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UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS FCH PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇAO STRICTU SENSU EM GEOGRAFIA JULIANA GRASIÉLI BUENO MOTA TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES GUARANI E KAIOWA: DA TERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA NA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS À MULTITERRITORIALIDADE Dourados/MS 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS – FCH

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇAO STRICTU SENSU EM GEOGRAFIA

JULIANA GRASIÉLI BUENO MOTA

TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES GUARANI E KAIOWA:

DA TERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA NA RESERVA INDÍGENA DE

DOURADOS À MULTITERRITORIALIDADE

Dourados/MS

2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS – FCH

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇAO STRICTU SENSU EM GEOGRAFIA

JULIANA GRASIÉLI BUENO MOTA

TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES GUARANI E KAIOWA:

DA TERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA NA RESERVA INDÍGENA DE

DOURADOS À MULTITERRITORIALIDADE

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Geografia

(Área de concentração: Produção do Espaço

Regional e Fronteira), da Faculdade de

Ciências Humanas, da Universidade Federal

da Grande Dourados – UFGD, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre em

Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Jones Dari Goettert

Dourados/MS

2011

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Prof. Dr. Jones Dari Goettert (Orientador)

(Presidente da Comissão)

__________________________________________________

Prof. Dr. Levi Marques Pereira (Co-orientador - UFGD)

___________________________________________________

Profª. Drª. Silvana de Abreu (Membro UFGD)

__________________________________________________

Prof. Dr. Clifford Andrew Welch (Membro UNIFESP)

Dourados, 2011.

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Dedicatória

Dedico este trabalho a alguns pingos de meu oceano

simbólico:

Aos meus pais Ilson e Julia pelo maior amor do

mundo; Ao meu companheiro Rodrigo (peixe-boi)

pelas diversas formas de amar que ultrapassam o

distanciamento espaço-temporal; À minha irmã

Giovana pelo grande amor que lhe tenho; Aos amigos

Mieceslau, Roseline e Cirlani pela irmandade

construída nas geografias do pé. De forma ainda mais

especial, dedico aos Guarani e Kaiowa da Reserva

Indígena de Dourados e dos acampamentos de re-

existências e retomadas territoriais: Apyka‘y, Ñu Porã

e Pacurity. A vocês agradeço os saberes e sabores por

mim nunca experimentados até reconhecê-los como

demasiadamente humanos. Obrigada pela

receptividade e pelas palavras proféticas, que se

apegando a Ñanderuvusu, podem, sim, mudar o

mundo. Especialmente aos amigos Kaiowa Ñandesy

Floriza e Kaiowa Ñanderu Jorge.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho se construiu no/pelo movimento de gentes, nos espaços de chegada e

partida que me possibilitaram os mais simples e avassaladores encontros, desencontros e

reencontros. A partir do movimento de des-re-territorialização, construímos multiterritorialidades

de carinho e respeito. Assim, o agradecimento é uma simples expressão de generosidade.

Em Tupi Paulista

Primeiramente agradeço aos meus pais Júlia (Marmita) e Ilson (Papito), gentes simples

que a partir dos meus quinze dias de vida nos encontramos. À minha mãe pelo exemplo de

mulher que tanto admiro, e ao meu pai ―pelos devaneios loucos a me procurar‖... Como filha de

coração que sou, agradeço a vocês por todo amor, por sempre estarem ao meu lado quando a

distância se faz presente, pelos abraços, beijos, ensinamentos, sonhos, desejos, dificuldades,

conflitos... Em suma, só posso sonhar com outras possibilidades de mundo, mais justa e

igualitária, no qual me apego, porque vocês me encontraram e eu me encontrei em vocês.

Ao periquito, peixe-boi, boi, cabeça de mafagafo, sonhador, marxista, educador,

geógrafo, louco, racional, Rodrigo, Simão, meu amor... Obrigada pela paciência, pela troca de

saberes e sabores, pela ajuda constante durante a dissertação: pelas discussões teóricas, leituras de

textos, por tudo que me ajudaste... Saiba que sem você a construção deste trabalho seria muito

mais difícil. Mas, sobretudo, obrigada por me fazer feliz e estar sempre comigo.

Aos meus irmãos Marcos, Renato, Reginaldo e Giovana pelos momentos de alegrias e

pelas vezes que me ausentei. Em especial à minha irmã Giovana por entender que às vezes era

necessário estar longe. Minha pequena irmã (Zóio de Cobra), estaremos sempre unidas pelos

laços do coração.

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À minha tia Luzia pelo carinho e apoio de sempre. Ainda, à cunhada Rose, à sobrinha

Rafaela, ao sobrinho Ryan e as primas Daiara e Maraisa pelos momentos inesquecíveis de minha

infância em Dracena.

À Dona Adelina e ao Senhor Zezinho por todo o apoio, carinho, afetividade e

preocupação. Também ao Zezinho por me ajudar no trabalho de dissertação, digitando meus

fichamentos e a intensa preocupação em sempre me ajudar. E aos primos Guto, Simone e Elaine

pelo grande carinho e amizade.

A Luluka, Elder e Ademir, gentes que tanto me fazem rir, degustar guloseimas e pelo

apoio de sempre. Ao Elder, meu amigo-irmão pancinha, bolinha... Obrigada por todo carinho,

incentivo, por me deixar tão irritada, me fazer dar gargalhadas, até... (risos).

Ao nego Xande e à nega Lilica por toda amizade e irmandade, carinho, conversas,

risadas, loucuras...

Aos amigos André (Pirçoso) e Marlon pelo apoio e carinho.

À querida Tânia, bibliotecária do Centro Cultural de Tupi Paulista, por ter-me

despertado a prática da leitura. Obrigada pelas boas indicações de livros, em especial ―O pequeno

príncipe‖.

Em Três Lagoas

Aos amigos da moradia estudantil da UFMS de Três Lagoas. De forma especial e

carinhosa, agradeço a Katia, Jaqueline e Talita pelo quarto e comida compartilhada, pelas

palhaçadas, loucuras, sonhos, lutas, viagens, despedidas, encontros, conflitos, pela amizade

construída pela/na alteridade, por serem parte da minha vida...

Entre Tupi Paulista e Três Lagoas, com imenso amor e carinho, agradeço a minha

família de Três Lagoas, Karina (Bruxa Keka), Jaqueline (Tartaratixã) e Luciano (Dente e/ou

Dentiques). Obrigada pela amizade e irmandade, pelos ótimos momentos que passamos juntos,

pelas dificuldades que tivemos que superar e pelo apoio durante a dissertação de mestrado.

Ainda, ao Luciano, agradeço pela ajuda na construção dos mapas que compõem esta dissertação.

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Ao querido amigo Mieceslau Kudlavicz (Véio Miê), parceiro de sala de aula, amigo de

luta, sempre preocupado com minha saúde, pelo carinho de sempre... Com você aprendi que

outro mundo é possível, que é possível mudar, transformar o mundo, a começar com aqueles que

estão em nossa volta. Ainda, agradeço a Sara, Belkis e Thiago pelo carinho, apoio e amizade.

A Gislani (Gis de Cera) do meu coração, pelo carinho, simplicidade, generosidade, pela

presença na distância, por todo apoio, pelos grandes encontros....

Ao amigo Silvio, pelo carinho e por compartilhar comigo momentos desesperadores de

provas durante a graduação que tanto nos atordoava. Nunca nos esqueceremos das provas do

professor de Geologia Zé Luis.

Agradeço aos amigos Laís, Eduardo (Eduardinho) e Ivan por todo o apoio. À Laís,

agradeço por estar sempre perto, embora a distância se faça presente; ao Eduardinho, valeu pelas

saídas de campo em acampamentos e assentamentos de luta pela Reforma Agrária; ao amigo

paulistano, sul-matogrossense e carioca Ivan, agradeço pelas conversas incríveis, pelas

contribuições durante a dissertação.

Agradeço a todos os meus professores de graduação em geografia da UFMS/Três

Lagoas. De forma especial, agradeço à amiga e professora Rosemeire Aparecida de Almeida

(Rose), por todos os ensinamentos e orientações informais. Sempre me lembrarei do grande

incentivo que me levou a tentar o mestrado em Dourados e estar junto aos Guarani e Kaiowa; ao

professor e orientador de iniciação científica, Francisco José Avelino Júnior, mais conhecido

como China. Obrigada pela oportunidade em desenvolver o projeto de Iniciação Cientifica no

tocante aos conflitos agrários em Mato Grosso do Sul. Sabendo que estar na universidade

integralmente é uma condição restrita a poucos alunos, havendo a necessidade de dividir o tempo

dos estudos com o tempo de trabalho, agradeço pela oportunidade e confiança.

Agradeço aos camponeses e às camponesas sem terra que pude conviver na região do

Bolsão sul-matogrossosense. Em especial, ao senhor e senhora Gente Fina do cinturão verde. A

vocês agradeço a receptividade em receber-me em vossa casa, pelo ótimo caldo de cana, pelas

deliciosas rapaduras, pela fartura de alimentos existentes na casa-quintal, pelas palavras de

sabedoria.

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Em Dourados

Muito mais do que uma pesquisa acadêmica, este trabalho se fez construindo grandes

amizades. Com imenso respeito e carinho, agradeço aos Guarani, Kaiowa e Terena da Reserva

Indígena de Dourados e acampamentos de retomadas territoriais, que sempre se disponibilizaram

em me receber em vossas casas, contar-me as trajetórias de vida entre um terere e outro, as boas

gargalhadas, ensinamentos... Em especial ao Jorge e Floriza, por toda acolhida em vossa casa,

pelas histórias, rezas, sobretudo, pela amizade; ao Geraldo, Odália, Alzira, Maciel, Jack, Rebeca

e Estive pelos agradáveis momentos juntos; a Damiana e seu filho Nivaldo do acampamento

Apyka‘y, expressão de re-existências nos entre-lugares do barraco de lona e a possibilidade de

―vigiar‖ seu Tekoha; Nelson e Antônia pelas risadas calorosas e momentos de brincadeiras;

Antônia e Admiro pelas histórias fantásticas, pela reza e canto; ao Anastácio Peralta por

apresentar-me à Reserva Indígena de Dourados; ao Zezinho e Faride do acampamento Laranjeira

Ñanderu pelos ensinamentos e ótimos momentos com vocês compartilhados; aos Kaiowa

Bonifácio, Priscila, Rogério, Madalena e Valdemir do acampamento Pacurity e Ñu Porã; aos

meninos do Brô Mc‘s, com sua rima Guarani e Kaiowa, proporcionaram-me grandes reflexões;

Ao Kaiowa Lírio e a Kaiowa Fátima por ter despertado em mim todos os caminhos percorridos

juntamente aos Avá Guarani e Kaiowa... Em suma, sem vocês este trabalho não seria possível de

ser realizado.

Ao professor e orientador Jones Dari Goettert que nos encontros da vida tornou-se um

grande amigo. Lembro-me quando o conheci no encontro Sul-matogrossense de geografia em

Três Lagoas. Posteriormente a este encontro, por muitas e muitas vezes nos encontramos pela/na

amizade. Obrigada pelas sugestões que me proporcionaram avançar o olhar-olhares sobre os

―outros-eu‖. Ainda, pelas boas conversas, receptividade em receber-me em sua casa juntamente a

sua família. Assim, obrigada Jones, Elaine, Pablo e Maju pelos momentos de alegrias, boas

conversas e pelos laços de amizade.

Ao co-orientador deste trabalho, Levi Marques Pereira, agradeço pela disposição em

sempre me ajudar, mesmo antes de uma orientação formal. Obrigada por todos os ensinamentos

que me proporcionaram grandes reflexões, pela disponibilidade em atender-me em sua casa,

pelas saídas de campo, pela compreensão, pela boa conversa e sugestões.

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A amiga-irmã, companheira de casa e pesquisa Roseline (Rosa), no qual agradeço por

todo apoio durante a construção desta dissertação e por sempre estar ao meu lado quando mais

precisava, principalmente nos momentos mais difíceis... Este trabalho foi construído a partir de

nossas idas e vindas à reserva, acampamentos... Assim, partes dos olhares aqui escritos foram

construídas por conversas e vivências compartilhadas, que sob a ajuda do ―santo fuscão amarelo‖

e das pedalas de bicicleta, vivenciamos grandes momentos e construímos uma grande relação de

carinho e respeito.

À Ciriema, Ciriguela, Cirlani do meu coração. Obrigada por todos os momentos que

esteve ao meu lado. É muito difícil falar sobre você, a grande ajuda que deste durante a

dissertação de mestrado, possibilitando a criação de uma grande amizade. Como lhe disse uma

vez, o mestrado, muito mais do que um título, me deu de presente uma irmã. Você é o outro lado,

racional e louco, de meu ―eu‖.

A minha casa e família em Dourados, com imenso carinho e pelos ótimos momentos

compartilhados, agradeço ao Carlos (Carlito), Fabiano (Mustela Furus), Leandro, Roseline

(Rosa), Juliano (Juju), Luis Eduardo (Mineiro) e João (Gurizão). Cada um a seu modo, agradeço

pela paciência nos dias de stress, pela alegria, festas, pelo abraço apertado, pelas boas conversas,

por todo o carinho... Simplificando, nossos momentos ―em nossa casa‖ são inesquecíveis e

sentirei muitas saudades.

Ao Marcelo, grande amigo e irmão caçula... Obrigada pelos diversos momentos que

passamos juntos, pelo apoio, preocupação e o imenso carinho que tiveste comigo.

Aos amigos gaúchos Cássio (Cassito e Cassiolino), Tanize (Tamize), Joseana e Glaúcio

por todo carinho, preocupação e ótimos momentos compartilhados. Ainda ao Cássio, agradeço

imensamente pelos diálogos em torno das sociedades indígenas, pelo ótimo companheirismo nas

aulas do mestrado e em minha vida como um todo, pelo apoio, parceria de sempre, pela

amizade...

À amiga Lenir, agradeço por compartilhar comigo os grandes momentos em torno das

disciplinas de mestrado em história, pelas boas conversas em torno dos Terena e suas lutas pelo

território.

Aos amigos Thiago (Thiagão), Robson (Robin), Marcos Mondardo (Marculino

Pintombo), Roger (Ursolino), Diógenes, Viviane (Buga), Elem (Cure), Dona Terezinha,

Madalena (Madá), Wagner (Wagnão), Ana, Sullivan e Lenir. Dourados tornou-se um lugar onde

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posso considerar como minha casa, pois desde minha chegada vocês se tornaram, cada um a seu

modo, grandes amigos.

À Comissão Pastoral da Terra de Mato Grosso do Sul, agradeço por toda a ajuda,

momentos de discussão e apoio. De forma especial, agradeço a irmã Lucinda, Miê, Marcos,

Vanilton e Roberto.

Entre a CPT e o mestrado, agradeço aos amigos Juliana, Vanilton e Amandinha. Foram

ótimos os momentos que passamos juntos, compartilhando momentos de alegrias e tristezas...

Obrigada pelas bobagens compartilhadas, pela grande ajuda durante o mestrado. Ainda à Juliana,

obrigada por todo apoio desde os dias de prova de mestrado, acompanhadas de ansiedade diante

do ―Santo Pendulo‖ (risos).

Ao Conselho Indigenista Missionário de Mato Grosso do Sul (CIMI/MS) por toda ajuda

durante a dissertação de mestrado. Agradeço pela amizade, pela companhia em idas e vinda de

Terras Indígenas e acampamentos de retomadas de territoriais indígenas. Em especial, ao Geraldo

(Gerardino), Egon, Laila, Flávio, Lidiane, Leda e Rogério.

Aos professores do mestrado em geografia e história da UFGD que tanto me ajudaram

no processo de construção e envolvimento com a pesquisa. De forma especial agradeço a Márcia

Misuzaki, Graciela Chamorro, Protásio Paulo Lander, Antônio Dari Ramos, Sedeval Nardoque,

Eudes Fernando Leite e Edvaldo Moretti. Ainda, agradeço aos professores Jorge Eremites de

Oliveira e Silvana de Abreu por todos os apontamentos teórico-metodológicos no Exame de

Qualificação.

Aos amigos do mestrado em geografia e história da UFGD e ao Grupo de estudos

―Outrosnós‖. A vocês agradeço pelas discussões que muito me ajudaram e os momentos de

alegrias em nossas saídas de campo. Em especial agradeço ao Kaiowa Izaque João, Ana Cristina,

Danilo, Karolina (Karola-Karolaine), Ricardo, Lenir, Alonso (Bil), Adriana, Daiana, Elias.

Ainda, à Karolina, agradeço por toda ajuda durante a dissertação.

Ao Thiago Cavalcante agradeço pelas indicações de textos, pelas saídas de campo e

pelos diálogos em torno dos Guarani e Kaiowa.

Aos técnicos administrativos da UFGD, Ivanir, Elaine, Danieli, Cleber e Bruno.

Agradeço por toda disponibilidade em ajudar-me. Ainda ao Bruno, agradeço por todas as

indicações de leituras, pelas coronas e pelos ótimos momentos de diálogos.

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Ao Angelo e Adelson, do Labgeo, agradeço por toda disponibilidade em ajudar-me na

construção dos mapas que também compõem esta dissertação.

Outros “cantões”

Aos amigos de Nova Andradina, Cirso, Ana e Guilherme pelo carinho em receber-me

em vossa casa, pelas boas conversas e pela preocupação em momentos que muito me afligiam.

Aos amigos João Cândido, Mauro (Maureques), Natacha (Nati), Gabriela (Gabi) e Isis

do Mar. Obrigada por toda a ajuda, pelas ótimas contribuições em torno da dissertação de

mestrado, pelas boas conversas e risadas pela/na amizade.

Agradeço a Mayara pela disponibilidade em transcrever minhas fontes orais e por

compartilhar comigo, via e-mail, momentos importantes de nossa vida.

Agradeço a CAPES e a FUNDECT pela bolsa de mestrado. Foi através dela que tive a

oportunidade de dedicar-me aos estudos e estar de forma mais intensa na Reserva Indígena de

Dourados e acampamentos indígenas.

Em suma, agradeço a todos e todas que direta e indiretamente contribuíram para

construção deste trabalho.

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―É bom essa história, essa história é comprido...

que a gente fala isso daí, não tem fim.

É bastante! Meu história é comprida‖.

Kaiowa Ñandesy Floriza

Reserva Indígena de Dourados (2009).

―Tenho o privilégio de não saber quase tudo.

E isso explica

o resto‖.

Manoel de Barros

Menino do Mato (2010, p.241).

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RESUMO

Buscamos entender neste trabalho as relações socioterritoriais presentes vividas pelos Guarani e

Kaiowa dentro e fora da Reserva Indígena de Dourados (Dourados – Mato Grosso do Sul),

estabelecendo comparação com as relações socioterritoriais vividas no passado. Neste sentido,

demonstramos as territorialidades vividas no modo de vida dos antigos - Tekoyma - e no novo

modo de vida – Tekopyahu. Esse processo é marcado pelos movimentos de des-re-

territorialização e de construção de territorialidades múltiplas – multiterritorialidade – e

múltiplas temporalidades. Entendemos que há necessidade de considerarmos as novas formas de

ser/estar no mundo a partir do movimento de desterritorialização de seus territórios

tradicionalmente ocupados (Tekoha) e o processo de ―territorialização precária‖ nas reservas

indígenas. Se partirmos da premissa de que os Guarani e Kaiowa sempre vivenciaram

multiterritorialidades, as transformações no modo de viver, que têm como eixo central o

―encontro‖ e/ou desencontro com os não indìgenas - Karaí, as histórias-trajetórias passam a ser

redefinidas juntamente com as novas espacialidades vividas. Desta forma, a partir da etnografia

(observação participante), traçamos as multerritorialidades-multitemporalidades Guarani e

Kaiowa analisando suas narrativas e buscando registrar os olhares sobre a Reserva Indígena de

Dourados e sobre outras modalidades de territorialização (como os acampamentos) traçando as

multiterritorialidades, identidades, fronteiras e tensionamentos engendrados pelo

compartilhamento de territórios, marcado pela sobreposição de Tekoha e pelas fronteiras étnicas.

A partir das relações de conflitualidades, há por parte de algumas famílias a busca por outras

formas de reterritorialização que se constituem, principalmente, na construção dos laços

simbólicos existentes com os territórios tradicionalmente ocupados. A busca pela

reterritorialização faz persistir que existem indígenas em fundos de fazendas e mesmo em

fazendas, nas cidades, em acampamentos de retomadas territoriais, acampamentos e

assentamentos de Reforma Agrária, entre outras formas socioterritoriais de fazer-se Guarani e

Kaiowa. As disputas em torno da ―questão indìgena‖ se dão, principalmente, pela apropriação

social da natureza, marcadas pelos conflitos que envolvem o agronegócio versus a demarcação de

territórios indígenas, fazendo-se no embate da constituição da propriedade privada da terra,

dominada pelo modelo agrário-agrícola fundiário historicamente constituído no Brasil, e os

territórios indígenas. As retomadas territoriais são redimensionadas em uma multiplicidade de

estratégias de resistência e/ou re-existências, marcadas por muliterritorialidades de esperanças, de

sonhos e de saudades. Sobretudo, entendemos que histórias-trajetórias indígenas se fizeram e

estão se fazendo em uma ―simultaneidade de estórias-até-agora‖, opondo-se ao discurso

ideológico de uma única história possível baseado nos fundamentos do pensamento do/no

sistema-mundo moderno-colonial. Por isso, as multiterritorialidades Guarani e Kaiowa envolvem

a interdependência entre passado e presente, buscando possibilidades de futuro nos preceitos do

bem viver - Teko Porã.

Palavras-chave: Guarani e Kaiowa, Reserva Indígena de Dourados, Multiterritorialidades,

Territorialização Precária, Retomada dos Territórios Tradicionais.

