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Territorialidade e conflito na pesca embarcada: um estudo de caso sobre os pescadores de São José do Norte-RS e suas analogias sobre animais marinhos Gianpaolo Adomilli 1 Este artigo pretende levantar algumas questões relativas às mudanças sociais em populações tradicionais pesqueiras do litoral brasileiro, através de minha experiência etnográfica junto a trabalhadores da pesca embarcada, habitantes do município de São José do Norte, situado no extremo sul do Brasil, entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico 2 . Neste estudo de caso, busco demonstrar como os mesmos vivenciam uma situação específica que diz respeito a uma condição ambiental de risco e vulnerabilidade, desencadeada por complexidades sociais como as políticas relacionadas à pesca, as demandas globais e de transformações industriais. Mais especificamente, observa-se um percurso que é recorrente em boa parte das comunidades pesqueiras do litoral brasileiro, onde as pescarias consideradas tradicionais vêm sofrendo uma série de mutações, sobretudo na ordem dos valores sociais e da territorialidade, destacando-se as conseqüências das inovações tecnológicas nas práticas de trabalho consideradas tradicionais e do envolvimento financeiro decorrente das relações com o mercado da pesca. Inicialmente, procuro situar o contexto local dos conflitos relativos às condições ambientais e territoriais que envolvem a atividade pesqueira. Em seguida, irei abordar essa problemática a partir da perspectiva das analogias e metáforas sobre animais marinhos entre os pescadores de São José do Norte, uma vez que as mesmas dizem respeito à cosmovisão de alguns grupos e nos elucidam sobre as formas nativas de ressignificação e interpretação acerca dos conflitos socioambientais. Em torno dos estudos socioantropológicos sobre comunidades pesqueiras e sua relação com o contexto local No Brasil, a ênfase dada ao tema da pesca está ligada à antropologia sobre sociedades tradicionais e suas práticas de trabalho, sendo que muitos estudos contemplam questões acerca do modo de vida tradicional de comunidades pesqueiras, destacando-se as relações de parentesco, afinidade e reciprocidade que regem a vida social, bem como o conhecimento acerca das pescarias que é passado de uma geração à outra. Juntamente com esses aspectos centrais, as práticas de trabalho tradicionais também estão ligadas a um saber naturalítisco com base nas experiências 1 Doutor em Antropologia Social (UFRGS) e Professor da Universidade Federal do Rio Grande/FURG. 2 Esta experiência etnográfica resultou na tese de doutorado intitulada “Terra e Mar, do viver e do trabalhar na pesca marítima. Tempo, espaço e ambiente junto a pescadores de São José do Norte – RS”, defendida junto ao PPGAS- UFRGS (Adomilli, 2007).

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Territorialidade e conflito na pesca embarcada: um estudo de caso sobre os

pescadores de São José do Norte-RS e suas analogias sobre animais marinhos

Gianpaolo Adomilli1

Este artigo pretende levantar algumas questões relativas às mudanças sociais em populações

tradicionais pesqueiras do litoral brasileiro, através de minha experiência etnográfica junto a

trabalhadores da pesca embarcada, habitantes do município de São José do Norte, situado no

extremo sul do Brasil, entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico2. Neste estudo de caso, busco

demonstrar como os mesmos vivenciam uma situação específica que diz respeito a uma condição

ambiental de risco e vulnerabilidade, desencadeada por complexidades sociais como as políticas

relacionadas à pesca, as demandas globais e de transformações industriais. Mais especificamente,

observa-se um percurso que é recorrente em boa parte das comunidades pesqueiras do litoral

brasileiro, onde as pescarias consideradas tradicionais vêm sofrendo uma série de mutações,

sobretudo na ordem dos valores sociais e da territorialidade, destacando-se as conseqüências das

inovações tecnológicas nas práticas de trabalho consideradas tradicionais e do envolvimento

financeiro decorrente das relações com o mercado da pesca.

Inicialmente, procuro situar o contexto local dos conflitos relativos às condições ambientais

e territoriais que envolvem a atividade pesqueira. Em seguida, irei abordar essa problemática a

partir da perspectiva das analogias e metáforas sobre animais marinhos entre os pescadores de São

José do Norte, uma vez que as mesmas dizem respeito à cosmovisão de alguns grupos e nos

elucidam sobre as formas nativas de ressignificação e interpretação acerca dos conflitos

socioambientais.

Em torno dos estudos socioantropológicos sobre comunidades pesqueiras e sua relação com o

contexto local

No Brasil, a ênfase dada ao tema da pesca está ligada à antropologia sobre sociedades

tradicionais e suas práticas de trabalho, sendo que muitos estudos contemplam questões acerca do

modo de vida tradicional de comunidades pesqueiras, destacando-se as relações de parentesco,

afinidade e reciprocidade que regem a vida social, bem como o conhecimento acerca das pescarias

que é passado de uma geração à outra. Juntamente com esses aspectos centrais, as práticas de

trabalho tradicionais também estão ligadas a um saber naturalítisco com base nas experiências

1 Doutor em Antropologia Social (UFRGS) e Professor da Universidade Federal do Rio Grande/FURG.2 Esta experiência etnográfica resultou na tese de doutorado intitulada “Terra e Mar, do viver e do trabalhar na pesca marítima. Tempo, espaço e ambiente junto a pescadores de São José do Norte – RS”, defendida junto ao PPGAS-UFRGS (Adomilli, 2007).

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concretas e que também são transmitidas geracionalmente. A atividade pesqueira caracteriza-se por

sua sazonalidade e, em certa medida, em uma condição de dependência em relação à natureza,

sobretudo no que se refere às condições climáticas, o que implica pouco controle sobre os

fenômenos naturais no que tange ao tempo da pesca. A relevância dessas condições que atuam na

atividade, mesmo que não sejam completamente determinantes, formam um conjunto de processos

que influenciam as relações entre homem e natureza, particularizando as formas de apropriação

humana.

Por outro lado, esses grupos fazem parte, em maior ou menor grau, da sociedade urbano-

industrial, ao mesmo tempo em que apresentam determinada herança cultural baseada em práticas

sociais e simbólicas consideradas tradicionais. Assim, a antropologia das sociedades complexas, ao

situar a problemática da continuidade e descontinuidade das representações e ações simbólicas

(Velho, 1999) possibilitou um avanço nas análises sobre a mudança social entre esses grupos,

especialmente no que se refere às práticas humanas na exploração dos recursos naturais.

Boa parte dos estudos sobre comunidades pesqueiras, - tais como os de Kottak (1966, 2005),

Forman (1970), Diegues (1983), Britto (1999), entre outros, - está centrada sob o enfoque da tensão

entre o modo de vida tradicional e as transformações vivenciadas por esses grupos, sobretudo frente

às conseqüências do processo de industrialização e urbanização nas regiões costeiras brasileiras, - a

qual envolve, entre outras coisas, intensificação da especulação imobiliária, das atividades

portuárias e da pesca predatória - iniciados partir do final da década de 1960, e que vêm

desencadeando uma série de impactos e conflitos socioambientais. Tal contexto implica, por um

lado em processos de exclusão social das populações que viviam nestas áreas, dependendo de seus

recursos naturais, e, por outro, na adoção de práticas e estratégias de sobrevivência nas quais esses

grupos mantêm sua herança cultural frente a injunções de mudança.

Uma primeira questão refere-se à problematização do grau de envolvimento com o mercado e

o processo de industrialização da atividade pesqueira, procurando superar o jogo de dualidades

encontradas em boa parte a literatura sobre o tema, tais como a oposição entre pesca artesanal e a

pesca industrial ou empresarial-capitalista. Ainda de acordo com essa perspectiva, podemos

considerar que, de modo geral, a primeira caracteriza-se pelo predomínio do modo de vida

tradicional e utilização de tecnologia simples, já a segunda, caracteriza-se pelas relações de trabalho

predominantemente capitalistas e utilização de tecnologia de ponta em embarcações (Diegues, 1983

e 1995; Maldonado, 1994).

