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TERMO DE APROVAÇÃO Giovanna Carolina Tortato A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA JORNALÍSTICA EM O.J: MADE IN AMERICA Trabalho de conclusão de curso aprovado com nota 100,0 como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Jornalismo pelo UniBrasil Centro Universitário, mediante banca examinadora composta por: Prof. Orientador e Presidente Ivan Mizanzuk Prof. Rodolfo Stancki Silva Prof. Luiz Gustavo Vilela Curitiba, 12 de março de 2018.

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TERMO DE APROVAÇÃO 

 

Giovanna Carolina Tortato 

 

 

A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA JORNALÍSTICA EM O.J: MADE IN 

AMERICA 

 

Trabalho de conclusão de curso aprovado com nota 100,0 como requisito parcial                       

para a obtenção do grau de bacharel em Jornalismo pelo UniBrasil Centro Universitário,                         

mediante banca examinadora composta por: 

 

 

 

Prof. Orientador e Presidente Ivan Mizanzuk 

 

 

Prof. Rodolfo Stancki Silva 

 

 

Prof. Luiz Gustavo Vilela 

 

 

 

Curitiba, 12 de março de 2018. 

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CENTRO UNIVERSITÁRIO AUTÔNOMO DO BRASIL – UNIBRASIL

GIOVANNA CAROLINA TORTATO

A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA JORNALÍSTICA EM O.J:

MADE IN AMERICA

CURITIBA

2017

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GIOVANNA CAROLINA TORTATO

A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA

JORNALÍSTICA EM O.J: MADE IN AMERICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como

requisito para a obtenção do grau de bacharel

apresentado à Banca Examinadora do Curso de

Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo,

do Centro Universitário Autônomo do Brasil

(UniBrasil).

Orientador: Professor Ivan Mizanzuk.

CURITIBA

2017

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RESUMO

Este trabalho procura, a partir da análise narrativa do documentário O.J: Made In

America, identificar as técnicas utilizadas no cinema documentário, considerado de

não-ficção, que são emprestadas das narrativas jornalísticas e/ou ficcionais. Através

de uma análise pragmática da narrativa, serão apontadas as características que

compõem a narrativa jornalística em um filme documentário, ressaltando suas

similaridades com o roteiro de ficção. Possibilita-se também discutir se esses

artifícios diminuiriam de alguma forma o valor da narrativa originalmente jornalística,

ou se seriam apenas mais uma forma do jornalismo contar uma história real de

maneira mais atrativa.

Palavras-chave: jornalismo, o.j: made in américa, documentário, ficção, jornalismo

literário, narrativa jornalística, narratologia.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aqui a todos que de alguma forma me impulsionaram a terminar esse

trabalho mesmo quando me faltou estímulo, força de vontade ou confiança.

Especialmente ao sempre paciente e carinhoso Guilherme Teixeira, que aguentou

em casa as revoltas quando a frustração (que só a escrita acadêmica traz) batia. Às

amigas, muito antes que colegas, Gabriella Maciosek, Giovanna Menezes e Ketlin

dos Santos: o talento e esforço de vocês em seus próprios projetos foi inspirador,

assim como a generosidade e disponibilidade para ajudar os outros. E, sortuda que

sou, aos meus dois orientadores, quando não oficialmente, em espírito: Professor

Ivan Mizanzuk e Professor Rodolfo Stancki. Aos mestres agradeço a confiança em

mim e no projeto, assim como a paciência e a calma transmitida quando essas me

faltaram em inúmeros momentos.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………………….. 7

2. O.J: MADE IN AMERICA……………………………………………………………………….... 8

2.1 JUSTIFICATIVA………………………………………………………………………………... 9

3. A NATUREZA DO DOCUMENTÁRIO………………………………………………………. 122

3.1 DOCUMENTÁRIO E JORNALISMO ENQUANTO GÊNEROS……………………………. 133

3.2 JORNALISMO LITERÁRIO CINEMATOGRÁFICO………………………………………. 144

4. ANÁLISE DA CLASSIFICAÇÃO DE O.J: MADE IN AMERICA COMO UM DOCUMENTÁRIO JORNALÍSTICO…………………………………………………………….... 18

4.1 VEICULAÇÃO PRATICAMENTE LIMITADA AOS CANAIS DE TVS EDUCATIVAS OU CANAIS DE TV POR ASSINATURA…………………....…………………………………..........18

4.2 O SEU CARÁTER AUTORAL…………………………………………………………………. 19

4.3 A NÃO OBRIGATORIEDADE DA PRESENÇA DE UM NARRADOR……………………. 20

4.4 USO DE IMAGENS E DEPOIMENTOS, FUNCIONANDO COMO DOCUMENTOS…... 21

4.5 AMPLA UTILIZAÇÃO DE MONTAGENS FICCIONAIS NO SENTIDO DE SIMULAR FATOS……………………………………………………………………………………………... 22

5. ANÁLISE PRAGMÁTICA DA NARRATIVA JORNALÍSTICA………………………….... 23

6. 1° MOVIMENTO - A RECOMPOSIÇÃO DA INTRIGA OU ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO…………………………………………………………………………………….. 25

7. 2° MOVIMENTO - COMPREENDER A LÓGICA DO PARADIGMA NARRATIVO……. 26

8. 3° MOVIMENTO - DEIXAR SURGIREM NOVOS EPISÓDIOS…………………………….. 28

9. 4° MOVIMENTO - PERMITIR AO CONFLITO DRAMÁTICO SE REVELAR…………….. 30

10. 5° MOVIMENTO - PERSONAGEM: METAMORFOSE DE PESSOA A PERSONA…... 32

11. 6° MOVIMENTO - AS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS E ARGUMENTATIVAS….. 34

11.1 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS DO REAL (A CONSTRUÇÃO DA VERACIDADE)....................................................................................................................... 35

11.2 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS ESTÉTICOS……………………….... 35

11.3 A RELAÇÃO COMUNICATIVA E O “CONTRATO COGNITIVO”................................... 36

12. 7° MOVIMENTO - METANARRATIVA: SIGNIFICADOS DE FUNDO MORAL OU FÁBULA DA HISTÓRIA………………………………………………………………………….... 37

6

13. O MÉTODO DE ANÁLISE…………………………………………………………………….. 39

14. RECONSTITUIÇÃO DA NARRATIVA……………………………………………………….. 40

14.1 LINHA DO TEMPO COMENTADA………………………………………………………….. 41

15. ANÁLISE DO PROJETO DRAMÁTICO E LÓGICA NARRATIVA……………………….. 512

15.1 PROJETO DRAMÁTICO OU METANARRATIVA …………………………………….... 52

15.2 CONFIGURAÇÃO DOS EPISÓDIOS………………………………………………………. 523

16. CONCLUSÕES…………………………………………………………………………………. 54

REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………………... 56

7

1. INTRODUÇÃO

Adaptar uma história real e notória em um produto audiovisual não é novidade

para o cinema ou para a televisão. No entanto, o fato de um filme ou série televisiva

ser baseado em uma história verídica não o torna automaticamente um

documentário ou um produto jornalístico. Podemos pensar em diversas películas

“baseadas em fatos reais” que são tão ficcionais quanto as mais criativas obras de

ficção científica. Os filmes documentários se aproximam do jornalismo tanto quanto

dos gêneros cinematográficos ficcionais, emprestando características narrativas e

técnicas de ambos, e é sobre essa relação, chamada de “promíscua” por Bezerra

(2010) que se trata essa pesquisa.

Para tanto, analisaremos pragmaticamente as escolhas narrativas feitas em

um produto audiovisual que transcende os dois gêneros, no caso um documentário

biográfico com aspirações jornalísticas.

Será usado também o conceito de jornalismo literário cinematográfico,

corrente que acredita que as liberdades poéticas tomadas pelo documentarista se

assemelham ao método de jornalistas, tanto da tele reportagem quanto do meio

escrito, que optam pelo jornalismo narrativo e/ou literário (SILVA, 2014).

Mas essas escolhas irão refletir não somente na estrutura narrativa, como

também nas escolhas técnicas, de trilhas sonoras ameaçadoras a enquadramentos

vilanescos, típicos de gêneros cinematográficos ficcionais. Para exemplificar essas

teorias na prática foi escolhido como objeto dessa análise o documentário O.J: Made

In America, devido ao seu caráter documental jornalístico (é produzido pelo canal de

jornalismo esportivo ESPN) e biográfico.

Dessa forma, pretendemos responder: Como as narrativas do jornalismo

podem ser encontradas no documentário O.J. Made In America? O caminho para

isso será levantar as técnicas narrativas e procedimentos jornalísticos utilizadas,

analisar as consequências e teorizar as intenções por trás das abordagens

narrativas escolhidas, demonstrando a proximidade da produção documental ao

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jornalismo de reportagens televisivas.

2. O.J: MADE IN AMERICA

O já premiado documentário O.J: Made In America1 foi lançado no Festival

Sundance de Cinema, em 22 de janeiro de 2016, com apenas um intervalo apesar

de seus 467 minutos de duração. Foi essa breve exibição nos cinemas que o tornou

elegível para o prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (os

Oscars) que viria a ganhar. Posteriormente, ele foi exibido diariamente ao longo de

uma semana na televisão americana em uma série de cinco episódios no canal a

cabo ESPN, como parte da série jornalística 30 for 302. É o quarto filme dirigido pelo

documentarista Ezra Edelman e o terceiro para o 30 for 30. A série se utiliza de

imagens e entrevistas que marcaram a história do canal e do esporte em geral,

reconstituindo e por vezes investigando esses eventos históricos. Documentaristas e

jornalistas reconhecidos se revezam no papel de condutores das narrativas que, por

essa diversidade de autores, variam bastante em formato e discurso.

O filme acompanha o ex-jogador de futebol americano Orenthal James

Simpson, de sua carreira estelar no esporte universitário e na National Football

League (NFL) até o que viria a ser um episódio trágico e marcante, não só em sua

vida, mas em toda a cultura norte-americana: o duplo assassinato brutal de sua ex-

esposa, Nicole Brown, e de um amigo dela, Ron Goldman, pelo qual foi acusado em

1994. Na época, o nível de celebridade de O.J (como é mais conhecido), que a essa

altura já havia se aposentado do esporte e ingressado em uma carreira como ator,

garoto-propaganda e queridinho da América, tornou seu julgamento e todos os

desdobramentos do caso em um dos maiores circos midiáticos da história dos

Estados Unidos até hoje (TOOBIN, 2016).

O documentário traz depoimentos dos envolvidos no caso, amigos e

1 O documentário foi o vencedor da categoria Melhor Documentário nas seguintes premiações: ACE Eddie Awards 2017,

American Film Institute Awards, Boston Society of Film Critics, Chicago Film Critics Association, Chicago Film Critics Association, Detroit Film Critics Society, Gotham Independent Film Awards, Houston Film Critics Society Awards, Independent Spirit Awards, Indiana Film Journalists Association, IndieWire Critics Poll, International Documentary Association, Los Angeles Film Critics Association, Online Film Critics Society, Producers Guild of America Awards e Academy Awards. Além de ter recebido mais de 30 outras indicações. 2 30 for 30 é uma série especial de documentários esportivos transmitido pela ESPN desde 2009. Todos os episódios retratam

a vida de esportistas notáveis, seja por suas vidas ou performances extraordinárias ou momentos marcantes do esporte.

9

familiares e constrói um perfil psicológico do personagem principal desde a infância

em um bairro pobre de São Francisco até o estrelato e o fascínio com a cultura de

fama e celebridade. Passando pelo abuso doméstico contra a esposa e o ostracismo

seguido do resultado do julgamento do crime, que o absolveu, ao contrário de

grande parte da opinião pública.

Aproxima-se muito de uma grande reportagem investigativa de profundidade

ao passo que se utiliza de documentos históricos, entrevistas de testemunhas

especialmente para a produção do documentário e também retiradas de filmagens

antigas da televisão americana. Também não se utiliza de um narrador presente,

sendo a narrativa conduzida por falas e relatos, o que ajuda na construção do

distanciamento do cineasta, afastando a noção de sua subjetividade.

