensaios, em um ambiente de aprendizagem onde há a aplicação prática dos conhecimentos em questão: Regência, Técnica Vocal, Educação Musical. O regente capacitado conduz seu grupo à transformação e ao crescimento, enquanto ele mesmo evolui artística e musicalmente. Em resumo, podemos afirmar que “os gestos físicos e ferramentas utilizados por um regente são meramente as manifestações externas de uma visão artística mais ampla”. Porém, não causam grande efeito “sem a habilidade inata de inspirar, motivar e educar” (HOLDEN, 2003, p.16).

Referências Bibliográficas

FIGUEIREDO, C.A. Reflexões sobre aspectos da prática coral. In: LAKSCHEVITZ, Eduardo (org.). Ensaios. Olhares sobre a música coral brasileira. Rio de Janeiro: Oficina Coral, 2006, p. 3-28. HOLDEN, R.The technique of conducting. In: BOWEN, J.A. (ed.). The Cambridge companion to conducting. Cambridge University Press, 2003, p.3-16. MOSÉ, V. A escola e os desafios contemporâneos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

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RAO, D. (ed.).Choral music for children: an annotated list. Reston, Virginia (USA): R&L Education, 1990. SEKEFF, M. L. Da música, seus usos e recursos. São Paulo: Unesp, 2002. WELCH; G.; ADAMS, P. How is music learning celebrated and developed? Southwell, Notts, UK: British Educational Research Association, 2003.

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As performances da Paixão segundo São João de J.S.Bach de Furio Franceschini (1880-1976) e de Martin Braunwieser (1901-1991) em São Paulo: acervos e pesquisa documental

ANA PAULA DOS ANJOS GABRIEL ECA/USP - [email protected]

SUSANA CECÍLIA IGAYARA-SOUZA ECA/USP - [email protected]

presente artigo detalha a pesquisa documental em acervos realizada para elaboração de um estudo de caso

que integra a dissertação de mestrado Furio Franceschini (1880-1976) e Martin Braunwieser (1901-1991) no Brasil: um estudo das práticas interpretativas de dois regentes corais imigrantes na cidade de São Paulo. A pesquisa de mestrado constitui um estudo das práticas interpretativas relacionadas ao repertório coral europeu que Franceschini e Braunwieser, introduziram no país, e sua influência nas práticas corais brasileiras de hoje. No estudo de caso, exploramos com maior profundidade as práticas interpretativas relacionadas à interpretação dos maestros da Paixão Segundo São João BWV 245 de Johann Sebastian Bach no Brasil. Essas performances, ocorridas entre as décadas de 1940 e 1960, desempenharam um papel importante na difusão e recepção do repertório coral europeu no Brasil, bem como da música vocal de J.S.Bach.

A pesquisa documental em acervos constituiu um procedimento essencial aos propósitos dessa pesquisa. Apesar de Furio Franceschini e Martin Braunwieser terem sido importantes regentes corais estrangeiros atuantes na cidade de São Paulo, este aspecto da atuação profissional de ambos é relativamente pouco exposto e explorado em trabalhos acadêmicos, assim como suas práticas interpretativas.55 Com a

55 Franceschini possui bibliografia sobre suas interpretações musicais ao órgão (Aquino, 2000) e sobre aspectos composicionais de missas que compôs em vida (Duarte, 2012), além de trabalhos de cunho biográfico como Franceschini (1966) e Oliveira (1980), que destacam os cargos de mestre de capela e organista que exerceu junto à Catedral da Sé de São Paulo. Quanto a Martin

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escassez de bibliografia, o estudo de fontes históricas relacionadas a tais práticas foi imprescindível para elaboração da dissertação de mestrado e do estudo de caso.

A consulta aos acervos e o estabelecimento de fontes

A documentação artística de ambos os maestros foi distribuída por diversos acervos da cidade de São Paulo, tanto acervos particulares quanto institucionais, em que receberam tratamento arquivístico variado – no caso de alguns acervos, há a ausência de qualquer tratamento. Não tivemos à disposição, portanto, um conjunto de fontes de pesquisa organizado a priori, cabendo-nos a tarefa de realizar a localização da documentação de Franceschini e Braunwieser em acervos56, e a seleção, organização e estabelecimento de um conjunto fontes. Problemas comuns a acervos musicais no Brasil, como erros ou ausência de catalogação, mal acondicionamento da documentação, ausência ou equívocos na descrição de fontes e a possibilidade de perda ou extravio de itens foram também recorrentes no decurso desta pesquisa.

A maior parte dos acervos visitados têm composição heterogênea, com itens como cartas, fotos, anotações de estudo, partituras utilizadas em performances, jornais, programas de concerto, livros sobre música e manuscritos de composições próprias reunidos em um único local. O conjunto de fontes selecionadas para a pesquisa é exposto nas Tabelas 1 e 2.

Braunwieser, Bispo (1991) ressalta a vida profissional do maestro enquanto professor de canto orfeônico, compositor, instrumentista e integrante da equipe das Missões de Pesquisas Folclóricas (1938); a tese de doutorado de Álvaro Carlini (2000) é centrada também no trabalho desenvolvido junto às Missões; Goldenbaum (2014), dedica uma parte da tese a Braunwieser, tendo como enfoque sua atuação como compositor. É importante ressaltar que toda a bibliografia mencionada, tanto no caso de Franceschini quanto de Braunwieser, apresenta apenas breves relatos de concertos corais realizados pelos regentes no Brasil, com poucas referências específicas às práticas interpretativas empregadas. 56 Os acervos consultados estão listados no item “referências documentais” do presente artigo.

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Performances da Paixão regidas por Furio Franceschini

Datas 19 de maio de 1944, repetição dia 22 de maio de 1944

Local Theatro Municipal de São Paulo

Entidade Promotora

Sociedade de Cultura Artística de São Paulo

Grupos envolvidos

Orquestra Sinfônica Municipal (parte do grupo), Coral Paulistano, coralistas amadores

Conjunto de fontes documentais

Diários de leituras e anotações pessoais do maestro; artigos, críticas, notícias e fascículos de jornais e revistas; programa e ingressos de concerto assistido por Franceschini em 1925 em Paris; programa do concerto de Franceschini no Brasil; edição de Franceschini das partes do coro (1943); cópia digital da edição de F.A.Gevaert da Paixão Segundo São Mateus BWV244 de J.S.Bach; rascunho de carta destinada a Esther Mesquita; Livro Breve Curso de Análise Musical e Conselhos de interpretação (1933), de Furio Franceschini;

Tabela 1: informações gerais sobre as performances da Paixão de Furio Franceschini, e conjunto de fontes estabelecido para a pesquisa

Performances da Paixão regidas por Martin Braunwieser

Datas 29 e 30 de maio de 1950; 27 de abril de 1962; 31 de maio de 1963

Locais Teatro Cultura Artística (1950); Auditório da Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae (1962); Capela das Cônegas de Santo Agostinho (1963)

Entidades Promotoras

Sociedade de Cultura Artística (1950) e Sociedade Bach de São Paulo (1962 e 1963)

Grupos envolvidos

Conjunto vocal da Sociedade Bach, ampliado, músicos da Orquestra Sinfônica Municipal (1950); Conjuntos instrumental e vocal da Sociedade Bach de São Paulo (1962, 1963)

Conjunto de fontes

Programas de concerto; partes instrumentais feitas pelo maestro; edição Wiener

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documentais Philharmonischer Verlag da obra; exemplares das partes corais de Furio Franceschini (1943); anotações pessoais sobre a obra; críticas e notícias de jornal; relatórios administrativos da Sociedade Bach (CARLINI, 2000). Foto identificada como possível imagem do concerto de 1950.

Tabela 2: informações gerais sobre as performances da Paixão de Martin Braunwieser, e conjunto de fontes estabelecido para a pesquisa

A comparação entre as tabelas 1 e 2 evidencia que não foram encontrados os mesmos tipos de documentação para ambos os maestros. Essas diferenças decorrem não apenas de diferentes políticas de doação e de conservação de acervos, como também do fato de tratarem-se de acervos de dois maestros de carreira profissional, personalidades e hábitos de estudo distintos.

Conforme exposto nessas tabelas, não foram encontrados registros fonográficos dessas apresentações, e o conjunto de fontes estabelecido para o estudo de caso é composto principalmente por partituras e fontes bibliográficas. O estabelecimento desse conjunto de fontes teve como fundamentação metodológica Certeau (1982), que afirma:

Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em "documentos" certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. [...] O material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente. (CERTEAU, 1982, p.80)

Essas considerações de Certeau são especialmente importantes para o manuseio de fontes bibliográficas e partituras, que foram transformados em documentos históricos

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para a pesquisa – em outras palavras, sofreram um deslocamento de sua função inicial para uma nova função no contexto do trabalho acadêmico. Os programas de concerto, por exemplo, que tinham por função original informar a plateia dos eventos, transformam-se em documentos históricos por meio dos quais se pode decodificar algumas das práticas interpretativas empregadas, como a instrumentação utilizada, a dimensão dos conjuntos vocais e instrumentais participantes, a língua em que foi cantada a obra, a edição utilizada, entre outras práticas. Sofreram transformação semelhante itens como diários, anotações pessoais, artigos, críticas, anúncios e notícias de jornal, entre outros.

Fig. 1: Capa de programa de concerto da Paixão de 29 e 30 de maio de 1950, regido por Martin Braunwieser. Arquivo Histórico do Teatro Municipal de São

Paulo

Entretanto, esse deslocamento de função foi especialmente evidente no caso das partituras. Em nossa experiência de consulta a acervos, enquanto que itens como partituras de composições próprias são frequentemente percebidos e valorizados como fontes de pesquisa – documentos ligados à atividade de criação musical- frequentemente as partituras de

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performance que não são composições próprias–relacionadas, portanto, à interpretação musical – não são consideradas fontes de pesquisa, mesmo pelos agentes que estão em contato direto com os acervos, como proprietários ou responsáveis pela documentação.

No caso de Franceschini e Braunwieser, que produziam suas próprias partituras para performance, a relevância desse tipo de fonte para pesquisa é ainda maior. As partituras dos músicos das performances da Paixão Segundo São João contém indicações de autoria dos regentes de aspectos interpretativos variados, como andamento, fraseado e articulação, assim como marcações de estudo e de ensaio de músicos em algumas das partituras, que também denotam aspectos específicos da interpretação da obra.

Fig.2: Partitura para Violino I de trecho da Paixão feita à mão por Martin Braunwieser, Acervo da Família Braunwieser

O critério de seleção de fontes foi a adequação do conteúdo da fonte ao assunto de pesquisa. Assim, foram selecionadas apenas fontes cujo conteúdo estivesse direta ou indiretamente relacionado às práticas interpretativas empregadas nas performances em questão da Paixão. Segundo Beard & Cloag (2005),

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O estudo das práticas interpretativas envolve a interpretação de instruções para performance, problemas editoriais e de notação, e interpretação de tratados e outros documentos históricos que se relacionam à performance da música. (BEARD & GLOAG, 2005, p. 93)

Tomando esta definição como base, foi selecionada somente documentação que contemplasse ao menos um desses três aspectos abordados por Beard e Gloag (2005). Essa definição abrangente permite-nos estudar desde questões interpretativas relacionadas a articulação, dinâmica e fraseado, por exemplo, como também escolhas de edições e de texto, composição e tamanho de coros e orquestras.

Fig.3: Trecho do diário nº20 (FF/D/0020) de Furio Franceschini sobre a Paixão Segundo São João. Sem paginação ou data. Acervo Furio Franceschini da

Biblioteca da ECA- USP

O estudo do conjunto de fontes estabelecido evidentemente demanda do pesquisador um olhar crítico e procedimentos como a comparação de fontes para correta interpretação dos documentos, que estão sujeitos a erros de informações ou de interpretação dos fatos, ou à subjetividade e ao juízo de valor dos autores dos textos. Entretanto, o correto

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manuseio dessas fontes possibilita um importante resgate de práticas interpretativas das performances, especialmente diante da ausência de gravações das apresentações e da escassez de trabalhos acadêmicos a respeito das práticas interpretativas de ambos os maestros estudados.

Referências Documentais

Arquivo Histórico do Theatro Municipal de São Paulo Acervo Furio Franceschini da Biblioteca da ECA – USP Acervo Furio Franceschini da Biblioteca do IA-UNESP Acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga Hemeroteca Digital Brasileira Acervo Digital do jornal O Estado de São Paulo Acervo Digital Folha de São Paulo Acervo pessoal do maestro Samuel Kerr Acervo da Família Braunwieser

Referências bibliográficas

AQUINO, J. Furio Franceschini e o órgão: Relação constante preferencial voltada à música sacra, 2v. Tese de Doutorado em Música. Universidade de São Paulo, 2000. BEARD J., GLOAG K. Musicology: the key concepts. New York: Routledge, 2005. BISPO, Antônio Alexandre. Martin Braunwieser: Nova objetividade, humanismo clássico e as tradições musicais do Oriente e do Ocidente na Pedagogia e na criação artística. Musices Aptatio/Liber Annuarius 1991, ed. J. Overath. Roma: Consociatio Internationalis Musicae Sacrae, 1991. CARLINI, A. A viagem na viagem: maestro Martin Braunwieser na Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de São Paulo (1938): diário e correspondências à família. Tese de Doutorado em História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. CERTEAU, M. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. RINK, John. Musical Performance: A Guide to Understanding. Cambridge: Cambridge University Press, 2010

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Os tratados de Francesco Geminiani (1687-1762) 57

MARCUS HELD ECA/USP – [email protected]

mbora pouco lembrado nas salas de concerto, Francesco Geminiani (1687-1762) é considerado atualmente, pela

musicologia histórica, o principal perpetuador das escolas de violino e de composição italianas do século XVIII. Nascido em Lucca, Itália, em 1687, tornou-se discípulo em Roma de Alessandro Scarlatti e de Arcangelo Corelli, o representante do estilo italiano. Em 1714, radicou-se em Londres e, assim, guiou a formação do gosto musical inglês na primeira metade dos setecentos. Violinista virtuose, professor respeitado, compositor inovador e tratadista por necessidade, dedicou os últimos quinze anos de sua vida à escrita de seis tratados musicais, a saber: Rules for Playing in a True Taste (1748), A Treatise of Good Taste in the Art of Musick (1749), The Art of Playing on the Violin (1751), Guida Armonica (1752), The Art of Accompaniament (1754) e The Art of Playing the Guitar or Cittra (1760).

Deste modo, o presente artigo abordará cada um desses tratados individualmente, observando as principais questões trabalhadas pelo autor, como o gosto musical, a técnica instrumental, e a relação da música com o contexto social vigente no século XVIII, para, assim, traçar a correspondência do compositor com a música inglesa na primeira metade dos setecentos.

Rules for Playing in a True Taste (1748) e A Treatise of Good Taste in the Art of Musick (1749)

Os tratados “Regras para tocar com verdadeiro gosto” e “Tratado sobre o bom gosto na arte da música", foram, ambos,

57 Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 2015/06668-9). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

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publicados em Londres, em 1748 e 1749, respectivamente, e são considerados complementares. Em poucas palavras, Geminiani trabalhará, o conceito de Gosto que, para ele, limitava-se à criação e à execução correta da ornamentação

Nesse sentido, o compositor opta por descrever os ornamentos – catorze, segundo a tabela contida no tratado de 1749 e reimpressa do tratado The Art of Playing on the Violin (1751), aplicando-os em diversos lugares, aos quais ele julga decoroso, ao longo das obras musicais. Assim, a fim de que o intérprete fosse capaz mover sua audiência, é indispensável o emprego correto da ornamentação (CARERI, 1995, p. 162). Portanto, em busca do êxito em sua proposta didática, Geminiani trabalhará com diversas canções conhecidas do público da Grã-Bretanha. Para cada uma delas, o compositor adiciona um baixo cifrado, que deverá ser executado pelo violoncelo e/ou pelo cravo, e as reescreve em diversos andamentos e formações instrumentais, variando a gama de afetos aos quais as canções podem explorar, decorrentes da profusão das marcas de expressão empregadas sobre as notas.

A citação de auctoritates, como a que Geminiani faz no prefácio, era uma prática recorrente no século XVIII. Com o uso deste artifício, o autor teria mais poder sobre a ideia sobre a qual estava discorrendo. Em geral, Arcangelo Corelli é a auctoritas escolhida pelos tratadistas para a representaçãodo gosto italiano, o que é testemunhado no decorrer do mesmo prefácio: “Não tenho a pretensão de ser o inventor destes [estilo e maneira incomuns], pois outros compositores da mais alta classe foram aventureiros desta mesma Voyage, e ninguém com maior êxito do que o celebrado Corelli, como pode ser visto em sua quinta composição sobre a Aria dela Follia di Spagnia” (GEMINIANI; 1749, pref.). Além da evidente qualidade artística de Rizzio, o tratado, uma vez dedicado ao leitor britânico, teria maior aceitação pública quando uma das autoridades vivera na mesma região que o consumidor dessa obra.

Quanto ao estilo de ornamentação abordado nos tratados, Geminiani utiliza-se de ambos. Embora discípulo de Corelli, o compositor não deixa de escrever, ao longo das variações compostas sobre as canções britânicas, uma grande variedade de ornamentos franceses, como trinados, mordentes e apojaturas, ao estilo da corte de Luis XIV. Aliado a isso, a

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tradição italiana está representada ao longo de grandes passagens de improvisação escrita, à moda de seu mestre. Geminiani mostra-se, portanto, ciente das diversas correntes musicais de seu tempo, e seu objetivo, como professor, era instruir seus alunos a dominarem ambas as linguagens, empregando-as com inteligência e bom gosto.

The Art of Playing on the Violin (1751)

Em “A Arte de tocar violino”, publicado em Londres no ano de 1751, Geminiani condensa, em um número relativamente pequeno de preceitos, a escola de violino e de composição de seu país de origem, Itália, cujo principal representante foi seu mentor, Arcangelo Corelli. Para Boyden (1952, p. v), a fama desse tratado não se deve, unicamente, ao seu posicionamento histórico, e sim à eloquência em que seu autor proporcionou ao texto. De fato, ao longo das poucas páginas dedicadas ao referencial teórico, Geminiani cobre, quase que completamente, a base técnica necessária para a solução de qualquer problema violinístico. Além disso, uma vez paradigma do estilo italiano, a oposição à tradição francesa é notável: se essa última se baseou, ao longo do século XVII e da primeira metade do século XVIII no repertório de danças e, em muitos casos, na música representativa, restringindo-se a poucos artifícios técnicos, Geminiani oferece em The Art of Playing on the Violin diversas possibilidades; desde dedilhados inusitados, mudanças de posição entre notas distantes e execução de cordas duplas ao longo de toda a extensão do espelho do instrumento às diversas possibilidades de ornamentação e à indicação do uso contínuo do vibrato. No entanto, o autor é claro e pioneiro na importância que ele destina ao embelezamento da linha melódica: o intérprete deve executar os ornamentos de modo que contribua para com a ideia inicial da música, sem se distanciar da verdadeira intenção do compositor (GEMINIANI; 1751, pref.).

Já não era mais novidade, em meados do século XVIII, que a música instrumental estivesse ligada ao sentimento e à expressão. No entanto, poucos foram os tratados de violino que abordaram esse tema, descrevendo-o e comparando-o em

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função da técnica do instrumento, e Geminiani o fez com propriedade. Para Boyden (1952, p. v), o trabalho desse compositor torna-se especial pela insistência no papel da expressão das emoções. Ao longo do texto, o autor instrui o leitor a executar as diversas técnicas que o violino, naquele momento, poderia oferecer e, para tanto, foram necessários vinte e quatro exemplos para a sua realização, sempre relacionando ao efeito que seria sentido pelo ouvinte. Deve-se ter em mente, ainda, que tal tratado foi, também, a primeira obra do gênero deliberadamente destinada ao músico de nível avançado (BOYDEN; 1990, p. 357).

Apesar de consistente no que diz respeito à execução musical ao instrumento, a apreciação do tratado não pode ser realizada se a atenção se volta apenas ao texto escrito. Tendo em vista o espírito pragmático de Geminiani, que pode ser evidenciado em todas as suas obras teóricas, o conteúdo textual é pensado em função das mais de cinquenta páginas dedicadas à escrita musical.

Guida Armonica (1752?)

O tratado intitulado “Guida Armonica” é a obra mais original e, ao mesmo tempo, a mais controversa de Geminiani. Apesar de não ser possível precisar o ano da publicação desse livro, Careri, (1995, p. 180) o considera do ano de 1752.

No prefácio, Geminiani adverte o leitor sobre o panorama musical daquele tempo, dizendo que “as regras para a modulação, que foram transmitidas por muitos nesses quarenta anos, são extremamente limitadas e deficientes e, por desprezarem a parte mais importante desta ciência, reduziram-na a seus limites mais estreitos, tornando-as extremamente pobres, insípidas e estéreis” (GEMINIANI; 1752, pref.). Ao longo do texto, o autor reclama de serem tão poucos e escassos os intérpretes capazes de oferecer alguma inovação para a harmonia, para a modulação e para a melodia, e indaga: “a que se deve isto, senão a essas regras imperfeitas e deficientes que, ao invés de guiar os estudantes de harmonia, induzem-nos ao erro; ao invés de amparar, aperfeiçoar e exaltar o engenho natural, confinam-no e desvalorizam-no? ”.

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As intenções de Geminiani são claras: expandir os limites estreitos que a harmonia parecia ter naquele tempo; não apenas enriquecendo sua linguagem, mas também oferecendo ao leitor a oportunidade de expandir sua obra com infinitas possibilidades.

Esse pensamento é absolutamente revolucionário, pois, pela primeira vez na história da música, a composição é exposta e ensinada de modo que o aprendiz possa recorrer a um esquema tão simples quanto esse: ao longo das trinta e quatro páginas do guia, são apresentadas sessenta e seis passagens – que não possuem mais que cinco notas - com um baixo figurado, possibilitando mais de 2200 combinações distintas. Ou seja, ao relacionar as diversas passagens segundo seu gosto e agudeza, o aprendiz teria a essência de sua nova música praticamente concluída. A recepção do público, todavia, não foi positiva: por um lado, queixava-se da construção do método, e muitos consideraram-no vago; por outro, denominavam-no confuso. Outros, ainda, questionavam se a importância da harmonia era maior que o da melodia, uma vez que o autor não forneceu instruções para a elaboração dessa última. Por fim, outros compositores sentiram-se ameaçados ao se depararem com a ideia de que, agora, qualquer amador, com a ajuda desse guia, poderia compor sem grandes dificuldades.

Tendo em vista tamanha repercussão negativa, o compositor se viu obrigado a publicar um suplemento ao tratado, e o fez poucos meses mais tarde. Nele, reconhece que não ensina composição em sua totalidade, argumenta que os exercícios provar-se-ão muito úteis àqueles que desejam aperfeiçoar-se nessa arte. Embora suas tentativas provaram-se muito úteis, e que tenham recebido comentários elogiosos de alguns críticos (cf. HAWKINS; ii, p. 903), tal obra não desfrutou da mesma estima que seus outros trabalhos.

The Art of Accompaniament (1754)

O único tratado sobre baixo-contínuo escrito por Francesco Geminiani foi publicado, primeiramente, em Paris, França, sob o título L’art de bien accompagnier du Clavecin em 1754. No mesmo ano, a versão expandida de dois volumes

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intitulada “A Arte do acompanhamento” foi publicada em Londres, sendo a versão observada neste artigo.

Como na maioria das obras do compositor, esse tratado possui diversas peculiaridades. Com efeito, o objetivo de Geminiani nesse livro é o de apresentar uma maneira nova e inusitada de executar o baixo-contínuo, de modo que este seja autossuficiente; isto é, que, de certo modo, independa da melodia do instrumento solista. Para tanto, o tratado consiste de uma série de passagens com baixo figurado, em que cada uma possui diversas realizações possíveis, todas apresentadas pelo autor.