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RESUMEN

Buscamos comprender en este trabajo las relaciones socio territoriales vividas por los Guaraní y

los Kaiowa dentro y fuera de la Reserva Indígena de Dourados (Dourados - Mato Grosso do

Sur), estableciendo comparaciones con las relaciones socio territoriales vividas en el pasado. En

esto sentido, demostramos las territorialidades vividas en el modo de vida de los antiguos -

Tekoyma – y en el nuevo modo de vida – Tekopyahu. Este proceso es marcado por los

movimientos de des-re-territorialização y de la construcción de múltiples territorialidades -

multiterritorialidade - y de múltiples temporalidades. Así entendemos que existe la necesidad de

considerar las nuevas formas de ser/ estar en el mundo a partir del movimiento de

desterritorialização de sus territorios tradicionalmente ocupados (Tekoha) y del proceso del

―territorialização precario‖ en las reservas indìgenas. Además partimos de la premisa de que el

Guaraní y el Kaiowa siempre vivirán multiterritorialidades, las transformaciones en la manera de

vivir, que tiene como idea central el encuentro y/o desencuentro con los que no san indígenas -

Karaí las historias-trayectorias pasan a ser redefinidas con las nuevas espacialidades vividas. De

tal manera, a partir de la etnografía (observación del participante), analizamos las

multerritorialidades-multitemporalidades Guaraní y Kaiowa y sus narrativas buscando registrar

las miradas en la Reserva Indígena de Dourados y otras modalidades de territorialização (como

los acampamientos) analizando as multiterritorialidade, las identidades, las fronteras y los

tensinamente producidos para compartir el territorio, marcado por el superposición del Tekoha y

por las fronteras étnicas. A partir de las relaciones conflictuales, has tenido por parte de algunas

familias la búsqueda por otras formas de reterritorialização que se constituyen, principalmente,

en la construcción de los lazos simbólicos existentes con los territorios tradicionalmente

ocupados. La búsqueda por la reterritorialização hace persistir que existen indígenas en fondos/

o adentro de granjas, en las ciudades, en los acampamientos de disputa territorial, en los

acampamientos y los asentamientos de la Reforma Agraria, entre otras formas socio territoriales

a hacer sentirse un Guaranì y Kaiowa. Los conflictos alrededor de la ―cuestión indìgena‖ ocurren

principalmente por la apropiación social de la naturaleza, marcada por los conflictos que

envuelven el agronegócio contra la demarcación de los territorios indígenas, convirtiéndose en

el choque de la constitución de la característica privada de la tierra, dominada por el modelo

agrario constituidos históricamente en el Brasil, y las territorialização indígena. Las retomadas

territoriales son redimensionadas en una multiplicidad de estrategias de resistencia y/o las re-

existencias, marcadas por las multiterritorialidades de esperanzas, los sueños y los

extrañamientos. Así, entendemos que esas historias-trayectoria indígenas si hacen y están

haciendo una ―simultaneidad de historias hasta ahora‖, oponiéndola al discurso ideológico de una

única historia posible basada en los fundamentos del pensamiento del / y en el mundo moderno-

colonial del sistema‖. Por lo tanto, las multiterritorialidades Guaraní y Kaiowa implican la

interdependencia pasada y actual en medio, buscando posibilidades de futuro en los precitos del

bueno vivir - Teko Porã.

Palabras-Clave: Guaraní y Kaiowa, Reserva Indígena de Dourados, Multiterritorialidades,

Territorialização Precária, Retomada de los Territorios Tradicionais

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: CAMINHOS QUE PERCORREMOS ........................................................ 22

PRIMEIRO CAPÍTULO

O SISTEMA-MUNDO MODERNO-COLONIAL: BREVES CONSIDERAÇÕES EM

TORNO DO “DESCOBRIMENTO” / DESENCONTRO DA AMÉRICA ........................... 41

1.1 – ―Conceituando‖ gentes e sociedades ................................................................................... 43

1.2 - O pensamento ocidental ........................................................................................................ 50

1.2.1- Multiplicidade de histórias-trajetórias nas ―simultaneidades de estórias-até-agora‖ no

―descobrimento‖ e/ou desencontro do ―novo mundo‖ .................................................................. 54

1.3 - Espaços-tempos do sistema-mundo moderno-colonial: a construção do outro .................... 63

1.3.1- Inventando o ―novo mundo‖ e os outros ............................................................................. 70

1.3.1.1 – A construção do outro e as sociedades indígenas falantes da língua guarani: os Ñandeva,

Kaiowa e Mbya .............................................................................................................................. 80

1.4 – O sistema-mundo moderno-colonial e a imposição de novas territorialidades .................... 85

SEGUNDO CAPÍTULO

ORGANIZAÇÃO SOCIOTERRITORIAL GUARANI E KAIOWA NO TEKOHA: ENTRE

O TEKOYMA E TEKOPYAHU ................................................................................................. 104

2.1 – A relação espaço-temporal entre os Guarani e Kaiowa ...................................................... 105

2.2 – O território como categoria geográfica e como subsídio para compreender o Tekoha ...... 116

2.3 - Organização socioterritorial no Tekoyma: as multidimensionalidades e multiterritorialidades

do Tekoha e Tekoha Guasu ......................................................................................................... 131

2.4 – A reza e a ampliação da multiterritorialidade Guarani e Kaiowa nas relações com a natureza

e o sobrenatural - os Jará: a importância da apropriação simbólica dos seus territórios ............ 145

TERCEIRO CAPÍTULO

A CRIAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS: TERRITORIALIZAÇÃO

PRECÁRIA E IMPOSIÇÃO DO TEKOPYAHU .................................................................... 159

3.1 – A criação da Reserva Indígena de Dourados e as novas formas de ocupação do território

Guarani e Kaiowa ........................................................................................................................ 161

3.1.1 – A presença Guarani no Ka‘aguyrusu e na criação da Reserva Indígena de Dourados ... 178

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3.1.2 – A presença Terena no Ka‘aguyrusu e na Reserva Indígena de Dourados ....................... 183

3.2 – O processo de constituição da Reserva Indígena de Dourados enquanto um território

precário ........................................................................................................................................ 190

3.2.1 – As ocorrências de suicídios e assassinatos na Reserva Indígena de Dourados ............... 202

3.3 – A construção de fronteiras e identidades socioterritoriais entre os Guarani, Kaiowa e

Terena: ―Quem vive na Jaguapirú é quase branco... quem é da Bororó é Kaiowa de verdade‖212

3.3.1 - As fronteiras étnico-culturais e a construção de territórios/territorialidades entre os

Guarani e Kaiowa ........................................................................................................................ 232

QUARTO CAPÍTULO

DA TERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA À MULTITERRITORIALIDADE:

ESTRATÉGIAS DE RE-EXISTÊNCIAS ............................................................................... 245

4.1 – As múltiplas identidades Guarani e Kaiowa....................................................................... 246

4.1.1 - Os marcadores de diferenciação entre os Guarani e Kaiowa e a construção de

multiterritorialidades a partir do artesanato ................................................................................. 256

QUINTO CAPÍTULO

TERRITÓRIOS EM DISPUTA E AS MULTITERRITORIALIDADES NAS

RETOMADAS DOS TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS: O TEKOHA

..................................................................................................................................................... 292

5.1 – ―O Kaiowa é mato, vive do mato‖: a necessidade de retorno ao Tekoha ........................... 294

5.1.1 - O ―discurso competente‖ do agronegócio - Ordem, Progresso e Desenvolvimento ....... 302

5.2 – Modalidades de territorialização e as estratégias de luta pela retomada dos territórios

tradicionais: a Reserva Indígena de Dourados e os acampamentos Apyka‘y, Ñu Porã e Pacurity

..................................................................................................................................................... 320

CONSIDERAÇÕES FINAIS

SEM TEKO NÃO HÁ TEKOHA E SEM TEKOHA NÃO HÁ TEKO ................................... 359

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..........................................................................................367

ANEXOS......................................................................................................................................391

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Lista de Tabelas

Tabela I – Reservas criadas pelo SPI entre 1915 -1928 .............................................................. 162

Tabela II – População das Reservas Indígenas Demarcadas pelo SPI de 1947 - 1984 ............... 176

Tabela III – Suicídios na Reserva Indígena de Dourados ........................................................... 204

Tabela IV – Assassinatos na Reserva Indígena de Dourados ...................................................... 208

Lista de Figuras

Figura I – Representação do Kaiowa Ñanderu Jorge em torno da multiterritorialidade do Tekoha

Iguarussu ..................................................................................................................................... 143

Figura II – Ka‘aguyrusu .............................................................................................................. 165

Figura III - Representação do Kaiowa Ñanderu Jorge sobre a organização de Tekoha‘s nas

proximidades da RID ................................................................................................................... 167

Figura IV – Olhares do Kaiowa e Ñanderu Jorge sobre a organização socioterritorial da RID . 224

Figura V - ―Olhares Kaiowa‖ ...................................................................................................... 227

Figura VI - ―Olhares Terena‖ ..................................................................................................... 227

Figura VII - ―Olhares Guarani‖ ................................................................................................... 228

Figura VIII - Organização socioterritorial da família dos Kaiowa Ñanderu Jorge e Ñandesy

Floriza na Reserva Indígena de Dourados (Jaguapirú) ................................................................ 241

Figura IX - Organização socioterritorial da família dos Kaiowa Ñanderu Admiro e Ñandesy

Antônia na Reserva Indígena de Dourados (Bororó) .................................................................. 241

Figura X - Organização socioterritorial da família dos Kaiowa Ñanderu Admiro e Ñandesy

Floriza em desenho da filha Laudeci na Reserva Indígena de Dourados (Bororó) .................... 242

Figura XI - A Reserva Indígena de Dourados e a construção de multiterritorialidades Guarani e

Kaiowa na produção e circulação do artesanato a partir de territórios-rede ............................... 260

Figura XII – Discurso do agronegócio contra a demarcação de Terras Indígenas ...................... 305

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Figura XIII – Representação da mídia em torno das sociedades indígenas ............................... 311

Figura XIV – Panambizinho aos ―olhos‖ do desenvolvimento ................................................... 313

Figura XV – Charge sobre disputas de territórios entre indígenas e camponeses sem terras ..... 314

Figura XVI - As multiterritorialidades construídas no movimento de esparramo ...................... 323

Figura XVII – Área onde estava localizado o acampamento Apyka‘y antes do despejo ............. 345

Figura XVIII - Localização do acampamento Ñu Porã .............................................................. 347

Figura XIX - Localização do acampamento Pacurity ................................................................. 352

Lista de Gráficos

Gráfico I – Ocorrências de suicídios em Terras e Reservas Indígenas em MS ........................... 204

Gráfico II – Ocorrências de assassinatos em Terras e Reservas Indígenas em MS .................... 208

Lista de Mapas

Mapa I - Localização das Reservas Indígenas criadas pelo SPI entre 1915 a 1928 .................... 163

Mapa II - Ocupação Tradicional Guarani em Mato Grosso do Sul ............................................. 180

Mapa III - Ocupação Tradicional Kaiowa em Mato Grosso do Sul ............................................ 180

Mapa IV– A conurbação existente entre a RID e a cidade de Dourados .................................... 200

Mapa V - Territorialização precária: a densidade populacional da Reserva Indígena de Dourados

..................................................................................................................................................... 203

Mapa VI – Localização das territorialidades Guarani e Kaiowa nas relações entre reserva e cidade

de Dourados ................................................................................................................................. 285

Mapa VII – Disputas territoriais (ocupações de terras) fomentadas pelos movimentos

socioterritoriais em Mato Grosso do Sul (2000-2008) ................................................................ 317

Mapa VIII - Conflitos em torno das disputas territoriais em Mato Grosso do Sul (2000-2008)..317

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Mapa IX - Território tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa ................................ 319

Mapa X - Localização dos acampamentos Guarani, Kaiowa e Terena no município de Dourados

..................................................................................................................................................... 338

Lista de Fotos

Foto I – Parte interna da Ogapysy e/ou casa de reza do Ñanderu Jorge e Ñandesy Floriza ....... 157

Foto II - Caraguatá e Guaimbé .................................................................................................. 264

Foto III – Diferenciações entre Guarani e Kaiowa a partir do artesanato .................................. 265

Foto IV– Múltiplos produtos artesanais produzidos pelo Guarani e Kaiowa............................. 267

Foto V – Indígenas cruzando a Avenida Marcelino Pires em Dourados ................................... 291

Foto VI – Área onde estava localizado o acampamento Apyka‘y antes do despejo ................... 345

Foto VII – Acampamento Apyka‘y ............................................................................................. 346

Foto VIII – Acampamento Ñu Porã localizando na área em litígio ........................................... 348

Foto IX - Acampamento Apyka‘y: entre a cerca e o afasto ........................................................ 353

Foto X – Acampamento Apyka‘y: Reza em torno do Yvyra marangatu .................................... 355

Foto XI - Acampamentos Apyka‘y, Pacurity e Ñu Porã ............................................................ 357

Anexos

Anexo I – MPF arrendamentos na Reserva Indígena de Dourados ............................................. 391

Anexo II – A Reserva Indígena de Dourados e a Missão Caiuá ................................................. 392

Anexo III - Índios: mão de obra no canavial ............................................................................... 393

Anexo IV – Famasul sugere segurança armada contra as invasões ............................................ 394

Anexo V- Conflitos entre camponeses sem terra e indígenas ..................................................... 395

Anexo VI – Índio é baleado em ataque a acampamento ............................................................. 396

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Anexo VII – Tekoha Pindorocá (Representação elaborada pelo Kaiowa Ñanderu Jorge) ......... 397

Anexo VIII – Tekoha Iguarusu (Representação elaborada pelo Kaiowa Ñanderu Jorge) .......... 398

Anexo IX - Tem pão velho? - (Emmanuel Marinho) .................................................................. 399

Anexo X – Representação socioterritorial da família de Laudeci (Cedido pela professora do

Projovem Roseline Mezacasa)..................................................................................................... 400

Anexo XI – Representação do Kaiowa Ñanderu Jorge sobre a organização socioterritorial na RID

..................................................................................................................................................... 401

Anexo XII – Questionário estruturado trabalhado com os Terena .............................................. 402

Anexo XIII – Questionário estruturado trabalhado com não indígenas ...................................... 404

Anexo XIV .................................................................................................................................. 405

Anexo XV .................................................................................................................................... 406

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Siglas

CAND - Colônia Agrícola Nacional de Dourados

CANs – Colônias Agrícolas Nacionais

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CUT/MS – Central Única dos Trabalhadores de Mato Grosso do Sul

FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Mato Grosso do Sul

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUVI – Famílias Unidas do Vale do Ivinhema

MPF – Ministério Público Federal

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

RID – Reserva Indígena de Dourados

SPI – Serviço e Proteção ao Índio

TAC – Termo de Ajustamento de Conduta

UNI - União das Nações Indígenas

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INTRODUÇÃO: CAMINHOS QUE PERCORREMOS

―Te mostro a vida de verdade, seja bem vindo a minha realidade, sei que

quando eu passo me olha diferente e a gente luta pra manter a nossa crença. O

homem branco trás doença, dizimou nosso povo, causou nossa miséria e agora

me olha com nojo.

Sou índio sim e vou até falar de novo Guarani, Kaiowa e me orgulho do povo.

Esse povo que é guerreiro é batalhador o povo que resiste com força e com

amor, amor pela terra querida, amor por seus filhos e filhas. Filhos e filhas

marcados pela vida, mais de 500 anos uma ferida que não cicatriza.

Vive em mim, a esperança de uma nova vida, vive em mim também por ti, irmão

índio que ainda acredita também por ti.

Sei que não é fácil levar a vida desse jeito fazer o que?

Me rendo ou luto contra o preconceito,, sou índio sim, pobre, mas não burro

como pensam esses sujeito, daquele jeito, continuo a minha sina sabendo muito

bem que gerou minha ruína, 510 anos de abandono confinados em reservas que

mal cabem nossos sonhos, pra nós o kit índio é o papel e a caneta, rimando na

batida vou levando minha letra e não aquele kit que você pensa babaca, rindo

com os amigos uma corda e uma ―baca‖, vai achando graça mais o papo aqui é

sério você e sua cachaça mandou muitos pro cemitério, terra sagrada pra nós é

Tekoha, fazendeiro ocupa não tenho medo de falar, de lá pra cá, guerras

conflitos chegou a hora de luta pelo direitos dos índios‖.

Música: A vida que eu levo - Brô Mc‘s1 e participação

do grupo Fase Terminal.

A esperança e o sonho marcam a vida dos Guarani e Kaiowa, tanto na Reserva Indígena

de Dourados (RID2) quanto em outros territórios por eles transitados e vividos, buscando

garantias de direitos que propiciem o reconhecimento de sua humanidade junto à sociedade

moderna-colonial. De diferentes formas e de diferentes jeitos e gostos, todos os homens e todas

as mulheres do mundo clamam por melhores formas de viver, ou, como prefere os Guarani e

Kaiowa, buscam pelo bem viver - Teko Porã.

Para entendermos este contexto, da busca pelo bem viver envolvendo os Guarani e

Kaiowa, é necessário dizer que o estado de Mato Grosso do Sul conta com uma população

1 O grupo de Rap Brô Mc‘s é formado por Clemerson, Kelvin, New e Charlie da Reserva Indígena de Dourados.

2 Deste momento em diante, todas as vezes que nos referirmos a Reserva Indígena de Dourados iremos referenciá-la

como RID.

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indígena estimada em 72.000 indivíduos3 e, deste total, 41.500 é referente à população Guarani e

Kaiowa (SIASI/FUNASA/SESAI, 2010)4, em sua maioria vivendo em reservas indígenas

demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

Entretanto, é necessário acrescentarmos que os Guarani e Kaiowa se encontram vivendo

em reservas e/ou Terras Indígenas, fundos de fazendas, acampamentos de Reforma Agrária,

acampamentos de retomadas territoriais, nas cidades (principalmente nas periferias), entre outras

modalidades territoriais (Levi Marques Pereira, 2006; 2007), nos permitindo dizer que os

processos de territorialização entre estas sociedades são múltiplas.

Para compreendermos o processo de busca pelo Teko Porã entre os Guarani e Kaiowa

partimos do contexto histórico de desterritorialização de seus territórios tradicionais e a

reterritorialização em reservas indígenas. Elencamos ainda que, para muitas famílias, as reservas

são lugares onde este modo de viver torna-se inviabilizado, marcado pelo modo incorreto de

viver - Teko Vai, fazendo-se enquanto ―território precário‖, como é o caso da RID, por isso,

buscam outras possibilidades de viver fora da reserva.

Esta relação nos permite dizer que a ocupação indígena ultrapassa as definições jurídicas

do Estado Nacional que buscou demarcar ―lugares para os ìndios‖, demonstrando as capacidades

múltiplas de territorialização entre estas sociedades, muitas vezes, também marcada pela

precariedade. Entretanto, mesmo que precárias, estas formas de territorialização alternativa

tornam-se, para algumas famìlias Guarani e Kaiowa, um ―lugar melhor para se viver‖, como

elucida a Kaiowa Maria, pois permite a exclusividade familiar e étnica, além de facilitar as

alianças políticas e a afinidade social.

Assim, para entendermos a presença Guarani e Kaiowa na sociedade sul-matogrossense,

se faz necessário compreendermos como se deu o processo de espoliação de seus territórios

tradicionalmente ocupados, sendo que este é marcado pela política de integração nacional que se

deu a partir da ocupação dos ―espaços vazios‖ no inìcio do século XX. Neste contexto, o SPI

criou entre os anos de 1915 a 1928 oito reservas para os Guarani e Kaiowa com a finalidade de

liberar seus territórios para a ocupação e colonização não indígena.

3 Esta população se divide entre as sociedades Guarani, Kaiowa, Terena, Kinikinawa, Kamba, Ofaié, Guató,

Kadiwéu e Atikum, segundo aponta os dados de Giovani José da Silva (2003) e Instituto Socioambiental (2010). 4 Estes dados são aproximativos, propiciando demonstrar um panorama geral da população indígena no estado de

Mato Grosso do Sul. É necessário considerar que estes dados, majoritariamente, são referentes à população indígena

nas áreas demarcadas, como as reservas e/ou Terras Indígenas, e não contemplam as múltiplas formas de

territorialização entre as sociedades indígenas.

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Neste contexto, a criação da RID em 1917 (localizada no município de Dourados/MS) é

consequência do processo de desterritorialização dos Guarani e Kaiowa de seus territórios

tradicionalmente ocupados – Tekoha, na perspectiva de que os órgãos indigenistas oficiais,

primeiramente o SPI e, posteriormente a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), buscavam, de

forma precária, impor a reterritorialização em reservas indígenas com a finalidade de que, em um

futuro próximo, estas sociedades deixassem de ser indígenas e pudessem ser integradas a

sociedade nacional, como não índios.

Dessa maneira, consideramos três momentos importantes para compreender as

multiterritorialidades Guarani e Kaiowa. O primeiro momento foi constituído no espaço-tempo

do modo de vida dos antigos e é representado na língua guarani pela palavra Tekoyma5. Esse

momento se encerra com o processo de desterritorialização dos Guarani e Kaiowa de seus

territórios tradicionalmente ocupados. O segundo momento é iniciado na reterritorialização dos

Guarani e Kaiowa nas oito reservas indígenas criadas pelo SPI, entre os anos de 1915 e 1928,

entre elas, a RID, marcada pelo novo modo de viver – Tekopyahu, imposto aos Guarani, Kaiowa

e Terena, que compartilham território entre si. E o terceiro momento é marcado pelas

multiterritorialidades criadas como mecanismos de resistências ao processo de imposição da

territorialização precária nas reservas, movida pela interdependência de antigos e novos modos de

viver - Tekoyma-Tekopyahu.

Para compreendermos os movimentos dos Guarani e Kaiowa no espaço-tempo, que são

marcados pelos processos de des-re-territorialização, consideramos a importância do conceito

geográfico de território para melhor refletirmos acerca da dinamicidade destas sociedades.

Partimos do pressuposto de que a construção/desconstrução/reconstrução dos territórios se dá

pela/na passagem e/ou trânsito das gentes6 entre um lugar e outro e, neste movimento, pela/na

disputas/conflitos inerentes à apropriação e/ou controle destes territórios. De forma que o

território muda de lugar de acordo com o movimento das gentes e que esta mudança, muitas

vezes, é envolvida por tensionamentos, já que promovem ―encontros‖ e desencontros de modos

de ser, estar e pensar o mundo.

5 O sufixo Yma na língua guarani faz referência ao modo de vida dos antigos, ou seja, a junção da palavra Teko +

Yma, referencia o modo de vida dos antigos. Para Levi Marques Pereira (2004, p. 106) ―existe todo um conjunto de

personagens, narrativas, histórias e mitos que se fazem referência ao tempo dos antepassados reais e mìticos [...]‖. 6 Sobre o uso do termo ―gentes‖ discutiremos essa opção no inìcio do primeiro capìtulo.

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A dinâmica desses processos ocorrem por meio das relações que as gentes estabelecem

entre si, com/na natureza e com os aspectos imateriais (sobrenaturais, como é o caso dos Jará –

donos de tudo). Assim, a constituição dos territórios é produto e, dialeticamente, produtores das

relações materiais e simbólicas-cosmologicas que movem e viabilizam as sociedades reconhecer-

se no mundo. Neste sentido, podemos dizer, em linhas gerais, que as territorialidades Guarani e

Kaiowa se fazem pela/na mobilidade de viver entre-territórios, ou no viver entre-lugares (em

aproximação a Homi Bhabha, 1998).

No movimento de ir e vir das gentes, se torna notório que as mesmas não conseguem

viver sem território, pois, como propõe Rogério Haesbaert (2007), homens e mulheres

necessitam, como relação intrinsecamente humana, territorializar-se. Portanto, homens e

mulheres mudam e transitam por diferentes territórios, participando de outras territorialidades.

Assim, vão criando e reinventando territórios-territorialidades, cruzando-se e entrelaçando-se

entre o ―outro-eu‖, isto é, o processo é sempre transcultural e híbrido, ao mesmo tempo tenso e

abarcando disputas entre modos de viver e de ser no mundo.

