Tércio Resenha

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    LUS FERNANDO BITTENCOURT DE LEMOS

    A TEORIA DA NORMA JURDICA DE TERCIO SAMPAIO

    FERRAZ JUNIOR

    Porto Alegre

    2011

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    LUS FERNANDO BITTENCOURT DE LEMOS

    A TEORIA DA NORMA JURDICA DE TERCIO SAMPAIO

    FERRAZ JUNIOR

    Monografia apresentada ao Departamento deDireito Pblico e Filosofia do Direito daFaculdade de Direito da Universidade Federal doRio Grande do Sul, como requisito parcial paraconcluso do curso e obteno do grau debacharel em Cincias Jurdicas e Sociais.

    Aprovada em Porto Alegre, em ___ de dezembro de 2011.

    BANCA EXAMINADORA:

    _____________________________________________________Professor ALFREDO DE JESUS DAL MOLIN FLORES

    OrientadorPresidente da Comisso Examinadora

    ____________________________________Professor WLADIMIR BARRETO LISBOA

    Membro da Comisso Examinadora

    _____________________________________Professor ELTON SOMENSI DE OLIVEIRA

    Membro da Comisso Examinadora

    De acordo do Graduando: ______________________________.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo apresentar e contextualizar a teoria da norma jurdicaformulada por Tercio Sampaio Ferraz Junior. O autor prope uma abordagem pragmtica da

    norma jurdica, para determinao de um sistema explicativo do comportamento humano

    enquanto regulado por normas. As normas jurdicas so discursos ambguos, constitudos por um

    momento monolgico e outro dialgico, em que h um terceiro comunicador respaldado por

    terceiros (institucionalizado), que de antemo j prev sua reao contra a eventual

    desconfirmao dos endereados. A relao que se instala entre editor e endereado

    metacomplementar, ou seja, uma relao autoridade/sujeito. O discurso normativo heterolgico:

    visa persuaso, e no verdade (homologia), pois diz respeito a interesses conflitantes que

    pedem uma deciso. Normas so decises. A decidibilidade de conflitos norteia todo o modelo

    jurdico proposto por Ferraz Jr. Nesse sentido, o sistema normativo admite no apenas uma

    relao entre normas vlidas, mas tambm normas invlidas e efetivas, como uma resposta

    coerente do prprio sistema a uma situao. As regras de calibrao, de fundo ideolgico,

    proporcionam a mudana do padro de funcionamento do sistema para que este no pare de

    funcionar (autopoiese), mantendo sua imperatividade. Por isso, o sistema admite no uma, mas

    vrias normas-origem. Em ltima anlise, o que confere imperatividade e legitimidade ao sistema a ideologia, que fixa o sentido dos valores, retirando-lhes a reflexividade infinita. Diante da

    impossibilidade de no-comunicao, no h como se ter uma viso externa ao direito. Sua

    racionalidade est em assumir seu carter aportico, sustentando-se em confronto com outras

    possibilidades. Esse o momento dogmtico do direito.

    Palavras-chave: norma jurdica discurso normativo pragmtica jurdica - tpica

    teoria dos sistemassistema normativodogmtica jurdica.

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    ABSTRACT

    This paper aims to present and contextualize the theory of legal standard formulated byTercio Sampaio Ferraz Junior. The author proposes a pragmatic approach to the legal standard for

    determining an explanatory system of human behavior as governed by rules. The legal standards

    are ambiguous discourses, consisting of a monologic character, dialogic other, where there is a

    third communicator supported by others (institutionalized), which beforehand already provides its

    reaction against any of disconfirmation addressed. The relationship that develops between the

    editor and addressed is metacomplementar, ie, a authority/subject relationship. The normative

    discourse is heterological: aims at persuasion, not the truth (homology) as it relates to competing

    interests that require a decision. Standards are decisions. The decidability of conflicts guides the

    legal model proposed by Ferraz Jr. In this sense, the normative system allows not only a

    relationship between valid standards, but also invalid and effective rules, as a coherent response

    of the system itself to a situation. The rules for the calibration of ideological background give the

    shifting pattern of the system so that it does not stop working (autopoiesis), maintaining its

    imperativeness. Therefore, the system admits not one but several original standards. Ultimately,

    the imperative need that gives legitimacy to the system and ideology, establishing a sense of

    values, removing them infinite reflexivity. Faced with the impossibility of non-communication,there is no way to have an external view of law. Its rationality is to assume its aporetic character,

    supporting himself in confrontation with other possibilities. This is the moment of dogmatic law.

    Keywords: rule of law normative discourse legal pragmatic topics theory of

    systemsnormative systemlegal dogmatics

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    SUMRIO

    1 INTRODUO ............................................................................................................................ 6

    2 CONSIDERAES PRELIMINARES ACERCA DA EPISTEMOLOGIA JURDICA DETERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR. ..................................................................................... 11

    2.1 A pragmtica jurdica .......................................................................................................... 132.2 O direito como generalizao congruente de expectativas: interao humana e mecanismosde estabilizao de expectativas ................................................................................................ 16

    2.2.1 Atitudes cognitivas e atitudes normativas .................................................................... 182.2.2 Institucionalizao ........................................................................................................ 202.2.3 Generalizao de contedos: ncleos significativos .................................................... 23

    2.3 O pensamento tpico ........................................................................................................... 282.4 Horizontes da investigao jurdica: os enfoques zettico e dogmtico ...................... 34

    3 A NORMA JURDICA .............................................................................................................. 383.1 Discurso normativo ............................................................................................................. 38

    3.1.1 Conceito e elementos do discurso ................................................................................ 393.1.2 Tipos de discurso .......................................................................................................... 403.1.3 O discurso normativo ................................................................................................... 413.1.4 Operadores pragmticos e condies de aplicao da informao normativa ............. 46 3.1.5 Situaes subjetivas jurdicas ....................................................................................... 48

    3.2 Conceito de norma jurdica ................................................................................................. 503.3 Classificao das normas jurdicas ...................................................................................... 51

    3.3.1 Critrio sinttico de classificao das normas jurdicas ............................................... 513.3.2 Critrio semntico de classificao das normas jurdicas ............................................ 523.3.3 Critrio pragmtico de classificao das normas jurdicas ........................................... 53

    4 ORGANIZAO DA COMUNICAO NORMATIVA ....................................................... 554.1 Validade da norma jurdica ................................................................................................. 55

    4.1.1 Validade das normas como relao de imunizao ...................................................... 554.1.2 Validade formal e validade material ............................................................................. 574.1.3 Validade, vigncia e vigor ............................................................................................ 58

    4.2 Efetividade da norma jurdica.............................................................................................. 594.3 Relao entre validade, vigncia e efetividade .................................................................... 604.4 O ordenamento jurdico ....................................................................................................... 61

    4.4.1 Ordenamento enquanto sistema .................................................................................... 614.4.2 Relao de calibrao e imperatividade da norma e do sistema................................... 654.4.3 O carter ideolgico dos sistemas normativos ............................................................. 684.4.4 Legitimidade do sistema normativo ............................................................................. 71

    5 CONCLUSO ............................................................................................................................ 75

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    1 INTRODUO

    Com a supremacia do Estado na produo do Direito, especialmente a partir domovimento de Codificao do sculo XIX, ante os valores liberais, passou-se tambm a

    compreender o Direito como um sistema entendido este como uma complexa rede de normas

    com prevalncia da lei. Segundo Barzotto, esse processo iniciou-se nos Estados Modernos

    centralizados, tendo em vista a necessidade de fornecer um padro objetivo de resoluo de

    conflitos (a lei), e, com isso, evitar a prpria dissoluo da sociedade pluralista, com vises de

    mundo distintas.1

    Foi no Estado liberal que essa configurao atingiu sua maturidade, face necessidade de

    limitao jurdica do prprio poder criador do direito, com vistas proteo do indivduo frente

    ao Estado. Da a denominao Estado de Direito, em que se obedecem s normas jurdicas, e

    no pessoa do governante. No toa que se fala em constitucionalizao do poder, que tem

    sua prpria legitimao no Direito. Segundo o mesmo autor:

    A criao do direito, porm, no fica ao arbtrio daqueles que exercem o podersoberano, mas deve ocorrer no modo previsto pelo prprio sistema. Evita-se,assim, que o direito fique merc do poder poltico, ao mesmo tempo em que seconserva a sua neutralidade axiolgica j alcanada pelo Estado Absolutista, isto, tambm no Estado Liberal o jurdico no precisa corresponder a nenhum idealvalorativo para ser considerado como tal. Com isso, mantm-se afastado operigo das incertezas derivadas da pluralidade das concepes de justia. Paraverificar o direito, basta verificar a conformidade da sua produo com asregras que determinam a criao normativa no mbito do sistema [...] 2

    Nos dizeres de Ferraz Jr.,3 institucionaliza-se a mutabilidade do direito.Tudo passvel de

    ser normado, e o que hoje permitido amanh poder ser proibido. O Direito passa a ter um

    carter instrumental e tecnolgico, na medida em que serve consecuo dos objetivos liberais, e

    evidencia-se a necessidade de pensar-se o direito enquanto sistema (ordenamento jurdico), ou

    seja, como um todo unitrio e coerente. A cincia dogmtica do direito, a partir da, assume apostura de encarar o Direito como algo dado, a partir do qual se deve proceder teorizao

    1 BARZOTTO, Lus Fernando. O positivismo jurdico contemporneo: Uma Introduo a Kelsen, Ross e Hart.So Leopoldo: Unisinos, 1999. pp.13 a 16.

