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1 TERRA ESTABILIZADA COM CIMENTO: ESTADO DA QUESTÃO Samantha Orui aluna de mestrado em habitação, Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) [email protected] Tema: o uso da terra como material construtivo em sistemas de vedação vertical Palavras chave: terra crua, solocimento, normas técnicas, impacto ambiental Resumo: Estima-se que 1/3 da população mundial vive em casas de terra. Seu uso, como material construtivo, remete a mais de uma dezena de técnicas construtivas: da Ásia a América, passando pela Europa, África e Oceania, constrõe-se com terra. Estudos recentes comprovam que a arquitetura vernacular concatenou o ótimo desempenho térmico da terra com os benefícios do desenho solar passivo e, assim, durante milênios, respondeu exigências de conforto ambiental, nas mais variadas regiões do planeta. A partir do início do séulo XX, estudos sobre a estabilização química da terra por meio da adição de materiais industrializados começaram a ser realizados. Verificou-se que as técnicas construtivas em terra crua que melhor respondem a estabilização química por meio da adição de cimento são as técnicas de terra compactada, tanto em forma de paredes monolíticas como em forma de blocos. Contudo, a constatação de que o cimento é um material não reciclável e que seu uso representa 5% das emissões dos gases do efeito estufa faz ressurgir uma série de outras novas abordagens sobre a necessidade ou não, da estabilização química da terra. A seguir, será apresentado um panorama geral, dos principais tópicos que vem sendo abordados em publicações sobre o uso da terra como material construtivo, tendo como fio condutor aspectos normativos relacionados a adição de cimento. 1. INTRODUÇÃO Estratégias de mitigação e adaptação as mudanças climáticas assumem como premissa a urgência em reavaliar o ambiente construído sob a ótica de seu impacto na biosfera. A informação de que o setor construtivo responde por 60% das emissões dos gases do efeito estufa vem estimulando iniciativas voltadas à mensuração do impacto ambiental dos materiais construtivos (ISO 14040) e ao uso de sistemas de avaliação da sustentabilidade da arquitetura (ex.: CASBEE). Os relatos de que o ciclo de vida do cimento chega a representar 5% das emissões dos gases do efeito estufa (GEEs) (Cement Sustainability Initiative) e que, em alguns casos, entre 25% e 45% da energia consumida nas grandes cidades é utilizada para suprir o baixo desempenho térmico de residências (United Nation Environmental Programme apud Lax, 2010), desperta. No momento em que o governo federal estimula a produção habitacional através do Programa Minha Casa Minha Vida e que estão em vigor dois sistemas brasileiros de avaliação de sustentabilidade da arquitetura, a Certificação de Construção Sustentável - Processo AQUA (Fundação Vazolini) e o Selo Casa Azul (Caixa Econômica Federal), torna-se relevante verificar as vantagens e desvantagens da construção com terra.

Terra Estabilizada Com Cimento

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TERRA ESTABILIZADA COM CIMENTO: ESTADO DA QUESTÃO

Samantha Oruialuna de mestrado em habitação, Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT)

[email protected]

Tema: o uso da terra como material construtivo em sistemas de vedação vertical

Palavras chave: terra crua, solocimento, normas técnicas, impacto ambiental

Resumo:

Estima-se que 1/3 da população mundial vive em casas de terra. Seu uso, como material construtivo, remete a mais de uma dezena de técnicas construtivas: da Ásia a América, passando pela Europa, África e Oceania, constrõe-se com terra. Estudos recentes comprovam que a arquitetura vernacular concatenou o ótimo desempenho térmico da terra com os benefícios do desenho solar passivo e, assim, durante milênios, respondeu exigências de conforto ambiental, nas mais variadas regiões do planeta. A partir do início do séulo XX, estudos sobre a estabilização química da terra por meio da adição de materiais industrializados começaram a ser realizados. Verificou-se que as técnicas construtivas em terra crua que melhor respondem a estabilização química por meio da adição de cimento são as técnicas de terra compactada, tanto em forma de paredes monolíticas como em forma de blocos. Contudo, a constatação de que o cimento é um material não reciclável e que seu uso representa 5% das emissões dos gases do efeito estufa faz ressurgir uma série de outras novas abordagens sobre a necessidade ou não, da estabilização química da terra. A seguir, será apresentado um panorama geral, dos principais tópicos que vem sendo abordados em publicações sobre o uso da terra como material construtivo, tendo como fio condutor aspectos normativos relacionados a adição de cimento.