Em algumas análises, sobretudo aquelas realizadas na década de 1970, o tema da relação entre

tradição e mudança tende limitar-se a esta dualidade, que vem a braços com a idéia de oposição

entre o modo de vida tradicional e a lógica de mercado, ao invés de pensar esta questão no âmbito

da articulação entre Tradição e Modernidade, que é tensional, mas apresenta uma perspectiva

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resemantizada, relativa à condição ecológica dos pescadores se situarem frente a injunções de

mudança. Neste sentido, embora não possa ser negligenciado o risco permanente de não-reprodução

social dos pescadores artesanais frente a essas adversidades, ou seja, de haver a possibilidade de

uma ruptura definitiva em relação ao sistema social e simbólico de grupos específicos, não se trata

somente de mostrar como eles caminham para a industrialização, mas de que forma mantêm seu

ethos, sua identidade social e quais suas estratégias de sobrevivência enquanto categoria social.

De acordo com esta perspectiva, as condições de risco e vulnerabilidade em relação aos pes-

cadores de São José do Norte, diz respeito a um território ocupado por grupos que têm vivenciado

um contexto de crise econômica e social relacionada a uma expansão desordenada da atividade. A

pesca predatória praticada em larga escala e a poluição do ambiente marítimo, são apontadas como

as principais causas para o quadro de escassez dos estoques de peixes, impactando as comunidades

pesqueiras dessa região. Conforme indicam estudos sobre o tema, a nível mundial essa categoria se

depara com um grau de instabilidade que seus predecessores não viveram, na referência à segurança

pessoal e econômica, tendo em vista que a atividade caracteriza-se pelos riscos e incertezas (McGo-

odwin, 1990:12). Nesse sentido, os pescadores embarcados têm se deparado com um contexto de

riscos sociais relativos à adoção de inovações tecnológicas, que os compelem a permanecerem mais

tempo no mar, criando conflitos pelo distanciamento da vida em terra. Maiores riscos territoriais

também se fazem sentir pelo fato de que as pescarias tornaram-se mais numerosas e competitivas.

Mudanças ocasionadas pela permanência prolongada no mar têm o efeito, entre outras coisas, de

potencializar riscos de acidentes, inclusive naufrágios, que são comuns nessa atividade.

Paradoxalmente, as inovações tecnológicas também proporcionam melhorias nas condições

das embarcações, como o sistema de rádio PX e o GPS3. A segurança com base nos instrumentos e

nos avanços de pesquisas em climatologia, bem como o desenvolvimento e investimento tecnológi-

co em pesquisas e mecanismos de precisão climática, têm ajudado pescadores a evitarem riscos

como, por exemplo, enfrentar tempestades inadvertidamente. Os instrumentos passam a ter também

um papel importante na mudança dos conhecimentos da pesca, como é o caso da utilização de ecos-

sondas4 nas pescarias, aprofundando uma relação onde o conhecimento do ambiente marítimo não

pode ser separado do domínio de uma determinada tecnologia.

O cenário local: barcos, botes e canoas motorizadas

A pequena cidade de São José do Norte, sede do município, localizada às margens do canal da

Lagoa dos Patos, que desemboca no Oceano Atlântico, apresenta uma economia local que depende

3 (Global Positioning Sistem) é um sistema de posicionamento através da captação de sinais emitidos por satélite, sendo amplamente utilizado na aviação e navegação marítima.4 Ecossonda consiste em uma tecnologia para detectar peixes e submarinos através da acústica na coluna de água.

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essencialmente da atividade pesqueira e da agricultura, com o cotidiano de trabalho seguindo o rit-

mo das safras de peixes, do camarão e do cultivo da cebola.

Praticamente toda a faixa costeira que envolve a cidade

e seus arredores é ocupada por pescadores. Próximo ao centro

da cidade está um porto pesqueiro, onde entram e saem bar-

cos de pequena e média tonelagem, voltados para a captura

de peixes com redes de emalhar, atuando na zona costeira do

Oceano Atlântico. Trata-se de um tipo de pesca embarcada,

em que as viagens em busca dos cardumes requerem a per-

manência da tripulação em alto mar em torno de uma semana

a vinte dias. Grande parte dos embarcados mora em vilas que

começam no porto e se estendem pela beira do canal.

Fig. 02. Centro urbano de São José do Norte

Toda essa faixa de praia é ocupada por botes e canoas motorizadas, indicando a presença de

pescadores que também habitam esses lugares, mas vivem da pesca no estuário da Lagoa dos Pa-

tos5. Diferentemente dos embarcados, são pescadores que saem para o mar, mas “dormem em casa”,

realizando uma pesca de incursões diárias. Essas jornadas são mais freqüentes durante as safras da

tainha e da corvina. No entanto, outras safras, que eram capturadas em abundância no passado, se

encontram em processo de extinção, como é o caso da safra do bagre, criando grandes períodos de

estagnação da atividade.

Em face dessa situação de escassez, muitos optam por ingressar na pesca embarcada, que,

5 Devo esclarecer que os barcos são de madeira, cabinados. A tripulação varia entre 7 e 10 homens, a depender do tamanho da embarcação, entre 15 e 30 metros de comprimento e com motor a diesel, entre 120 e 400 HP de potência. Esses barcos caracterizam-se pela pesca com rede de emalhe. A tripulação é formada pelo Mestre, Maquinista, Gelador, cozinheiro e em torno de três ou quatro proeiros. Já os botes e canoas são de madeira, sem cabina, apresentam, no máximo, 10m de comprimento e dispõem de motores de 10 a 24 HP. Essas embarcações são tripuladas por 2 ou 3 homens. Geralmente pelo dono da embarcação e seus parceiros. Assim como os barcos do cais, utilizam rede de emalhe.

Fig. 01. Mapa do Rio Grande do Sul Upload.wikimedia.org/Wikipédia/commons/thumb/

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aparentemente, apresenta uma maior regularidade na produção. Esta organização espaço-temporal

remete à complexa relação entre a pesca embarcada, realizada no oceano, e a pesca em botes e ca-

noas na Lagoa dos Patos – levando em conta que esses grupos se misturam, sobretudo quanto às re-

des de amizade e relações de parentesco que convergem na ordem dos valores sociais. Durante a

pesquisa, a porosidade entre os grupos se tornou mais evidente ao ser constatado que a grande

maioria dos pescadores embarcados havia inicialmente, senão na maior parte da vida, pescado na

Lagoa dos Patos.

Fig. 03. Porto pesqueiro, centro urbano de São José do Norte

Fig.04. Entorno da Lagoa dos Patos, próximo ao centro urbano de São José do Norte

Diferentemente, da região sudeste do Brasil e do município vizinho de Rio Grande, em São

José do Norte, a pesca embarcada iniciou de forma efetiva na década de 1980, tratando-se, portanto,

de um fenômeno recente6. Para além da existência de um processo de “passagem” da pesca em bo-

6 No caso específico da cidade vizinha de Rio Grande, maior pólo industrial pesqueiro do RS, esta foi palco da fundação de diversas indústrias pesqueiras a partir da década de 1960 (Martins, 2006), sendo pioneira na introdução de

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tes para a embarcada e a conseqüente tensão entre uma lógica de produção tradicional e outra mais

voltada para o mercado, considero o fato de muitos pescadores alternarem essas atividades, de acor-

do com a sazonalidade da pesca. Essa mobilidade gira principalmente em torno da safra do camarão

na Lagoa dos Patos, durante os meses de verão, quando grande parcela dos embarcados retorna à la-

goa para pescar o crustáceo. Este momento combina um período de baixa produtividade da pesca

em barcos na zona costeira com maiores possibilidades de lucratividade na pesca do camarão, em

comparação com as demais safras de peixes. Na pesca embarcada, as principais safras são a da an-

chova e a da corvina, que ocorrem, respectivamente, durante os meses do inverno e da primavera.

