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1
BEIJO
TERESA BONDOSO
2
Teresa Bondoso BEIJO
3
Silêncio
Já não te sinto. ...Por isso, grito! M.T.B. janeiro de 2013
4
TEXTO E ILUSTRAÇÃO Teresa Bondoso
5
ÍNDICE FICA ESCRITO… E DITO! 7
Olhar
12
Luz 13
De ser eterno 15
Não sou 17
Equívoco 18
Leveza 19
Conhecimento 20
Sou eu 21
Nem sei 23
De aqui 25
Ato de amor 26
Fim 27
Só 28
Simbiose 29
Livre 30
Crianças 32
De medo 33
Seixo 34
Silêncio 36
Palavras 38
Beijo 39
Dor de Alma 40
Natal 41
Grito 44
Gente 45
Esperança 47
Instante 48
Lágrima 49
Loucura 50
Lua 51
Naturalmente 52
Saudade 53
Sumiste-me 55
Amor 56
Tempo 57
Liberdade 58
Solidão 59
Fuga 60
Música 61
Mãos 62
Memória 63
Vida 64
Lados 65
De tanto viveres em mim 66
Nós 67
6
7
FICA ESCRITO...E DITO!
Se é verdade que há poetas e poetas – e Portugal não é propriamente um
país de cem poetas por metro quadrado, apesar de repetidamente afirmado – o
facto é que, lendo Maria Teresa Bondoso, estamos perante um caso particular.
Sem se saber muito bem como definir poesia – diz Ballester que às vezes “se
parece com um inquilino volúvel, que vai e vem, e que às vezes foge para
sempre” – o importante aqui é notar, como Mário Quintana, que quem faz um
poema abre uma janela. E quantas janelas não são abertas neste seu Beijo,
quando – no outro lado das palavras – nos aparece igualmente uma poesia
desenhada e/ou pintada em cada uma das suas ilustrações! Não se trata apenas
disso: ilustrar o poema. É muito mais, é ela própria – a ilustração – o reforço do
poema e, quantas vezes, um outro poema duplamente belo.
Tenho dito muitas vezes que, ser poeta, é cantar mais do que o belo,
mais do que o amor, mais do que a paixão. Ser poeta é também perceber e
escrever – para além do romântico – sobre a injustiça, sobre a tristeza, a alegria,
as angústias, a tragédia, a Amizade, sobre os desencontros e desencantos da
vida. É assim que Maria Teresa Bondoso, na sua Solidão sem caminhos e sem
futuros, nos transporta – em palavra de quem se cala – à sua Música de sons
passados e a quem diz: luta tu nos meus futuros... e liberta-me as memórias!
A autora, que diz a um tempo não saber se a Liberdade é ousadia ou
fantasia, para – depois de um voo eterno de vida – desatar o nó e chegar à
conclusão que Liberdade é mesmo ousadia, percorre nesta sua obra um trajeto
de inquietações e desencontros para se afirmar Livre: “Livre sou./Para sentir,
ou não sentir/o afeto que me afeta”. Ou o Equívoco, no qual refere “Pintaste-
me de cores que eu não tenho”, colocando-se em dúvida ou questionando-se em
Sou Eu – Gostava de ser melhor/Gostava de a mim chegar; Não Sou – Se eu
pudesse sair daqui/Já não era; e Nem Sei – E os que nunca dizem nada.../E os
que nunca viram nada.../E os que nunca sabem nada.../E os que nunca fazem
nada.../Metem-me cá uma raiva!/Se calhar são como eu.
8
Apenas e eventualmente na sua modéstia. Esses...que só vêem novelas,
que já fizeram sempre tudo, que já foram a todo o lado mas nunca leram um
livro – esses, não são seguramente como a autora desta obra. Maria Teresa
Bondoso expõe-se, porque está Só e dá-se a conhecer como um
“Menino./Descoberto e nu” (Conhecimento), numa simplicidade sublime de
conectar as palavras e as ideias, fugindo livremente aos conceitos ou rótulos dos
ismos – romantismo, realismo, parnasianismo, classicismo, humanismo,
existencialismo e ainda tantos outros com o prefixo neo. Ela, como Ortega e
Gasset, é a mulher e a sua circunstância. E parte daí para estar no seu Tempo –
Repouso fora de mim/Descanso/Dentro de mim, para perguntar, em Fim – Quem
foi que fechou o tempo?