Neste sentido, elencamos ainda que as categorias geográficas de espaço, lugar e

território nos possibilitam ampliar o debate em torno do processo de Territorialização-

Desterritorialização-Reterritorialização (T-D-R), de modo que a partir desse movimento,

pensamos a territorialização precária e as multiterritorialidades Guarani e Kaiowa. Desta forma,

estas relações estão sendo feitas e/ou desfeitas, acionadas e/ou negadas, assim como a

multidimensionalidade de diferentes modos de viver que possibilitam a construção e destruição

de territórios, fronteiras e identidades múltiplas.

Deste modo, entendermos os Guarani e Kaiowa como gentes multiterritorializadores,

sabendo que as multiterritorialidades vividas e construídas se dão no processo de construção e

destruição de territórios. Contudo, não temos a pretensão de pensar estas relações dissociadas das

temporalidades que envolvem e movem os homens e as mulheres do/no mundo, já que

consideramos que, se há multiterritorialidades, é necessário que se considere as múltiplas

temporalidades.

Logo, se existe uma espacialidade produzida pelas gentes que se movem no mundo,

traçando suas territorialidades, este ir e vir é marcado pelo tempo, fazendo e desfazendo-se de

distintas formas, já que o tempo não se faz da mesma forma em todas as sociedades. Como

prefere Norbert Elias (1998, p. 41): ―as relações temporais, como se vê, são relações de nìveis

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múltiplos e grande complexidade [...]‖. Neste contexto, as temporalidades não são vividas da

mesma forma em todas as sociedades, e que nem todas têm no controle do relógio e do calendário

as mesmas formas de perceber a realidade em que vivem, viveram ou poderão viver,

considerando que a configuração espaço-tempo se faz correlacionada e interdependente entre si.

Pensando esta relação no processo de construção de territórios, o território torna-se uma

categoria fundamental para compreendermos as relações que envolvem os Guarani e Kaiowa no

espaço-tempo, de modo que nossa compreensão em torno de sua organização socioterritorial

parte da perspectiva da existência de múltiplos territórios, considerando que as relações

socioterritoriais construídas hoje estão se fazendo de maneira interdependente com o modo de

vida dos antigos - Tekoyma, fundamentalmente territórios do/no passado, constituído nos

territórios tradicionalmente ocupados.

Assim, é a partir do passado, enquanto representatividade do Teko Porã, que

conseguimos compreender as novas conjunturas espaciais vividas a partir da ―perda‖ dos

territórios tradicionalmente ocupados e a consequente territorialização precária na RID, sendo

que estes processos são concomitantes marcados nas narrativas Guarani e Kaiowa, permeadas

pelas novas relações que lhes foram impostas, o novo modo de viver - Tekopyahu, assim como, a

consideração do que eles acreditam ser o Teko Vai - modo incorreto de viver, complexificando a

construção das multiterritorialidades.

O aparecimento do não indígena, participante da narrativa Guarani e Kaiowa como o

―branco‖ - Karaí, torna-se marca central da desorganização socioterritorial no Tekoyma. A partir

deste momento, passamos a compreender o processo de desterritorialização Guarani e Kaiowa do

Tekoha, e as novas formas de reterritoriorialização, sobretudo, a territorialização precária na RID

e, deste modo, traçar as novas formas de multiterritorialidades, marcadas pela precariedade, mas

também pela esperança e sonho de viver uma vida melhor. Para as famílias que estão

reivindicando territórios - retomando Tekoha, esta multiterritorialidade é também marcada pela

saudade.

Para refletirmos acerca dos territórios, é necessário pensarmos nas fronteiras e nas

identidades, de modo que se o território é marcado pela multiplicidade, estes também se fazem

marcando e demarcando múltiplas fronteiras e múltiplas identidades, fazendo-se e desfazendo-se

no espaço-tempo. Não há como pensar os territórios, as fronteiras e as identidades

indissociavelmente, mas, sim, há necessidade de compreender estas relações interdependentes,

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tendo em vista que a construção de fronteiras e identidades está substancialmente relacionada ao

momento de construção de territórios e territorialidades.

Até chegar aqui

Partimos do entendimento de que só é possível pensar as histórias-trajetórias das gentes

Guarani e Kaiowa associadas ao/aos olhar/olhares meus/nossos. Assim, este trabalho é,

substancialmente, um modo de olhar, uma forma de agir, pensar e sonhar. Questões que

acreditamos ser uma e não outra ―coisa‖ é tão somente um ponto de vista, e estão se fazendo e

desfazendo, e assim como os territórios, também os nossos olhares estão em contínua

transformação no espaço-tempo.

O primeiro contato com os Guarani e Kaiowa se deu a partir da universidade, por meio

do curso de graduação em geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),

campus de Três Lagoas. Assim, podemos dizer que foi por meio da universidade que

desmitificamos grande parte do imaginário sobre as sociedades indígenas e sobre outros modos

de viver, como os camponeses, os camponeses sem terra, os quilombolas, os ribeirinhos...

Desta forma, aprendemos por meio da universidade que a ciência é, explicitamente, um

modo de pensar a realidade, e que a universidade não está fora da sociedade, não estando

dissociada de modos diversos de estar e perceber o mundo. Por isso, aprendemos que os saberes

científicos servem tanto para libertar os homens como para mascarar a realidade, podendo servir

para a emancipação social ou para a ―prisão‖ de homens e mulheres que a constitui, como

apontado por Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2004).

Foi a partir da universidade que estreitamos nossas relações com a Comissão Pastoral da

Terra (CPT-MS), por meio da amizade com um de seus agentes e estudante de geografia

Mieceslau Kudlavicz, e assim conseguimos traçar nossas histórias-trajetórias com os homens e

mulheres simples, como considera José de Souza Martins (2000), viabilizando os caminhos

percorridos para a construção deste trabalho. Lembramos, como se fosse hoje, nossas

inquietações em torno das relações de trabalho indígena na CBAA Destilaria de Açúcar e Álcool

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Debrasa7, marcadas pela superexploração e desrespeitos trabalhistas, também, compartilhada com

o amigo Eduardo Parro de Oliveira. Neste momento, recordamos do Kaiowa Lírio, gente

inesquecível, principalmente ao dizer-me que os Guarani e Kaiowa tinham mudado muito. Ainda

conhecer a Kaiowa Fátima da TI Jarará, durante um encontro de formação da CPT em 2007,

ampliou nosso universo de mundo. A partir destes dois momentos marcantes em nossa vida,

descobríamos um mundo diferente de tudo o que havia vivido, de modo que ficamos encantados

com os Guarani e Kaiowa, buscando de alguma forma estar perto deles, culminando na minha

vinda a Dourados em 2009, como mestranda em geografia pela Universidade Federal da Grande

Dourados. Foi nestes diversos encontros, que posso dizer que nos transformamos, ao menos um

pouco, em Guarani e Kaiowa, considerando que carregaremos diversos ensinamentos, partes de

histórias-trajetórias das nossas vidas.

Também, podemos dizer que nossos referenciais sobre as sociedades indígenas,

infelizmente até aquele momento, estavam ainda distantes da realidade vivida. Pela universidade,

conhecendo os ―indìgenas de papeis‖ a partir de textos acadêmicos, ficávamos a imaginar: ―quem

são eles‖? Ainda não conseguimos responder tal provocação, pois acreditamos que é difícil

definir o outro, mas podemos dizer que este outro é múltiplo e complexo. Nesta perspectiva,

aprendemos pelo/no contato com os Guarani e Kaiowa o encontro com o ―outro-eu‖, passando a

considerar que nos encontros e desencontros que vivemos e viveremos com as mais diversas

gentes no mundo, que nós também somos ―o outro dos nossos outros‖, e que nossas perguntas

devem, prioritariamente, perpassar o questionamento: ―quem sou eu no mundo dos outros‖?

A RID ampliou nossos universos de vida. Os primeiros contatos por meio do Guarani

Anastácio Peralta nos levaram a conhecer os Kaiowa Ñanderu8 e a Ñandesy9 Jorge e Floriza, e

ainda os Kaiowa Maciel, Odália, Geraldo e Alzira, no final de 2007, e a partir dele outros amigos

7 A CBAA Destilaria de Açúcar e Álcool Debrasa está localizada no município de Brasilândia, estado de Mato

Grosso do Sul. As referências que traremos em torno dos Guarani, Kaiowa e Terena na empresa, se deu por meio de

um trabalho acadêmico no ano de 2007, parte de um projeto de extensão: ―A expansão da indústria da cana-de-

açúcar em Mato Grosso do Sul e o agravamento da questão agrária e trabalhista‖, 2007, coordenado pela Professora

Rosemeire Aparecida de Almeida (UFMS/MS) em parceira com a Comissão Pastoral da Terra (CPT/MS). 8 A palavra Ñanderu, em síntese representa aquele que sabe rezar, é um Xamã, também pode ser referenciado a

mulher, também chamado de Tamõi. Ainda aparece a representação da palavra Paĩ. Levi Marques Pereira (2004, p.

36), considera que é ―[...] aquele que tudo vê. Ver longe, enxergar o que está encoberto pelas aparências, discernir o

que está para acontecer em termos de sucesso e desventura são atribuídos indissociáveis da atividade xamânica‖. 9 Tem o mesmo significado que Ñanderu, contudo, Ñandesy é referente a mulher devido ao sufixo sy, significando

nossa avó, chamada também de Jarí.

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Guarani e Kaiowa que me ensinaram a aprender a escutar e, fundamentalmente, a ouvir o não

dito.

Nestes encontros com os outros, é difícil, em qualquer sociedade humana, dizer, em sua

plenitude, quem se é, e, principalmente, quem são os outros? Há uma multiplicidade de jeitos e

gestos de fazer-se humanamente, assim como há uma multiplicidade de olhar-olhares buscando

decifrá-los, de modo que neste trabalho, é somente um modo, um ―olhar‖.

Contudo, ao acreditarmos que o trabalho acadêmico é um importante meio para que as

gentes simples possam expressar seus olhares sobre o mundo, buscamos por meio da academia,

priorizar as narrativas das gentes Guarani, Kaiowa e Terena, e que este trabalho, a partir de

―nossos olhares‖, se torne também ―olhares‖ deles, fazendo-se pelo/no ato de falar.

Neste contexto, o que tentamos, de alguma forma, é a compreensão do outro nas bases

do reconhecimento nas suas diversas formas de fazer-se humano, pensando numa perspectiva

libertadora de preconceitos nos delineamentos que pautam a garantia de direitos de sermos iguais

na diferença. Logo, as experiências e aprendizados construídos juntamente a estas sociedades

constituíram uma relação que pode ser traduzida por laços de amizade e respeito, sabendo mais

do que nunca, como traz a obra literária de Antoine de Saint-Exupéry no livro ―O pequeno

prìncipe‖, que em nossas relações com Outrosnós, ―o essencial é invisível aos olhos‖.

A construção do trabalho

Metodologicamente, este trabalho fez-se nas bases do que os antropólogos consideram

ser a observação participante – a etnografia, utilizado como principal meio de compreensão do

outro. No que concerne ao processo de construção do trabalho, houve uma interação social entre

o pesquisador e as gentes envolvidas na pesquisa, no caso específico os Guarani e Kaiowa, além

de indígenas Terena e não indígenas, de modo que estes foram imprescindíveis para a

compreensão das relações sociais na RID, e também, as relações externas, tal como o perímetro

urbano de Dourados, os acampamentos, as fazendas, entre outras modalidades territoriais vividas

pelos Guarani e Kaiowa.

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Elencamos que as narrativas Guarani, Kaiowa, Terena e não indígenas, ocupam

espacialidades distintas neste trabalho, pois apareceram com maior frequência os ―olhares‖

Kaiowa, principalmente dos Kaiowa Ñanderu Jorge e Ñandesy Floriza, sendo estes os principais

interlocutores. Elencamos, também, que outros interlocutores apareceram muitas vezes

direcionando nossos ―olhares‖ em torno dos marcadores de diferenciação entre Guarani, Kaiowa

e Terena dentro e fora da RID, demonstrando as territorialidades em disputa, assim como os

modos de viver de cada sociedade, envolvendo também, as relações com os não indígenas.

No que concerne à etnografia, Roberto Cardoso de Oliveira (2000) salienta a

necessidade de um diálogo entre iguais, considerando haver um ―encontro etnográfico‖, pois não

é só o pesquisador quem pergunta, questiona, observa, mas também as gentes pesquisadas que

estão perguntando, questionando, interagindo com o pesquisador. Nestas relações poderão ser

construídos laços de amizades e construção de parcerias, principalmente, no tocante às retomadas

dos territórios tradicionalmente ocupados, havendo por parte daqueles que estão lutando pelo

retorno aos territórios tradicionais, uma necessidade de falar aos outros sobre a saída e a

necessidade de retorno aos Tekoha.

Segundo o mesmo autor, o trabalho etnográfico é construído em três momentos

importantes, marcados pelo olhar, ouvir e escrever. Salientando que os dois primeiros momentos,

o olhar e ouvir, estão diretamente interligados às relações sociais do pesquisador e a comunidade,

enquanto o ato de escrever, através de relatórios de campo, de construção de trabalho científicos

se dá ―fora‖ da comunidade, pois é marcado pelas relações que envolvem a universidade, as

disciplinas que propiciam a construção do trabalho científico. Mas, que o mesmo não está e não é

possível de estar dissociado do saber empírico, do estar junto às gentes que propomos,

minimamente, compreender e traçar suas histórias-trajetórias de vida no espaço-tempo.

No tocante ao pesquisador, é necessário estar com a comunidade e participar da

dinamicidade das relações que também passa a envolvê-lo, mas é necessário dizer, como propõe

Roberto Cardoso de Oliveira (2000), que não basta participar e ouvir as trajetórias de vida,

porque é explicitamente necessário ―saber ouvir‖, assim como ter discernimento do que escrever

e o porquê escrever. Assim, acreditamos que nem todas as percepções de campo devem ser,

necessariamente, transformadas em trabalho científico, de modo que algumas questões devem ser

preservadas, já que algumas delas foram faladas e discutidas em um determinado momento, ditas

para o pesquisador e devem se manter ―em segredo‖, como elucidam alguns Ñanderu e Ñandesy.

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Neste sentido, se partirmos a priori que na construção do trabalho há simultaneamente

construção de amizades, laços de reciprocidade, algumas questões que participam do campo

―oculto‖ das relações entre pesquisador e as gentes envolvidas na construção do trabalho, no

sentido de que ―é na vida cotidiana que a História se desvenda ou se oculta‖, como considerado

por José de Souza Martins. (2000, p.12).

Nessas relações há encontros de saberes, de formas diferenciadas de viver e pensar o

mundo a partir dos lugares-territórios construídos e transitados. Nesta troca de saberes, as

palavras de Paulo Freire (1981, p. 29) contribuem para pensarmos as relações de encontro entre

as gentes, no caso, o pesquisador e a comunidade envolvida em um trabalho acadêmico, de modo

que o pesquisador, os homens e mulheres, ―[...] desafiados pela dramaticidade da hora atual, se

propõem, a si mesmos, como problema. Descobrem que poucos sabem de si, de seu ―oposto no

cosmos‖, e se inquietam por saber mais‖.

A etnografia propõe o estar com o outro e participar das redes sociais de interação

familiar e trocar experiências de vida, de modo que há nestes diálogos negociações, em uma

relação em que o pesquisador carregará um pouco deles na construção do saber e os mesmos

carregaram um pouco do pesquisador. Lembrando-se das palavras da Kaiowa Ñandesy Floriza,

ao dizer certa vez que nossas idas e vindas da reserva se deram construindo amizades. Ainda

lembramos suas palavras ao dizer também ―vem sempre aqui, a gente espera. Quando demora

fica com saudade...‖.

Acreditamos ser necessário dizer que estar com os Guarani e Kaiowa, e a partir deles

desenvolver um trabalho científico, se dá pela opção política e ideológica que temos em trabalhar

e estar com os homens simples, como sinaliza José de Souza Martins (2000, p. 11), ao considerar

que os homens, e também as mulheres simples, ―[...] não só luta[m] para viver todo dia, mas que

luta[m] para compreender um viver que lhe escapa porque não raro se apresenta como absurdo,

como se fosse um viver destituìdo de sentido‖.

Pode-se dizer que em um trabalho etnográfico envolvendo o pesquisador e a

comunidade, estes estão interagindo, construindo espaços de diálogos. Consideramos, ainda, que

nestas relações há, fundamentalmente, uma escolha recíproca entre pesquisador(a) e as gentes

indígenas e não indígenas, pois partimos do pressuposto de que se o pesquisador(a) escolhe com

quem irá estabelecer maiores relações no espaço-tempo, as gentes também o escolhe para contar

suas histórias-trajetórias de vida, passando a participar dos espaços de sociabilidade. Assim, é

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nesta perspectiva de interação, que traçamos e construímos os territórios, multerritorialidades e

multitemporalidades envolvendo os Guarani e Kaiowa.

Acreditamos, ainda, no que concerne ao método etnográfico, que a prioridade é traçar as

trajetórias vividas no espaço-tempo dos Guarani e Kaiowa desde a organização socioterritorial no

Tekoyma, às novas formas de construção de territórios no Tekopyahu, buscando compreender as

multiterritorialidades do passado e do presente, assim como a construção da viabilidade de futuro

para estas sociedades, construídas no entrelaçamento com/no passado pelo presente. É o que

consideramos ser uma ―etnogeografia‖, expressa pela/na necessidade de caminhar junto com as

gentes que participam deste trabalho, geografando os espaços-tempos em que as gentes e as

narrativas são fundamentalmente partes da construção de territórios, territorialidades,

multiterritorialidades e multitemporalidades. Isto é, as relações em que as gentes se envolvem

construindo territórios-fronteiras e identidades no espaço-tempo, movidas pelo caminhar, nas

geografias do pé10, como propõe Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1994).

Neste contexto, a etnogeografia nos possibilitou estar com os indígenas e envolver-se

com eles, compartilhando suas histórias-trajetórias de vidas. De certa forma, o pesquisador ao

estar com eles também cria possibilidades destas gentes estarem com o pesquisador. Assim, por

diversas vezes, recebendo-os em nossas casas, compartilhando com eles momentos de alegrias e

tristezas, diferentemente de uma relação unilateral do ir até eles, há interações sociais que

possibilitaram eles ―virem até nós‖.

O trabalho com narrativas indígenas foi feito, fundamentalmente, utilizando-se a

metodologia etnográfica como meio de registrar as histórias-trajetórias das gentes, amparada pela

construção do relatório de campo. Em muitos momentos, foi utilizado o gravador de voz,

principalmente registrando as narrativas dos Kaiowa Ñanderu Jorge e sua esposa Kaiowa

Ñandesy Floriza. É importante elencar que a utilização do gravador de voz foi feita sem

necessariamente termos um questionário estruturado para direcionar as perguntas e respostas,

sendo que este só fora utilizado por três vezes.

10

Conversando com um camponês, no Bico do Papagaio, Maria Regina Sader pergunta sobre o que aprendiam de

geografia. Em suas palavras: ―Eu perguntei se não aprendiam nada de Geografia. Não precisa, disse um deles, isso a

gente aprende é no pé. Os igarapés vão pro Tocantins. Desce pro mar, é só olhá, né? No topo daquele monte não

serve plantá. A terra é ruim. No baixo é boa. É no pé mesmo, andando e olhando‖ (apud OLIVEIRA, 1994, p.135).

Assim, os Guarani e Kaiowa, constroem o seu saber socioterritorial, pois este se faz nas relações de interação entre

eles a multidimensionalidade do espaço vivido.

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As narrativas foram de extrema importância, porque buscamos na medida do possível

deixar as gentes falarem mostrarem suas histórias-trajetórias de vida, contudo, sem perder de

vista que as narrativas aparecem na interferência e no recorte dado pela pesquisadora. Neste

sentido, as narrativas se colocam no corpo do texto, buscando possibilidades de que outras gentes

possam também interpretá-las, de forma que não haja apenas o olhar do pesquisador, mas o

entrecruzamento de olhares marcados por aqueles que falam.

A partir desta reflexão, Sandra Regina Goulart Almeida (in SPIVAK, 2010, p. 14), em

prefácio de ―Pode o Subalterno falar?", considera que:

[...] a tarefa do intelectual pós-colonial deve ser a de criar espaços por meio dos

quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa

ser ouvido (a). Para ela [referindo-se a Spivak], não se pode falar pelo

subalterno, mas pode-se trabalhar ―contra‖ a subalternidade, criando espaços no

quais o subalterno possa se articular e, como consequência, possa também ser

ouvido.

O trabalho com narrativas é de alguma forma um modo das gentes falarem, e se

partimos da presunção de que todo ato de falar é sempre um espaço de negociação com o outro

que propõe ouvir e/ou mesmo escrever, o trabalho construído pelo pesquisador é

fundamentalmente um espaço que propicia as gentes falarem, e assim, possibilita ao leitor, ouvi-

los. Desse modo, a narrativa é marcada pelo ato de falar e a interlocução com o outro em ouvir,

mas, sobretudo, pela necessidade do saber ouvir e/ou escutar, a necessidade de discernimento em

utilizar as narrativas no processo de construção da escrita. Logo, a narrativa é marcada pelas

redes de sociabilidade, no sentido que o pesquisador e a pesquisadora, participa das histórias-

trajetórias daqueles que falam, ao modo em que estes, também, participam da construção do

trabalho científico, já que sem eles a construção deste trabalho não seria possível. Nesta relação,

como pontua Jones Dari Goettert (2008, p. 32) ―[...] construímos, pelo trabalho nos lugares,

também o meu direito de falar sobre os seus lugares‖. Por isso, as narrativas expressas são

fragmentos de verdades, pedaços de histórias-trajetórias, alguns modos de interpretar a realidade

vivida. Portanto, no que concerne ao poder de falar e ouvir, é necessário considerar que:

Os tempos e lugares surgidos na narrativa, ao sofrerem cortes longos e

profundos – mas em alguns casos também rápidos e superficiais –, exprimem a

construção de saltos que se constroem [...] entre os tempos de partida e de

chegada [em movimentos migratórios] e, para deslocamentos que se sucedem,

também de chegada e de partida. As datas e lugares assim dispostos podem, em

um instante primevo, mostrarem-se desconexos e pouco reveladores, no entanto,

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têm papel importante no pensar e no falar reproduzidos no cotidiano

participando nos e dos lugares do dia-a-dia, como dados imprescindíveis nas e

para as conversações (GOETTERT, 2008, p.102).

O texto acadêmico expressa fragmentos do que é falado, pois é difícil traduzir pela

escrita os diversos ―barulhos‖ e sentidos que compõem a narrativa, os gestos e jeitos dos que

falam, dos que observam, daqueles que estão longe e participam das relações entre locutor e

interlocutor. As diversas formas de rir e chorar, em suma, as diversas formas de sentir, de

emocionar-se. ―Para tanto, a produção da compreensão e da interpretação dos sujeitos e dos

lugares, têm na construção narrativa um aspecto importante: trabalhar com a palavra de outras

e de outros é, também, laborar sobre outras e outros [...]‖ (GOETTERT, 2008, p. 29-30).

Neste sentido, quanto à importância da narrativa para a construção do texto científico,

podemos dizer, no que concerne a etnografia - para nós, também, etnogeografia - embasados por

Roberto Cardoso de Oliveira (2000, p. 12), que ―[...] Olhar. Ouvir. Escrever.‖ – como atos

cognitivos que são –, além de trazerem em si responsabilidades intelectuais específicas, formam,

pela dinâmica de sua interação, uma unidade irredutìvel [...]‖.