Durante os meses de verão, apenas alguns barcos, justamente aqueles que são mais equipados e com

maior tonelagem, mantêm a sua tripulação, dedicando-se à pesca de espécies demersais, realizada

em áreas mais distantes da costa.

As noções de risco e confiança na configuração local

Na Lagoa dos Patos, assim como no Oceano Atlântico, os pescadores locais parecem não res-

tringir o acesso à suas áreas de pesca, embora vivenciem conflitos relativos ao não- reconhecimento

das regras territoriais locais, baseada na noção de “respeito”, por parte de atores sociais exógenos à

comunidade ou mesmo pela quebra dessas tradições por parte das novas gerações de pescadores.

Na pesca na Lagoa dos Patos, uma situação bastante esclarecedora a esse respeito, consiste no

caso do “remolho”, como se referem os pescadores sobre quando alguns botes/canoas disputam um

mesmo espaço onde foi encontrado peixe. Caracteriza-se por ser uma disputa na qual parece se ig-

norar quem chegou primeiro. É comum, por exemplo, um bote lançar suas redes tão próximas às de

outro bote, que ambas as redes acabam se embolando. Em represália, algumas vezes o pescador que

chega primeiro reage aos gritos com frases ríspidas e toma uma atitude drástica: “passar a faca”, ou

seja, cortar as redes do suposto invasor de seu espaço. Tal situação gera confrontos entre os pesca-

dores, que se ameaçam mutuamente. Apesar disso, dificilmente chegam a conseqüências mais trági-

cas, como facadas e luta corporal, embora se soubesse da ocorrência de alguns casos desse tipo. Na

maioria das vezes, o ápice desta disputa se encerra com uma troca de agressões através de golpes

com pedaços de taquara entre os envolvidos.

Muitos pescadores continuam se pautando pelo respeito ao espaço que está sendo ocupado,

lembrando que as pescarias sempre foram orientadas pelo respeito em relação ao espaço de pesca de

cada um, considerando que o remolho é um ato de desespero que remete a situação vivida por eles

de “pouco peixe pra muito pescador”.

equipamentos e petrechos de pesca modernos. Essa conjuntura faz parte do processo de consolidação da indústria da pesca, amplamente incentivada pelo governo federal, sobretudo durante a década de 1970, através de políticas de incentivos fiscais para modernização da pesca, sobretudo no financiamento de barcos cada vez maiores e mais potentes (Diegues, 1983).

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Uma estratégia usada consiste em simular que se achou um cardume, levando os invasores a

jogarem suas redes de forma precipitada. Aquele que deu o “alarme falso” vai para outro lugar e li-

vra-se de alguns seguidores indesejados. Às vezes, há um nervosismo muito grande e uns vigiam os

movimentos dos outros. Nessas ocasiões, o “alarme falso” acontece por acidente. Qualquer movi-

mento brusco ou iniciativa é o suficiente para ocorrer um súbito alvoroço. Há também os que se

equivocam, achando que encontraram algum cardume, quando não há nada. Muitos envolvem-se in-

voluntariamente no remolho, uma vez que, durante a captura, sofrem interferência de outro que se

aproxima. Os pescadores locais atribuem a essa “quebra” da convenção do respeito entre eles, a

“gente da Quarta”, pescadores que habitam o outro lado do canal, no município de Rio Grande- RS,

que seriam os principais protagonistas dessas disputas pelo peixe, em uma clara distinção em rela-

ção aos “outros”, portanto, os de fora da comunidade. Todavia, admitem que aqueles que se envol-

vem no “remolho” são principalmente pescadores jovens, subvertendo as “regras do jogo” em uma

espécie de competição agonística (Huizinga, 1990). Tal confronto coloca em cheque o processo de

organização dessas pescarias, confundindo um evento que deveria ser concebido como de contágio,

de mistura, de desordem estruturada como em um rito de inversão (Turner, 1974), podendo transmi-

tir a impressão de desorganização e baderna. Nesses pequenos incidentes geracionais, como situa-

ções onde as disposições situacionais são colocadas em jogo, para lembrar dos Nuer de Evans-Prit-

chard (1993), identifica-se uma ameaça explícita à aparente continuidade na organização territorial

das pescarias e, conseqüentemente, perigo para a sustentação do valor do respeito, noção que se in-

sere em uma estrutura hierárquica mais ampla das práticas pesqueiras como cultura da pesca através

da arte do saber-fazer (Forman, 1970; Maldonado, 1988; Diegues, 1995; Woortman, 1995). O saber-

fazer diz respeito ao aprendizado dos filhos de pescadores de botes/canoa, mas também de pescado-

res-agricultores. Entre eles, o aprendizado e inserção no âmbito pesqueiro ocorrem ainda quando

crianças, no envolvimento familiar, implicando na lida diária com as pescarias na beira da lagoa.

Essa perspectiva etnográfica aproxima-se do observado por Simone Moutinho Prado em “Da ancho-

va ao salário mínimo” (2002) onde o reconhecimento ao profissional tradicional relaciona-se àque-

les que se inserem dentro do modo de vida local e de saber pescar, ou melhor ainda, de viver da pes-

ca e obter o reconhecimento coletivo deste fato (Prado, 2002: 126).

Dessa forma, o conhecimento é passado de uma geração para outra. Dentre aqueles que apre-

sentam uma trajetória de práticas de agricultura mais distanciadas da pesca, a introdução à atividade

ocorre na passagem para a fase adulta. São adolescentes que começam a trabalhar como proeiros em

botes para ganhar algum dinheiro, principalmente na safra do camarão. Alguns encontram no traba-

lho do bote/canoa uma forma de obterem uma relativa independência econômica e constituição de

suas próprias famílias, visto que se casam cedo, freqüentemente com menos de 18 anos. Apesar des-

ses conflitos existentes na Lagoa dos Patos em relação aos “outros”, sua não restrição é justificada

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pelos pescadores com a seguinte explicação “É que o pessoal daqui até faz amizade com os de fora.

E tem muitos que são parentes”. Porém, isso não significa que os espaços na lagoa não sejam de-

marcados. A escassez de pescado tornou essa situação conflitante, sendo que, nos últimos anos, os

pescadores da região vêm exigindo que o IBAMA7 realize um controle mais rígido sobre os pesca-

dores que vem de Santa Catarina capturar o camarão na lagoa, visando restringir esse fluxo, já que

uma boa parte deles é acusada de não respeitar os espaços de pesca locais.

Na lagoa e na beira da praia, o modo de apropriação territorial foi sendo estabelecido por

meio de relações de fronteiras porosas entre indivíduos, em um processo histórico de contatos com

os pescadores portugueses e catarinenses, portadores de técnicas mais avançadas de pesca8. Nessa

relação, que remete também à penetração do mercado da pesca, fica clara uma estratégia de incor-

poração do que é exterior, sobretudo através de alianças matrimoniais envolvendo os pescadores de

outras localidades com as mulheres nativas. No entanto, também se estabelecem relações de aliança

simbólica de parentesco, sobretudo no trabalho dos barcos e botes/canoa, mas principalmente entre

os embarcados, quando ocorre um convívio prolongado por conta dos vários dias de mar.

Trata-se de uma forma de lidar com a instabilidade vivida por esses grupos, em rearticulação

constante. Particularmente, frente aos riscos de trabalhar em ambiente instável como o mar e, de

forma mais ampla, aos riscos de não-duração no tempo, da impossibilidade de sua reprodução social

em face de processos de injunções de mudança.