O tempo não se fecha. Nem se apaga! Mas temos a obrigação de o
acompanhar. Ser poeta é também “estar” no seu tempo. Fingidor ou
inventor...o poeta deve “dizer” o seu tempo. No calor da revolta e do protesto,
na ânsia de denunciar injustiças, na denúncia da censura, na sede de correr
livre, na onda de ser amor, em tanto mar de ternura, o poeta tem que saber ler
os sinais. E talvez só a poesia consiga dar ao Homem tempo e espaço para
alinhar as ideias e as palavras certeiras! Por isso, Maria Teresa Bondoso escreve
Palavras: “Poucas as palavras/de certas/são muito”. E apesar de lhe doerem – as
palavras – e os silêncios, e o tempo, e o amor, e os poemas e a saudade, não
deixa de escrever sobre as Crianças – “Serão.../Ou não./” – (o tempo o dirá
neste país adiado), sobre o Natal – “Uma lágrima do nada”, numa belíssima
prosa poética de crítica em memória, pois “Os miúdos, a esperar sem poderem
escolher.”, e sobre a Gente (bonita) com palavras bonitas – homenageando
Pedro Barroso com “palavras de me tocar e palavras de me dizer”.
Regressando quase ao princípio...redigo que a poesia, que eu reservo ao
domingo, seja manhã ou de tarde, mas que eu prefiro à noitinha já coberta de
silêncios – sem que o vento, o mar e o sol queimem as pistas da minha busca,
canta sempre mais do que o belo, mais do que o amor, mais do que a paixão.
Por fim, não querendo alongar uma prosa intrusa em poesia pura,
recordo o Ato De Amor que é todo este Beijo, resistindo à tentação de
interpretar seja o que for de Maria Teresa Bondoso. O poema já é uma
interpretação – diz Mário Quintana.
9
Mas este...é também um Ato de Amor e diz assim:
“Se calada,
As tuas palavras habitam-me.
E eu sou tu...
Se calado,
As minhas palavras morrem.
E eu.”
Jan.2013. António Bondoso
Jornalista.
10
11
A quem me concedeu um passado!
12
OLHAR
Hei-de olhar o teu silêncio
e ouvir a voz mais íntima
que de ti se revela
completa
Hás-de olhar o meu grito
E decifrar urgências
Que em mim se gastam
Inteiras
13
LUZ
A minha luz vem de alguém
Como a luz que a lua tem
e os que olham assim
pensando que a luz sou eu
apenas conseguem ver
o que estando em mim não sou
E sendo eu a luz de alguém
É em mim que ela está
porque nesses de quem é
por não se querer mostrar
com medo de se apagar
brilha tanto e não se vê
e é por isso que escrevo
Com palavras que não são
14
a não ser nesse depois
no momento que alguém lê
aquilo que eu escrevi
Como a luz que a lua tem
A minha luz vem de ti
15
DE SER ETERNO
Apetece-me escrever.
Apetece-me escrever só porque sim.
Há o “falar” só para queimar o tempo… e eu exijo o “escrever” só para guardar
as palavras. Ou para as deitar fora…
Hoje apetece-me escrever por causa do tempo.
Não aquele de que se fala.
Mas aquele por que se passa… ou aquele que passa por nós.
E que deixa o mundo pequenino. O nosso bocadinho de mundo.
O outro, a gente não tem. Não o sabe.
O tempo que a gente tem é um tempo de passar.
Às vezes é de ficar… E dói.
Quando fica é eterno.
Quando passa é parado.
Quando pára é de não ser.
16
E não é bom.
Mas o tempo sem vida dentro não é nosso.
É um tempo que a gente não tem porque não o sabe.
Hoje apetece-me escrever por causa do tempo. Não por causa do tempo de que
se fala.
Mas por causa do tempo que fala por nós.
O eterno que fica. O eterno que passa.
Os meus mortos. E eu.