Vale ressaltar que Francesco Geminiani, discípulo de um dos maiores músicos do Barroco, Arcangelo Corelli, era conhecido como violinista virtuose, tendo desenvolvido intensa carreira como solista itinerante. Partindo desta premissa, observa-se que o compositor exigia que o cravo competisse sua atenção para com o solista, enquanto os tratados setecentistas ensinavam que seu papel era, apenas, o de fornecer harmonia para dar suporte à melodia executada pelo instrumento principal (CARERI; 1995, p. 193). Arnold (1945, p. 468) sugere, ainda, que Geminiani estaria descrevendo como ele, uma vez detentor de virtuosismo incomparável, gostaria de ser acompanhado.

The Art of Playing the Guitar or Cittra (1760)

O último tratado publicado por Geminiani, em 1760 em Edimburgo, Escócia, “A Arte de Tocar Guitarra ou Cistre” é um de seus trabalhos menos conhecidos. No entanto, tal documento possui valor musicológico inestimável, uma vez que é um dos poucos materiais disponíveis, atualmente, sobre o cistre, instrumento tão presente e importante na cultura britânica durante os séculos XVI, XVII e XVIII.

O cistre é um instrumento de cordas dedilhadas oriundo da Itália, apesar de ocupar lugar de destaque no gosto musical inglês, muito comum no broken consort, cujo papel era tanto de instrumento solista quanto o de acompanhamento, integrante do grupo do baixo-contínuo (REESE; 1959, p. 849).

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Para o leitor moderno, as informações contidas no tratado em questão não se limitam apenas ao aprendizado técnico do cistre: elas dão mais informações sobre os leitores e o âmbito em que este instrumento era executado (o ambiente cortesão), sobre que tipo e qualidade de instrumentista ele visava, sobre as circunstâncias em que ele aparecia, bem como sobre seu uso na música (solo ou acompanhamento). Seu conteúdo apresenta-se de maneira consistente, o qual compreende-se de um prefácio que justifica sua publicação, seguido de uma breve explicação sobre a técnica do cistre. O trabalho se encerra com onze composições de cunho didático para um cistre de seis ordens ou violino, com acompanhamento de baixo-contínuo.

Considerações Finais

Ao observar individualmente a construção e a abordagem de cada tratado escrito por Francesco Geminiani, percebe-se que conjunto dessas seis obras teóricas ilustra as diversas facetas do panorama da música instrumental em voga na Inglaterra na primeira metade do século XVIII.

Embora a fama de Geminiani seja a de economizar suas palavras ao longo do texto escrito, impossibilitando sua apreciação isolada do contexto sonoro, suas explicações, muitas vezes, podem ser mal compreendidas, passando-se por vagas, incompletas, ou, até mesmo, errôneas. No entanto, deve-se levar em consideração que o autor é, antes de tudo, um instrumentista, e a reputação que obtivera ainda em vida como representante de seu instrumento deve ser recordada. Nesse sentido, Geminiani demonstra absoluto domínio da linguagem da música instrumental, o que pode ser testemunhado ao longo das centenas de páginas destinadas às composições contidas em seus livros sobre música. Nelas, o autor é rigoroso ao notar todo e qualquer ornamento de expressão em que julga decoroso que o execute.

O Gosto, reduzido ao bom emprego dos ornamentos, é a tópica constante na sua obra, teórica ou não. Discípulo de Corelli, o compositor preocupa-se com a execução justa e correta da ornamentação francesa e italiana. Embora seu

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mestre seja conhecido pela habilidade incontestável da improvisação, a leitura cuidadosa de sua obra demonstra que não se trata de notas tocadas a esmo, mas sim de uma elaboração criteriosa sobre a linha melódica fornecida pela partitura.

Assim, listar, discorrer, exemplificar e relacionar cada ornamento com seus diversos afetos, como em seus dois primeiros tratados, fez de Geminiani um tratadista pioneiro, sendo um dos poucos a terem realizado tais esforções com tanto critério. A obra teórica desse compositor, salvo seu tratado sobre violino, espera, ainda, a devida atenção por parte da musicologia histórica. A leitura cuidadosa de seus textos e a interpretação historicamente inspirada de seus exemplos e composições musicais fornecerão uma compreensão muito clara e verdadeira do som da música instrumental do século XVIII, uma vez que todas as suas peculiaridades técnico-interpretativas são trabalhadas por esse tratadista.

Referências Bibliográficas

ARNOLD, Frank Thomas. The Art of Accompaniament from a Thorough-Bass. New York: Dover, 1965. BOYDEN, David D. Introduction to Geminiani’s The Art of Playing on the Violin. London: Oxford University Press, 1952. ______. The History of Violin Playing From its Origins to 1761 and its Relationship to the Violin and Violin Music. New York: Oxford University Press, 1990. BURNEY, Charles. A General History of Music (London, 1789). New York: Harcourt, Brace and Company, 1935. CARERI, Enrico. Francesco Geminiani (1687-1762).New York: Oxford University Press, 1993. HAWKINS, John. A General History of the Science and Practice of Music (London, 1776) 2 volumes. London: Dover Publications, 1963. REESE, Gustave. Music in the Renaissance.New York: W. W. Norton Company, 1959. WINTERNITZ, Emanuel. The Survival of The Khitara and The evolution of The English Cittern: a Study in Morphology. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. 24 nº 3/4 (jul. – dez., 1961), pp. 222-229.

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Nem erudita, nem popular: por uma identidade transitiva do violão brasileiro

FERNANDO LLANOS

ECA/USP – [email protected]

presente artigo expõe os avanços de uma pesquisa de doutorado sobre o violão brasileiro, entendendo-o

como espaço para a negociação de identidades culturais cujo estilo poético de performance oscila entre os referentes atribuídos à música popular e à música acadêmica de tradição europeia, ou erudita. Neste sentido, falamos da invenção de uma brasilidade violonística peculiar que manteria seu caráter intrínseco embora seja associada a diversas correntes musicais afins (jazz estadunidense, música caribenha, tango argentino, estéticas do pan-africanismo etc.).

Precisamente, a tese considera que a vigência, força e resiliência jaz na condição transitiva do violão brasileiro, isto é, na sua capacidade de significar simbolicamente quando se complementa e não quando se delimita, disciplina ou sistematiza.

Definição e escopo do termo

A escolha do termo “transitivo” procura evitar as dicotomias que, por via de um hibridismo cultural malentendido (como a simples justaposição de culturas sem discutir as suas desiguais relações de poder e hierarquia), possa nos colocar em defesa do “popular” no violão brasileiro, prejudicando nossas afirmações com pontos de partida enviesados que, na teoria, aparentam ser dialéticos mas que na prática resultam dogmáticos e ortodoxos. Afinal de contas, uma caraterística da multiculturalidade na América Latina é seu caráter integrador e sua heterogeneidade multitemporal (modernidade que convive com o antigo):

O

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Tantas obras que han hecho del diálogo entre lo culto, lo popular y lo masivo su campo de ensayos, desde Octavio Paz y Jorge Luis Borges a Astor Piazolla y Caetano Veloso, testimonian la fertilidad de las creaciones y los rituales liminales menos preocupados con la preservación de la pureza que por la productividad de las mezclas (CANCLINI, 1997, p. 112).

Outro dos motivos está na necessidade de analisar a identidade cultural de modo que as conclusões do trabalho não se limitem, na medida do possível, a uma mera “arquitetura” epistemológica cuja aparente coerência deixe muitos cabos soltos sem resposta.

Por outro lado, a noção de “transitivo” permite destacar o exercício da identidade musical mais como um processo que como um estilo poético definido. Isto vale até mesmo quando se percebem padrões comuns nas estruturas formais da música. Por exemplo: sabemos que o violão brasileiro assimilou o “toque” de João Gilberto para os acordes e, apesar da grande força emblemática que tal estilo possui, sua técnica detalhada e eficácia sonora facilmente distinguível, não podemos afirmar que esgota suas potencialidades como processo, no sentido geral:

[...] the issue is not how a particular piece of music or a performance reflects the people, but how it produces them, how it creates and constructs an experience - a musical experience, an aesthetic experience - that we can only make sense of by taking on both a subjective and a collective identity (FRITH, 1996, p. 109).

Em suma, pensar uma identidade transitiva para o violão brasileiro permite testar sua validade como método para entender a sua complexidade político-estética. Paralelamente, registra-se de forma análoga a sua performance em interação com outras vertentes musicais que lhe complementam.

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Violão brasileiro

Sob o nome de violão brasileiro entende-se o corpus das técnicas instrumentais de origem europeia e as técnicas instrumentais desenvolvidas através dos instrumentistas brasileiros (soluções empíricas). Como negociar com as exigências que ambos os lados solicitam ao executante? Pede-se manter o lirismo e a bravura na performance sem levar em consideração os preceitos “clássicos” da produção de timbre no violão. Por outro lado, também cobra-se equilíbrio, sobriedade e limpeza na execução do instrumento.

Sob a prática da música popular (entendendo o popular não necessariamente como um erudito às avessas e sim como um pretexto para dar espaço às diversas alteridades musicais) surge uma outra prática seletiva que expande a identidade cultural do instrumento e suas leituras sociais. Nesta outra identidade expandida os executantes do instrumento, sem distinção de formação/instrução, realizam uma apropriação peculiar do termo “violão brasileiro” estabelecendo não só uma comunidade musical como também definindo um campo de atuação antes mesmo que um gênero musical: falar em violão brasileiro não significa, assim, remeter a um estilo definido de executar o instrumento ou a determinado repertório em particular.

Nesse sentido, a identidade se encontra diluída entre o universo de intérpretes que se reconhecem como representativos do estilo. Algo disto está presente na “tensão não resolvida” de Egberto Gismonti:

Não teríamos problema em dizer que Egberto faz da exceção uma regra. Isso é corrente na negação muito peculiar dos elementos populares. Mas o que encontraremos exemplificadas em suas músicas (e os exemplos certamente poderiam abranger muitas composições) indica que a negação dos elementos populares não quer dizer simplesmente optar pelos procedimentos europeus. Contudo, por que Egberto deveria carregar o fardo do exclusivismo nacional? Não seria antes riqueza musical genuína, do autor e do material? [...] O estatuto do “popular” surge aqui como

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tensão não resolvida: nem negação total da cultura musical herdada, nem solução na identificação determinada da tradição. (SOARES MELO, 2007, p. 194)

Essa imprecisão refere-se a um tipo de identidade que chamo de transitiva e que desloco à produção de sentido da noção de “violão brasileiro” perante os próprios violonistas e a sociedade brasileira.

Ensaiando uma metodologia

Muito se fala ainda nas vantagens da vertente erudita e da popular, respectivamente. A primeira, desde que se afirmaram as seis cordas simples em lugar das cinco cordas dobradas, inspirou diversos métodos impressos que remontam ao séc. XIX e chegam até nossos dias. Sua vasta literatura somada a uma pedagogia meticulosamente técnica na sua transmissão oral, valeram-lhe um lugar no ensino superior formal e nas salas de concerto. Por outro lado, o violão assim chamado popular, desde sempre o celeiro de todos os estilos técnicos e interpretativos, permaneceu diferenciado da performance erudita de tal forma que traçou sua própria tradição de composição e performance.

Em determinado momento do séc. XX, a tradição popular se definia, grosseiramente, como tudo aquilo que não era erudito, e no violão isto acontece na aplicação de preceitos comuns da comunidade violonística erudita: por exemplo, é possível que, se a vertente popular do violão condiciona sua performance à pergunta “o que vou tocar e como vou tocar?”, no erudito deva-se passar revista a quesitos que vão desde a projeção (amplitude da onda sonora) do instrumento, o cuidado com as unhas até o apoio do pé. A princípio esta pode parecer uma comparação debochada e enviesada. Contudo, meu objetivo é conduzir a atenção aos diversos aspectos performativos que revelem configurações pré-estabelecidas em ambas as vertentes.

Assim, localizamos a identidade transitiva na relação complexa entre o plano performático do músico (psicológico) e

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o plano social da sua performance (sociológico). Como se manifesta e como opera esta identidade transitiva? A partir de uma análise de literatura formativa violonística (métodos) escolhemos um aspecto que pode nos servir para trabalhar nossa hipótese: a tradição oral dos parâmetros de gestos instrumentais ou instrumental gesture parameters (TRAUBE, 2004) pelos quais os violonistas descrevem verbalmente o timbre do instrumento, a partir de uma série de “palavras comuns” (som limpo, sujo, redondo, opaco, aberto, fechado etc). Em particular, faremos a análise das conotações musicais e sociais do chamado “toque sujo” (grifo nosso) e de como esta categoria se desenvolveu e permanece vigente como argumento de tensão entre a vertente erudita e não-erudita do “violão brasileiro”

Ressalvas da invenção

Quando falamos em invenção nos referimos a uma forma de lidar com cultura “como se ela existisse” e nos termos que a descrevemos, enquanto conceito e enquanto cultura em particular. Este ato põe em destaque um jogo duplo: cria-se um objeto para representá-lo (o violão brasileiro) e, simultaneamente, criam-se formas e ideias para representá-lo:

A relação que o antropólogo constrói entre duas culturas –a qual, por sua vez, objetifica essas culturas e em consequência as “cria” para ele– emerge precisamente desse seu ato de “invenção”, do uso que faz de significados por ele conhecidos ao construir uma representação compreensível de seu objeto de estudo. O resultado é uma analogia, ou um conjunto de analogias, que “traduz” um grupo de significados básicos em um outro, e pode-se dizer que essas analogias participam ao mesmo tempo de ambos os sistemas de significados, da mesma maneira que seu criador. (WAGNER, 2012, p. 59).

Isto supõe a interação de invenções que aludem a um mesmo conceito e entrelaçam formas e ideias daqueles para quem inventar requer compartilhar convenções e contextos culturais. Em resumo, a transitividade também se configura

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numa cartografia da interdependência comunicacional entre os diversos intérpretes-detentores do violão brasileiro.

Conclusões

Existe dificuldade de encontrar textos analíticos sobre violão no Brasil que abordem analogamente a vertente erudita e popular. Na maior parte dos casos a produção científica se limita à análise formal, à descrição detalhada e ao ensaio de probabilidades técnicas e composicionais. A proposta a desenvolver se ocupa principalmente da história musical que resulta da resposta de um grupo que compartilha uma escala comum de valores em determinado repertório musical que articula tais valores.

Numa primeira aproximação, a partir da noção de identidade transitiva, é possível pensar no violão brasileiro como uma manifestação expressiva que reflete ou representa o país e, numa análise dessa “história da recepção”, descrever como se torna uma chave para o processo de identidade cultural toda vez que oferece, tão intensamente, um sentido dos outros e de um mesmo, do subjetivo no coletivo.

Referências bibliográficas

SOARES MELO, Rúrion. O “popular” em Egberto Gismonti. Novos estud. – CEBRAP. São Paulo, 2007, p. 191-200. FRITH, Simon. Music and identity. In: HALL, Stuart; DU GAY, Paul (Ed.). Questions of Cultural Identity. SAGE Publications. Sage, 1996. p. 108-127 CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas y estrategias comunicacionales. In: Estudios sobre las culturas contemporaneas. Época II. Vol. III. Núm. 5. Colima: Univ. de Colima, 1997, p. 109-128. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012. TRAUBE, Caroline. An interdisciplinary study of the timbre of the classical guitar. Tese de doutorado. Montréal: McGill University, 2004. Disponível em <digitool.library.mcgill.ca/thesisfile85100.pdf> Acessado em 10 de janeiro de 2016.

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A ocorrência do hibridismo tonal/modal e do modalismo misto no repertório do Clube da Esquina nos anos de 1967 à 1979

CARLOS ROBERTO FERREIRA MENEZES JÚNIOR

ECA/USP - [email protected]

MARCO ANTONIO DA SILVA RAMOS ECA/USP - [email protected]

Introdução

O presente artigo está vinculado à pesquisa de doutorado intitulada “O arranjo vocal a partir dos elementos composicionais do Clube da Esquina”. Dentre os elementos composicionais elencados a partir da análise dos vinte e dois disco lançados pelo agrupamento de músicos identificados pelo termo Clube da Esquina entre os anos de 1967 e 1979, o hibridismo tonal/modal e o modalismo misto são alguns dos que se destacam. Verificou-se que a exploração desses dois recursos no que tange ao tratamento dado à harmonia e a melodia aparece de forma recorrente no repertório estudado, tornando-os elementos importantes no processo de identificação das características de ordem estilística do Clube da Esquina.

O objetivo do presente texto é de apresentar uma breve discussão sobre os conceitos que envolvem os termos hibridismo tonal/modal e modalismo misto localizando-os dentro da prática composicional do Clube da Esquina e sintetizar, em forma de tabela, a ocorrência de tais procedimentos em cada faixa de cada um dos vinte dois discos estudados.

O hibridismo tonal/modal e o modalismo misto

O termo modal, embora muito utilizado no campo da teoria musical, pode remeter a concepções variadas. Antes de discorrer sobre o hibridismo tonal/modal e o modalismo misto faz-se necessário apresentar um breve panorama dessas concepções com o intuito de localizar em qual delas o repertório do Clube da Esquina se posiciona.

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Sérgio Freitas (2008), em seu seu artigo intitulado Dos modos em seus mundos: usos do termo modal na teoria musical, propõe uma ordenação do termo modal em oito campos de entendimento. O primeiro remete aos estudos sobre o sistema de organização musical da Grécia antiga. Vem daí a gênese de muitas nomenclaturas vinculadas a este campo. Jônico, dórico, frígio, lídio, mixolídio, eólio e lócrio são alguns dos termos herdados. Porém é importante salientar que, embora os termos sejam os mesmo dos atuais, as práticas e sistemas de estruturação musical se diferenciam completamente. De comum só existem os nomes e a ideia de organização de alturas em escalas.

O segundo campo de entendimento refere-se à música modal ocidental praticada na Europa (e levada as suas colônias) ao longo da idade média e do renascimento. São práticas vinculadas tanto à igreja cristã quanto à cultura popular, tanto à vocal quanto à instrumental, tanto à monodia quanto à polifonia. As escalas modais organizadas a partir das relações intervalares entre sete notas dentro de um intervalo de oitava estabelecem-se neste período. Porém ainda não existia o sistema temperado e nem a concepção atual de campo harmônico.

O terceiro campo remete-se ao período entre o final do século XVI e século XVII, onde aparece “os indícios tonais em diferentes fases do repertório modal e os aspectos modais que se conservam nas fases iniciais da tonalidade” (FREITAS, 2008, p. 451). O autor continua: “Aqui, por justaposição, fusão e acomodação, o modal se mistura com o tonal numa espécie de sincretismo ou de sistema híbrido” (FREITAS, 2008, p. 451).

Em relação ao período tonal propriamente dito, é nele que se encontra o quarto campo de entendimento. O termo modo passou a designar as duas bases estruturais de organização escalar e harmônica da tonalidade, o modo maior e o modo menor. Outros termos derivados, tais como modulação e empréstimo modal são utilizados e incorporados como afirmativos de procedimentos essencialmente tonais.

No quinto campo, o modal passa a ser visto como uma espécie de sonoridade diferente (ou exótica) no interior do tonalismo praticado pelos compositores da geração romântica

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da música erudita européia. Nele, o modal passa a ser um recurso de expansão das possibilidades do sistema tonal, agora num contexto de afinação temperada e de sedimentação da ideia de harmonia.

O sexto campo ainda refere-se ao termo modal dentro do contexto tonal, porém como um aparato teórico de organização de um subconjunto de notas constituinte de cada acorde, grau e função presentes nos campos harmônicos tonais. São os modos utilizados como escala de acordes. Na segunda metade do século XX, a música popular vai ser profundamente influenciada por esta visão. É o sistema tonal visto com uma lente diferente e não uma nova forma de teorizar o sistema modal. Alguns teóricos do Jazz sistematizaram as escalas de acordes influenciando fortemente os músicos ligados a esta prática, principalmente no que se refere aos estudos sobre improvisação.

O sétimo campo de entendimento do termo modal é vinculado aos compositores eruditos do século XX enquanto uma prática pós-tonal. O modalismo aqui é tratado como um sistema autônomo, assim como tantos outros que surgiram no século XX como opção de afastamento do tonalismo. Um dos principais teóricos desta abordagem foi o compositor norte-americano Vincent Persichetti. O conceito de nota característica de cada modo, campo harmônico modal e a ideia de atribuir uma certa funcionalidade modal às tríades e tétrades que constituem este campo harmônico, foram adotadas entre os teóricos da música popular e se adequam perfeitamente a esta prática. Em termos harmônicos, os acordes construídos pela sobreposição de terças que possuem a nota característica do respectivo modo que os geraram, juntamente com o acorde de I grau, constituem um grupo que cumpre o que o autor chamou de função primária. Os outros acordes cumprem a chamada função secundária, contanto que não sejam acordes diminutos (tríade ou tétrades), pois estes acordes são evitados neste idioma harmônico devido a instabilidade que a quinta diminuta ocasiona. Persichetti (2012) também fala da importância de evitar sequência de acordes que possam gerar cadências tonais do tipo Dominante->Tônica. O autor também aborda questões que envolvem os chamados modos sintéticos, escalas pentatônicas e escalas folclóricas.

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É na interface dos estudos étnicos aliados aos estudos na área de música popular que localiza-se o oitavo campo de entendimento sobre os modos. Ele engloba várias vertentes de pesquisas que vão desde músicas modais do interior do nordeste brasileiro até as práticas modais populares norte-americanas, entre elas o modal jazz. Ramifica-se para além das fronteiras norte-americanas e dialoga com a cultura musical de várias regiões do mundo, inclusive no Brasil.

Diante do que foi exposto até aqui podemos afirmar que é no oitavo campo de entendimento sobre os modos que o repertório do Clube da Esquina se posiciona. Quando falamos em hibridismo tonal/modal, estamos nos referindo a procedimentos harmônicos e melódicos ligados ao universo da música popular urbana que se conectam com as práticas tonais e modais e que se misturam em uma mesma composição, visando explorar os efeitos típicos desses dois sistemas. A forma como o hibridismo ocorre varia de música para música, não sendo constituído por regras específicas e procedimentos padronizados. A seguir, uma breve análise da canção Crença de Milton Nascimento e Márcio Borges como ilustração de ocorrência do hibridismo tonal/modal no repertório estudado.

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Figura 1: Seção A e Seção C da música Crença de Milton Nascimento e Márcio Borges (disco de 1967 – faixa 3). A sigla Ac. Pri. significa Acorde Primário do campo harmônico modal. A sigla Ac. Sec. significa Acorde Secundário. T, S e Dom. significam respectivamente funções tonais de Tônica, Subdominante e

Dominante. A.E.M. significa Acorde de Empréstimo Modal.

Na seção A a música assume um caráter modal principalmente por causa da harmonia, pois a melodia sozinha poderia gerar ambiguidade pois não tem nota alterada em relação a armadura de clave da tonalidade de dó menor. No terceiro compasso, o acorde bII (acorde primário do modo frígio) aparece com o baixo em dó, utilizado como baixo pedal. Esse recurso é muito comum no universo modal e bastante presente no conjunto da obra do Clube da Esquina, especialmente nas composições de Milton Nascimento. No compasso 6, ele apresenta o bIII7M do modo dórico e logo em seguido o bIII7 do modo frígio, porém com a quarta suspensa (sus4). Interessante observar que neste momento a melodia está na terça maior do acorde, que depois resolve na nona maior. Este “choque” entre a terça maior da melodia e a quarta suspensa do acorde produz um efeito muito peculiar. A cadência final desta seção é uma cadência modal típica do modo dórico: IV -> Im7.

Na seção C, fica evidente a narrativa tonal em dó maior. Os quatro primeiros compassos começam com a tônica principal indo para a dominante principal (com a quarta suspensa), para depois apresentar a dominante da relativa e resolver no VIm7, finalizando a frase no IIm7(b5) que é um acorde de empréstimo modal de dó menor. Nos quatro últimos compassos temos sequências da famosa cadência II-V

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(amplamente utilizada na música popular de caráter tonal), que culmina na Dominante da Dominante [ D7(#9) -> G7(b13) ] para encerrar a seção com a Dominante principal, preparando o retorno para a seção A.