Referente ao suporte teórico-metodologico fundamental para a construção deste

trabalho, no que concerne à discussão de território e das sociedades indígenas Guarani e Kaiowa,

elencamos que nossa compreensão em torno da discussão de território se dá fundamentalmente

nas postulações teóricas de Rogério Haesbaert, principalmente em torno do que concerne o

movimento de des-re-territorialização e a construção de multiterritorialidades. Ainda, na

discussão em torno do território, os autores Claude Raffestin, Marcelo Lopes de Souza, Joel

Bonnemaison, Paul E. Little, entre outros, também foram importantes.

Ainda como parte das discussões que envolvem a complexidade do que é o território, as

conceituações teóricas metodológicas de temporalidades, identidades e fronteiras, é parte das

postulações de Norbert Elias, Stuart Hall e Jones Dari Goettert (este contribui fundamentalmente

para compreender a importância das narrativas e a construção do trabalho etnográfico e/ou

etnogeográfico), além de outros autores anteriormente citados. Referente à discussão etno-

históricas e antropológicas Guarani e Kaiowa, as principais referencias se deram em torno das

discussões de Bartomeu Melià, Graciela Chamorro, George Grünberg, Friedl Grünberg, Levi

Marques Pereira, Jorge Eremites de Oliveira, Katia Vietta, Fabio Mura, Alexandra Barbosa da

Silva e Antônio Brand.

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Elencamos também a importância dos Cadernos de Conflitos no Campo Brasil da

Comissão Pastoral da Terra – CPT, no período de 2000 a 2008, e Relatórios de Violência Contra

os Povos Indígenas no Brasil do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, no período de 2000 a

2009, já que a partir deles entender as relações que envolvem o processo de desterritorialização

Guarani e Kaiowa de seus territórios tradicionalmente ocupados, assim como os processos de

territorialização precária Guarani, Kaiowa e Terena nas reservas indígenas, especificamente, na

RID. Buscando, também, compreender as disputas territoriais pela apropriação social da

natureza, que perpassam as reivindicações dos territórios tradicionalmente ocupados por algumas

famílias Guarani e Kaiowa.

Ressaltamos que em alguns momentos utilizamos nomes fictícios, a fim de preservar as

identidades das gentes, principalmente de indígenas que conversamos na cidade de Dourados,

sobretudo, na feira da Rua Cuiabá, em alguns mercados e bairros, onde os indígenas transitam

vendendo e comprando mercadorias, pedindo alimentos e roupas. Ainda, preservamos a

identidade dos não indígenas que conversamos na cidade de Dourados e, também, daqueles que

por algum motivo acreditamos não ser necessária sua identificação.

É necessário dizer que este trabalho não tem nenhuma pretensão de ―traduzir‖ os

distintos modos de vida Guarani e Kaiowa, assim como dizer o que é a RID e as relações

socioterritoriais estabelecidas ―dentro‖ e ―fora‖ da mesma. O que apresentamos,

fundamentalmente, são histórias-trajetórias de algumas famílias, de algumas gentes que

conversamos na reserva, na cidade, em acampamentos de retomadas territoriais, entre outros. No

que concerne aos acampamentos de retomadas, esta relação envolve os acampamentos Pacurity,

Ñu Porã e Apyka‘y11.

11

O Apyka‘y é também conhecido como Jukery e/ou Curral de Arame, referente ao nome do Tekoha que estão

reivindicando, sendo parte do Tekoha Guasu de Lima Campo, localizado na região do Alto-Médio Dourados

(BARBOSA DA SILVA, 2007). Segundo a liderança Kaiowa Damiana, a partir da década de 1970, há um processo

de dispersão de seus familiares do Tekoha, pois este período é marcado pela chegada do fazendeiro no Tekoha,

assim, algumas famílias dirigiram-se à RID, Reserva Indígena de Caarapó, entre outros lugares. A mesma ainda

considera que seus pais saíram anteriormente ao intenso processo de desterritorialização do Tekoha, dirigindo-se a

Reserva Indígena de Caarapó, e que durante muito tempo, juntamente a seu pai, fazia visitas aos parentes no

Apyka‘y, referindo-se a presença de seus avós e tios no lugar, acrescentando que estes morreram dentro do Tekoha.

Através da narrativa de Damiana podemos dizer que sua família já tinha passado por conflitos intensos com os

colonos, de tal forma que não permitia a presença de toda família no Tekoha, já que a mesma pontua que não nasceu

no Apyka‘y, mas, sim, em Caarapó, demonstrando o conflito latente entre indígenas e fazendeiros, nos permitindo

considerar que, talvez, seus familiares permaneceram mais tempo no Tekoha porque ficaram trabalhando para o

fazendeiro, no processo de formação das fazendas. Ainda podemos dizer que o processo intenso da perca territorial

se deu na década de 1980, como também consta na dissertação de Aline Castilho Crespe Lutti (2009).

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Faz-se necessário dizer que ao buscarmos entender a complexidade do modo de vida

Guarani e Kaiowa podemos dizer que existem múltiplos modos de fazer-se indígena, de modo

que nem todos os Guarani e Kaiowa vivem dessa maneira apresentada, tem as mesmas

características gerais, trabalham da mesma forma, entre outras questões que irão aparecer neste

trabalho. É claro que muitas das relações que aparecem nesta pesquisa são compartilhadas pela

comunidade, mas podem também participar dele de distintas formas. Assim, entre o macro e

micro - global e local, torna-se possível entender os Guarani e Kaiowa do presente, e a partir

deles perceber relações que os envolviam no passado, e a necessária busca pelo Teko Porã, que

possibilitará sua existência futura.

Deste modo, as gentes que apareceram neste trabalho, são homens e mulheres que

dialogamos, e que participam de realidades distintas, de outras formas de fazer-se Guarani e

Kaiowa. Logo, partimos do pressuposto de que há outras realidades que podem não terem sido

apontadas neste trabalho, pois as gentes transitam por relações diversas, participando de

realidades distintas, sem necessariamente deixarem de ser isto ou aquilo por não participarem de

algumas formas de ser e estar no mundo.

Das divisões do texto

Esta dissertação divide-se em cinco capítulos, na qual buscamos entender as

territorialidades múltiplas – multiterritorialidades – vividas pelos Guarani e Kaiowa. No primeiro

capítulo, tentamos demonstrar o que entendemos por sistema-mundo moderno-colonial, assim

como, quais são as postulações do saber eurocêntrico e ocidental que traz na lógica dominante

uma única possibilidade de estar e pensar o mundo. Por isso, estabelecemos um contraponto

dizendo que o mundo se faz em uma ―simultaneidade de estórias-até-agora‖, e que outras

histórias-trajetórias são possíveis de serem contadas e construídas, como propõe Doreen Massey

(2008).

O ―descobrimento‖ do que hoje compreendemos ser a América, é o eixo central para

entendermos a sociedade ―moderna-colonial‖ e os desencontros com outras formas de ser e estar

no mundo, demonstrando os desencontros de espacialidades, territorialidades e temporalidades

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que fundam as identidades presentes do que concebemos hoje por América, indígenas, entre

outras invenções. A partir das contribuições de Edward Said (2007), visamos demonstrar as

territorialidades e representações históricas do que entendemos ser o ―oriente‖ e o ―ocidente‖,

permitindo olhar-perceber ―o Oriente, não como ele é, mas como foi orientalizado‖. Tal como,

imaginar o indígena não como ele é, mas como ele foi imaginado.

Neste sentido, pontuamos a existência de múltiplas sociedades, considerando suas

contradições e distintas formas de pensar e fazer o mundo. Assim, a questão ―primeira‖ que

orienta este trabalho, é que ―a história é feita por homens e mulheres, e do mesmo modo ela

também pode ser desfeita e reescrita, sempre com vários silêncios e elisões, sempre com formas

impostas e desfiguramentos tolerados, de modo que o ―nosso‖ Leste, o ―nosso‖ Oriente possa

ser dirigido e possuído por ―nós‖ (SAID, 2007, p. 14 - grifo nosso).

No segundo capítulo, a partir da categoria geográfica de território, nos centramos em

duas perspectivas de análise espaços-temporais. Na primeira, buscamos entender a organização

socioterritorial dos Guarani e Kaiowa no Tekoha a partir dos preceitos do modo de vida dos

antigos (Tekoyma). Na segunda, a partir da condição de reserva marcada pela imposição do

Tekopyahu, buscamos compreender as histórias-trajetórias vividas pelos antigos no trânsito entre

passado e presente, que por meio da narrativa, da ―necessidade de contar as histórias‖, retornam

e revivem o passado, vivenciando novas territorialidades no espaço-tempo, pois ―as palavras é

força para a cultura‖, como expressa em sua narrativa o Kaiowa Ñanderu Jorge.

A partir dos imbricamentos entre espaço-tempo, pudemos compreender as

territorialidades e multiterritorialidades vividas no Tekoha e refletir acerca do conflito que existe

com a imposição do viver em condição de reserva, considerando que as relações do passado e

presente se fazem conjuntamente há medida em que o passado só existe pelo presente, tendo em

vista que esta condição temporal linear é uma invenção moderna-colonial.

No terceiro capítulo, traçamos os delineamentos da territorialização precária dos

Guarani, Kaiowa e Terena nas reservas criadas pelo SPI, especificamente, na RID como parte e

consequência do processo de esbulhos dos territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani e

Kaiowa. Considerando que esta territorialização não está divorciada do processo de

territorialização precária Terena na reserva, buscamos demonstrar as relações de conflitualidades

e tensões no que concerne ao compartilhamento territorial destas sociedades indígenas, que

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formam as fronteiras étnicas ―dentro‖ da reserva, novas formas de identificação, assim como a

criação de multiterritorialidades nos tensionamentos socioterritoriais.

Desta forma, os tensionamentos implicam nas possibilidades-necessidades humanas de

reinventar seus modos de vida a partir das condições em que vivem, bem como demonstrar como

que estas relações criam desordenamentos nos modos em que estas sociedades passam a

participar do mundo a partir da RID. Ainda, para melhor entendermos estas relações,

consideramos os altos índices de violência, assassinatos e suicídios demonstrados pelos

Relatórios de Violência contra os Povos Indígenas do Brasil pelo Conselho Indigenista

Missionário (CIMI).

A RID apresenta diversas conflitualidades, na qual podemos destacar: os conflitos que

ocorrem entre o modo de vida dos ―antigos‖ e os ―novos‖ modos de vida, que se faz nos

―choques‖ de gerações, logo, de territorialidades e temporalidades; os conflitos que ocorrem entre

famílias extensas que passam a compartilhar territórios em condição de reserva; conflitos em

torno de ―ser e ou não um autêntico indìgena‖ - Guarani e Kaiowa; conflitos em torno da

ausência-presença da figura masculina na educação das crianças; conflitos entre casamentos

inter-étnicos. Ainda, como fator de resistência, demonstramos as multiterritorialidades vividas no

passado, sendo reorganizadas em condição de reserva, passando pela recriação do modo de vida

dos antigos - Tekoyma, a partir dos novos modos de viver que lhes foram impostos - Tekopyahu.

O quarto capítulo discute as multiterritorialidades Guarani e Kaiowa ―dentro‖ e ―fora‖

da reserva, nas relações dos indígenas com a cidade, acampamentos, fazendas e outras

modalidades territoriais. Para compreender estas territorializações foi necessário compreender as

relações entre indígenas e não indígenas que envolvem as relações entre cidade e reserva, e como

um e outro se fazem a partir de conexões entre si, aparecendo, nestas relações, as

multiterritorialidades Guarani e Kaiowa a partir, sobretudo, do artesanato.

Desta forma, o artesanato aparece ligado à multiplicidade de formas de ser/estar no

mundo em relação com o outro, transitando e interagindo nos múltiplos territórios. Ainda, outras

atividades comercializadas, como a mandioca, o milho e a abóbora, possibilitam a ampliação dos

territórios Guarani e Kaiowa. Além das relações que perpassam a visita aos parentes, as parcerias

de lutas e nas relações sociais que envolvem indígenas e não indígenas. Assim, demonstramos

como as cidades, as fazendas, os acampamentos e as novas relações de trabalho passaram a fazer

parte das multiterritorialidades transitadas e vividas pelos Guarani e Kaiowa, muitas delas, no

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modo de vida dos antigos, inexistentes, sendo assim, parte dos novos modos de viver e estar no

mundo, marcados pelo encontro e/ou desencontro com os não indígenas.

No quinto capítulo, traçamos as disputas territoriais, tendo como cerne destas disputas a

apropriação social da natureza, demonstrando as múltiplas estratégias de lutas Guarani e Kaiowa

que viabilizam retomar os Tekoha. Neste sentido, as cidades, os acampamentos, as fazendas, as

Terras Indígenas e/ou reservas, territórios e/ou territorialidades vividas, muitas até então

inexistentes no tempo dos antigos, passaram a fazer parte do ―universo‖ indìgena, trazendo a

estes grupos outras possibilidades de multiterritorialização, inclusive aquelas que estão se

fazendo como multiterritorialidades de resistências, esperanças, sonhos e saudades do modo de

vida dos antigos - Tekoyma.

Desta forma, há uma interação direta por parte de algumas famílias com os Tekoha,

buscando retomá-los. Contudo, há necessidade de dizer que nem todos os Guarani e Kaiowa

almejam este retorno, mas há necessidade de demonstrarmos as estratégias múltiplas daquelas

famílias que vêem nesta possibilidade, no sonho marcado pela saudade e pela esperança, a

continuidade do modo de vida destas sociedades, pautados e movidos pelas relações do/no

passado - Tekoyma.

Neste contexto, é necessário compreender as disputas territoriais nas retomadas dos

territórios tradicionalmente ocupados, envolvendo disputas em torno da apropriação da natureza,

cujo ―discurso competente‖ do agronegócio, que reproduzido, hegemonicamente, pela elite sul-

matogrossense, se coloca contra a demarcação de territórios indígenas. Esse discurso político e

ideológico na sua afirmação de ―Sim a produção, não a demarcação‖, que busca criminalizar os

movimentos sociais de retomadas territoriais indígenas.

No entanto, no tocante às disputas territoriais, as discussões em torno da demarcação de

territórios indígenas devem ser pensadas para além dos conflitos que envolvem o latifúndio-

agronegócio e indígenas, mas, também, envolvendo o conflito com outras formas de saber e viver

não tipicamente capitalistas (e/ou relações sociais de produção não tipicamente capitalistas)12,

12

As relações não tipicamente capitalistas estão presentes nas discussões de pensadores como: Rosa Luxemburgo,

Teodor Shanin, Samir Amim e Kostas Vergopoulos. Também, em importantes pesquisadores brasileiros como José

de Souza Martins, Carlos Rodrigues Brandão, Alfredo Wagner, Ellen Woortmann etc. Na geografia Agrária, temos

como grande defensor dessa corrente de análise marxista, Ariovaldo Umbelino de Oliveira e seus ex-orientandos da

UNESP e da USP, como Bernardo M. Fernandes, Rosemeire A. de Almeida, Eliane T. Paulino etc. (OLIVEIRA,

2004). Neste aspecto, a partir de Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2002, p. 46), consideramos que [...] O

desenvolvimento capitalista se faz movido pelas suas contradições. Ele é, portanto, em si, contraditório e desigual.

Isso significa dizer que para que seu desenvolvimento seja possível, ele tem que desenvolver aqueles aspectos

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como os camponeses (pequenos produtores rurais) territorializados em territórios

tradicionalmente ocupados Guarani e Kaiowa. Este processo de territorialização foi fomentado

pelas políticas de concessão de terras indígenas pelo governo do estado de Mato Grosso do Sul.

Assim, há a necessidade de discutirmos que há diversas racionalidades que se contrapõem entre

si, dependendo a conjuntura e a intervenção do Estado nestes conflitos, de modo que há uma

multiplicidade de jeitos e modos de apropriação da natureza.

No que concerne às estratégias dos indígenas de retorno aos territórios tradicionalmente

ocupados, buscamos demonstrar as diversas formas de re-existir Guarani e Kaiowa, marcados e

viabilizados pelas lutas a partir da RID, mas, também, entre o acampamento e a reserva, na

ambiguidade de viver entre a cerca e o asfalto, em acampamentos na área em litígio, os indígenas

em fundos de fazendas e em fazendas, entre outros modos de viver que estão relacionados as

múltiplas estratégias de retorno e, também, de estarem no Tekoha.

contraditórios. É por isso que vamos encontrar no campo brasileiro, junto com o processo geral de desenvolvimento

capitalista que se caracteriza pela implantação das relações de trabalho assalariado, os bóias-frias, por exemplo, a

presença das relações de trabalho não-capitalistas como, por exemplo, a parceria, o trabalho familiar camponês, etc.

Ainda, o mesmo autor, demonstra que [...] o desenvolvimento do capitalismo tem que ser entendido como processo

(contraditório) de reprodução capitalista ampliada do capital. E esta como reprodução de formas sociais não-

capitalistas, embora a lógica, a dinâmica, seja plenamente capitalista; neste sentido o capitalismo se nutre de

realidades não-capitalistas, e essas desigualdades não aparecem como incapacidades históricas de superação, mas

mostram as condições recriadas pelo desenvolvimento capitalista (OLIVEIRA apud ALMEIDA, 2003, p. 75).

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PRIMEIRO CAPÍTULO

O SISTEMA-MUNDO MODERNO-COLONIAL: BREVES

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO “DESCOBRIMENTO” /

DESENCONTRO DA AMÉRICA

―A História do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizações e

descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, é a conquista da América

que anuncia e funda nossa identidade presente‖.

Tzvetan Todorov (1996, p. 06).

―Entrelaçada envolvida dentro deles há uma multiplicidade de trajetórias, cada

uma das quais com sua própria espacialidade e temporalidade, cada uma das

quais foi e ainda é contestada, cada uma das quais poderia ter-se tornada muito

diferente (e mais, onde a interseção dessas histórias serviu, muitas vezes, para

reforçar as linhas de dominância existentes)‖.

Doreen Massey (2008, p. 207).

O sistema-mundo moderno-colonial13 significa a forma com que a sociedade vem sendo

construída em um contínuo vir-a-ser pós-1492. A partir desta data, o mundo conhecido passou a

ser maior e mais diverso do que imaginava a Europa. Uma multiplicidade de histórias-trajetórias

começou a se fazer e se desfazer sobre os ―olhares‖ do ―ocidente‖, tendo como centralidade o

pensamento eurocêntrico 14. Consideramos que a Europa, neste processo, foi se descobrindo e se

reconfigurando pelo encontro e/ou desencontro de outros espaços e outras gentes. Criando assim,

13

A constituição do sistema-mundo moderno-colonial será discutido no tópico 1.3. 14

Podemos entender como pensamento eurocêntrico, um conjunto de ideias dominantes na modernidade que tem a

Europa como sendo o centro, ou seja, como um modelo de padrão civilizatório em todas as suas dimensões:

econômica, política, cultural, natural, científico etc. de onde poderemos analisar a partir desse referencial as outras

sociedades. Dessa forma, existe um modelo verdadeiro, o europeu, o restante, passa a ser o ―outro‖. E como ―outro‖,

tende a ser, necessariamente, não só diferente, mas, também, incorreto e inferior. Cabendo ao restante se adequar aos

moldes estabelecidos pelo modelo padrão de desenvolvimento europeu em todas as suas dimensões.

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seu ―ocidente‖, seu ―oriente‖, os ―bárbaros‖, os ―irracionais‖, ao mesmo tempo em que criava e

afirmava a sua cultura, racionalidade, civilidade...

Buscamos, dessa maneira, trazer para o debate as territorialidades em disputa na

constituição do sistema-mundo moderno-colonial. Disputas estas que se dão a partir do

―descobrimento‖ e desencontro com a América. Consideramos nesta disputa, também, as

identidades em construção, invenção e recriação, juntamente aos modos em que construímos

nosso imaginário sobre os outros e sobre os espaços em que ocupamos.

Na complexidade do que entendemos ser o sistema-mundo e a moderna-colonialidade,

propomos compreender a multiplicidade de gentes que a mesma compõe, logo, a multiplicidade

de sociedades, assim como a multiplicidade de territorialidades e de histórias-trajetórias que ela

envolve. Nesta perspectiva, ―Cada gente tem o jeito dele‖, salienta a Kaiowa Alzira da RID ao

demonstrar que cada um tem um modo específico de fazer-se humanamente, de ser gente,

possibilitando compreender que cada gente, carrega um pouco de si e dos outros, fazendo-se

gente e gentes.

Entretanto, essa multiplicidade de territorialidades foi ignorada pelo pensamento

hegemônico eurocêntrico que foi imposto a todos as sociedades após o período colonial. Apesar

disso, enxergamos ainda nitidamente, por meio da re-existência das gentes, que a disputa pelos

territórios/territorialidades com a hegemonia15 moderna-colonial continua sendo uma realidade

mesmo após mais de meio milênio do ―descobrimento‖. É essa diversidade existente e os

conflitos territoriais engendrados pela imposição do sistema-mundo moderno-colonial que

buscaremos demonstrar ao longo de nossa discussão.

Essa diversidade de relações e conflitos que envolvem as gentes e a natureza possibilitou

a construção de diferentes territorialidades e modos de vida. E, neste contexto, diferentes formas

de fazer-se humanamente. Por isso, podemos considerar, a partir de Carlos Walter Porto-

Gonçalves (2004, p.241), que ―diferentes habitats e diferentes hábitos se constituíram,

conformando diferentes territorialidades por meio de muitas guerras, alianças e acordos que

constituem a história de cada povo e da humanidade na sua diversidade‖.

15

A partir do pensamento de Gramsci, Edward W. Said (2007, p.34) entende que a hegemonia é como um consenso,

que em uma sociedade democrática ―[...] certas formas culturais predominam sobre outras, assim como certas idéias

são mais influentes que outras; a forma dessa liderança cultural é o que Gramsci identificou como hegemonia [...]‖.

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Corroborando neste sentido da compreensão da diversidade, nos diferentes tempos-

espaços, para Jones Dari Goettert (2008, p.267), ―[...] os lugares, suas diferenças e semelhanças, a

partida e a chegada, o trabalho, o estranhamento e o pertencimento, a saudade e a amizade, os

familiares que ficaram e os familiares que permanecem próximos, as comparações entre aqui e

lá, entre o antes e o depois, as lembranças e a memória‖, possibilitam a construção do fazer-se

gente em uma sociedade. Neste contexto, ser gente é fazer-se pelos caminhos percorridos que

levam ao encontro e desencontro com o outro, pelas dificuldades vividas, pelas mais diversas

formas de ser e estar no mundo, pelo silenciamento, pela narrativa...

Assim, ser gente é fazer-se nos lugares16 vividos, nos lugares chegados e deixados, nas

apropriações simbólicas e materiais das ―coisas do mundo‖. Ser gente é ser gentes!