1. INTRODUÇÃO

Estratégias de mitigação e adaptação as mudanças climáticas assumem como premissa a urgência em reavaliar o ambiente construído sob a ótica de seu impacto na biosfera. A informação de que o setor construtivo responde por 60% das emissões dos gases do efeito estufa vem estimulando iniciativas voltadas à mensuração do impacto ambiental dos materiais construtivos (ISO 14040) e ao uso de sistemas de avaliação da sustentabilidade da arquitetura (ex.: CASBEE).

Os relatos de que o ciclo de vida do cimento chega a representar 5% das emissões dos gasesdo efeito estufa (GEEs) (Cement Sustainability Initiative) e que, em alguns casos, entre 25% e 45% da energia consumida nas grandes cidades é utilizada para suprir o baixo desempenho térmico de residências (United Nation Environmental Programme apud Lax, 2010), desperta.

No momento em que o governo federal estimula a produção habitacional através do Programa Minha Casa Minha Vida e que estão em vigor dois sistemas brasileiros de avaliação de sustentabilidade da arquitetura, a Certificação de Construção Sustentável - Processo AQUA (Fundação Vazolini) e o Selo Casa Azul (Caixa Econômica Federal), torna-se relevante verificar as vantagens e desvantagens da construção com terra.

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Esse artigo não tem como objetivo aplicar a metodologia proposta pelos sistemas brasileiros.

Assume-se que os sistemas de avaliação da sustentabilidade da arquitetura desestimula: uso excessivo de materiais não recicláveis e geração de grande quantidade de resíduos sólidos, aexploração irracional dos recursos naturais e elevada emissão de GEEs, e uso indiscriminado de substâncias que prejudicam a saúde e degradam o meio ambiente. As vantagens da arquitetura de terra estão relacionadas exatamente ao que os sistemas de avaliação de sustentabilidade da arquitetura incentivam: seu ótimo desempenho térmico favorece, inclusive, a eficiência energética das edificações.

Em 2008, Shuzo Murakami e Tashiharu Ikaga avaliaram 9(nove) tipologiais residencias, utilizando a metodologia CASBEE for Home (Detached House). O relatório Evaluating Environmental Performance of Vernacular Architecture through CASBEE evidencia a baixa performance ambiental da arquitetura moderna e confirma o ótimo desempenho ambiental de alguns dos mais representativos exemplares da arquitetura vernacular.

Este artigo tem como objetivo específico apresentar um breve panorama do que vem sendo divulgado sobre arquitetura de terra, tendo como recorte a prática da estabilização química por meio da adição de cimento Portland. Baseia-se numa pesquisa bibliográfica que inclui o intercâmbio cultural e científico, com Horst Schoroeder, da Bauhaus University of Weimar, que compartilhou o artigo Building codes and standards in earth building - The current situation in Germany e com Clare Lax, responável pela Life Cycle Assessment of rammed earth divulgada em 2010. Destaca-se que, para a elaboração do artigo, optou-se pela consulta a ASTM-E2392M-10, 2010 (Standard Guide for Design of Earthen Wall Building Systems), a norma peruana E.080 (adobes) e as normas brasileiras (ABNT) sobre solocimento.

2. O USO DA TERRA COMO MATERIAL CONSTRUTIVO

O uso das terra como material construtivo, assim como o uso do bambu, da madeira e da pedra, faz parte da cultura construtiva de povos das mais variadas regiões do planeta. Ao contrário do que se imagina, as construções de pedra não são as únicas que resistiram as interpéries e chegaram até o século XXI: as paredes de um dos mais famoso pontos turísticos da Índia, o Taj Mahal, não foram construídas de pedra e, sim, de terra crua.