O eterno que já não é.
17
NÃO SOU
Eu tirava-me de mim
Para ser apenas aí.
Não me interessa o que digo
Interessa-me o que ouves.
Se eu pudesse sair daqui
Já não era…
E tu sendo, não serias.
Porque sem nós.
Esta é a relação entre mim, que escrevo
e tu que me lês.
E ao ler
Te fazes em mim.
Me fazes em ti.
Não quero dizer-te nada.
Quero que tu me digas.
Por isso escrevo.
Calo-me?
Calo-te.
18
EQUÍVOCO
O teu gesto, teimoso, pôs-te a nu.
E eu vi.
Não era justo ou verdade o que dizias.
Era coisa de outro ouvir e achar bem.
Pintaste-me de cores que eu não tenho.
Encheste-me de palavras que eu não digo.
Trocaste-me por alguém que eu não conheço.
E eu nasci de novo outra.
Foste tu que me pariste.
Feia e suja.
E eu fiquei aqui.
Sozinha.
No dia em que me vires outra, há-de doer-te. A ti.
Hás-de ver o meu gesto, teimoso.
E nu.
19
LEVEZA
Quem dera a leveza de ficar
em pé.
Para que o meu peso não pese
E eu possa sair
Ficando…
Por eles
por mim.
Por eles, de me ver partir
Por mim, de os ver ficar.
Mas leve fico.
E não me sento.
Para que o meu peso não pese.
(a todos os que partindo, de tão leve, ficaram)
20
CONHECIMENTO
Sublime momento o que mora entre o ignorar e o saber.
Como nascer.
Receber dentro o que nunca foi.
E, sem olhar, integrar.
Conhecer.
O riso.
A surpresa de ser assim. Ou de não ser.
Quase estranheza… por pouco acontecer.
Cheio.
Completo.
Final.
Menino.
Descoberto e nu.
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SOU EU
Gostava de ser melhor.
Mas vou à frente de mim
Sem chegar ao que preciso
Para cumprir o meu ser.
Este ser que me apetece.
Este ser em que acredito.
Este ser que não alcanço
Por ir à frente de mim
Sem nunca me acompanhar.
Gostava de ser melhor
Gostava de a mim chegar.
Eu não sou o que desejo
Eu desejo o que não sou.
Estranho rodopiar.
Sem conseguir apanhar
Esta pessoa que vejo
Fugir da outra pessoa
Que teima em cá ficar
E não consegue chegar
Nem perto do que sonhei
Nem longe do que fiquei.
22
Para cumprir o meu ser
Gostava de ser melhor.
Serei duas ou nenhuma?
Sou eu.
E é por ser
Que não sou.
23
NEM SEI
E os que dizem obrigados, prontos e menza
e atenção arterial, e gostastes, e fizerem.
E vizinha, já tem tudo?
E ó miga, deixa lá.
Metem-me cá uma raiva!
E os que nunca dizem nada…
E aqueles que em conversa
Já fizeram sempre tudo
Já viram todos os filmes
Já foram a todo o lado
E conhecem os autores, já ouviram falar deles.
Metem-me cá uma raiva!
E os que nunca viram nada…
E a gente que não lê
E os que não ouvem música
E os que vêem só novelas.
E os que nunca percebem?
Metem-me cá uma raiva!
E os que nunca sabem nada…
E os gajos que escrevem, suponho que poesia,
mas nunca leram um livro…
24
Ou aqueles que só pintam coisas lindas?
E os outros?
Metem-me cá uma raiva!
E os das máximas pra hoje
E do bom fim de semana
E do beijinho amiga
E das outras coisas óbvias.
Metem-me cá uma raiva!
E os que não querem pensar
E acham estar tudo bem
E não dizem o que pensam.
E os que não pensam sequer?
E que estão sempre de acordo.
E os que nunca fazem nada…
Metem-me cá uma raiva!
Se calhar são como eu.
Se eu mandasse…
Se eu pudesse…
Mas prontos, não posso…
25
DE AQUI
Como é que se chega aí?
E quando aí chegar
Como é que se volta aqui?
De medo, não vou.
Fico e sou.