1.1 – “Conceituando” gentes e sociedades

A palavra gente e/ou gentes dá sentido de pessoa, provavelmente porque não faz

distinção entre homens e mulheres, isto é, entre masculino e feminino, sem distinção de sexo ou

gênero. Pessoas e gentes remetem-se à unicidade destas. Nem eles, elas, você, eu... Mas sim,

todos juntos, gentes-pessoas (humanos). Ao pensarmos as geografias, partimos então do

pressuposto de que o saber geográfico é dinamizado pelo movimento das gentes nas diversas

possibilidades de fazer-se humanamente, entendendo que a geografia se dá com e a partir da(s)

sociedade(s), não estando fora dela, mas sendo reflexo e, combinadamente, refletindo-a.

A palavra gente está associada à palavra gentios, embora esta não represente a relação de

reconhecimento humano do outro. Utilizado também no período colonial, denominando algumas

gentes, gentios é utilizado como sinônimo de pagão, idólatra, infiel, selvagem e não civilizado,

atendo-se aos discursos religiosos, entre eles, na Bíblia Sagrada. Explicitava que estes eram

gentes diferentes do povo Judeu (de Israel), fazendo menção ao não israelita, derivado do

16 A categoria geográfica de lugar, a partir de Doreen Massey (2008), se aproxima das discussões de Rogério

Haesbaert (2005; 2007; 2007 b; 2007c; 2008) em torno do território, principalmente da concepção de

multiterritorialidade, ao dizer que ―[...] na própria concepção de ―multiterritorialidade‖ que propusemos, e que em

determinado momento se viu reforçada pela concepção de ―lugar‖ de Doreen Massey. ―Lugar‖ na geografia anglo-

saxônica, ―território‖ na geografia latino-americana, as palavras podem mudar, mas muitos de seus conteúdos

conceituais são compartilhados‖ (HAESBAERT, 2008, p. 13). Rogério Haesbaert (2002) salienta que a categoria

lugar está inter-relacionada as relações de pertencimento, marcada pela subjetividade.

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termo latim gens17

, que expressa tanto na linguagem da época, como na organização social,

exemplificava sentido de coletividade, de grupo de ―iguais‖.

No contexto do mundo grego, a palavra genós derivava de gens. Fustel de Coulanges

(1998, p.199) assinala que os gregos designavam esta denominação aos membros do génos, a

palavra homogálaktes, correspondendo às gentes alimentadas do mesmo leite. Para o autor, gens

(e/ou genós) representava:

[...] membros da gens (grupo formado de famílias que descendem de um

antepassado comum de origem pura) tinham um culto comum. Estavam ligados,

uns aos outros, por deveres de solidariedade. As próprias terras, primitivamente,

eram propriedade coletiva da gens. Esta comunidade de interesses e de ações

entre os membros da gens obrigava-os a ter um conselho comum, cujas

deliberações obrigavam a todos. Na época histórica, a gens, não tendo já chefe

único, caíra em decadência. No II século d.c. já não existiam senão famílias

independentes.

Assim, tanto na Grécia Antiga, como em Roma, gens era utilizado para denotar as gentes

que participavam de uma mesma família, de uma mesma origem - gene, pelo nascimento. A

sociedade romana dividia-se entre patrícios e plebeus, sendo os primeiros pertencentes à camada

superior da sociedade, e os segundos representavam a camada subalterna. Assim, distinguindo as

gens, ou seja, entre patrícios e plebeus, dividia-se a relação entre quem ―manda‖ e quem

―obedece‖. Considerando que as gens era uma instituição análoga a de genós, em grego, pode-se

dizer, segundo Fustel de Coulanges (1998), que os plebeus, buscavam ter gens ― iguais‖ e/ou

―aproximadas‖ aos dos patrìcios.

Embora seja necessário remetermos a origem da palavra gente e/ou gentes, seu uso tem

a finalidade de considerar as diversas formas ou possibilidades de fazer-se humanamente. Sendo

a expressão unìvoca do estar junto, da sociedade e do indivìduo, do todo e das partes, do ―nós‖ e

do ―eu‖. Ao considerar a posição de Clifford Geertz (1989, p. 38) de que ―[...] ser humano

certamente não é ser Qualquer homem; é ser uma espécie particular de homem‖ (grifo nosso). A

17

A gens, como veremos mais adiante, formava um corpo de constituição inteiramente aristocrática e, graças a esta

organização interior, os patrícios de Roma e os eupátridas de Atenas conseguiram tornar os seus privilégios muito

duradouros. Quando o partido popular alcançou a primazia, logo combateu, com todas as suas forças, esta velha

instituição. Se lhe tivesse sido possível aniquilá-la completamente, muito provavelmente não nos restaria dela a

mínima recordação. Mas era singularmente prenhe de vida e enraizada nos costumes, pelo que não se pôde fazê-la

desaparecer inteiramente. Contentaram-se então em modificá-la, para o que lhe tiraram o que formava o seu caráter

essencial e assim deixando-a apenas subsistir nas suas formas exteriores, com o que em nada se prejudicava o novo

regime. E assim, em Roma, os plebeus imaginaram formar gentes à imitação dos patrícios e em Atenas

experimentou-se alterar os géne, incorporando-os e substituindo-os pelos dêmos, estabelecidos à semelhança

daqueles (COULANGES, 1998, p.38).

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escolha em utilizar o termo gentes em vez de indivíduos, sujeitos, atores, agentes entre outros

termos, se dá principalmente pelo caráter de reconhecimento do outro e de si como

particularidades do fazer-se humanamente, independente das diferenças.

A palavra gentes tem representatividade nas narrativas de Brandão (1986), Freire (1999),

Porto-Gonçalves (2002; 2006a; 2006b), Goettert (2008) entre outros, expressando a pluralidade e

singularidade das diferenças de viver e representar o mundo. Ao utilizarmos gente e/ou gentes, o

fazemos a fim de demonstrar as individualidades dos homens e mulheres, nas especificidades de

fazer-se humanamente. Não tem como finalidade desconsiderar outras formas de organização

social (de fazer-se homem e mulher), mas sim, de fazer uma abordagem que propicia outras

formas de pensar a sociedade, onde as gentes são ―demasiadamente humanas18‖.

Paulo Freire (1999, p. 59-60) sobre as trajetórias das gentes e pensando em si mesmo,

percebe as possibilidades de emancipação social para além da sociedade hegemônica posta e

sendo imposta. Ainda para o autor, o estar no mundo, é sinalizado nos gostos em viver. Em suas

palavras:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco,

irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros,

que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo

o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me

enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem

pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu ―destino‖ não é

um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me

eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de

cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí

que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas,

consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença

profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. A diferença entre o

inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente

alcançou a possibilidade de saber-se inacabado. Gosto de ser gente porque,

como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não

se faz no isolamento, isenta-o à influência das forças sociais, que não se

compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo

social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico

se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o

reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria

presença. Não posso me perceber como uma presença no mundo, mas, ao

mesmo tempo, explicá-la como resultado de operações absolutamente alheias a

18

Complexidade, diversidade, contradições, conflitualidades, etc. são elementos que fundamentam a nossa

concepção de humanidade para além do bem e do mal. Não necessariamente como o caráter nietzschiniano do

―Humano, demasiadamente humano‖.

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mim. Neste caso o que faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica,

política e social que a promoção do suporte ao mundo nos coloca. Renuncio a

participar, a cumprir a vocação ontológica de intervir no mundo. O fato de me

perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em

face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha

presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se

insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também

da História.

Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais,

econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos

geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa

tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se

eternizam.

Não é o ―eu‖, individual, quem comanda, mas é o ―nós‖, coletivo. Com diversas

intencionalidades, tanto para fazer do outro parte integrante do ―nós‖, como para distanciá-los, a

palavra gente faz e cria no outro a sua interdependência. Não existe sociedade sem indivíduos,

não existe indivíduos sem sociedades, não existindo, assim, gente sem gentes.

A compreensão da realidade da sociedade e das gentes que nela participam, não torna

possível dissociar espaço19-tempo, não os compreendendo de maneira independente e estanque.

Para maior compreensão das gentes e os lugares em que estas ocupam em/na sociedade, Milton

Santos (1998, p. 58-59) adverte que ―[...] há necessidade, por parte do intelectual, de ler não

apenas uma, mas as várias versões sobre um fato, para que possa ter uma outra visão do mundo,

uma visão real dos fatos concretos, já que o mundo pode ser visto com muitas lentes distintas.‖

19

O entendimento do que seria o espaço e o território parte da necessidade de compreendermos a complexidade dos

modos de vida Guarani e Kaiowa no passado e no presente, discutidos no segundo capítulo. Contudo, estas

discussões perpassam o primeiro capítulo, já que buscamos entender os territórios e territorialidades em disputas na

constituição do sistema-mundo moderno-colonial, a partir de Carlos Walter Porto Gonçalves (2002; 2006; 2006a;

2006b). Neste contexto, as multiterritorialidades e multitemporalidades Guarani e Kaiowa, seja na organização

socioterritorial no Tekoyma (modo de vida dos antigos) ou no Tekopyahu (novo modo de viver), é compreendida a

partir do contato com o não ìndio, tendo como marco histórico, o ―descobrimento‖ / desencontro da América.

O espaço é uma categoria geográfica que nos permite entender a relação espaço-tempo entre os Guarani e Kaiowa,

assim como a complexidade dos territórios, territorialidades e temporalidades múltiplas em sua organização

socioterritorial, principalmente em torno das contribuições teóricas de Doreen Massey (2008) e Rogério Haesbaert

(2007). No tocante as diferenciações entre espaço e território, Marcos Aurélio Saquet (2009) contribui para esta

definição ao dizer que ambos não são sinônimos, havendo―[...] pelo menos três processos que, antologicamente estão

nas bases desta diferenciação: a) as relações de poder numa compreensão multidimensional, constituindo campos de

força econômicos, políticos e culturais ([i-] materiais) com uma miríade de combinações; b) a construção histórica e

relacional de identidades; c) o movimento de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR)

[...]‖.Assim, no que concerne a diferenciação entre espaço e território, ―[...] é fundamental reconhecer que espaço e

território não estão separados: um está no outro. O espaço é indispensável para apropriação e produção do território

[...]. Além disso, a diferenciação entre território e espaço, no real, é muito tênue e dificulta nossas leituras e

conceituações no nível do pensamento‖ (SAQUET, 2009, p. 82-83 – grifo nosso). Em suma, podemos dizer que o

território, diferente do espaço, ―é uma construção coletiva e multidimensional, com múltiplas territorialidades‖

(SAQUET, 2009, p. 81), permitindo compreender a organização socioterritorial Guarani e Kaiowa, assim como, as

multiterritorialidades e multitemporalidades que os envolvem.

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Enfim, salientamos que a diversidade do fazer-se humanamente de homens e mulheres, é que

estes não passam pela história com suas trajetórias de vida pré-definidas. E dialogando com a

poética de João Guimarães Rosa (2006, p.23), é notório na ciência geográfica, como no clássico

de Grandes Sertões Veredas, o entendimento que as gentes e as sociedades, ―não estão sempre

iguais, ainda não foram terminadas‖, denotando que as diversas sociedades, gentes e geografias,

estão fazendo-se no espaço-tempo.

Assim, gente e/ou gentes a partir das narrativas dos indígenas da RID, para o Kaiowa

Ñanderu Jorge (2009), rezador e liderança, ser gente, pode ser entendido ―[...] como a gente é...

Aqui é tudo Kaiowa, é Guarani, vive tudo junto. Tem os Terena também, tem negro aqui, um

lugar que só vive eles aqui na reserva. A gente aqui, aqui vive assim [...] vem gente de todo lugar

aqui, até da ONU [Organização das Nações Unidas]‖.

A partir de sua narrativa, é possível perceber que ser, referente à existência humana, se

faz a partir de si e dos outros, e com/no outro. Gente e/ou gentes é fator de diferenciação, de

individualidade, mas, também, de coletividade. Não existe o ―eu‖ sem o ―nós‖. Assim, ser gente é

ser humano, é estar junto, aprendendo, convivendo, conflitando... No caso da RID, ser gente(s) é

exemplificado no estar em permanente contato com não indígenas e indígenas.

Assim, pode-se dizer que a palavra gente ou gentes é a representatividade da

multiplicidade, caracterizando a humanidade de homens e mulheres no reconhecimento de sua

igualdade, e ao mesmo tempo a singularidade e pluralidade das possibilidades de fazer-se

humanamente na diversidade e na diferença do Outros-nós. No singular ou no plural, gente e/ou

gentes é elucidativo no reconhecimento do outro na diferença, é pensar o ―eu‖ sem dissociá-lo do

―nós‖. Gente sinaliza a potencialidade do reconhecimento humano, a correlação de união

referente ao que o Kaiowa Ñanderu Jorge assinala por seu grupo, ―como a gente é‖, ―como nós

somos‖. Pode-se dizer que a palavra é muito utilizada nas correlações de forças do ―eu‖ e ―nós‖,

expressando a unicidade de ambos, abrangendo as múltiplas possibilidades de sê-lo.

As complexidades do ser gente se fazem na possibilidade de compreensão da sociedade,

que por sua vez é uma invenção de homens e mulheres. Para Cornelius Castoriadis (1982) a

sociedade se faz como parte integrante da imaginação de homens e mulheres que conjuntamente

instituem valores, normas, regras, modos de perceber a si e os outros. Para o autor, há

necessidade de considerar todo campo simbólico das instituições, partindo da premissa de que o

imaginário é uma criação indeterminada de figuras, formas, imagens, demonstrando que só é

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possível falar da sociedade, desde que se considere que a realidade e a racionalidade são produtos

da imaginação. Partindo da premissa de que o mundo social-histórico está indissociavelmente

entrelaçado com o simbólico, sendo que o social-histórico é fruto do imaginário social instituído

e do imaginário social instituinte, Cornelius Castoriadis (1987, p. 399) assinala que:

[...] A sociedade existe pela instauração de um espaço de representações

compartilhadas por todos os seus membros, que traduzem o magma de

significações imaginárias sociais instituídas em cada caso. Imaginárias no

sentido forte e estrito. Nenhum sistema de determinações instrumentais

funcionais, que se esgote na referência à ―realidade‖ e à ‗racionalidade, pode

bastar-se a si mesmo. [...] O fato é que essa ―existência real‖, sem a postulação

de fins da vida individual e social, de normas e valores que regulem e orientam

essa vida, da identidade da sociedade considerada, do por quê e do para quê de

sua existência, de seu lugar no mundo, da natureza desses mundos – e que nada

disso pode ser deduzido da ―realidade‖ou da ―racionalidade‖, nem

―determinado‖ pelas operações da lógica conjuntivista-identitária.

A sociedade, para autor, assim como todas as coisas, tendo como exemplo a religião, são

impossíveis de serem pensadas fora do campo simbólico, da imaginação, esta possibilita a

criação, recriação e/ou sua invenção de tudo que há no mundo, inclusive as formas de criar. O

autor se remete a imaginação (imagem e ação), à capacidade dos homens e mulheres de criarem a

si mesmos, os objetos, os mitos necessários a sua sobrevivência (o próprio Deus ou deuses) entre

outros. Critica as bases da razão do pensamento ocidental que oculta a criação. Em suas palavras:

[...] o imaginário não é a partir da imagem do espelho ou no olhar do outro. O

próprio ―espelho‖, e sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras

do imaginário que é criação [...]. Aqueles que falam de ―imaginário‖

compreendendo por isso o ―especular‖, o reflexo ou o ―fictìcio‖, apenas repetem,

e muito frequentemente sem o saberem, a afirmação que os prendeu para sempre

a um subsolo qualquer da famosa caverna: é necessário que (este mundo) seja

imagem de alguma coisa. O imaginário de que falo não é imagem de. É criação

incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de

figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de

―alguma coisa‖. Aquilo que denominamos ―realidade‖ e ―racionalidade‖ são

seus produtos (CASTORIADIS, 1982, p. 13).

Rejeitando a definição a priori da sociedade e das gentes através de determinações

instituídas da realidade, o autor assinala que a sociedade é sempre uma autocriação, integrante do

imaginário social. Assim, podemos considerar que a constituição da sociedade foi delineada nas

geografias (movimento, enquanto trajetórias) das gentes, portanto, de poderes que ―decidiram‖

instituí-la para regular suas vidas, a partir de normas e regras. Cabe ainda salientar que a

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sociedade tal como ela é, e como a imaginamos, é, para Cornelius Castoriadis (1982), uma

construção social-histórica, e que a mesma não foi estabelecida por modelos, não é um dado a

priori, e não são ―determinadas‖ por ―leis‖ ―naturais‖ e/ou ―históricas‖, estando sempre em

processo de fazer-se.

Nesta perspectiva, apontada por Cornelius Castoriadis (1982), podemos dizer que a

sociedade é uma construção social criada e imaginada pelos homens [e pelas mulheres], e se faz,

instituindo valores, normas, regras, visões de mundo, imagens... Podemos dizer, então, a partir da

interpretação de Marcos Mondardo (2009, p.484) sobre Cornelius Castoriadis, que ―o imaginário

é um verdadeiro universo de conteúdos e símbolos que constrói histórica e permanentemente a

vida da sociedade20‖.

Ao considerarmos a instituição da sociedade como uma criação e invenção social-

histórica, podemos estabelecer relações com Norbert Elias (1994, p.16), quando este afirma que

―os indivìduos formam a sociedade e a sociedade os indivìduos‖, demonstrando que a sociedade e

os indivíduos formam uma totalidade, pois não há isolamento da sociedade frente ao indivíduo e

deste frente à sociedade. Ainda para o autor, o indivíduo antes mesmo de nascer, quando ainda

está em processo de gestação, já tem uma relação interdependente àquela que o gera (sua mãe

biológica), tendo, assim, sua primeira relação em ―sociedade‖ – estar junto, sendo a primeira

correlação do ―eu‖ individual frente ao ―nós‖ social-coletivo, demonstrando que:

Não há dúvida de que cada ser humano é criado por outros que existiam antes

dele; sem dúvida, ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de

um todo social – seja este qual for. Mas isso não significa nem que o indivíduo

seja menos importante do que a sociedade, nem que ele seja um ―meio‖ e a

sociedade, o ―fim‖. A relação entre a parte e o todo é uma certa forma de

relacionamento, nada mais, e como tal, sem dúvida, já é bastante problemática.

Em certas condições, pode ser vinculada à relação entre os meios e o fim, mas

não lhe é idêntica; inúmeras vezes, uma forma de relação não tem a mínima

ligação com a outra (ELIAS, 1994, p.19).

A sociedade, enquanto uma sociedade de indivíduos, se faz mutuamente e

interdependentemente, portanto sociedade e indivíduo não são e/ou estão opostos entre si, uma

vez que:

20

Marcos Mondardo (2009) salienta que é este imaginário social-histórico que também produz o território. Ainda,

consideramos que as discussões em torno de territórios e territorialidades, assim como os processos de T-D-R:

Territorialização-Desterritorialização-Reterritorialização serão melhores discutidos no segundo capítulo.

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[...] cada pessoa só é capaz de dizer ―eu‖ se é porque pode, ao mesmo tempo,

dizer ―nós‖. Até mesmo a ideia ―eu sou‖, e a mais ainda a ideia ―eu penso‖,

pressupõe a existência de outras pessoas e um convívio com elas – em suma, um

grupo, uma sociedade [...] a sociedade, com sua regularidade, não é nada externo

aos indivìduos; tampouco é simplesmente um ―objeto‖ ―oposto‖ ao indivìduo;

ela é aquilo que todo indivìduo quer dizer quando diz ―nós‖ [...]. As funções e

relações interpessoais que expressamos com partìculas gramaticais como ―eu‖,

―você‖ ―ele‖, ―ela‖, ―nós‖ e ―eles‖ são interdependentes. Nenhuma delas existe

sem as outras. E a função do ―nós‖ inclui todas as demais. Comparado àquilo a

que ela se refere, tudo o que podemos chamar ―eu‖, ou até ―você‖, é apenas

parte (ELIAS, 1994, p.57).

Nas possibilidades múltiplas dos homens e das mulheres fazerem-se humanamente,

dando-se a partir das correlações ―eu-eles‖ e ―você-nós‖, o entendimento de sociedade e

indivíduo só é possível se considerarmos que as ações das gentes têm sempre intencionalidades

na redefinição do passado, do presente e do futuro, assim como a própria criação, invenção e

redefinição da sociedade. As múltiplas formas de viver, as diversas percepções sobre o mundo, as

diversas sociedades, os indivíduos, os diversos saberes... estão em construção, sendo sempre

redefinidos. Pensar a sociedade como uma sociedade de indivíduos, de gentes, é considerar, a

partir de Norbert Elias (1994, p. 20), que ―o que une os indivíduos não é cimento‖.

1.2 - O pensamento ocidental

O olhar eurocêntrico ―descobre‖ a América, a África, as Índias, o Oriente... Entretanto,

não percebe que na ―descoberta‖ se descobre, reinventa-se, inventando o outro. Talvez, seja

necessário considerarmos o discurso hegemônico do ―descobrimento‖, em 1492, sobre o ―novo

mundo‖ (continente americano) pelos europeus, representado por Cristovão Colombo, como o

lugar de belíssimas riquezas naturais21, ao mesmo tempo em que inferiorizava outras formas de

21

Na importância de considerar a natureza como riqueza, Carlos Walter Porto Gonçalves (2004, p. 242) busca

enfatizar a necessidade de construção de outras formas de apropriação social da natureza, contrapondo-se as formas

moderno-coloniais, em que a natureza aparece em contraposição a cultura, a civilidade e a racionalidade

eurocêntrica, aparecendo como recurso inesgotável da reprodução do Times is Money. Para o autor, a natureza ―em

si‖ já é riqueza. Em suas palavras: ―A natureza é riqueza e não simplesmente recurso. Recurso, como nos ensina os

bons dicionários, é meio para atingir um fim. Eis, no fundo, o que o desafio ambiental nos coloca: a natureza como

riqueza e não como recurso. Aqui residem, a nosso ver, o limite da razão econômica mercantil e a necessidade de

construir uma racionalidade ambiental‖.

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fazerem-se humanamente, no caso, as sociedades indígenas, contrapondo-se à possibilidade do

encontro de duas (ou mais) racionalidades e temporalidades-territorialidades distintas.

O ―descobrimento‖ é uma invenção que desconsiderou o encontro com o outro. As

sociedades indígenas que ali viviam, não eram as mesmas da Europa, logo não eram passíveis de

serem consideradas humanas. Percebe-se, assim, que desde o início do desencontro entre

europeus e indígenas, mas, também, de outros territórios e territorialidades, o que esteve presente,

foram às barreiras múltiplas para o encontro, havendo, assim, o ―descobrimento‖, que foi nada

mais do que uma visão de alcance do europeu, fundante no sistema-mundo moderno-colonial.

A impossibilidade do encontro que o ―descobrimento‖ de ―novos mundos‖ delineou,

provocou o desencontro, sobretudo, entre indígenas e europeus. As concepções atuais de

―universal‖, ―ocidental‖ e ―oriental‖, reproduzidas nos discursos da vida cotidiana, das nossas

referências espaços-temporais, do passado, do presente e do futuro, são marcações linguísticas da

produção de uma racionalidade que se impôs sobre concepções diversas de ―universo‖.