A terra é o material construtivo mais abundante que se encontra na natureza. Seu uso vem sendo aprimorado (tanto pelo saber empírico passado de geração a geração por meio da arquitetura vernacular quanto pela pesquisa científica contemporânea) e diversos ensaios vem sendo realizados com o intuito de subsidiar a elaboração de normas técnicas e regulamentar seu uso.

Chama a atenção o fato de que o Peru é o único país latino americano que possui uma norma específica para a construção de casas de adobe (E-080, 2000) e que essa norma é citada na Standard Guide for Design of Earthen Wall Building Systems (ASTM-E2392M-10, 2010). De acordo com Schroeder et al (2011), outros países que também regulamentaram o uso da terra como material construtivo são: Nova Zelândia, França, Índia, Nigéria, Sri Lanka, Zimbabwe, Austrália, Espanha, Suiça e Alemanha. Além destes, a ASTM E2392M também cita: China, Equador e EUA (Califórnia e Novo México). O Brasil não é citado, porque a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ao abordar a terra como material construtivo,

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assume como premissa que o cimento faz parte da mistura, a qual denomina solocimento.

O solocimento representa uma tentativa de aproximação entre a indústria do cimento e a arquitetura de terra: há normas brasileiras específicas sobre o assunto, elaboradas em consonância com os padrões estabelecidos pela Portland Cement Association (PCA), tanto para vedações verticais como para pisos.

2.1 Aspectos gerais

As técnicas construtivas em terra crua podem ser divididas em três grandes grupos: terra trabalhada no local e utilizada de forma monolítica (ex.: cob e taipa de pilão), terra em forma de alvenaria (ex.: adobe e bloco de terra comprimida) e terra como preenchimento de uma estrutura (ex.: pau-a-pique e bahareque). Para cada grupo, há uma consistência e uma plasticidade ideal, de acordo com exigências (trabalhabilidade) relacionadas ao sistema construtivo.

O solo é resultante da ação conjunta de agentes interpéricos sobre as rochas e é constituído por partículas minerais e orgânicas. Sua plasticidade e coesão são influenciadas diretamente pelos teores de areia, silte e argila. A argila é a partícula mineral que atua como aglomerante e o silte e a areia, como agregados. Há três tipos de argila: caulinita, ilita e montmorilonita. A argila montomorilonita em contato com a água apresenta expansão significativa, por isso, ao secar, retrai até 25%; é isso que torna solo composto predominantemente por argila montomorilonita, o menos indicado para a construção.

classificação proporçãoproporçãoproporçãoclassificação

Olarde e Guzman (1993, p.47)

E.080 Corrêa (2006)

argila 15 - 20% 10 - 20% 22%

silte 10 - 25% 15 - 25% 31%

areia 50 - 70% 55 - 70% 47%

pedrisco pouca ou nenhuma - -

matéria orgânica máximo 2% - -

Tabela 1: proporção adequada de argila, silte e areia, segundo alguns autores.

Existem diversos testes que podem ser realizados in loco e sem o uso de equipamentos sofisticados para descobrir algumas das principais características do solo disponível para a construção. As principais características verificáveis são: granulometria, plasticidade, coesão e compactabilidade. Os testes prescritos, em geral: teste de adesão, teste de rigidez, teste de retenção de água, teste de consistência, teste de coesão e teste de retração.