O documentário serve também como um retrato das tensões raciais da Los

Angeles dos anos 90, assim como os polêmicos casos de violência policial com

motivação racial por parte do departamento de polícia da cidade, o que veio

inclusive a afetar profundamente o andamento do caso. Será possível também

analisar durante esta pesquisa como o distanciamento histórico muda a forma que a

narrativa jornalística toma, comparando a cobertura midiática na época retratada

pelo próprio documentário e as escolhas narrativas do documentarista.

Atualmente, O.J Simpson cumpre 33 anos de prisão por crimes cometidos

anos depois, em 2007, quando foi preso por formação de quadrilha, assalto a mão

armada e sequestro. O documentário tem como premissa não buscar responder a

grande pergunta que ainda paira no imaginário internacional, “foi ou não foi ele,

afinal?”, mas sim tentar trazer o máximo de evidências possíveis para que o

telespectador faça seu próprio julgamento (TOOBIN, 2016).

2.1 JUSTIFICATIVA

O produto midiático escolhido foi sucesso de crítica e de público no ano de

2016. Sucesso esse comprovado por suas avaliações nos mais relevantes sites de

cinema e revistas do gênero. No RottenTomatoes e no MetaCritic, websites

consagrados que separam suas pontuações por críticos conceituados e voto

popular, ambos os grupos consagraram a obra com raras notas altas em comum. No

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Internet Movie Database (IMBb), a maior enciclopédia online de cinema do mundo

e um dos sites de notícias sobre áudio visual mais visitados da internet, o sucesso

se repete. Em todos, foi avaliado por dezenas de milhares de espectadores.

Em relação à audiência, é preciso considerar que o documentário seriado foi

exibido na TV a cabo fechada americana, no canal de jornalismo esportivo ESPN.

Os números são expressivos se considerados os meios onde foram exibidos e a

restrição de público.

O. J: Made In America

Audiência Média 3.5 milhões/episódio

IMDb 9.0/10

Rotten

Tomatoes

Críticos: 10/10

Público: -

MetaCritic Críticos: 96/100

Público: 7.8/10

A discussão e engajamento incitado pela exibição dessa série deve resultar

em futuras pesquisas acadêmicas. Porém, o meio acadêmico geralmente se dedica

à análise do formato no gênero documental, mais interessados nos aspectos

técnicos, como no livro Documenting the Documentary, compilação dos textos de

diversos autores americanos sobre o processo de produção de documentários. Já

estudos de narrativa, partindo da narratologia, também são comuns, mas falam

majoritariamente sobre ficção. Uma análise da narrativa jornalística dentro do meio

documental seria uma nova abordagem, a qual este trabalho tem a intenção de

seguir. Essa técnica até agora só foi usada para análise de séries de reportagens

televisivas (MOTTA, 2007). E também pelo fato de os produtos midiáticos analisados

serem bastante recentes, e pouco ter se estudado sobre eles ainda, imprime-se um

caráter inédito à pesquisa.

A relevância social pode ser resumida em uma crença extraída de Bernard

(2008). Ela acredita que, ao compreenderam as escolhas narrativas feitas pelos

documentaristas e cineastas, os espectadores se tornaram consumidores de cultura

mais críticos e conscientes.

11

[Os espectadores] terão uma ideia mais clara do motivo de algo funcionar ou de não soar “verdadeiro”, da razão pela qual alguns filmes parecem trazer consigo um maior peso emocional ou intelectual, de por que alguns programas os fazem se sentir manipulados ou entediados, e do modo como mudanças no tom ou no ponto de vista podem alterar a natureza da apresentação. (BERNARD, 2008, p. 9)

Em uma sociedade tão saturada de mídias como a atual, a alfabetização

midiática e, principalmente, a interpretação do trabalho jornalístico, considerando-se

sua subjetividade e não só sua tecnicidade objetiva, se faz necessária.

A discussão sobre até que ponto podemos considerar filmes documentários

como produtos jornalísticos ou apenas outro gênero do cinema de ficção é antiga e

cheia de bons argumentos, seja qual for o lado de defesa, mas irrelevante para o

nosso objetivo de pesquisa atual. Esse trabalho não pretende resolver a questão,

mas entender que aceitar que a subjetividade também faz parte da produção

jornalística, assim como a necessidade de envolver o público em sua narrativa, é um

passo para essa resposta.

12

3. A NATUREZA DO DOCUMENTÁRIO

O que vai definir a natureza de um filme será sua forma e narrativa. Nichols

(2016) diferencia o gênero documental jornalístico das narrativas ficcionais da

seguinte maneira:

Os documentários falam de situações ou acontecimentos reais e honram os fatos conhecidos; não introduzem fatos novos, não comprováveis. Falam sobre o mundo histórico diretamente, não alegoricamente. Narrativas fictícias são fundamentalmente alegorias. (id, 2016, p. 31)

Bernard (2008) também reforça a importância do documentário como gênero

jornalístico para o público, que espera desses produtos a mesma apuração e

credibilidade creditada ao jornalismo tradicional. Ambos os autores admitem o

aspecto subjetivo que uma obra autoral audiovisual vai inevitavelmente adquirir.

Apesar do documentário ser tanto uma forma de jornalismo quanto uma forma de

autoexpressão, como o romance, a canção e a pintura, ainda assim é necessário

manter a objetividade, ou ao menos a aparência desta (id, 2008).

[...]os documentaristas trabalham com fatos, não com ficção; não somos livres para inventar pontos de trama ou arcos de personagem e, em vez disso, temos de encontrá-los no material bruto da vida real. Nossas histórias dependem não da invenção criativa, e sim do arranjo criativo, e nossa narrativa deve ser feita sem o sacrifício da integridade jornalística. A tarefa não é fácil. (ibid, 2008, p. 02)

Esses conceitos serão explorados por este trabalho, que tratará da

aproximação do gênero de filmes documentais ao jornalismo, seja em sua função

investigativa, seja como no jornalismo literário, com liberdade criativa para contar

uma história verídica de forma participativa. Isso devido a características em comum

que os dois compartilham, como a subjetividade do autor impressa em seu trabalho

e a liberdade de transitar entre o jornalismo e a ficção.

Para mim, como etnógrafo e cineasta, não há praticamente fronteiras entre o filme documentário e o filme de ficção. O cinema, arte do duplo, já é a passagem do mundo do real para o mundo do imaginário, e a etnografia, ciência dos sistemas de pensamento dos outros, é uma travessia permanente de um universo conceitual a outro, ginasta acrobática em que perder o pé é o menor dos riscos (FELD, 2003, p. 185)

13

É para demonstrar quais são as ferramentas narrativas do jornalismo que

atuam nesse gênero fílmico, muitas vezes partilhadas com a narrativa de ficção, que

será utilizada a série documental O.J: Made In America.

3.1 DOCUMENTÁRIO E JORNALISMO ENQUANTO GÊNEROS

“Esse não é um filme de ficção”. É assim que se inicia Ilha das Flores, filme de

Jorge Furtado, lançado em 1989, automaticamente criando no espectador a

expectativa de que, se não é ficção deve se tratar de um filme documental. Porém,

na narrativa que se segue o que vemos são personagens, direção de atores e até

criação de cenários em estúdio. Ainda assim, por fim e apesar desses elementos, o

caráter documental prevalece na hora de categorizar a obra (MELO, 2002).

O exemplo acima serve para demonstrar como pode ser nebulosa a fronteira que

separa a definição dos filmes documentais e ficcionais. Bakhtin (1992) criou gêneros

do discurso para denominar as esferas de utilização de linguagem. A comunicação

se utiliza desses gêneros, e mesmo inadvertidamente (sem treino ou conhecimento

teórico) um indivíduo saberá usar com fluência a linguagem do meio que está

inserido.

Muitas vezes, os gêneros discursivos têm marcas linguísticas mais ou menos estereotipadas e identificáveis. É o caso de expressões como: "era uma vez ..." (na abertura de narrativas infantis), "prezado amigo" (na abertura de cartas), "conhece aquela do português..." (em piadas) etc. O gênero documentário não pode ser definido a partir da presença de determinados enunciados estereotipados ou de tipos textuais fixos (narração, descrição, injunção, dissertação). No entanto, não temos dúvidas que o documentário é um gênero com características particulares, e são essas características que nos fazem apreendê-lo como tal. (BAKHTIN apud MELO, 2002, p. 19)

Descrever e conceituar essas características é mais fácil do que enquadrar o

documentário em um gênero. O discurso sobre o real e a utilização de imagens

gravadas in loco, ou ainda retiradas de arquivos, confundem o gênero com o

jornalístico, ainda que não o seja propriamente.

Enquanto o jornalismo busca um efeito de objetividade ao transmitir as

14

informações, no documentário predomina um efeito de subjetividade, evidenciado por uma maneira particular do autor/diretor contar a sua história. Por isso dizemos que o documentário é um gênero essencialmente autoral. (MELO, 2002, p. 27-28)

Dizer que o documentário é um gênero essencialmente autoral é dizer que

apesar de ser um gênero não totalmente comprometido com a objetividade, assim

como acontece com as reportagens, as informações reveladas por um documentário

são tomadas como fatos, “revelações” (MELO, 2002). Em filmes de ficção não há

dúvida nenhuma que o proposto pelo autor é resultado de sua criatividade e visão de

mundo, ou mesmo se questiona sua legitimidade como informação verídica. Ainda

que encontremos exemplos de hibridismo em alguns gêneros e obras como Bruxa

de Blair (1999), apontar isso seria entrar em uma terceira discussão que não nos

cabe agora.

Não devemos esquecer que qualquer relato (independentemente de sua natureza) é sempre resultado de um trabalho de síntese, que envolve a seleção e a ordenação de informações. Assim, tanto nas narrativas pessoais como nas jornalísticas, o sujeito-autor cria uma situação nova a partir de um fato que já passou. Dessa forma, mesmo configurando-se como um discurso sobre o real, documentários e reportagens não são reflexos, mas construções da realidade social. Ou seja, no documentário ou na reportagem não estamos diante de uma mera documentação, mas de um processo ativo de fabricação de valores, significados e conceitos. (id, 2002, p. 27-28)

Identificar as técnicas para essa construção de valores e significados, ainda que

acobertada por um manto de credibilidade dado ao gênero, é um dos objetivos

dessa pesquisa.

3.2 JORNALISMO LITERÁRIO CINEMATOGRÁFICO

Lima (2003) usa um conceito de jornalismo literário cinematográfico, utilizado

também na pesquisa de Silva (2014), que discute a existência dessas técnicas do

jornalismo literário (ou narrativo, como o autor se refere) na criação de produtos do

cinema não-ficcional. Partiremos do princípio que, tanto nos filmes documentários

escolhidos quanto no jornalismo literário, o papel do autor é tão ou mais importante

do que a informação passada (BEZERRA, 2003). O autor se beneficia do

15

pressuposto e da credibilidade que o gênero confere à notícia, mas também utiliza

disso para garantir uma liberdade estilística beirando ao ficcional (quando não

mesmo ultrapassando essa linha, veremos no exemplo do autor Hunter Thompson).

Outros autores aplicam o mesmo conceito, ainda que não o nomeando da

mesma maneira. Para Bezerra (2002), o jornalismo gonzo empreende uma relação

promíscua com a ficção e essa relação não só contribui para tornar a narrativa mais

envolvente, mas também para fornecer outro nível de informação.

Em geral, jornalistas e documentaristas estão baseados em suposições diferentes sobre seus objetivos e se distanciam pela diversidade de tratamentos à disposição de seus respectivos autores. Mas estas diferenças não garantem uma separação absoluta entre eles. Existe, inegavelmente, um núcleo de questões técnicas e práticas que gravitam em torno destes domínios (e os aproximam) e lhes conferem uma espessura empiricamente reconhecível. (BEZERRA, 2002, p. 27)

Hunter Thompson, um dos maiores expoentes do jornalismo literário gonzo,

defendia que categorias como ficção e jornalismo são artificiais e inventava trechos

inteiros de situações que nunca aconteceram em suas matérias e livros jornalísticos,

com a intenção de criar alegorias para fatos reais, porém menos fantásticos

(THOMPSON apud BEZERRA, 2002).