    2 BARZOTTO, Lus Fernando. O positivismo jurdico contemporneo: Uma Introduo a Kelsen, Ross e Hart.So Leopoldo: Unisinos, 1999. p 25. (grifos nossos)

    3 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. pp. 179-181

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    acerca das regras e da natureza jurdica dos institutos, cabendo ao jurista a tarefa racional de

    sistematiz-los e procurar as condies de sua aplicao.4 Bobbio, ao estabelecer os critrios de

    diferenciao entre direito natural e direito positivo, salientou que os comportamentos regulados

    pelo direito natural so bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direitopositivo so por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificao apenas porque e

    depois que foram disciplinados de um certo modo por esse direito positivo. Assim, o direito

    natural estabeleceria o que bom, enquanto que o direito positivo estabeleceria o que til. 5

    No contexto do Estado liberal, ento, emerge o chamado positivismo jurdico, uma

    irradiao do positivismo filosfico do sculo XIX, e que, no sculo XX, culminou no

    positivismo normativista de Hans Kelsen, o qual levou s ltimas conseqncias seu esforo de

    caracterizar o direito exclusivamente como um sistema de normas vlidas em um dado

    ordenamento jurdico, e com as teorias positivistas de Alf Ross, Herbert Hart e Norberto Bobbio.

    Como destacou Barroso,

    O positivismo tornou-se, nas primeiras dcadas do sculo XX, a filosofia dosjuristas. A teoria jurdica empenhava-se no desenvolvimento de idias e deconceitos dogmticos, em busca da cientificidade anunciada. O Direito reduzia-se ao conjunto de normas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e, comotodo dogma, no precisava de qualquer justificao alm da prpria existncia.6

    Para essa corrente filosfica, o direito resume-se norma, um ato estatal dotado de

    imprio e coatividade. Somente o direito poderia dizer o que direito: tendo numa norma

    suprema (norma fundamental) o seu fundamento jurdico ltimo, no vrtice do ordenamento, o

    direito isola-se em relao a fatos e valores.7 Por isso, uma de suas principais caractersticas foi o

    formalismo: a juridicidade de uma norma estaria no fato de ela ser vlida em relao ao sistema

    normativo posto, ou seja, na conformidade do seu procedimento de criao segundo o

    estabelecido pelo prprio sistema jurdico, independentemente de seu contedo (bom ou mau

    direito, ambos so direito).

    4 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. pp. 78 e 82.

    5 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: lies de filosofia do direito. So Paulo: cone, 2006. p. 23.6 BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro. In:

    Direito e Democracia: Revista de Cincias Jurdicas - ULBRA. Canoas, v.3, n. 2, pp. 345-383, 2 sem. 2002.p.365. Disponvel: em Acesso em: 27nov. 2011.

    7 Cf. BARZOTTO, Lus Fernando. O positivismo jurdico contemporneo: uma introduo a Kelsen, Ross e Hart.So Leopoldo: Unisinos, 1999. pp. 144-145.

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    Algumas dessas bases do Positivismo Jurdico so questionadas aps a Segunda Guerra

    Mundial, quando o mundo assistiu aos horrores cometidos pelos regimes totalitrios que se

    haviam instalado na Alemanha e na Itlia. Os seus agentes, sob a lgica positivista ento vigente,

    haviam cumprido a lei. A partir da retomou-se na pauta filosfica e social o papel dos valores,dos direitos humanos e da democracia, renovando-se, tambm, os discursos aristotlicos sobre a

    justia distributiva e o bem comum, por conta tambm das prprias transformaes sociais que

    rapidamente ocorriam.

    Assim, o pensamento jurdico renovou-se, surgindo naturalmente diversas tendncias

    doutrinrias. Destas, tm se destacado nas ltimas dcadas as relacionadas s teorias da

    interpretao, argumentao e retrica, que tm como principais expoentes Theodor Viehweg,

    Robert Alexy e Chaim Perelmann; s teorias lgicas, analticas e sistmicas, que tm como

    expoentes, entre outros, Niklas Luhmann e Georg Henrik von Wright; s teorias dos valores e

    princpios gerais, representadas principalmente por Ronald Dworkin; ao culturalismo idealista,

    representado, entre outros, por Miguel Reale e Lus Recasns Siches, e jusfilosofia crtica, esta

    representada principalmente por Julios-Campuzano, Farias Dulce, Sanchez Rbio, Herrera

    Flores e Juan-Ramon Capella.8

    O direito no mais visto como um simples conjunto de normas. O fenmeno jurdico

    pluridimensional, abarcando tambm os fatos a ele subjacentes e os valores e ideologias que o

    condicionam. Diante de tais circunstncias, no basta identificar a norma como sendo jurdica por

    sua pertinncia a um ordenamento jurdico. Questiona-se o prprio fundamento do direito, ou

    seja, sua legitimidade. A segurana jurdica, to relevada pelo positivismo, confrontada com o

    ideal de justia, diante de uma sociedade cada vez mais plural. O jurista, nesse aspecto, tem

    diante de si uma multiplicidade de opes, muitas vezes antagnicas entre si, em que no apenas

    as regras se confrontam, mas h regras que colidem com princpios, e princpios e valores que se

    chocam entre si. Ainda, surgem a cada dia novas situaes para as quais o direito no tem uma

    soluo pronta e acabada, mesmo com um sistema que, por esse fato mesmo, tem a pretenso deunidade e coerncia. Conflitos pedem decises, para as quais o direito deve estar apto, e o dilema

    que vem desde Karl Marx sempre se renova: o direito seria um fator de conformao da ordem

    social ou de transformao dessa mesma ordem?

    8 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Sntese de uma histria das idias jurdicas: da antigidade clssica modernidade. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006. p. 222.

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    nesse contexto que emerge a obra de Tercio Sampaio Ferraz Junior (1941). Ao longo de

    quatro dcadas, o renomado jusfilsofo paulista e professor da Universidade de So Paulo (USP)

    tem se dedicado ao estudo do direito a partir de diversas referncias com que tomou contato ainda

    no meio acadmico, entre os quais se destacam Miguel Reale, que foi seu orientador dedoutorado na USP, Niklas Luhmann e Theodor Viehweg, estes dois ltimos quando de sua

    passagem pela Alemanha. Influenciado, sobretudo, pelo pensamento de Luhmann e de Viehweg,

    Ferraz Jr. construiu um modelo terico do direito temperado pela moderna teoria da linguagem,

    com nfase na pragmtica lingstica. Seu foco est justamente na proposio de um modelo

    jurdico capaz de proporcionar as condies de decidibilidade de conflitos, a partir da norma

    jurdica e do sistema normativo como um todo, que devem nortear as investigaes empreendidas

    pela dogmtica jurdica.

    Nesses termos, a anlise da norma jurdica configura-se, para ele, o elemento central da

    investigao jurdica, tanto para o reconhecimento do direito, quanto para a sua interpretao e

    aplicao. Essa investigao, contudo, realizada de modo bastante peculiar, pois se, por um

    lado, aparenta ter nuances de positivismo (como alguns autores apontam), seu modelo se orienta

    por um pensamento problemtico, crtico, no-dogmtico, reconhecendo o papel dos valores e da

    ideologia no direito. Por isso citado como sendo, no Brasil, um dos precursores, embora de

    forma ponderada, da teoria crtica do direito, iniciada a partir da dcada de 1970.

    Diante da relevncia que a teoria da norma jurdica tem para a prpria epistemologia

    jurdica de Ferraz Jr., sua complexidade, originalidade, atualidade e repercusso no meio jurdico

    e acadmico, o trabalho que ora empreendemos justifica-se plenamente. No pretendemos aqui,

    nem isso seria possvel neste momento, esgotar o assunto, que, como j dito, complexo. Nossa

    inteno apresentar os principais traos da teoria da norma jurdica de Tercio Sampaio Ferraz

    Junior, a partir das principais obras escritas ao longo de sua trajetria intelectual, bem como

    contextualiz-la no modelo jurdico por ele proposto.

    Para tanto, procuraremos apresentar primeiramente os principais elementos daepistemologia de Ferraz Jr., a fim de servirem de base para a compreenso do objeto mesmo do

    presente trabalho. Nessa seo, devero ser evidenciadas e discutidas as influncias de Luhmann

    e Viehweg, bem como o papel da pragmtica para a formulao do seu modelo terico. O

    captulo seguinte, por sua vez, tratar especificamente da norma jurdica, enquanto um discurso

    normativo que, por essa condio, tem caractersticas especiais em relao dos demais discursos.

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    O modelo de norma jurdica que nos apresentado um modelo pragmtico, e, portanto, como

    veremos, parte do princpio da interao, extraindo-se disso vrias implicaes. Uma delas que

    a prpria noo de validade de uma norma jurdica, por exemplo, no atributo em si mesmo:

    antes, relacional, decorre da interao entre normas jurdicas e entre essas e o ordenamentojurdico. O ltimo captulo tratar justamente da organizao e interao dos discursos

    normativos, da concepo de ordenamento jurdico para o autor, e da sua prpria legitimidade.

    Para a realizao deste trabalho, foi utilizado o mtodo indutivo, com tcnicas de pesquisa

    indireta, primariamente a partir da reviso bibliogrfica das principais obras do autor, e,

    secundariamente, das obras relacionadas s teorias e modelos que lhe serviram de base para a

    formulao da sua teoria. Ainda, quando possvel, buscou-se uma bibliografia complementar, a

    fim de verificar a repercusso e as crticas ao pensamento de Ferraz Jr. no meio jurdico e

    acadmico.