Estabilizar a terra é compreender o teor das partículas minerais e suas características. Os principais objetivos dos métodos de estabilização da terra são: aumentar a resistência

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mecânica, aumentar a coesão e a resistência a erosão, e reduzir a pororsidade e as variações de volume. Há três tipos de estabilização: mecânica, física e química. Um exemplo de estabilização mecânica é a adição de fibras. A palha, por exemplo, age como ponte de transferência das tensões pelas fissuras e, por isso, melhora o comportamento mecânico da terra: ao reduzir a velocidade de propagação das fissuras, aumenta a capacidade de resistência pós-fissuração do material e diminue a retração por secagem, seguindo o mesmo princípio do uso de fibras em concretos. A estabilizacão física pode ser descrita como a alteração da terra através da mistura controlada de partículas de diferentes composições e granulometrias, ou seja, com o que a engenharia denomia “empacotamento”. A estabilização química é a ação que busca modificar as propriedades da terra por meio de reações químicas, tal como o faz o cimento, o cal e o betume.

2.1 Estabilização química: solocimento

O solo pode ser estabilizado com diversos materiais: a palha, o esterco e a caseína fazem parte do repertório dos construtores naturais. Dentre os materias processados utilizados para estabilizar solos, os mais conhecidos são o cal e o cimento, embora existam estudos sobre o uso do gesso e do betume.

Data de 1989, o primeiro experimento com paredes monolíticas de terra estabilizada com cimento e compactadas mecanicamente (Lax, 2010, p.11): foi concebido por David Easton e ficou conhecido como PISE (Pneumatically Impacted Stabilised Earth). E, segundo Segantini et al (2007), já em 1950, a construção do Hospital Adriano Jorge1 (Manaus, Amazonas, Brasil) foi realizada em paredes monolíticas de solocimento compactadas manualmente. A norma brasileira que trata sobre paredes monolíticas de solocimento sem função estrutural é a ABNT NBR 13553:1996.

Já o bloco de terra comprimida (BTC) foi produto, assim como a prensa CINVA-RAM, de um projeto de pesquisa sobre materiais de construção de baixo custo, coordenado por Raúl Ramírez, no Centro Intermericano de Vivienda (CINVA), na década de 50, na Colômbia. É possível que esta tenha sido uma das principais referências para a elaboração da ABNT NBR 10833:1989 - Fabricação de tijolo maciço e bloco vazado de solocimento com utilização de prensa hidráulica - Procedimento e demais normas brasileiras sobre o assunto (vide anexo).

De acordo com a ABNT, o solocimento é indicado, exclusivamente, para técnicas construtivas baseadas na compactação do solo.

Para todos as outras técnicas construtivas, seu uso não convém: a adição de cimento altera a trabalhabilidade da terra, ignora a capacidade aglomerante da argila e reduz a permeabilidade ao vapor de água do elemento parede. Sem esquecer-se do fato de que, ao ser adicionado a terra, o cimento faz com que esta se torne, definitivamente, imprópria para a agricultura e deixe de ser considerada um material de construção 100% reciclável.

Assim esclarece a ASTM no item 6.1.1:

1 Silva (1988, p. 657-658) afirma que a obra foi iniciada em 1948.

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“soils for earthen building systems are a mixture of a binder (clay), and temper soils of silt, sand, and gravel. These mistures may be naturally occorring local soils or engineered by mixing different soils. Sources for the soils include on-site horizons, by-products of sand and gravel quarrying, and alluvial deposits. Some clays are highly expansive (montmorillonites) or moderately expansive (illites) when wetted, and thus problematic for earthen construccion. Ideally, a non-expansive kaolinite clay should be used. The intermixture of small amounts of lime, bitumen or cement will negate the expansive porperties of swelling clays, but by the same chemical mechanism negate the binding and other beneficial properties of the clay. Stabilizing binder should thus generally be used only when there is no other viable strategy for meeting the project requirements. Care should be taken to aboid adverse affects on the capacity for food production when considering the use of loams and other soils that are suitable for agricultural purposes.” (ASTM-E2392M-10)

Do ponto de vista da sustentabilidade, pode-se dizer que o aumento da quantidade de cimento adicionado a terra resulta em um aumento linear do impacto ambiental, no caso das paredes monolíticas de solocimento (Lax, 2010, p.41).