O termo modalismo misto é utilizado aqui para designar o procedimento composicional onde as bases de estruturação são essencialmente modais, porém com os modos misturados, tanto na constituição melódica quanto na harmônica. Com isso, os “temperos modais” se combinam e o leque de opções dentro do próprio sistema se expande. Chediak (1986) utiliza o termo modalismo puro quando apenas um modo específico é utilizado na geração da melodia e harmonia. Para ele, modalismo misto é quando ocorre a mistura entre os modos ou deles com o tonalismo, o seja, o hibridismo tonal/modal é visto como uma forma particular de modalismo misto. Diferentemente de Chediak (1986), optou-se, na presente pesquisa, por tratar os dois termos de forma separada pois percebeu-se que os efeitos da combinação inter-sistemas (tonal/modal) se diferenciavam dos efeitos das combinações intra-sistema (no caso o modal). Sendo assim, o termo modalismo misto é utilizado para analisar o tratamento dado apenas ao sistema modal, seja quando ele aparece em uma parcela da música, seja quando a mesma é constituída integralmente por ele. Se uma música que apresenta o hibridismo tonal/modal tiver na sua "seção modal" mais de uma modo sendo combinado, ela também estará dentro da categoria de modalismo misto. Ele aparece de múltiplas formas no repertório do Clube da Esquina e não segue um padrão específico de estruturação. A seguir, uma breve análise da canção Pai Grande de Milton Nascimento como ilustração de ocorrência do modalismo misto. Foram selecionados trechos da seção A e da seção C onde o modalismo misto fica mais evidente.

Page 130: terceira jornada

A ocorrência do hibridismo tonal/modal e do modalismo misto no repertório do Clube da Esquina nos anos de 1967 à 1979

131

Figura 2: Trechos da Seção A e Seção C da música Pai Grande de Milton Nascimento (disco de 1969 – faixa 6).

Na primeira frase da seção A já é possível perceber um intercâmbio entre os modos jônico, mixolídio e eólio. O segundo acorde, o Vm7, é um acorde primário do modo mixolídio, que neste caso aparece com o baixo pedal em sol (Dm7/G). No terceiro compasso o acorde volta para o G e a melodia passa pela nota fa# revelando o retorno ao modo jônico, porém logo no próximo compasso a melodia repousa na nota fá natural e o acorde utilizado é o Gm7, que é o primeiro grau do modo eólio. Posteriormente a melodia e harmonia voltam para o modo jônico com dois acordes, o VIm7 e o IIm7. Apesar da melodia seguir no modo jônico, aparece um acorde típico do modo lídio que é o A7 (II7) cadenciando primeiro para o G (I) que depois volta ao A7 (II7) para cadenciar para o Em(add9) (VIm), finalizando a frase. Nos oito primeiros compassos da seção C é possível identificar que tanto a melodia quanto a harmonia são estruturadas a partir da mistura dos modos mixolídio e lídio.

A seguir, a tabela com a ocorrência do hibridismo tonal/modal e do modalismo misto em cada disco.

Discos (22 discos, 269 faixas) Hibridismo Tonal/Modal (H. T./M.)

Modalismo Misto (M. M.)

Total de faixas com ocorrência --------------------------------

> 125 165

Milton Nascimento Milton Nascimento - 1967 H.T./M.

7 M. M. 8

01 - Travessia

02 - Três pontas ● ● 03 - Crença ● ●

04 - Irmão de fé ●

05 - Canção do Sal ● ● 06 - Catavento

07 - Morro Velho ● ● 08 - Gira girou ● ●

09 - Maria, minha fé ● ● 10 - Outubro ● ●

Courage Milton Nascimento - 1969

H.T./M. 7

M. M. 8

01 - Bridges (Travessia)

02 - Vera Cruz ● ● 03 - Três Pontas ● ●

04 - Outubro (October) ● ● 05 - Courage ● ●

06 - Rio Vermelho

● 07 - Gira, Girou ● ● 08 - Morro Velho ● ●

09 - Catavento 10 - Canção do Sal ● ●

Milton Nascimento Milton Nascimento - 1969

H.T./M. 7 M. M.

6 01 - Sentinela ● ●

02 - Rosa do Ventre ● ● 03 - Pescaria/O mar é meu

chão ● ● 04 - Tarde

05 - Beco do Mota ● ● 06 - Pai Grande ● ● 07 - Quatro Luas ●

08 - Sunset Marquis 333 Los Angeles ● ●

09 - Aqui Ó

10 - Travessia

Page 131: terceira jornada

A ocorrência do hibridismo tonal/modal e do modalismo misto no repertório do Clube da Esquina

nos anos de 1967 à 1979

132

Som Imaginário Som Imaginário - 1970 H.T./M.

1 M. M. 5

01 - Morse

● 02 - Super god

03 -Tema dos deuses

● 04 - Make believe waltz

05 - Pantera

06 - Sábado

07 - Nepal

08 - Feira Moderna ●

09 - Hey, Man

● 10 - Poison

Milton Milton Nascimento - 1970 H.T./M.

5 M. M. 9

01 - Para Lennon e McCartney ●

02 - Amigo, Amiga ●

03 - Maria Três Filhos ●

04 - Clube da Esquina ● ● 05 - Canto Latino ● ● 06 - Durango Kid

07 - Pai Grande ● ●

08 - Alunar ● ● 09 - A Felicidade ●

10 - Tema de Tostão ●

11 - O Homem da Sucursal ●

12 - Aqui é o País do Futebol 13 - O Jogo

Som Imaginário Som Imaginário - 1971 H.T./M.

4 M. M. 4

01 - Cenouras 02 - Você tem que saber ●

03 -Gogó (o alívio Rococó) ● ● 04 - Ascenso ● ●

05 - Salvação pela macrobiótica

06 - Ué

● 07 - Xmas Blues

08 - A nova estrela ● ●

Clube da Esquina Milton Nascimento e Lô Borges-1972

H.T./M. 8 M. M.

15 01 - Tudo o que você podia ser

● 02 - Cais

03 - O trem azul

04 - Saídas e Bandeiras n°1 ●

05 - Nuvem cigana ●

06 - Cravo e Canela ● ● 07 - Dos Cruces ● ●

08 - Um girassol da cor do seu cabelo ● ● 09 - San Vicente ●

10 - Estrelas ● 11 - Clube da esquina n°2 ● 12 - Paisagem da janela

13 - Me deixa em paz

14 - Os povos

15 - Saídas e bandeiras n°2 ●

16 - Um gosto de sol ●

17 - Pelo amor de Deus ●

18 - Lília ●

19 - Trem de doido ● ● 20- Nada será como antes ● ●

21- Ao que vai nascer ●

Lô Borges (disco do tênis) Lô Borges- 1972

H.T./M. 6 M. M.

8 01 - Você fica melhor assim

02 - Canção postal

03 - O caçador 04 - Homem da rua

● 05 - Não foi nada ● ● 06 - Pensa você ● ●

07 - Fio da navalha 08 - Prá onde vai você

● 09 - Calibre

10 - Faça seu jogo

11 - Não se apague esta noite ●

12 - Aos barões ● ●

13 - Como o machado ● 14 - Eu sou como você é

15- Toda essa Água ● ●

Matança do Porco Som Imaginário - 1973

H.T./M. 6

M. M. 6

01 - Armina ● ● 02 - A3 ● ●

03 -Armina (vinheta 1)

04 - A n°2 ● ● 05 - A matança do porco ● ● 06 - Armina (vinheta 2)

07 - Bolero ● ●

08 - Mar Azul ●

09- Armina (vinheta 3)

Milagre dos Peixes (ao Vivo) Milton Nascimento - 1974

H.T./M. 8 M. M.

11 01 - A matança do porco / Xá mate ● ●

02 - Bodas ● 03 -Milagre dos Peixes ● ●

04 - Outubro ● ● 05 - Sacramento ● ●

06- Nada será como antes ● ● 07 - Hoje é dia de El Rey ●

08 - Sabe você 09 - Viola Violar ●

10- Cais ● 11- Clube da Esquina ● ● 12 - Tema dos Deuses ●

13- A última sessão de música

14- San Vicente ● 15- Chove lá fora

16- Pablo ●

Milagre dos Peixes Milton Nascimento - 1973 H.T./M.

3 M. M. 10

01 - Os Escravos de Jô

● 02 - Carlos, Lúcia, Chico e

Tiago ● 03 -Milagre dos Peixes ● ●

04 - A chamada

● 05 - Pablo n° 2 ● ●

06 - Tema dos Deuses

● 07 - Hoje é dia de El Rey

08 - A última sessão de música

09 - Cadê

● 10 - Sacramento ● ●

11- Pablo

"Os quatro no banheiro" Beto Guedes, Danilo

Caymmi, Novelli, Toninho Horta- 1973

H.T./M. 7 M. M.

4 01 - Caso você queira saber

02 - Meu canário vizinho azul ●

03 -Viva eu ●

04 - Belo horror ● ● 05 - Ponta negra ● ● 06 - Meio a meio ● ●

07 - Manoel o audaz 08 - Luisa ●

09 - Serra do mar ●

Minas Milton Nascimento - 1975 H.T./M.

5 M. M. 9

01 - Minas ● 02 - Fé Cega, Faca Amolada

03 -Beijo partido ● ● 04 - Saudade dos aviões da

Panair ● 05 - Gran Circo

● 06- Ponta de Areia ● 07 - Trastevere

08 - Idolatrada

● 09 - Leila ● ●

10- Paula e Bebeto ●

11- Simples ●

12 - Norwegian Wood ● 13- Caso você queira saber ●

Geraes Milton Nascimento - 1976 H.T./M.

5 M. M. 5

01 - Fazenda ● 02 - Calix Bento

03 -Volver a los 17 ●

04 - Menino ● 05 - O que será? (Á flor da

pele) ● 06- Carro de boi ●

07 - Caldera ● 08 - Promessas do sol

09 - Viver de amor

10- Lua girou ● 11- Circo Marimbondo

12 - Minas Geraes ● 13 - Primeiro de maio ●

14- O Cio da Terra

Milton (Raça) Milton Nascimento -

1976 H.T./M.

3 M. M. 8

01 - Raça ● 02 - Cadê ●

03 -Francisco ● 04- Nada será como antes ● ●

05 - Cravo e Canela ● ● 06- A chamada ●

07- One Coin (Tostão) ● 08- Saídas e Bandeiras n°1 ●

09- Os povos ●

Maria Maria (trilha sonora do balé do grupo corpo com estreia

em 1976) Milton Nascimento

(lançamento em CD em 2002)

H.T./M. 3 M. M.

14

01 - Maria Maria ● 02 - Cozinha

03 -Pilar ● 04 - Trabalhos

05 - Lília ● 06- A chamada ●

07 - Era rei e seu escravo 08 - Os Escravos de Jô ● 09 - Tema dos Deuses ● 10- Santos católicos X ● ●

A página do relâmpago elétrico

Beto Guedes - 1977 H.T./M.

7 M. M. 6

01 - A página do relâmpago elétrico ● ●

02 - Maria Solidária ● 03 -Choveu ● ●

04- Chapéu de sol ● ● 05 - Tanto ● 06- Lumiar ● ●

07- Bandolim ●

08- Nascente ● ● 09- Salve Rainha

Clube da Esquina 2 Milton Nascimento -

1978 H.T./M.

11 M. M. 16

01 - Credo ● 02- Nascente ● ●

03 -Ruas da Cidade ● ● 04- Paixão e fé ● ●

05 - Casamiento de negros ● 06- Olho d´agua ● ●

07- Canôa, Canôa ● 08- O que foi feito Devera

(de Vera) ●

09- Mistérios 10- Pão e água

11- E daí? ● 12- Canção Amiga ●

Page 132: terceira jornada

A ocorrência do hibridismo tonal/modal e do modalismo misto no repertório do Clube da Esquina nos anos de 1967 à 1979

133

Tabela 1 - Ocorrência do Hibridismo Tonal/Modal e do Modalismo Misto nos discos estudados.

Referências bibliográficas CHEDIAK, Almir. Harmonia e Improvisação. Rio de Janeiro: Editora Lumiar, 1986. FREITAS, S. P. R. Dos modos em seus mundos: usos do termo modal na teoria musical. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 18., 2008, Salvador. Anais… Salvador: UFBA, 2008. p.450 - 457. PERSICHETTI, Vincent. Harmonia no século XX: aspectos criativos e prática. São Paulo: Via Lettera, 2012.

Candomblé 11 - Pai Grande ● ●

12 - Sedução ● 13 -Francisco ●

14 - Maria Solidária ● 15 - De repente Maria

sumiu 16 - Eu sou uma preta velha

aqui sentada ao sol ●

17 - Boca a Boca ● 18- Maria Maria

10- Belo Horizonte

13- Cancion por la unidad latino-america

14 - Tanto ● 15- Dona Olímpia ● ●

16- Testamento ● 17- A sede do peixe ●

18- Léo ● ● 19- Maria Maria ● 20- Meu menino ●

21- Toshiro ● ● 22- Reis e rainhas do

maracatu 23- Que bom Amigo ●

Amor de índio Beto Guedes - 1978 H.T./M.

7 M. M. 1

01 - Amor de índio ● 02 - Novena ●

03 -Só primavera ● 04- Findo amor ●

05 - Gabriel 06 - Feira Moderna ● 07- Luz e mistério ●

08- O medo de amar é o medo de ser livre ●

09- Era menino ●

10- Cantar

A Via-Láctea Lô Borges - 1979 H.T./M.

6 M. M. 4

01 - Sempre-viva 02 - Ela ●

03 -A Via-Láctea ● ● 04 - Clube da esquina n°2 ●

05 - A olho nú ● ● 06 - Equatorial

07- Vento de maio ● ● 08- Chuva na montanha

09 - Tudo o que você podia ser

● 10- Olha o bicho livre

11- Nau sem rumo ●

Terra dos Pássaros Toninho Horta- 1979 H.T./M.

4 M. M. 2

01 - Céu de Brasília ●

02 - Diana

03- Dona Olímpia ● ● 04 - Viver de amor

05 - Pedra da lua

06 - Serenade

07 - Aquelas coisas todas ●

08- Falso inglês

09 - Terra dos pássaros / Beijo partido ● ●

10- No carnaval

Sol de Primavera Beto Guedes - 1979 H.T./M.

5 M. M. 6

01 - Sol de primavera

02 - Como nunca ● 03 -Cruzada ● ● 04 - Rio doce ●

05 - Pedras rolando ● ● 06 - Roupa nova ● ●

07 - Norwegian Wood ●

08- Pela claridade de nossa casa ●

09 - Monte Azul ● 10- Casinha de palha

Page 133: terceira jornada

Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

PAULO CÉSAR CARDOZO DE MIRANDA

ECA/USP - [email protected] / [email protected]

om a crescente inter-relação dos campos de conhecimento da Música, da Educação e da Saúde no

Brasil, observou-se a necessidade de investigar os fenômenos decorrentes que envolvem músicos que possuem, ou não, formação para atuarem nas Unidades de Saúde, junto às pessoas internadas, aos profissionais e aos técnicos dessa área.

Nesse sentido, buscou-se por registros atualizados de fontes de dados que ampliassem o escopo de informações e estudos que tratem de forma científica o assunto abordado. No caso do presente estudo utilizou-se o Banco de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo.

As articulações entre tais áreas vêm sendo mais bem discutida nas últimas duas décadas a partir da proposta do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) (BRASIL, 2001), do Ministério da Saúde do Brasil, iniciativa que gerou inúmeras ações nas unidades de saúde por parte de artistas individuais ou em grupos.

No Brasil, no âmbito da Saúde Pública a assistência hospitalar conta com o Sistema Unificado de Saúde (SUS) que disponibiliza vários equipamentos públicos tais como, hospitais e clínicas médicas, centros de atendimentos especializados como AMA, Hospital dia, Centros de atendimentos, entre outros (BRASIL, 2001; HUMANIZASAÚDE, 2015).

Verificou-se que conceitos relacionados às questões do ambiente hospitalar e do indivíduo internado em hospital teriam caráter alusivos às situações de doença, e caracterizariam adjetivos que indicam, no senso comum, aquilo que é indesejável, frustrante, impeditivo, entre outras expressões (BRASIL, 2001).

A hospitalização, vista por um ângulo aberto, é para os internados o distanciamento de sua própria casa e de seus costumes, o despojamento de sua ligação íntima consigo e com seus modos tradicionais de ser. Pode diminuir sua autonomia e implica uma maneira de gestão total desse indivíduo durante a

C

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

135

duração da estadia. (LE BRETON, 2005, p. 11). Uma criança internada submetida a rotinas estressantes passa por momentos de medo, angústia e depressão, às vezes com a ausência de familiares (CALDEIRA, 2007). Esse isolamento social dos internos retira-os de seus círculos de linguagem significativa podendo levar o sistema de consciência a danos significativos, com implicações diretas na saúde e na prevenção ou no agravamento de doenças (LEÃO e FLUSSER, 2008, p. 74).

Por outro viés, diversos autores compreendem que a música atuaria como mediadora nas inter-relações com a pessoa hospitalizada, gerando benefícios para sua saúde e agindo no restabelecimento de interações de qualidade com sua realidade, da qual foi desconectado. A música pode ser estímulo para respostas fisiológicas, emocionais, sociais, comunicacionais entre outras. Sua vivência na relação com o internado viria a produzir mudanças no estado geral de bem-estar e de saúde, disposição, motivação, autoestima, demonstrados pela afetividade e solidariedade que se apreendem pelos gestos, olhares e toques ocorridos durante a execução musical. A música nos hospitais apresenta-se como uma linguagem apropriada para uma ação de humanização das instituições sociais e de saúde, gerando um diálogo entre sujeitos, criando um espaço de liberdade nas relações de cuidados (LEÃO, 2008, p. 4-5; FLUSSER, 2013, p. 31-74).

Aponta-se, finalizando, que o presente estudo é parte integrante de pesquisa em andamento em nível de Doutorado e tem por objetivo apresentar, em recorte, investigação de fontes bibliográficas que registraram reflexão a respeito das relações das áreas de Música, Educação Musical e de Saúde, que se justifica devido ao pequeno escopo de textos que discute a temática abordada. Conta com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) desde o mês de maio de 2015.

Métodos

Desenho do estudo

Para o presente texto, utilizou-se como metodologia o levantamento de fontes bibliográficas em nível de pós-graduação, teses e dissertações acadêmicas, por meio do campo

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

136

de busca pesquisa simples disponibilizado na internet pelo site do Banco de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo (USP), valendo-se das palavras-chave em português, a saber: Música e Saúde e Educação Musical e Saúde. Não houve limitação por data de divulgação dos artigos no banco de dados, abrangendo toda informação disponível.

Pressupostos teóricos

As referências em música e em educação musical centraram-se na visão de que o jogo e a atividade lúdico-sonora se tornam um elo relacional, integrador dos aspectos cognitivos, afetivos, sociais e de saúde, gerando possibilidades de convergência dos campos de conhecimento da Música e da Saúde. Embasou-se em autores como Flusser (2013), Fonterrada (2008), Koellreutter (1997), Schafer (2001), que concordam que o envolvimento do sujeito pode gerar expressivas mudanças na natureza da sua percepção objetiva e subjetiva do ambiente musical e humano em geral. Apoia-se no pensamento de que “o objetivo da educação musical é musicalizar, ou seja, tornar um indivíduo sensível e receptivo ao fenômeno sonoro, promovendo nele, ao mesmo tempo, respostas de índole musical” (GAINZA, 1988, p. 101).

Fundamenta-se, por outro viés, na visão social, com foco no conceito das Representações Sociais, assim como compreendido por Moscovici, para quem “o importante é a natureza da mudança, através da qual as representações sociais se tornam capazes de influenciar o comportamento do indivíduo participante de uma coletividade” (MOSCOVICI, 2013, p. 40).

Resultados

O levantamento realizado encontrou um total geral de 22 trabalhos, dos quais 4 destes se repetem em ambas as palavras-chave. Para sua análise, após leitura dos textos integrais, foram distribuídos em campos temáticos aglutinadores e estão descritos por síntese de conteúdos.

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

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1 - Música e Saúde – Total 16 Enfermagem Terapia auxiliar - Total: 8 1Eliseth Leão (terapia complementar - tratamento da dor) (mestrado); 2Ana Paula Almeida (estímulo musical – redução de ansiedade em mães de crianças internadas) (mestrado); 3Ana Cláudia Pugina (estímulo musical) (doutorado); 4Ana Cláudia Pugina (estímulo de musical vocal em pacientes em estado coma) (mestrado); 5Ana Cláudia Valadares (arteterapia – saúde mental) (mestrado); 6Gatti M. F. Z. (tratamento estrés profissionais da saúde) (doutorado); 7Juliana Leonardi (Canto e dança saúde do cuidar) (mestrado); 8Juliana Leonardi (logomúsica – psiquiatria - Musicoterapia saúde mental) (doutorado). Medicina (ciências médicas) - Total: 2 1Veronique Lima (música paliativa durante operação distúrbios urogenitais) (mestrado); 2Marco Janaudis (música - instrumento de reflexão para estudante de medicina) (doutorado); Odontologia – Terapia - Total: 4 1Marina Paneli (avaliação audição) (mestrado); 2Nicolle Sant’ana (saúde auditiva) (mestrado); 3Paula Martins (distúrbios da comunicação - educação musical e habilidades sociais escolares na criança) (mestrado); 4Ana Carolina Junqueira (efeito da música no estrés de cirurgias odontológicas) (mestrado); Saúde pública - Total: 1 1Flora Maria Gomide Vezzá (Terapia para músicos com doenças musculares) (doutorado); Engenharia (elétrica) (Escola Politécnica) - Total: 1 1Ana Grasielle Corrêa (reabilitação física com musicoterapia) (doutorado).

Tabela 1

2 - Educação Musical e Saúde - Total 6 Enfermagem - Terapia auxiliar - Total: 2 1Juliana Leonardi (Canto e dança na saúde do cuidar) (mestrado); 2Juliana Leonardi (logomúsica – psiquiatria - Musicoterapia na saúde mental) (doutorado); Enfermagem - Total: 1 1Vinícius da Silva (Saúde Coletiva – Rap e drogas) (mestrado); Medicina (ciências médicas) - Total: 2

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

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1Veronique Lima (música paliativa durante operação distúrbios urogenital) (mestrado); 2Marco Janaudis (música - instrumento de reflexão para estudante de medicina) (doutorado); Educação física - Total: 1 Ângelo Battaglion Neto (Recursos musicais na Educação Física – Saúde Pública) (mestrado (?)).

Tabela 2

Discussão

O presente estudo limitou-se a fazer um levantamento de dados bibliográficos em nível de mestrado e doutorado no site do Banco de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo (USP). Tal revisão teve por interesse investigar as possíveis conexões entre as áreas de Música e de Saúde com sua consequente produção acadêmica sobre o tema abordado, na esfera desta reconhecida Universidade com expressão nacional.

Observou-se que no domínio de ambas as palavras-chave (tabelas 1 e 2), a área de saúde produziu a quase totalidade de documentos (20 artigos), distribuídos em campos como: Enfermagem: Total 11 documentos (1.Música e Saúde: 5 dissertações de mestrado e 2 teses de doutorado – total 7 – 2.Educação Musical e Saúde: 2 dissertações de mestrado e 1 tese de doutorado – total 3); Medicina: Total 4 documentos (1.Música e Saúde: 1 dissertação de mestrado e 1 teses de doutorado – total 2 - 2.Educação Musical e Saúde: 1 dissertação de mestrado e 1 teses de doutorado – total 2 (mesmos autores e documentos iguais em ambas palavras chaves); Odontologia: Total 4 documentos (1.Música e Saúde: 4 dissertações de mestrado – total 4 – 2.Eucação Musical e Saúde: nenhum documento disponível); Saúde Pública: Total 1 documento (1.Música e Saúde: 1 tese de doutorado – total 1 – 2.Eucação Musical e Saúde: nenhum documento disponível)

Outras áreas produziram um total de 2 documentos, (tabelas 1 e 2): Engenharia (elétrica): Total 1 documento (1.Música e Saúde: 1 tese de doutorado – total 1); Educação

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

139

Física: Total 1 documento (2. Educação Musical e Saúde: 1 dissertação de mestrado - total 1).