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    2 CONSIDERAES PRELIMINARES ACERCA DA EPISTEMOLOGIA JURDICA

    DE TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

    Tercio Sampaio Ferraz Junior, ao longo de suas obras, apresenta um modelo terico de

    dogmtica jurdica, de cunho eminentemente tecnolgico, que concebe o direito a partir de um

    complexo sistema comunicacional, cujo objetivo o controle de comportamentos, centrado na

    decidibilidade de conflitos. Celso Lafer, prefaciando a obra propedutica de Ferraz Jr., salientou

    que

    [...] a decidibilidade dos conflitos o problema central da cincia do Direitocontemporneo, enquanto uma cincia prtica. Esta cincia prtica porque se

    baseia no princpio da aceitao sem discusso dos pontos de partida. Aproibio da negao dos pontos de partida (o dogma) obedece a uma razotcnica: a de permitir a deciso com base no Direito, que no pode ser posto emquesto sob pena de no se alcanar, numa sociedade, a decidibilidade jurdicados conflitos.9

    Seu modelo tem forte influncia de Niklas Luhmann, a quem atribudo o pensamento

    sistmico-funcional, e de Theodor Viehweg, com seu pensamento tpico-jurdico.10 Alm disso,

    tido, juntamente a Luis Alberto Warat, como pioneiro, no Brasil, das investigaes acerca da

    teoria da linguagem, com nfase na pragmtica lingstica.11

    Buscando a efetiva concepo do pensamento jurdico, tendo no comportamento humanoseu aspecto central, Ferraz Jr. prope trs modelos de dogmtica jurdica inter-relacionados: o

    analtico (teoria da norma), cuja finalidade a sistematizao de regras para a obteno de

    decises possveis, e por isso, at certo ponto formalista; o hermenutico (teoria da

    interpretao), que assume atividade interpretativa do comportamento humano, na busca do seu

    significado, e emprico (teoria da deciso jurdica), que v na norma um procedimento decisrio,

    9 Cf. LAFER, Celso. Prefcio. In: FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica,deciso, dominao. 2.ed. So Paulo: Atlas, 2007. p. 16.

    10 Cf. BASTOS JR., Luiz Magno Pinto. Elementos para uma epistemologia jurdica crtica a partir dopensamento de Trcio Sampaio Ferraz Jnior. In: Novos Estudos Jurdicos. v. 8, n 1. pp. 41-70. Itaja:Univali, 2003. Disponvel em . Acesso em 29set. 2011. p. 43.

    11 Ferraz Jr. conduz suas investigaes a partir do princpio da interao, conforme proposto porWatzlawick/Beavin/Jackson, na obra Pragmtica da comunicao humana (1973). A seo seguinte destetrabalho expor de forma mais detalhada o assunto.

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    No obstante reconhecer a pluridimensionalidade do direito-objeto (o que permite

    diversos ngulos de abordagem, como pode ser visto, por exemplo, em Miguel Reale)18, Ferraz

    Jr. v na norma jurdica o critrio fundamental de anlise daquele, um conceito nuclear, uma vez

    que os juristas concebem normativamente as relaes sociais, a fim de criar condies paradecidibilidade de conflitos.19Em outros termos, um jurista capta o direito num procedimento de

    incidncia, ou seja, na imputao de normas a situaes sociais atuais ou potencialmente

    conflitivas.20

    Assim - conforme afirmou em sua obra Teoria da Norma Jurdicaprope-se a tratar o

    direito do seu ngulo normativo (sem afirmar que o direito se reduz a norma), e encarar a norma

    do ponto de vista lingstico-pragmtico (sem afirmar que a norma jurdica tenha apenas esta

    dimenso).21 A partir dessa proposta, reinterpreta a noo de sistema jurdico, que passa a ser

    visto como um sistema de comunicao atravs de normas.22

    2.1 A pragmtica jurdica

    A pragmtica lingstica ocupa-se primordialmente dos aspectos comportamentais da

    relao discursiva, tendo como centro diretor da anlise o chamado princpio da interao. A

    interao, aqui, tomada no sentido dado por Watzlawick-Beavin-Jackson, correspondendo a

    ser. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies TempoBrasileiro, 1983. p. 57. (grifos do autor)

    18 Ferraz Jr. tambm foi influenciado por Miguel Reale, o qual foi seu orientador em sua tese de doutorado naUniversidade de So Paulo (USP), e clebre na literatura jurdica brasileira pela formulao da TeoriaTridimensional do Direito. Para Reale, o direito resulta de um processo histrico-cultural, e, portanto, reflete osvalores de uma dada sociedade. Seu esforo concentrou-se, sobretudo, em demonstrar que o Direito no apenasum sistema lgico-formal de normas, e que a experincia jurdica articula-se e processa-se de maneiratridimensional, num todo unitrio e concreto, em que se integram fato, valore norma, atravs de uma relaodialtica de complementaridade. Nesse sentido, a prpria noo de ordenamento jurdico complexa, vistocomo um sistema de normas em plena atualizao, pleno, que admite inmeros centros de referncia, a fim desolucionar as questes da vida que lhe so postas (Cf. REALE, Miguel. Lies preliminares de direito. 19 ed.So Paulo: Saraiva, 1991. p. 191 e 192). A teoria de Ferraz Jr., enquanto corte na realidade, a fim de propor ummodelo explicativo do fenmeno jurdico, no menospreza esse carter pluridimensional do direito. Apenas

    prope um novo ngulo de abordagem, a partir do fenmeno comunicativo, conforme ser explicitado na seoseguinte deste trabalho.

    19 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 101.

    20 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 93.

    21 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 5.22 WOLKMER, Antonio Carlos. Introduo ao pensamento jurdico crtico. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2006. p.

    98.

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    uma srie de mensagens trocadas entre pessoas.23 Nesse sentido, o ato de falar, comunicar-se,

    dialogar sempre uma relao entre emissor e receptor, mediada por signos lingsticos.24

    Conforme Ferraz Jr.:

    A pragmtica uma disciplina ao mesmo tempo antiga e nova. No passado, elase chamou "retrica" e foi cultivada por gregos e romanos. Modernamente, elase liga aos estudos de semitica ou teoria dos signos. Estes so coordenaestrplices: todo signo se relaciona a algo, para o qual aponta: esta relao chamada de semntica. Todo signo tambm se relaciona a outro signo, isto ,signos se relacionam entre si: esta relao se chama sinttica. Por fim, signos sousados: a relao ao interpretante ou usurio do signo. Esta ltima que sechama pragmtica. Do um modo geral, pode-se dizer que uma anlise

    pragmtica um estudo dos aspectos comportamentais no uso dos signos, por

    exemplo, das palavras. Ver os aspectos comportamentais situar os problemasdo ngulo da comunicao humana, vista como interao de sujeitos que trocammensagens entre si, definindo assim uma situao.25 (grifo nosso)

    Da constatao de que o ser humano necessariamente se comunica, a pragmtica admite o

    axioma conjectural da impossibilidade de no comunicao.26 Trata-se de um pressuposto

    incontornvel, no sentido de que quem no participa de uma argumentao, ou no est

    preparado para participar dela, ainda assim no pode deixar de estar j e sempre dentro de uma

    situao comunicativa.27 Ou seja, mesmo algum que no queira comunicar-se estar, na verdade,

    comunicando que no quer se comunicar. A comunicao, portanto, no tem oposto, pois, para a

    23 WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D. Pragmtica da comunicao humana:um estudo dos padres, patologias e paradoxos da interao. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Cultrix, 1973. p.46.

    24FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.4.25 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. A Filosofia como discurso aportico uma anlise da filosofia do ngulo

    lingstico-pragmtico. In: ______; PRADO JR., Bento; PEREIRA, Oswaldo Porchat. A filosofia e a visocomum de mundo. So Paulo: Brasiliense, 1981. pp. 23-35. Disponvel em. Acesso em 29 out. 2011.

    26Conforme Watzlawick-Beavin-Jackson, o comportamento no tem oposto. Por outras palavras, no existe umno-comportamento ou, ainda em termos mais simples, um indivduo no pode no se comportar. Ora, se estaceito que todo o comportamento, numa situao interacional, tem valor de mensagem, isto , comunicao,segue-se que, por muito que o indivduo se esforce, -lhe impossvel no comunicar. Atividade ou inatividade,

    palavras ou silncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros e estes outros, por sua vez, nopodem no responder a essas comunicaes e, portanto, tambm esto se comunicando. Deve ficar claramenteentendido que a mera ausncia de falar ou de observar no constitui exceo ao que acabamos de dizer.WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D. Pragmtica da comunicao humana:um estudo dos padres, patologias e paradoxos da interao. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Cultrix, 1973. pp.44-45. (grifos dos autores)

    27 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.164.

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    pragmtica, comportamento comunicao.28 Samuel Rodrigues Barbosa ressaltou a importncia

    do axioma conjectural da pragmtica na teoria de Ferraz Jr., dizendo que

    Para mim, a teoria da sociedade que influencia decisivamente a teoria do

    professor Tercio [Sampaio Ferraz Jr.] a teoria luhmanniana.Estamos de acordonesse ponto, entretanto, acho que, no desenho da teoria, a pragmticadesempenha o papel de filtro. Na teoria do professor Tercio [Sampaio FerrazJr.], o primeiro axioma conjectural da pragmtica (a impossibilidade dacomunicao) ocupa uma posio muito importante, que se irradia por toda a

    teoria, em razo de seu acento pragmtico. Em [Niklas] Luhmann, isto valeapenas para o sistema de interao (comunicao entre presentes), entreausentes, a comunicao se torna um problema a ser solucionado pelos meios dedifuso. No h no professor Tercio [Sampaio Ferraz Jr.] uma teoria dos meiosde difuso, esta no sua preocupao.29 (grifos nossos)

    Imperioso destacar, porm, que a abordagem de Ferraz Jr., segundo este mesmo afirma,

    antes de ocupar-se da anlise exaustiva da pragmtica, tem a preocupao de apresentar um

    modelo operacional que possibilite a investigao do discurso normativo e dos aspectos

    comportamentais da relao discursiva, tendo como centro diretor da anlise o princpio da

    interao.30 Aplica, dessa forma, a pragmtica lingstica ao estudo da norma jurdica, esta

    concebida, conforme j exposto, enquanto fato lingstico (plano ldico). Luis AlbertoWarat31

    salientou que a pragmtica projetada ao direito permite compreender que a ideologia um fator

    28

    WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D. Pragmtica da comunicao humana:um estudo dos padres, patologias e paradoxos da interao. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Cultrix, 1973. p.46.