Além de Edvaldo Pereira Lima (2003), outras pesquisas se utilizaram do conceito

formulado pelo autor, como Silva (2014), já referida, e Mariana Ferreira Lopes

(2007), que desenvolveu um estudo partindo da análise do documentário Ônibus

174 e sua possível utilização de técnicas do jornalismo narrativo para “além do

terreno da escrita”, em suas palavras. Algumas das características tiradas do livro-

reportagem que Lopes utilizou a partir de outro trabalho de Lima (1995), serão as

mesmas buscadas para a análise dessa pesquisa. São elas: a entrevista de

compreensão; o relato de histórias de vida; a observação participante; a importância

da memória; o uso de documentação referencial; a visão pluridimensional, a partir do

uso de diversas vozes; a fruição do texto; a utilização da descrição e da exposição; o

uso de funções de linguagem, as técnicas de angulação; o ponto de vista

diferenciado; e as técnicas de edição. Todos esses são conceitos oriundos de livros-

reportagem, por isso a aproximação do jornalismo narrativo, que não

necessariamente é o mesmo que o literário como veremos, mas partilham dessas

16

características em comum.

Outro autor que estruturou traços do gênero foi Norman Sims, presente na

pesquisa de Silva (2014). Ele acrescenta sete características marcadas em

documentários de Eduardo Coutinho que considera provenientes do jornalismo

literário: imersão do repórter na realidade; estilo; voz autoral; precisão de dados e

informações; uso de símbolos do status de vida; digressão; e humanização (SIMS,

1995). Coutinho é denominador comum de diversos trabalhos acadêmicos que

investigam o diálogo entre jornalismo narrativo, literário e documentário:

Mônica Martinez (2012) também investiga os possíveis diálogos entre esse tipo de jornalismo e o cinema, mais especificamente o gênero documentário, a partir do trabalho de Coutinho, estabelecendo como eixos de aproximação as formas de apuração, ou seja, a captação de informações; a digestão, que seria a compreensão do material apurado; e, por fim, a redação em estilo literário, simplificados pela autora enquanto captação e estruturação do material coletado, no âmbito jornalístico, e captação e montagem, no processo fílmico. O artigo inicia-se com o relato de experiência da diretora de cinema Nora Ephron, contando como o trabalho enquanto roteirista contribuiu com a sua percepção a respeito da importância do desenvolvimento de uma estrutura narrativa para contar os fatos, aprendendo com o cinema técnicas que a teriam ajudado na carreira como repórter. (MARTINEZ apud SILVA, 2014, p.17)

O próprio Lima (1987) prefere trabalhar as questões narrativas que

aproximam os gêneros literários, jornalístico e cinematográfico. Ele chega a sugerir

formas de prender a atenção do espectador/leitor, descrever momentos cíclicos do

processo narrativo, componentes dramáticos e variação rítmica. Todos esses, que

podem ser considerados artifícios de roteiro, estão presentes nos três gêneros

citados.

Já Márcia Detoni (2010) tem como objeto de estudo a influência que a

objetividade jornalística e a invenção do cinema direto têm sob a produção de

documentários, como meio até de cercear a criatividade dos produtores.

A autora menciona as formas de resistência ao jornalismo tradicional, ressaltando especialmente o Novo Jornalismo enquanto movimento que teria propiciado uma revisão estilística, a aproximação entre o jornalismo e a literatura, o estímulo à subjetividade e o surgimento de um jornalismo autoral, levando realizadores a repensarem o cinema-documentário. (DETONI apud SILVA, 2014)

Todos esses trabalhos, portanto, apresentam similaridades e têm importância

17

para o tipo de narrativa que propomos analisar, já que “demonstram a aproximação

possível entre produções do jornalismo narrativo e do cinema-documentário,

principalmente a partir da atenção dada à forma e do uso de recursos atribuídos aos

textos ficcionais, sejam eles literários ou fílmicos” (SILVA, 2014). São pesquisas

teóricas, fundamentadas nas teorias da comunicação e em produtos

cinematográficos documentais. No entanto, não é todo e qualquer documentário que

entra nessa classificação. Primeiramente, é necessário que se classifique o filme

como uma obra dentro do espectro do jornalismo.

18

4. ANÁLISE DA CLASSIFICAÇÃO DE O.J: MADE IN AMERICA COMO UM

DOCUMENTÁRIO JORNALÍSTICO

Já afirmamos que não há consenso no meio acadêmico se o documentário

seria um gênero jornalístico e não pretendemos responder essa pergunta

definitivamente. Por isso, partiremos do pressuposto que dentro do gênero

documental e jornalístico encontramos filmes e argumentos que sustentam

respostas diferentes. Entendendo que alguns filmes documentais se enquadram no

jornalismo mais do que outros, será usado o conceito estabelecido pela pesquisa

das doutoras em comunicação Gomes, Melo e Morais3 (2001) para verificar se o

produto midiático analisado nesta monografia pode ser categorizado como um

documentário jornalístico e assim prosseguir com a pesquisa. São os cinco critérios

definidores aplicados os seguintes:

4.1 VEICULAÇÃO PRATICAMENTE LIMITADA AOS CANAIS DE TVS

EDUCATIVAS OU NOS CANAIS DE TV POR ASSINATURA

Por meio de uma observação da programação jornalística na televisão

brasileira, percebeu-se que o documentário pouco aparece na programação da

televisão aberta, com exceção dos canais educativos. A conclusão encontrada para

isso é que o formato documental não tem lugar na dinâmica pauta jornalística. O

imediatismo e a informação factual são prioridade para os programas jornalísticos.

Enquanto reportagens de profundidade e documentários são considerados “pautas

frias”, ou seja, notícias sem necessidade imediata de serem veiculadas para que não

percam sua relevância (MELO, 2002). Ainda que seus temas sejam considerados

atuais, o tempo e o custo de produção, especialmente no caso dos documentários,

acaba sendo um impeditivo que explicaria essa falta de espaço.

Sua produção torna-se insustentável para as emissoras e desinteressante do

ponto de vista econômico. Ao prolongar o tempo de pesquisa e produção para

3 O artigo “O Documentário Como Gênero Jornalístico Televisivo", da qual foram retirados os critérios utilizados

por este artigo, faz parte um projeto maior que tem como objetivo estudar comparativamente diversos gêneros jornalísticos existentes, impressos ou audiovisuais. Pesquisa essa desenvolvida pelo Grupo em Comunicação e Discurso, do Departamento de Comunicação Social da UFPE.

19

aprofundar seu conteúdo, o custo do produto final não condiz com aquele esperado

pelas emissoras, levando as mesmas a “comprar” a produção (terceirizando um tipo

de serviço) em vez de investir em uma equipe de profissionais ou mesmo

equipamentos que justificariam essa produção. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001,

p. 4).

Resumidamente: a maioria dos canais abertos de TV não pode dispor de uma

equipe exclusivamente dedicada à produção dos documentários. Quando isso

acontece, costumam ser direcionadas à produção das chamadas grandes

reportagens, como os programas Globo Repórter ou Profissão Repórter, da Rede

Globo de Televisão. Essa preferência possibilita dizer que “as exigências

organizacionais impostas ao trabalho jornalístico influenciam na escolha do gênero e

definem a recontextualização de mundo para a comunicação jornalística.” (GOMES

& MELO & MORAIS, 2001, p. 5).

A série O.J:Made In America foi produzida originalmente por - e para - os

canais fechados de televisão da rede de jornalismo esportivo ESPN. Além das

ocasionais reprises, o conteúdo está disponível na plataforma de streaming online

da rede. Assim, atenderia o primeiro critério estabelecido pelas autoras.

4.2 O SEU CARÁTER AUTORAL

Aqui o que implica afirmar é que o documentário é sempre influenciado

pela subjetividade do seu autor, que não precisa ser escondida ou diminuída, como

acontece com outros gêneros jornalísticos que buscam a objetividade e, até onde é

possível, a imparcialidade. É um privilégio do documentarista que outros jornalistas

não têm, com o risco de serem acusados de manipulação da notícia, por exemplo.

Entretanto, isso não significa que seja um jornalismo de menos credibilidade ou

ainda monofônico, com somente um ponto de vista (MELO, 2002).

Geralmente, o documentarista busca ouvir a opinião de várias pessoas sobre

determinado acontecimento ou personalidade, seja para confirmar uma tese (caso,

por exemplo, dos documentários biográficos), seja para confrontar opiniões (caso

dos documentários sobre conflitos urbanos, sociais, raciais, religiosos etc). No

entanto, apesar de apresentar um emaranhado de vozes, que muitas vezes se

20

opõem e se contradizem, uma voz tende a predominar: aquela que traz em si o

ponto de vista do autor. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001, p. 7).

O controle da narrativa é o que garante ao cineasta que sua mensagem

chegue aos espectadores. Em O.J: Made In America encontraremos essa

subjetividade reprimida, mas por meio do tempo de tela de determinados

entrevistados ou ainda de recursos narrativos (a serem explorados na etapa de

análise da narrativa da pesquisa) fica clara que existe uma tese sendo defendida

pelo autor. Aqui, essa tese é a culpabilidade do ex-atleta pelos crimes de que foi

acusado e ainda que houve frieza e dissimulação de sua parte durante todo o

processo judicial. Apesar de uma variedade de mais de 50 entrevistados diferentes,

grande parte só de depoimentos narrativos e não opinativos, não existe nenhum

personagem que de fato defenda a inocência ou advogue a favor do protagonista.

4.3 A NÃO OBRIGATORIEDADE DA PRESENÇA DE UM NARRADOR

Diferentemente das reportagens, no documentário a narração em off

ou voiceover não é obrigatória ou mesmo necessária. Esse é o caso da série

analisada, que é inteiramente composta por depoimentos e imagens de arquivo que

costuram a narrativa. São utilizadas paráfrases discursivas para reforçar a

informação mostrada e então confirmada por uma sequência de depoimentos,

muitas vezes propositalmente repetitivos. Essa técnica inclusive reforça a ideia de

que a história está sendo contada de um ponto de vista neutro, apesar de ser uma

suposição enganosa, como visto no tópico anterior.

As paráfrases atuam como elementos importantes da argumentação.

Portanto, o funcionamento discursivo da paráfrase na prática jornalística revela um

equívoco teórico dos cânones jornalísticos, que condenam o uso de repetições. Em

vez de condenar a ocorrência de repetições, por não acrescentar um novo conteúdo

informacional ao texto, deverse-ia olhá-la como importante estratégia discursiva de

redimensionamento do fato. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001, p. 7). Repetir as

informações se torna uma forma de conectar e reforçar os novos fatos, visto a

ausência de um narrador que normalmente faria a condução tradicional da narrativa.

A série documental analisada se utiliza amplamente de paráfrases,

21

especialmente as visuais. Ao contar uma passagem histórica em um depoimento,

por exemplo, um jogo de futebol particularmente marcante, em sequência o exato

mesmo momento é mostrado com uma filmagem da época ou ainda repetido por um

entrevistado diferente, mas com ponto de vista similar, se não igual.

4.4 USO DE IMAGENS E DEPOIMENTOS, FUNCIONANDO COMO

DOCUMENTOS

A presença de documentos é fundamental para a caracterização de um

documentário, mas o que deve se atentar são o que são considerados documentos

e como caracterizá-los. Detectamos, então, dois tipos de documentos, os materiais –

ou seja, os que estão num suporte material por já terem sido produzidos

anteriormente – e os imateriais – os que estão em forma de relato, num suporte

imaterial e só a partir do documentário enquanto filme irão se tornar parte da

memória. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001, p. 8).

O documentário analisado se utiliza fortemente de ambos os tipos de

documentos, materiais e imateriais. O fato do personagem principal ter sido uma

personalidade midiática pela maior parte de sua vida adulta facilita muito o trabalho

da produção, já que são inúmeras as imagens de arquivo e mesmo entrevistas

antigas com o próprio. Quase tudo que se afirma sobre sua vida pública pode ser

ilustrado com imagens da época em que ocorreram, incluindo integralmente o seu

julgamento penal. A utilização das imagens de arquivo supera o uso dos

depoimentos gravados especialmente para o documentário, principalmente no caso

de personagens já falecidos ou que não quiseram participar da produção da obra.