Sobre adição do cimento a terra, assim posiciona-se a ASTM no item 6.3.1:

“There are historic, multi-story apartment building made with unstabilized earth that have provided hundred of years of useful service (for example Taos Pueblo, United States, and Shibam, Yemen), demonstrating that unstabilizes earthen construction can be much more durable than is generally thought. In order to minimize financial costs to building owners, complication and waste during construction and pollution costs to the ecosystem, stabilization by cement, lime or gypsum should only be used where other strengh and durability measures (such as roof overhangs, reinforcing, reneweable plasters, or thicker wall) cannot archieve the same strengh and durability goals.” (ASTM-E2392M-10)

A terra é um material que não pode ser estandardizado, porque seu comportamento varia de acordo com sua granulometria e de acordo com as propriedades físicas e químicas das partículas que a compõem. Apesar do avanço no setor de mineração e da disponibilidade de plantas industriais capazes de separar e classificar com precisão diferentes partículas que compõem o solo e as rochas, é inimaginável que tal tecnologia seja aplicada a construção com terra. Nota-se que a bibliografia consultada aborda o comportamento físico-mecânico de componentes de vedação fabricados a partir da terra estabilizada quimicamente pela adição de cimento e que são poucas as informações disponíveis sobre a reação química entre o cimento, a argila e o silte, tal como evidencia Silva (1988, p.659):

“o processo de establização do solo por um aglomerante hidráulico é um fenômeno ainda não totalmente conhecido, fazendo-se apenas algumas hipóteses. A explicação mais aceita é de que, pela hidratação do cimento, há uma mudança da carga elétrica no meio argiloso, através da troca de cátions, havendo uma atração entre as partículas, fazendo com que se reúnam, formando partículas maiores, determinando, desta forma, a perda de plasticidade da mistura. O produto final se caracteriza pela formação de cadeiras hexagonais que isolam, em seu interior, partículas que não chegam a ser aglutinadas, impedindo sua dilatação pela impermeabilidade.”

De todo modo, cabe ressaltar que, através de ensaios, Olarde e Guzman (1993) comprovaram que a adição (entre 0,2% a 4%) de cimento diminui a retração da mistura durante a secagem, evita o colapso de corpos de prova após a absorção de 10% de água e eleva a resistência a

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compressão dos corpos de prova para até 74kg/cm2 (7,25MPa) em solos em que a proporção entre areia, silte e argila é adequada.

Sobre o teor de cimento misturado a terra, pode-se dizer que este varia de acordo com o solo, podendo chegar até a 10% da mistura. Existe uma série de procedimentos que devem ser adotados com o intuito de averiguar a proporção ideal, para cada situação, e, segundo Segantini et al., as normas de dosagem brasileiras baseiam-se nas normas da Portland Cement Association (PCA).

observação: de acordo com Olarde e Guzman (1993, p.47): o uso do cal (4%) em solos com muito silte e muita argila diminue a retração, não provoca colapso após absorção de água e aumenta a resistência a compressão; contudo, o uso do cal não é indicado para solos estabilizados fisicamente pela adequada proporção entre argila, silte e areia e para solos arenosos, porque desfavorece a resistência a compressão e provoca colapso após absorção de água.

2.3 Desempenho mecânico: comparando adobes com BTCs

A ABNT estabelece que a resistência média a compressão de paredes monolíticas de solocimento deve ser igual ou superior a 1,0MPa (NBR 13553:1996) e que, no caso dos tijolos maciços ou blocos vazados de solocimento, igual ou superior a 2,0MPa (NBR 10836:1994): as dimensões variam de acordo com a prensa utilizada.

A ASTM-E2392M não faz referência direta a nenhum técnica construtiva, atentando-se apenas a boas práticas no que se refere a sismoresistência das construções em terra crua. Por isso, não informa parâmetros de resistência a compressão seja do elemento, seja do sistema construtivo.

A E.080 estabelece que a resistência a compressão do adobe deve ser igual ou superior a 12kg/cm2, cita adobes de 38x18x8cm e sugere que o comprimento do adobe seja o dobro da largura e que a relação entre largura e altura esteja entre 4 e 1.