Mas sei que seria outra…
Sou eu
E é com medo de morrer
Que morro
26
ATO DE AMOR
Se calada,
As tuas palavras habitam-me.
E eu sou tu…
Se calado,
As minhas palavras morrem.
E eu.
27
FIM
Quem foi que pôs tanto mar
Cá dentro deste meu ser
E me deixou cá ficar
Sozinha neste lugar...
Quem foi que fechou o tempo?
Quem foi que pôs tanta cor
Quem foi que apagou o sol
Apenas para não ver
Esta lágrima de sal
Porção pequena e final
Do tempo que se fechou…
Sinais…
Nascidos de mim.
São filhos do teu olhar.
Semente que em mim lançaste
Na vez que me olhaste assim.
E o tempo que acabou…
Já nem me lembro de mim.
28
SÓ
Estou só…
Sou aquilo que não quero
E o que quero não sou.
Tenho um dedo que me acusa.
E um olho sempre a ver.
E gente que não me deixa
E outra que não me quer.
Será que da vida esta não era para viver?
Será que da vida a minha não consegue aqui chegar?
Eu já sou só de memórias que nem sei porque vivi...
Cansada…
Fria… gelada.
Quem dera sair daqui.
Desato-me e vou?
Cansada.
Fria.
Gelada.
Vazia.
E só.
29
SIMBIOSE
Quando o tempo começa não existem palavras
Em nós
E quando as palavras começam é o tempo que nos foge…
No dia das palavras que nos fogem no tempo
Eu começo outra vez
Em ti
E as palavras que em ti começam
São o começo de mim.
És tu que me crias
Outra vez assim…
As palavras em ti.
São.
Ou não...
Um indício de mim.
30
LIVRE
Já nada me atinge
a não ser o facto de nada me atingir.
Sentir que já não sinto o meu sentir
como o sentia
quando um outro
me atingia
de forma sentida, em mim.
Sinto o sentir
de quem
o meu não afeto
afeta.
E de quem
o afeto em mim
já não é.
Livre sou.
Para sentir, ou não sentir
31
o afeto que me afeta.
Um sentir maior…
Um afeto sem fim…
Por fim,
no fim
de mim.
32
CRIANÇAS
Se é pelo que não são
Ou não
Ou se pelo que serão
Então
São futuros
São janelas
São momentos
Que se firmam
E prosseguem
Pelo que não são
Então
Serão…
Ou não.
33
DE MEDO
Rompi o céu com as mãos
na força de lhe tocar
com medo de o perder
perdendo por não viver
acabou por cá voltar
o medo de lhe tocar
E as mãos feriram o céu
e eu
de medo morri
ou não vivi
o céu
aqui
34
SEIXO
Sou pedra que rola ser
Quando o teu corpo é o mar
Ando de cá para lá
Em quieto movimento
Numa sina de nascer
Tão perto de me gastar
Desmaiando a minha cor
Numa nova sinfonia
Para ganhar nesta dor
De pedra lisa a rolar
Uma maciez tardia
Num corpo que já não é
Sou pedra que rola ser
Quando o teu corpo é o mar
Para voltar outra vez
Tão perto de cá ficar
Sem poder acontecer
Por medo de me afogar
No teu corpo já parado
Na vida que em ti começa
No tempo que já não vivo
Para morrer outra vez
35
Na vida que já não é
No meu corpo em ti parado
Numa maciez tardia
Do tempo que me fugiu
Sou pedra que rola ser
Num mar que me envolve e mata
Quando eu em ti não sou
36
SILÊNCIO
Assustei-me no silêncio
Contido neste depois
Dos dias que já ficaram
Procurei dentro do hoje
Coisas que o hoje não tem
Porque ontem se passaram
E ao passarem ficaram
Contidos neste rumor
De silêncios por ouvir
Nas memórias que não sei
Tão leves que me pesaram
Pesadas por as sentir
Contidas nesses supores
De futuros pouco certos
De certezas sem saber
Dos dias que não voltaram
Em memórias de viver
Descansos e sobressaltos
37
De quem começa no fim
Assustada de silêncios
Que falam dentro de mim.