Essa rearticulação constante produz instabilidade em termos de continuidades e rupturas em

suas práticas sociais e simbólicas. Portanto, conflitos de gerações evidenciam essas transformações

por que passam esses grupos. A flexibilização, que torna possível a adaptação desses grupos, fica

clara na constatação de um experiente pescador em relação ao passado: “De primeiro, os antigo...

era tudo proibido, o cara não podia fazer nada! Era tudo proibido”.

A noção de risco que adquire a configuração local nasce do encontro com a perspectiva das

sociedades urbano-industriais, portadoras de uma racionalidade institucional que desordena as for-

mas tradicionais, as quais se apoiavam em certezas anteriores. Segundo Giddens, Beck e Lash,

(1997), o risco revela as contradições de determinado sistema, de uma ordem, o que se constitui em

colocar em risco essa própria ordem. De acordo com tal perspectiva, a noção de globalização do ris-

co não se reduz à preocupação com o ambiente biofísico, mas envolve também processos de altera-

ção dos cenários local e mundial.

Na perspectiva de Giddens, Beck e Lash (1997), o reordenamento político da vida social a ní-

7 IBAMA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. 8 A atividade pesqueira na região origina-se de um processo complexo de transformações, a partir do qual historica-mente foram ocorrendo estratégias de integração e difusão cultural entre povos indígenas, os primeiros imigrantes aço-rianos que se estabeleceram na região em fins do século XVIII, os fluxos migratórios de pescadores de Póvoa do Var-zim, de populações negras rurais e de pescadores oriundos do estado de Santa Catarina (Adomilli, 2006 e 2007).

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vel local acontece principalmente em torno da noção de “confiança”, no sentido de uma interdepen-

dência econômica e social, conectada ao mundo global. Problemas ambientais, relações de mercado

e conflitos territoriais entre os pescadores enquanto uma dinâmica tensional do contato e da trans-

formação no mundo moderno se articula, de uma forma ou de outra, à configuração local das rela-

ções de solidariedade, baseada nas alianças simbólicas de parentesco que envolve tais grupos.

Nesse sentido, pude identificar práticas tradicionais solidárias baseadas em laços de parentes-

co e afinidade. Elas estendem-se, por exemplo, ao processo de distribuição do peixe, que no passa-

do ocorria na beira da praia ou da lagoa, através da pesca de parelhas de botes/canoas, mas que hoje

se mantém através dos barcos. Nesse sentido, observa-se o movimento de desordem e de tentativas

de um realinhamento por parte dos pescadores locais, baseado em um padrão que se mantém sob

certos limites, frente a novos contextos.

Assim, à situação de desordenamento da regra de respeito aos espaços de pesca na lagoa e no

oceano se contrapõem parcerias entre embarcações de determinados grupos de pescadores, que ago-

ra reforçam os laços e solidarização durante as pescarias. No mar, ocorrem situações semelhantes.

São, portanto, formas que obedecem as relações de afinidade, que são construídas e se articulam

com a vida social em terra.

Conhecimento e tecnologia

Peixes costeiros como o bagre, a tainha e a corvina, entre outros, são considerados pelos pes-

cadores por sua grande mobilidade, uma vez que “vêm fazer o corso”, ou seja, deslocam-se em

“mantas” (cardumes) vindos da costa do oceano e adentram o estuário da Lagoa dos Patos para de-

sovar. Segundo os pescadores, as corvinas e tainhas, quando adultas, deslocam-se a grandes distân-

cias ao longo do litoral. Pescadores de várias regiões da costa brasileira fazem referência à “corrida

da tainha”, que ocorre do sul em direção ao norte. Já a corvina realiza movimento contrário, - vem

do norte em direção ao sul. Em sua rota ao longo da costa, esses peixes são capturados tanto por

pescadores artesanais (de beira de praia e de botes/canoas), quanto por barcos de emalhe e por trai-

neiras e arrasteiros.

Em meio ao debate em torno de pescarias relacionadas com a pesca predatória e as transfor-

mações no modo de pescar, perguntei a Seu Russo, pescador experiente, que havia acompanhado

durante os últimos 60 anos o processo de mudanças na atividade pesqueira na região, se ele perce-

bia alguma diferença, em termos de um conhecimento tradicional, entre as práticas de captura do

passado e as atuais na pesca local. De forma bastante elucidativa, Seu Russo deu a seguinte respos-

ta:

A única diferença que tem é agora que é motorizado, mais rede, embarcações maiores... mas o sis -tema de captura é a mesma coisa. Pegava um barco daquele ali e fazia o mesmo que eles tão fazen-

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do hoje. E se duvida, com melhor conhecimento, porque o conhecer era na parelha, logo em segui-da... Agora não sabem onde tá o peixe, a não ser com o sonar, porque os peixes que vinham na lâ-mina d’água não vêm mais. Não. A Tainha geralmente dá em cima, na lâmina d’água. Mas a corvi -na vem só na lâmina d’água janeiro e fevereiro, o bagre vem janeiro e fevereiro, a miragaia tam-bém janeiro e fevereiro... Depois desce pro fundo e não vem mais durante o ano. Desciam, porque agora não descem mais. Acabou.

A realização de determinada pescaria depende de um conjunto de prognósticos realizados

pelos pescadores em relação à natureza, envolvendo uma intricada relação entre as estações do ano,

o regime de ventos, a lua e as condições do mar (correnteza). No tempo das parelhas, esse sistema

de conhecimento era dominado pelo mestre e pelo vigia, tanto na lagoa como no oceano. Consistia

em um reconhecimento visual a identificação dos cardumes de peixes, já que eram vistos sob a “lâ-

mina d’água”. O vigia olhava para o mar (oceano ou lagoa), interpretava o tempo, as correntes e a

direção dos cardumes. Mas na lagoa, além da observação visual, o ruído e a vibração consistiam nas

principais formas de identificação. Alguns pescadores experientes, que haviam vivido esse passado,

contam que se colocava o ouvido no casco da canoa para poder escutar o “ronco” dos cardumes de

corvinas e bagres se aproximando.

Segundo relato desses pescadores, os cardumes de bagres eram identificados através de um

remo. A canoa parava em determinado ponto da lagoa e apenas um remo era colocado na água. Os

cardumes eram tão grandes que o remo vibrava, indicando a aproximação dos peixes. Na pesca de

parelhas, esses peixes eram vistos da beira da praia. Atualmente embarcações motorizadas saem

atrás desses cardumes dando sentido ao que se convencionou chamar de “pescaria corrida”. Passei a

refletir sobre essas técnicas de captura, baseadas em indícios acerca do movimento dos cardumes de

peixes através dos sentidos de visão, escuta e tato (vibração).