    29 BARBOSA, Samuel Rodrigues. Discusso. In: RODRIGUEZ, Jos Rodrigo; BARBOSA, Samuel Rodrigues(Org.). Formalismo, dogmtica jurdica e estado de direito: um debate sobre o direito contemporneo a partirda obra de Tercio Sampaio Ferraz Jr. Cadernos de Direito FGV. So Paulo,. v.7 n. 3, mai. 2010. p. 171.Disponvel em: .Acesso em: 22 nov. 2011. Quando o autor em tela fala da impossibilidadeda comunicao, quer referir-se ao axioma da impossibilidade de no comunicao.

    30 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.4.31 Warat, um dos pioneiros na formulao de uma teoria crtica do direito, formulou sua teoria sob uma perspectiva

    que designou de semiolgica. Nela esto presentes as anlises sinttica, semntica e pragmtica. Para ele, alinguagem equvoca, ambgua, e depende de um significado de base (componentes estruturais e normativosda prpria linguagem) e de um significado contextual (componentes lingsticos e extralingsticos de um atoespecfico de comunicao). O significado de uma expresso existe quando reconhecido pela comunidade que oemprega. Esse reconhecimento, por sua vez, seria produto da cultura e das instituies vigentes. No que tange aodireito, esse autor critica a postura dogmtica de atribuir significados absolutos aos signos que o compem, com a

    pretenso de uma verdade absoluta, algo falacioso. Essa pretenso teria o propsito de mascarar a ideologia queest por trs dele, algo que prprio da dogmtica jurdica, e que, segundo ele, estaria em esgotamento. ParaWarat, a prpria pragmtica, no obstante seu importante papel no reconhecimento da ideologia, tambm seriainsuficiente para a desmistificao do papel simblico do direito e das prticas ideolgicas, polticas e sociais quelhe subjazem, porque insistiria em tratar exclusivamente em termos lingsticos os discursos normativos. Odiscurso jurdico e a prpria cincia jurdica so, para ele, ideolgicos, devendo o conhecimento jurdico serinterdisciplinar, para considerar a relao dos discursos jurdicos com a sociedade e o poder, na tentativa deconstruo de uma sociedade mais justa.

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    indissocivel da estrutura conceitual explicitada nas normas gerais, pois, a partir dela, pode -se

    levantar a tese de que em um discurso normativo, para que exista efeito de univoci dade

    significativa, deve haver uma prvia coincidncia ideolgica.32 Por esse motivo, a pragmtica

    jurdica um bom instrumento de formao de juristas crticos, que procuram descobrir asconexes entre as palavras da lei e os fatores polticos e ideolgicos que produzem e determinam

    suas funes na sociedade.33

    A partir desse ngulo, Ferraz Jr. investe, para anlise da norma, num modelo emprico,

    isto, , formula uma teoria pragmtica da norma jurdica, cuja abordagem no visa

    determinao essencial (ontolgica) da norma, mas, antes, formulao de um sistema

    explicativo do comportamento humano enquanto regulado por normas.34 Com isso, prope um

    modelo de investigao dos instrumentos jurdicos de controle de comportamento, em vez de

    apenas descrever o direito enquanto realidade social.35

    Tal modelo estender-se- tambm s relaes entre as normas e entre estas e o prprio

    sistema normativo (ordenamento jurdico). Para Ferraz Jr., validade, efetividade e imperatividade

    que no se confundem uma com a outra, conforme exposio no ltimo captulo deste trabalho

    - so propriedades pragmticas das normas jurdicas, ligadas noo de controle. Nela,

    estabelece-se uma relao entre discursos normativos, relao esta que deve ser vista como uma

    relao de competncias decisrias, com o fito de pr fim em conflitos.36

    2.2 O direito como generalizao congruente de expectativas: interao humana e

    mecanismos de estabilizao de expectativas

    Como j enfatizado, o ser humano necessariamente se comunica. A interao inevitvel,

    e os agentes tm sempre expectativas prvias uns em relao aos outros. Na troca de mensagens,

    h sempre uma expectativa mtua de comportamento. A expectativa de um pode ser objeto de

    uma expectativa prvia do outro. Em outros termos, h uma expectativa acerca da expectativa do

    32 WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Fabris, 1984. p.47.33 WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Fabris, 1984. p.47.34 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica: um modelo pragmtico. Disponvel em

    . Acesso em 23 set. 2011.35 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica: um modelo pragmtico. Disponvel em

    . Acesso em 23 set. 2011.36 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. pp. 106-107.

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    outro, que, por sua vez, pode ter uma expectativa acerca da expectativa do outro em relao a sua

    expectativa. Com isso, surgem situaes complexas, em que expectativas podem confirmar-se ou

    desiludir-se. Luhmann observou que:

    O homem vive em um mundo constitudo sensorialmente, cuja relevncia no inequivocamente definida atravs do seu organismo. Desta forma o mundoapresenta ao homem uma multiplicidade de possveis experincias e aes, emcontraposio ao seu limitado potencial em termos de percepo, assimilao deinformao, e ao atual e consciente. Cada experincia concreta apresenta umcontedo evidente que remete a outras possibilidades que so ao mesmo tempocomplexas e contingentes.37 (grifo nosso)

    Da podermos dizer que a situao comunicativa caracteriza-se pela complexidade e pela

    contingncia. Entende-se por complexidade a existncia de um nmero maior de possibilidades

    do que se pode realizar (possibilidades atualizveis). Contingncia significa que uma expectativapode realizar-se ou no. Em termos prticos, afirma o jus-socilogo alemo, complexidade

    significa seleo forada, e contingncia significa perigo de desapontamento e necessidade de

    assumir-se riscos (grifo nosso).38

    Assim, a essas duas caractersticas deve-se somar a seletividade, pela qual se elegem

    possibilidades atualizveis de interao, em face da complexidade. Ao se comunicar (por

    exemplo, dar uma ordem), o emissor j selecionou possveis expectativas do receptor da

    mensagem. Portanto, tem uma expectativa acerca da expectativa do outro (por exemplo,

    obedecer prontamente, obedecer de forma displicente, no obedecer).39 Essa

    expectativa pode ou no se confirmar, tendo em vista o carter contingente da comunicao.

    Para garantir-se certa estabilidade s expectativas, desenvolvem-se mecanismos que

    reduzem a possibilidade de desiluso, absorvendo o duplo problema da complexidade e da

    contingncia.40 Seguindo Luhmann, Ferraz Jr. apresenta trs mecanismos bsicos que garantem

    37 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 45.

    38 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 46.

    39 Cf. Luhmann: A vista da liberdade de comportamento dos outros homens so maiores os riscos e tambm acomplexidade do mbito das expectativas. [...] O comportamento do outro no pode ser tomado como fato.determinado, ele tem que ser expectvel em sua seletividade, como seleo entre outras possibilidades do outro.Trata-se de uma dupla contingncia: uma ao nvel das expectativas imediatas de comportamento (do outro) eoutra ao nvel de avaliao do significado do comportamento prprio em relao expectativa do outro.LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 47.

    40 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 46.

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    durabilidade e dinamicidade s expectativas normativas: as atitudes normativas (dimenso

    temporal), a institucionalizao (dimenso estrutural ou social), e a generalizao de contedos

    (dimenso do sentido prtico41).

    2.2.1 Atitudes cognitivas e atitudes normativas

    A fim de reduzir a contingncia das expectativas, primariamente desenvolvem-se as

    estruturas, as quais aliviam os agentes da carga da complexidade e da contingncia que se

    mostra na seletividade.42 Essas estruturas manifestam-se sempre num conjunto de articulaes

    complexas que a circundam, tendo um limite identificvel, que tem um aspecto externo (mundo

    circundante) e um interno (estrutura da situao). O mundo circundante corresponde ao conjunto

    complexo de possibilidades de ao, conflitos, ausncia de consenso. Quando se reduzem essas

    possibilidades por meio de regras e de relaes, estrutura-se a situao, que, com isso, tem uma

    complexidade reduzida.43 A fim de garantir durao a essas estruturas, desenvolvem-se dois

    41 Tomamos este termo da definio de Luhmann. Cf. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. GustavoBayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro, 1983. pp. 94 ss.

    42 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 103.