Contidos neste depois
Dos dias que cá ficaram
Em futuros que não sei
Incertos mas acabados.
Nesta volta…
Neste tempo…
Neste silêncio sem fim.
38
PALAVRAS
poucas as palavras
de certas
são muito
decerto
tão pessoas
tão vidas de ainda não
tão novas de terem sido
tão certas de muito ser
tão poucas
para dizer
palavras nenhumas.
39
BEIJO
Quando ausente
um beijo se prolonga
Adivinha-se o amor.
40
DOR DE ALMA
Doem-me as palavras
Doem-me os silêncios
Dói-me a solidão
Dói-me a gente
Dói-me a cara triste da minha mãe
Dói-me o tempo
Dói-me o amor
Doem-me os poemas
Doem-me as memórias
Dói-me a saudade
Dói-me a dor que me acorda do sono de não ver
Mas triste é
A mágoa de a não ter
À dor que me dói na alma.
41
NATAL
Nem sei bem porquê…
Hoje aconteceu-me procurar o Natal.
Comecei pelas memórias.
Primeiro pensei por onde havia eu de começar a lembrar-me.
Mas as memórias chegavam mais depressa do que a minha escolha.
Desisti.
Depois ocorreu-me que a memória está dentro da cabeça.
Fui ao médico.
- Doutor, preciso que me faça uma cirurgia ao cérebro.
O médico disse-me que não podia. Não era cirurgião.
Voltei ao hospital e roubei um bisturi.
Estudei.
Procurei a zona do cérebro sem nada.
Uma era do falar… passei por ela calada.
Outra era do sentir… passei por ela indiferente.
Outra era do olhar… fechei os olhos e fui.
Outra era do pensar… fiz-me tonta e prossegui.
Cheguei ao lado de lá.
42
Voltei.
Novamente no princípio, achei o que procurava.
Era o começo das memórias e tinha um pedacinho minúsculo de nada. Chamava-
se princípio de ontem.
Medi, risquei e cortei.
Consegui entrar. Sozinha.
Era escuro. Era pequeno. Era vazio.
Uma lágrima do nada.
Mais um pouco e encontrei-o.
Estava vestido de vermelho, tinha umas grandes barbas brancas e corria de um
lado para o outro. Ora estava em minha casa, com os meus primos pequenos,
ora ia de trenó no lado de baixo do céu, no Centro Comercial…
Depois era a televisão, um anúncio de Natal na paragem do elétrico a beber uma
bebida da qual nunca soube o nome.
Dele sei. Era o Pai Natal.
Continuei.
Caminhei e, a seguir, vi um grupo de meninos. Não sabiam escrever. Uma
mulher já zangada escrevia para todos.
- Não, isso não. Tem de ser uma coisa mais barata.
Os miúdos, a esperar sem poderem escolher.
E eu não quis lá ficar.
A seguir, cheguei a casa.
Era o meu pai. Escondido. Eu a ver. Ele a pensar que eu não via.
Sorri. Tinha apenas sete anos.
Gostei. Ia ficar.
De repente, já não estava. Um arrepio…
Era o Pedro. Morto. Num dia de Natal.
Fiquei, esquecida, a chorar. A perguntar. Nem resposta…
43
Fiquei.
Fiquei-me.
Foi a memória procurar por mim. Encontrou-me ali e levou-me, arrastada e
teimosa.
Cheguei fora.
Estava lá um menino.
Limpei as lágrimas.
Limpei o meu nada. Prossegui.
Era Natal.
Esqueci e celebrei. Renasci.
Menina e certa. Cheia e nua.
Completa.
Hoje aconteceu-me procurar o Natal.
E nasci.
Natal, o parto de mim.
44
GRITO
No teu grito é que eu habito
Quando me vestes assim
E te fazes infinito
Num pedacinho de mim
Numa porção tão presente
No medo deste silêncio
Que fica quando tu vais
Que chega mesmo se ausente
Cumprindo em mim um rito
Em horas que sendo iguais
Não se repetem em nós
E connosco são sinais
De um futuro adivinhado
Quando por fim for calado
Silêncio
Já não te sinto
45
GENTE
É tão difícil
Encontrar palavras
Assim…
Bonitas.