Observou-se que grande maioria destas pesquisas utiliza a música atendo-se a alguma de suas funções específicas e que pode estar relacionada com:

a) terapia no tratamento de uma doença física ou mental ou distúrbios na saúde: Eliseth Leão (terapia complementar tratamento dor); Ana Paula Almeida (estímulo musical – redução de ansiedade em mães de crianças internadas); Ana Cláudia Pugina (estímulo musical); Ana Cláudia Pugina (estímulo de musical vocal em pacientes em estado coma); Gatti (tratamento estrés profissionais da saúde); Jiliana Leonardi (logomúsica – psiquiatria - Musicoterapia saúde mental); Ana Carolina Junqueira (efeito música estrés cirurgias odontológicas); Flora Maria Gomide Vezzá (Terapia para músicos com doenças musculares); Ana Grasielle Corrêa (reabilitação musicoterapia); b) tratamentos paliativos: Veronique Lima (música paliativa durante operação distúrbios urogenital); Juliana Leonardi (Canto e dança saúde do cuidar); Ana Cláudia Valadares (arte terapia – saúde mental); c) avaliações de estado de saúde: Marina Paneli (avaliação audição); Nicolle Sant’ana (saúde auditiva); d) finalidades educacionais ou de ensino e aprendizagem: Angelo Battaglion Neto (Recursos musicais na Educação Física); Paula Martins (distúrbios comunicação - educação musical e habilidades sociais escolares na criança); Marco Janaudis (música instrumento reflexão para estudante medicina); e) música e sociedade: Vinícius da Silva (Saúde Coletiva – Rap e drogas).

Tabela 3

Encontraram-se indícios de uma baixa densidade na produção de trabalhos acadêmicos na base de dados pesquisada. Podem ser considerados números pouco expressivos se comparados com os quadros gerais de produção de pesquisa em Saúde e em Música, distintamente. Esclarece-se que em outras bases de dados foram encontrados artigos em Musicoterapia e Neurociências, que são campos destacados e que tem um registro histórico considerável nas áreas de conhecimento aqui estudadas, mas por não terem relação direta com o recorte proposto, não foram incluídos.

Ao se avaliarem os dados levantados observou-se um número pequeno de estudos relacionados com a educação, e estes se propõem a analisar a música em contextos amplos da área de saúde não apontando, por exemplo, para sua prática

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

140

nos ambientes hospitalares ou unidades de saúde, restringindo-se a verificar a função da música em aulas de educação física, como promotora de saúde ou ao conteúdo de reflexão para estudantes de medicina (quesito d., tabela 3), ou ainda relacionando um gênero específico de música, como o Rap, às questões de saúde pública, em um âmbito social e/ou comunitário.

Por outro lado não se observaram documentos produzidos na área de Música ou de Educação Musical da Universidade de São Paulo afins com o foco do presente estudo, lacuna esta que solicita futuras reflexões, com a profundidade que a temática exige, considerando-se maior urgência ao se ter conhecimento de que a própria universidade mantêm duas unidades de saúde, a saber-se: o Hospital das Clínicas de São Paulo, pertencente à Faculdade de Medicina da USP e o Hospital Universitário (H/U – USP).

Finalizando, destaca-se que é possível apreender-se, com o presente estudo, que as atividades da Educação Musical nas unidades de Saúde ainda tem história recente e um escopo de produção acadêmica que necessita ser elaborada, tendo-se por base ações práticas e educativas que poderiam ser enriquecidas ao se levar em conta a capacidade de conexões interdisciplinares que tais campos são portadores em potencial.

Com base no estudo, é possível observar indícios de que começa a se configurar um quadro afirmativo no que diz respeito à elaboração de atividades de cunho músico-educacional na área da Saúde, que sugerem iniciativas de elaboração de conhecimento teórico e de práticas de atuação da Educação Musical em Unidades de Saúde, em território nacional.

Espera-se que tais observações suscitem novos trabalhos e pesquisas nas áreas afins, e que tenham apontado, ainda que de modo embrionário, a necessidade de que sejam abertas vias alternativas para atividades interdisciplinares nos campos de conhecimento da Educação Musical e da Saúde, maleáveis o suficiente para abrigarem em seu interior os desafios que a sociedade do século XXI já está enfrentando.

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Música e Saúde: campos de conhecimento em convergência

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Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2001. CALDEIRA, Z. A. O papel mediador da educação musical no contexto hospitalar: uma abordagem sócio-histórica. 2007. 121f: Il + anexo. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes – UNESP. São Paulo: [s.n], 2007. Disponível em <http://www.ia.unesp.br/Home/Pos-graduacao/Stricto-musica/dissertacao_zoica_caldeira.pdf> FONTERRADA, M. T. de O. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação. – 2. ed. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Funarte, 2008. FLUSSER, V. Músicos do Elo: músicos atuantes humanizando hospitais. Documentário Vídeo de Luiz Fernando Santoro. São Paulo: Annablum, 2013. GAINZA, V. H. Estudos de Psicopedagogia musical. Trad. de Beatriz A. Cannabrava. 3. ed. São Paulo: Summus, 1988. (Coleção novas buscas em educação; v. 31) HUMANIZASAÚDE. Política de Humanização de Assistência a Saúde: PHAS. Coordenação PHAS - ESP- Secretaria de Estado da Saúde/RS. © 2005. Disponível em: <http://www.humanizasaude.rs.gov.br/site/artigos/manual/>. Acesso em: 10 mai. 2015. KOELLREUTTER, H-J. Sobre o valor e o desvalor da obra musical. In. Kater, Carlos (org.) Cadernos de Estudo: Educação Musical. Belo Horizonte: Atravez / EM UFMG / FEA / FAPEMIG, 1997, p.69-75. LEÃO, E. R.; FLUSSER, V: Música para idosos institucionalizados: percepção dos músicos atuantes. Rev Esc Enferm USP, 2008; 42(1), p. 73-80. www.ee.usp.br/reeusp. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v42n1/10.pdf>. Acesso em: 9 ago. 2013. LE BRETON, D. Música no Hospital. Site do Projeto Elo, seção Ponto de Vista, dez. 2005, n. 2, p. 8-13. Disponível em: <http://www.musicos-do-elo.org/para-saber-mais/textos-teoricos>. Acesso em: 12 mar. 2014. MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Tradução Pedrinho A. Guareschi. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. SCHAFER, M. A afinação do mundo. A paisagem sonora. Tradução Marisa T. O. Fonterrada. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2001.

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A arte de educar, a educação estética e a música na educação, sob a perspectiva do desenvolvimento humano integral, segundo Rudolf Steiner

DANIELA AMARAL RODRIGUES NICOLETTI

ECA/USP - [email protected]

SILVIA MARIA PIRES CABRERA BERG FFCLRP/USP – [email protected]

uando o pensador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925) fundou a Escola Waldorf Livre em Stuttgart, em 1919, proferiu uma série de conferências formativas ao seu

corpo docente. Fundamentadas nos princípios da Antroposofia, essas vieram a disseminar um movimento de transformação do pensamento e das práticas pedagógicas vigentes, desencadeando uma ampla multiplicação de escolas dirigidas sob essa perspectiva e concepções filosófico-pedagógicas.

Steiner, nessa data, já havia, entretanto, exercido uma intensa atividade como conferencista e havia publicado duas obras filosóficas capitais para a elaboração da sua Ciência Espiritual Antroposófica: A Filosofia da Liberdade e O método cognitivo de Goethe. Essa última, escrita em 1886, obra de juventude ratificada na maturidade e mantida praticamente inalterada na revisão feita 25 anos depois, deriva das suas reflexões como editor e comentador dos escritos científicos de Goethe, a partir de 1882, para a Deutsche National-Litteratur (Literatura Nacional Alemã). Assim como Goethe, Steiner não via entre ciência, filosofia e arte a separação inconciliável imposta pela compartimentação moderna dos saberes em especialidades. O método contemplativo de Goethe inspira o pensamento steineriano de que “a ciência contempla a ideia através do sensorial” (STEINER, 2004). De acordo com esse, o modo de observação advem do próprio objeto, para desvelar a essência subjacente ao seu envoltório sensorial, evitando, assim, a distorção de um dogmatismo de princípios. A percepção desencadeia o pensar, dando origem ao conceito, e oferece a especialização deste, que permanece aberto para outras experiências (STEINER, 2004, p. 60).

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Steiner, que aponta a revolução científica do século XIV58 como uma etapa fundamental para o desenvolvimento da humanidade, pela emancipação dos dogmas eclesiásticos, adverte, no entanto, para a unilateralidade oposta que o materialismo impingiu à ciência: “Naquele tempo via-se o espiritual tão unilateralmente como hoje vemos unilateralmente o existente na natureza.” (STEINER, 2014, p. 29). Segundo ele, uma decorrência disso, é a perda

da confiança na própria atividade interior do ser humano, na possibilidade do irromper de conhecimentos que vêm do próprio ser humano diante da vida exterior, da aparência sensória e do conhecimento intelectual. (...) (STEINER, 2014, p. 22)

De acordo com ele, o conhecimento verdadeiro do ser humano só é possível dentro de uma cosmovisão mais ampla e profunda da realidade, acrescida de uma dimensão perdida nesta guinada cultural: o aspecto espiritual-anímico.

A arte de educar

A essência de todas as conferências pedagógicas de Rudolf Steiner concentra-se expressamente na ideia de liberdade do educador: “Não existem prescrições, apenas o espírito da Escola Waldorf. (…) O professor é autônomo e pode

58 Parece-nos que STEINER refere-se aqui ao Renascimento italiano e suas irradiações pelo velho continente como origem da Revolução Científica, que, para muitos historiadores, teve início apenas no século XVII, com o advento do cartesianismo. Nesse período histórico precedente, ocorre uma importante transição do pensamento místico medieval para o pensamento “pré-científico”, que redescobre a “ciência antiga”, submetida às verificações de práticas concretas. Mais referências disponíveis em: 19 de novembro de 2015, no sítio: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2012/10/a-revolucao-

cientifica-moderna.html.

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perfeitamente, dentro desse espírito, fazer o que considera correto.” (STEINER, 2013, p. 30)

Não há um método de ensino pré-determinado, visto que o processo educativo será concebido em função dos educandos, atendendo às necessidades de desenvolvimento de um grupo, considerado como uma pequena célula-social, em que cada indivíduo é portador de um devir. A consciência da responsabilidade do educador ante o educando, como um ser complexo, dotado de heranças espirituais, além de genéticas e socioculturais, deve nortear qualquer processo autêntico de ensino-aprendizagem, inspirando disposições e posturas pedagógicas de respeito e interesse pelo conhecimento verdadeiro da criança. Utilizando-se da metáfora goethiana de A metamorfose das plantas, ele afirma:

A vida humana só existe uma vez, e suas flores futuras nunca tiveram existência anterior. Não obstante, estas preexistem no homem como disposição, como é o caso das flores numa planta que momentaneamente só carrega folhas (STEINER, 2012, p. 12).

Steiner preconiza uma educação que seja arte, tendo como aspectos essenciais da sua prática a criatividade do educador e uma percepção acurada da realidade, da constituição e características que delineiam o desenvolvimento dos educandos e de si próprio.

Assim como é impossível ao artista recorrer a um livro sobre estética a fim de pintar ou esculpir conforme princípios da estética, o professor jamais deveria ensinar recorrendo a um daqueles receituários pedagógicos. (STEINER, 1997, p. 18)

O educador é portador de um conhecimento, adquirido durante a sua experiência de aprendiz, porém a arte de educar situa-se na capacidade de reinventar esse conhecimento, tornando-o vivo, ao invés de expor uma peça morta, seja a

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memória de um conceito, seja um modo pronto ou direção do agir ou do pensar diante do mundo. O “processo pedagógico vivo” que Steiner propõe caracteriza-se por tratar de um tipo peculiar de saber, comum ao saber artístico, “que adquirimos por produzir algo”. Por isso, apresenta o seguinte paradoxo, fazendo analogia entre pedagogia e arte:

Não acredito que exista um verdadeiro artista que não diga (a si mesmo) ao terminar uma obra: “Só agora você seria capaz de fazê-la.” (…) o elemento vivo, a fonte de vida, reside no fato de algo ainda não se haver transformado em saber”. (STEINER, 1997, p. 19 e 20)

O filósofo austríaco, segundo o psicólogo Bernard Lievegoed, concebe o desenvolvimento da vida humana em dez períodos de sete anos ou setênios, vistos como “distâncias ideais em torno das quais se movimenta o desenvolvimento individual” (LIEVEGOED, 1994a, p. 33). Adotando o mesmo marco de divisão da vida em fases que a cultura grega, considera que os três primeiros setênios são dedicados ao desenvolvimento físico e mental, os três seguintes ao verdadeiro desenvolvimento psicológico, sucedendo-se outros três votados ao desenvolvimento do espírito. Há, de acordo com Steiner, uma integração entre o desenvolvimento físico-orgânico e anímico-espiritual da criança. A unidade entre corpo, alma e espírito59 faz com que as transições sejam fluentes, embora claramente perceptíveis, consistindo numa reorganização do seu equilíbrio. Assim como o corpo físico, as

59 LIEVEGOED explica a concepção ternária do ser humano, sob o ponto de vista de Steiner, tendo a alma humana (psique) como âmbito em que coexistem os impulsos e paixões corporais assim como a potencialidade biográfica inerente ao “eu”, esfera espiritual em que reside a consciência de Si, o cerne mais íntimo dessa tríplice entidade (LIEVEGOED, 1994, p. 11). Relaciona ainda corpo, espírito e alma aos impulsos da matéria, da forma e lúdico aos quais não nos ateremos aqui em descrever, pela limitação da extensão do artigo (cf. SCHILLER, 2011).

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forças da vida psíquica – o querer, o sentir e o pensar – existem em germe e amalgamadas no ser humano desde o seu nascimento e participam de suas metamorfoses ao longo da vida, interagindo com as forças orgânicas. Esse processo dinâmico guarda uma singularidade para cada indivíduo, gravitando entre os setênios, como marcos ideais. É a observação da criança que permite ao educador identificar a sua situação no quadro do seu desenvolvimento e verificar sua aptidão para o aprendizado. Entende-se, sob o ponto de vista da Pedagogia Waldorf e da Antroposofia, que a antecipação ou aceleração de etapas no processo de ensino-aprendizagem da criança pode prejudicar a plenitude do desenvolvimento de suas potencialidades, considerando que a educação proporciona ocasião e meios para a manifestação de um devir imanente, preexistente à prerrogativa sócio-cultural.

No segundo setênio, delimitado pela segunda dentição e o início da puberdade, há um florescimento da vida anímica. Por isso, a relação da criança com o mundo é marcada pela fantasia imaginativa, o que, conforme Steiner, só pode ser comparada a uma concepção artística da vida, requerendo do educador uma atitude correspondente.

(…) para a segunda etapa da vida, da troca dos dentes até a maturidade sexual, tem muito mais importância conseguir-se traduzir para o imagético, em configurações vivas, aquilo que se quer desenvolver em torno da criança e que se deva fazer fluir para dentro dela, do que a multiplicidade de conteúdos que aprendidos (…).” (STEINER, 2014, p. 16)

Embora o professor deva atuar sobre o sentir, este deve estar harmonizado ao querer e ao pensar, evitando-se qualquer tipo de unilateralidade.

O pensar tem de permear o querer – é nisso que consiste a educação; mas o caminho correto passa pelo sentir. (…) Planejamento e improvisação, ciência e arte devem estar simultaneamente presentes.” (LANZ, 2011, p. 92)

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Para Steiner, o impulso volitivo é o que lança o educando ao movimento do aprendizado; o conhecimento, associado à memória e, portanto, ao passado, a algo cristalizado, tem de ser posto em movimento, vitalizado, por esse querer, a que deve estar sintonizado o professor, nunca o aniquilando. O educador tem, portanto, de estar tão familiar ao conhecimento, com a consciência de sua imperfeição, que possa adquirir uma liberdade em relação a métodos ou planejamentos e agir conforme a compreensão das necessidades e das transformações por que passam os educandos ao longo do processo de ensino-aprendizagem. Nas suas palavras, “o artístico tem de ser um acontecimento entre o professor, o educador e o ser humano em crescimento.” (STEINER, 2014, p. 34)

As crianças são sempre mundos novos que se descortinam. Essa postura, preconizada por Steiner nos remete diretamente ao conceito de “formação de si” (Bildung60), em Goethe, que, como observa SUZUKI, consiste em uma formação recíproca com os outros, trabalho de transformação que é identificado por ele “muito antes de Nietzsche e Foucault” à criação de uma obra artística (SUZUKI, 2012, p.158). O mesmo aponta outra ressonância de Goethe em Steiner: “O verdadeiro ensinamento deles (os mestres) vem menos da matéria que ensinam do que da matéria do que da capacidade inesgotável que têm de fecundar e formar (…).” (SUZUKI, 2012, p. 155)

Nunca haverá duas salas iguais. No entanto, ainda que cada realidade seja repleta de singularidades, há recorrências, o que torna possível, nesse processo cognitivo, depreender uma espécie de ideia que abarca toda a diversidade, que já a contenha toda em potencial. Esse seria o tipo, a planta primordial, a que se refere Goethe, em sua obra A Metamorfose das Plantas. Na metodologia steineriana, o educador orienta-se pelo conhecimento do arquétipo da criança, ajustado ao indivíduo único com que se depara – ajustando entre o eterno/ ideal e o atual/ real.

60 CAMARGO, em sua tese de Doutorado, informa o histórico do termo e da concepção de Bildung.

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Conclusão

A ideia geradora deste artigo foi trazer à tona uma parte do pensamento filosófico de Rudolf Steiner, que alicerça a Pedagogia Waldorf, sobretudo no que concerne à aproximação entre a educação e o fazer artístico, fazendo com que a educação estética ou da percepção sensorial seja um componente de fundo em toda atividade e relação entre educador e educando. Seu intuito foi criar um campo de reflexão sobre a prática pedagógica em Música, sob a perspectiva do desenvolvimento humano integral, considerando-a também como campo de criação e construção de conhecimento e da identidade humana. Elucidar sua relação ou filiação à obra filosófica, artística e científica de Goethe e de Schiller foi de auxílio para ampliar a compreensão do pensamento steineriano, que, por outro lado, atingiu avanço notável no terreno pedagógico.

Pode-se concluir que, de acordo com a concepção de Rudolf Steiner, a aula de Música exerce uma função essencial na educação, ao proporcionar um balanceamento na requisição do desenvolvimento de capacidades e habilidades associadas ao intelecto, evitando unilateralidades e buscando o equilíbrio do ser humano na sua tríplice dimensão – corpo, mente e espírito.

A cosmovisão goethe-schilleriana, em que Steiner fundamenta a Antroposofia, considera que filosofia, ciência e arte não são domínios separados por seus objetos, mas unificados pela atividade do espírito humano, sendo a cognição uma elaboração da experiência. São, portanto, processos criativos capazes de desvelar a realidade, encontrando liames que organizam e esclarecem a multiplicidade caótica de aspectos percebidos pelos sentidos. Por isso, a Música, como arte, detém uma posição de relevância, pela atividade sensorial, intelectual e criativa que instiga.

No entanto, conforme preconiza Steiner, a educação desenvolve o indivíduo à medida que se apresenta pronto e atendendo às necessidades do seu vir-a-ser oculto, evitando antecipar-se ao seu tempo próprio de tornar-se apto ao aprendizado, o que pode acarretar um sofrimento

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desnecessário e o tolhimento de suas particularidades. É responsabilidade do educador contemplar as necessidades da coletividade real que se lhe apresenta em uma sala de aula, sem nivelamentos, de modo que a dificuldade de um promova o enriquecimento de todos, como um dos aspectos da arte de educar. Por isso, o professor precisa aprender a ler a natureza dos educandos e acompanhar suas transformações no decurso do processo de ensino-aprendizagem, sem impingir-lhes sua vontade, suas disposições prévias ou um programa de ensino engessado. De acordo com essa concepção, o conhecimento é vivo, sempre que recriado, transformado a partir da interação com os educandos, ao invés de reproduzido como aprendido pelo educador, matéria morta, estagnada na memória. O valor do processo de ensino-aprendizagem está na experiência plena de sentido, aberta a múltiplos sentidos, à improvisação, ao imponderável que se entretece nesta relação em busca da compreensão.

Referências bibliográficas:

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______________. A educação da criança segundo a Ciência Espiritual. Trad: Rudolf Lanz. São Paulo: Antroposófica, 2012. ______________. Antropologia meditativa: contribuição à prática pedagógica. Trad: Rudolf Lanz. São Paulo: Antroposófica, 1997. ______________. O método cognitivo de Goethe. Trad: Bruno Callegaro, Jacira Cardoso. São Paulo: Antroposófica, 2004. SUZUKI, M. Os anos de aprendizado filosófico de Johann Wolfgang Goethe. Revista Discurso, no. 42, 2012.

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O perfil do regente-arranjador e a presença de arranjos no repertório coral brasileiro

CAROLINA ANDRADE OLIVEIRA ECA/USP - [email protected]

SUSANA CECILIA IGAYARA-SOUZA

ECA/USP - [email protected]

m nossa pesquisa de mestrado, buscamos investigar, identificar e analisar as práticas do regente-arranjador

no ensaio e na performance de seus próprios arranjos de música brasileira, bem como discutir a circulação desse repertório no ambiente coral.

Através de um levantamento bibliográfico, foram localizados trabalhos que versam sobre arranjadores (SILVA; BORÉM 2005; TEIXEIRA, 2013; SOARES, 2013), sobre a técnica dos arranjos (SOBOLL, 2007; CARVALHO, 2009, 2013; PEREIRA, 2013), sobre a discussão do arranjo na cultura brasileira (CAMARGO, 2010; MÜLLER, 2013) e sobre arranjo e educação musical (SOUZA, 2003).

Para este artigo, focamos em dois aspectos. O primeiro é o perfil do regente-arranjador, a partir da investigação das trajetórias acadêmicas e profissionais de um grupo de pessoas atuantes no ambiente coral brasileiro a partir dos anos 70 até hoje, como regentes e arranjadores de coros ou grupos vocais. Nesta fase da pesquisa, recorremos ao uso da prosopografia61, recolhendo dados biográficos de regentes-arranjadores e formando um mapa analítico das categorias consideradas fundamentais para entender como se forma um profissional com esse perfil. O segundo aspecto é a presença de arranjos no repertório coral. Através de uma análise quantitativa utilizando programas de concertos de encontro corais, identificamos a porcentagem de arranjos em relação à de composições.

61 “A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na história por meio de um estudo coletivo de suas vidas.” (STONE, 2011, p. 115).

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O perfil do regente-arranjador e a presença de arranjos no repertório coral brasileiro

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Metodologia

Evitando correr o risco de generalizar alguns resultados, optamos por fazer um recorte geográfico e temporal, para trabalharmos com um número menor de dados. Para a aplicação do método prosopográfico, definimos listar regentes-arranjadores do Sudeste do Brasil (nascidos e/ou que atuaram nele) e atuantes partir dos anos 1970, com algum arranjo de música brasileira em sua produção.

Para a coleta de dados biográficos, escolhemos utilizar apenas fontes provenientes da internet. Apesar de essa escolha eliminar não usuários de internet, acreditamos que abrange a maior parte da comunidade coral, visto que se usa cada vez mais esta tecnologia para facilitar a reunião de pessoas, o que é uma característica inerente a grupos corais. Através da internet, fizemos uso de diversas fontes: currículos artísticos; currículos lattes; Artigos, teses ou dissertações; redes sociais e sites de compartilhamento de áudios ou vídeos; sites diversos da área coral.