    43

    FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurdica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. pp. 13-14. Note-se aqui a forte influncia da Teoria Geral dos Sistemas de Luhmann na epistemologia de Ferraz Jr. Nas palavrasdeste, ao referir-se teoria dos sistemas de Luhmann: Sistema , para ele, um conjunto de elementos delimitadossegundo o princpio da diferenciao. Os elementos ligados uns aos outros excluem outros elementos do seuconvvio. Havendo algo (elemento) fora e algo dentro, temos um sistema. Todo sistema pressupe, pois, ummundo circundante, com o qual se delimita. Se quisermos transcender absolutamente o conceito de sistema,estaremos procurando uma conexo que no tem limites. Esta conexo, ele chama de "mundo". Pensar o "mundo"como um "sistema" , para Luhmann, impossvel, pois o mundo no tem "um lado de fora", que o circunda. Seinsistssemos nisto, estaramos pensando num "mundo" que abarque o seu "mundo circundante". O conceitodiretor do pensamento estaria, entretanto, sendo apenas transferido de mundo para mundo circundante.Husserl, lembra Luhmann, tentou captar a peculiaridade do mundo dos homens, que capaz de apontar para oinfinito e, apesar disso, atuar significativamente como finito, com a imagem do horizonte.Luhmann no quer, porm, entender o mundo atravs do seu contedo existente (Bestand). Se o mundo notem mundo circundante, ele no pode ser ameaado, isto , no pode deixar de existir. Enquanto existir algo,existe o mundo. Toda ameaa existncia tem de ser concebida como possibilidade no mundo. O mundo po de,entretanto, ser problematizado, no quanto ao seu contedo existente (ponto de vista do seu "ser" - Sein), masquanto sua complexidade (Komplexitt). O conceito de complexidade no designa uma situao de ser(Seinszustand), mas uma relao entre sistema e mundo. A complexidade do mundo depende dossistemas no mundo. Isto porque, continua Luhmann, a construo de um sistema corresponde ao projeto de

    possibilidades que o sistema oferece na forma de uma seleo redutora, excluindo, pois, outras possibilidades quesuperariam sua capacidade de assimilao e controle. H, pois, um conjunto de possibilidades (de ao, deacontecimentos, de escolha, etc.) que o sistema absorve (complexidade do sistema) e outras que ficam de fora(complexidade do mundo). Todo sistema, assim, no fundo uma conexo significativa, uma conexo desentido, que ao mesmo tempo liga vrias possibilidades entre si e aponta para outras possibilidades que no

    podem ser ligadas (complexidade do Mundo). Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. A Filosofia como discurso

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    mecanismos estruturais, que se combinam, formando as estruturas sociais: as atitudes cognitivas

    e as normativas.

    Atitudes cognitivas so aquelas expectativas de base emprica, em que selecionamos as

    possibilidades com base na observao. Por exemplo, quando agredimos fisicamente outrem, aprobabilidade de este revidar bastante grande, pois se pode observar no quotidiano tal

    ocorrncia, de forma generalizvel. Se a realidade muda, tambm as atitudes mudam, revelando

    um processo adaptativo. As atitudes cognitivas so, assim, adaptativas manifestadas em regras

    igualmente adaptativas.44

    Atitudes normativas so aquelas cuja durabilidade garantida por uma generalizao no

    adaptativa, isto , admitem-se as desiluses como um fato, mas estas so consideradas como

    irrelevantes para a expectativa generalizada.45 A durao dessas expectativas contraftica, pois

    no depende de observao emprica, mas, sim, de uma expectativa que independe de seu

    cumprimento.

    Segundo Luhmann, a diferena dessas atitudes tem carter funcional, tendo em vista a

    soluo de um determinado problema:

    Ela aponta para o tipo de antecipao da absoro de desapontamentos, sendoassim capaz de fornecer uma contribuio essencial para o esclarecimento dosmecanismos elementares de formao do direito. Ao nvel cognitivo soexperimentadas e tratadas expectativas que, no caso de desapontamentos, so

    adaptadas realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrrio: elas noso abandonadas se algum a transgride. [...] A expectativa mantida, e adiscrepncia atribuda ao ator.46

    Dessa forma, a caracterstica da atitude normativa no assimilar os desapontamentos. As

    normas47 so expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafticos, expressas no

    dever-ser.48 Manifestam justamente essas atitudes normativas, e por isso independem de sua

    satisfao no plano ftico, sendo o seu descumprimento considerado uma discrepncia,

    aportico uma anlise da filosofia do ngulo lingstico-pragmtico. In: ______; PRADO JR., Bento;PEREIRA, Oswaldo Porchat. A filosofia e a viso comum de mundo. So Paulo: Brasiliense, 1981. pp. 23-35.Disponvel em . Acesso em 07 out.2011.

    44 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007.p. 104.

    45 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 104

    46 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 56.

    47 Utiliza-se, aqui, o termo norma em sentido amplo (norma social, religiosa, jurdica etc.).

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    atribuda a quem o promove.49 As atitudes normativas, ento, esto ligadas diretamente ao

    fenmeno da normatizao.50

    Conforme assevera Ferraz Jr., as normas existem em quantidade maior do que a prpria

    sociedade pode suportar,51 haja vista a diversidade de projees normativas que refletemexpectativas, expectativas de expectativas e assim por diante. H, portanto, a necessidade de que

    certas normas prevaleam, a fim de reforar a seletividade das expectativas normativas. Essa

    preeminncia se dar pela institucionalizao, que constitui um mecanismo estrutural de

    estabilizao de expectativas normativas, e pela generalizao de contedos por meio de ncleos

    significativos (sentido prtico), que so centros integradores de sentido que conferem

    variedade certa unidade aceitvel para as interaes sociais.52

    2.2.2 Institucionalizao

    Em seu livro Sociologia do Direito, Luhmann fornece uma detalhada anlise a respeito da

    institucionalizao e do papel das instituies para o direito,53 a qual o juspublicista brasileiro

    reproduz, com nuances prprios, na sua obra de propedutica jurdica.54

    Diz o socilogo alemo que o conflito de expectativas normativas numa sociedade

    demasiadamente complexa perfeitamente normal, e at mesmo tolervel em certo grau, de

    modo que a norma de um torne-se a desiluso de outro. Mas essas expectativas no podem ser

    indefinidamente expostas desiluso, devendo haver um mecanismo que torne certas

    expectativas bem-sucedidas. Apenas o mecanismo temporal de estabilizao de expectativas

    48 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 57.

    49Luhmann, entretanto, reconhece que as expectativas normativas no esto atadas sua proclamada resistncia assimilao. A possibilidade de perseverana interna de expectativas desapontadas tem seus limites. As placas deestacionamento proibido cercadas pelos carros parados acabam por no mais provocar expectativas normativas,mas to-s cognitivas: olha-se para ver se h algum policial por perto. Cf LUHMANN, Niklas. Sociologia dodireito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro, 1983. p. 63.

    50 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 109.

    51 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 106.

    52 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. pp. 110-111.

    53 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. pp. 77-93.

    54 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. pp. 109-113.

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    (atitudes normativas) no d conta dessa tarefa. H, ento, um mecanismoestrutural, que o da

    institucionalizao de expectativas comportamentais.55 Esse fenmeno confere a certas

    expectativas normativas uma preeminncia, concretizada por meio das instituies.56

    A institucionalizao exige a considerao de terceiros, que no participam da relao.Ser um terceiro no papel social especfico, mas sim algum que possivelmente pode ser

    atrado para uma participao concreta, em julgamentos, condenaes, aes. Em outros termos,

    se um terceiro no em termos da concretude momentnea de sua prpria expectativa e ao,

    mas sim no horizonte das expectativas daqueles que se orientam concretamente por possveis

    coadjuvantes.57

    Uma instituio no se baseia em um terceiro concreto, espectador da relao, que pode

    ser influencivel. Isso no garantiria estabilidade das expectativas. Ao contrrio, a opinio dos

    desconhecidos, annimos, que sustenta a instituio, integrando as expectativas. Apela-se a ao

    consenso. Esse consenso, contudo, no pode ser tido como um consenso real, concreto, eis que

    seria muito raro, pois h, nos dizeres de Luhmann, uma escassez de ateno num mundo

    demasiadamente complexo.58 As instituies, ento, cumprem o papel de tornar o consenso

    expectvel e ativvel, caso necessrio, mas tambm de expandir as predisposies ao consenso,

    de tal forma que o consenso social geral s precise ser coberto pela experincia atual de

    algumas pessoas, em alguns sentidos e em alguns momentos.59 Nesse sentido, a funo das

    instituies de economizar o consenso, na medida em que este passa a ser pressuposto. 60

    As instituies partem de suposies comuns de determinadas situaes, cujo sentido e

    direcionamento so dados por um ou por alguns participantes da interao, que conseguem alar-

    se ao centro da ateno dos demais, que so distribudos em seus papis sociais.Formam -se

    auto-evidncias supostas em comum, inicialmente no articuladas, e que reduzem fortemente a

    55 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 77.

    56 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 111.

    57 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 78.

    58 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 79.

    59 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 80.

    60 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 80.

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    multiplicidade das opinies em si possveis e manifestveis.61 A continuidade da participao

    representa o consenso genrico, expresso pelo engajamento dos participantes, atravs de sua

    presena. Quem a ela for contrrio dever arcar com o risco da desaprovao dos demais,

    expondo-se:Aquele cujas expectativas sejam contrrias instituio, ter contra si o peso deuma auto-evidncia presumida. Inicialmente ele tem que contraditar basescomportamentais aceitas, j abertamente assumidas pelos demais. Com isso, eleatinge autoprojees, tornando-se incmodo ou at mesmo perigoso. Ele precisaarriscar uma iniciativa, sem estar protegido por expectativas pr-estabilizadas.[...] Ele precisa tematizar ou problematizar o que suposto tacitamente, oumesmo expressamente aceito, dirigindo-o para o foco de interesse comum e adestruindo-o [...] Ele tem que ser capaz de ocupar o centro das atenes comuns no suficiente murmurar suas reservas para um dos presentes, ouridiculariz-los aps a situao. 62

    Se o indivduo no consegue assumir a conduo seletiva do tema, restam-lhe duas

    alternativas: o protesto genrico atravs da ruptura da relao, ou a aceitao do consenso suposto

    em sua base. Uma instituio pode surgir e se manter quase que desapercebidamente, porm sua

    desconstituio necessita de verbalizao, com as devidas argumentaes. Enfim, quem a ela

    contrrio, deve expor-se a riscos. Ao contrrio, quem est protegido pela instituio sente-se

    seguro. Dessa forma, h o fortalecimento da impresso de uma opinio unitria acima da

    multiplicidade das expectativas fticas, tornando assim as expectativas expectveis.63 E, nesse

    sentido, todos se sentem obrigados a estender os compromissos e auto-imagens estabelecidosentre si a terceiros.