Assim, o caráter ideológico de invenção e constituição do Meridiano de Greenwich22

,

definido por uma linha imaginária centralmente localizada na Inglaterra, sendo o marco zero 0º

(0º de longitude), dividindo imaginariamente o mundo entre ―ocidente‖ e ―oriente‖, é a

representatividade do processo civilizador que impõem aos ―novos mundos‖, novas

temporalidades de viver, redefinindo espacialidades sobre os homens e mulheres.

Neste contexto, Edward W. Said (2007, p.155) salienta que as concepções sobre

―ocidente‖ e ―oriente‖ é de um imaginário social, onde ―o seu Oriente não é o Oriente como ele

é, mas o Oriente como ele foi orientalizado‖. Em torno deste imaginário sobre o ―oriente‖,

Edward W. Said (2007, p.27-28) elenca que, o:

[...] orientalismo, um modo de abordar o Oriente que tem como fundamento o

lugar especial do Oriente na experiência ocidental européia. Oriente não é

apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais

antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival

cultural e uma de suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro.

22

Estabelecido em 1851, entretanto foi definido por meio do acordo internacional em 1884 para servir como

referência para calcular distâncias em longitudes e estabelecer os fusos horários. Cada fuso corresponde a uma faixa

de quinze graus de longitude de largura. Cada grau de longitude é equivalente a uma hora, e cada uma hora a 60

minutos e um minuto a 60 segundos. Ainda, o Meridiano de Greenwich atravessa dois continentes e sete países. Na

Europa: França e Espanha e na África: Argélia, Mali, Burkina Faso e Gana.

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Por isso, devemos destacar o caráter ideológico eurocêntrico que rege a cartografia do

mundo, sendo que a mesma é definida a partir das representações sobre os outros. Tendo em vista

que estas noções geográficas são permeadas por relações de poder, as concepções sobre o

―oriente‖ e o ―ocidente‖ são parte fundamental destas invenções. Demonstrando ainda que a

construção do ―ocidente‖, do pensamento ―ocidental‖, se fez negando a existência do outro, se

constituindo em oposição ao ―oriente‖.

Edward W. Said (2007, p. 28) afirma que a concepção de ―ocidente‖ se constitui

juntamente com a ideia de ―oriente‖, ajudando ―[...] a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua

imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes‖. Desta forma, o ―ocidente‖ e ―oriente‖ é

muito mais que uma coordenada geográfica, é um modo de pensar, de marcar o tempo, de buscar

a ―ocidentalização do mundo‖.

O ―ocidente‖ estabeleceu um pensamento dominante, eurocêntrico, que marca e

demarca espacialidades e temporalidades de viver, colocando-se como matriz única de

racionalidade. É neste contexto, que novas identificações do que se entende por ―ocidente‖ e

―oriente‖ foram transformadas, foram fazendo-se enquanto uma construção e invenção social. A

ideia de Europa, assim como a ideia de América, foi desde o ―descobrimento‖ resultado das

invenções ocidentais-coloniais. Miguel Rojas Mix (1991, p. 11-12), sobre a invenção sempre

―móvel‖ das ―novas terras descobertas (desencontradas) pelos europeus‖, salienta:

Durante la época colonial, España llamó Indias a las tierras descubiertas, nombre

dado por Colón; [...] por ser esta tierra la oriental de la India, no conocida, y

porque no tenía nombre particular [...] dice su hijo, don Fernando, en la vida del

Almirante. Más tarde se las denomino también Nuevo Mundo, Las Españas y

Ultramar. En el Cuarto Centenario todavía hablaba el gobierno de [...] provincias

ultramarinas [...] pero el apelativo preferido seguía siendo las Indias. Don Martín

Fernández de Navarrete, director de la Real Academia de la Historia y famoso

por sus Colección de viajes y descubrimientos, lo confirmaba en 1829: [...] Esta

usurpación, que así puede llamarse, ni nació ni tuvo jamás formal ecogida en

España, donde siempre se hizo justicia a la persona y méritos del Almirante,

apellidando aquellos vastos países con el nombre de Indias, que el les digo en

sus primeras relaciones; y hasta hoy día, trescientos treinta y siete años después

de su hallazgo, en los despachos y oficinas del gobierno no se usa otra

denominación [...] y en informe sobre los restos de Colón afirmaba la Real

Academia de la Historia en 1878: [...] En vano... se esfuerzan a probar que el

nombre de América... empezó a estar en uso desde el año 1509... Europa acabó

por aceptarlo, con excepción de España, que lo resistió hasta muy cerca de

nuestros días, pero sin desterras por eso el de Indias del lenguaje oficial [...] En

realidad no hacía tan poco que el nombre de América había sido aceptado:

circuló corrientemente en las Cortes de Cádiz. Pero los términos son tenaces, en

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especial cuando llevan dentro de si un discurso político. Es el caso de Indias.

Asociado a descubrimiento y a la representatividad del descubridor, legitimaba

el dominio de los reyes de España sobre el Nuevo Mundo. Por eso se sigue

reivindicando a casi ciento cincuenta años de haber abandonado el solio

virreinal.

A concepção de ―novo mundo‖ e todas as outras denominações delineadas pelo/no

pensamento ocidental, como já dito, são invenções. Sendo estas imposições, moldadas e

envolvidas por relações de poder, que passou a não ―permitir‖ aos outros, diferentes dos

europeus, seu reconhecimento humano. O pensamento ocidental é, também, fruto da ciência

moderna23, de intelectuais e acadêmicos ocidentais com suas narrativas, que criam um abismo no

imaginário social das gentes e suas concepções sobre o ―oriente‖ e ―ocidente‖. Edward Said

(2007, p.31) considera que:

[...] Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens

fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram, e

estendê-la a geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar

de entidades históricas -, tais lugares, regiões, setores geográficos, como o

―Oriente‖ e o ―Ocidente‖, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o

próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de

pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e

presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto,

sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra.

As invenções não podem ser visualizadas fora de suas intencionalidades, tendo em vista

que nem mesmo o modo como nos vemos no espaço está desvinculado delas. Tais correlações

estão expressas no caráter hegemônico de quem produz e de quem aceita as ―coisas do mundo‖

como verdades, como fatos existentes a priori, sem questionamentos. O que está em discussão, é

que tais correlações de poder fazem-se hegemonicamente e são instituídas e institucionalizadas

nos enredos das invenções. Para Edward Said (2007, p.14),

[...] a história é feita por homens e mulheres, e do mesmo modo ela também

pode ser desfeita e reescrita, sempre com vários silêncios e elisões, sempre com

formas impostas e desfiguramentos tolerados, de modo que o ―nosso‖ Leste, o

―nosso‖ Oriente possa ser dirigido e possuìdo por ―nós‖.

23

―O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constitui-se a partir da revolução científica do século

XVI [...] na teoria de heliocêntrica do movimento dos planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos

planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande síntese da ordem cósmica de Newton e finalmente

na consciência filosófica que lhe conferem Bacon e, sobretudo, Descartes [...] Possibilita uma e só uma forma de

conhecimento verdadeiro‖ (SANTOS, B., 1988, p. 10-11). ―As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal

que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por esta via

que o conhecimento cientìfico rompe com o conhecimento do senso comum [...]‖ (SANTOS, B., 1988, p. 16).

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A partir do autor, abrimos a possibilidade de redefinirmos nosso passado, buscando

outras formas de vivê-lo e percebê-lo no presente, considerando as histórias-trajetórias que se

faziam e se fazem no antes e depois do ―descobrimento‖ e/ou desencontro da América.

Insistimos, temos múltiplas possibilidades para o futuro, pois as geografias vividas pelas gentes

no espaço-tempo não estão acabadas, de modo que podemos redefinir nossos ―orientes‖, nossos

―ocidentes‖, nossos ―outros‖... O mundo está se fazendo em ―simultaneidades de estórias-até-

agora‖.

1.2.1- Multiplicidade de histórias-trajetórias nas “simultaneidades de estórias-até-agora” no

“descobrimento” e/ou desencontro do “novo mundo”

―A forma mais evidente que isso tomou foi a insistência de que a estória do

mundo não pode ser contada (nem sua geografia elaborada) como a estória

apenas do ―Ocidente‖, ou a estória, por exemplo, daquela figura clássica

(irônica e frequentemente, ela própria essencializada) do macho branco,

heterossexual e que essas eram estórias particulares, entre muitas outras (e sua

compreensão através dos olhos do Ocidente ou do macho heterossexual é ela

própria específica). Tais trajetórias foram parte de uma complexidade, e não os

universais que elas, por tanto tempo, propuseram ser‖.

Doreen Massey (2008, p.31).

Os europeus descobrem-se encontrando e criando o outro, diferente dele, no ―novo

mundo‖, inferiorizando-o, desconsiderando as multiplicidades de histórias-trajetórias no espaço-

tempo. As gentes do ―novo mundo‖ são inferiorizadas juntamente com a fauna e flora24, que com

diferentes e diversos habitats e hábitos desconhecidos pelos europeus, estas sociedades

juntamente com sua natureza, passam a serem pejorativamente classificados e inferiorizados. É

neste desencontro que Antonello Gerbi (1996), ao analisar os olhares sobre o ―novo mundo‖ na

perspectiva eurocêntrica de 1750-1900, salienta que os animais e mesmo os homens são sempre

relativamente menores, inferiores, podendo-se dizer, uma ―natureza degenerada‖. Em suas

24

Ver GERBI, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica- 1750-1900. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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palavras, no caso dos animais, mesmo aqueles ―comuns aos dois mundos, tais como os lobos, as

raposas, os cervos, os cabritos, monteses, os alces, são também consideravelmente menores na

América que na Europa [...]‖ (GERBI, 1996, p. 20).

O autor ainda analisa o pensamento da época, persistente ainda hoje, em que os europeus

comparavam a humanidade das gentes nativas a partir da natureza, tendo em vista que na

perspectiva eurocêntrica a melhor humanidade, as mais bonitas riquezas naturais estavam na

Europa. Ainda o mesmo autor, apegando-se ao discurso de um famoso naturalista do século do

século XVIII, George Luis Leclerc ou apenas Conde de Buffon, assinala que seu pensamento

fazia-se da seguinte forma:

[...] O selvagem é débil e pequeno nos órgãos da reprodução; não tem pêlos nem

barba, nem qualquer ardor por sua fêmea: embora mais ligeiro que o europeu,

pois possui o hábito de correr, é muito menos forte de corpo; é igualmente bem

menos sensível e, no entanto, mais crédulo e covarde; não demonstra qualquer

vivacidade; qualquer atividade d‘alma; quanto à do corpo, é menos um

exercício, um movimento voluntário, que uma necessidade de ação imposta pela

necessidade: prive-o da fome e da sede e terá destruído simultaneamente o

princípio ativo de todos os seus movimentos; ele permanecerá num estúpido

repouso sobre suas pernas ou deitado durante dias inteiros (Buffon apud GERBI,

1996, p. 21).

É neste contexto de desencontro, que as expressões do indìgena, o ―primitivo‖,

―selvagem‖, ―silvìcola‖, ―bugre‖ entre outros, aparecem correlacionados à natureza (aparecendo

na literatura, pinturas, desenhos infantis). O ìndio é o ―exótico‖, aquele que se coloca do outro

lado da racionalidade, logo, da humanidade. Todos os seus enquadramentos de língua e cultura

são aproximativos do mundo natural.

O que se percebe é que no ―descobrimento‖ e/ou desencontro, pode-se dizer confronto

entre europeus e indígenas, em diferentes momentos espaços-temporais, de um e outro, é que

ambos foram mudando suas trajetórias. Os desencontros de mundos distintos trouxeram novas

―trajetórias-histórias‖ para os nativos, mas também para quem chegou, os europeus.

Como aponta Doreen Massey (2008), uma multiplicidade de histórias-trajetórias fazem-

se no espaço-tempo entrelaçadas por/nas geometrias do poder. Ao sinalizar a importância das

geometrias do poder nas/das relações sociais, demonstra a multiplicidade de sociedades e as

negociações travadas no espaço-tempo, já que para a autora, estas relações estão se fazendo em

uma simultaneidade de estórias-até-agora – (Stories-so-far). Demonstra ainda, que ―[...] é um

produto de relações-entre, relações que estão, necessariamente, embutidas em práticas materiais

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que devem ser efetivadas, ele está sempre no processo de fazer-se. Jamais está acabado, nunca

está fechado [...]‖ (MASSEY, 2008 p.29).

Assim, pensar o ―descobrimento‖ do ―novo mundo‖, o encontro e/ou desencontro entre

indígenas e europeus, é considerar a ampliação de múltiplas histórias-trajetórias que passam a

confrontar-se no espaço-tempo. Ainda, em múltiplas territorialidades e temporalidades fazendo-

se descompassadamente pelo/no outro, negando relações não dominantes e hegemônicas,

―escondendo‖ outras possibilidades de fazer-se gente.

Remetendo-se ao ―descobrimento‖ e/ou ―encontro‖ da América, Walter D. Mignolo

(2008, p.239) assinala que ―[...] foram as monarquias e, em seguida, os estados-nacionais do

Atlântico [...]‖ que possibilitaram o ―descobrimento‖ da América, impondo novas configurações

territoriais, não só sobre o ―novo mundo‖ encontrado mas também sobre a Europa – a

constituição de si mesmo como um todo homogêneo25. Transformações que já se vinham fazendo,

como as mudanças em torno do conhecimento sobre o mundo, que anteriormente tinham nos

fundamentos do cristianismo a explicação, agora estavam sendo transformados por novas ideias

sobre o mundo – Renascimento.

O Renascimento foi um momento de dúvidas e de audácias no encontro com uma nova

humanidade – os indígenas, mas também, com os negros, com os orientais (WOORTMANN,

2004), a partir de uma racionalidade pautada na razão e nos preceitos cristãos. Diferentes destes,

outras trajetórias devem ser reformuladas a partir dos ideais de humanidade do ―ocidente‖.

Ainda, Walter D. Mignolo (2008, p.243) considera que:

No século XVI, a retórica salvacionista da modernidade enfatizava a conversão

ao cristianismo. Mais adiante, a partir do século XVIII, a salvação é pensada em

termos de conversão à civilização (secular). Após a Segunda Guerra Mundial, a

retórica salvacionista da modernidade celebra o desenvolvimento como condição

da modernização. Isso permanece até hoje, na quarta etapa, depois da queda da

União Soviética, agora com ênfase na tríade desenvolvimento, democracia e

mercado. Mudaram também as relações de produção e o controle da economia:

do monopólio mercantil ao livre comércio; da revolução industrial à revolução

tecnológica, etc. Mudaram também as relações de autoridade (controle político):

os espanhóis saíram da América do Sul; os ingleses da América do Norte e em

seguida da Índia; os franceses da África do Norte, etc. Enfim, mudaram ―os

25

Michel Foucault (2008, p. 400) considera que a Europa não tem a mesma vocação universalista do cristianismo,

sendo extremamente plural. Em suas palavras ―A Europa como região geográfica de Estados múltiplos, sem unidade

mas com desnível entre pequenos e grandes, tendo com o resto do mundo uma relação de utilização, de colonização,

de dominação, foi esse pensamento que se formou [no] fim [do] século XVI e bem no início do século XVII com o

conjunto dos tratados que são assinados nesse momento – e é a realidade histórica de que ainda não saímos. É isso o

que é Europa‖.

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conteúdos‖, mas não os ―termos da conversa‖ (a lógica da colonialidade).

Mudaram as ênfases nos domínios da matriz colonial de poder (da ênfase no

controle das almas passa-se ao controle dos corpos – a eugênica – e ao controle

das carteiras – a sociedade de consumidores). Porém o que não mudou foram

dois dos elementos fundamentais da matriz colonial de poder. Por um lado,

mantém-se a dispensabilidade da vida humana (a acumulação e a autoridade

vêm em primeiro lugar e depois disso, se possível, algo é feito para que as

pessoas não morram; também é necessário eliminar, de diferentes maneiras e

através de várias vias, aqueles que atentam contra a ordem econômica e de

autoridade). Por outro lado, também se mantêm as quatro esferas inter-

relacionadas da matriz colonial de poder (economia, autoridade, gênero e

sexualidade, conhecimento e subjetividade), mediante o controle do

conhecimento, que é, ao mesmo tempo, racista e patriarcal. Esses são elementos

que não mudaram, desde o discurso cristão do século XVI ao discurso secular e

economicista do século XXI.

Portanto, as grandes transformações técnicas e científicas no/do universo europeu, na

passagem do século XV para o século XVI, deram-se com o renascer de novas ideias. O

Renascimento nas transformações da teologia à ciência (ciências médicas, botânica, matemática

entre outras), das artes, o conquistar e desbravar o universo até então desconhecido, juntamente

com novos conhecimentos técnicos de astronomia, instrumentos de navegação – astrolábio,

bússola e balestilha e as caravelas que foram sendo aperfeiçoadas, a fim de resistir e ter maior

capacidade de transporte para os desafios oriundos em mar aberto. Neste contexto, elencamos que

a busca por outras espacialidades ―fora‖ da Europa, se fez também pela necessidade de novas

formas de apropriação material e imaterial do território. Este fato, identifica as diferentes formas

de apropriação social da natureza entre indígenas e não indígenas, demonstrando, assim, os

territórios e territorialidades em disputas no ―descobrimento‖ / desencontro da América.

Ainda, pode-se dizer que o avanço técnico, a partir de novas formas de conhecimento,

possibilitou a conquista de outros ―mundos‖. O ―descobrimento‖ da América é ―em si‖ a

representatividade da busca por novas formas de ocupação do espaço, ou seja, novas formas de

apropriação/domínio/organização/produção territorial que se faz fora da Europa, mas que, por sua

vez, redefinem a própria Europa, possibilitando o encontro com as sociedades indígenas e, nesta

relação, as novas formas de organização espacial entre ambos, havendo a necessidade de

considerar as novas formas de indígenas e europeus exercerem suas territorialidades.

O mundo e as diversas gentes passam, a partir deste momento, a conhecer espacialidades

que desconheciam. Outras racionalidades eram desconhecidas e algumas passam a ser impostas.

O que se tem, pós- ―descobrimento‖ do ―novo mundo‖, é o delineamento de que o mundo torna-

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se global, nos pressupostos que passam a negar outras trajetórias possíveis. Todos estão

envolvidos na ―máquina do capitalismo‖, marcado pelo controle do tempo e do espaço

quantitativamente, por horas, minutos e segundos de trabalho e ócio.

Dessa maneira, entender as relações hegemônicas, para além do contexto dominador e dominado,

é saber que estas correlações de poder estão amparadas pelo controle do saber, do ser e do fazer,

considerando, a partir de Jones Dari Goettert (2008), que todo fazer é uma forma de mostrar-se.

Portanto, contemplando os distintos modos de fazer-se humanamente, não pautados no

racionalismo eurocêntrico, mas sim nas possibilidades de outra visão de mundo, que não é a do

―centro‖, ou seja, que não está pautada nos ideários dos colonizadores e do discurso competente.

O discurso competente é o discurso autorizado, aquele que pode ser reproduzido sem grandes

contestações, é o discurso institucionalizado, hegemônico e dissimulador da dominação,

reproduzindo o status quo na moderna-colonialidade (CHAUÍ, 200726).

A partir desta consideração e em contraposição às narrativas moderno-coloniais,

buscamos ouvir outras vozes, sendo estas, às não dominantes e que, muitas vezes, foram

impedidas de falar. Propomos assim, considerar a multiplicidade de narrativas,

concomitantemente, com a multiplicidade de espacialidades, territórios, territorialidades,

temporalidades e histórias-trajetórias se fazendo e conflitando entre si no espaço-tempo, a partir

de Doreen Massey (2008).

Neste sentido, a opção pelos estudos descoloniais27 se dão no entendimento de que é

necessário descolonizar, mostrando outras histórias-trajetórias não dominantes, a partir dos

pressupostos teóricos de Frantz Fanon (1975; 2008), juntamente com as discussões de Walter D.

Mignolo (2007; 2008; 2008b). Os estudos descoloniais têm por opção ouvir outras vozes que não

se fazem pelo discurso hegemônico e competente moderno-colonial, buscando assim, outras

narrativas que se fizeram e estão se fazendo pelas/nas possibilidades de descolonização.

Propomos assim, a necessidade de desconstrução da colonialidade, por isso, o conceito de

26

Aprofundaremos a discussão no quinto capítulo. 27

Utilizamos o conceito de descolonial por acreditar ser a melhor forma de oposição a sociedade moderna-colonial.

Em nenhum momento é um contraponto aos estudos pós-coloniais, discutido por Bhabha (1998), entre outros

autores. Mas, se trata de uma opção, além de teórica, política e ideológica de melhor traduzir a necessidade de

desfazermos os modos dominantes de viver e pensar. Através de Walter D. Mignolo (2008, p.297) elencamos que em

disputa com o discurso eurocêntrico, a ―Opção descolonial desqualifica essa interpretação. Ao ligar a

descolonialidade com a identidade em política, a opção descolonial revela a identidade escondida sob a pretensão de

teorias democráticas universais ao mesmo tempo em que constrói identidades racializadas que foram erigidas pela

hegemonia das categorias de pensamento, histórias e experiências do ocidente (mais uma vez, fundamentos gregos e

latinos de razão moderna/ imperial)‖.

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descolonialidade, como considerado por Margarida Maria Filipe Gomes (2008). Assim, a partir

de Walter D. Mignolo (2008, p. 296), podemos dizer que ―[...] essa é a opção descolonial que

alimenta o pensamento descolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem co-

existir‖.

Considerando a existência de muitos mundos, assim como, as várias narrativas históricas

sobre o mesmo fato para melhor compreender a realidade, se fazem nos delineamentos de que as

―grandes‖ questões mundiais não são vivenciadas da mesma forma em todos os lugares, mas é

somente uma das diversas trajetórias-histórias possíveis. Referente aos estudos descoloniais,

Walter D. Mignolo (2008, p. 246) assinala que neles há ―[...] uma opção e paradigma de co-

existência, rejeita sempre uma única maneira de ler a realidade [...]‖. Ainda permitindo

compreender os estudos descoloniais, a partir das proposições de Frantz Fanon, ao demonstrar

que ―[...] a opção descolonial toca tanto o colonizado como o colonizador, ou seja, a opção

descolonial propõe o desprendimento da lógica da colonialidade, de um horizonte de vida onde se

vive para trabalhar, em lugar de trabalhar para viver‖ (MIGNOLO, 2008, p.248). Estando em

jogo não só uma forma de perceber/viver o mundo, o que está em ―jogo‖ é uma multiplicidade de

trajetórias (MASSEY, 2008).

Compreendendo o espaço como estando em contínua transformação, é notório que os

outros, sejam eles indìgenas, negros, ―orientais‖, ―brancos28‖ (referente ao não indìgena), são

construções (pode-se dizer, imaginários) históricas que se fazem nos espaços-tempos, fazendo

deles: bons, maus, heróis, bonitos, feios, bárbaros, selvagens, racionais, irracionais, descobridores

e descobertos, a partir do ponto de vista de si e dos outros. O poder, ou melhor, quem o detém, é

uma instituição só possível pelo/no outro.