Para formar um mapa analítico, foram escolhidas e categorizadas as seguintes variáveis: Gênero; Local de nascimento; Ano de nascimento; Local de atuação como regente-arranjador; Formação musical; Outras formações; Instrumentos que domina/Canto; Profissão principal; Gênero musical; Atividade coral desde quando; Coros em que trabalha (trabalhou) [tipo]; Repertório.

Para investigar a presença de arranjos no repertório coral, analisamos programas de concerto, comparando a quantidade de arranjos em relação à de composições, também separando músicas brasileiras e internacionais. A pesquisa analisará algumas séries de encontros corais, para este trabalho será analisada a “Mostra Vocal” em suas primeiras quatro edições (1991 a 1994). Esta série foi coordenada pelo regente-arranjador Marcelo Recski e promovida pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo.

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Análise dos dados: perfil do regente-arranjador

Nossa pesquisa coletou dados de 32 regentes-arranjadores (Sudeste, desde 1970). Algumas das informações inicialmente escolhidas para serem coletadas nesta pesquisa simplesmente não são encontradas na grande maioria dos currículos artísticos e demais fontes analisadas.

“Outras formações”, que talvez viesse a confirmar uma suspeita nossa de que regentes-arranjadores vêm de outras áreas que não a música, não foram informadas em 81% dos currículos. Mas não há como saber se esta falta de informação é por inexistência ou omissão. O fato é que nossa suspeita não se confirmou, visto que apenas 12% não têm ou não informam sua formação (musical ou não). Os outros 88% têm formação musical (inclusive os que declaram outras formações). Os níveis de formação musical vão de técnico a doutorado.

Ainda relacionado à formação do regente-arranjador, “atividade coral desde quando” é um dado quase sempre desprezado nos currículos, talvez por não considerá-lo importante em sua descrição profissional, os pesquisados não o fornecem, assim como “ano e local de nascimento” – os poucos dados encontrados foram obtidos em redes sociais. Localizar quando o indivíduo adentrou no ambiente coral – normalmente iniciando como coralista – torna-se quase impossível, visto que currículos artísticos tendem a não narrar inícios de carreira e ambientes de aprendizagem. Paz (2014) relata o “silêncio dos dados” de sua pesquisa, analisando a ausência de informações sobre as primeiras e últimas aprendizagens de músicos da elite musical portuguesa:

Muitos artistas foram formados em contexto profissional e, nos vários momentos em que as suas biografias foram escritas e rescritas, nem sempre fez sentido nomear determinado ambiente como local de aprendizagem. [...] incapazes de designar muitas aprendizagens como tal, as narrativas de vida fazem frequentemente surgir do passado figuras que, com algum tipo de educação ou contacto com a prática musical, rapidamente passaram a um estádio de excelência musical que as tornou dignas de memória. Ou

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será, no limite, impossível designar este primeiro e este último ambiente de formação? (PAZ, 2014, p.13-14).

Os “gêneros musicais” e o “repertório” são informações também desconsideradas nos currículos. Isso nos sugere uma possível característica: a diversidade de gêneros e repertórios trabalhados, considerando que estes indivíduos atuem em mais de um grupo com perfis diferentes, ou diversifiquem o repertório num mesmo coro. Posteriormente, isto será verificado através de análise dos programas e das entrevistas. Como as fontes indicam apenas o nome dos coros, sem preocupações com descrições, “coros que trabalha (trabalhou) [tipo]” também necessitará uma investigação secundária.

Seguindo a metodologia da prosopografia, ou seja, buscando uma biografia coletiva do regente-arranjador coral a partir de 1970 no sudeste brasileiro, vemos: 75% masculino, nascido e/ou atuante principalmente em São Paulo (28% e 40%), 53% dos que declaram sua formação musical possui pós-graduação, 25% pianista, 62% tem como profissão principal ser regente coral e 75% exerce atividade de docência.

Trabalham fora do Sudeste somente dois dos regentes-arranjadores nascidos nele. A discussão sobre migração foge do âmbito deste trabalho, mas este dado reforça a opinião geral de um mercado de trabalho bastante ativo no Sudeste.

Gráficos 1 e 2: Local de nascimento e Local de atuação.

Apenas 12% dos pesquisados é formado em Regência, apontando uma forte característica do regentes-arranjador que é a multidisciplinaridade, com bacharéis em instrumento ou licenciadas. As formações também apontam para carreiras acadêmicas, visto que mais da metade possui pós-graduação.

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Gráficos 3 e 4: Formação musical e Outras formações.

Entre os regentes-arranjadores há um predomínio de pianistas (25%), violonistas (18%) e cantores (18%), porém vale ressaltar que 46% não declarou que instrumento domina ou se é cantor em nenhuma das fontes pesquisadas.

Gráfico 5: Instrumento que domina / Canto.

Grande parte dos regentes-arranjadores (62%) tem como profissão principal ser regente coral, seguido por ser professor universitário (18%). Porém a maioria (75%) é ou atuou também como professor, seja em conservatórios, escolas regulares, universidades, festivais etc. O que reafirma a estreita relação do ambiente coral com a educação musical.

Gráficos 6 e 7: Profissão principal e Se é professor.

Análise dos dados: presença de arranjos

Nossa pesquisa analisou os programas de concerto das quatro primeiras edições da “Mostra Vocal”, listando e categorizando as músicas executadas pelos coros adultos

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participantes62. Definimos quatro categorias: Composições internacionais; Arranjos de músicas internacionais; Composições brasileiras; e Arranjos de músicas brasileiras, sendo esta última o principal foco de nossa investigação.

No decorrer das edições, a quantidade de coros participantes variou – de 8 grupos na primeira edição, para 23 na quarta – o que, consequentemente, fez variar bastante a quantidade de músicas executadas – de 50 para 125 –, porém podemos perceber algumas tendências e predominâncias de repertório ao longo de todas as edições63.

Observando os gráficos separados das edições, vemos que há um predomínio de arranjos em relação a composições (1ª 76%, 2ª 82%, 3ª 55% e 4ª 66%). Se considerarmos somente os arranjos de música brasileira, ainda teremos maioria, com exceção da 2ª edição, em que a quantidade de arranjos internacionais é maior. Essa alteração pode ser explicada por uma forte tendência da época de spirituals afro-americanos no repertório, tendo, por exemplo, um dos coros, feito um programa inteiro com esse gênero.

Vários grupos têm seus programas inteiros só com arranjos, e alguns deles executam somente arranjos de músicas brasileiras, como o “Coralusp grupo tarde” (2ª edição) e o “Coral Una Voz” (4ª).

Gráfico 8: Presença de arranjos x composições nas edições 1, 2, 3 e 4,

respectivamente, da “Mostra Vocal”.

62 Os coros infantis e infantojuvenis não foram considerados na pesquisa por se dedicarem a um repertório específico para essas formações vocais, fugindo do âmbito desta pesquisa que se dedica a coros adultos. 63 Ressaltamos que alguns coros não informaram seus repertórios até o fechamento dos programas para serem impressos. Também é sabido que algumas vezes os grupos não executam exatamente o que foi informado nos programas.

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Dos 36 grupos, listamos 282 músicas executadas, das quais 187 são arranjos, sendo 119 de música brasileira, que foram subcategorizados, dividindo-os em: Arranjos do próprio regente; Arranjos de outro regente; e Arranjos de outros64.

Muitos grupos executam arranjos de seu próprio regente (22%), como o “Madrigal Meia Boca” – A. Zilahi (4ª edição) e o “Grupo Canto Porque Gosto” – Julio G. Maluf (3ª). Porém boa parte dos arranjos executados foi feita por regentes de outros grupos (47%), o que diz muito sobre a circulação massiva desse tipo de repertório entre os coros. Unindo estas duas parcelas, temos 69% dos arranjos sendo criações de regentes-arranjadores.

Gráficos 9 e 10: Acumulado das edições da “Mostra Vocal” e Arranjos de

música brasileira feitos por regentes-arranjadores.

Considerações finais e próximos passos da análise

Como resultados parciais, temos um perfil preliminar do regente-arranjador e uma confirmação do seu papel na transformação das práticas corais a partir dos anos 70. Confirmamos também o potencial do método prosopográfico e dos programas de concerto na análise da circulação do repertório coral no Brasil no período estudado (1991 a 1994).

A prosopografia é um método que não se esgota em si mesmo, ele serve para explorar e apontar as características comuns de um determinado grupo de pessoas. Este estudo coletivo nos deu base para projetar o perfil do regente-arranjador brasileiro.

Para aprofundar a análise e elucidar alguns pontos que ficaram vagos, tomamos como próximos passos da análise a particularização de alguns indivíduos, usando entrevistas semiestruturadas.

64 “Arranjos de outros” considera arranjos de músicos não-regentes e também arranjos em que o arranjador não foi informado.

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O perfil do regente-arranjador e a presença de arranjos no repertório coral brasileiro

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Referências bibliográficas

CAMARGO, Cristina Moura Emboaba da Costa Julião. Criação e arranjo: modelos para o repertório de canto coral no Brasil. Dissertação (Mestrado em Música). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010. CARVALHO, Rogerio Lacerda. O arranjo vocal de canção popular brasileira: Villa-Lobos, Os Cariocas e Marcos Leite. Dissertação (Mestrado em Música). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. CARVALHO, Rogério. A Textura no Arranjo Vocal de Música Popular Brasileira. XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Natal, 2013. MÜLLER, Cristiane. O cantor emancipado: Coro Cênico como transformador do movimento coral no Sul do Brasil. Dissertação de mestrado. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2013. PAZ, Ana Luísa (2014, no prelo). A elite musical portuguesa: Sua prospeção e prosopografia. Atas do II Congresso Anual de História Contemporânea. Évora, 16 a 18 de Maio de 2013 (18 págs.). Évora: Universidade de Évora. PEREIRA, André Protásio. Arranjo vocal de Música Popular Brasileira para coro a cappella: estudos de caso e proposta metodológica. Dissertação de mestrado – UNIRIO – Rio de Janeiro, 2006. SILVA, Flávio Mateus da; BORÉM, Fausto. Marcos Leite e seus arranjos vocais para o grupo vocal Garganta Profunda: aspectos históricos e estilísticos. XV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Rio de Janeiro, 2005. SOARES, Lineu Formighieri. A escrita coral para a Música Popular Brasileira na visão de Marcos Leite. Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas – Campinas, 2013. SOBOLL, Renate Stephanes. Arranjos de música regional do sertão caipira e sua inserção no repertório de coros amadores. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Goiás – Goiânia, 2007. SOUZA, Sandra Mendes Sampaio de. O arranjo coral de música popular brasileira e sua utilização como elemento de educação musical. Dissertação (Mestrado em Música). São José do Rio Preto: Universidade Est. Paulista Júlio Mesquita Filho, 2003. STONE, L. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, p. 115-137. Curitiba, 2011. TEIXEIRA, Paulo Frederico de Andrade. Samuel Kerr: um recorte analítico para performance de seus arranjos. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.

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A tríade aumentada em Liszt e o tratado de harmonia de Weitzmann: uma revisão bibliográfica65

ÍSIS BIAZIOLI DE OLIVEIRA ECA/USP – [email protected]

MARIO VIDEIRA ECA/USP – [email protected]

sse artigo tem por objetivo apresentar uma revisão bibliográfica sobre a influência dos tratados de harmonia

do teórico alemão Carl Friedrich Weitzmann (1808-1880) na obra composicional de Franz Liszt (1811-1886).

Entre 1853 e 1854, Weitzmann publicou uma trilogia de tratados de harmonia conhecida como trilogia dos acordes dissonantes. O primeiro deles, Der uebermaessige Drieklang (Berlim, 1853), é um estudo sobre a tríade aumentada; o segundo, Geschichte des Septimen Akkordes (Berlim, 1854), trata da história do acorde de sétima; e, finalmente, o terceiro, Der Verminderte Septimenakkord (Berlim, 1854), dedicado ao “Dr. Franz Liszt”, refere-se ao acorde diminuto.

Dentre os três tratados, o que ganhou mais notoriedade – e até os dias de hoje – foi o primeiro deles, sobre a tríade aumentada. Isso porque, embora o acorde de sétima diminuta, tema do último tratado, já fosse amplamente conhecido e empregado por muitos músicos da época, a tríade aumentada não era, até os escritos de Weitzmann, completamente aceita nem por teóricos e nem por compositores (cf. TODD, 1996, p. 157).

Inegavelmente Liszt teve acesso aos tratados de Weitzmann. Segundo Michael Saffle (2004, p. 66), o estudo musicológico de György Gábry (Neuere Liszt-Dokumente)

65 Esse artigo é resultado parcial de uma pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (2015/04762-8). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas nesse material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

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A tríade aumentada de Liszt e o tratado de harmonia de Weitzmann: uma revisão bibliográfica

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apresenta, entre os documentos de Liszt, anotações de progressões harmônicas escritas com a letra de Weitzmann. O teórico alemão teria enviado os tratados a Liszt assim que foram editados. Liszt recebeu o tratado sobre a tríade aumentada ainda em 1853 (cf. COHN, 2000, p. 99). Contudo, resta a pergunta: esse contato teve impacto na escrita harmônica de Liszt? É aqui que aparecem as divergências.

Nosso trabalho será o de selecionar, entre a bibliografia encontrada, os textos que nos pareceram mais relevantes sobre a relação entre esse teórico e esse compositor, comentando e comparando o que já foi escrito sobre o tema.

“Der uebermaessige Drieklang” (Berlim, 1853)

Parte dos trabalhos que investigam a influência dos escritos de Weitzmann em Liszt iniciam suas discussões resumindo os principais pontos abordados pelo teórico alemão em seu tratado de 1853. Seguindo o mesmo formato, iniciaremos nossa abordagem com a discussão sobre esse tratado. Nosso intuito aqui não será, como nos trabalhos citados, explicar ou resumir a teoria de Weitzmann, embora essa seja uma consequência inevitável dos parágrafos que se seguem. O que nos importará será a compilação e comparação dos aspectos elegidos como principais por um ou outro autor, confrontando as visões levantadas.

Segundo Todd, Weitzmann defende que, como a tríade aumentada é uma entre as quatro tríades (maior, menor, diminuta e aumentada), uma entre as quatro possibilidades de sobreposições de terças maiores e menores, então ela é um acorde tão natural quanto qualquer dos outros três. Não se justificaria, então, a displicência e mesmo incompreensão com que, segundo Weitzmann, esse acorde era tratado em textos teóricos e composicionais até meados do século XIX. Defendendo a tríade aumentada, Weitzmann escreve:

[A tríade aumentada] não é transitoriamente fugidia, mas antes, uma entidade natural da nossa sociedade de sonoridades.... Além disso, doravante não se pode mais

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hesitar em conceder-lhe, àquela que muitas vezes tem sido mal compreendida e banida, o lugar permanente no reino dos sons. (Weitzmann apud Cohn, 2000: 103)

Uma especificidade da tríade aumentada é que ela é a única entre as tríades que divide a oitava em partes iguais. Assim como a tétrade diminuta, também simétrica, quaisquer inversões a que essa tríade seja submetida, a sonoridade resultante será sempre igual, mesmo ela seja nomeada pela teoria de formas distintas. Como salienta Todd, Weitzmann descortina a versatilidade das tríades aumentadas justamente por mostrar que, partindo de um pensamento enarmônico66, uma mesma tríade aumentada pode se relacionar com “não menos que doze tonalidades67” (TODD, 1996: 158).

O trabalho de Richard Cohn, por se tratar de um estudo em harmonia, é mais detido na apresentação dos conceitos de Weitzmann. Segundo Cohn (2010, p. 56), Weitzmann “conta três histórias da gênese” da tríade aumentada: 1) origem histórica; 2) origem natural; 3) origem sistemática.

Na primeira das explicações, já no segundo capítulo do tratado, Weitzmann mostra que a origem histórica das tríades aumentadas se deu a partir de alterações de acordes consonantes. O teórico mostra, então, dezesseis maneiras de conectar uma tríade aumentada a tríades consonantes por deslizamento semitonal (cf. COHN, 2010, p. 56).

Mais adiante, Weitzmann sugere outra explicação para origem das tríades aumentadas, a gênese natural. A partir de

66 Cabe ressaltar que, mesmo em meados do século XIX, o sistema de temperamento igual que admite a enarmonia, ou seja, a equivalência entre, por exemplo, Dó# e Réb, ainda não era consenso na teoria musical. Importantes nomes para a história da teoria, como Hugo Riemann, por exemplo, não levavam em conta a equivalência enarmônica. 67 Como veremos mais adiante, os encadeamentos terão pelo menos um som comum entre a tríade aumentada que qualquer uma das doze tríades consonantes a que ela se relaciona. Em seis sucessões acordais, apenas uma voz será alterada em um semitom, enquanto nas outras seis, duas vozes serão movidas, também por um semitom.

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uma visão dualista da harmonia68, como era comum entre teóricos do século XIX, Weitzmann propõe a sucessão das alturas da tríade de Dó maior com as da tríade resultado de seu espelhamento, Fá menor: Fá – Láb –Dó – Mi – Sol. Implícita a essa sucessão, aparece a tríade aumentada [Láb – Dó – Mi].

Larry Todd complementa a explicação de Cohn dizendo que a tríade aumentada, a partir dessa explicação, será sempre um Nebenton (“acorde misto”, segundo KOPP, 2002, p. 87), isto é, um acorde que terá, inevitavelmente, uma nota que não está em uma tonalidade específica. No caso da tríade [Láb – Do – Mi], nem Lab existe em Dó maior, e nem Mi natural existe em Fá menor, elas são notas suplementares. Ainda assim, harmonicamente, a tríade aumentada poderia ser pensada como o III do modo menor (com a sétima da tonalidade menor elevada em um semitom) ou o VI do modo maior (com a sexta da tonalidade maior abaixada em um semitom).

Como relata Cohn, Weitzmann mostra que a tríade [Láb – Do - Mi] necessariamente será próxima a pelo menos seis tríades consonantes69. As primeiras, seriam as tríades de Dó maior e Fá menor, que estariam já na origem da aumentada. Outras quatro tonalidades manteriam, ainda, proximidade com essa mesma tríade aumentada, as relativas (Lá menor e Láb maior) e as mediantes cromáticas (Mi maior e Reb menor) das duas primeiras70. Ampliando esse raciocínio para as outras 3

68 Nomes como Moritz Hauptmann (1792-1868), Hugo Riemann (1849-1919), Arthur von Oettingen (1836-1920) entre outros, defendiam uma equivalência entre o modo maior e o modo menor baseados no espelhamento entre eles. Riemann chegou a defender a existência de uma série harmônica invertida, ou descendente, que, sendo o espelho da série harmônica real, seria a justificativa natural para o modo menor. Mesmo que as pesquisas de seu contemporâneo Hermann von Helmholtz (1821-1894) tenham demonstrado a impossibilidade acústica dessa ideia, a concepção dualista reflete a importância da inversão como princípio cultural estruturante na música ocidental (cf. BORGES; FREITAS, 2013). 69 Próxima porque partilhará com essas tríades consonantes dois sons comuns, enquanto uma de suas vozes terá distância de semitom. Por exemplo, no encadeamento Dó maior e Láb aumentado, as alturas, Dó e Mi são mantidas, enquanto Lá natural vai para Láb. 70 Larry Todd justifica de modo diferente as tríades relacionadas à uma tríade aumentada: “Primeiro, a tríade [aumentada] pode ir para tríades maiores baseadas em cada uma de suas três alturas. Por exemplo, a tríade aumentada

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tríades aumentadas que existem e as seis tríades consonantes ligadas a cada uma delas, Weitzmann apresenta todas as 24 tríades, maiores e menores, do total cromático71.

Nesse ponto, segundo Cohn (2010, p. 57), Weitzmann “inverte sutilmente” o sentido da origem histórica das tríades. Já que a tríade aumentada pode levar a múltiplos caminhos a partir de conduções de vozes simples, ela passa a ser fundadora de todas as outras tríades consonantes. Dessa maneira, valorizando a versatilidade da tríade aumentada e a sua potencialidade em, com facilidade72, expandir o sistema tonal para o total cromático, Weitzmann apresenta a terceira origem das tríades aumentadas, a gênese sistemática.

Repercussões do Tratado da Tríade Aumentada.

Como dissemos no início de nosso texto, o tratado de 1853 foi o mais importante dentre os tratados de Weitzmann.

[Mib – Sol – Si] pode se ligar às tríades de Mib maior, Sol maior e Si maior, abaixando em um semitom a nota suplementar apropriada – a sexta abaixada de cada uma dessas tonalidades (por exemplo, o Dób em Mib maior, o Mib em Sol maior e o Sol em Si maior). Depois, a mesma tríade aumentada pode se relacionar com as relativas menores das três tonalidades, subindo em um semitom a nota suplementar apropriada (isto é, Si em Dó menor, Ré# em Mi menor e F# em G# menor)” (TODD, 1996, p. 158-159). 71 Interessante também como Weitzmann mostra que, para sair de uma região regida por uma tríade aumentada para outra região que tem por pivô outra tríade aumentada, é só achar o acorde homônimo dentre os seis da primeira região. Como vimos, enquanto se está na região de Láb aumentado, não é difícil transitar pelos acordes de Dó maior, Fá menor, Lá menor, Lab maior, Mi maior e Réb menor. Contudo, se tivermos o homônimo de qualquer um desses acordes, por exemplo, o homônimo de Dó maior que é Dó menor, facilmente somos levados a outra tríade aumentada, a tríade de Mib aumentada, e, portanto, estaremos próximos de: Sol maior, Mib maior, Mi menor, Láb menor e Si maior. É o que Cohn chama de “Regiões de Weitzmann” (cf. COHN, 2010, p. 58, figura 3.9) 72 Importante ressaltar que essa teoria defende uma escrita harmônica onde a condução de vozes entre dois acordes sucessivos parece ter mais relevância do que a relação entre dois campos harmônicos estáveis. Se no segundo caso o ciclo de quintas era fundamental para hierarquizar a proximidade entre duas tonalidades; no primeiro, a parcimônia na condução de vozes (menor movimentação possível entre cada uma das vozes de dois acordes ou de uma pequena progressão) parece ser mais efetivo. É pensando em “parcimônia” que usamos a palavra “facilidade” e a expressão “conduções de vozes simples”.

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Até hoje suas teorias tem sido revisitadas, especialmente pelos estudiosos da teoria neo-riemanniana.

Para Larry Todd, a importância desse tratado se deu justamente em reposicionar a tríade aumentada nos estudos de harmonia. Anteriormente, esse acorde era entendido como uma dissonância de passagem. Segundo o autor (TODD, 1996, p. 154), Kirnberger (1776), por exemplo, considerava a tríade aumentada como “totalmente inútil”. Rameau (1722), por outro lado, defendia seu uso, mas em poucos casos, porque se tratava de um acorde do modo menor. Heinichen (1728), e Andreas Sorge (1747), defendiam o uso dessa sonoridade apenas por motivos retóricos, indicando “morte”, “dúvida” e “sofrimento” para este e “aspereza” para aquele. Türk (1824), dedicou espaço no seu tratado de harmonia à discussão das tríades dissonantes e suas inversões. De qualquer forma, para Todd, a tríade aumentada permaneceu uma “incógnita” para os teóricos até a metade do século XIX. A percepção de que a tríade aumentada poderia ser um acorde estrutural, correlato à tétrade diminuta, teria sido realizada, fundamentalmente, com o trabalho teórico de Weitzmann em 1853 (cf. TODD, 1996, p. 155) e confirmada pelo emprego, “talvez pela primeira vez”, da tríade aumentada como “sonoridade independente” nas composições de Liszt a partir de 1850 (cf. TODD, 1996, p. 153). Nesse sentido, o tratado de Weitzmann teria ajudado a reconhecer, na tríade aumentada, sua variabilidade tonal. E, desse modo, ampliar, pela ambiguidade harmônica, as maneiras pelas quais a tonalidade estava encontrando seus limites no final do século XIX.