    Quando se fala em institucionalizao da relao autoridade/sujeito no discurso

    normativo, expressa no seu aspecto-cometimento, significa dizer que terceiros alheios relao

    entre as partes (endereados normativos) e o comunicador normativo (juiz, legislador, costumes,

    o editor normativo que surge da manifestao de vontade das partes num contrato) respaldam

    essa autoridade. Esse respaldo se d por meio das instituies, calcadas, por sua vez na presuno

    de consenso geral e annimo.

    Ferraz Jr. ressalta que, modernamente, o consenso presumido e global tem na instituio

    Estado a sua representao mxima, embora no seja a nica instituio a garantir o consenso

    61 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 81.

    62 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. pp. 81-82.

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    suposto e annimo de terceiros para as comunicaes normativas jurdicas.64 A juridicidade da

    norma, ento, depende de sua insero em grandes sistemas disciplinares, a que genericamente

    podemos chamar de ordenamento jurdico, que lhes atribuam imperatividade (condies de impor

    seu cumprimento).

    2.2.3 Generalizao de contedos: ncleos significativos

    Apenas os mecanismos da temporal e estrutural, que garantem expectativas normativas

    institucionalizadas, no so suficientes para a estabilizao de expectativas, em face da alta

    complexidade e contingncia das interaes humanas. Isto porque os contedos das interaes

    tambm necessitam ser garantidos contra essa contingncia. Luhmann assevera que

    As expectativas comportamentais normativas tm que ser imunizadas contra umcerto grau de contradies ao nvel ftico, e tm que poder ser vinculveis ajustificativas cognitivamente plausveis para desapontamentos. Elas tm quepossibilitar a suposio de uma base consensual, apesar das diferenas entresituaes e interesses ainda desconhecidos em seus aspectos particulares, emesmo isso s atingvel em ntima vinculao com estruturas cognoscveis domundo circundante. Dessa forma, a dimenso temporal e a dimenso socialatuam seletivamente sobre o que possvel no sentido prtico.65

    Conforme Ferraz Jr., os sistemas sociais desenvolvem, nesses termos, mecanismos de

    estabilizao, chamados ncleos significativos, isto , centros integradores de sentido que conferem variedade certa unidade aceitvel para as interaes sociais.66 Esses ncleos significativos esto

    presentes no relato da norma jurdica, e, portanto, presentes na estrutura dialgica do discurso.67

    No qualquer contedo que pode constituir o seu relato: somente aqueles que podem ser

    socialmente generalizados, pois manifestam ncleos significativos vigentes numa sociedade,

    como as pessoas, os papis sociais, os valores e a ideologia prevalecente. 68 Esses diferentes

    63 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 83.

    64 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 109.

    65 Cf. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 94.

    66 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 111.

    67 Quanto estrutura do discurso normativo, ver o captulo seguinte.68 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:

    Atlas, 2007. p. 111.

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    planos de sentido devem ser vistos como um todo, de forma inter-relacionada, pois todos se

    pressupem e se condicionam mutuamente.69

    Por pessoa entende-se um feixe de papis sociais desempenhados por um indivduo, sobre

    quem as expectativas devem agregar seus caracteres idiossincrticos.70 As expectativas referem-se ao que pode ser imputado a uma pessoa concreta em termos de experincias e ao. 71 A

    anonimidade complexa das sociedades, entretanto, exige outros ncleos significativos mais

    abstratos, embora menos confiveis.72

    O primeiro dele so os papis sociais. Nele desprezam-se as caractersticas pessoais e

    individuais. Papis so feixes de expectativas limitados em seu volume por sua exeqibilidade,

    mas no vinculados a uma determinada pessoa, podendo ser assumidos por diferentes atores,

    possivelmente alternando-se.73 Os papis sociais conferem um sentido possvel de

    generalizao, independentemente de quem o desempenha. So exemplos de papis sociais, o

    mdico, o administrador, o juiz, o legislador, o contribuinte, o cidado, o poder

    pblico e a administrao pblica. A cada papel social corresponde um feixe de expectativas

    que independem de quem o esteja desempenhando.

    Os papis sociais, contudo, no so suficientes para estabilizar as expectativas nos

    sistemas sociais complexos, pois deve haver ncleos integradores de sentido que manifestem a

    preferibilidade (abstrata e geral) por certos contedos de expectativas. Esses centros integradores

    so os valores e as ideologias.

    Valores so smbolos de preferncia para aes indeterminadamente permanentes,

    abstratos, que representam o consenso social.74 Eles podem sofrer mutaes e entrar em conflito,

    pois so dotados de alta reflexividade. Constituem um dubium no discurso normativo, e por isso

    fazem parte do momento dialgico do discurso normativo. As ideologias cumprem justamente a

    funo de valorar e hierarquizar esses valores, manifestando a preferncia de alguns sobre outros.

    69 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 104.

    70 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. pp.111-112.

    71 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 100.

    72 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p. 112.

    73 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 101.

    74 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retrica e comunicao: subsdios para uma pragmtica do discursojurdico. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1997. p. 121.

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    Assim, mesmo que ainda abstratamente, conferem queles um mnimo de manifestao concreta.

    Por exemplo, o valor liberdade, pode ter vrios significados, cujo papel de fixar-lhe o

    contedo, pondo-o como invariante, desempenhado pela ideologia.

    Diante de tais observaes, Luhmann afirmou que o direito corresponde s expectativascomportamentais generalizadas congruentemente.75 Nesse sentido, o direito concebido

    funcional e seletivamente, na medida em que no se d pela constncia de uma dada

    caracterstica, como o dever-ser ou a sano. Estes so apenas caractersticas que determinam

    sua natureza. O direito tambm no um ordenamento coativo: , antes, um alvio para as

    expectativas, que consiste na disponibilidade de caminhos congruentemente generalizados para

    as expectativas, significando uma eficiente indiferena inofensiva contra outras possibilidades,

    que reduz consideravelmente o risco da expectativa contraftica.76 A funo do direito,

    conforme o socilogo alemo,

    [...] reside em sua eficincia seletiva, na seleo de expectativascomportamentais que possam ser generalizadas em todas as trs dimenses, eessa seleo, por seu lado, baseia-se na compatibilidade entre determinadosmecanismos das generalizaes temporal, social e prtica. A seleo da forma degeneralizao apropriada e compatvel a cada caso a varivel evolutiva dodireito.Na sua mudana evidencia-se como o direito reage s modificaes do

    sistema social ao longo do desenvolvimento histrico.77 (grifo nosso)

    Nesse sentido, Ferraz Jr. defende que[...] no qualquer contedo que pode constituir o relato das chamadas normasjurdicas, mas apenas os que podem ser generalizados socialmente, isto , quemanifestam ncleos significativos vigentes numa sociedade, nomeadamente porfora da ideologia prevalecente e, com base nela, dos valores, dos papis sociaise das pessoas com ela conformes.78 (grifos nossos)

    Aqui se pode propor uma tnue aproximao com Reale, para quem o direito um

    processo histrico-cultural em que os valores (e, portanto, incluem-se a as ideologias) assumem

    papel preponderante para o fenmeno jurdico e para suas transformaes. Para Reale, fato e

    75LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 115.

    76 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 115.

    77 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito 1. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro,1983. p. 116.

    78 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo:Atlas, 2007. p.113.

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    valor esto em tenso, resultando dessa tenso a norma, que a solucionar. Esta posta, contudo,

    converte-se em fato, resultando da uma nova tenso.79 A converso da norma em fato pode

    ocorrer somente com referncia e em funo de uma nova integrao normativa determinada por

    novas exigncias axiolgicas e novas intercorrncias fticas.80O valor , assim, a fora motrizdo processo. Toda atividade humana destina-se a satisfazer um valor ou impedir que um valor

    sobrevenha, a partir de que a noo do dever-ser (ou no dever ser) se aplica diante de fatos

    concretos, resultando em normas que busquem a satisfao dos fins estabelecidos pelos valores.

    Essa forma de dialtica, tambm chamada de implicao-polaridade, um processo dinmico e

    histrico, assim como a experincia humana.

    Se para Reale o direito de uma determinada sociedade deve refletir os valores como

    condio de sua prpria legitimidade, Ferraz Jr. v nos valores (cujo sentido fixado

    ideologicamente) condio para o consenso social, e, portanto, como fundamento de legitimidade

    do prprio direito numa dada sociedade.81 Nesse sentido, ambos distanciam-se do positivismo

    jurdico, que tem como expoente Kelsen, para quem normas jurdicas so normas vlidas

    num dado sistema normativo, independentemente de seu contedo.

    Foi Kelsen, sobretudo, quem formulou as bases da Teoria Pura do Direito, que concebe o

    ordenamento como um conjunto lgico-formal de normas, organizadas hierarquicamente, todas

    subordinadas em ltima instncia Constituio, a qual atribui o poder originrio de

    competncias para a produo de todas as normas. Acima da Constituio, norma tambm

    positivada, haveria uma norma superior, que fundamentaria a validade de todas as demais

    normas: a norma fundamental. Essa norma no seria posta, pois se assim fosse necessitaria de

    uma norma superior que desse a ela validade, mas pressuposta, tendo como funo, segundo

    Barzotto,82 estabelecer o dever de se obedecer Constituio. Tal esforo terico justifica-se pelo

    79a) Onde quer que haja um fenmeno jurdico, h, sempre e necessariamente, umfato subjacente (fato econmico,geogrfico, demogrfico, de ordem tcnica etc.); um valor, que confere determinada significao a esse fato,inclinando ou determinando a ao dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e,finalmente, uma regra ou norma, que representa a relao ou medida que integra um daqueles elementos aooutro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valore norma) no existem separados uns dos outros,mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores no s se exigemreciprocamente, mas atuam como elos de um processo [...] de tal forma que a vida do Direito resulta da interaodinmica e dialtica dos trs elementos que a integram. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ed. So Paulo: Saraiva, 1994. p. 65.