Alguns depoimentos são reutilizados de entrevistas para outros veículos, mas

encaixados na narrativa assim como os exclusivos do filme. Nos casos de momentos

mais pessoais e de construção da personalidade privada do protagonista, são

ouvidos mais de 50 entrevistados diferentes que servem como narradores e

comentaristas.

22

4.5 AMPLA UTILIZAÇÃO DE MONTAGENS FICCIONAIS NO SENTIDO DE

SIMULAR FATOS

Outra ferramenta bastante característica dos documentários é o uso de

reconstituições ou ainda as reencenações, que são passagens inteiramente

ficcionais, deixando de lado o caráter documental. Esse é único critério que aparece

como não-obrigatório para a definição, mas sim como uma ferramenta opcional a

mais.

O apelo a tais recursos, que funcionam como ilustração dos fatos, muitas

vezes se deve à falta de registros históricos ou mesmo de pessoas para dar

depoimentos que possam autenticar a verdade. No entanto, vale chamar atenção

para o fato de que essas estratégias não devem ser consideradas neutras, pois,

sempre atuam dentro de um discurso ideologicamente orientado, fato que só reforça

nosso ponto de vista em relação ao caráter autoral do gênero. (GOMES & MELO &

MORAIS, 2001, p. 10).

A utilização desses elementos quebra a crença de alguns de que o

documentário só pode se utilizar do real. O.J: Made In America não se utiliza desses

artifícios de reencenação, mantendo assim sua proximidade maior com a grande

reportagem jornalística e preferindo não entrar tanto na área cinzenta entre ficção e

metáfora. Pontualmente, são inseridas imagens dos locais onde os fatos ocorreram

produzidas especificamente para este documentário, mas servem como

ambientação e não representação do real.

Após a checagem dos cinco critérios, chegamos a uma conclusão que será

imprescindível para a continuidade da pesquisa que é: a série documental O.J:

Made In America entra no âmbito do gênero documentário jornalístico segundo os

critérios de Melo, Gomes e Morais. Dessa forma, podemos escolher analisar sua

narrativa pela metodologia jornalística ou ainda pela estrutura narrativa de ficção.

Não se trata de uma resolução ou uma conclusão original para um problema, mas

sim um meio de análise para um fim acadêmico específico.

23

5. ANÁLISE PRAGMÁTICA DA NARRATIVA JORNALÍSTICA

Devido a sua natureza estritamente teórica e analítica, a principal metodologia

utilizada será a pesquisa bibliográfica para embasar os parâmetros teóricos para

análise do uso documental e/ou ficcional da narrativa.

Será seguida a análise pragmática da narrativa jornalística, estabelecida por

Motta (2013). Esse método de análise é muito utilizado para produtos jornalísticos

seriados, em que se constrói a narrativa em capítulos, sejam reportagens escritas ou

televisivas. O fato de o documentário ter sido produzido em formato capitular para a

televisão o enquadra nessa categoria.

Motta (2013) também considera a narratologia como uma ciência que estuda

tanto a narrativa de produtos jornalísticos quanto ficcionais. Partindo disso, ela será

utilizada para a análise comparativa com os aspectos ficcionais encontrados na

trama.

A narratologia é a teoria da narrativa. Abarca também os métodos e os procedimentos empregados na análise das narrativas humanas. É, portanto, um campo e um método de análise das práticas culturais. Como a concebemos aqui, a narratologia é um ramo das ciências humanas que estuda os sistemas narrativos no seio das sociedades. Dedica-se ao estudo das relações humanas que produzem sentidos através de expressões narrativas, sejam elas factuais (jornalismo, história, biografias) ou ficcionais (contos, filmes, telenovelas, videoclipes, histórias em quadrinho). (id, 2007, p. 144)

Na análise pragmática da narrativa jornalística, entende-se a narratologia não

apenas como um ramo das ciências de linguagem ou literatura, mas como uma

forma de análise e um campo de estudo antropológico. É algo que leva além de

suas expressões de ficção, mas também ao entendimento da cultura de uma

sociedade, ajuda a compreender seus mitos, ideologias, valores e cultura política

(ibid, 2007).

O ambiente midiático em si é formado por narrativas, sejam elas factuais

(notícias, documentários, transmissões ao vivo) ou fictícias (telenovelas, filmes,

livros, comerciais). Ambas as vertentes utilizam a narrativa para ganhar a atenção e

24

interesse do espectador, para fazê-lo sentir e pensar determinadas coisas.

“Exploram o fático para causar o efeito de real (a objetividade) e o fictício para

causar efeitos emocionais (subjetividade) ”. Essa citação de Motta (2007) começa a

explicar como os profissionais da comunicação e entretenimento usam o discurso

narrativo como forma de causar efeitos e significado e é esse uso que será

analisado nessa pesquisa.

A narratologia tem suas raízes próximas às da análise do discurso, visto que

ambas surgiram de estudos estruturalistas russos. Mais especificamente, o termo

narratologia foi cunhado por Tzvetan Todorov na sua obra Gramática do Decameron

(1969). Ele foi um famoso teórico do estruturalismo, também conhecido por suas

obras que tratam da análise de simbologias e do discurso (CEIA, 2017).

Por essa conexão entre as áreas se considera cabível trabalhar também com

os conceitos da análise do discurso de Todorov para analisar o produto escolhido,

ainda que seu trabalho tenha uma base na narrativa de ficção. O discurso utilizado

para cada narrativa é naturalmente diferente, e Todorov ajudará a identificar as

intenções por trás das técnicas utilizadas.

Com a intenção de estruturar a aplicação de sua técnica de análise, Motta

elenca sete passos, que ele chama de movimentos. São itens que devem ser

identificados no produto analisado e explorados pela análise. Vale apontar que

apesar de enumerados, eles não necessitam de uma ordem de análise ou execução,

mas sim devem ser observados em paralelo durante a análise. Eles servem mais

como um guia de pesquisa do que uma doutrina, e serão seguidos para a

continuidade desta pesquisa. Seus objetivos e embasamentos são encontrados nos

capítulos a seguir.

25

6. 1° MOVIMENTO - A RECOMPOSIÇÃO DA INTRIGA OU ACONTECIMENTO

JORNALÍSTICO

Esse passo consiste em fazer uma reconstituição da narrativa completa, seja

em ordem cronológica e conectada, ou ainda em uma nova lógica criada pelo

analista. Especialmente importante em casos de histórias contadas em uma

serialidade temática, como o produto escolhido para ser analisado, que se trata de

uma série documental com episódios centrados em pontos temáticos específicos da

trama (racismo, machismo no ambiente de trabalho, violência contra a mulher e

assim por diante). Esses episódios devem ser vistos como um todo, para que se

possa observar a continuidade e a justaposições temáticas (MOTTA, 2013).

O analista precisa decompor e recompor a estória com rigor e identificar suas partes componentes, as sequências básicas, os pontos de virada ou inflexões essenciais, os limites dos episódios parciais, as conexões entre eles, os conflitos principais e secundários, o protagonista e o antagonista principais e seus adjuvantes, como o enredo organiza a totalidade, e assim por diante, a fim de compreender como o narrador compôs sua estória na situação de comunicação. (id, 2013, p. 141)

Essas relações temporais ou em uma outra ordem lógica também são

chamadas de “relações de solidariedade” e devem ser apontadas nessa nova linha

cronológica criada. É aqui também que serão identificados os ganchos narrativos,

desfechos e construção da sequência. Como trataremos da série como um todo,

também serão apontadas as ações e suas finalidades posteriores. Por exemplo, um

evento do primeiro episódio que somente após o conhecimento do todo possa ser

visto como relevante, já será destacado desde o início nessa etapa.

Outro destaque nessa fase são os chamados pontos de virada, ou plot twists,

momentos na ação em que o inesperado ou contraditório acontece com um

personagem ou com o direcionamento da intriga (PROPP, 1984). Como trabalhamos

com um produto factual com amplo conhecimento para o grande público, será mais

interessante uma análise focal das ações que modificam estruturalmente a história,

chamados grandes predicados ou grandes transformações (TODOROV, 1970).

26

7. 2° MOVIMENTO - COMPREENDER A LÓGICA DO PARADIGMA NARRATIVO

Além de uma nova linha do tempo, outra sugestão de Motta utilizada é uma

nova sinopse que exponha o que ele chama de “projeto dramático”. Esse projeto

dramático seria algo como a verdadeira história que o narrador teve a intenção de

contar, uma que só pode ser identificada após a análise e leitura do produto como

um todo. Nessa sinopse, a função dos personagens aparece com mais clareza,

assim como o seu fundo moral e mesmo qualquer ideologia ou fábula intrínseca. A

lógica que se procura no paradigma narrativo é a lógica dramática definida por

Ricouer (1994). Para ele, o discordante (acidentes, o inesperado, o lamentável) é o

cerne da narrativa dramática e é o ponto alto de tensão, onde se funde a surpresa e

a necessidade da narrativa.

A resposta emocional do espectador é construída no drama, na qualidade dos incidentes destruidores e dolorosos para os personagens, as inversões (teatral ou dramática). A inversão está a nossa espera, mas é criada pela intriga. Ricouer aplica essa lógica dramática a toda narrativa, e não apenas à narrativa ficcional. Para ele, qualquer estória (inclusive a historiografia) trata de estados de mudança, para melhor ou pior. São as demandas da intriga que tornam os incidentes necessários e verossímeis: é incluindo o discordante no concordante que a intriga inclui o comovente no inteligível. (MOTTA apud RICOUER, 2013, pg 148)

O procedimento de ordenar o encadeamento e a lógica dos eventos proposto

por Ricouer, aplicado ao contexto do produto analisado, começa a mostrar como o

narrador se utiliza do verossímil para efeitos de tensão e dramaticidade, entre

outros. Ou seja, para conseguir uma resposta emocional do seu espectador.

Partiremos do princípio que todo narrador, ao se comunicar narrativamente,

está se utilizando de estratégias e de recursos de linguagem para construir um

discurso argumentativo a ser transmitido ao seu interlocutor. São recursos de

atração, sedução, persuasão, convencimento, entre outros. A intenção é sempre

obter resultados subjetivos e efeitos de sentido que satisfaçam o projeto dramático

do narrador/documentarista/jornalista em questão (MOTTA, 2013).

Esses e outros procedimentos nos ajudam a encontrar constantes narrativas

e entender a estrutura interna do documentário, ou qualquer que seja o produto

27

jornalístico analisado. Entretanto, seu objetivo maior é revelar a intenção da

comunicação entre narrador e destinatário, e como essa é projetada pelo primeiro.

28

8. 3° MOVIMENTO - DEIXAR SURGIREM NOVOS EPISÓDIOS

Foi Vladimir Propp que usou primeiramente o termo função para se referir a

ações tomadas por personagens que têm um papel a desempenhar na narrativa

ficcional. Propp enumerou 31 funções iniciais, adaptadas e reduzidas em quantidade

com o tempo por outros autores. Aqui o termo é adaptado, pois a função passa a ser

exercida pelas escolhas do documentarista ou cineasta. Porém, o conceito de

episódio que usaremos aqui, ainda que tenha suas bases no estruturalismo de

Propp, tem mais proximidade do que propuseram Reis e Lopes (2007).

Assim como os dois autores portugueses, definimos o episódio como uma

unidade narrativa não necessariamente temporal e demarcada. Sua extensão pode

ser variável e está mais relacionada à ação, que ocorra em sua totalidade narrativa,

dentro dessa unidade e espaço temático que pode ser redefinido ou mesmo

identificado pelo analista (MOTTA apud REIS e LOPES, 2013).

Motta (2013) sugere uma renomeação e configuração dos episódios que

compõem o objeto de estudo por parte do analista. Dessa forma, poderemos dividi-

los não só pelo formato de exibição, mas por eixos temáticos e funções narrativas,

ressignificando-os. Procuramos então analisar os episódios de O.J: Made In America

não por sua divisão original (partes um à cinco, sem nomeação dos capítulos), mas

pela nova divisão temática que proporemos na etapa de análise.