Robert Wason (apud Cohn, 2000, p. 90) também vê no tratado de Weitzmann sua relevância por ter apresentado pelo primeira vez os múltiplos caminhos harmônicos nos quais a tríade aumentada pode levar um trecho musical. Juntamente com as tétrades diminutas, também simétricas, esse tratado demonstrou a importância da tríade aumentada na busca pelo universo totalmente cromático. Essa percepção não seria possível sem Weitzmann assumir o sistema de temperamento igual e a equivalência enarmônica.

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Richard Cohn (2000, p. 90-91) chama atenção ainda para a importância que Weitzmann teve para os neo-riemannianos. O estudo acurado do teórico alemão sobre a condução de vozes por semitom e sua atenção para a questão do hoje chamamos de parcimônia foram fundamentais para ajudar nas teorias harmônicas que estudam o tonalismo cromático do final do século XIX. Não é por acaso que os estudos de Weitzmann começaram a ser retomados no final do século XX e continuam sendo base para diversas discussões ainda hoje.

Larry Todd percebe o importância de Weitzmann para além das discussões teóricas. Para ele, a escrita harmônica de Liszt foi drásticamente alterada a partir da leitura do tratado de 1853. Segundo sua tese, apresentada no livro “The ‘Unwelcome Guest’ Regaled: Franz Liszt and the Augmented Triad (1988) e no artigo “Franz Liszt, Carl Friedrich Weitzmann, and the Augmented Triad” (1996), a exploração da tríade aumentada nas obras de Liszt teria se transformado radicalmente a partir da década de 1850. Enquanto a tríade aumentada, nas primeiras obras do compositor, estaria a serviço apenas de efeitos dramáticos e de retórica (ligadas a “morte”, por exemplo), a partir do tratado de Weitzmann, esse acorde teria adquirido a importância de uma entidade harmônica independente com função estrutural, como aparece na Sinfonia Fausto (1854) e na Fantasia e Fuga para órgão, Der traurige Mönch [1860], por exemplo.

Nessas peças, incluindo as obras para piano Nuages gris, La lugubre gondole I e II, R. W. Venezia, Unstern, Am Grabe Richard Wagner e Trauer-Vorspiel, assim como na obra sacra Via crucis, a estrutura de fundo é trazido para a superfície e o papel estrutural da tríade aumentada, que agora opera no nível mais fundamental, é destacado (TODD, 1996, p. 171).

Como Todd, Humphrey Searle (2012, p. 67-68) chega a citar exemplos de tríades aumentadas em obras anteriores, mas só elas Liszt eles seriam usados “consistentemente”.

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Contudo, o autor descarta a influência de Weitzmann nessa escolha estética de Liszt73. E diz:

Liszt conhecia bem Weitzmann (este costumava tocar instrumento de sopro com aquele em Berlim), mas o tema da tríade aumentada [introdução da Sinfonia Fausto] já tinha aparecido em esboços de Liszt para a peça que datam da década de 184074 e no Grande Galope Cromático de 1838 [compassos 231-238]. (SEARLE, 2012, p. 68)

Richard Cohn (2000, p. 98) não dá uma opinião tão decisiva quanto os dois anteriores. Comenta ainda que Weitzmann, em seu tratado, discute um encadeamento que, mesmo que não apresente explicitamente nenhuma tríade aumentada, está baseado na versatilidade da sonoridade aumentada. É o que acontece com a progressão abaixo que, apesar de relacionar acordes de regiões harmônicas bastante distantes pelo ciclo de quintas, não é muito dissonante, já que a condução de vozes pode ser realizada com suavidade, já que todos os acordes envolvidos na progressão estão a apenas um semitom da mesma tríade aumentada [Lab – Do - Mi].

Mi Maior – La menor – Dó Maior – Fá menor – Lab Maior – Reb menor

Fig. 1: Encadeamento harmônico estudado por Weitzmann (1853). Regiões harmônicas distantes são justapostas, tendo Láb Aum. como pivô implícito.

Segundo Cohn (2000), esse mesmo encadeamento é usado por Liszt entre os compassos 305 e 311 do primeiro movimento da Sinfonia Fausto. Embora essa correspondência possa sinalizar uma dada influência do tratado de 1853 na peça, Cohn é cuidadoso. Diz que esse mesmo ciclo está presente também em obras de Schubert: 4ª Sinfonia (Trágica) em Dó menor (1816) e da 9ª Sinfonia (A Grande) em Dó Maior (1828).

73 Searle fala sobre essa questão para contestar a posição de Ernest Newman em A Forgotten Chapter of History. Texto de setembro 1946 do Sunday Times, que defende que a Sinfonia Fausto teria tido influência do tratado de Weitzmann. 74 Larry Todd (1996) contesta esse esboço.

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Existe registro de que Liszt ouviu a 9ª Sinfonia de Schubert ainda em 1840, uma década antes do tratado de Weitzmann.

Qualquer posicionamento em favor de um julgamento ou outro deverá, em trabalhos futuros, ser confrontado com análises musicais. Cabe ainda lembrar que esse trabalho não pretendeu realizar uma varredura exaustiva sobre o tema, apenas apontar os trabalhos mais citados e significativos.

Referências bibliográficas

BORGES, Diego; FREITAS, Sérgio P. R. Dualismo harmônico: uma revisão bibliográfica. In: Anais do 6 Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2013, p. 87-92. COHN, Richard. Weitzmann’s Regions, My Cicles, and Douthett’s Dancing Cubes. In: Music Theory Spectrum, v. 22, n. 1, Spring, 2000, p. 89-100. _________________. Audacious Euphony: Chromatic Harmony and the Triad’s Second Nature.New York: Oxford University Press. 2010, p. 56-58 KOPP, David. Chromatic Transformations in Nineteenth-Century Music. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. SAFFLE, Michael. Franz Liszt: a Guide to Research. 2 ed. New York: Routledge, 2004. SEARLE, Humphrey. The Music of Liszt. Mineola; New York: Dover Publication, 2012. TODD, R. Larry. Franz Liszt, Carl Friedrich Weitzmann, and the Augmented Triad. In: KINDERMANN, W.; KREBS, H (Ed.). The second practice of nineteenth-century tonality. USA: University of Nebrasca Press, 1996, p. 153-177.

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A contribuição da trilha musical cinematográfica na construção do imaginário mítico do velho oeste norte-americano num olhar semiótico

JULIANO DE OLIVEIRA ECA/USP – [email protected]

Introdução

imaginário pode ser compreendido como o repositório de arquétipos junguianos ou de inventários míticos que perpassam as civilizações ao longo da história humana e se manifestam por meio de símbolos; ou ainda, segundo Durand (2012, p.18), o “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do Homo sapiens”.

Desde meados do século XX, o cinema tem atuado como um grande criador e difusor de imaginários. Por meio de narrativas ficcionais o cinema tende a inventar e perpetuar mitos, crenças, lendas e imagens. Destarte, a fantasia e a ficção científica criam e exploram mundos alternativos, futuros utópicos ou distópicos e criaturas fantásticas. O western, por sua vez, cria e explora narrativas situadas predominantemente no espaço mítico do velho oeste norte-americano que, entretanto, nunca existiu historicamente tal como mostrado no cinema.

Nossa hipótese é que os elementos iconográficos que se consubstanciam nos filmes do gênero western atuam como referenciais sonoros para a composição musical e contribuem, por conseguinte, para a formação do que denominamos tópicas musicais – “um símbolo cujas propriedades indiciais e icônicas são governadas pela convencionalidade e pela regra” (Monelle, 2000, p. 17). Segundo este pressuposto, no estágio de formação das tópicas, uma parte da composição musical é criada partindo de processos metonímicos onde elementos da narrativa e da paisagem sonora são incorporados pela trilha musical. Em um segundo estágio, na ausência desses elementos, a música atua como evocadora do imaginário já consolidado. Assim, os galopes e tambores indígenas evocados

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A contribuição da trilha musical cinematográfica na construção do imaginário mítico do velho oeste norte-americano num olhar semiótico

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através da música atuariam como signos que priorizam a face icônica da significação, a saber, aquela cuja relação entre o signo e seu objeto se dá por meio da similaridade (PEIRCE, 2010, p. 52). A recorrência de instrumentos típicos de regiões e povos, como o violão, a gaita e o banjo, atuariam como índices do imaginário evocado; por fim, o uso de canções, escalas e ritmos específicos, bem como estereótipos musicais de representação do índio, do vilão, do herói e do cowboy atuariam como símbolos pautados em um sistema de códigos convencionados culturalmente por meio da indústria cinematográfica.

As tópicas musicais do western

A face icônica

O ícone75 é a primeira categoria da segunda tricotomia dos signos da semiótica peirceana, segundo a qual o signo, ou representâmen, se relaciona ao seu objeto por similaridade. Segundo Santaella (2009, p. 105), no caso do signo icônico, o fundamento ou propriedade interna ao signo, que sustenta sua relação com o objeto, está em uma mera qualidade.

Eco destaca a noção de substituto que o ícone sugere. Assim “qualquer coisa é capaz de ser um substituto para qualquer coisa com a qual se assemelhe.” (ECO, 2009, p. 64). Ao observarmos a figura abaixo, constatamos que, não obstante a convencionalidade já estabelecida, a relação do signo (a imagem) com seus objetos (uma pessoa em uma cadeira de rodas, uma mulher e um homem) se dá, sobretudo, pela semelhança das formas apresentadas com os elementos do mundo real.

75 Peirce define o ícone como sendo “qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei que seja semelhante de qualquer coisa e utilizada como um signo seu” (PEIRCE, 2010, p. 52).

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A contribuição da trilha musical cinematográfica na construção do imaginário mítico do velho oeste

norte-americano num olhar semiótico

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Figura 4: Exemplo de signos constituídos iconicamente.

Santaella (2009, p. 103) defende a “dominância da primeiridade icônica nos signos musicais.” Segundo Coelho de Souza (1994, p. 35-36), na música, o iconismo está presente nas relações intrínsecas entre elementos da estrutura musical, desde a repetição de grandes seções até motivos. Também se revela na referência a objetos externos, como a flauta que sugere o canto dos pássaros, os ataques de tímpano que sugerem o trovão ou um instrumento que imita outro.

Dentre os elementos musicais que constituem a tópica western, a referência a sons de animais por meio de instrumentos musicais, os motivos da cavalgada e do tambor indígena se destacam pela predominância da relação icônica entre signo e objeto.

O motivo do tambor consiste em uma referência metonímica e sinedóquica aos índios nativos norte-americanos por meio da semelhança com o autêntico tambor indígena. Ele é parte da tópica música de índio76 e se estabeleceu antes mesmo do advento do cinema sonoro, conforme pode ser observado em exemplos das primeiras enciclopédias de música para acompanhamento de filmes silenciosos. A imagem abaixo se refere à frase inicial da Indian music, composta por Zamecnik para sua enciclopédia Sam Fox Moving Picture, de 1913. A música era sugerida para acompanhar cenas que tivessem alguma relação com índios. Como é possível observar, o motivo do tambor é simulado pelas 5ª justas e oitavas na região grave do piano.

76 Optamos pela denominação tópica música de índio, ao invés de música indígena ou simplesmente indígena, como comumente é empregada em trabalhos de autores brasileiros, para distinguir o uso da música enquanto estereótipo do índio no cinema daquele uso artístico, muitas vezes com interesse na fidelidade étnica, como empregado na música de concerto.

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A contribuição da trilha musical cinematográfica na construção do imaginário mítico do velho oeste norte-americano num olhar semiótico

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Figura 5: Peça Indian music, da enciclopédia Sam Fox Moving Picture (1913).

O mesmo motivo pode ser encontrado no leitmotiv dos índios Apache em No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939). Neste caso, ele é executado pelas cordas graves da orquestra.

Figura 6: Tema dos índios Apache na música dos créditos iniciais do filme No tempo das Diligências (1939).

O motivo do tambor está presente em grande parte da filmografia norte-americana do gênero western, principalmente durante a primeira metade do século XX. Graças a desdobramentos no campo político e social no pós-Segunda Guerra, os estereótipos de representação do índio por meio da música no cinema sofreram mutações. Contudo, alguns elementos permanecem ainda hoje como paródia, pastiche ou mesmo como indicativo alegórico.

A face indicial

O índice se caracteriza pela contiguidade entre signo e objeto, ou ainda, pela relação de causa e consequência que pode dispensar atributos de semelhança. Enquanto o signo icônico não possui qualquer conexão dinâmica com seu objeto, “o índice está fisicamente conectado com seu objeto” (PEIRCE, 2010, p. 73). Assim, o som de um trovão pode ser índice de chuva. Da mesma forma, uma pegada também é um índice, uma

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vez que sinaliza que alguém passou por ali, partiu em determinada direção etc.

Figura 7: Exemplo de signo com preponderância indicial.

Na música do western, a relação indicial se dá, dentre outras coisas, pelo uso de instrumentos típicos que indicam um povo, um personagem estereotipado, uma etnia, um lugar ou uma região geográfica. Dentre eles estão a gaita, o banjo, o piano, o violão e o assobio. Nos filmes de John Ford, por exemplo, o violão comumente indica o México ou personagens mexicanos (KALINAK, 2007). O piano remete aos saloons ou cabarés nos westerns clássicos e o assovio remete ao cowboy, especialmente nos spaghetti westerns77.

A face simbólica

O símbolo se caracteriza pela convencionalidade e pela regra. A figura abaixo possui sua face icônica através da semelhança com uma maçã mordida. Sua face indicial também é evidente, uma vez que a figura indica uma marca. Por outro lado, em nossa cultura judaico-cristã, a maçã conota sabedoria. Ela também está presente em narrativas científicas, como a da maçã que despertou Newton para a lei da gravitação universal. Uma maçã mordida representa, portanto, a descoberta e a apropriação do conhecimento. Ao adotar o símbolo de uma

77 Spaghetti western é a denominação dada a uma subcategoria de western criado na Itália a partir dos anos 1960.

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maçã mordida como logotipo de uma empresa, objetivou-se agregar toda a gama de significados do signo à marca Apple.

Figura 8: Logotipo da Apple – exemplo de signo com predominância do símbolo.

Como elementos notadamente simbólicos na música do western podemos citar: o uso do pentatonismo, modalismo, paralelismo em quartas e quintas, instrumentação inusual e a quebra na sintaxe tonal como elementos que formam parte de um sistema de representação do “Outro” no Ocidente; as letras e os significados associados às canções folclóricas, populares e hinos; a guitarra elétrica como símbolo de juventude e rebeldia; estereótipos de representação do herói, do vilão, da mocinha etc.

A guitarra elétrica não possui relação indicial a priori com os filmes westerns e se imortalizou no gênero por intermédio principalmente de Ennio Morricone. O cowboy do spaghetti western se distingue do tradicional cowboy do western clássico norte-americano pela relatividade de valores, o que o qualifica como quase um anti-herói. A guitarra elétrica Fender foi introduzida, assim, nos filmes italianos, como símbolo de juventude e rebeldia.

Em Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), a canção-título The Searchers e o uso de canções tradicionais e hinos oferecem importantes ferramentas para a interpretação da narrativa. Através das letras e da associação de canções tradicionais e hinos com contextos específicos a gama de sentidos agregados à narrativa é potencialmente ampliada.

Na música dos créditos inicias de Três homens em conflito (Il buono, il brutto, il cativo, 1966) é possível observar

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as três categorias de signo comentadas neste artigo. O motivo da cavalgada executado pelo violão e pela caixa clara, o toque de tambor no início e o som do coiote simulado por meio de vozes masculinas manipuladas eletronicamente constituem exemplos ícones. O uso do violão, do assobio e do trompete são exemplos de índices que apontam para a fronteira, para o cowboy e para elementos mexicanos na narrativa. Por fim, a apropriação de tópicas como o mariachi, o degüello e o uso da guitarra elétrica constituem signos com predominância da face simbólica.

Conclusão

Procuramos demonstrar como o compositor de filmes western constrói a trilha musical com base em elementos que constituem o imaginário do gênero. Mostramos, por conseguinte, como a semiótica pode ser um meio eficaz de categorizar os tipos de relações que se estabelecem entre materiais musicais e elementos do imaginário do velho oeste norte-americano.

Cabe elucidar ainda que todos os elementos supracitados podem partilhar do status de símbolos, uma vez que são parte de um conjunto de códigos e, portanto, convenções culturais. Mesmo os signos icônicos apresentam sua face simbólica a partir do momento que a eles são associados significados que extrapolam a mera imitação do objeto. O motivo musical do galope, por exemplo, se assemelha ao som do galope de um cavalo, contudo, carrega conotações que relacionam o cavalo e, por extensão, o cavaleiro a heroísmo e coragem. Da mesma forma, o motivo simples percussivo do tambor associa o índio ao primitivo, ao intruso, ao selvagem, valores que refletem um grau de xenofobia existente na sociedade norte-americana durante a primeira metade do século XX.

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A contribuição da trilha musical cinematográfica na construção do imaginário mítico do velho oeste norte-americano num olhar semiótico

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Referências bibliográficas

COELHO DE SOUZA, Rodolfo Nogueira. Da composição musical assistida por computadores: aspectos cognitivos. 1994. Dissertação (Mestrado em Musicologia) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2012. HATTEN, Robert S. Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation, and Interpretation. Bloomington: Indiana University Press, 1994. ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009. KALINAK, Kathryn M. How the West Was Sung: Music in the westerns of John Ford. Berkeley, Los Angeles e London: University of California Press, 2007. MONELLE, Raymond. The Sense of Music: Semiotic Essay. Princeton: Princeton University Press, 2000. PEIRCE, Charles S. Semiótica. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva (Coleção Estudos), 2010.

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A tópica canto de xangô: Villa-Lobos, o afro-brasileiro e a identidade nacional

JULIANA RIPKE

ECA/USP - [email protected]

Introdução izer que somos diferentes não basta, é necessário mostrar em que nos identificamos” (ORTIZ, 2004, p.7). Assim,

unindo o interesse da pesquisa e da busca de elementos da identidade nacional brasileira, e considerando a música e a cultura africana como parte formadora e intrínseca desta identidade, podemos tomar como ponto de partida a análise de obras potencialmente influenciadas pelas tradições afro-brasileiras. Além disso Ortiz e Paes descrevem que

o interesse por abordar um assunto que pesquisa uma das partes formadoras da nossa identidade nacional é um antigo debate que se trava no Brasil. No entanto, ele permanece atual até hoje, constituindo uma espécie de subsolo estrutural que alimenta toda a discussão em torno do que é o nacional (ORTIZ, 2004, p.7).

Pouco a pouco a música e dança negra foram se expandindo pelas várias regiões do país, influenciando e sofrendo influências, surgindo o que chamamos de música afro-brasileira. (…) Com o acordar para os valores nacionais, a música erudita partiu à procura das raízes brasileiras. Nessa busca, entre os vários elementos encontrados, um deles foi o afro-brasileirismo. Folcloristas coletaram cantigas de trabalho, de terreiro, de ninar, levantando-se vasto material sobre a música dos negros no Brasil. (PAES, 1989, p.66).

Como ferramenta de acesso a alguns dos elementos formadores desta identidade dentro da estrutura musical, podemos usar as tópicas musicais. Tópicas são figuras retóricas dentro da música que representam e evocam uma memória de um senso comum dentro de um contexto cultural. Em outras

D

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palavras, são figuras características e elementos do discurso musical que trazem a representação de uma convenção. Além disso, as tópicas são também uma ferramenta de acesso à compreensão do discurso musical, e a sua teoria propõe resgatar o significado como elemento estrutural da obra.

Eero Tarasti faz uso do termo “xangô-type themes” para designar trechos do Quarteto de cordas n. 4 e n. 6 de Villa-Lobos que pertencem ao paradigma de temas de tipo xangô (TARASTI, 1995, p. 304). Um pouco depois, Tarasti explica que a combinação de um tema de tipo xangô contra um acompanhamento sincopado de subdivisão quaternária é uma das mais comuns tópicas encontradas em Villa-Lobos. (TARASTI, 1995, p. 308), e é esta tópica que aqui chamaremos de canto de xangô. Verificaremos, neste artigo, a ocorrência desta tópica em algumas obras de Villa-Lobos, partindo primeiramente de obras já citadas e analisadas por Tarasti, para depois seguir para outras. Antes, porém, discorreremos um pouco sobre o estudo de tópicas musicais, seus reflexos e continuação do estudos na América Latina e no Brasil.

Tópicas musicais: do Estilo Clássico ao Brasil

Traçando uma rápida cronologia do estudo de tópicas musicais na Europa até a música brasileira, verificamos que Leonard Ratner publicou, em 1980, um livro que estuda e investiga o Estilo Clássico. Neste trabalho Ratner dedica um capítulo ao estudo de tópicas musicais, e traz um panorama das principais tópicas utilizadas no século XVIII. O autor relaciona o uso de tópicas ao estilo de vida, características e tradições européias daquele período. Segundo Ratner, “Mozart foi o maior mestre em misturar e coordenar tópicos em um curto espaço” (RATNER, 1980, p. 27, tradução nossa). Após a publicação de Ratner, outros autores como Kofi Agawu, Robert Hatten, Raymond Monelle e Márta Grabócz continuaram o estudo de tópicas musicais. Na américa latina, autores como Melanie Plesch, Paulo de Tarso Salles, Acacio Piedade, Rodolfo Coelho de Souza, Marcelo Cazarré, Gabriel Moreira, Daniel Zanella e Diósnio Machado Neto estão adaptando e aplicando o estudo de tópicas para a música latino-americana.

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A tópica canto de xangô

Segundo Hatten, o tipo é “uma categoria ideal ou conceitual definida por características ou uma série de qualidades que são essenciais para a sua identidade” (HATTEN, 1994, p. 44, tradução nossa). Dentro dos estilos afro-brasileiros em geral podemos observar alguns tipos. Um deles é o tipo xangô, relacionado a rituais ao deus africano Xangô, que é considerado uma das grandes referências quando tratamos das religiões afro-brasileiras. Entendemos, portanto, que tudo que de alguma forma remeta, simbolize ou contenha características de rituais do culto de Xangô (como ritmos, melodias, instrumentos, danças, etc.), ou do mito de Xangô, pode ser considerado como tipo xangô. Dentro do tipo xangô, podemos localizar a tópica canto de xangô, que tem uma distribuição textural específica que será explicada e analisada mais adiante.

Eero Tarasti usa em seu livro (1995) o termo “Xangô-type themes” para designar trechos dos Quartetos de cordas n. 4 e n. 6 de Villa-Lobos que seguem um padrão de temas do tipo xangô. A combinação de um tema de tipo xangô contra um acompanhamento sincopado de subdivisão quaternária descrita por Tarasti como uma das mais comuns tópicas encontradas em Villa-Lobos. (TARASTI, 1995, p. 308) também é completada, normalmente, por um ostinato neste acompanhamento.

Várias representações e simbologias são possíveis ao falarmos da tópica canto de xangô. Por exemplo, o ostinato presente nesta tópica traz uma textura percussiva que pode remeter aos atabaques e percussões de rituais ou cultos afro-brasileiros, e sua respectiva repetição também pode aludir ao transe característico destes rituais. Além disso, se levarmos em consideração o mito de Xangô, podemos ir mais longe na representação simbólica dentro da música, e perceberemos que o ostinato pode, inclusive, representar o fogo (a que o povo chamava de raio) que o rei Xangô atirava sobre sua cidade Oió. Segundo o mito, o que o povo chamava de raios, eram os jatos de fogo que Xangô cuspia sobre a nação, e os trovões eram as explosões que aqueles jatos de fogo causavam. Com isso, Xangô colocou fogo em sua própria cidade. O ostinato pode, também,

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ser uma representação do barulho de raios caindo incessantemente sobre a terra, como diz o mito (PRANDI; VALLADO, 2010). Por isso, o ostinato também pode ser a representação do incessante/contínuo.