Palavras de me calar
Coisas demais se só minhas
Coisas de menos se em nós
Futuros que se adivinham
De momentos impossíveis
Se não fossem estes outros
De gente bonita assim.
São palavras que me levam os silêncios.
Palavras de me tocar.
São palavras que me apagam as ausências.
Palavras de me dizer.
46
São palavras que me mostram coisas minhas
Coisas minhas que são nossas
Sendo nossas são de outros
Por isso são tão bonitas
As gentes de que aqui falo
Com palavras que me dás
E que se fazem em mim
E que me fazem em ti
Há gente bonita…
Sim.
[a todos os que, como o Pedro Barroso, me vão transformando em gente]
47
ESPERANÇA
Sentei-me, velha, nas memórias.
Procurei em mim pedaços de luz.
Vontades de azul
na voz de Deus.
Veio a noite.
E sobre a noite se fez dia
e palavra.
Natal de esperança em mim.
Um menino pobre
e eu, nova.
De novo.
De esperança me levantei
e me fiz livre.
Por bastar apenas uma vez
fiquei.
Eternamente livre.
De esperança.
48
INSTANTE
Adiava o instante
preso num tempo breve
e a sobrar
a idade larga dos anos.
Aconchegava o fim anunciado dos dias…
Inventava espelhos
e morria
na idade fechada de uma história
escrita num livro.
49
LÁGRIMA
Sei o tempo em que riamos cedo
em gargalhadas sem porquês
Sei o tempo da preguiça morna
e dos olhares inteiros
nos silêncios repletos de voz
Sei o tempo dos teus passos a chegar tarde
e tu que ainda vinhas…
Sei-te
Numa lágrima.
E vejo como os mortos também choram.
50
LOUCURA
Não temo enquanto sonho
Não receio o que oiço
Não tremo quando sinto
Não vejo em sobressalto
Mas o medo de aqui
de dentro dos meus olhos…
Esse
Assusta-me.
É um medo de mim.
51
LUA
Vazia…
Esperei o dia.
Na noite, de companhia
redonda e crua
sonhei a lua.
Fantasia…
Eu, nua
Tua…
E a lua.
52
NATURALMENTE
Uma gargalhada sonora ecoou no pavilhão vazio.
Lá fora, o silêncio disposto em ruídos certos. Musicais…
Um tiro certeiro.
Morreu um homem
Naturalmente.
Uma gargalhada calou-se, por fim, num pavilhão vazio.
53
SAUDADE
Saudade
É dor de quem a não tem.
É medo de que o presente
Possa um dia ser ausente
Saudade é aqui ficar
Quieta neste lugar
Por medo deste sentir
É memória do que vem
Por medo de acontecer.
Por temor deste sentir
Saudade
Assusta e não pesa
Mas se pesa sabe bem
54
Porque a dor de quem não tem
É muito maior do que esta
Que habita a minha memória
Em dias que hão-de vir
Num tempo de eu existir
Ausente deste presente
Com medo de acontecer
No susto deste sentir.
55
SUMISTE-ME
Sumiste-me de todos os cantos
De todas as ruas
De todos os lugares nossos.
Sumiste-me.
Serei ainda eu nos teus lugares
Nas tuas coisas para além de nós
Teremos sido apenas os dois?
Eu, por mim, já não sou sem ti.
Tu.
O mesmo…
Existes nas memórias do ontem feito hoje.
És.
E eu hoje sem ti apenas ontem.
Sou.
Um ponto de luz.
56
AMOR
Pudera eu
Supor cada uma das tuas razões
Sonhar todos os teus desejos
Habitar cedo o teu corpo inteiro
Saber melhor todos os teus suspiros
Morrer em todas as tuas dores
Ainda assim
Amar-te-ia devagar todas as manhãs
57
TEMPO
Repouso fora de mim
Perduro do outro lado
Finto a verdade no tempo
Iludo os lados de cá
Encanto os medos de lá
E ganho outra figura
Sou gente de fingir mundos
Em vidas onde se agita
Aquilo que em mim habita
Com o que de mim não é
Descanso
Dentro de mim
Persisto cá deste lado
E é o tempo que se faz...