Apesar do seu desaparecimento, essas técnicas foram inicialmente rearticuladas nos primei-

ros barcos, como ilustra a história de Seu Atanásio, revelada por Nibo, ao contar que o velho mestre

de parelhas, ao tornar-se mestre de barco, ainda sem tecnologia, colocou em prática uma idéia de es-

cutar os peixes através de um cano:

O Atanásio foi um homem... Que ele saiu do nada também. [...] Era muito conhecedor, era homem que subia num caminhão e olhava: “Lá tem peixe!” Largava. Aí, despois, quando ele se sentiu-se velho, pela pescaria de praia, porque ele era o patrão dele mesmo, se atucanou. [...] Aí ele passou pros barcos. Mas aí ele trabalhou de mestre. Ele não trabalhou no convés. [...] Então, ele era muito respeitado porque conhecia tudo e mais um pouco! Desses mestres que tem aqui da volta, e da ma -lha, o Atanásio botava eles tudo no bolso, era professor deles tudo! [...] E o Atanásio começou a trabalhar sem uma sonda, sem um navegador... Ele só tinha bússola. Só bússola. Como eu tô dizen-do: pra andar e ver a fundura que tava, só com uma cordinha com peso. Já ouviu falar em retinido? Retinido é uma cordinha que tem, com pesinho de chumbo, que as embarcações grandes usam pra tirar o cabo pra terra. Ele usava isso pra medir a água. Do tempo em que agarrava pra ver: “Será que tem peixe aqui? Vamo com o ouvido”. Despois ele agarrou e usou um sistema mais sofisticado pra sondar o peixe: um cano. Um cano, tipo... Nunca viu pegar duas latinhas e colocar um fio e fa -zer auto-escuta? Um desses, só que é um cano. Um cano d’água, de vinte e cinco, aí pega uma tam-

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pa... bota do lado dele, a parte tampada larga pra água, e escuta na parte adentro. Dá o som nítido, nítido! E aí, se o cara faz as aventuras dele e mata peixe, os outros vão seguir por ele.

Atualmente os peixes são capturados longe da costa e no fundo, portanto não são mais visí-

veis como no passado. No caso dos barcos, perdeu-se o referencial da paisagem costeira como mar-

cação de territórios. Para encontrar os cardumes, utilizam-se ecossondas inclusive na lagoa. Contu-

do, inovações tecnológicas, como ecossondas e outros aparelhos, não significam exatamente uma

perda do conhecimento dos mestres acerca da localização dos cardumes e do ambiente marítimo.

Ao contrário, apontam para a necessidade de certo conhecimento e capacidade náutica, a fim de

prever o comportamento dos peixes e os lugares que existem no fundo do mar, antecipando-se aos

deslocamentos de determinadas espécies. Isso acontece mediado pelos aparelhos modernos, porém,

no caso dos barcos de emalhe, estes não são tão precisos como se poderia supor, sendo necessário

aliar o domínio técnico ao conhecimento marítimo. A este respeito, Cláudio, assim como Nibo, tam-

bém se refere a Seu Atanásio nesse contexto de transformações na pesca:

Eu trabalhei com ele. Foi meu professor. Foi um dos maiores pescadores. [...] O primeiro rádio que se botou a bordo pra trabalhar... Que primeiro eles trabalhavam pelo sol, pelos ventos. Pelo barô-metro. “Ah, o barômetro tá alto”. E iam. Eu não cheguei a trabalhar aí fora, na barra. Porque pesca-ria de lagoa é a pescaria de andaina, né. Então, o barômetro podia tá baixo, mas se não tivesse ven-to, ia, né! Então, era tudo com costa à vista, né! Tu via o Barranco, a ponta do mato... Tu olhava e, às vezes, tu cruzava pro lado do Estreito e via o Estreito, aquela volta da Lagoa Doce... Tu olhava pra cá e via o porto de Pelotas, São Lourenço... Já eles não. Começaram a trabalhar e aí a pesca co-meçou... a parelha aumentou, a pesca começou a ser explorada, aquela coisa..

Varrendo o chão

O contexto de sobrepesca que afeta tanto a Lagoa dos Patos como a zona costeira da porção

meridional do Oceano Atlântico é considerado pelos pescadores como uma ação constante de captu-

ra, no qual os peixes não têm tempo para se recuperar do impacto das pescarias. “É pau e pau nesse

oceano! Não dá tempo pra descansar!”, dizem alguns. Nesse sentido, consideram importante uma

regularização das pescarias que contemplem um período de defeso. Contudo, no caso do camarão,

há um período de defeso, sob fiscalização do IBAMA, que não é cumprido por eles. Entre os diver-

sos atores envolvidos na pesca costeira e estuarina, os pescadores da lagoa, com suas pequenas em-

barcações e com poucos recursos, são aqueles que se encontram em maior situação de fragilidade,

conforme relata Sebinho:

Na lagoa, é só embarcação com boca aberta, mas entra barco, aí matam 20 quilos e eles 100 quilos. Dia e noite, dia e noite... E varre. Varre o chão! Mata tudo, mata o cascote, mata o linguado, mata o bagrinho. Mata o pequeneninho aquele, que quando cai na rede, não sobrevive mais... limpa! Fica que nem esse chão, sem nada. Qualquer tipo de espécie de pescaria. Não mata só o camarão, mas mata todas as espécies.

Segundo o conceito clássico de impureza, desenvolvido por Mary Douglas em “Pureza e Peri-

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go” (1992), onde há impureza significa que há sistema, no sentido em que a impureza constitui-se

no “subproduto de uma organização e classificação da matéria” (Douglas, 1992: 50). O ato de “lim-

peza” referido por Sebinho consiste em uma ação de destruição e, portanto de risco de empobreci-

mento e esterilidade da vida que se forma no fundo do mar. Cláudio também considera a sobrepesca

dessa mesma forma:

É a mesma coisa que ter uma casa fechada quatro, cinco dias, tu passa a vassoura e tem pó. Mas se tu varre todos os dias, ela nunca vai ter pó! É o que tá acontecendo no oceano hoje, o troço tá muito batido.

A vida no fundo da lagoa e do oceano é comparada ao pó que se forma no interior de uma

casa. Freqüentemente havia essa associação dos peixes à poeira e a ação dos barcos, sobretudo ao

arrasto, à “limpeza”, “varredura” da poeira. Para Cláudio, essa formação começa pelo “limo”, do

qual se alimentam os peixes:

Aqui em Paranaguá, não se visse na televisão... Tão fazendo tonéis com barras de trilho, e lançando no mar. Vão fazer não sei quantas milhas pela costa, pra tirar os barcos de arrasto. E naquele tonel ali vai criar fictoplancton, que é o lixo, o limo, né. Vai criar a alga marinha, entendesse? O caramu -jo, a ostra, vão se agarrá por ali e aquilo ali vai servir de... De comidinha pra peixe, no caso, desse de costa, né. Que são 20, 30 metros. Garoupa. Até mostraram um grande assim, na volta, nesse lu-gar cheio de craca [...] E aquilo ali que alimenta eles, tá entendendo? E eles lançam de dez em dez milhas em alto mar. E aí vêem, se a plataforma tá nova, daqui um ano voltam. Tu não acha eles na volta ali, mas caminha três, quatro milhas e tá aquelas manta de bicho.

A barata do Mar

Se há um risco de destruição, a partir da desordem causada pela “limpeza” que os barcos pro-

movem no fundo do mar, essa situação encontra-se a braços com a questão da poluição relativa ao

“aumento da aparelhagem” do qual fala Nibo,

Então, hoje, tem gente que diz assim: “Ah, o peixe tá se terminando!” Não! [...] O peixe não tá se terminando, o aparelho é que tá aumentando! Pra nós, alguns anos atrás, e quando dava peixe, que isso aqui era a coisa mais linda nessa época, esse canal aí, vinham embarcações e embarcações no oceano, e colhendo... Saía de porta n´água. Aquele amarelão de peixe. Mas era um absurdo, ficava apavorado quando um picaré (arrastão de praia) desses dava uns lances na praia e pegava 4 ou 5 ca -minhão de peixe. Agora me diz, 5 caminhão de peixe, naquela época, na base de 7 toneladas... dá 35 toneladas. Era um absurdo, barbaridade! Hoje, nós viemos em uma viagem,5 traineiras larga-ram, cercaram, e uma delas tinha mais de 500 toneladas. Aí, aquelas 35 que pegaram na praia era toda ela aproveitada dentro da indústria. Mas essas 500 toneladas que a traineira cercou, ela puxou... Aí carregou uma traineira com 80 toneladas, carregou a outra traineira com 120 toneladas. São 200. Carregou os dois barcos de Rio Grande, são 60 toneladas cada um. São 320. Mas pra isso soltou umas 400 toneladas. Aí, onde é que foi essas 400 toneladas? Não foi pro pescador da malha pegar, não! Ficou no mar e deu lá na praia, que dizem que tinha um metro de peixe podre na beira da praia. Porque, despois que esse peixe foi cercado, apertado na rede, por mais de três horas... Ele morre! No momento que ela ficar com a barriga pra cima, ela até pode dar uns mergulhões e nadar até um quilômetro, mas ela morre! Porque se arrebenta![...] Então, eles não pescaram, eles es-tra-garam! Aí, vem a parte da aparelhagem, que é onde eu chego. Aumentou a aparelhagem. Mais so-fisticada, que pega um mundaréu de peixe e bota quase a metade fora! Nem eles e nem o próximo comem. [...]Então isso aí chama-se desperdício! É a evolução da aparelhagem.