Podemos, então, reunir e sintetizar as principais características da tópica canto de xangô. São elas:

- Melodia com algumas características do tipo xangô, com durações mais longas que o acompanhamento (contraste rítmico), representando um caráter de evocação e reverência aos deuses nos rituais afro-brasileiros.

- Ostinato: harmonia em forma de ostinato (normalmente com pouco movimento e mais estática), sugerindo um tratamento percussivo ao acompanhamento, que possui um ritmo mais condensado que a melodia. Ainda é possível encontrar polirritimias entre a melodia e o ostinato, bem como sincopação ou contrametricidade78, acentuações variadas e deslocamentos rítmicos.

Antes das referências dadas por Tarasti (1995, p. 225; 308), a melodia do Canto de Xangô já havia sido registrada e citada por três importantes autores: Mário de Andrade em 1928, Oneyda Alvarenga em 1945, e Arnaldo Estrella em 1978. Abaixo vemos a melodia do Canto de Xangô recolhida por Mário de Andrade e registrada em seu livro “Ensaio sobre a música brasileira” (1972, p. 104).

78 Termo adotado no lugar da palavra síncope, de acordo com as definições propostas por Sandroni (2001). Segundo o autor, a síncope é um conceito criado por teóricos da música erudita ocidental, definido como um efeito de ruptura no discurso musical quando a regularidade da acentuação é quebrada e ocorre um “desvio na ordem normal do discurso musical” (SANDRONI, 2001, p. 19). Consideramos, portanto, inadequado adotar o termo síncope na música brasileira, pois ela é normal a tal cultura. Em outras palavras, a anormalidade europeia é aqui a normalidade brasileira, e a contrametricidade torna-se um recurso normal e não uma exeção.

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Fig. 1- Canto de Xangô recolhido por Mário de Andrade

A canção Xangô de Villa-Lobos foi composta em 1919 e faz parte do ciclo Canções típicas brasileiras do compositor. Segundo Tarasti, em Xangô, “Villa-Lobos trabalha com a melodia [do Canto de Xangô recolhido por Andrade e Alvarenga] ritmicamente aumentada, estabelecendo uma espécie de balanço polirrítmico ao motivo quadrangular e percussivo desenvolvido pelo acompanhamento do piano” (1995, p. 225, tradução nossa):

Fig. 2 - Canto de Xangô – versão para canto e piano (c. 1-5)

Podemos observar, logo no primeiro trecho da canção, um tema de tipo xangô contra um ostinato de durações rítmicas mais curtas e harmonia estática com subdivisão quaternária no acompanhamento da mão esquerda do piano. Tarasti ainda completa que este ostinato do acompanhamento sugere, neste

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caso, um tratamento percussivo ao piano (TARASTI, 1995, p. 225). Todas estas características completam a representação sonora da tópica canto de xangô. Chamamos, portanto, esta tópica de canto de xangô por dois motivos: 1) por ter o Canto de Xangô como parte formadora desta, sendo este canto uma das representações de um tema de tipo xangô; 2) por ser a canção Xangô de Villa-Lobos (com o Canto de Xangô em sua melodia) a representação sonora desta tópica. A qualidade percussiva do piano pode, ainda, possivelmente simbolizar e remeter aos atabaques de um ritual religioso de um culto afro-brasileiro a Xangô. Ainda mais que isso: podemos observar também que o ostinato traz variações contrastantes e constantes de dinâmica, significando possivelmente o barulho e explosões dos jatos de fogo (raios) cuspidos por Xangô (PRANDI; VALLADO, 2010) de acordo com o mito de Xangô.

Tarasti trás ainda alguns exemplos da tópica canto de xangô em outras obras de Villa-Lobos como os Quartetos de cordas número 4 e número 6 (TARASTI, 1995, p. 304-308), onde podemos verificar a presença de um tema de tipo xangô no cello contra um ostinato nos outros instrumentos. Portanto, melodia de tipo xangô + ostinato= tópica canto de xangô:

Fig. 3 - Quarteto de Cordas n.4 – tópica canto de xangô (II, c. 1-8)

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A tópica canto de xangô: Villa-Lobos, o afro-brasileiro e a identidade nacional

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Fig. 4 - Quarteto de Cordas n.6 – tópica canto de xangô (I, c. 117-122)

A tópica canto de xangô pode ser observada novamente nas Danças características africanas, Kankukus:

Fig. 5 – Tópica canto de xangô em Kankukus, das Danças Características Africanas (c. 94 a 103)

Conclusão

Podemos observar, através do tipo xangô e da tópica canto de xangô a representação de várias convenções e percepções a respeito dos rituais e cultos afro-brasileiros, bem como do mito de Xangô. E é desta forma que o tipo xangô e a tópica canto de xangô trazem consigo algumas características, significados, simbologias e memórias que definem a maneira como a música normalmente é ouvida e percebida nos cultos e

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rituais de Xangô79. Ao ser demonstrada como uma convenção amplamente utilizada, esta ganha autonomia para ser chamada de tópica. O estudo de tópicas na música brasileira ainda se encontra em fase inicial, porém torna-se quase que imprescindível ir a fundo nesta pesquisa, pois as tópicas musicais revelam processos composicionais que são essenciais para a música brasileira.

Referências bibliográficas

ADOLFO, Sérgio Paulo. O mito africano no cotidiano dos afro-brasileiros. In: SANTOS, Volnei Edson dos (Org.). Sopros do silêncio. Londrina: EDUEL, 2008. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3.ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1972. HATTEN, Robert. Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation and Interpretation. Bloomington: Indiana University Press, 1994. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira & identidade nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. PAES, Priscila. A utilização do elemento afro-brasileiro na obra de Francisco Mignone. Dissertação (Mestrado em artes) – Escola de Comunicações e artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. PRANDI, Reginaldo; VALLADO, Armando. Xangô, rei de Oió. In: FIILHO, Aulo Barretti. (Org.). Dos yorùbá ao candomblé kétu. 1 ed. São Paulo: Edusp, v. 1, p. 141-161, 2010. RATNER, Leonard. Classic music: Expression, form and style. New York: Schirmer Books, 1980. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp 2009. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos: The life and Works, 1887-1959. Jefferson, North Carolina, and London: Mc Farland &Company, Incl., Publishers, 1995.

79 A Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de São Paulo (1938) organizada por Mário de Andrade registrou exemplos de rituais de Xangô no Recife. Este material está disponível para pesquisa no Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo.

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Exemplos de figuras retóricas de interrupção e persuasão silêncio em José Maurício Nunes Garcia

ELIEL ALMEIDA SOARES ECA/USP - [email protected]

ndispensável para a formulação e elaboração de um discurso, a retórica é o instrumento de persuasão que

auxilia o orador em convencer o público favoravelmente à sua tese, seja por intermédio do logos dialético ou por sua habilidade em empregar a linguagem como recurso de e eloquência, com o propósito de despertar os afetos do ouvinte (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001,p.235). Esse axioma, igualmente foi usado nas músicas do final do século XVI e começo do século XIX, para a obtenção de um resultado eficaz e satisfatório tanto em seu desempenho como das audições. Para isso, fez-se necessário a utilização de vários mecanismos, por exemplo, metáforas, alegorias, relação entre texto e música, isto é, harmônica, motívica e semântica, trabalhados diligentemente em consonância com as figuras retórico-musicais.

Tal vinculação entre retórica e música pode ser examinada desde o início da civilização greco-romana, onde diversos pensadores estabeleciam relações de conceito entre si (SOARES; NOVAES; MACHADO NETO, 2012, p. 301). Ulteriormente, na Idade Média, onde os padrões instaurados pelos teóricos da Antiguidade apresentaram-se essenciais para a efetivação da retórica como disciplina, a qual foi transmitida e associada à educação, por meio da universidade, semelhantemente difundido pela música renascentista, sob a perspectiva humanística, culminando no Barroco, onde as distintas teorias sobre a retórica mostram-se fundamentais, para embasar os diversos tratados dos pensadores musicais na produção e elaboração da terminologia Musica Poetica, o qual indicava uma sistematização e teorização da música como discurso. Finalmente, no Classicismo, onde alguns gêneros e estilos composicionais preservaram essa tradição.

Seguidor dessa prática, José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) evidência tanto na arte da oratória como em suas

I

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músicas sacras, a influência da retórica, disciplina estudada por ele desde sua juventude (MATTOS, 1997, p. 33-34). Da mesma maneira, em seu Método de Pianoforte (1821), expressa as mesmas concepções estéticas e conceituais originárias das doutrinas gregas e latinas de retórica e oratória, embasadas em autores como Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), Marco Túlio Cícero (106 a.C.- 43 a.C.), Marco Fábio Quintiliano (35-95), entre outros. Não obstante, emprega no ordenamento das tonalidades das lições de seu método, conotações semelhantes às usadas por tratadistas retórico-musicais como Marin Mersenne (1588-1648), Athanasius Kircher (1601-1680), Wolfgang Caspar Printz (1641-1717) e Johann Mattheson (1681-1764) (FAGERLANDE, 1993, p.146).

Enfim, a utilização desses recursos retóricos na música dos séculos supracitados, despertou o interesse da atual musicologia em investigar os processos de concepção e constituição dos elementos de retórica, contribuindo dessa forma para o entendimento da disposição do discurso musical. Em vista disso, neste trabalho será exposto o emprego de figuras retóricas de interrupção e silêncio por parte Nunes Garcia, utilizando-se métodos analíticos adequados, em conformidade ao texto, harmonia e ordenação do discurso musical, os quais serão expostos através das análises e exemplos, a seguir.

Análises e exemplos de figuras retóricas de interrupção e silêncio

Abruptio

No presente excerto do 1º Responsório do Ofício dos Defuntos, de 1816, é verificável o emprego de uma interrupção súbita e inesperada no final da expressão et in novissimo die de terra surrecturus sum (e que no último dia eu hei de ressuscitar da terra), nos compassos 11e 12, caracterizando, assim, segundo Mauritius Johann Vogt (1669-1730), uma Abruptio (BARTEL, 1997, p.169).

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Ex. 1: Abruptio no 1º Responsório do Ofício dos Defuntos (1816) – comp.11 e 12- Organização Cleofe Person de Mattos (GARCIA, 1982, p.2).

Aposiopesis

Johann Gottfried Walther (1684-1748) ressalta que “a Aposiopesis é uma pausa geral, isto é, um completo silêncio em todas as vozes e nas partes da composição simultaneamente” (BARTEL, 1997, p.205). Na primeira fase da Dispositio80, observa-se que José Maurício Nunes Garcia, aplica a Aposiopesis nas quatro vozes entre o segundo tempo dos compassos 2 e 4, impondo-as um silêncio total, além de enfatizar à expressão Domine que é repetida em estrutura cordal. Também, nos compassos 5 e 7, verifica-se tanto a mudança de dinâmica de piano para pianíssimo, da linha fraseológica como as funções harmônicas da Tônica e Dominante, com conclusão na Cadência Autêntica Imperfeita.

80Onde são distribuídas e ordenadas as ideias e argumentos encontrados na Inventio. Essa disposição é distribuída em seis seções. Exordium- início e introdução do discurso; Narratio- relato, uma narrativa dos fatos; Propositio- expressão e exemplificação da tese fundamental, ou seja, nessa fase onde o conteúdo e propósito do discurso musical se dão de maneira sucinta, resumida; Confutatio- refutação dos argumentos expostos, ou seja, uma oposição ao tema inicial ou principal; Confirmatio- confirmação da tese inicial; Peroratio- conclusão.

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Ex. 2: Aposiopesis no Domine Jesu-comp. 2 e 4-Edição Álvaro Loreto (GARCIA,

2000, p.1).

Pausa

O discurso do Ofício dos Defuntos (1816) inicia-se de modo afirmativo e enfático com uma declaração do personagem bíblico Jó: Credo quod Redemptor meus vivit (Creio que o meu redentor vive), (Jó 19: 25). Destarte, tal louvor é ratificado e consolidado na transição do Exordium para a Narratio, onde Nunes Garcia usa a Pausa em todas as vozes para separar a frase em uma função não esperada, ou seja, na Subdominante. Corroborando assim, com a afirmação de Walther, de que esse elemento retórico representa um período de repouso ou silêncio na música, em outras palavras, através de um determinado sinal e valor é indicado o descanso necessário numa parte da composição musical (BARTEL, 1997, p.365).

Ex. 3: Pausa no 1º Responsório do Ofício dos Defuntos (1816)- comp.4-

Organização Cleofe Person de Mattos (GARCIA, 1982, p.1-2).

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Exemplos de figuras retóricas de interrupção e silêncio em José Maurício Nunes Garcia

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Nesse trecho, nota-se que o mesmo texto e figura são utilizados pelo autor, porém, diferentemente do exemplo anterior, à separação da frase acontece depois das palavras Credo quod (Creio que). Do mesmo modo, há de se salientar os andamentos e tonalidades diferentes, por exemplo, o Ofício dos Defuntos, de 1816, está num Andante Sostenudo e tonalidade Fá Maior, já o das Matinas e Encomendação de Defuntos, encontra-se num Moderato e em Sol Menor finalizando com uma Cadência Autêntica Imperfeita.

Ex. 4: Pausa no 1° Responsório das Matinas e Encomendação de Defuntos-

comp.3- Edição de Carlos Alberto Figueiredo (CASTAGNA, 2003, p.1).

Suspiratio

Athanasius Kircher (1601-1680) enfatiza que: “A Suspiratio lembram os afetos naturalmente expressados por vários suspiros criados através de pausas” (BARTEL, 1997, p. 393-394). Fato esse, que pode observado no Moteto Ascendens Christus, onde, José Maurício, emprega a Suspiratio para destacar a expressão Alleluia, repetida nessa passagem por cinco vezes. Além de criar um efeito sonoro, o autor trabalha com as dinâmicas piano e forte para destacar o afeto de devoção, exultação, júbilo do fiel, o qual baseado em Salmos

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(Ps. 46:6/47:5)81, descrito dessa maneira: “O Senhor subiu entre as (aclamações) nações, ao som de trombeta: Aleluia”.

Ex.5: Suspiratio no 6° Responsório do Moteto Ascendens Christus-comp. 36-46.

Edição: Cleofe Person de Mattos (GARCIA, s/d, p.9).

Considerações Finais

Os mestres da composição usavam os elementos retóricos com o propósito de atrair a atenção do ouvinte, por intermédio da persuasão. Para tanto, mecanismos como as figuras retóricas de interrupção e silêncio, foram aplicadas para auxiliar o autor não só na organização e ordenamento do discurso, mas, igualmente, na valoração das cadências e harmonia, repetições, no realce das palavras, frases e, por fim, nos afetos trabalhados diligentemente objetivados em mover os sentimentos do público. Em outras palavras, esse recurso mostrava-se eficaz numa composição engenhosa, inter-relacionada com variadas partes estruturais, semânticas, textuais, motívicas, entre outras.

Ao examinar os exemplos das peças do mestre de capela da Sé do Rio de Janeiro, verificou-se o emprego de figuras e elementos de retórica, dispostos e ordenados, conforme a circunstância do discurso. Por exemplo, no 1º Responsório do Ofício dos Defuntos (1816), Nunes Garcia utiliza a Abruptio, para destacar as palavras in novissimo die de terra surrecturus sum (e que no último dia eu hei de ressuscitar da terra), interrompendo o trecho com inserção de pausas. Na mesma obra, observou-se o uso da Pausa, para separar a

81Salmos 46:6 são o número e versículo na bíblia católica, já na bíblia protestante o texto está escrito no número 47 e versículo 5.

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expressão Credo (Creio), além de servir de transição do Exordium para a Narratio. Tal figura, também pode ser verificada no 1° Responsório das Matinas e Encomendação de Defuntos, onde o autor trabalha com o mesmo texto, entretanto, a figura oferece um momento de descanso somente depois da expressão Credo quod (Creio que).

Outro aspecto a ser enfatizado, é aplicação da Aposiopesis no Moteto Domine Jesu, produzindo um silêncio em todas as vozes além de ressaltar as progressões dos acordes, funções harmônicas e resoluções cadenciais. Por fim, a Suspiratio no 6° Responsório do Moteto Ascendens Christus, ressaltando o afeto de exaltação e júbilo, através da expressão Alleluia.

Em suma, nos cinco exemplos José Mauricio Nunes Garcia dispõe esses recursos de modo articulado, ordenado e consciente, evidenciando, assim, possuir sólido conhecimento teórico, para embasar a utilização de elementos retóricos em suas obras.

Referências bibliográficas

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_______. Domine Jesu. Edição Álvaro Loreto. São Paulo: Choral Public Domain Library, 2000. Partitura. Disponível em: <http://www3.cpdl.org/wiki/index. php/Domine_Jesu_(Jos%C3%A9_Maur%C3%ADcio_Nunes_Garcia)> Acessado em: 04 de Outubro de 2015. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia: Biografia. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1997. SOARES, Eliel Almeida; NOVAES, Ronaldo; MACHADO NETO, Diósnio. Retórica na Música Colonial Brasileira: o uso da Anaphora em André da Silva Gomes In: IV Encontro de Musicologia de Ribeirão Preto, 2012. Anais. Ribeirão Preto: LATEAM- Laboratório de Teoria e Análise Musicais, 2012. p. 301-306. Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP-Processo nº 2013/23600-3) pelo apoio financeiro a esta pesquisa. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

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A obra musical como objeto puramente intencional em Ingarden

GLAUCIO ADRIANO ZANGHERI ECA/USP – [email protected]

fenomenólogo polaco Roman Ingarden (1893-1970) inicia o seu estudo sobre a obra musical (cf. INGARDEN,

1986, 1989)82 distinguindo-a da performance, de um conteúdo da consciência e da partitura. Contudo, essas distinções iniciais consistem apenas num trabalho preliminar que têm como objetivo remover certas dificuldades e confusões a fim de evitar mal-entendidos futuros. Restará ainda a Ingarden esclarecer as condições suficientes e necessárias para que algo possa ser considerado uma obra musical. Sendo assim, a quarta parte daquele estudo dará o primeiro passo no sentido de precisar o modo de ser específico de uma obra musical na medida em que buscará determinar o que distingue uma obra musical de outros “construtos sonoros” ou “fatos acústicos”. Mais precisamente, Ingarden desenvolverá os primeiros argumentos para demonstrar que uma obra musical é um objeto puramente intencional e, por isso mesmo, não-real. O presente artigo tem como objetivo expor alguns dos pontos envolvidos neste debate.

As diversas formações sonoras e a obra musical

Não há dúvida de que os sons (sejam eles determinados, indeterminados, ruídos etc.) constituem o elemento essencial de uma obra musical. No entanto, não é qualquer som ou conjunto de sons que formam ou criam uma obra. Os sons de uma língua ou o canto dos pássaros, por exemplo, não constituem, por si só, obras musicais. Assim,

82 As duas datas se referem às duas versões disponíveis do texto: a polonesa e a alemã (ambas traduzidas para o inglês). Sobre a gênese do texto cf. INGARDEN (1989, p. ix-xi). Além disso, Jagannathan et al (1985, p. 181-223) elaboram uma lista completa das obras de Ingarden publicadas até o ano de 1985.

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quais “as diferenças entre uma composição musical e tais construtos sonoros ou fatos acústicos?”83 (INGARDEN, 1986, p. 43).

Em princípio, Ingarden (1986, p. 43) afirma que essas diferenças poderiam se dar em razão de três aspectos: 1) “uma ordenação específica dos sons ou construtos sonoros em sua copresença e sucessão”; 2) a aparição de “elementos totalmente novos e diferentes de sons, estruturas sonoras, sussurros ou batidas”; 3) “algo completamente específico que diferencia cada obra musical, e mesmo suas partes individuais, de sinais acústicos e fenômenos auditivos na natureza”.

Após discriminar estes três aspectos, Ingarden discute com mais detalhes cada um deles.

A questão da ordenação

Ingarden começa o debate argumentando que embora uma ordem predeterminada possa parecer, à primeira vista, aquilo que distingue uma obra musical de outras formações sonoras, isso não é essencial – ou seja, uma ordenação predeterminada não é um aspecto suficiente e necessário84. Há uma variedade de sinais sonoros que são ordenados da mesma forma que uma obra musical, mas que, ainda assim, são essencialmente diferentes dela. Há uma série de exemplos que podem ilustrar isso: os toques de apito padronizados de um guarda, os toques de telefone, os toques militares (que também são padronizados) etc. Em todos esses exemplos estamos diante de construtos sonoros ordenados, mas não de obras musicais. Assim Ingarden poderá concluir enfaticamente que

83 Guardadas as devidas diferenças, podemos dizer que é justamente essa a questão que se coloca para Schaeffer (1977) após a concepção fenomenológica do objeto sonoro e da escuta reduzida. Em termos schaefferianos, a pergunta poderia se colocar nos seguintes termos: qual a diferença entre um objeto sonoro e um objeto musical? Se a fenomenologia de Schaeffer obtém êxito em distinguir o objeto sonoro do sinal acústico, ela encontra dificuldades para determinar o modo de ser específico de um objeto musical. Talvez seja essa dificuldade que justifica, em Schaeffer, o abandono da fenomenologia em favor do estruturalismo (cf. SCHAEFFER, 1977, p. 278). 84 Nesse sentido, abre-se a possibilidade de a concepção de obra musical proposta por Ingarden compreender também a chamada “Música Aleatória”.

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“não há diferenças na ordem do som ou das estruturas sonoras que sejam responsáveis pela identidade distinta dos construtos” (INGARDEN, 1986, p. 44).

A aparição de elementos ausentes em outras formações sonoras

Ingarden (1986, p. 44) argumenta que, em primeiro lugar, é preciso perguntar que elementos seriam estes – pois, ao que parece, os teóricos musicais parecem não estar de acordo a esse respeito. Alguns estariam inclinados a afirmar que tais elementos seriam a melodia, a harmonia, o ritmo e certas particularidades do tempo musical. Ingarden (1986, p. 45-46) rebate essa tese afirmando que nem sempre estes elementos estão presentes numa composição musical e, paradoxalmente, eles podem até mesmo estar presentes em outros construtos sonoros. Tal é o caso de alguns dos exemplos que citamos acima, mas não só. Ingarden chama a atenção para as vinhetas de rádio que, em muitos casos, nada mais são do que fragmentos de obras musicais conhecidas. Em verdade, elas funcionam muito mais como um signo indicativo85, que identifica este ou aquele programa, do que como uma música propriamente dita86. Finalmente, Ingarden cita os ritmos característicos dos rituais religiosos das tribos africanas87, e a chamada dance music. Nos dois casos a música torna-se uma espécie de acessório para outra atividade. Não estaríamos exatamente diante de um fenômeno artístico, mas sim de um fenômeno religioso (no primeiro caso) e de um fenômeno passional (no segundo caso). Sendo assim, o problema aqui se converteria em estabelecer os limites do que se considera um fenômeno artístico, e não mais das características essenciais de uma composição musical (cf. INGARDEN, 1986, p. 46).

85 Sobre o termo signo indicativo, cf. VOLLI (2007, p. 42-44). 86 O fato de uma vinheta ser especialmente composta não altera este argumento. 87 Não podemos deixar de constatar aqui uma visão um tanto estereotipada e eurocêntrica de Ingarden em relação à música africana.

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Mas há ainda alguns teóricos, sempre segundo Ingarden (1986, p. 46-47), que afirmam que o elemento essencial de uma obra musical seria a sua “expressão” ou a sua capacidade de “representar” algo – em verdade, a “expressividade” e a “representação” consistiriam até mesmo na própria “função” de uma obra musical. Ou seja, teríamos um elemento não-sonoro como traço distintivo de uma obra musical. Embora Ingarden admita a possibilidade da música programática, há de se compreender que, de acordo com esta teoria, os termos “expressão” e “representação” acabam por se tornar indistintos, e isso criaria enormes dificuldades para estabelecer os limites da música programática. Além disso, não estaria claro também se deveríamos considerar como obra musical apenas uma obra de música de programa. Tanto a expressão como a representação, devido à sua própria natureza extra-musical, e mesmo extra-artística, têm a sua origem em nossas relações interpessoais cotidianas e, portanto, “nem o que se expressa nem o que é expresso tem alguma coisa a ver com música ou com arte em geral” (INGARDEN, 1986, p. 47).