58
LIBERDADE
Liberdade não te sei…
Aqui onde o céu me foge
Onde não consigo ver
Para além da minha rua…
Eu sou tua
Fantasia…
Ousadia ou liberdade?
Já te vejo na distância…
Abriu-se o céu num menino.
Um voo eterno de vida
Que principia na morte,
E volta de novo azul
Aqui onde o céu fugia.
Liberdade é ousadia,
Nó desatado de mim.
59
SOLIDÃO
Só
Sem caminhos
Sem futuros
Sem propósitos,
Razões…
Sem visões.
Como uma casa sem chão.
Eu.
Presa na solidão.
60
FUGA
Evadi-me desta casa que me prende.
E deitei fora todos os laços…
O comboio partiu
Por destinos de distância.
Ignorados.
Não quererei voltar aqui.
Mas se vier
Certamente serei outra.
61
MÚSICA
Música
Cheiro dos sons
Leva-me a momentos idos…
Música
De sons passados
Luta tu nos meus futuros…
E liberta-me as memórias
Espada que não trespassa
Fere tu quem não sonhou
Mata tu quem não voou
Combate tu e acorda
A corda que puxa o nada
Acordes em sol menor
No som do sonho lembrado
Voo do cavalo alado
Palavra de quem se cala
Silêncio que por cá fala
Canção de tingir o mar
De azul tão feito de mim.
62
MÃOS
um pedaço de água se faz gelo e procura o frio
fecham-se as horas
a lua brilha e desvenda uma luz refletida de mim
o instante, parado, sussurra segredos
sozinhas
as palavras caem e vêm morar na quietude suspensa do mar
desnudadas ficam
como silêncios noturnos vestidos de gritos gelados
abertas as horas
o dia veste-se de azul e as palavras correm mais cedo
chegas afinal
e as mãos
apenas as tuas mãos
as sabem agarrar
63
MEMÓRIA
Pensei com atenção o frasco de mel que ali vive, parado nos anos eternos da
memória.
Um barco…
Ou apenas sombras vadias que o meu sonho transfigura.
64
VIDA
Preso a um poste escuro e grande
um homem morria
num lugar vazio e sem cor
iludi a imagem que o pensamento me entregou
e supus a noite.
Soltei as correntes que lhe paravam o tempo.
Pedi-lhe que viesse.
Encheu o olhar vazio
e sem palavras
ou medo
veio morar comigo num lugar preenchido de azul
de novo,
a vida…
65
LADOS
Os lados de todas as coisas
e os significados de todas as palavras
dependem de quem as olha
mais do que delas próprias.
De quem as ouve
mais do que de quem as diz.
E eu
Espero apenas que os teus lados
Caibam em todas as palavras minhas.
66
DE TANTO VIVERES EM MIM
Submersa já me vejo
Neste rio que descansa
Numa praia larga e mansa
Como boca após o beijo
Aberta por te não ter
Digo a vida a quem não vive
Sei o mundo em quem já foi
Desconheço quem se encontra
Conheço quem já não é
E assim acabo cedo
Num dia de cada vez
Sabendo que já não vou
Sem que me vejam partida
Nesta mágoa tão perdida
Falhada por te não ver
Submersa neste mar
Que não soube navegar
Por medo de me afogar
Fico parada no tempo
À espera de algum sinal
De quem partiu afinal
Por tanto querer ficar
E deste sinal me vou
Supondo já não voltar
Sonhando morrer assim
Foste tu quem me matou
De tanto viveres em mim.
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NÓS
As saudades do futuro
são vontades
são esperas
são imagens coloridas do devir.
São espelhos ao contrário.
As saudades do futuro
são gente do outro lado
são vozes de quem não é
são sombras desabitadas
são o sol que se apagou
são vidas desocupadas
são risos que esperam graças
são choros que esperam dor
são luzes que esperam dias.
As saudades do futuro
são descansos que se sonham.
As saudades do futuro
são lutas que esperam paz.
São um dia
Eu e tu…
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BEIJO Teresa Bondoso