São nestes ―jogos de poder‖ que o outro é criado e recriado nas correlações de força do

que eles são e dos que os outros dizem que é. O outro é uma invenção social, sendo também

aquele que se difere do nós, pelas diferenças de gostos, jeitos, cheiros, falas... Contudo, sem

perder de vista a proposição de Bhabha (1998, p.76): ―É precisamente naquele uso ambivalente

de "diferente" - ser diferente daqueles que são diferentes faz de você o mesmo - que o

inconsciente fala da forma da alteridade, a sombra amarrada do adiamento e do desloca-mento‖.

28

A denominação ―branco‖ é parte das narrativas indìgenas. Ele não só representa a cor da pele, mas tudo aquilo que

não é do modo de vida indígena. Neste contexto, quando a acionamos, estamos nos remetendo ao outro que não é o

indígena, e/ou, não são em alguns contextos do texto, os Guarani e Kaiowa.

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O autor possibilita entender as negociações de identidades, nas relações de viver em

entre-lugar, significando assim, estar entre o outro ou pode-se dizer ainda, com o outro. Esta

condição permite a constituição de identidades, de modo que as mesmas não estão e não são pré-

definidas. Ainda, pensando as identidades pós-coloniais, os modos em que elas foram se fazendo

ao mesmo tempo em que desfaziam outras, o autor salienta que:

[...] a demanda da identificação - isto é, ser para um Outro - implica a

representação do sujeito na ordem diferenciadora da alteridade. A identificação,

como inferimos dos exemplos precedentes, é sempre o retorno de uma imagem

de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem

(BHABHA, 2007, p.76).

Este, o outro, é por sua vez, apresentado sempre em um invólucro de classificação do

que nós somos referentes a eles. Pode-se dizer, que o outro é nada mais do que um ―sistema‖ de

normatizações que encobre o descobrir-se e/ou encontrar-se. Classifica o descobridor do

descoberto, o encontrado de quem encontrou (caso isso seja possível), criando/inventando o outro

como inferior, desprovido de racionalidade, de humanidade, assim, diferindo-se de si mesmo.

Para Boaventura de Souza Santos (2002), ser o descobridor ou o descoberto, é

estabelecido no/pelo jogo de forças de quem pode ou não falar, de quem pode ser ou não ser o

descobridor. Da mesma forma, esta relação deve ser pensada na instituição da sociedade, como

considerado por Cornelius Castoriadis (1987). De modo que estão se fazendo por correlações de

poder, e são importantes para entender as diferentes formas de como a sociedade é instituída, e

mantém-se institucionalizada, tendo em vista que a instituição e aqueles que as instituem são

interdependes. Assim, não existe instituição sem aqueles que a instituíram.

O debate em torno de como o poder é instituído, podemos estabelecer diálogo com a

literatura Infanto-Juvenil Alice no País das Maravilhas29 de Lewis Carroll (2009). O autor

demonstra no diálogo entre a Duquesa e a Alice, a correlação de força do que se pode ou não ser,

o que se é e o que se poderia ser (ou não), aos olhos de si e do(s) outro(s). No livro, a Duquesa

diz à Alice:

‗Seja o que você parece ser‘... ou, trocando em miúdos, ‗Nunca imagine que

você mesma não é outra coisa senão o que poderia parecer a outros do que o

que você fosse ou poderia ter sido não fosse senão o que você tivesse sido teria

parecido a eles ser de outra maneira‘ (CARROLL, 2009, p.106).

29

A primeira edição de Alice no País das Maravilhas é de 1985.

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Neste contexto, pode-se entender que ao criar o outro desconhecido no ―descobrimento‖,

corre-se o risco de fazê-lo diferente do que ele é ou imagina ser, denotando ao ―descoberto‖ uma

forma de ser no ―descobrimento‖ e/ou desencontro, que só é possìvel no outro. O que é o outro a

partir do outro, se faz nas correlações de poder do que um e outro entende por verdade, que para

Michel Foucault (2010, p.12) ―[...] a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...]. Cada

sociedade tem seu regime de verdade, sua ―polìtica geral‖ de verdade: isto é, os tipos de discurso

que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros‖. Assim, os discursos e as verdades sobre o que

é descoberto e/ou desencontrado, podem ser tanto para inferiorizá-los ou enaltecê-los,

dependendo da(s) verdades(s) estabelecidas entre um e outro.

É nas correlações de poder, que a geografia não pode ser contada e vivida por um só

ponto de vista, como saber único, uma ―verdade dominante universal‖. No entendimento da

existência de geografias espaços-temporais, pensamos o saber geográfico pelo/no movimento

das/nas sociedades. No jogo da verdade e/ou verdades, pensar a história da conquista é visualizá-

la no espaço geográfico de sua atuação, considerando que a conquista desconsiderou outras

formas de agir, pensar, sentir, apropriar-se do espaço, viver o tempo e pensar o mundo.

As histórias e as geografias das sociedades não poderiam, mas foram contadas apenas na

narrativa dominante do ocidente com base na moderna-colonialidade, desconsiderando uma

multiplicidade de histórias-trajetórias não dominantes. Geografia e história, espaço-tempo, devem

estar dialeticamente combinados. Segundo Carlos Walter Porto Gonçalves (2002) a geografia

fazendo-se como necessidade histórica, vai consolidando-se em um saber que pode ser tanto para

aprisionar os homens quanto para libertá-los, dependendo da verdade que dá à geografia sua

funcionalidade, seu modo de fazer-se.

No contexto do encontro e/ou desencontro de mundos e racionalidades distintas, os

conhecimentos científicos modernos são construídos com a pretensão de instrumentalizar o

avanço das conquistas territoriais bem como justificá-las ideologicamente. Sendo que esse

conhecimento engendrado neste contexto de construção da modernidade se pautava em

dicotomias que são fruto da fragmentação cartesiana30 característica de nossa ciência

eurocêntrico-moderna: espaço e tempo, história e geografia, natureza e sociedade, material e

30

Nome este dado devido à influência de René Descartes na ciência moderna, filósofo francês, considerado como

sendo um dos pensadores mais importantes e influentes do pensamento ocidental.

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simbólico (SANTOS, B., 1988). Pensar essas dicotomias e essa pretensão ideológica da ciência

européia significa dizer que a geografia nasce neste contexto:

A geografia foi um desses saberes práticos que renasceu na constituição do

mundo moderno-colonial antes mesmo de a Geografia se constituir como um

saber com pretensões científicas no século XIX. A palavra geógrafo aparece em

1537 para designar ‗o funcionário do Rei fazer mapa‘, ou seja, aquele

especialista em re-presentar o espaço, em delimitar as fronteiras para o Estado

Territorial nascente. Não olvidemos que ao mesmo tempo que o espaço se torna

fundamental para o controle por parte do Estado Absolutista nascente,

exatamente por isso, se coloca muito mais como uma questão prática, de

procedimentos de controle, do que de interesse teórico. O espaço, como o poder

absoluto, não está em discussão (PORTO-GONÇALVES, 2002, p. 228).

Neste sentido, o movimento da geografia na história colocou ―[...] a si próprio como um

saber superior no mesmo movimento que [des] qualifica todos os outros saberes como locais,

regionais ou provincianos‖ (PORTO-GONÇALVES, 2002, p. 218). Entretanto, é esta mesma

geografia, pelo movimento da sociedade, que tenta demonstrar as possibilidades de ―liberdade‖

de homens e mulheres, considerando que as gentes têm suas próprias dinâmicas para explicar o

mundo, e que tais explicações ultrapassam os delineamentos do saber e fazer científico

acadêmico.

Dessa maneira, entender a multiplicidade de trajetórias-histórias se faz compreendendo a

pluralidade de modos de saber, viver e morrer, considerando que estão se fazendo pelas/nas

disputas espaciais, podendo dizer, como propõe Doreen Massey (2008, p. 201-202),

―Aqui‖ é onde as narrativas espaciais se encontram ou formam configurações,

conjunturas de trajetórias que têm suas próprias temporalidades (portanto,

―agora‖ é tão problemática quanto ―aqui‖). Mas onde as sucessões de encontros,

as acumulações das tramas e encontros formam uma história.

Portanto, estamos considerando as multiplicidades de formas de ocupar o espaço e viver

o tempo, ou seja, o conflito delineado pela contradição existente entre os espaços-tempos da

moderna-colonialidade, e os espaços-tempos da re-existência/descolonialidade. Buscar

desconstruir o pensamento hegemônico eurocêntrico, demarcando as diferenças com o

pensamento descolonialista, passa pelos modos em que construímos e imaginamos o outro, sendo

que estes imaginários são parte da invenção de espaços-tempos do/no sistema-mundo moderno-

colonial que estão sendo rebatidos e reinventados pelas gentes em suas histórias-trajetórias.

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1.3 - Espaços-tempos do sistema-mundo moderno-colonial: a construção do outro

―Toda mudança no ―espaço‖ é uma mudança no ―tempo‖, e toda mudança no

―tempo‖ é uma mudança no ―espaço‖‖.

Norbert Elias (1998, p. 81).

O sistema-mundo é uma elaboração teórica de Imannuel Wallerstein e Anibal

Quinjano31, no qual discutiremos a partir das conceituações teóricas de Carlos Walter Porto

Gonçalves (2002; 2004; 2006; 2006a; 2006b) que compreende o sistema-mundo, juntamente com

os ideários da compreensão de moderna-colonialidade, a partir de uma abordagem contra-

hegemônica, trazendo para o debate as contradições que constitui o sistema-mundo moderno-

colonial, que é o mundo em que fazemos parte, o mundo em que vivemos, movido e envolvido

pelos ideários eurocêntricos a partir da descoberta de ―novos mundos‖.

Em linhas gerais, o sistema-mundo moderno-colonial é um momento inaugural das

histórias-trajetórias das gentes do mundo após 1492, momento em que a Europa se coloca como

centro do mundo, criando sua periferia colonial, no caso, com o ―descobrimento‖ da América.

Este momento, de forma geral, é a data do início do processo de globalização, fazendo-se por

―uma história e uma geografia verdadeiramente mundiais, cada vez mais se impondo às histórias

regionais ou, pelo menos, as condicionando‖ (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.24).

A expressão mundo-moderno busca trazer a centralidade da modernidade representada

pela Europa ao mesmo tempo em que desconsidera a de sistema-mundo que lhe é associada, ou

seja, envolvendo o mundo-colonial. Ainda, é necessário partir do pressuposto de que este

sistema-mundo é marcado pela modernidade ao mesmo tempo em que se reproduz pelo arcaico e

colonial, de modo que a modernidade se constitui no mesmo movimento que constitui e institui a

colonialidade. Portanto, ―[...] reter o lado moderno da expressão mundo moderno é atribuir a

Europa um papel protagônico exclusivo nesse processo, olvidando-se que o mundo como um

todo dele participou, mesmo que não participando dos seus melhores proveitos‖ (PORTO-

GONÇALVES, 2006a, p. 24). Desta forma, Carlos Walter Porto Gonçalves (2006a, p. 25)

31

Também autores como, Walter D. Mignolo, Edgardo Lander, Santiago-Gómez, Fernando Coronil, entre outros

(PORTO-GONÇALVES, 2006).

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demonstra que: ―Estamos, sim, diante de um sistema-mundo moderno-colonial, que é um mundo

cada vez mais interdependente – sistema-mundo, mas cuja interdependência está organizada com

base num sistema de relações hierárquicas de poder – moderno-colonial‖.

O sistema-mundo é a representatividade do ―descobrimento‖ de ―novos mundos‖ (não só

a América como ―novo mundo‖, mas também outros territórios desconhecidos, como a Índia). É

também o marcador de temporalidades e territorialidades que foram e estão sendo desfeitas e

refeitas, remetendo-se ao padrão de poder que passou a governar o mundo a partir do

―descobrimento‖ de ―novos mundos‖. Neste sentido, Carlos Walter Porto Gonçalves (2002,

p.218) considera que:

O pensamento moderno europeu pouco a pouco vai construir uma geografia

imaginária onde as diferentes qualidades dos diferentes povos e culturas, que

1492 pôs em assimétrica relação, serão dispostas num continuum linear que vai

da natureza à cultura, ou melhor, da América e da África, onde estão os povos

primitivos mais próximos da natureza, à Europa, onde está a cultura, a

civilização. E dominar a natureza, sabemos, é o fundamento da civilização

moderna construída pelos europeus à sua imagem e semelhança e, para isso, os

povos a serem dominados foram assimilados à natureza começando por

considerá-los selvagens que significa, rigorosamente, os que são da selva, logo,

aqueles que devem ser dominados pela cultura, pelo homem (europeu, burguês,

branco e masculino). Vê-se, logo, que a invenção do europeu civilizado é, ao

mesmo tempo, a invenção do selvagem e, assim, a invenção da modernidade é

inseparável da invenção da colonialidade.

Deste modo, sistema-mundo moderno-colonial é uma forma de saber, pautado no

pensamento eurocêntrico marcado pela razão, sendo um modo de colocar-se hegemonicamente,

―[...] negando os múltiplos saberes locais e regionais construìdos a partir de múltiplas histórias

locais e regionais‖ (PORTO-GONÇALVES, 2002, p.218).

O pensamento eurocêntrico, constituìdo a partir do ―descobrimento‖, significou a

imposição da racionalidade européia sobre o ―novo mundo‖ em detrimento de outras

racionalidades e saberes. Assim, a conquista estabeleceu o seu modelo de colonização, que,

alicerçada sobre uma orientação religiosa, foi assim resumida por Francisco Lópes de Gómara,

um dos primeiros historiadores das ―novas terras‖: ―SEM COLONIZAÇÃO não há uma boa

conquista, e se a terra não é conquistada, as pessoas não serão convertidas‖ (apud ELLIOT,

1998, p. 136).

Partimos do pressuposto de que desde a conquista até hoje imperam as imposições do

sistema-mundo moderno-colonial que se coloca como possibilidade única de viver o mundo,

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apropriar-se dos espaços e construir a história. A conquista se reproduz na medida em que

continuamos a olhar/imaginar os outros a partir do ―nós‖, querendo cristianizá-los, dominá-los,

civilizá-los, e que em algum momento tornem-se também humanos ―iguais‖ aos seus

conquistadores, tornando-os diferentes do que são.

No ―tempo da conquista‖, os colonizadores, espanhóis e portugueses, trouxeram em sua

bagagem as concepções imaginárias e ideológicas de dominação dos homens e da natureza,

fazendo dos outros, indígenas, os estranhos - outsiders. Esta prerrogativa por nós assinalada

torna-se pertinente, tendo em vista que para Roberto Gambini (2002, p. 90):

De uma perspectiva histórica, é natural a existência de uma imagem negativa do

homem primitivo, porque o contraste assegurava ao civilizador a confirmação de

sua duvidosa superioridade. Os relatos de Colombo e dos viajantes do século

XVI eram, portanto, a validação ―empìrica‖ de um mito eterno, e nesse sentido a

catequese dos indígenas assume ares de uma repetição da Criação. Civilizá-los

seria o mesmo que moldar de novo a argila corrupta à imagem do autor. Os

jesuítas fincaram o pé no Novo Mundo com esse objetivo, e convencidos de que

a argila era má. Nada está em discussão. Os índios já eram conhecidos muito

antes de serem encontrados, porque a imagem por meio da qual seriam

percebidos sempre existiu na psique do homem civilizado, aguardando apenas o

momento certo para ser projetada – o que se deu com a velocidade de uma

flecha.

Partindo da premissa de que as sociedades imaginam e inventam os outros, no âmbito de

que essas representações de imagem ou revelação não são dela própria, mas sim a figura e

aparência que muitas vezes mascara a realidade, pode-se dizer que inventa-se o outro para

legitimar a superioridade de um modo de fazer-se humanamente. Corroborando, neste sentido,

João Pacheco de Oliveira (1999, p. 196-197) considera que:

No plano das estratégias, o primeiro registro que se deve fazer é que a

representação mais comum sobre o índio sempre o si-tua como algo referido ao

passado, seja aos primórdios da humanidade, seja aos primeiros capítulos da

História do Brasil [...]. A impressão corriqueira das pessoas (hoje, como também

no passado) é de que o índio – como se fala dele e o concebe o discurso erudito

ou o senso comum – já acabou há muito.

Os olhares pejorativos sobre o outro, na/pela hegemonia da razão, os colocando no plano

do passado é, muitas vezes, uma forma de justificar os modos em que os territórios

tradicionalmente ocupados pelos indígenas têm sido espoliados por novas formas de ocupação

territorial, confrontando-se, assim, com suas organizações socioterritoriais em que as bases de

organicidade não se dão nos imbricamentos do sistema-mundo moderno-colonial. Para nos ajudar

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a entender esta problemática, Bartolomé Clavero (apud Lander, 2005, p. 27) adverte o seguinte:

―[...] a negação do direito do colonizado começa pela afirmação do direito do colonizador; é a

negação de um direito coletivo por um direito individual‖. A negação do direito do colonizado é

parte da negação de outros modos de viver e de apropriar-se das riquezas naturais, havendo a

necessidade de considerar outras possibilidades que fogem desta lógica ocidental.

Nesta perspectiva, concordando com Doreen Massey (2008), acreditamos que existe

uma multiplicidade de histórias-trajetórias se fazendo, por isso o papel da geografia é entender

estas relações no espaço-tempo, a fim de considerar que o espaço torna-se extremamente

importante para o entendimento da sociedade em sua multidimensionalidade do vivido. Assim

como a ausência da perspectiva da temporalidade, enquanto parte integrante do ―olhar

geográfico‖ sobre as relações que os homens estabelecem com os lugares em que

ocupam/participam e/ou transitam, torna a interpretação incompleta, impossibilitando o melhor

entendimento de compreensão de territórios e territorialidades que estão se desfazendo e se

refazendo. Por sua vez, sem o espaço, o território-lugar de suas relações, interpretar o tempo que

marca as espacialidades das gentes, também não é possível.

O próprio entendimento de tempo só será possível se compreendermos as dinâmicas

espaciais nas diversas formas em que as gentes atuam sobre a sociedade. Havendo a necessidade

de considerar a partir de Douglas Santos (2002, p.29) que:

Espaço e tempo, da forma como hoje os concebemos, são a sistematização

simbólica criada pelas e através das transformação advindas do desenvolvimento

da sociedade burguesa [...]. Produto e condição do processo, o que pensamos ser

espaço e tempo são, na verdade, a ferramenta que possuímos para sistematizar a

nossa relação com o mundo da maneira como hoje ele se nos apresenta [...].

Contudo, ao dizermos que o ser é indissociável do estar dos espaços ocupados pelas

gentes, nas diversas e distintas possibilidades que podem fazê-lo, Carlos Walter Porto Gonçalves

(2002, p. 228) assinala que a própria ciência geográfica se constituiu nos delineares de que ―[...]

se alguém falasse em espaço, é porque era contra o tempo. É porque ‗negava a história‘ [...]‖. Ou,

ao falar de tempo, negava o espaço necessário para sua realização.

Nesta busca da unicidade espaço-temporal, Marcos Aurelio Saquet (2009) também

demonstra a necessidade de pensar o espaço-tempo nos delineamentos de que pensar em espaço é

também considerar a relação espaço-temporal de sua constituição. E pensar em tempo é

considerar o espaço geográfico da atuação social.

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Doreen Massey (2008) compreende o espaço a partir de inter-relações que estão em

processo contínuo de fazer-se, nunca estando acabadas. Ainda o espaço é uma multiplicidade de

estórias-trajetórias, demonstrando, como já salientado, que o espaço é uma simultaneidade de

estórias-até-agora. E ainda que, ―[...] Sem espaço, não há multiplicidade; sem multiplicidade,

não há espaço. Se espaço é, sem dúvida, o produto de inter-relações, então deve ser baseado na

existência da pluralidade. A Multiplicidade e espaço são co-constitutivos‖ (MASSEY, 2008, p.

29).

A partir destas concepções de espaço e tempo – espaço-tempo, podemos considerar que

as representações do espaço no período colonial são concebidas diversamente entre

―descobridores‖ e ―descobertos‖, assim como são hoje entre indígenas e não-indígenas

(deixando-se intocadas as multiplicidades indígenas e não-indígenas). Ao demonstrar as

representações de Montezuma e Fernão Córtes, entre Astecas e espanhóis, Doreen Massey (2008,

p. 22-23) faz pertinentes considerações sobre este desencontro:

O modo em que, hoje em dia, frequentemente, contamos essa história, ou

qualquer um dos relatos de ―viagens de descoberta‖, é em termos de cruzamento

e conquista do espaço. Cortés viajou através do espaço e encontrou Tenochtitlán

[hoje a Ciudad de México] e tomou-a. ―Espaço‖, nesse modo de falar, é uma

grande extensão através da qual viajamos. Isso, talvez, pareça óbvio.

Mas o modo como imaginamos o espaço tem seus efeitos – como teve, para

Montezuma e para Cortés, de formas diferentes para cada um. Conceber o

espaço como nas viagens de descoberta, como algo a ser atravessado e, talvez,

conquistado, tem implicações específicas.

Está implícito que se considere o espaço como solo e mar, como a terra que se

estende ao nosso redor. Implicitamente, também, faz o espaço parecer uma

superfície, contínuo e tudo como algo dado. Ele faz diferença: Fernão, ativo, um

construtor de história, viaja sobre sua superfície e encontra, sobre ela,

Tenochtitlán. É uma cosmologia impensável, para usar o termo mais brando,

mas leva consigo efeitos sociais e políticos. Portanto, esse modo de conceber o

espaço pode assim, facilmente, nos levar a conceber outros lugares, povos,

culturas, simplesmente como um fenômeno ―sobre‖ essa superfìcie. Não é uma

manobra inocente; desta forma, eles ficam desprovidos de história. Imobilizados,

esperam a chegada de Cortés (ou a nossa, ou a do capital global). Lá estão eles,

no espaço, no lugar, sem suas próprias trajetórias. Tal espaço torna mais difícil

ver, em nossa imaginação, as histórias que os astecas também estavam vivendo e

produzindo. O que poderia significar reorientar essa imaginação, questionar esse

hábito de pensar o espaço como superfície? Se, em vez disso, concebêssemos

um encontro de histórias, o que aconteceria às nossas imaginações implícitas de

tempo e espaço?

Nesta perspectiva, tentamos demonstrar os contatos entre a Europa e a América

indígena, considerando que a América, em si, é criação do imaginário ocidental europeu. E que

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não há somente uma história possível sobre o encontro entre sociedades indígenas e europeias,

mas uma multiplicidade de histórias e de trajetórias que estavam se fazendo e que foram

desconsideradas. Por isso, Doreen Massey (2008) aponta para a possibilidade de compreensão de

outras formas de fazer-se humanamente, e que estas não se fizeram e não se fazem

necessariamente a partir da história universal nos pressupostos eurocêntricos. Mas sim, é uma das

histórias e uma das verdades, parte do imaginário socialmente construído e inventado pelo

pensamento do sistema-mundo moderno-colonial.