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Nibo atribui as dificuldades vividas com as pescarias à ação da frota de barcos industriais, so-

bretudo das traineiras, que apresentam um grande desperdício no descarte nas capturas.

O desaparecimento da miragaia também é atribuído à ação da frota de barcos industriais. Este

peixe era tradicionalmente capturado na região. Dificilmente os velhos pescadores deixam de falar

na miragaia, quando o assunto gira em torno das pescarias do passado. Assim como o bagre e a tai-

nha, a miragaia é um peixe que simboliza o “tempo da fartura”. Nibo chama a atenção para o fato

de que a miragaia é atualmente desconhecida das gerações mais novas, que não sabem identificar

sequer o borriquete, que é o filhote desta espécie. Tal situação torna ainda mais aguda a dimensão

dos conflitos territoriais, uma vez que a traineira é acusada pelos pescadores de matar o peixe que

poderia ser aproveitado tanto pelos barcos de emalhe quanto pelos botes/canoas.

A fala de Nibo remete à questão do descarte das espécies capturadas. Embora essa ação seja

realizada em grandes proporções pelas traineiras, também envolve ações de barcos de emalhe e fa-

zem parte das explicações sobre o “desaparecimento” das espécies, como ilustra Prego, ao se referir

à falta de peixes na lagoa:

O cação esse aí dava 20 metros, 18 metros. O pessoal matava. Esses barquinho aí. O que aconte-ceu? Eles chegavam lá e davam um lance, dois, desse anjo e iam embora. Sabe o que eles faziam? Chegavam aqui, aqui que tiravam o pescoço, a cabeça deles, visceravam, aqui dentro da lagoa. Não largavam no pesqueiro. Aí o peixe não vem mais. É o desaparecimento do cação na costa. Agora só em 100, 200 metros.

A referência ao cação deve-se ao fato de que, até alguns anos atrás, era capturado em gran-

des quantidades na zona costeira, sendo muito cobiçado pelo valor de suas barbatanas, que são ex-

portadas para o Japão. Interessados principalmente na “aba” do cação, poucas partes eram aprovei-

tadas desse peixe, sendo jogadas no mar. Atualmente o cação é capturado em regiões mais distantes

da costa.

Um mestre de barco disse que não jogava no mar as vísceras dos peixes que capturava, porque os

outros peixes não passariam mais ali. Indaguei-lhe porque o peixe não passava mais e ele deu a se-

guinte resposta: “Se tu pega uma estrada e tem um cara morto ali, tu vai voltar a passar por ali? Cla-

ro que não! E o peixe é a mesma coisa! Onde ele viu que tem peixe morto, ele não passa mais!”

As noções de poluição desenvolvidas por Mary Douglas (1992) demonstram como a noção de

sujeira, de poluição ritual pode ser usada para pensar o risco para a ordem social. Certas áreas de

pesca são consideradas “territórios mortos”, onde foram jogadas muitas vísceras e restos de peixes.

Segundo os pescadores, um desses locais encontra-se próximo ao farol de Mostardas, algumas mi-

lhas ao norte. Nesse local, outrora considerado um pesqueiro, ou seja, lugar onde freqüentemente se

encontravam peixes, uma traineira capturou toneladas de pescado e fez o descarte ali mesmo. O lo-

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cal tornou-se uma “área morta”, “não dá mais peixe, só tem lama e resto”. O aumento dessas “áreas

mortas” no oceano diz respeito a lugares que passam a ser evitados pelos mestres dos barcos. A

atuação das traineiras na costa, descartando grande quantidade de pescado, faz com que os mestres

se distanciem cada vez mais do que eles consideram como zonas “poluídas”, ampliando a territoria-

lidade da prática e aumentando perigos e desgastes de toda ordem.

Ao expor a movimentação crescente dos barcos na busca dos cardumes, as despesas com o

óleo e outras dificuldades relacionadas ao contexto de crise na pesca, os relatos versavam sobre os

deslocamentos no espaço marítimo, identificando os pesqueiros e os “espaços da morte”, possibili-

tando extrair o seguinte esquema:

Divisão do espaço da pesca:

MAR DE TERRA: Lagoa dos Patos (dentro)/costa do oceano (espaços da morte)

MAR DE FORA: 80-100m de profundidade (em direção à “nascente”, de onde vêm os peixes)

Na viagem realizada junto ao barco Alexandre II, pude acompanhar Mestre Nelinho, o qual

revelou a existência de uma “barata do mar”, parasita indesejado, criados nessas “zonas mortas”,

que rapidamente consome os peixes capturados:

O cara tem uma base do lugar onde pesca, né cara! Aí tu vê a posição e aí tu vai em cima da posição. Tem lugar que vai dá mais pescaria, tem lugar que não vai dá pra pescar. Tem lugar que não dá pra largar por causa da sujeira. Tem siri, tem barata.... Às vezes, claro, às vezes se mudam. Aí tu pensa que tá num lugar e tá noutro. Sabe como é? É que se mudam. [...] A barata só deixa a carcaça. Tu só vê o couro do peixe quando vêm. São uns bichinhos pequeno, desse tamanho assim, mas quando tu vê, só deixam o couro do peixe. [...] E ela ataca mais à noite. Ah, peixe morto, se largar na barata, não sobra nada! Ali, passando os 29, 30m, não dá pra largar é só sujeira, barata... Pergunta: Por que tem tanta sujeira ali? Resposta: Olha, uns dizem que é da imundícia, do resto do peixe que jogam ali, que eles limpam o peixe e jogam. Outros dizem que é o barco de arrasto, que remove o fundo. Antes era difícil pegar essa barata. Agora que tem aparecido. De seis anos pra cá, que começou a minar aqui de barata. Ah! Tem lugar aí que não dá nem pra ti largar a rede! A gente começa a colher e a barata vai comendo o peixe, aí fica só o espinhaço. Vai comendo tudo. Cação de cem quilos aí... Se bater, só deixa só o couro só. Eles levam a barata dentro da barriga. Chega a estufar. Às vezes, leva mais de cem baratas na barriga.

Os impasses determinados tanto pelas mudanças sistemáticas advindas do processo de

industrialização pesqueira em suas conseqüências predatórias, quanto pela gama de fatores advindos

dos impactos ambientais que afetam o patrimônio marítimo, e por fim, considerando as

transformações nas formas de vida do mundo moderno com novas demandas de consumo e

sentidos, designam os níveis de complexidade das modificações estruturais a serem apreendidos nos

estudos etnográficos de uma antropologia marítima. No caso dessa comunidade, são perceptíveis

cenários de conflitos que repercutem no fluxo da existência, no qual as práticas de autocontrole e de

solidariedade estão ligadas, entre outras coisas, à relação e aos limites entre a condição de

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vulnerabilidade desses grupos e suas estratégias de sobrevivência. Podemos elencar várias questões

relativas às práticas de autocontrole desta comunidade, que pode ser vistas aqui de acordo com a

noção de configuração social, na perspectiva de Nobert Elias (1994, 1998), enquanto um padrão em

mutação, no qual as condições adversas do ambiente marítimo - tais como viver durante semanas no

ambiente diminuto dos barcos e suportar o enjôo relativo ao seu balanço do barco, da diferente

temporalidade relativa a viver entre dois meios: a terra e o mar, dos riscos de naufrágios, de

desestabilização da vida familiar, do desemprego e das adaptações às inovações tecnológicas – são

narradas pelos pescadores dentro do universo das trajetórias de vida, revelando uma passagem, em

poucas gerações, de experiências oriundas de práticas agrícolas, para as pescarias em beira de praia,

para o ambientes estuarino da Lagoa dos Patos, e posteriormente para a pesca barra afora, em mar

costeiro e mar aberto.

A questão da reflexividade, através da difusão de interpretações, ou seja, da circularidade de

idéias no mundo global, acentua a percepção dos pescadores acerca de sua situação de risco e

vulnerabilidade. Nesse sentido, as estratégias de continuidade no tempo, estão ligadas a uma

configuração sociocultural específica, que se encontra em constante re-elaboração, sobretudo no

que se refere às tentativas de administração desses riscos e conflitos, através de práticas de

autocontrole dos pescadores em um contexto de uma territorialidade marítima ligada à

dinamicidade do seu modo de vida.

Territorialidade e segredo: a comunicação entre os mestres através do rádio na pesca de ema-

lhe

Na comunicação através do rádio, o companheirismo e a cooperação entre barcos ocorrem

pela troca de informações acerca do andamento das pescarias entre grupos de mestres. Alguns pes-

cam próximos e compartilham informações, dentro de um espírito de “ajuda” mútua. Tal relação

também se refere à possibilidade de algum barco se encontrar em apuros. Assim, torna-se importan-

te “ter alguém por perto” para socorrer ou ser socorrido. A cooperação em um ambiente considerado

adverso leva a esse tipo de aproximação. Por outro lado, a competição entre barcos gera determina-

das estratégias e ardis entre os mestres, que são dissimuladas por esse sentido geral de cooperação.

Sentido que adquire significado pleno nas situações que invariavelmente passam os pescadores

quando estão no mar, no lidar com uma natureza considerada exterior e onipotente; maior do que a

relativa segurança que pode representar um barco de grande porte ou mesmo um navio.

A ambigüidade entre competição e cooperação, que faz parte das relações entre os mestres,

são explicitadas na comunicação entre eles através do rádio das embarcações, que operam em uma

freqüência aberta, acessível para quem estiver sintonizado em determinada faixa. Isso leva os mes-

tres a executarem uma estratégia de revelação parcial acerca do andamento das pescarias e, sobretu-

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do, da direção a seguir na busca dos cardumes. Tais procedimentos apresentam-se de acordo com a

noção simmeliana de segredo, uma vez que marcam determinadas práticas sociais caracterizadas

por formas de comunicação nas quais o jogo de revelação e ocultação dizem respeito a estruturas de

poder (Maldonado, 1994 apud Simmel, 1983). Trata-se de uma configuração social baseada no co-

nhecimento, sendo que, nesse caso, remetem aos processos de competição/cooperação, tradição/mo-

dernização e hierarquia/igualitarismo.

Fig. 05. Mestre Nelinho na cabine do Barco Alexandre II.

Ao mesmo tempo em que mantêm certo segredo, os mestres procuram saber sobre a situação

dos colegas, configurando então um jogo de sondagens entre eles, em que as informações colhidas

fornecem pistas e revelam a competição que há por trás da omissão de determinadas informações.

As conversas giram em torno do andamento das pescarias, onde um mestre sonda o outro

acerca das rotas e áreas de pesca. Questão que remete ao segredo na marcação que cada mestre tem

das áreas de pesca, baseada na combinação entre um saber tradicional acerca das espécies que são

capturadas (hábitos e comportamentos de determinadas espécies de peixes) e o domínio proporcio-

nado pela tecnologia dos aparelhos de pesca. Ao se afastar da costa, a marcação a partir dos refe-

rencias de terra torna-se impossível. Como ocorre com a paisagem terrestre da região, - plana, prati-

camente sem acidentes geográficos -, o mar na costa do Rio Grande do Sul também não apresenta

ilhas ou enseadas. Estas somente se encontram justamente quando se chega à divisa com Santa Ca-

tarina ou quando se cruza a divisa com o Uruguai. Portanto, a marcação de pesqueiros ocorre atra-

vés das coordenadas geográficas através da bússola e do GPS. As escalas computadorizadas sobre o

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fundo mostram os lugares mais baixos e mais altos. Junto com a experiência do mestre, os equipa-

mentos permitem saber onde há lama, areia ou cascalho, ou alguma pedra grande (parcel). As coor-

denadas geográficas, por sua vez, são anotadas pelo mestre em um caderno. Neste caderno, constam

vários lugares onde este mestre pescou e encontrou peixe. Dependendo das condições do tempo e

das espécies de peixes a serem capturadas, o mestre procura imaginar um caminho hipotético que

esses peixes podem percorrer no oceano, através do conhecimento de lugares e coordenadas, de

acordo com um mapa mental desses lugares e do fundo do mar. Os melhores mestres geralmente

descobrem uma área de pesca. Já os inexperientes procuram escutar as informações através do rádio

e então seguir os “matadores de peixe”. Por esse motivo, as conversas são parciais e os mestres ex-

perientes ocultam as informações mais importantes, procurando despistar aqueles que não são con-

siderados “companheiros de pesca”. Mestre Nelinho revelou que alguns de seus colegas não eram

confiáveis, pois seguidamente achavam um pesqueiro e só avisavam os demais quando haviam car-

regado seu barco e não havia mais peixe. Devido a tal atitude, os outros mestres não avisavam estes

quando faziam uma “boa malhada”. Na costa, presenciei que o barco Santana navegava próximo ao

barco Alexandre II. Os respectivos mestres, Cláudio e Nelinho, estabeleciam comunicação através

do rádio. Estes mestres apresentavam uma relação de companheirismo entre eles. Isso, porém, não

significa dizer que não exista competição, uma vez que todos querem matar mais peixe do que os

colegas de profissão, na busca de reconhecimento entre os colegas, entre seus proeiros e na comuni-

dade pesqueira em geral, enquanto “matadores de peixe”. Uma competição para ver quem havia

matado mais peixe, ou seja, de quem era “o número um da doca”.

Contudo, entre eles essa competição obedece a uma ética, de acordo com as regras de coope-

ração e de informação. Os que são considerados grandes mestres, reconhecidos matadores de pei-

xes, optam por descobrir seus pesqueiros sem seguir ninguém. Esporadicamente, havia casos em

que algum mestre estava com uma produção muito abaixo do esperado e um colega do seu círculo

de amizades estava carregando o barco em uma área não muito distante. Então, por sugestão do

mestre em melhor situação, havia cooperação entre ambos e eles podiam atuar na mesma área.

Por vezes havia incidentes, especialmente entre barcos que atravessavam sobre as redes de

outro ou invadiam a área de pescaria de outros; entre os barcos com rede de emalhe, porém, predo-

mina certo respeito, no qual se mantinha uma distância mínima.

“Tudo o que tem na terra tem no mar”

Existem alguns tipos de cações que são capturados nessa região. A mangona é o mais agressi-

vo dos cações. Existe ainda o “anjo”, o “achatado” e o “cola-fina” (peixe miúdo, provavelmente al-

guma espécie juvenil de cação).

O cação-martelo é encontrado com certa freqüência, sendo chamado de “vaca boiada”. A ca-

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beça dessa espécie, em formato de martelo, é associada a um par de chifres. No meio da despesca,

um cação martelo foi encontrado e deixado propositalmente nas redes, tendo parado nas mãos de

dos proeiros que estava momentaneamente separado da mulher. Piti (motorista do barco) explicava,

com um sorriso, como era a brincadeira: “Um arranca a cabeça dele aqui e bota na rede, e o cara

que safa lá é que é o corno. Que pega na mão a cabeça pra safá lá. Aquele é o corno”.

A brincadeira do cação revela uma dimensão relativa aos conflitos em terra, devido ao distan-

ciamento físico dos homens em relação ao cotidiano da vida na cidade. Os embarcados sentem difi-

culdades em compartilhar a vida familiar com suas mulheres e filhos. Esse afastamento por conta

dos muitos dias de mar gera uma série de conflitos que, em alguns casos, acabam inclusive por de-

sestabilizar o núcleo familiar. Enquanto os homens saem para o mar, as mulheres administram a

vida em terra, responsabilizando-se pela educação dos filhos e o orçamento familiar. Algumas mu-

lheres trabalham fora de casa, mas os maridos preferem que elas fiquem em casa, cabendo a eles o

papel de provedores do lar. Contudo, o papel desempenhado pelas mulheres exige também uma

conduta moral/sexual relacionada à posição do homem, pautada por determinados códigos sociais

que se aproximam das noções de “honra” e “vergonha” masculina das sociedades mediterrâneas9.

As situações de “traição” (infidelidade) se contrapõem a essa conduta, geralmente estando relacio-

nadas a algo que acontece durante o tempo de mar ou de terra. Assim, casos extraconjugais de parte

das mulheres ocorrem notadamente durante o período em que os homens estão no mar. Entretanto a

analogia ao cação-martelo também pode ser vista como “imagem invertida” da conduta masculina,

uma vez que uma parte dos homens, assim que desembarca, vai diretamente para os bares e casas

noturnas, mantendo relações com outras mulheres, evidenciando a divisão de gênero em relação aos

espaços e códigos ético-morais.

Em outra viagem, quando embarquei no Rio Piracicaba, alguém reparou que um lobo marinho

seguia o barco. Volnei, um dos proeiros da embarcação, desencadeou uma conversa em torno de

peixes e lobos marinhos:

Ele vem na rede pegar peixe e rasga a rede tudo. Tem muito aqui na saída da barra. Atrapalha bas-tante o pescador pequeno aqui na costa. O lobo marinho é vagabundo, só vem comer na rede. A to-ninha (golfinho) não, ela caça, vai atrás da tainha. Dá pra ver, onde tem um bando de toninha, tem tainha.

Volnei revela uma interessante estratégia de identificação dos cardumes através de uma

observação dos movimentos da toninha, parte de um saber específico em relação ao ambiente

marinho, com base no conhecimento do comportamento desses animais. A comparação entre a

toninha e o lobo também é boa para pensar nessas metáforas marinhas em relação aos mestres de

9 Este tema vem de estudos clássicos da antropologia, realizados durante a década de 1960, sobretudo em autores como Peristiany & Pitt-Rivers (1992), assim como David Gilmore (1987), entre outros.

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barco. A toninha está para os mestres experientes, matadores reconhecidos, que vão atrás do peixe e

encontram os lugares de pesca, assim como o lobo marinho está para os mestres sem marcação, que

costuma seguir os mais experientes ao invés de procurarem o seu peixe.

Fig. 06. Neri e Carlinhos, tripulação no convés do barco Alexandre II.

As representações da terra em relação ao mar informavam o ambiente marítimo. “Tudo que

tem na terra tem no mar”, dizia Volnei, com a concordância dos demais pescadores. Uma frase

recorrente nos estudos sobre sociedades pesqueiras, mas que, ao mesmo tempo, apresenta seu

caráter singular, face às condições diferenciadas de cada grupo e situação. “O lobo marinho mesmo

é um cachorro, pode ver”, prosseguiu Volnei. Perguntei quais eram os outros bichos de terra que

eram encontrados no mar. Então, ele começou a listar alguns: “Tem o peixe-elefante, tem a vaca-

boiada, tem o peixe-galo, o peixe-sapo...”. O cação é temido porque “é canibal”. As representações

da terra em relação ao mar remetem à discussão sobre a relação entre humanos e não-humanos e a

relativização dessas fronteiras10. Conforme demonstram os estudos de Philippe Descola (1997,

2007), o “referencial antropocêntrico” como a base dessa relação, no sentido que ordena as

continuidades e descontinuidades entre humanos e não-humanos, através do significante social:

A objetivação social dos não-humanos, não pode ser dissociada da objetivação dos humanos. Am-bos os processos apóiam-se na configuração das idéias e das práticas que, no interior de cada socie-dade, define as concepções de si e de outrem; ambos os processos implicam que fronteiras sejam traçadas, que identidades sejam atribuídas e que mediações sejam elaboradas. (Descola, 2007:260).

Para Descola (2007), dentre os “modos de identificação” dessa relação entre humanos e não-

10 A respeito das fronteiras entre humanos e não-humanos, ver também Bruno Latour (2005).

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humanos, o analogismo, enquanto forma ontológica apresenta um caráter de singularidade, de indi-

víduos únicos, compostos eles mesmos de instâncias múltiplas, em equilíbrio instável, no qual há

uma necessidade de estabelecer sobre o caos correspondências, senão analogias. Assim, o terreno

das analogias e metáforas de animais marinhos em relação à vida na terra diz respeito a formas de

classificação que constroem associações, como esta entre lobo marinho e cachorro ou entre mulhe-

res e peixes/crustáceos.

Considerações finais

Os deslocamentos incessantes, intervenções e ocupações orientam-se para a sobrevivência

do modo de vida desses grupos em seus movimentos sazonais, com referência aos períodos de esta-

ções climáticas, conjugados à organização social, onde a relação com o ambiente biofísico está im-

bricada às práticas socioculturais. A ocupação e intervenção a partir do usufruto ou posse de deter-

minados espaços implicam uma valorização sobre determinado território, com referência ao conhe-

cimento do ambiente por parte dos pescadores, abrangendo tanto aspectos ecológicos e econômicos,

quanto de ordenação simbólica e metafísica. Assim, o encontro entre sociedade cultura e natureza,

em seus aspectos geográficos e simbólicos, pode ser considerado quanto às representações sobre um

determinado território, e sua extensão à organização social. Constituem-se, assim, aspectos identi-

tários sócio-territoriais que levam a pensar em elementos de uma cultura marítima com base na

construção histórica de ocupação do espaço. A questão da ocupação e intervenção no espaço maríti-

mo apresenta-se de forma um tanto peculiar e complexa, tendo em vista que o oceano, enquanto

matéria fluída e vasta remete à idéia de infinitude e refere-se a um espaço indivisível (Maldonado,

1994).

Portanto, através dos cadernos de anotações, repletos de coordenadas geográficas, que os

mestres carregam consigo, organiza-se um primeiro referencial de sua marcação. Tratam de indica-

ções, de lugares postulados, de opções de possíveis itinerários de busca dos cardumes. A estas repre-

sentações de lugares, sucedem-se cadeias de operações espacializantes, produzidas pela experiência,

formando um mapa mental do mar em zonas de pesca.

O processo de distanciamento no mar remete à questão da mobilidade, que revela o contexto

de transformações vivenciadas pelos pescadores, sobretudo na questão da mudança em relação à

configuração social, enquanto processos que estão continuamente em fluxo. A identificação dos

“tempos de crise” revela de forma mais específica questões relativas aos dilemas ambientais, no

qual se procurou demonstrar como esses grupos apresentam determinadas estratégias de vida e

práticas de autocontrole com vistas a possibilitar sua reprodução social e sua identidade de

pescadores.

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