    80 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5 ed. So Paulo: Saraiva, 1994. p 76.81 No que diz respeito ao papel dos valores e da ideologia no direito, ver as duas ltimas sees deste trabalho.82 BARZOTTO, Lus Fernando. O Positivismo Jurdico contemporneo: uma introduo a Kelsen, Ross e Hart.

    So Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 40.

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    fato de que, para Kelsen, o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de

    uma outra norma,83 no admitindo, por exemplo, uma norma moral que lhe d validade. Moral

    ou a Poltica no seriam campos de estudo do jurista, por serem elementos metajurdicos. Por

    isso, o ordenamento jurdico seria um sistema dinmico, em que as normas no podem serdeduzidas por uma derivao lgica de seu contedo, mas sim por uma relao de autorizao

    para produo de normas.84

    Ferraz Jr., por seu turno, admite a possibilidade de um direito vlido, eficaz e imperativo

    que tenha sido estabelecido arbitrariamente, porm ressalta que esse direito carecer de sentido.

    possvel implantar um direito margem ou at contra a exigncia moral de justia. [...]

    Todavia, impossvel evitar-lhe a manifesta percepo da injustia e a conseqente perda de

    sentido,85 pois a arbitrariedade torna as normas de conduta mera imposio, unilateral, que

    prescinde dos outros enquanto mundo comum.86

    No basta ao direito ser um conjunto de normas dotadas de validade, eficcia e

    imperatividade. Ele deve ter um sentido, ligado ao senso comum, este visto como um mundo

    comum a todos e no qual todos se encontram.87 As prprias teorias jurdicas, segundo Ferraz Jr.,

    prendem-se, enquanto teorias das cincias humanas, a determinadas pocas e culturas, na medida

    em que os enunciados elaborados pelos juristas relacionam-se prxis jurdica. 88 Assim, as

    doutrinas constituem parte do ethos social, a qual resulta do costume, da tradio e da

    moralidade. A doutrina tem um carter ambguo, que evidenciado pelo fato de ela mesma, alm

    de propor a descrio e explicao do fenmeno jurdico, ser ainda fonte do direito. Ela no

    apenas o descreve e explica o direito (elementos cognoscitivos), mas visa soluo de conflitos

    sociais (carter funcional, no-cognoscitivo) por meio de proposies ideolgicas, de natureza

    83 BARZOTTO, Lus Fernando. O Positivismo Jurdico contemporneo: uma introduo a Kelsen, Ross e Hart.So Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 2.

    84 BARZOTTO, Lus Fernando. O Positivismo Jurdico contemporneo: uma introduo a Kelsen, Ross e Hart.So Leopoldo: Unisinos, 2004. pp. 37 e 39.

    85 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 373.

    86 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 373. Nesse sentido, Reale leciona: Ora, se o Direito nem sempre logra xito naconsecuo do valor proposto, necessrio, ao menos, que haja sempre uma tentativa de realizar o justo. Poucoimporta que no alcance xito; o que importa que se incline realizao do justo. Cf. REALE, Miguel.Filosofia do Direito. 17 ed. So Paulo: Saraiva, 1996. pp. 592-593.

    87 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 373.

    88 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefcio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia.Trad.Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. p. 2.

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    glosadores e os ps-glosadores.94 Antes de ser um mtodo, era um estilo, uma atitude cultural de

    alto grau de confiabilidade nas tarefas prticas dos juristas. Nesse sentido, a tpica desenvolveu-

    se enquanto uma teoria dos lugares-comuns e como uma teoria da argumentao e dos

    raciocnios dialticos.95A partir das origens clssicas, atualizadas com os instrumentos contemporneos da lgica,

    da teoria da comunicao, da lingstica e outros,96 Viehweg desenvolve sua teoria, influenciando

    a epistemologia de Ferraz Jr. Segundo este autor, as teorias jurdicas, para que possam cumprir

    sua funo social,

    [...] utilizam-se de um estilo de pensamento denominado tpico. A tpica no propriamente um mtodo, mas um estilo. Isto , no um conjunto de princpiosde avaliao da evidncia, cnones para julgar a adequao de explicaes

    propostas, critrios para solucionar hipteses, mas um modo de pensar porproblemas, a partir deles e em direo deles. Assim, num campo terico como ojurdico, pensar topicamente significa manter princpios, conceitos, postulados,com um carter problemtico, na medida em que jamais perdem sua qualidadede tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinrias do Direito so abertas,delimitadas sem maior rigor lgico, assumindo significaes em funo dos

    problemas a resolver, constituindo verdadeiras frmulas de procura desoluo de conflito.97 (grifos nossos)

    Conforme Warat, enquanto a dogmtica admite um raciocnio dedutivo e demonstrativo, a

    tpica o interrompe e o substitui face s exigncias do processo decisrio imposto pela

    problemtica jurdica.98

    Nesse sentido, assevera esse autor que a tpica

    [...] se apresenta perante a temtica jurdica por ser esta problemtica no-axiomtica. Os pontos de partida da cincia jurdica no so axiomas nempressupostos metodolgicos indiscutveis. Os conflitos e problemas jurdicosexistentes requerem deciso diante da significao alternativa das palavras da lei

    94 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. pp. 341-342.

    95 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. pp. 341-342.

    FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. So Paulo:

    Atlas, 2007. p. 342.96 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefcio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia.Trad.Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. p. 1.

    97 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefcio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad.Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.p. 3. Assim, Viehweg: O pontomais importante da tpica constitui a afirmao de que se trata de uma techne do pensamento que se orienta parao problema. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia.Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia:Departamento de Imprensa Nacional, 1979. p. 33. (grifo do autor)

    98 WARAT, Luis Alberto. Introduo geral ao direito. v. II. Trad. Jose Luis Bolzan de Moraes. Porto Alegre:Fabris, 1995. p. 30.

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    e das situaes fticas, com exceo das projees ideolgicas sobre estes doismbitos.99

    Ainda segundo esse autor, Viehweg v na dogmtica jurdica, enquanto suporte de

    processos interpretativos, uma teoria de pensamento por problemas, que recorre a um estiloretrico (tpico) distinto do pensamento dedutivo-sistemtico.100 A tpica , portanto, uma

    tcnica do pensamento problemtico. Todo problema objetivo e concreto provoca claramente

    um jogo de suscitaes, que se denomina tpica ou arte da inveno.101 Ou como afirma Ferraz

    Jr., o problema assumido como um dado, como algo que dirige e orienta a argumentao, que

    culmina numa soluo possvel entre outras.102 Por problema deve-se entender toda questo

    que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento

    preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questo que h que levar a srio e para a qual

    h que buscar uma resposta como soluo.103 Esses problemas, em Viehweg, giram em torno do

    ideal de justia.104

    Topoi ou loci so lugares-comuns, conceitos e proposies bsicas do pensamento

    jurdico que no so formalmente rigorosos, nem podem ser formulados na forma de axiomas

    lgicos, e que servem de ponto de partida de sries argumentativas.105 Trata-se de frmulas,

    variveis no tempo e no espao, de reconhecimento da fora persuasiva, e que usamos, com

    freqncia, mesmo nas argumentaes no tcnicas das discusses cotidianas.106 Situaes

    jurdicas conflitivas ou problemticas requerem solues jurdicas. Para tanto, os juristasutilizam-se de catlogos de topoi, como interesse, interesse pblico, boa-f, autonomia da

    vontade, direitos individuais, legalidade, legitimidade, soberania, no tirar proveito da

    99 WARAT, Luis Alberto. Introduo geral ao direito. v. II. Trad. Jose Luis Bolzan de Moraes. Porto Alegre:Fabris, 1995. pp. 30-31.

    100 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 94.101 VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia.Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de

    Imprensa Nacional, 1979. p. 33.102 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. So

    Paulo: Atlas, 2007. p. 343. Grifos do autor.103 VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de

    Imprensa Nacional, 1979. p. 34.104 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefcio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad.

    Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. pp. 3-4.105 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. So

    Paulo: Atlas, 2007. p. 343.106 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefcio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad.

    Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. p. 4.

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    prpria ilicitudeou dar a cada um o que seu,107 os quais so sempre limitados e muitas vezes

    contraditrios entre si diante de um determinado problema.

    Os topoi podem ser de primeiro ou de segundo grau. Quando utilizados de forma isolada,

    constituem-se em topoi de primeiro grau. Viehweg assim o descreve:

    Quando se depara, onde quer que seja, com um problema, pode-se naturalmenteproceder de um modo simples, tomando-se, atravs de tentativas, pontos devistas mais ou menos casuais, escolhidos arbitrariamente. Buscam-se destemodo premissas que sejam objetivamente adequadas e fecundas e que nospossam levar a conseqncias que nos iluminem. A observao ensina que navida diria quase sempre se procede dessa maneira. Neste caso, umainvestigao ulterior mais precisa faz com que a orientao conduza adeterminados pontos de vista diretivos. Sem embargo, isto no se faz de umamaneira explcita. Para efeito de uma viso abrangente, denominemos talprocedimento de tpica de primeiro grau.108

    exemplo a evocao da noo de consenso para uma deciso poltica, que, enquanto

    frmula de procura, pode levar premissa da vontade da maioria,109ou o princpio da boa-f

    objetiva, que pode, numa deciso judicial, determinar a anulao de uma clusula contratual.