A identificação temática e a nomeação dos novos episódios podem revelar estratégias semânticas do narrador na construção dos sentidos da estória e os papéis funcionais dessas unidades básicas. Podem revelar como o narrador dispõe estrategicamente personagens, cenários, incidentes, conflitos, tensões, fracassos e conquistas. Ou seja, como ele organiza o plano da intriga a fim de produzir determinados efeitos dramáticos como o suspense, a tensão, o clímax, os pontos de virada, etc. (MOTTA, 2013, pg 160)

Na análise da narrativa jornalística, e nesse movimento em particular, é muito

comum a observação sistemática dos momentos de suspense. Por isso, iremos

inserir aqui também a busca por esse artifício para retardar a conclusão da história,

deixar em suspenso significados, aumentar a tensão ou ainda as expectativas do

interlocutor.

29

O suspense é um recurso dramático chave, relativamente desprezado na narratologia. Talvez porque fosse considerado pelos romancistas clássicos um recurso da narrativa popular e desprezível. Entretanto, todos os grandes romances da literatura ocidental utilizam frequentemente os recursos da sedução dramática: fazem perguntas, trazem situações inconclusivas e retardam respondê-las para capturar a atenção. (MOTTA, 2013, pg 156)

Lodge (2010), separa as perguntas narrativas em duas categorias:

causalidade (“quem fez?”) e temporalidade (“o que vai acontecer em seguida?”).

Segundo ele, o suspense é um efeito de sentido derivado dos thrillers, gênero que

vive essencialmente da tensão, medo e ansiedade. Já Campos (2007) define

suspense como o sentimento de expectativa para alguma ação ou incidente, ou

ainda de uma informação que deveria se seguir a uma pergunta. E são essas

perguntas que motivam os espectadores a continuar seguindo a narrativa. Como o

próprio diz, elas têm a finalidade bem definida de “prolongar as ações das

personagens e reter a atenção”.

30

9. 4° MOVIMENTO - PERMITIR AO CONFLITO DRAMÁTICO SE REVELAR

Esse passo é especialmente relevante pois, entende-se que o conflito (ou

conflitos, quando o caso) é o elemento central de qualquer narrativa, em especial a

jornalística, que lida sempre com o discordante (RICOUER, 1994). Ou seja, eles vão

gerar a ação que impulsiona a história contada e continuarão a manter a narrativa

viva quando inseridos novos conflitos diferentes na sequência episódica. “O conflito

é o núcleo em torno do qual gravita tudo o mais na narrativa”, afirma Motta. Há

sempre ao menos dois lados em um conflito, assim como interesses contraditórios,

que devem aqui ser levantados.

Cabe então ao analista identificar os conflitos principais e secundários da história recomposta (da nova síntese). Eles podem ser políticos, econômicos, psicológicos, familiares, jurídicos, policiais, etc. O analista trabalha agora com a sua própria recomposição do acontecimento, que confrontará permanentemente com as notícias originais para construir sua interpretação. (MOTTA, 2007, p. 150)

Como o documentário se apresenta como biográfico, ainda que o maior

conflito seja o assassinato de Nicole Brown e Ronald Goldman, ele não é

apresentado de imediato. Vários outros conflitos são introduzidos durante a narrativa

como embates raciais, judiciais e os elementos decorrentes da fama. A identificação

desses conflitos permitirá discernir e compreender a funcionalidade de cada episódio

dentro do enredo.

Vale apontar que o conflito não é originário da representação dramática, mas

sim do “mundo real” em que estamos inseridos. Pode ser considerado uma categoria

específica da política, psicanálise, sociologia ou ainda de outros estudos sociais

(SCHMIDTT, 2009). Dessa forma, é natural que seja retratado, comumente em seu

modo exacerbado, em nossas representações dramáticas da realidade.

Em diferentes formas, encontramos o conflito como motor impulsionante da

narrativa nas sequências-tipo (citadas anteriormente) ou ciclos narrativos de

diversos autores. Todorov (1970) trabalha com o equilíbrio-desequilíbrio-novo

equilíbrio, Larivaille (1974) usa os termos perturbação-resolução-transformação e

Field (1979) a apresentação-confrontação-resolução. Seja chamado de

31

transgressão, incidente, ruptura ou afins, o conflito sempre está presente no foco da

história.

Aqui voltamos a tratar de um projeto dramático maior, onde Motta (2013)

reforça a necessidade de sua identificação afirmando que o conflito dramático é “o

frame cognitivo (enquadramento, perspectiva, ponto de vista) através do qual o

narrador organiza a difusa e confusa realidade que pretende relatar”. Entender e

observar os conflitos dramáticos permite ao analista perceber o projeto dramático

em construção.

A narrativa jornalística coloca sucessivamente uma personagem versus outra, como opositores (partidos, políticos profissionais, autoridades, etc.) nas páginas e telas, contaminando toda a cobertura, incitando oposições e, assim, instituindo (e fomentando) dualismos artificiais na vida política contemporânea. (MOTTA, 2013, p.171)

Aplicando-o no contexto do jornalismo, o frame dramático é aquilo que está

consolidado no imaginário popular e é utilizado pelos jornalistas pois facilitaria o

trabalho recorrente de fazer com que os receptores compreendam a notícia do modo

que é esperado (MOTTA, 2013). Seria como uma fórmula, que retira a complexidade

da maioria das narrativas.

32

10. 5° MOVIMENTO - PERSONAGEM: METAMORFOSE DE PESSOA A

PERSONA

O personagem é o ponto central de toda narrativa, é o foco do conflito

dramático. Há certo consenso sobre essa centralidade do personagem, seja em

autores da narrativa jornalística, como Motta (2013) ou ainda o roteirista de ficção

Syd Field. Field (2001) ainda separa as interações possíveis das personagens em

três ações: “1) experimentar conflitos para alcançar uma necessidade; 2) interagir

com outras [personagens] antagônica ou cooperativamente; 3) interagir consigo

mesma (medo, coragem, determinação, etc.)”.

Como tratamos aqui de uma narrativa jornalística, é a partir do conflito que

poderemos mais claramente identificar nossos agentes narrativos (CAMPOS, 2007).

Desvendando o projeto dramático já estabelecido, é fácil chegar a conclusão que

suas forças antagônicas serão personagens principais da narrativa geral, e devem

ser essas o foco da observação.

Deve-se, portanto, evitar a análise psicológica ou social da personagem e concentrar as observações de sua representação como figura do discurso jornalístico, observar como o narrador imprime no texto marcas com as quais pretende construir a personagem na mente dos leitores/ouvintes. É por outras vias que chegaremos às questões políticas e sociais. (MOTTA, 2007, p. 150)

A pesquisa irá identificar os papéis atribuídos pelas narrativas aos atores

sociais que delas participam. Será interessante notar como vários desses atores

sociais (termo de Bill Nichols que engloba tanto as pessoas representando a si

mesmas no documentário, quanto atores de fato interpretando esses) não são

necessariamente seres dotados de traços antropomórficos, replicando atitudes e

comportamentos humanos, como definido por Prince (1987).

Um personagem pode também ser a representação de um conceito ou

mesmo um local (CAMPOS, 2007). A cidade Los Angeles, ou a instituição

Departamento de Polícia, pode ser considerado um personagem, já que realizam

ações que estimulam o andamento do enredo e participam ativamente da

intriga/conflito principal da trama. O sentimento coletivo de injustiça racial que vai

sendo construído do primeiro ao último episódio do documentário analisado, também

33

pode ser considerado um personagem, já que influi ativamente no desenrolar da

história.

Um segundo passo possível para a análise é a caracterização desses

personagens, de suas dinâmicas sociais, de como se posicionam dentro da intriga

da narrativa e mais ainda, como suas personalidades são representadas e

construídas pelo narrador.

34

11. 6° MOVIMENTO - AS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS E

ARGUMENTATIVAS

Tanto Bernard (2008) quanto Motta (2007) pregam em seus discursos que

parte do trabalho jornalístico documental é narrar a história como se não houvesse

nenhuma interferência de um narrador, dissimulando a estratégia narrativa como se

não houvesse uma pessoa por trás da narração, como se a “verdade estivesse lá

fora”. Diferentemente da ficção, que se diferencia pela presença (explícita ou

implícita) do sujeito narrador (MOTTA, 2007). Destacar os recursos de linguagem

que causam esses efeitos de real e interpretar a sua utilidade na estratégia narrativa

é uma das tarefas fundamentais do analista nesse passo do processo. Desmascarar

a falsa objetividade se quisermos entrar na dramaticidade do tema, pois “a

objetividade é também uma estratégia argumentativa” (id, 2007). Citações

frequentes, datação e o uso abundante de números e estatísticas são só alguns

exemplos do que serão apontados aqui como recursos. Porém, se essas citadas

acima são estratégias de objetivação, também teremos que observar as estratégias

de subjetivação, com a intenção de construir efeitos poéticos ou sentimentais. Esses

jogos de linguagem e ações estratégicas de constituição de significação em contexto

serão observadas nesse movimento em particular, divididas muitas vezes em efeitos

do real e efeitos estéticos de sentido.

Toda narrativa é um permanente jogo entre os efeitos de real (veracidade) e outros efeitos de sentido (a comoção, a ironia, a dor, o riso, a compaixão, etc.), mais ou menos exacerbados pela linguagem dramática. As narrativas realistas utilizam uma linguagem referencial para vincular sempre os fatos ao mundo físico, mas criam incessantemente efeitos catárticos, como na ficção. A retórica dessas narrativas estimula um permanente jogo entre as intenções do narrador e as interpretações do receptor. (MOTTA, 2013, pg 196)

Enquanto o discurso narrativo subjetivo (ficção) é menos discreto, o discurso

narrativo objetivo de um jornalista, biógrafo ou historiador, é definido pela

afastamento e dessubjetivação da atuação do narrador. Caberá ao analista achar

esses efeitos na narrativa jornalística, particularmente sutil e, por natureza, treinada

em camuflar ou dissimular suas estratégias argumentativas. É o que chamamos de

35

retórica da narrativa realista, proeminente no jornalismo e na historiografia, o

narrador que finge não narrar, na tentativa de negar sua presença (MOTTA, 2013).

11.1 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS DO REAL (A CONSTRUÇÃO

DA VERACIDADE)

Aqui tratamos de estratégias que ajudem o narrador realista a fazer com que

seus interlocutores interpretem os fatos apresentados como verdades absolutas,

“como se os fatos estivessem falando por si mesmos” (MOTTA, 2013). No texto

escrito, citações frequentes conferem a veracidade que só uma testemunha ou

especialista pode dar sobre o tema. No audiovisual, depoimentos e entrevistas

fazem o mesmo, afastando o narrador (jornalista) do discurso que está transmitindo.

Situar geograficamente, e sistematicamente, lugares e personagens também

é uma maneira de reforçar o domínio da informação. O mesmo vale para uso dos

nomes próprios de lugares, instituições ou outros agentes de conhecimento público.

A familiaridade com esses irá reforçar a realidade das situações em que estão

envolvidos, pensando no ponto de vista do leitor, ouvinte ou telespectador.

Estar sempre referenciando temporalmente os eventos têm propósito

semelhante. Datas, horários exatos ou especificações como “após o almoço”, “na

saída do trabalho” e afins. São os chamados dêiticos espaço-temporais4 (MOTTA,

2013). Por último, mas utilizando a mesma lógica de transmitir veracidade, está o

uso extensivo de números e estatísticas, assim como quantias ou dimensões

precisas. Aqui desde a altura de pessoas a números como “a vítima comprou seis

pães naquele dia” são estratégias.

11.2 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS ESTÉTICOS

Quando falamos de efeitos estéticos de sentido, é importante não confundi-

los com o que vemos nas imagens ou o que a semiótica nos permitiria interpretar.

Ao menos não no conceito do autor a que nos referimos aqui. O efeitos de sentido

4 Dêiticos são elementos do discurso com função de trazer coerência e situar a ação e os sujeitos no ato de

comunicação.

36

para Motta (2013) são descritos como os mesmos que podem ser observados na

recomposição da intriga, no primeiro movimento de análise de Motta. Observaremos

aqui as sutilezas de forma e estilo narrativa que induzem o espectador a sentir

determinadas emoções. O encaixe de determinada entrevista e personagem em

seguida de outro menos carismático ou crível, por exemplo, é uma estratégia de

efeito estético com resultados que afetam a subjetividade do interlocutor. Aqui ele os

considera os efeitos poéticos e metafóricos, fazendo relação direta com o que será

encontrado no sétimo movimento de análise.