Adobes são blocos de terra crua: suas dimensões e formas variam de acordo com a cultura construtiva e a região em que são produzidos. Apesar de serem comumente retangulares, há referências sobre adobes trapezóidais.

Com o intuito de verificar a viabilidade técnica de utilizar adobes de para a construção de habitações rurais na região sul do Estado de Minas Gerais, onde predomina o latossolo vermelho amarelo distrófico - LVAd, CORRÊA (2006) realizou uma série de ensaios.

A pesquisadora recolheu 3 amostras de terra com diferentes granulometrias e verificou o comportamento de cada amostra após o acrescimo de areia média. Conclui que: para a amostra formada originalmente por 22% de argila, 31% de silte e 47% de areia, o acrescimo de areia comprometeu a resistência a compressão e, em alguns casos, resultou em adobes cuja resistência média a compressão foi inferior a 1,7MPa.

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Com as amostras de terra recolhidas e as amostras de terra em que a areia média foi adicionada, a pesquisadora solicitou a produção de adobes de 3 diferentes tamanhos, os quais foram submetidos a distintas condições de armazenamento durante a secagem (ambiente completamente fechado, galpão aberto e sujeito a interpéries). Concluiu que os adobes de 23x11x5,5cm foram os que apresentaram melhor desempenho mecânico, pois a única situação em que a amostra não alcançou resistência a compressão igual ou maior do 2,0MPa foi a amostra realizada com o solo formado por 22% de argila, 31% de silte e 47% de areia.

Um dado curioso é que as amostras com solo muito argiloso, secas em local fechado, com dimensão de 29x14x14cm, chegaram a apresentar resistência média a compressão igual a 5MPa, o dobro do valor encontrado em todas as outras situações ensaiadas para adobes desta medida.

técnica construtivanorma técnicanorma técnicanorma técnica

técnica construtivaABNT E.080 ASTM

adobe - 12 kg/cm2 = 1,9MPa -

bloco de terra comprimida (BTC) 2MPa = 20.4MPa - -

parede monolítica de solocimento 1MPa = 10.2MPa - -

outros - - -

Tabela 2: valores de referência de projeto, para resistência a compressão da unidade.

observação: o esterco é utilizado para aumentar a coesão em solos com muito silte e pouca argila, uma vez que, em situações como esta, o acrescimo de argila não se mostra eficaz, devido a própria estrutura atômica e molecular do silte. Embora esteja contemplado na ASTM-E2392M-10, não há conhecimento de pesquisas científicas sobre o uso do esterco (nem da caseína) e seu uso foi consagrado pela história e pela cultura construtiva da arquitetura vernacular.

3. CONCLUSÃO

No Brasil, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ao abordar a terra como material construtivo, assume como premissa que o cimento faz parte da mistura, a qual denomina solocimento. Contudo, o uso do cimento como estabilizante de solos nem sempre é adequado: pode-se afirmar que seu uso em fechamentos verticais está associado a técnicas construtivas caracterizadas pela compactação do solo (taipa de pilão, PISÉ e BTC), pois a adição de cimento altera a trabalhabilidade da terra, tornando-a pouco plástica, o que inviabiliza todas as outras técnicas construtivas com terra crua. Sendo assim, dado um contexto em que há quase 20 diferentes formas de se utilizar a terra crua como material construtivo, há que se concluir que não há como associar a arquitetura de terra exclusivamente ao solocimento. Por isso, é compreensível que Schroeder et al (2011) não faça referência as normas brasileiras.