    Como os recursos tpicos so infinitos e conduzem a procedimentos inseguros, estabelece-se uma

    tpica de segundo grau, que se encarrega de organizar os topoi em catlogos, a partir de critrios

    que delimitam reas argumentativas.110 Nos dizeres de jusfilsofo alemo, a insegurana atinente

    tpica de primeiro grau

    [...] salta vista e explica que se trate de buscar um apoio que se apresenta, nasua forma mais simples, em um repertrio de pontos de vista j preparados deantemo. Desta maneira, produzem-se catlogos de topoi, e a um procedimentoque se utiliza destes catlogos chamamos de tpica de segundo grau.111

    Segundo Ferraz Jr., os critrios de classificao so tambm problemticos, obedecendo a

    classificaes diferentes, cuja deduo sistemtica impossvel.112 A nica instncia de controle

    107 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefcio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad.Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. pp. 3-4.

    108 VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento deImprensa Nacional, 1979. p. 36.

    109 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 343.

    110 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 343.

    111 VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento deImprensa Nacional, 1979. p. 36. Grifos do autor.

    112 Na verdade, qualquer tentativa nesse sentido altera a prpria inteno da tpica que, sendo problemtica, assimtrica at por necessidade de produo dos efeitos persuasivos da argumentao. Por isso, no pensamentotpico, mais importante que concluir a busca das premissas, o que Ccero chamava de ars inveniendi. Cf.

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    dos pontos de vista aceitveis, ou seja, dos topoi catalogados, a prpria discusso: o que fica

    justificado por aceitao admitido como premissa.113 Por isso, o critrio de referncia para a

    elaborao de uma tpica de segundo grau no pode ser abstrato, mas localizado e situacional. 114

    Viehweg enfatizou que:

    Os topoi, que intervm com carter auxiliar, recebem por sua vez seu sentido apartir do problema. A ordenao com respeito ao problema sempre-essencialpara eles. vista de cada problema aparecem como adequados ou inadequados,conforme o entendimento que nunca imutvel. Devem ser entendidos de ummodo funcional, como possibilidades de orientao e como fios condutores dopensamento.115

    Warat critica a tpica de Viehweg, por entender que sua posio diante dela vacilante

    e, muitas vezes incoerente, em razo de seu apego e culto confessado e cultivado pela maioria

    dos juristas alemes dogmtica jurdica.116 Acrescenta, ainda, que, embora o jurista alemo

    afirme que a tpica no um mtodo, mas um estilo, tem ele, sim, a aspirao de convert-la em

    um mtodo, na medida em que

    [...] aceita a rigorosa axiomatizao da cincia jurdica, embora reconhea queisto impraticvel, pois a tpica no pode ser totalmente desterritorializada dosaber jurdico. Desta forma, acaba por aceitar uma posio secundria da tpicana cincia do direito, mas predominante na jurisprudncia. Sua retrica,portanto, no epistemolgica nem poltica. No poltica, pois os problemasso apresentados a partir de uma tica individual e no social.117

    Alm disso, o mtodo tpico insuficiente na medida em que considera a credibilidade

    proposta para a soluo dos problemas como proveniente exclusivamente da manipulao das

    linguagens, com um claro e ideolgico esquecimento das condies polticas que determinam a

    FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 343. A propsito, Viehweg enfatizou que a tpica um procedimento de busca de

    premissas, conforme sublinhou Ccero, ao diferenci-la, como ars inveniendi, da lgica demonstrativa ou arsiudicandi [...]. Isto tem pleno sentido. Pois possvel distinguir uma reflexo que busca o material para pensar, deoutra que se ajusta lgica. igualmente claro que na prtica esta ltima deve vir depois daquela. Vista dessamaneira, a tpica uma meditao prolgica, pois, como tarefa, a inventio primria e a conclusio secundria. A

    tpica mostra como se acham as premissas; a lgica recebe-as e as elabora. VIEHWEG, Theodor. Tpica ejurisprudncia. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. pp. 39-40.

    113 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 344.

    114 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. SoPaulo: Atlas, 2007. p. 344.

    115 VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Departamento deImprensa Nacional, 1979. p. 38.

    116WARAT, Luis Alberto. Introduo geral ao direito. v. II. Trad. Jose Luis Bolzan de Moraes. Porto Alegre:Fabris, 1995. p. 31.

    117 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 95.

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    proposta de soluo.118 Em suma, a dogmtica jurdica constri os tpicos, mas no se preocupa

    em explic-los nem em assumi-los como tais.119

    Inobstante tais crticas, a tpica exerce importante papel no modelo de Ferraz Jr.. Segundo

    este autor, o discurso dialgico (ver seo 3.1.2), que se caracteriza pela reflexividade (dubium) epela obedincia a certas regras de racionalidade, organizado a partir de topoi. Estes servem de

    orientao prtica na elaborao de estratgias, como base para a argumentao.120 Como ser

    visto, o discurso normativo (norma) tem em sua estrutura um momento dialgico heterolgico

    (persuasivo), em que o editor normativo surge como parte argumentante, e o receptor, como parte

    intrprete. Por esse motivo, tambm, a tpica assume papel preponderante para as teorias da

    argumentao e da interpretao (hermenutica) propostas pelo jusfilsofo brasileiro. Vale

    lembrar a nfase por ele atribuda no carter funcional do direito, que decidibilidade de

    conflitos. Nesse sentido, o pensamento tpico cumpre seu papel porque

    [...] visa assinalar sugestes, apontar possibilidades, desvendar caminhos,destinando-se, por excelncia, a decidir ou preparar uma ao. Essa atividade ,por sua vez, caracterizadamente uma tcnica de disputas em que os problemasso postos em funo das opinies, com o fito de ataque ou defesa.121

    Tambm os topoi atuam como regras de calibrao do sistema normativo. Tal observao

    traz consigo a discusso se o pensamento tpico no seria incompatvel com o modelo de sistema

    proposto por Ferraz Jr.,122 na medida em que traria uma abertura do sistema. Conforme

    ressaltou Bastos, ao analisar a literatura de Viehweg e Ferraz Jr., o modelo adotado por Ferraz Jr.,

    ao contrrio do que se pode pensar, no se contrape ao sistema proposto por esse mesmo autor,

    porque

    [...] ambos so compreendidos como realidades complementares, dialeticamenteinter-relacionadas (o problema racionalmente discutido nos limites/regras dosistema) (Cf. Viehweg, 1986, p.53-69). Por outro lado, o modo de pensarproblemtico ope-se, sim, ao sistemtico, quando privilegia como ponto departida o problema e no o sistema. Neste sentido, Ferraz Jr (1994, p.324)assevera que no pensamento problemtico no se duvida de que haja um

    118 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 96.119WARAT, Luis Alberto. Introduo geral ao direito. v. II. Trad. Jose Luis Bolzan de Moraes. Porto Alegre:

    Fabris, 1995. p. 35.120 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retrica e comunicao: subsdios para uma pragmtica do discurso

    jurdico. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1997. pp. 22-23.121 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: Tcnica, Deciso, Dominao. 5 ed. So

    Paulo: Atlas, 2007. p. 340.122 A respeito do modelo de sistema normativo de Ferraz Jr., ver sees 4.4.1 e 4.4.2.

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    sistema nem de que, eventualmente, no prprio pensar problemtico, estesistema esteja em forma latente e seja o determinante.123

    2.4 Horizontes da investigao jurdica: os enfoqueszettico

    edogmtico

    A investigao da norma jurdica, nos termos propostos por Ferraz Jr., uma tarefa

    eminentemente zettica, segundo a terminologia adotada por ele mesmo em suas obras.Ferraz

    Jr., acolhendo a distino proposta por Viehweg, concebe a possibilidade de investigao jurdica

    sob os enfoqueszettico e dogmtico.

    O enfoque zettico tem uma funo especulativa explcita, dissolvendo meras opinies,

    pondo-as em dvida. As questes zetticas so, por isso, infinitas, tendo como ponto de partida

    uma evidncia. Nelas, o problema tematizado configurado como um ser. O enfoque

    dogmtico, por sua vez, releva o ato de opinar e ressalva certas opinies. Nele, determinados

    elementos so subtrados dvida, e postos de modo absoluto (inegabilidade dos pontos de

    partida). As questes dogmticas so tipicamente tecnolgicas, de funo diretiva, e a situao

    nelas captada configura um dever-ser. Warat sintetiza a diferena de ambas, dizendo que a

    dogmtica se vincula s premissas e conceitos que extrai dos textos legais; declara-os

    indiscutveis e os legitima; por sua vez, a zettica pe em relevo a problemtica das premissas e

    pontos de partida da dogmtica.124

    123 BASTOS JR., Luiz Magno Pinto. Elementos para uma epistemologia jurdica crtica a partir do pensamentode Trcio Sampaio Ferraz Jnior. In: Novos Estudos Jurdicos. v. 8, n 1. pp. 41-70. Itaja: Univali, 2003.Disponvel em . Acesso em 29 set. 2011. pp.48-49.

    124 WARAT, Luis Alberto. Introduo geral ao direito. v. II. Trad. Jose Luis Bolzan de Moraes. Porto Alegre:Fabris, 1995. p. 26. Warat, nesta mesma obra (pp. 27-30), prope a classificao da zettica em zettica pura ezettica aplicada; esta ltima classifica-se em zettica dogmtica e zettica epistemolgica. Zettica puraseria uma investigao pela pesquisa mesma, desinteressada, especulativa e terica, que conceitualmente buscariaestabelecer um ordenamento justo, e estaria livre de qualquer ideologia. O prprio autor ctico quanto

    possibilidade de se obter um conhecimento jurdico puro. A zettica dogmtica, por sua vez, seria a pesquisalevada a cabo para reforar e corrigir a dogmtica, e realizar-se-ia dentro da prpria dogmtica, no ultrapassandoseus limites. Sua funo bsica seria legitimar valorativamente