E Ingarden irá concluir a sua crítica à teoria da “expressão” e da “representação” argumentando que uma mesma obra musical pode provocar os mais diferentes sentimentos e respostas emocionais nos ouvintes. Além disso, há uma variedade de outros objetos e eventos que também podem evocar sentimentos. Finalmente, sentimentos e estados psíquicos não são os únicos modos como uma obra musical afeta um ouvinte. Sendo assim Ingarden se pergunta:

Seremos realmente obrigados concluir que uma obra musical não possui uma estrutura essencial ou uma coleção de propriedades características que lhe são puramente próprias – que o que lhe é característico deve ser procurado no modo como a música afeta o ouvinte e não na obra em si? (INGARDEN, 1986, p. 48).

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A questão da especificidade da obra musical e o problema da uniestratificação.

Tendo em vista o fracasso das tentativas anteriores, devemos nos perguntar se realmente há algo que distinga uma obra musical de outros construtos sonoros ou fenômenos acústicos, e quais seriam aqueles “elementos específicos” que sustentariam essa distinção. Contudo, antes de responder a esta questão, Ingarden (1986, p. 48-49) retoma o problema da “expressão” ou “representação”. A ideia de que algumas obras musicais podem desempenhar a função de representar ou expressar algo sugere também que há um parentesco entre a música e a literatura.

Uma vez que a literatura pode desempenhar ambas as funções por meio de um estrato88 dos sons linguísticos e dos significados a eles associados, é sugerido que a música também tem significados que seriam sustentados, por exemplo, por elementos musicais específicos. Muitos teóricos têm falado do “significado” que está, supostamente, encerrado em certas obras musicais (INGARDEN, 1986, p. 48).

O problema nesta argumentação é que o termo “significado” se torna obscuro e acaba por ser utilizado nos mais diversos sentidos. O termo “significado”, quando aplicado à música, adquire um sentido completamente diferente daquele que utilizamos quando nos referimos a um construto linguístico. Em suma, uma obra musical não contém fonemas significativos (Wortlaut)89 e nem o sentido que uma sentença ou conjuntos de sentenças possuem numa linguagem. Assim, embora uma obra musical possa nos fazer imaginar situações objetivas, coisas ou pessoas em certos estados (tal como uma obra literária o faz), isso se dá por nossa própria conta e não em razão de um conteúdo da obra musical em si (contanto que

88 Para uma melhor compreensão da famosa Teoria dos Estratos de Ingarden, cf. INGARDEN (1973, § 8). 89 Cf. INGARDEN (1973, §§ 9-13).

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não estejamos lidando com uma obra que envolva um complexo músico-literário como, por exemplo, uma canção). E é justamente esse argumento que permite a Ingarden afirmar que a obra musical (de música pura) não possui uma estrutura multiestratificada. Isso se dá porque uma obra musical, essencialmente, não possui as quatro condições suficientes e necessárias que determinam uma estrutura multiestratificada (cf. INGARDEN, 1986, p. 50). As quatro condições podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

[1] A subsistência de elementos heterogêneos na obra, [2] a unificação hierárquica dos componentes homogêneos em um único componente fundamental, [3] a nítida distinção de cada componente fundamental, [4] a conexão orgânica dos diversos componentes fundamentais no todo da obra (MAZZONI, 2004, p. 69).

Com efeito, essas quatro condições não se revelam numa obra musical. Embora possamos verificar elementos heterogêneos, eles não compõem “um autentico estrato contínuo e distinto” (MAZZONI, 2004, p. 2004) tal como é exigido pela conceituação de Ingarden.

A obra como objeto puramente intencional

Se, enfim, uma obra musical possui apenas um estrato (não havendo, portanto, nenhum elemento específico suplementar ou mesmo não-sonoro que a distinga de outras formações sonoras) o que justifica e sustenta a distinção em questão? Para responder definitivamente a esta pergunta será preciso compreender de que forma Ingarden concebe os demais objetos do mundo.

Segundo Thomasson (2012), Ingarden distingue quatro grandes categorias ou “modos de ser” dos objetos: absolutos, ideais, reais e puramente intencionais. A categoria dos objetos absolutos compreende seres como, por exemplo, Deus, que poderiam existir mesmo que qualquer outra coisa não existisse; a categoria dos objetos ideais compreende os seres

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atemporais e, nesse sentido, é o modo de ser dos números, das figuras geométricas e dos demais entes matemáticos concebidos segundo uma perspectiva platônica; a categoria dos objetos reais compreende os seres contingentes e que se situam no tempo e no espaço (por exemplo, uma pedra, uma mesa, um processo, um evento etc.); finalmente, os objetos puramente intencionais compreendem os seres fictícios (não-reais) que devem a sua existência aos atos de consciência. As obras de arte, e consequentemente as obras musicais, se incluem nesta última categoria opondo-se, portanto, aos modos de ser absolutos, ideais ou reais. Mas, tendo em vista que essas distinções são relativamente simples por que Ingarden não as expôs logo no início de seu texto? De nossa parte, acreditamos que há pelo menos três razões para isso: a primeira é que mais do que simplesmente afirmar, trata-se de demonstrar por que motivos a obra musical é um objeto intencional; a segunda, diz respeito ao fato de Ingarden dedicar outras obras que tratam dos modos de ser e das categorias dos objetos; finalmente, a terceira razão é que há uma série questões de natureza estética, axiológica e epistemológica que o texto tentará abordar ao longo de seu desenvolvimento e que carecem de explicações mais detalhadas. Trata-se, assim, de um texto que busca manter a sua especificidade e, simultaneamente, dialogar com todo um sistema filosófico. Em outras palavras, é preciso entender o lugar que ele ocupa no pensamento de Ingarden.

Conclusões

Como se pode observar, nas passagens examinadas por nós, Ingarden se esforça em demonstrar as razões pelas quais a obra musical deve ser concebida como um objeto intencional e, portanto, distinto dos objetos reais. Elas representam um ponto médio que tira consequências das distinções preliminares e, ao mesmo tempo, lançam as bases para as discussões que ocorrerão na segunda metade do texto. Mas, sobretudo, torna-se patente a fecundidade do método fenomenológico no tratamento de questões estéticas, pois, se as obras de arte se situam no âmbito dos objetos puramente intencionais, então a fenomenologia, e junto com ela, a análise

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intencional, se torna o método por excelência do conhecimento artístico. Nesse sentido, os estudos de Ingarden demonstram que a fenomenologia, quando aplicada à música, não se limita simplesmente à análise da escuta e da percepção (como à primeira vista poderia parecer), mas se mostra promissora para o exame da própria estrutura do modo de ser da música.

Referências bibliográficas

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Toadas da Folia de Reis dos Prudêncio de Cajuru-SP: permanência e cantoria

PRISCILA RIBEIRO ECA/USP - [email protected]

ste artigo é uma apresentação do atual trabalho de mestrado que resultou do desdobramento da pesquisa

de iniciação científica que teve Bolsa-FAPESP de 2012 a 201390, focalizando um vasto material áudio/visual sobre a Folia de Reis dos Prudêncio, como também parte do que vem sendo desenvolvido. Acervo rico e numeroso, organizado e identificado dentro de um período de mais de trinta anos, trouxe à tona dados musicais e extramusicais importantes desta Folia. Através de laços familiares e um longo tempo de contato e participação, foram reunidos um total de 144h24m26s de vídeo, 12.571 fotos digitais, 78 fotos impressas, 04h25m31s de gravação K7 digitalizados. No entanto, pretende-se explorar fontes musicais do acervo e através de transcrições, analisar a música da Folia e suas transformações no decorrer do tempo, como também desenvolver o estudo a partir da pesquisa participativa. Busco estudar situações específicas do cantar e improvisar versos.

Folia e toadas As Folias de Reis fazem parte do calendário católico que comemora os Santos Reis com cortejos e músicas no período de 25 de dezembro a 6 de janeiro. De caráter religioso, retratam a visita dos Reis Magos ao Menino Jesus nascido em Belém, segundo a passagem bíblica em Mt.2:1-12. Em alguns estados como no Rio de Janeiro, chegam até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião. O culto aos Reis Magos é descrito desde o séc. II no Oriente e no Ocidente (PESSOA & FELIX, 2007). No Brasil

90 Bolsa de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (2011/23190-4). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

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temos notícia desde o séc.XVIII, seja associada a Folia de Reis ou aos Bois, Cavalo Marinho, Maracatú, Nau Catarineta, etc. Levando em conta a distribuição das Companhias de Reis ao longo das antigas estradas paulistas, supõe-se que as folias tenham chegado na época da colonização do país e se espalhado através dos bandeirantes e dos tropeiros. Os elementos nela subjacentes demonstram que há gestos de sociabilidade de monta que caracterizam o auxílio entre a vizinhança e o compartilhamento de tradições, tanto na esfera da culinária quanto na dos cuidados da saúde. De maneira geral as Folias de Reis agrupam os devotos dos Santos Reis que celebram os Magos do Oriente: Melquior (muitas vezes chamado de Belquior), Baltazar e Gaspar, através de cortejos e visitas de porta em porta. Nas bênçãos distribuídas espera-se a colaboração dos devotos visitados, para a festa do Dia de Reis (6 de janeiro). Em Cajuru (MORETINI, 2007), interior do estado de São Paulo, na zona rural chamada Lajes, no sítio dos Prudêncio, a Folia de Reis, também chamada de Companhia de Reis dos Prudêncio, é uma das companhias mais antigas do estado chegando a ter mais de 150 anos. Tradição passada de geração em geração com o intuito de manter viva a fé e o louvor a Santos Reis, sendo esta uma prática devocional que nasce e se mantém no âmbito familiar. A zona rural é seu principal palco, o trajeto oferece uma paisagem agradável, vínculos familiares e muita cooperação onde o dar e receber sobressai-se. Além disso, há outras trocas sociais em torno da Folia, tornando-se consagrado pelos anos o espaço demarcado para o giro. A Folia de Reis não consistiu manifestação isolada naquela região do estado de São Paulo, são comuns as Congadas, Canto pras Almas, Ladainhas, Tiradas de Terço, auxiliando a caracterizar alguns aspectos da cultura caipira. Se Antônio Cândido realizou estudo fundamental neste vasto universo que se entende como caipira (CÂNDIDO, 2010), hoje em dia temos também os estudos de Ivan Vilela (2013), que traz uma visão de grande importância para a música caipira, como seu desenvolvimento e permanência cultural. No entanto, o acontecer da música na Folia como a afinação, mudança de toadas (melodias usadas como unidades musicais fechadas), ritmo e também a consciência de que a música não está dissociada da vida, é parte fundamental dessa prática social, e que sem ela nada

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daquilo aconteceria. A música faz com que a sensibilidade se acentue na hora do rito, legitimando palavras, gestos e sentimentos, criando-se uma ponte de ligação com o que é divino. Toadas antigas e modernas misturam-se a versos antigos e improvisados, não há ensaios antes de cada Folia anual, mas todas estas questões sugerem uma nova ambientação, um novo pensar para o Embaixador (o cantador que tira as toadas e versos). Estreitamente vinculadas às promessas feitas pelos devotos, como “pagamento de promessas”, as toadas precisam ser entendidas também como música de improviso, associada à cantoria. A música da Folia nos remete, portanto, a uma forma sincrônica, no dado momento que em sua formação identificam-se traços de manifestações musicais de tempos antigos que se misturam com o que de atual se compõe a Folia, suas partes fixas e momentos de improvisação. Em relação a performance musical, dialogamos com o etnomusicologo Anthony Seeger (2008), que em seus estudos aponta que os músicos (neste caso, chamo de “cantadores e tocadores”) têm certas expectativas da situação em que estarão envolvidos, do seu papel e das ações do público. Este por sua vez também possui certas expectativas sobre o que irá acontecer, tendo como base experiências passadas, conceitos sobre o evento e talvez, o conhecimento dos músicos em particular. A hora do dia e o local da performance podem ser significativos, assim como o gênero, idade e status dos executantes e do público. Quando os performers iniciam, produzem sons e impressões. Sua performance tem efeitos físicos e psicológicos sobre o público, fazendo surgir um tipo de interação. Seeger comenta ainda que, o fato de que sempre existirá uma próxima vez, aponta para o que podemos chamar de tradição. Diz também que o fato de que a próxima vez nunca será igual à vez anterior, produz o que podemos chamar de mudança, sendo que as descrições desses eventos formam a base da etnografia da música. A música é a arte do tempo por excelência, a figura sonora do tempo vivido, sendo a duração da execução singular, um pedaço de tempo real e irrepetível. Uma outra abordagem considerada no desenvolvimento da presente pesquisa é elaborada por Christopher Small, “Musicking” (“musicar”). SMALL (1999) traz o conceito de que “A essência da música não está na obra musical, no trabalho musical, e sim

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na ação social de fazê-la, ou seja, na performance”.Música é mais que um nome é um verbo, o de “musicar”, ou seja , “ação.” O conceito transcende a ideia de performance musical, atingindo também ações como ouvir música, falar sobre música. Considera ainda que o local onde se faz música, é um fator preponderante de “como” e “para que” aquela música se desenvolve. Neste estudo sobre a música da Folia, tal conceito nos ajuda a compreender como o fazer musical de seus agentes atua no movimento de tal sociedade dando o perfil de cada localidade. Como o “musicar” constrói um determinado local e como este local pode ser construído por ele. Devo sintetizar ainda que, tendo por parâmetro o trabalho de campo de Brandão (1984), adotei o princípio da pesquisa participante. Um assunto que se depara qualquer pesquisador, principalmente os que se dão a práticas da cultura popular, o tamanho e uso da neutralidade em pesquisa. Brandão fala da consequência do resultado que se tem em pesquisa, pois resulta-se na construção simbólica do outro no qual se investiga. Traz a reflexão sobre o anonimato do sujeito que é pesquisado por consequência da escola metodológica, faz uma crítica sobre o modo de construção desses estudos, fazendo com que o erudito da cultura é a necessidade da identidade pessoal do autor, o que torna legítima a popular “é que nela ele não exista, ou porque foi esquecido no tempo, ou porque, não tendo autores de história, o povo também não deve ter também autores de sua própria cultura” (BRANDÂO, 1984). Ao contrário do anonimato, a identificação e nomeação dos protagonistas da Folia é o que faz toda a diferença nesta pesquisa, pois é a partir disso que se legitima e se constrói o conhecimento sobre esta Folia. Brandão conclui que a pesquisa participante se dá com o envolvimento do pesquisador a tal ponto que quando o outro se transforma em uma convivência, a relação obriga que o “pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. Quando o outro me transforma em um compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe da sua história” (BRANDÃO, 1984). Ou seja, a pesquisa tem que pretender conhecer para servir e não somente para explicar. Contudo, este atual trabalho possibilita organizar um registro histórico da Folia, onde a música usada durante todos esses anos forma uma espécie de marcação temporal, sendo que toda ela acontece a partir de um

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repertório particular de seus Embaixadores. Por ser a mais antiga da região de Cajuru- talvez a mais antiga do estado de São Paulo- a Folia de Reis dos Prudêncio pode trazer referências de conduta e musicalidade para as demais Folias de Reis que se conhece. No entanto, essa música é uma atividade social e não apenas uma coleção musical de artefatos sonoros, levando em conta que, esta tem consigo dentro de seus significados e execuções, mais do que simples melodias e harmonias, como “capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (BLACKING, 2010). John Blacking em certa medida reafirma esta abordagem, a pensar que para ele as culturas se equivalem, não há no interior de uma determinada cultura musical, produção inferior ou superior a outra, o que se precisa compreender é a significação que cada uma delas têm no seio de certa cultura para aqueles que a produzem e aqueles que a escutam. Aliás não é prematuro antecipar que para os “naturais” da comunidade que estudo, a Folia de Reis faz parte do tecido composto pelos fios que trançam a sua rotina, e tecem o dia a dia da comunidade, assim a celebração de qualquer data comunitária. Estudar a música na Folia de Reis auxilia a entender de que formas texto e música se combinam e de que maneiras elas transitam não só entre as gerações como entre os Embaixadores. Talvez glosando pensamento antigo, “o que nasce primeiro? O poema ou a melodia?” Assim, dando continuidade à pesquisa, nos propomos a estudar os cinco tipos de toadas usadas na Folia de Reis dos Prudêncio tendo em vista situações específicas do cantar e improvisar versos, como por exemplo: a) A toada cantada quando se chega a uma casa, com presépio ou não, o que subentende duas formas diversas de responder musicalmente; b) A toada cantada quando a Folia é surpreendida por algum fiel em meio a seu trajeto; c) A toada cantada em memória de alguém que faleceu (ninguém segura a bandeira que permanece apoiada no chão). Esta se dá com uso de versos feitos na cantoria onde o Embaixador “tira o verso” e o coro “responde” em cantoria, muito se assemelha ao canto antifonal comumente encontrado na música tradicional brasileira (ANDRADE, 1982). Utilizadas em 6 situações principais, “Chegada”, “Despedida”, “Agradecimento”, Promessa”, “Pedido e Distribuição de Bênçãos”. Conhecidas

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como Caminhada, Mineira, Paulista, Dobrada e Toada de Falecidos, observam movimentos de funções harmônicas diferentes mas se igualam a outras características como por exemplo a tonalidade, que mantém sempre a mesma. Embora eu saiba de antemão que os números de vozes variam, suas formas variem, assim como a resposta do coro, ainda não foi possível entender exatamente o que faz com que elas permaneçam ou sejam modificadas ao longo do tempo. Um dos pontos deste estudo é entender de que maneira as toadas podem ser rastreadas na cronologia da Folia de Reis dos Prudêncio. Á partir desse contexto, no trabalho de mestrado deu-se início a um estudo aprofundado, se utilizando da transcrição musical das toadas, tendo um olhar atento aos seus Cantadores. Uma etnografia, com base musical nas toadas, diferenciando os variados eventos e ocasiões que estas acontecem, abrindo um campo específico de investigação que esclareça mais afundo esse significado. Há de se utilizar a partitura como um retrato (desenho feito antigamente, antes da fotografia) daquela música, para que sane de imediato o pré-conhecimento, este não substituindo a audição. Mas no entanto, a transcrição musical em um todo auxilia na análise musical das toadas, pois vem permitir uma comparação direta entre as partes. A partitura pode ser importante pelo fato de se traduzir o som, mesmo que com aproximações, um modo de “visualizar” harmonias e desenhos melódicos, compreender execuções e formas. Lembramos que o elemento que uni as dimensões tanto sociais como musicais em tempos determinados e diversos da Folia, é o homem. Tomando por base isto, olhamos para a figura do Cantador. Este atua de forma a moldar a música da Folia, pois ao mesmo tempo em que a executa, ele também compõe tal música. O texto, na música da Folia, acontece de forma a gerar uma estrutura final para a música que é cantada, em forma de dístico ou quarteto, assunto que esta sendo estudado na pesquisa. O material que se dispõe a pesquisa, não se apresenta de forma contínua em decorrência dos registros anuais e em algumas vezes se encontra em qualidade de gravação precária. Até o dado momento foram identificadas 47 toadas diferentes dentro do repertório da Folia dos Prudêncio, averiguadas dos anos de 1982 até 2014. As toadas foram nomeadas inicialmente com uma forma numérica

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usando T1 para “Toada um”, T2 para “Toada dois” e assim por diante. O modo de nomear músicas e canções populares ou folclóricas tomando por base seu primeiro verso, não se possibilita em uso no caso das toadas desta Folia, pois as melodias e textos se misturam, não tendo sempre a mesma melodia para o mesmo texto, por isso optei por T1, T2, e etc, tendo em vista a grande quantidade delas. A nomeação/numeração vai sendo atribuída de acordo com a identificação das toadas que vão aparecendo nos vídeos em ordem cronológica, dos mais antigos para os mais recentes. As vozes da Folia dos Prudêncio que muito se assemelha as nomeações das demais Folias da região são: Embaixador; Ajudante; Mestre; Contra-mestre; Caceteiro; Tala; Contra-tala; Tiple e Requinta. A música da Folia em sua construção vocal (MOREIRA, 1983), a começar pelos nomes dados às vozes como: Contrato e Tipe, equivalendo na música vocal renascentista, onde a classificação Contra (Contra Alto, Medius Cantus) é para uma voz intermediária e Triplum (Triple, Treble, Tipre, Tiple) é para a voz mais aguda. Igualmente pode-se pensar na relação entre Tala e Taille–originalmente o nome francês para a voz tenor. O processo de identificação das toadas é um processo um tanto complexo pelo fato das toadas estarem em um mesmo tom (in D) e muitas vezes serem parecidas, acontecendo em alguns casos de forma ininterrupta dentro de uma mesma execução musical, como que se estivessem dentro de uma mesma música. Uma das ambições da pesquisa é entender a diferença musical e social das toadas paulistas, mineiras e dobradas, e as que por ventura não se enquadrarem nessa qualificação inicial, como as de caminhada e de falecidos. Concluimos que sistemas culturais musicais organizados e entendidos, revelam aspectos da vida coletiva destes grupos. Deve-se levar em conta o conceito “a música dos outros”, direcionando a abordagem da música a partir do ponto de vista dos nativos, dando voz aos agentes dessa música como também usando as categorias nativas de expressão, como por exemplo: “dar o tom”, “arremate”. Isso pode trazer resultados interessantes, gerando novas reflexões sobre este estudo etnomusicológico. Dentro desta abordagem, espera-se uma contribuição para a teoria geral da etnomusicologia, pois hoje em dia se mantém uma abordagem essencialmente descritiva

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para esse tipo de música, a tradicional folclórica. Refletir sobre conceitos como, a música analisada “na cultura” e a música analisada “como cultura”, ou seja, uma música que tem seu próprio modo de racionalizar. Considerar a “Música” como um dos temas de investigação, assim como o comportamento e o conceito de música, em cima de tendências psicológicas e estéticas, a música folclórica como um domínio da prática cultural, permitindo uma abordagem local e regional dos grupos, onde estes expressam suas singularidades e diferenças. Levar em conta que tanto na musicologia quanto na etnomusicologia, sendo o seu objetivo de estudo a música, o conceito de arte está inerentemente associado, surgem problemas quando são abordadas questões sobre o belo musical e sua autenticidade. Os tipos de percepção são propensos a interpretar os signos musicais com referência a experiências próprias que podem vir de diferentes sistemas culturais, assim conforme as variações na personalidade individual. Portanto temos aqui um dos pontos importantes do estudo, os resultados a partir da pesquisa participativa.

Referências bibliográficas ANDRADE, Mário. Danças Dramáticas do Brasil. Edição organizada por Oneyda Alvarenga. 2 ed. Belo Horizonte, Itatiaia; Brasília, INL, 1982. 3 vols. BLACKING, John. How musical is man?. Seattle and London, University of Washington Press, 2010. BRANDÂO, Carlos R. Repensando a Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense. 1984. CÂNDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito.11ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010. MOREIRA, Yara. Música nas Folias de Reis “mineiras” de Goiás. Revista Goiana de Artes, Goiânia, v.4, n.2, p. 173-188, jul/dez. 1983. MORETINI, Érika. Cajuru: Um olhar sobre a história do município. Brodowski, SP: Fundação Fabbri Felipucci, 2007. PESSOA, Jadir de Morais e FÉLIX, Madeleine. As viagens dos Reis Magos. Goiânia: Editora da UCG, 2007. SEEGER, Anthony. Etnografia da música. In Cadernos de Campo, São Paulo, n. 17, p. 237-260, 2008. SMALL, Christopher. Musicking – the meanings of performing and listening. A lecture. Music Education Research, Vol.1, No. 1, Barcelona, 1999. VILELA, Ivan. Cantando a própria história. São Paulo: EDUSP, 2013.