11.3 A RELAÇÃO COMUNICATIVA E O “CONTRATO COGNITIVO”

No campo da narratologia de ficção, podemos chamar o que será analisado

aqui de foco narrativo ou perspectiva narrativa ou ainda de “o ponto de vista”. Na

teoria jornalística fala-se mais em abordagem ou até enquadramento. De qualquer

forma, seguindo a análise pragmática da narrativa, o que nos interessa

academicamente aqui é a relação comunicativa entre narrador-narratário, o jogo de

interpretações da audiência e intenções do comunicador. Aqui o interesse foge da

relação entre narrador e narrativa, já abordada anteriormente. O texto servirá

apenas como a conexão a ser analisada entre os dois pontos. Serão levantados

pontos externos e situações que ocorrem extracampo de tela, como por exemplo

repercussões ao lançamento do produto e o contexto em que foi lançado. Também

será abordado o chamado pelo autor “contrato cognitivo” firmado entre jornalistas e

documentaristas (narradores) e audiência (narratário). Por convenção, esse contrato

estabelece como certos os princípios da objetividade e “verdade dos fatos” (MOTTA,

2007). É esse pacto que gera a confiabilidade necessária para uma eficiente

comunicação jornalística, e é sua maior diferenciação da comunicação ficcional de

entretenimento.

37

12. 7° MOVIMENTO - METANARRATIVA: SIGNIFICADOS DE FUNDO MORAL OU

FÁBULA DA HISTÓRIA

Partimos do pressuposto defendido pela narratologia de que toda narrativa se

constrói sobre um fundo com cunho ético ou moral (TODOROV, 1970). Claramente

nas fábulas infantis, novelas e romances essa mensagem é mais evidente, mas

mesmo as narrativas jornalísticas não deixam de apresentar essa característica.

Esse fundo ético e moral vai surgindo cada vez mais nítido ao longo da análise do acontecimento: é o plano da estrutura profunda da narrativa. Ele pode saltar logo no princípio, aparecer gradualmente quando os movimentos iniciais da análise forem sendo concluídos ou só se configurar no final. Pode ser predominantemente de ordem ética, moral ou filosófica, ainda que também possa ter aspectos políticos, religiosos ou ideológicos. Nenhuma notícia está nos jornais sem que haja uma razão ética ou moral que justifique seu relato. (MOTTA, 2007, p. 150)

Neste último movimento analítico chegamos a instância da interpretação mais

livre da narrativa, ainda que objetiva. Serão exploradas as camadas que produzem

reações emocionais do leitor, ouvinte ou espectador. Entendendo que a narração de

um acontecimento afeta as pessoas e desencadeia uma série de sentimentos, são

esses processos, que Marina e Penas (1999) chamam de catárticos e cognitivos,

que a análise precisa revelar. Para isso, eles podem ser divididos em tribos ou

blocos de sentimentos (asco, coação, euforia, desânimo, confusão, segurança,

medo, fracasso, confiança, esperança, culpa, felicidade, etc.) e identificados por uma

função narrativa básica, que pode mudar de acordo com os desencadeamentos,

intensidade ou rumos em que a história se encaminhar ou se situar (MOTTA apud

MARINA e PENAS, 2013).

Esse momento de compreensão da metanarrativa é comparado ao conceito

literário de epifania. Para Lodge (2010), epifania se refere aos momentos ou

passagens em que a realidade esteja carregada de um significado transcendental.

Já as metanarrativas que buscaremos na análise podem conter também elementos

ideológicos, referenciais ou históricos no lugar de tais elementos transcendentais.

Ainda assim Motta (2013) afirma que “as metanarrativas têm sempre muito de

epifânico: ao revelarem certas transcendências, funcionam algumas vezes como o

clímax da resolução e da compreensão mais profunda de uma estória”.

38

É nessa etapa também que indagaremos a necessidade da arte imitar a vida,

do desejo de transformar eventos reais em histórias. Seria o impulso cultural de

narrar, que remete às mitologias gregas e religiosas e à necessidade de

compreender o todo? De qualquer forma, a necessidade da narrativa dentro de uma

história real (já uma narrativa em si) caracteriza essa última etapa. Assim como o

fundo fabulesco, que pode aparecer da maneira mais simples como uma moral da

história em um conto infantil, ou ainda em seu formato metáfora mais complexa da

sociedade.

39

13. O MÉTODO DE ANÁLISE

Foram utilizadas algumas das sugestões de Motta (2013) e de seus

movimentos para que fossem criados os métodos de análise do documentário O.J.

Simpson: Made In America nesta pesquisa. Apenas o quinto movimento,

“Personagem: Metamorfose De Pessoa A Persona”, não será explorado nesta

pesquisa, pois o foco aqui é a construção da narrativa e, apesar de fazer parte de

como é contada a história, a caracterização dos personagens pode ser considerado

um tópico de pesquisa separado em si. Todos os outros movimentos, do primeiro ao

sétimo, estão relacionados a relação de comunicação entre o narrador e seu

interlocutor, assim como a relação destes com a própria narrativa, e por isso serão o

foco desta análise.

Foi escolhido trabalhar com o produto em sua forma seriada, visto que ele foi

exibido em sua totalidade no festival de Sundance, em formato de filme único, e em

cinco episódios pelo canal de televisão fechada ESPN. Isso facilitou a análise, pois o

modo episódico é como o produto foi pensado inicialmente, o que fica claro quando

observado onde estão seus pontos de virada e suspense, além da divisão de temas

pelo tempo aproximado de um episódio.

O primeiro passo será decompor e recompor a história, isto é, organizar os

eventos distribuídos nos capítulos da história em uma ordem cronológica

reorganizada, com destaque para os pontos de virada ou ganchos narrativos. Isso

atenderia o primeiro e o segundo movimento de Motta (2013), que estabelecem a

“reconstituição da intriga” e a “compreensão da lógica do paradigma dramático”.

Aqui foi criada uma linha do tempo com destaque para os acontecimentos-chave das

jornadas de quem consideraremos os dois protagonistas do documentário analisado:

O.J. Simpson e o embate entre a população negra e a polícia da cidade de Los

Angeles. Em determinado ponto histórico essas duas histórias irão convergir,

momento em que identificamos a intenção da narrativa construída (ou a dita lógica

do projeto dramático) assim como começa a se desenhar a fábula por trás do

discurso, ou a metanarrativa segundo o sétimo movimento.

Motta já dizia que a análise dos movimentos não precisa nem deve ser feita

numericamente ou em sequência, mas sim paralelamente. É por isso que o primeiro,

40

segundo, terceiro e sétimo movimentos serão analisados a partir das escolhas de

montagem que serão exemplificadas na análise da linha do tempo. Para o quinto

movimento, faremos a re-significação da divisão dos episódios, para assim

relacionarmos essa divisão com a ordem narrativa clássica. Usaremos sequências-

tipo de Propp, Field, Todorov e Larivaille para verificar comparativamente se nosso

produto segue essas diretrizes, que atendem tanto a ficção quanto a narrativa

jornalística.

Finalmente, o sexto movimento demanda que as estratégias de efeitos do real

e estéticos sejam apontadas de forma a justificar o projeto dramático pretendido pelo

autor. Após uma observação sistemática do discurso, encontramos algumas

recorrências que podem ser apontadas como resultados.

41

14. RECONSTITUIÇÃO DA NARRATIVA

A linha do tempo construída abaixo segue os principais eventos da vida de

O.J. Simpson, o personagem-título, e do conflito entre a população negra da cidade

de Los Angeles e o departamento de polícia local, conforme relatados pelo

documentário O.J: Made In America. Reforçamos que muitos outros eventos

simultâneos acontecem aos fatos que foram escolhidos para serem destacados. Isso

é uma opção de análise, já que estabelecemos o interesse nas narrativas já

discutidas. O efeito da fama e a personalidade pública versus a personalidade

privada de O.J. Simpson, assim como detalhes do relacionamento entre Simpson e

a segunda esposa são temas abordados pelo documentário que escolhemos não

aprofundar por questões práticas de pesquisa. Como sugerido anteriormente por

Motta (2013), é necessário que um frame de análise seja definido para que não se

perca o foco.

Os eventos estão ordenados nem sempre cronologicamente pois, dispondo-

os da maneira que a série os exibiu, conseguimos começar a entender os efeitos de

sentido pretendidos. Esses efeitos, assim como os artifícios de suspense e

veracidade serão exemplificados nessa mesma sequência de eventos por meio de

notas explicativas.

Seguiremos a análise somente até o momento em que, conforme

interpretamos, as duas histórias convergem e se tornam a mesma narrativa: no

momento em que o ex-atleta é preso pelo assassinato de sua ex-mulher e se torna

um caso judicial notório. Isso acontece na marcação de 01 hora e 03 minutos do

terceiro episódio, ou passados aproximadamente 56% do tempo total (7 horas 26

minutos e 28 segundos) da trama.

Depois desse frame temático e temporal escolhido, a narrativa já foi

construída, o que encontramos são as consequências e eventos que o narrador

estava nos “preparando” para interpretar da maneira pretendida. Continuaremos

essa linha de raciocínio em um capítulo subsequente.

42

14.1 LINHA DO TEMPO COMENTADA

----------------------------------------- Primeiro episódio -----------------------------------------------

[ARTIFÍCIO DE SUSPENSE] - Primeira Cena: Vemos imagens de arquivo de

uma audiência de condicional, a data não é estabelecida. Sabemos que um

O.J. Simpson já envelhecido está preso, porém não se fala sobre o motivo.

Alguém pergunta sua idade no ano da primeira prisão. Ficamos sabendo que

foi em 1994. Fim da cena.

1947 - Orenthal James Simpson nasceu na cidade de São Francisco, Califórnia, no

dia 09 de julho.

1967 - O.J. chama a atenção de olheiros por suas habilidades atléticas, ganha uma

bolsa estudantil e ingressa na Universidade do Sul da Califórnia (USC) onde começa

sua carreira estelar no futebol americano universitário

.

Início dos anos 60 - Depoimentos da época e estatísticas do crescimento

exponencial da da população negra em Los Angeles, muitos em fuga da segregação

ainda existente em estados do sul dos Estados Unidos. As oportunidades estão

aqui, assim como a violência policial.

1950 - “Chief” Bill Parker assume o comando do corrupto departamento de polícia de

Los Angeles (LAPD) e promove uma limpeza e mudança de conduta vista como

muito positiva pela população, porém incluindo sua possível visão racista de mundo

na corporação. Começam os relatos de brutalidade policial contra a comunidade

negra.

NOTA: É no momento em que, após conhecer o personagem principal, O.J.

Simpson, e sermos transportados para a Los Angeles dos anos 50 que começa

a se desenhar a maior metanarrativa da série documental: como o racismo

institucionalizado da polícia promoveu uma situação tão insustentável de

43

desconfiança entre a comunidade negra e o sistema de justiça que causou a

absolvição de um homem possivelmente, em outras circunstâncias,

considerado culpado.

11 de Agosto de 1965 - No bairro periférico de Watts, a polícia reage com força

exagerada a um incidente, gerando a revolta da comunidade que toma as ruas e

revida violentamente. O evento ficou conhecido na mídia e posteriormente como

Watts Riots (as revoltas de Watts).

NOTA: Os bairros pobres, como Watts, ficam logo atrás da região do Coliseu,

estádio de futebol americano da USC. Voltamos as imagens de OJ como

celebridade na USC e seu status como único/primeiro negro que muitos

tinham conhecido na vida. USC não é vista como uma faculdade politicamente

engajada como outras na Califórnia, era focada no futebol e nos privilégios.

Seus alumni controlam todas as instituições importantes em LA,

resumidamente, o narrador quer nos mostrar que os filhos das pessoas

poderosas e influentes são vizinhos da periferia, mas estão isolados dessa

realidade. E é nesse ambiente que O.J. vai viver por muitos anos.

1967 - Muhammad Ali se recusa a servir ao exército americano na Guerra do Vietnã,

vários atletas negros, como Jim Brown e Bill Russell, seguem seu exemplo e falam

abertamente contra a Guerra e o racismo norte-americano. O esporte se mistura

com a política.