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Do ponto de vista de seu desempenho mecânico, pode-se afirmar que sua resistência a compressão, quando moldada em blocos de vedação, aproxima-se da resistência a compressão de outros componentes construtivos (vide Tabela 3).

componente construtivo

resistência a compressãoresistência a compressãoresistência a compressão

componente construtivo norma (resistência média mínima)

norma (resistência média mínima)

ensaio (resistência média

máxima encontrada)

tijolo maciço cerâmico para vedação NBR 6460:1983 2,5MPa -

bloco de concreto para vedação NBR 6461:1983 2,5MPa -

bloco de concreto celular autoclavado NBR 13439:1995 2,5MPa -

bloco de terra comprimida NBR 10836:1994 2,0MPa -

adobe E.080 1,9MPa 5MPa

Tabela 3: resistência a compressão, de diferentes componentes contrutivos.

Anexo

São elas: ABNT NBR 10834:1994 - Bloco vazado de solo-cimento sem função estrutural - Especificação, ABNT NBR 10835:1994 - Bloco vazado de solo-cimento sem função estrutural - Forma e dimensões - Padronização, ABNT NBR 10836:1994 - Bloco vazado de solo-cimento sem função estrutural - Determinação da resistência à compressão e da absorção de água - Método de ensaio, ABNT NBR 10832:1989 - Fabricação de tijolo maciço de solo-cimento com a utilização de prensa manual - Procedimento, ABNT NBR 10833:1989 - Fabricação de tijolo maciço e bloco vazado de solo-cimento com utilização de prensa hidráulica - Procedimento, ABNT NBR 8491:1984 - Tijolo maciço de solo-cimento - Especificação e ABNT NBR 8492:1984 - Tijolo maciço de solo-cimento - Determinação da resistência à compressão e da absorção d'água - Método de ensaio.

Outras normas brasileiras sobre o solocimento são: ABNT NBR 13554:1996 - Solo-cimento Ensaio de durabilidade por molhagem e secagem, ABNT NBR 13555:1996 - Solo-cimento - Determinação da absorção d'água, ABNT NBR 12023:1992 - Solo-cimento - Ensaio de compactação - Método de ensaio, ABNT NBR 12024:1992 - Solo-cimento - Moldagem e cura de corpos-de-prova cilíndricos - Método de ensaio, ABNT NBR 12253:1992 - Solo-cimento - Dosagem para emprego como camada de pavimento - Procedimento, ABNT NBR 12254:1990 - Execução de sub-base ou base de solo-cimento - Procedimento, ABNT NBR 11798:1990 - Materiais para sub-base ou base de solo-cimento - Especificação, ABNT NBR 12025:1990 - Solo-cimento - Ensaio de compressão simples de corpos-de-prova cilíndricos - Método de ensaio.

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Bibliografia

ASTM International, Standard Guide for Design of Earthen Wall Building Systems; ASTM-E2932M-10, 2010

BARBOSA, Normando Perazzo; GHAVANI, Khosrow. Terra Crua para Edificações. In: ISAIA, Geraldo C.. Materiais de Construção Civil e Princípios de Ciência e Engenharia de Materiais. São Paulo: Ibracon, 2007. Cap. 45, p. 833-1712. V.2.

CORREA, Andréa Aparecida Ribeiro et al. Avaliação das propriedades físicas e mecânicas do adobe (tijolo de terra crua). Lavras: Universidade Federal de Lavras, 2006.

Ministerio de Transportes, Comunicaciones, Vivienda y Construcción. Adobe: Norma Técnica de Edificación E-080. Lima, Peru: Ministerio de Transportes, Comunicaciones, Vivienda y Construcción / Servicio Nacional de Capacitación para la Industria de la Construcción [SENCICO].

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OLARTE, Jorge Luis de; GUZMÁN, Evelin. Manual de edificación con tierra armada: diseño, cálculo y construcción con el sistema CET. Madrid: Comunidad de Madrid, 1993.

SCHOROEDER, Horst. Building codes and standards in earth building - The current situation in Germany, 2011

SILVA, Maristela Siolari. A terra crua como alternativa sustentável para a produçao de habitação social. 2001. 129 f. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2001.

Curriculo do autor

Samantha Orui, graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Atualmente, cursa mestrado profissional em Habitação: Tecnologia no Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT).