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1 TERRITORIALIDADES INDÍGENAS E PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO – OS XOKÓ EM SERGIPE Avelar Araujo Santos Junior 1 Grupo de Pesquisa GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq) Universidade Federal da Bahia - UFBA [email protected] Resumo Esta proposta de reflexão tem como lócus de estudo a Terra Indígena Xokó, situada no município de Porto da Folha, no semiárido sergipano, e inserida na bacia hidrográfica do rio São Francisco. Sem perder de vista o entendimento das atualizações da questão indígena nacional, sugerimos a análise das interações que se interpõem entre a territorialidade Xokó e os projetos de desenvolvimento que repercutem diretamente na nas experiências de tempo e espaço vividas pelos Xokó. Assim, a projeção no território dos atuais desafios que acometem este povo indígena nos serve como elemento de verificação e análise das inúmeras contradições que envolvem o planejamento e a execução dos projetos de desenvolvimento junto à comunidade, sobretudo, após o seu reconhecimento oficial como única etnia indígena de Sergipe. Palavras-Chave: Terras Indígenas. Desenvolvimento. Territorialidade. Relações de Poder. Introdução A dinamicidade histórica das relações socioespaciais reproduzidas no Território Indígena Xokó nos instiga a um complexo de ponderações referentes às experiências de tempo e espaço vividas, atualmente, pelo povo Xokó na manutenção da terra indígena homologada pelo Decreto do Governo Federal n. 401 de 24/12/91, com 4.316 ha, de propriedade pertencente à União, localizada no município de Porto da Folha, no semiárido sergipano, inserida na bacia hidrográfica do rio São Francisco. Sem perder de vista a longa trajetória histórica que marcou as profundas perdas, lutas e reconquistas vivenciadas pelos Xokó nos últimos quatro séculos, nesta proposta de reflexão concentraremos nossas atenções no período contemporâneo, marcado pela retomada definitiva e inalienável deste território e pelas novas relações de poder que perpassam o reconhecimento oficial dos Xokó como única etnia indígena do Estado de Sergipe. Correspondendo a 410 pessoas, segundo os dados mais recentes do Instituto Socioambiental - ISA (http://ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3631). Após o intricado processo de homologação da Terra Indígena e de garantia do direito de posse coletiva e usufruto dos seus meios básicos de produção e subsistência, o povo Xokó depara-se com desafios próprios das relações que tornam ainda mais densa a

TERRITORIALIDADES INDÍGENAS E PROJETOS DE … · perpassam o reconhecimento oficial dos Xokó como única etnia indígena do Estado de Sergipe. Correspondendo a 410 pessoas, segundo

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TERRITORIALIDADES INDÍGENAS E PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO – OS XOKÓ EM SERGIPE

Avelar Araujo Santos Junior1 Grupo de Pesquisa GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq)

Universidade Federal da Bahia - UFBA [email protected]

Resumo Esta proposta de reflexão tem como lócus de estudo a Terra Indígena Xokó, situada no município de Porto da Folha, no semiárido sergipano, e inserida na bacia hidrográfica do rio São Francisco. Sem perder de vista o entendimento das atualizações da questão indígena nacional, sugerimos a análise das interações que se interpõem entre a territorialidade Xokó e os projetos de desenvolvimento que repercutem diretamente na nas experiências de tempo e espaço vividas pelos Xokó. Assim, a projeção no território dos atuais desafios que acometem este povo indígena nos serve como elemento de verificação e análise das inúmeras contradições que envolvem o planejamento e a execução dos projetos de desenvolvimento junto à comunidade, sobretudo, após o seu reconhecimento oficial como única etnia indígena de Sergipe. Palavras-Chave: Terras Indígenas. Desenvolvimento. Territorialidade. Relações de Poder. Introdução A dinamicidade histórica das relações socioespaciais reproduzidas no Território

Indígena Xokó nos instiga a um complexo de ponderações referentes às experiências de

tempo e espaço vividas, atualmente, pelo povo Xokó na manutenção da terra indígena

homologada pelo Decreto do Governo Federal n. 401 de 24/12/91, com 4.316 ha, de

propriedade pertencente à União, localizada no município de Porto da Folha, no

semiárido sergipano, inserida na bacia hidrográfica do rio São Francisco.

Sem perder de vista a longa trajetória histórica que marcou as profundas perdas, lutas e

reconquistas vivenciadas pelos Xokó nos últimos quatro séculos, nesta proposta de

reflexão concentraremos nossas atenções no período contemporâneo, marcado pela

retomada definitiva e inalienável deste território e pelas novas relações de poder que

perpassam o reconhecimento oficial dos Xokó como única etnia indígena do Estado de

Sergipe. Correspondendo a 410 pessoas, segundo os dados mais recentes do Instituto

Socioambiental - ISA (http://ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3631).

Após o intricado processo de homologação da Terra Indígena e de garantia do direito de

posse coletiva e usufruto dos seus meios básicos de produção e subsistência, o povo

Xokó depara-se com desafios próprios das relações que tornam ainda mais densa a

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questão indígena na etapa posterior à demarcação, tal como os diversos conflitos que

permeiam o processo civilizatório de integração à lógica de produção e consumo

capitalista e as novas formas de controle estabelecidas por um Estado historicamente

tutelar. As interações entre hegemônicos e subalternos são palcos de luta, mas também onde uns e outros dramatizam as experiências da alteridade e do reconhecimento. O confronto é um modo de encenar a desigualdade (embate para defender a especificidade) e a diferença (pensar em si mesmo através daquele que desafia). (CANCLINI, 2000, p. 279)

Ao longo das últimas três décadas, a lógica do ordenamento do território conduzida pelo

Estado Nacional para atingir níveis produtivos avançados que acompanhem as

tendências do mercado globalizante (per se, contraditório e excludente), seja através do

incentivo à modernização da produção ou à fluidez mercadológica, pouco tem

contribuído na efetivação de uma política de reconhecimento e valorização da

diversidade sociocultural que constitui a miscelânea da população brasileira. Ao mesmo

tempo, podemos depreender um endurecimento das posições anti-indígenas

conservadoras, sobretudo, no que diz respeito ao retraimento dos processos

demarcatórios, apesar dos avanços no relacionamento da sociedade e do Estado com os

povos indígenas desde a Constituinte de 1988.

Por outro lado, neste mesmo período, tem-se observado a ampliação da visibilidade da

questão indígena nacional nas suas mais diversas problemáticas e possibilidades de

superação, tal como a consolidação das organizações indígenas e o fortalecimento, em

todo o país, de um novo indigenismo pautado na profícua aproximação com os reais

interesses dos povos indígenas, concebido como contraposição à estéril política

indigenista de inspiração integracionista, militar, assistencialista e tutelar. A articulação

entre organizações indígenas e entidades indigenistas de caráter regional e nacional,

vem fomentando o debate conjunto acerca da questão indígena e, por sua vez, tem

viabilizado a constituição de uma agenda comum de mobilizações e atividades

pertinentes ao cumprimento dos direitos indígenas em todo o país, como também, no

que se refere à questões de grande importância para a sociedade em geral, como as

ambientais e culturais. Como exemplos temos: a) Organizações Indígenas: ANAÍ -

Associação Nacional de Ação Indigenista, UNI - União das Nações Indígenas,

CAPOIB - Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil,

CNPI – Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, APIB - Articulação dos Povos

Indígenas do Brasil, APOINME - Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do

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Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo; b) Entidades Indigenistas: CTI – Centro de

Trabalho Indigenista, INBRAPI – Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade

Intelectual, CIMI – Conselho Indigenista Missionário, CPT – Comissão Pastoral da

Terra, INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos e ISA – Instituto

Socioambiental.

Nesta nova dinâmica as organizações indígenas, reconhecidas ou não pelo Estado,

passam a ser concebidas como novas vias de interlocução junto as mais diversas

organizações comunitárias, órgãos do Estado, agências multilaterais e instituições

privadas, repercutindo diretamente na dinâmica das relações de poder reproduzidas nos

territórios indígenas. O surgimento das organizações indígenas tem sido considerado um avanço, quando visto da perspectiva da construção de alternativas, tanto à relação clientelista entre Estado e povos indígenas imposta pela estrutura tutelar, quanto à mediação de lideranças individuais que caracterizou momentos anteriores das lutas indígenas. Essas alternativas deverão possibilitar respostas culturalmente informadas e coletivas aos processos de territorialização impostos pelo Estado brasileiro. (LIMA, BARROSO-HOFFMAN, IGLESIAS, GARNELO & OLIVEIRA, 2004, p. 320)

Por conseguinte, esta conjuntura nos incita a buscar novas possibilidades de

entendimentos concernentes à questão indígena na atualidade, sobretudo no que diz

respeito às intervenções dirigidas ao desenvolvimento, sustentabilidade e gestão das

Terras Indígenas. Deste modo, considerando os diversos contextos da questão indígena

no Brasil, sugerimos aqui a problematização dos projetos de desenvolvimento que vêm

sendo progressivamente implementados, nas últimas três décadas, na Terra Indígena

Xokó.

Focalizando nossa análise no emaranhado dessas relações de poder contemporâneas,

abre-se a possibilidade de elencar um quadro com os modelos mais emblemáticos dos

projetos de desenvolvimento recém-inseridos nesse território, sejam quais forem suas

origens idealizadoras (por exemplo, órgãos públicos, organismos da sociedade civil,

associações, conselhos gestores, instituições bancárias, representações não-

governamentais, entidades religiosas, organizações privadas e agências multilaterais) ou

setores estratégicos envolvidos (meio ambiente, agrário, patrimônio cultural, saúde

comunitária, educação escolar indígena, saneamento, segurança alimentar, entre outros).

Apresentamos, brevemente, alguns exemplos factuais para possíveis estudos de casos,

tais como:

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a) O projeto de edificação de canais para captação de água do rio São Francisco em

direção à lagoa da Caiçara (segundo local de maior volume de pesca utilizado pelos

Xokó), financiado pelo Banco do Nordeste em meados da década de 1990 e que,

atualmente, apresenta-se sem qualquer sinal de continuidade, vide o sucateamento dos

seus aparatos técnicos e a progressiva diminuição dos recursos pesqueiros e da vazão

hídrica da referida lagoa;

b) A implementação da Escola Estadual Indígena Dom José Brandão de Castro, sob os

encargos da Secretaria de Educação do Estado de Sergipe (SEED – DR07), capaz de

demonstrar um relativo avanço em suas atividades na medida em que um número

crescente de crianças e jovens Xokó são inseridos no sistema de educação nacional,

embora persistam inúmeras assimetrias entre os conteúdos transmitidos e a valorização

das práticas e conhecimentos tradicionais, principais referências culturais dessas

crianças e jovens;

c) O funcionamento de uma Unidade Básica de Saúde que, há vinte anos, adota as

mesmas diretrizes homogeneizantes da medicina curativa em detrimento das

potencialidades da medicina preventiva associada aos saberes e práticas da medicina

indígena tradicional;

d) A recém inserção da comunidade no Programa de Combate à Pobreza Rural – PCPR

II 2ª Fase, referente ao fomento de arranjos produtivos locais financiados pelo Banco

Mundial através da Secretaria de Planejamento do Estado de Sergipe (SEPLAN/SE)

que, a despeito de outras possibilidades inovadoras, acaba limitando seus recursos

unicamente ao fornecimento de implementos agrícolas (tratores, roçadeiras,

colheitaderas, etc.), sem ao menos os necessários acompanhamentos técnicos

periódicos;

e) Por fim, também nos podem ser úteis os estudos de projetos produtivos em pleno

desenvolvimento, como os apoiados pela Fundação Dom Helder Câmara e a Rede

Cáritas Brasileira (organismo da CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)

que, apesar de um certa carência criativa e inovadora, além da ausência de continuidade

da assessoria técnica, estão voltados para o manejo da caatinga, a apicultura, a produção

de leite e a criação de caprinos e bovinos.

Portanto, nesta proposta trazemos algumas das nossas reflexões referentes às dinâmicas

espaciais e temporais reproduzidas na Terra Indígena Xokó face à contínua inserção de

projetos de desenvolvimento. Tratar-se-ia do que Oliveira (1998, p. 08) denomina como

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análise processual do poder, isto é: “um conjunto de mecanismos, estratégias e

compulsões que são utilizados e intervêm sobre os indígenas e suas coletividades na

definição dos seus direitos territoriais”.

Desenvolvimento Concepções indígenas de desenvolvimento e suas possibilidades A relevância que a temática indígena vem configurando entre as mais variadas

instâncias políticas, meios midiáticos ou linhas de pesquisas acadêmicas, remete-nos

enquanto geógrafos, investigadores das problemáticas sócio-espaciais, a ter uma

participação mais efetiva nessas discussões de maneira a contextualizar as noções de

planejamento e ordenamento do território como primordiais para o entendimento das

relações em vias de análise.

Frente aos desafios contemporâneos são fecundas as contribuições que o conhecimento

científico pode proporcionar na elaboração planejada e dialogada de estratégias de

desenvolvimento, desde que sejam assegurados os reais anseios da comunidade de

modo a promover a valorização do arcabouço do conhecimento tradicional produzido

pelos Xokó, livres de qualquer manipulação exógena que tente impor seus valores e

percepções como únicos. O desenvolvimento enquanto processo multifacetado de intensa transformação estrutural resulta de variadas e complexas interações sociais que buscam o alargamento do horizonte de possibilidades de determinada sociedade. Deve promover a ativação de recursos materiais e simbólicos e a mobilização de sujeitos sociais e políticos buscando ampliar o campo de ação da coletividade, aumentando sua autodeterminação e liberdade de decisão. Seu estudo, portanto, exige ênfase em processos, estruturas e na identificação dos agentes cruciais e das interações entre decisões e aquelas estruturas, procurando revelar os interesses concretos em jogo. (BRANDÃO, 2008, p. 03)

Buscando incorporar as próprias concepções indígenas de desenvolvimento planejado e

solidário, consideramos oportuna a interação entre essas matrizes de conhecimentos não

apenas sob o ponto de vista acadêmico, mas também por suas possibilidades de oferecer

um suporte teórico-prático às decisões encaminhadas pela comunidade Xokó no

planejamento e execução de diferentes projetos de desenvolvimento voltados para a

melhoria das suas condições de vida, sobretudo os que assumem o caráter de

etnodesenvolvimento local, a despeito dos riscos que acompanham o atual processo de

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descentralização das políticas sociais via a transformação dos espaços locais em

territórios de acumulação do capital. O foco central de quaisquer programas ou atividades que visam o etnodesenvolvimento é o grupo étnico e suas necessidades econômicas e reivindicações políticas. Para tanto, o principal nível no qual se trabalha o etnodesenvolvimento é o local, justamente porque é nesse nível onde existem maiores oportunidades para os grupos étnicos exercerem influência nas decisões que lhes afetam e, como conseqüência, promover mudanças nas suas práticas econômicas e sociais. É no nível local que começa o processo de construção da autogestão étnica. (LITTLE, 2002, p. 40)

Deste modo, julgamos esta proposta de interação dialógica socialmente útil à

justificação dos interesses do povo Xokó frente às contingências da sociedade

contemporânea, mantendo como premissa a interlocução das suas percepções de mundo.

Logo, para promover os benefícios desta convivência intercultural em meio à incauta

sobreposição dos projetos de desenvolvimento, sem perder de vista os seus riscos e

formas de controle social, consideramos indispensável a incorporação das lideranças

tradicionais Xokó nos processos decisórios que determinam os encaminhamentos destas

ações e programas de desenvolvimento, afinal, estes interlocutores representam os

legítimos canais de manifestação dos valores e expectativas da sua comunidade, tão

imprescindíveis ao surgimento de propostas lúcidas, consistentes e organicamente

articuladas. A realidade tem revelado que os Estados nacionais têm absorvido as orientações emanadas de um poder global que toma as decisões, através de instituições e organismos multilaterais que interferem na vida social de todos os indivíduos. Localmente, nos países aparecem os discursos de autonomia e participação, com a adoção de políticas descentralizadoras que racionalizam recursos e promovem um “pseudopoder de decisão” para as esferas administrativas mais próximas do cidadão. (SANTOS, 2010, p. 27)

Apesar das contradições inerentes ao modelo de controle social via, por exemplo, a

regularização jurídica das organizações indígenas, o reconhecimento oficial das

entidades representativas do povo indígena Xokó é sintomático das atuais possibilidades

da política indigenista nacional, ampliadas pela consolidação de parcerias institucionais

e pela participação em diversas redes organizacionais, de maneira que manifesta o

empenho da comunidade na promoção dos necessários rearranjos estruturais que

possibilitem apreender as populações indígenas por um prisma não paternalista e fora

do âmbito tutelar hegemônico. Atualmente, a comunidade Xokó estabelece suas

relações institucionais a partir de duas entidades civis organizadas, com inscrição no

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Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) - a Associação Indígena do Povo Xokó e

a Associação Indígena das Mulheres Xokó (a mais atuante). A criatividade, fruto da interlocução interna à comunidade, instrumentaliza o desenvolvimento de projetos adequados às condições sócio-culturais locais. Em conjunto, estudos técnico-científicos e projetos de longa duração somam-se ao saber empírico local, e tornam efetivo e producente o conhecimento sobre o lugar. A afirmação da identidade cultural é imprescindível ao fortalecimento da comunidade em seu ambiente, possibilitando-lhe a escolha das melhores soluções e, consequentemente, a condução do processo de desenvolvimento local. (KASHIMOTO, MARINHO & RUSSEF, 2002, p. 41)

A fim de entender o surgimento das novas instâncias de representação sociopolítica

engendradas pelos Xokó e, por sua vez, o estabelecimento de novos canais de

interlocução, lançamos mão sobre a noção de “identidade de projeto” proposta por

Castells (1999, p. 24) que nos indica como elemento de elucidação a prática dos atores

sociais que, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance,

constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade. Neste

sentido, também nos instiga a acepção de Oliveira (1999, p. 20) a respeito do que ele

designa por territorialização: Processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma nova unidade sócio-cultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado.

Reconhecendo as particularidades Xokó na (re)produção das suas acepções tradicionais

e projeções futuras, ininterruptamente atualizadas, enfatizamos a necessidade do

entendimento destes princípios, pois, segundo considerações de membros da liderança

Xokó, a falta de sincronia entre os interesses locais e os sobrepostos por agentes

externos tem sido uma das principais causas dos malogros dos projetos de

desenvolvimento implementados na Terra Indígena Xokó, nas últimas três décadas.

Para o entendimento destas relações, sugerimos uma penetrante reflexão sobre a

identidade Xokó motivada por novas estratégias políticas e organizacionais assumidas

na contemporaneidade, com realce aos aspectos simbólicos da recriação sucessiva dos

ideais comunitários e às práticas solidárias cotidianas, denotando como dimensão

interpretativa essencial a territorialidade. A territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está intimamente

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ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar. (HAESBAERT, 2005, p. 03)

A Territorialidade Xokó face os projetos de desenvolvimento A paisagem se configura como um mosaico de habitats construído pelas interações entre

processos naturais e antropogênicos. Para uma descrição analítica das relações

ambientais estabelecidas pelo povo Xokó no esboço da sua paisagem, torna-se

apropriado apreender esta realidade sistêmica em seus aspectos físicos e humanos, em

contínua transformação, evidenciando-se a substituição de um meio natural por outro

cada vez mais artificial e instrumentalizado (SANTOS, 1996, p. 186).

Neste sentido de totalidade, aspectos humanos se integram aos ambientais numa

simbiose de fenômenos que serve de suporte à idealização de um espaço natural

originário, basilar na edificação memorial da noção de pertencimento, proteção e

conservação da Terra Indígena Xokó. Por conseguinte, pode-se depreender uma

associação direta entre meio ambiente e visão do mundo, sendo esta última alimentada

pelos ritmos, potencialidades e limitações da dinâmica natural, onde os aspectos físicos

se constituem em teto protetor da natureza e sua miríade de conteúdos (TUAN, 1980, p.

91). Assim, além de sustentáculo material para a existência do grupo, a natureza

protagoniza uma relação subjetiva idealizada e praticada pelos índios Xokó no

processo constituição da sua memória coletiva, transcendendo aspectos meramente

materiais e utilitários. Da perspectiva dos povos indígenas, a ameaça à biodiversidade é vista como algo que põe em risco a garantia da sua própria sobrevivência. Consideram que o reconhecimento de seus direitos a seus territórios deveria ser uma pré-condição para a conservação, já que isto permitirá que prossigam com seus estilos de vida auto-suficientes e sustentáveis. (GRAY, 2004, p. 121)

Os modos coletivos de concepção, uso e ocupação da terra por parte dos Xokó

evidenciam um conjunto de especificidades que consideramos fundamentais na

elaboração e execução dos projetos de desenvolvimento, no entanto, em muitos dos

casos, essas ações e programas estratégicos tem adotado uma visão utilitarista,

homogeneizante e economicista da terra como forma de cooptação ao sistema de

produção e consumo capitalista, num processo que denota as atuais formas

compulsórias de integração sistemática das populações indígenas à sociedade brasileira.

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Há muito, os Xokó vêm construindo um profundo conhecimento tradicional a respeito

do seu ecossistema, por meio de experimentações sucessivas, desenvolvendo sistemas

tradicionais de manejo e viabilizando a reprodução de suas práticas sócio-culturais na

atualização constante do seu auto-reconhecimento étnico. Continuamente são

aprimorados saberes e técnicas na apropriação material e simbólica dos recursos

naturais, que são ajustados aos anseios cotidianos da comunidade. Tal arcabouço de

conhecimentos fundamenta-se num conjunto de experiências de relações múltiplas com

a natureza, desenvolvidas através de diferentes gerações, fundamentadas em paradigmas

de respeito, proteção e conservação. Portanto, representa parte significativa do

patrimônio cultural produzido historicamente por esse povo. Conhecimento tradicional é definido como um conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de geração em geração. (...) Há uma interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização social, (...) não há uma classificação dualista, uma linha divisória rígida entre o “natural” e o “social” mas sim um continuum entre ambos. (DIEGUES & ARRUDA, 2001, p. 29)

O espaço cotidiano vivido pelos Xokó se projeta como um suporte para distintos

interesses individuais que, por força da necessidade recíproca de solidariedade entre os

membros do grupo, são articulados de maneira a se tornarem unos e consensuais. Isso não

exclui a existência de discordâncias dentro da comunidade, pois, em se tratando de

território, relações conflituosas de poder são variáveis inerentes ao espaço (RAFFESTIN,

1993, p. 158). Todavia, os Xokó procuram estabelecer estratégias de organização estáveis

e simétricas, cuja principal seria a valorização identitária e territorial.

Diante deste panorama, a análise interpretativa da territorialidade Xokó incita à

consideração de elementos ambientais e ecossistêmicos que compõem tal complexo

sócio-espacial. Assim sendo, reconhecer os profundos vínculos de pertencimento

identitário dos Xokó para com o seu território coletivo é essencial para a compreensão

dos discursos, práticas e fenômenos que constituem as vicissitudes da participação da

comunidade no emaranhado das relações de poder que perpassam pelos projetos de

desenvolvimento em questão. O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi. (SANTOS, 2008, p. 96)

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Modelando os contornos do nosso estudo, a identidade cultural regula as relações de

identificação de um determinado grupo e seus indivíduos a um território, atribuindo-lhe

funções e afetividades a partir de distintos interesses, estímulos e circunstâncias. Sobre

essa maneira topofílica de sentir e vivenciar um lugar, individual e coletivamente,

comenta Ladouceur: A identidade cultural não se traduz somente em relação à história e à memória coletiva: ela congrega igualmente uma espacialidade e, assim, a identidade cultural corresponde ao pertencimento a um território (distante ou imediato). Camponeses sem-terra, indígenas ou quilombolas despossuídos de seus territórios afirmam sua diferença e reivindicam esse território que não possuem, ou melhor, que está controlado por um grupo dominante. (2003, p. 13)

Essa maneira de sentir intimamente o lugar por meio de um enraizamento identitário,

que pressupõe a preocupação com o destino e a construção do futuro (SANTOS &

SILVEIRA, 2011, p. 19), fortalece a coesão da comunidade perante os percalços

internos e externos, possibilitando a continuidade de um imprescindível sentimento

comunitário que, no caso da nossa proposta, envolve o povo Xokó e suas formas

particulares de apropriação e organização do espaço, sintetizadas na territorialidade. A territorialidade se configura como uma mediação na relação entre os homens e a destes com o espaço, já que a apropriação da natureza, de certa forma, exterioriza a dominação entre os homens. Assim, a territorialidade evidencia e caracteriza a maneira como uma sociedade lida com o território, denota concepções e racionalidades diversas que marcam as fronteiras simbólicas que separam sociedades e grupos sociais distintos. (ISOLDI & SILVA, 2009, p. 31)

Conclusões As provocações suscitadas nesta proposta de reflexão sobre os projetos de

desenvolvimento implementados na Terra Indígena Xokó, sobretudo, após o

reconhecimento oficial deste território, nos indicam que a sistematização dessas ações

compensatórias não tem logrado efeitos duradouros e, de fato, não se propõem a alterar

as relações de poder estabelecidas pela ordem envolvente, reificadas pela indução de

demandas, pelo despreparo dos seus agentes gestores e pela incitação à lógica da

competitividade interna e externa por recursos e/ou mercados, dentre outras limitações

burocráticas ou (des)interesses particulares. Além disso, percebe-se a cristalização de

um complexo de limitações que impossibilitam a comunidade de conduzir com real

autonomia a gestão do seu território tradicional, pois suas lideranças e sujeitos

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comunitários pouco participam das decisões que envolvem os projetos de

desenvolvimento introduzidos por agentes externos, como também, não dispõem da

infraestrutura material e da capacitação técnica necessárias para sua elaboração e

execução, de maneira que ficam condicionados às concepções de outras organizações e

subordinados ao poder público na busca por recursos que viabilizem a melhoria das suas

atuais estratégias de sobrevivência, tendo em vista a plenitude dos seus direitos

enquanto povos indígenas.

A projeção no território das problemáticas sócio-espaciais vividas pelo povo Xokó nos

serve como elemento de verificação analítica das inúmeras contradições que envolvem

o planejamento, a formulação e a execução dos projetos de desenvolvimento que vêm

sendo fomentados na comunidade após o seu reconhecimento oficial como única etnia

indígena de Sergipe. Além disso, a constante atualização desses desafios, sobretudo, no

que se refere à manutenção das referencias culturais tradicionais e ao manejo dos

recursos ambientais, permite-nos traçar uma formulação provisória que considera a

continuidade desses conflitos como sintomática das frequentes incongruências

existentes entre as limitações dialógicas que os projetos desenvolvimento acabam

adotando e a complexidade dos fundamentos da territorialidade Xokó.

Destarte, entendemos os projetos de desenvolvimento ajustados aos anseios locais como

um complexo multifacetado que permite a sinalização de campos de atuação

revigorados e focos de engajamento alternativos, capazes de constituir novos

parâmetros nas formas de estabelecer as redes organizacionais e de fomentar com

equidade o diálogo entre os sujeitos envolvidos nos projetos de desenvolvimento. Tendo

em vista a ampliação deste diálogo transformador sugerimos essa proposta de estudo em

andamento como uma sucinta contribuição para a reflexão que envolve a questão

indígena e a dinâmica das territorialidades protagonizadas pelos povos indígenas

brasileiros.

Notas __________________________ 1 Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (1998-2001), Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (2002-2005), Mestre em Estudios Ameríndios pela Universidad Complutense de Madrid (2006-2007). Atualmente, é doutorando em Geografia Pela Universidade Federal da Bahia, como também é bolsista da CAPES e membro do Grupo de Pesquisa GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq). E-mails: [email protected]; [email protected]

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