1968 - Atletas negros ameaçam boicotar os Jogos Olímpicos do México, que

aconteceram no mesmo ano, em protesto. John Carlos e Tommie Smith cerram os

punhos em alusão ao símbolo dos panteras negras ao conquistarem o pódio dos

200m livres na mesma competição.

1968 - Em entrevista, Simpson diz ter sido procurado pelo movimento dos direitos

civis dos negros, mas afirma não ter interesse em se envolver em tais questões. Ele

diz querer ser julgado pelas suas habilidades e não pela sua cor. “Não sou negro. Eu

44

sou O.J” se torna uma frase que ele utilizará inúmeras vezes em entrevistas.

NOTA: Colocar a atitude de heróis do esporte e do movimento negro em

oposição a O.J. Simpson, começa a uma série de referências que estabelecem

seu distanciamento e desinteresse pela causa racial. Essa será somente a

primeira vez em que ele começa a se ver como alguém que transcende raça.

1968 - O.J. recebe o Troféu Heismann maior prêmio do esporte universitário.

4 de abril de 1968 - Morte de Martin Luther King é sentida por todos.

NOTA: Em uma escolha de efeitos estéticos e de sentido, são alternadas

imagens de multidões negras recebendo a notícia da morte de Martin Luther

King com O.J. recebendo o prêmio em meio a uma audiência majoritariamente

branca. O luto e a euforia em contraste.

1969 - Simpson é recrutado pelo time Buffalo Bills e passa a jogar na NFL, a liga

profissional de futebol americano.

Anos 50/60 - Imagens e depoimentos de amigos de infância de O.J. estabelecem

que ele teve uma infância humilde nas áreas mais pobres de São Francisco.

Ficamos sabendo de histórias da sua adolescência. Começa aqui a construção de

sua personalidade futura.

1973 - “O renascimento de sua celebridade”, após anos apagados na fria Buffalo,

onde ele sente a falta da Califórnia e dos holofotes. Ainda assim tem uma temporada

perfeita, ganha o apelido The Juice e bate o recorde de 2000 jardas da NFL.

1975 - O.J. vira o rosto da marca Hertz com uma propaganda icônica na televisão

americana e é o primeiro homem negro com tal posição. Publicitários argumentam

que com ele é possível atingir o público negro, com representatividade, e os

brancos, já que é um atleta “contra revolucionário”. Isso catapultou sua carreira

midiática. Ele passa a ser capa de revistas, participar de talk-shows e afins.

45

NOTA: Simpson sobre raça novamente: “Esse tipo de coisa me dói [esperarem

dele uma posição política], mesmo tendo lutado por isso [sua posição

privilegiada]. Seja um homem em primeiro lugar. Talvez seja dinheiro, uma

coisa de classe. O negro é sempre identificado com a pobreza. Mas pensamos

em Willie Mays como negro, mas não Bill Cosby. Portanto, é mais do que

apenas dinheiro. Como negros, precisamos de alguém lá em cima o tempo

todo para nós, mas o que eu estou fazendo não é por princípios ou pelos

negros. Não. Estou cuidando primeiro de O.J. Simpson, sua esposa e sua

família.”

1977 - Ele começa a investir mais em sua carreira de ator com a série A Killing Affair

e o filme Capricorn One. No fim deste ano ele conhece Nicole Brown, mesmo ainda

casado, eles começam a namorar. Essa é a primeira menção a ela, que viria a ser

sua segunda esposa.

[ARTIFÍCIO DE SUSPENSE] - Cena de encerramento do episódio: entre

imagens de arquivo da época, a irmã de Nicole confirma em depoimento para o

documentário como os dois eram apaixonados... “E é isso que torna tudo tão

triste”. Fim da cena, e do episódio um. Esse é o primeiro momento que

ficamos sabendo que houve uma tragédia ligada ao relacionamento.

-------------------------------------- Começa o Segundo Episódio ----------------------------------

1978 - Brentwood, a vizinhança onde O.J. Simpson viria a morar em uma mansão é

caracterizada como um paraíso do subúrbio de Los Angeles, onde políticos e

celebridades vivem.

Janeiro de 1979 - Eula Mae Love é assassinada por policiais em sua casa em meio

a uma disputa por uma conta de gás de 22 dólares. Daryl Frances Gates, o

comissário da LAPD defende os policiais. O crime é considerado legítima defesa. Se

46

torna um novo marco de revolta.

NOTA: Novamente o contraste da vida que Simpson levava e o quão

desconectado da realidade de outros estava. Procuramos a partir daqui por

mais sinais de que o narrador está se encaminhando para o argumento de que

O.J. não poderia ser considerado parte da comunidade por não sofrer os

mesmos preconceitos que eles, e portanto não poderia depois receber os

“benefícios” de ser um deles que viriam no futuro.

1979 - OJ se aposenta do futebol e se divorcia da primeira esposa, Marguerite.

1985 - Nicole e O.J. se casam.

1988 - O primeiro filme da série Corra Que a Polícia Vem Aí é lançado, O.J. faz seu

primeiro papel cômico como um policial e é um sucesso. Policiais comentam que ele

era muito popular entre eles e dava festas caseiras para os oficiais de sua

vizinhança.

Entre abril de 1987 e abril de 1988 - Operação Hammer (Martelo), o chefe do

departamento de polícia institui uma política de guerra contra as drogas fazendo

batidas e apreensões de suspeitos sem a necessidade de mandatos.

Aproximadamente 1600 prisões são feitas em meses, todas nos bairros

majoritariamente negros da cidade.

01 de agosto de 1988 - Rua 39 e Dalton, policiais destroem uma casa onde só

moram mulheres e crianças. Não encontram drogas ou nada criminoso, ainda assim

o prejuízo é incalculável e a LAPD não se responsabiliza.

01 de janeiro 1989 - Áudio de ligação de Nicole sendo agredida para a polícia.

Policial testemunha, e vemos imagens. Descobrimos que essa é a oitava vez em

que ela tenta prestar queixas. O policial que atende o caso tenta prender O.J. em

flagrante, ele foge e se torna um fugido. Com a ajuda de contatos da polícia, ele tem

47

tratamento preferencial, faz um acordo de serviço comunitário, e não vai preso.

3 de março de 1991 - Vemos imagens da agressão contra Rodney King, um dos

casos mais icônicos de violência policial. Quatro policiais, diante de outros tantos,

espancam um homem negro indefeso no chão que havia sido parado por estar

dirigindo acima da velocidade permitida. O caso tem alcance internacional,

causando o departamento a pedir desculpas e novas condutas a serem implantadas.

16 de março de 1991 - Latasha Harlins, uma menina negra de 15 anos é

assassinada por uma comerciante coreana, o crime é filmado por câmeras de

segurança. Ainda assim, a mulher é condenada a pagar com prestação de serviço

comunitário. Isso gera reações inflamadas na comunidade negra.

1990 - Notícias da violência doméstica chegam à mídia, mas são diminuídas por

jornalistas, e pelo próprio O.J., como uma briga de casal não violenta ou um mal-

entendido. Ele admite não ter sofrido nenhum tipo de represália por parte de

patrocinadores. Nicole eventualmente o aceita de volta.

29 de abril de 1992 - Os policiais do caso Rodney King são inocentados por um júri

inteiramente branco em um bairro conhecido por ser habitado por famílias de

policiais. Isso gera novas revoltas violentas em Los Angeles, comércios são

vandalizados, casas são incendiadas e uma multidão marcha contra a polícia.

NOTA: Ao intercalar o tratamento preferencial de O.J. e seu relacionamento

amistoso com o departamento de polícia com o tratamento que outros negros

estavam recebendo pela mesma, o narrador o distancia mais uma vez da

realidade do resto desse grupo racial. Esses eventos serão particularmente

relevantes para a resolução do conflito principal, jurados viriam a admitir que

consideravam inocentar Simpson uma espécie de compensação por King. E a

escolha de retratar esse distanciamento reforça a impressão de que há um

julgamento por parte do narrador que está sendo passado ao público.

48

25 de outubro de 1993 - Já se separando e morando em outra casa, Nicole liga

para a polícia novamente. O.J. está a ameaçando e tentando invadir sua casa.

22 de maio de 1994 - Após idas e vindas, Nicole oficialmente se separa de

Simpson.

[ARTIFÍCIO DE SUSPENSE] Última cena da episódio: Uma amiga de Nicole

conta como ela finalmente conseguiu se desprender do antigo casamento e

começava uma vida nova. “Ela era agora praticamente inatingível para ele, ela

era um espírito livre. Talvez tenha sido isso que causou a sua morte”. Fim do

episódio e primeira menção ao assassinato. Agora sabemos que tipo de

tragédia se desenhava. Entretanto, a cena inicial nos direciona a crer que a

prisão de O.J., na primeira cena do documentário, está relacionada com isso.

Ainda estamos sendo direcionados ao erro pelo documentarista, garantindo

assim mais um momento de virada no futuro.

--------------------------------------- Começa o Terceiro Episódio ----------------------------------

-

13 de junho de 1994 - Dia do assassinato de Nicole Brown e Ron Goldman.

O.J. é considerado o principal suspeito com múltiplas provas físicas e DNA.

NOTA: A reconstituição dos eventos da noite do é feita por meio de legendas

com os horários dos fatos. Exemplo claro de uso de dêiticos temporais para

veracidade. Os dêiticos de localização estão presentes também em todas as

primeiras cenas que estabelecem as locações. Podemos considerar as

imagens da cobertura televisiva da época um tipo de dêitico, já que nos situa

no contexto midiático que os participantes desses eventos estavam. Essas

imagens permeiam o documentário todo, mas são particularmente

interessantes de observar durante o julgamento, já que esse foi integralmente

televisionado.

49

Anexo 1 - Sequência de seis frames de imagens retiradas conforme exibidas na marca de tempo 11 minutos e 32 segundos da terceira parte do documentário O.J: Made In America.

17 de Junho de 1994 - Seu advogado faz um acordo de rendição para O.J. que não

aparece causando um constrangimento público para a polícia, ele é considerado um

fugitivo. Helicópteros de toda mídia perseguem o carro com várias viaturas atrás.

Allen Cowlings, seu melhor amigo, liga de dentro do carro, diz que OJ está

ameaçando se matar e só quer ver sua mãe. A polícia só escolta o carro, não

tentando parar o carro de maneira alguma, considerado comportamento fora do

padrão da polícia. A desconfiança contra a polícia de Los Angeles se mostra nos

depoimentos dos apoiadores de O.J. e no medo dos policiais de tomarem alguma

ação que suje ainda mais sua reputação. Nos viadutos pessoas carregam faixas

com mensagens de apoio a Simpson. Uma multidão o espera em sua casa, para

onde a polícia o encaminha e, depois de horas de negociação, o convence a se

entregar.

50

Julho de 1994 - Durante as audiências preliminares, jornalistas descobrem que o

investigador que encontrou as provas mais importantes da acusação tem um

passado com múltiplas ofensas raciais. Os advogados de defesa decidem usar “The

Race Card”, algo como a cartada racial, ou seja, toda a defesa será baseada no fato

de O.J. ser um homem negro e um dos investigadores um policial racista.

22 de julho de 1994 - Johnnie Cochran, ícone da comunidade negra e estrela de

múltiplos casos envolvendo injustiça racial e a polícia de Los Angeles, se torna o

advogado principal do time jurídico de O.J. Simpson. Ele é parte do que viria a ser

chamado “o time dos sonhos” dos advogados de defesa que defenderiam Simpson a

partir da teoria de uma conspiração policial para enquadrar um homem negro de

sucesso.

Áudio de Simpson durante a seleção do júri: “É interessante a seleção do júri. Eu

nunca na vida olhei para raça. Agora, pela primeira vez na minha vida, eu estou em

uma posição onde eu estou contando os negros do local. Contando os asiáticos. De

repente, o sistema me obrigou a encarar as coisas pelo viés racial.”

NOTA: É no momento em que o caso de assassinato, que tem todas as

evidências de um crime passional, se torna um julgamento da conduta da

polícia de Los Angeles, que finalmente as narrativas convergem e se revela o

projeto dramático do narrador. Não se trata apenas de uma biografia com

aponta a descrição original, suas subtramas são tão ou mais importantes que

a história do personagem central.

A partir desse ponto até o final do episódio quatro o documentário se torna

completamente focado nas minúcias do julgamento, desde a formação do júri,

predominantemente negro, até as testemunhas de acusação desacreditadas e o

DNA refutado. Não entraremos nesse mérito na análise, a fim de não abranger

demais nossa interpretação e pesquisa.

51

15. ANÁLISE DO PROJETO DRAMÁTICO E LÓGICA NARRATIVA

15.1 PROJETO DRAMÁTICO OU METANARRATIVA

Tivesse sido contada somente a história da vida e relacionamentos de O.J.

Simpson ou ainda somente sendo conhecido o histórico de injustiça racial e jurídica

na cidade de Los Angeles, no momento em que chegamos ao ponto crítico da

narrativa, que é o julgamento altamente midiatizado e polarizado pela questão racial,

o espectador poderia ter perspectivas bem diferentes dos fatos.

Não conhecendo nada do histórico abusivo do ex-atleta e de seu

posicionamento em relação a própria cor, a teoria de que esse seria apenas mais

um caso de racismo institucionalizado pela polícia de Los Angeles pode parecer

razoável. Ou ainda, excluindo a narrativa racial completamente até o momento em

que é trazida à tona no julgamento, e levando em conta somente o que sabemos do

histórico da celebridade, pode-se chegar a conclusão que foi uma incompetência do

júri ou mesmo a sua fama e privilégios que o livraram da cadeia.

Quando o narrador nos apresenta as duas narrativas simultaneamente, com

quase que o mesmo tempo de tela, ele está sutilmente dizendo desde o início:

“Atenção! Isso vai ser relevante em algum momento”. Mais do que isso, ao sempre

apresentar a contradição de O.J. Simpson não ter nenhum interesse em ser visto

como um homem negro ou em participar de causas que interessem a esse grupo

social, o narrador já imprime o que identificaremos como seu projeto dramático: Em

meio aos conflitos sócio-raciais de uma Los Angeles dividida, um homem rico e

privilegiado se beneficiou de uma reação social resultada por anos de violência

policial e injustiça racial. O narrador é crítico ao tratamento que o Departamento de

Polícia dá aos cidadãos negros, mas mais ainda à atitude de Simpson e de seus

advogados.

Ele falha ao causar a sensação de que existe uma possibilidade de inocência,

o documentário traz um número desequilibrado de depoimentos e evidências que

apontam para a culpa. Entretanto, ele consegue construir a dicotomia dos lados

opostos. Nós entendemos de onde vem a crença dos apoiadores de O.J. Assim

como eles, nós fomos apresentados a provas de que a justiça e a polícia podem ser

52

parciais em questões raciais. Mas como espectadores oniscientes (da seleção de

fatos que nos é ofertada) também sabemos que se trata de um crime

completamente possível devido ao histórico da vítima e do acusado, como as

famílias das vítimas se sentem.

15.2 CONFIGURAÇÃO DOS EPISÓDIOS

Convenientemente, o documentário O.J: Made In America é dividido em cinco

capítulos, esses não são nomeados e somente se distinguem pelo subtítulo “Parte

Um a Cinco”. Isso deixa ainda mais clara a relação com as sequências-tipo

narrativas, já que a divisão quinária é a mais comum entre os autores estudiosos da

narrativa utilizados. Em uma tabela comparativa abaixo e uma descrição da função

de cada episódio, podemos relacionar as etapas com as divisões narrativas.

Legenda: Tabela de produção própria para efeito comparativo das teorias de sequências-tipo.

Os nomes escolhidos pela análise para identificar os episódios refletem a sua

função narrativa assim como o conteúdo temático daquele para os protagonistas. O

primeiro episódio retrata toda a carreira bem-sucedida no esporte que viria a torna

O.J. Simpson uma celebridade, assim como relatos da sua infância e adolescência

na periferia de São Francisco. O constrói como alguém que conquistou tudo sozinho

vindo do nada, e aqui vemos a história dessa “Ascensão”. Ao mesmo tempo somos

53

contextualizados com o aumento da população negra em Los Angeles, os bairros

que habitam e o relacionamento com as autoridades da cidade desde os anos 50 até

meado dos anos 70. Conhecemos algumas figuras e situações que seriam pilares do

que viria a se tornar o Movimento Pelos Direitos Civis dos Negros. A tensão racial

vai se construindo também na nossa narrativa, mas não chega ao seu pico.

É no segundo episódio que os eventos mais importantes para o conflito

principal da trama se acumulam. Observamos as revoltas violentas que ocorreram

na cidade ao longo dos anos, quase todas iniciadas após um caso de injustiça

jurídica ou violência policial. Alguns desses casos, Rodney King e Latasha Harlins,

há pouco mais de um ano antes do assassinato de Nicole Brown e Ron Goldman.

Observamos o que está sendo construído para se tornar uma situação insustentável

de tensão racial. Enquanto isso, vemos o “Auge” da carreira midiática de O.J. e de

seu relacionamento com Nicole. Do casamento às primeiras brigas, culminando com

as agressões físicas e o assassinato dela. É com essa preparação que chegamos a

terceira parte.

“O Crime” é o ponto central da narrativa daqui adiante, além de ser o ponto de

convergência entre as duas narrativas que caminhavam em paralelo. Esse episódio

cobre a reconstituição e depoimentos do que teria acontecido até o começo do

julgamento. A comunidade negra fica pessoalmente investida na campanha para

inocentar O.J. Simpson, muitos afirmando que sim, isso acontecia por um motivo

muito maior do que acreditar nele. Já Simpson, pela primeira vez em sua história

começa a se apoiar no fato de ser negro, característica que renega anteriormente

por não considerar importante já que sua celebridade transcendia fatores raciais.

Essa discussão se torna central no caso criminal, fazendo sombra às evidências e

outros fatores.

O título escolhido para a quarta parte foi “O Julgamento de Uma Nação”, já

que aqui temos um episódio exclusivamente sobre o drama no tribunal. Foi o

chamado “Julgamento do Século” pela mídia americana, seja por sua duração,

repercussão ou importância social. Não era só o julgamento de Simpson, mas de

toda uma cidade, e essa cidade era só uma amostra da realidade que o país vivia.

Segundo informações de uma pesquisa na semana do veredito replicada no

documentário, 77% dos americanos brancos acreditavam na culpa de Simpson,

54

enquanto 77% dos negros o declaravam inocente. E sim, o título escolhido também

é uma referência não tão sutil ao clássico (e infame) filme de D.W. Griffith, O

Nascimento de Uma Nação (1915)5.

Apesar de não citado na fase de análise da linha do tempo, o quinto episódio

enfoca a vida pós-julgamento de O.J. e as consequências da polarização que o

evento causou. Do momento em que o veredito é anunciado e as ruas da cidade de

Los Angeles são tomadas por comemorações de um lado e repúdio de outro. Até a

decadência de Simpson, já que, apesar do veredito de inocente, toda a mídia e o

seu antigo círculo social acredita na sua culpa. Anos depois, no ano de 2007 e com

61 anos de idade, ele invade com amigos um quarto de hotel em Las Vegas e rouba

artigos de colecionador de comerciantes que teriam objetos pessoais seus. Eles

mantêm os comerciantes no quarto e estão armados. Ele acaba indiciado por

sequestro e assalto a mão armada, sua sentença é de 33 anos no total. Finalmente

se encerra o gancho deixado na primeira cena do documentário, sabemos o real

motivo dele estar preso nas imagens mais atuais6.

A sentença é considerada exagerada para o porte do crime, por isso muitos

consideram uma compensação jurídica ao fato do júri ter o inocentado pelo

assassinato da ex-mulher e Ron Goldman. É um ciclo que se fecha. Quanto a

comunidade negra, hoje em dia a crença em sua inocência é quase nula e os líderes

do Movimento dos Direitos Civis concluem que a toda a situação só deteriorou ainda

mais a imagem do homem negro e as relações interraciais no país. Por isso o título

“Uma (Não) Resolução”. É o fim, mas ninguém teve sua realização final e nenhum

conflito foi efetivamente resolvido.

5 O Nascimento de Uma Nação é considerado um clássico do cinema mudo que retrata o período da Guerra

Civil Americana, que dividiu o país entre os estados abolicionistas e escravagistas. O filme é altamente criticado por retratar os afro-americanos como ignorantes e agressivos, além de usar atores brancos com maquiagem negra (a chamada black face) para interpretar esses personagens. A Ku Klux Klan também é considerada heroica no filme. 6 No dia 01 de outubro de 2017, o estado de Nevada concedeu a liberdade condicional a Orenthal James

Simpson, após 9 anos de pena cumprida.

55

16. CONCLUSÕES

Começamos essa pesquisa da dúvida sobre como identificar as escolhas

narrativas e em um produto documental jornalístico, visto que estas não parecem tão

claras como a narrativa de ficção, afinal, estariam envoltas pela objetividade

conferida pela função jornalística. Primeiramente, foi necessário definir quando

poderíamos chamar um documentário de jornalístico, já que não há consenso nesse

formato sendo exclusivamente informativo. Após estabelecermos essa possibilidade

com autores que criaram um método de classificação, o documentário O.J: Made In

America foi o escolhido como objeto de estudo. Pudemos encontrar em Motta (2013)

uma metodologia de análise narrativa jornalística que partia dos autores da narrativa

clássica, unindo assim as duas frentes: jornalismo e ficção. Não foi de interesse da

pesquisa seguir pelo caminho da ficção, mas foi introduzida a questão do quanto a

subjetividade do autor aparecerá em ambos.

Utilizando apenas um recorte temático de uma série documental pudemos

verificar o uso de efeitos de sentido já na escolha ordem em como são contados os

eventos. Já os efeitos de veracidade estão no uso de dêiticos, de estatísticas e na

ausência de um narrador presente, esse substituído por depoimentos e documentos

que conduzem a trama. Todas essas possibilidades foram exploradas nos capítulos

de dissertação sobre cada etapa do método, somente algumas foram exemplificadas

durante a análise, que se focou mais na construção de sentido pretendida pelo

narrador ausente (documentarista).

A reconfiguração dos episódios nos permitiu ver como eles se enquadram na

forma da narrativa clássica de ficção, sendo essa também um artifício da narrativa

jornalística, encontrando um elo entre o audiovisual informativo e o de

entretenimento. Foi feita uma releitura da sinopse de cada episódio, de forma a

encaixar nas atribuições de nossas personagens.

Enquanto essa pesquisa se trata mais de identificar meios com quem o

jornalismo conduz uma narrativa documental do que suas razões ou ainda

consequências, é apenas um primeiro passo para caminhos de pesquisa mais

amplos. Uma possibilidade é entrar na discussão da diferença de construção da

narrativa ficcional, comumente motivada pelo entretenimento, e a jornalística e seu

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viés informacional. O conceito que estão na intersecção dos dois já existe, é o

infotainment, a junção da informação factual com o formato de entretenimento.

Proponho uma comparação entre narrativas que contêm a mesma história,

como é o caso do filme ficcional, baseado em fatos reais, Monster (2013), com

Charlize Theron no papel principal, e os documentários Aileen: Life and Death of a

Serial Killer (2003) e Aileen Wuornos: The Selling of a Serial Killer (1992). Os três

filmes contam a mesma história real, a biografia e os crimes da assassina em série

Aileen Wuornos. A factualidade da história não quer dizer que a forma da narrativa

seja a mesma e pode ser interessante explorar essas diferenças de escolhas

estéticas, assim como as intenções de sentido dos realizadores. Os filmes acima são

apenas exemplos, essa metodologia poderia ser aplicada em qualquer obra que

tenha mais de uma versão. É o caso da própria história que analisamos. O seriado

American Crime Story: The People vs. O.J: Simpson é a contrapartida ficcional do

documentário analisado.

Essa foi uma pesquisa para descobrir os meios - os quais foram identificados

com sucesso - e não necessariamente os fins. É uma porta que foi criada para

pesquisas posteriores, essas sim que possibilitem maiores reflexões. Dentro do seu

pequeno ciclo, essa narrativa se encerra deixando em aberto o gancho para uma

sequência.

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