A denominação ìndio, para as gentes nativas do ―novo mundo‖, é uma invenção

etnocêntrica. Cristovão Colombo e seus tripulantes, denotaram esse nome às gentes-nativas da

terra que encontraram, acreditando ser ela, as Índias. João Pacheco de Oliveira Filho (1999,

p.07), demonstra que esta é uma ―[...] categoria estética – o ‗ìndio‘ – evidente e auto-explicativa,

inteiramente infensa à história: expressão completa da simplicidade, do passado e da

primitividade. É essa categoria ‗plena, redonda e lisa‘, saturada de culpas e seduções, que o senso

comum repete e consagra incessantemente‖.

É neste contexto, no modo com que enxergamos a denominação índios ou indígenas, é

que esta se faz como parte da história dominante de ―descobrimento‖ da América, e que no

entorno dessa denominação. Gersem José dos Santos Luciano32 (2006, p.30) considera que ―[...]

não existe nenhum povo, tribo ou clã com a denominação de ìndio. Na verdade, cada ‗ìndio‘

pertence a um povo, a uma etnia identificada por uma denominação própria, ou seja, a

autodenominação, como o Guarani, o Yanomami etc. [...]‖.

Entretanto, é notório que esta categoria estética, como demonstrou João Pacheco de

Oliveira Filho (1999), é hoje usada como estratégia de resistência política, de garantias de

direitos que une as mais diversas sociedades indígenas no Brasil. Sendo, também, a fronteira

étnica que ―separa‖ e garante o reconhecimento das sociedades indìgenas, logo, aos seus

diferentes modos de viver, diferindo dos não índios. Inclusive, ao buscarem garantias de direitos

diferenciados, ao modo que buscam garantias de direitos territoriais sobre os territórios

tradicionalmente ocupadas pelos seus ancestrais.

Dessa forma, é importante ressaltar que a denominação índio ou indígena, que existe

desde ―descobrimento‖ aos dias de hoje, começa, principalmente a partir da década de 1970, a ser

resignificado.

32

Indígena Baniwá. Primeiro índio Mestre em Antropologia Social no Brasil.

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Com o surgimento do movimento indígena organizado a partir da década de

1970, os povos indígenas do Brasil chegaram à conclusão de que era importante

manter, aceitar e promover a denominação genérica de índio ou indígena, como

uma identidade que une, articula, visibiliza e fortalece todos os povos originários

do atual território brasileiro e, principalmente, para demarcar a fronteira étnica e

identitária entre eles, enquanto habitantes nativos e originários dessas terras, e

aqueles com procedência de outros continentes, como os europeus, os africanos

e os asiáticos. A partir disso, o sentido pejorativo de índio foi sendo mudado

para outro positivo de identidade multiétnica de todos os povos nativos do

continente. De pejorativo passou a uma marca identitária capaz de unir povos

historicamente distintos e rivais na luta por direitos e interesses comuns. É neste

sentido que hoje todos os índios se tratam como parentes (LUCIANO, 2006, p.

30-31).

O que estamos querendo dizer é que as denominações pejorativas, reconfiguradas pelos

europeus desde o tempo da conquista, tinham em seu cerne retirar as representações do modo de

vida das gentes nativas, por sua vez, dando-lhes novas resignificações, principalmente de cunho

depreciativo. Contudo, este mesmo movimento impositor de reconhecimento de si e do outro,

estão sendo recriado e representado como estratégias políticas destas sociedades, vão sendo

resignificadas, como a própria denominação índio ou indígena. Hoje esta é uma nomeação que

difere índios e não índios, inclusive sendo também uma categoria jurídica, para garantir direitos

específicos para as sociedades indígenas.

Apesar de tudo isso, há necessidade de não desconsiderar que no ―descobrimento‖, as

―formas‖ de representar a natureza: os rios, córregos, florestas, montanhas, morros, entre outros,

foram modificados pelos europeus. Estas, por sua vez, foram estrategicamente alteradas nos

delineamentos da imposição de uma história única da conquista, marcada pelas histórias de

espanhóis, portugueses, jesuítas, bandeirantes entre outros.

Nomeando os lugares, novas significações espaciais foram impostas. A partir de

Graciela Cândida Chamorro (2009a, p.69-70) podemos dizer que:

Los cronistas de la conquista y de la colonia denominaban a los grupos

indígenas que iban contactando según su autodenominación local. Constan como

tal, al comienzo de la conquista, nombres de ríos y/o de caciques como: Cario,

Carijó, Tobatín, Guarambaré, Itatín, Parayguá, Uruguayguá, Tape, Guayrá,

Arechané, Caaró, Tarumá, Chiriguano y Chadul o Guaraní de las islas. En otros

casos, los pueblos indígenas se designaban a sí mismos, o se los designaba

añadiendo a un sustantivo, relativo a la geografía del lugar, el sufijo -guára, de

controvertida interpretación, que significa ‗procedente de‘. Asì, yvyty riguára

eran ‗quienes moraban en la sierra‘ (B II, 192), ko yguára ‗quienes vivìan en las

inmediaciones de un determinado rìo‘ (T, 163), yry kuapeguára ‗quienes

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ocupaban la cabecera de un rìo‘ (T, 164) y paraguaygua ‗quienes vivìan a la

orilla del rìo Paraguay o en Asunción‘ (T, 263). Por otro lado, a medida en que

esos cronistas fueron realizando comparaciones, llegaron a designar a los grupos

y a las lenguas habladas por ellos con términos más genéricos, según su

importancia en la región [...].

No que diz respeito aos contatos entre indígenas e não indígenas no tempo da conquista,

é que estas denominações, tais como Carios, Carijós, Itatins, Parayguás, entre outros, eram

referentes à organização socioterritorial destes grupos. Desta forma, consideramos que as

especificidades de cada um deles tinham como base as geografias dos lugares, possibilitando

―nomear‖ as gentes que ali viviam. Estas denominações eram, também, integrantes das gentes de

prestígios do lugar, aqueles que eram, pode-se dizer, lideranças, sejam elas, políticas e/ou

religiosas, sendo que a primeira aparecia com maior respaldo.

1.3.1- Inventando o “novo mundo” e os outros

O olhar da Europa sobre a América como um ―novo mundo‖ deu-se na necessidade de

que o mesmo deveria ser conquistado, logo, deveria também ser nomeado. Consideravam as

gentes desse ―novo mundo‖ desprovidas de racionalidade, cristandade... Por isso, estas gentes

eram para os Europeus, movidos pela paganidade, barbárie e selvageria. O ―outro‖ que encontra

não é humano, seu modo de vida por diferir dos conquistadores, justifica por si só a colonização,

logo, a cristianização, tendo em vista que são a partir dos fundamentos do cristianismo que as

gentes indígenas poderiam ser, ou não, consideradas humanas. Pode-se ainda dizer que parte

destes acontecimentos se fez com o intuito de dar-lhes ―vida humana‖ nas bases da cristandade,

como fizeram os jesuítas. Pois, neste contexto, ser humano é ser cristão, como considerou o padre

Bartolomeu de Las Casas (GAMBINI, 2002). Mas, para muitos, e com maior veracidade aos

olhos dos europeus, se faziam na corrida para o ―descobrimento‖ de metais preciosos, que por si

só já justificava a aniquilação de diversas sociedades indígenas.

Klass Woortmann (2004, p. 23) assinala que tais configurações espaciais no

―descobrimento‖ da América foram parte fundante das mudanças na própria Europa, tendo em

vista que:

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As viagens portuguesas [e espanholas] foram expedições contra o imaginário

medieval. De certa forma, exorcizaram-no. No entanto, mais que descobrir um

―novo mundo‖, aperfeiçoaram o conhecimento do mundo antigo, composta por

Europa, Ásia, África em torno do Mediterrâneo, dando realidade aos lugares

antes fantasiados.

Foram as navegações para o oeste que revolucionaram a imaginação do mundo

terreno, destruindo o imaginário relativo ao Mar Oceano e levando ao plural a

ideia de continente. Contudo, Colombo chegou à América - ou à parte do mundo

que seria depois percebida como um novo continente - movido não apenas por

conhecimento cientifico novo, relativo à arte da navegação aprendida em

Portugal, mas também por um ideário medieval. [...]. Contudo, os novos

descobrimentos conduziram ao início de um lento, mas paulatino,

desaparecimento do maravilhoso, isto é, a um ―desencantamento do mundo‖.

O ―descobrimento‖ do que conhecemos hoje por América, denominação colonial, foi

―objeto‖ do contexto de expulsão do imaginário teleológico da Europa, expulsando seus

demônios para o ―novo mundo‖. Miguel Rojas Mix (1991) assinala que novos nomes foram

impostos ao ―novo mundo‖ buscando esconder o caráter diabólico nomeado pelos nativos.

Mudanças das representações se deram na contextualização de uma Europa e seus conflitos

internos, que demonstram as tensões dentro de um continente que buscava encontrar fora dele

uma homogeneidade nos preceitos do pensamento cristão, demonizando tudo que fosse diferente.

Nesta perspectiva, Miguel Rojas Mix (1991), referente à invenção da América, assinala

que o ―velho mundo‖, buscou ―[...] transformar las poblaciones autóctones en extranjeros, a

convertir a lós hombres en estraños en su propio mundo [...]‖. (p.33). O ―descobrimento‖ do

―novo mundo‖ – a América - significou ―[...] un enorme transvasijamiento del imaginario

europeo en las nuevas tierras descubiertas. Los mitos, las leyendas, el mundo teratológico, las

quimeras, todo va a adquirir carta de ciudadanìa en América‖ (MIX, 1993, p. 125).

A ideia de América é parte das transformações ocorridas no seio da sociedade europeia,

que não é um todo homogêneo33

, podendo-se dizer que há diversas Europas existentes na Europa.

Contudo, de maneira geral, Walter D. Mignolo (2008) afirma que a história da Europa diverge da

história das sociedades nativas. Assim como diverge das histórias dos negros africanos retirados

do seu contexto social.

33

Pensando nas reflexões construídas a partir de Carlos Walter Porto Gonçalves (2002) e Stuart Hall (2004),

podemos dizer que a Europa, assim como outros espaços, compõe uma formação socioespacial heterogênea e

multidimensional engendrada de maneira contraditória e conflituosa por distintas classes sociais (capitalistas,

operários, camponeses, sem terra, proprietários de terra), raças, etnias, gênero, gerações, religiões etc. Também, é

importante exemplificar o caso da Espanha, onde a formação do Estado Nacional não conseguiu substituir as

diferentes identidades étnicas presentes nesse território, e que até hoje lutam por uma autonomia territorial, como: os

Bascos, Galegos e Catalães, tendo inclusive uma língua própria.

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O que estamos querendo dizer é que a ―ferida‖ da colonização é sentida/vivida de

diferentes formas. Divergem tanto daqueles que tiveram que sair de seu mundo (seja ele europeu,

africano e americano), quanto para aqueles que ficaram. Estas trajetórias se encontram no

contexto do século XVI, com o ―espírito do capitalismo‖ nascente, introduzido juntamente com a

abertura da economia do Atlântico, tendo em vista que a ideia de América [...] no es solo la

referencia a un lugar, funciona, sobre todo, a partir del poder e previegio de enunciación que

permiten convertir una idea inventada en realidad‖ (MIGNOLO, 2007, p.171). Portanto,

[....] América, no eligió para si ese nombre, que vuelve invisibles las relaciones

de poder que quedan detrás de su nomenclatura. Aquí entra en acción la

colonialidade del conocimiento, que se apropia del significado, tal como la

colonialidade del poder se apropia de la autoridad y de la tierra y explota la

mano de obra (MIGNOLO, 2007, p. 172).

Castor M. M. Bartolomé Ruiz (2003, p. 48) considera que ―o ser humano, antes de

pensar logicamente as coisas, imagina-as [...]‖. É neste contexto que surge os ìndios, o ―novo

mundo‖ – a América. O ser humano tem uma potencialidade de fantasiar a realidade e, também,

de impregnar de sentidos, ação/vontade e de sensações, deixando que o mundo deixe de ser para

ele uma mera apresentação (consciência animal), mas transforme-se em uma representação. A

história que temos hoje desenvolveu-se no imaginário social, como já demonstrado, culminando

em desencontros das gentes/humanos. Segundo Sandra Jatahy Pesavento (1995, p. 23), isto só foi

possìvel porque ―[...] o imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva,

normatizando condutas e pautando perfis adequados ao sistema‖.

Para Edgardo Lander (2005, p. 26):

A conquista ibérica do continente americano é o momento inaugural dos dois

processos que articuladamente conformam a história posterior: a modernidade e

a organização colonial do mundo. Com o início do colonialismo na América

inicia-se não apenas a organização colonial do mundo, mas - simultaneamente -

a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória (Mignolo, 1995)

e do imaginário (Quijano, 1992).

É neste contexto que o sistema-mundo moderno-colonial tem em seu cerne o antigo

(colonial) e o moderno. Ele mesmo é um sistema de relações hierárquicas de poder, onde a

história contada já está pré-determinada, é a história dos colonizadores frente aos colonizados. No

sentido de que toda a modernidade se dá na herança da colonização, tendo em vista que o

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―descobrimento‖ de outras gentes fora da Europa, talvez tivesse sido, ou mesmo foi, o momento

inaugural do que hoje se entende por globalização como um todo homogêneo.

O mundo, tornando-se ou não global, ou sendo ou não global, se dá no jogo do moderno

e do colonial – moderno-colonial, que produz a ideia de globalização. Exemplificada,

notadamente, pelo poder da técnica, pela velocidade de ações e reações que envolve ou mesmo

desenvolve o mundo todo. É como salienta Milton Santos (2006, p. 18) ―[...] um mundo fìsico

fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e

confusamente percebido‖, fazendo do mundo que temos, um mundo cada vez mais desigual, não

só pela classe social que se ocupa na sociedade, mas também pela condição de quem somos nós

na sociedade.

É neste enredo desigual de ver a si e os outros, que Norbert Elias (1994, p.73) assinala o

papel do Processo Civilizador, pode-se dizer também, de Processos civilizadores, alencando que

estes ―[...] não se constituem em uma antìtese do tipo existente entre o ―bem‖ e o ―mal‖, mas

representam, sim, fases em um desenvolvimento que, além do mais, ainda continua‖. Portanto, a

construção histórica dominante sobre o outro indìgena, sobre o outro ―branco‖, tem origem no

passado, mas só ele não explica os olhares que se cruzam e se chocam entre eles, pois o que está

em jogo é o medo do outro no presente. Cabendo destacar ainda, que o que é reproduzido é parte

do discurso competente, o Processo Civilizador ocidental-branco-cristão-racional que está em

movimento difundindo confusões do/no conviver das gentes.

As diversas formas em que os civilizadores do passado criaram imaginários sociais

sobre os outros indígenas, os indígenas do passado e do presente (do futuro) também os criam-

imaginam. Entretanto, as correlações de forças eram e são desiguais. A conquista territorial, a

marcha da dominação dos homens sobre a natureza e dos homens entre si, a racionalidade

ocidental, construindo-se e construindo o outro como parte da/na sociedade moderno-colonial. É

nestas bases que irá caber aos ―civilizadores‖, civilizar as sociedades indígenas tornando-as úteis,

amansando-as34

/domesticando-as.

O Processo Civilizador moderno-colonial correlaciona-se, nas palavras de Ademir

Gebara (2009, p. 30), com o fato de que ―[...] no caso brasileiro, a violência e/ou a tolerância

34

Darcy Ribeiro (1996, p. 204) demonstra que ―[...] o método de aproximação de tribos hostis adotado pelo SPI,

conquanto arriscado para os servidores que a empreenderam, teve sua eficácia comprovada cada vez que foi posto

em execução com os necessários cuidados. A melhor indicação de seu acerto é, talvez, o fato de ter levado diversas

tribos à convicção de que elas é que estavam ―amansando‖ os ―brancos‖ [...]‖.

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foram racionalmente utilizadas, quer para dominar os índios, quer para conquistar o território,

mas especificamente à fronteira agrária em expansão‖.

Na civilização que é construìda no bojo hegemônico de ―quem manda e de quem

obedece‖, os primeiros ditam padrões de comportamentos que são construções sociais no espaço-

tempo, logo, não estão ―perdidos‖ no mundo, estão se fazendo enquanto uma construção social,

um processo inacabado, um contínuo vir a ser (ELIAS, 1994).

Dessa maneira, tais correlações de poder, a partir da análise de Bronislaw Kasper

Malinowski (apud Klass Woortmann, 2004, p. 05) nos permite dizer que:

O chamado ―selvagem‖ foi sempre um brinquedo para o homem civilizado...

fonte de emoções fortes na teoria. O selvagem foi sempre chamado pra dar foros

de autenticidade a essa ou àquela hipótese a priori, tornando-se, conforme o

caso, cruel ou nobre, lascivo ou casto, canibalesco ou humanitário – em suma, o

que melhor conviesse ao observador ou a teoria.

Por isso, os indígenas são considerados como incivis, selvagens e bárbaros. Mas, toda

essa denominação pejorativa são invenções (reinvenções), pois a ―[...] América [mas não só ela]

foi a nova oportunidade para retrabalhar o selvagem, sempre tão necessário para o imaginário

europeu sobre si mesmo e agora necessário para dar conta de novos dilemas‖ (WOORTMANN,

2004, p.73).

O outro é, assim, a oposição da diferença e não da igualdade, sendo uma construção

social histórica no espaço-tempo. As percepções sobre os outros, todos aqueles diferentes de

―nós‖ ou o que imaginamos diferir, é elucidada por Roberto Gambini (2002, p. 30), ao

demonstrar que ―[...] todos nós criamos uma série de relacionamentos imaginários porque sempre

presumimos que o mundo é tal como o vemos e os outros, tais como os imaginamos [...]‖.

As negociações das gentes, travadas no espaço-tempo, também se fazem imaginando-

criando os outros, opostos a si. No âmbito do inconsciente, comparando o outro diferente de

―nós‖, sempre há distanciamentos de considerá-lo humano, ou, humanamente como a si próprio.

Sendo difícil compreender que o outro não é aquele que está lá, parado/estático, mas também,

está em nós, e fazemos deles, nós mesmos.

Estas considerações são importantes, porque Frantz Fanon (1975) traz grandes

contribuições sobre as diversas formas em que imaginamos o outro, analisando-o a partir do

Negro. O negro, no enredo das representações imaginárias sociais de si e dos outros, por vezes,

vê seu mundo a partir do outro, o ―branco‖, passando a querer ser ele mesmo branco, agindo,

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vivendo e sonhando alheiamente ao negro. O negro é o ―exótico‖, representando o perigo

biológico da natureza (é o descontrolado - animais/selvagens, em contraposição ao autocontrole,

a cultura e a civilidade – referente ao ―branco‖). Em suas palavras, todas essas formas de

enxergar o negro, se dão implicitamente porque ―Para onde quer que vá, um preto permanece um

preto‖ (FANON, 1975, p. 202).

O negro e o indígena são sempre imaginados, pode-se dizer, como estando fora de si

mesmo, sendo tudo, menos eles mesmos. A sociedade, ao olhá-los, distanciando-se de si mesma,

cria representações imaginárias pejorativas sobre eles. O emblema de estar e ser indígena, no ir e

vir das ações cotidianas possibilita a recriação das representações imaginárias

preconceituosas/racistas que definem seu lugar no mundo, os espaços por eles ocupados, sejam

de trabalho, de lazer, entre outros.

Podemos dizer que o negro e o indìgena, sendo o ―exótico‖, o ―sujo‖, a representação do

―mal‖, é sempre a oposição da sociedade ocidental, que os ―enxergam de cima para baixo‖,

buscando, através da afirmação de sua civilidade e racionalidade, representar os seus outros

como incivilizados e irracionais, negando e inferiorizando outras formas de viver.

A negação do outro como humano pode ser constituído em diversas escalas espaços-

temporais a partir de quando inventamos o outro. Podendo ocorrer desde a escala do global,

como ao construir um imaginário sobre o ―oriente‖ a partir do ―ocidente‖. Mas, pode ocorrer o

mesmo processo a partir de relações em micro-escala, na escala do lugar, quando inferiorizamos

as gentes que convivemos nos mesmos espaços-tempos. Por isso, é passível de fazermos uma

investigação científica a partir de um estudo de caso local, mesmo sabendo de suas limitações

resultantes do recorte de análise. Para Norbert Elias e John L. Scotson (2000, p.20):

Estudar os processos de uma figuração universal no âmbito de uma pequena

comunidade impõe à investigação algumas limitações óbvias. Mas também tem

suas vantagens. O uso de uma pequena unidade social como foco da

investigação de problemas igualmente encontráveis numa grande variedade de

unidades sociais, maiores e mais diferenciadas, possibilita a exploração desses

problemas com uma minúcia considerável – microscopicamente, por assim

dizer.

Para o entendimento da multiplicidade de formas em que fazemos e imaginamos o outro

no espaço-tempo estamos utilizando as contribuições das discussões de Norbert Elias e John L.

Scotson (2000) ao demonstrarem os distintos modos que as gentes podem se afirmar negando os

outros, a partir de um estudo de caso de uma pequena vila urbana de proletários, chamada de

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Winston Parva (Inglaterra)35. Os autores demonstram como estas manifestações de negação do

outro se fazem, neste caso, a partir de relações entre antigos e novos moradores do bairro,

sinalizando como formações socioterritoriais antigas de vizinhança sobrepõem-se aos novos

modos de organização socioterritorial, fazendo dos recém-chegados, seus estranhos – Outsiders,

ao mesmo tempo em que os antigos moradores impõem-se como os estabelecidos.

Neste contexto, podemos dizer que existe um conflito nesse território-bairro entre os

estabelecidos e os outsiders, e que os mesmos ocorrem determinados por relações de poder

possibilitando a criação de identidades socioterritoriais. Mas, essas identidades são afirmadas e

negadas para além do conflito de classes sociais e de identidade étnica, ou seja, não tem como

elemento principal do conflito o poder econômico ou a discriminação racial, já que no caso de

Winston Parva, não havia grandes diferenciações de cunho econômico ou étnico entre os

moradores, pois, os mesmos pertenciam à classe de trabalhadores assalariados e eram brancos.

Neste caso ―[...] há outras formas de disputa em jogo além da relação entre salários e lucros‖

(ELIAS; SCOTSON, 2000, p.33), considerando ainda que ―a complementaridade entre o carisma

grupal (do próprio grupo) e a desonra grupal (dos outros) é um dos aspectos mais significativos

do tipo de relação estabelecidos-outsiders‖ (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.25)

Dessa maneira, a negação do outro e sua afirmação como inferior, não está somente

ligada aos padrões econômicos da sociedade, no caráter das diferenciações de pele... Mas se faz

também na/pela necessidade de estabelecimento do status quo, que no caso de Winston Parva,

esta relação se dá nos conflitos entre os ―novos‖ (os que chegam) e os ―velhos‖ (os que já

estavam lá) habitantes da comunidade, demonstrando ainda, que:

[...] os membros do grupo estabelecido e até os recém-chegados, talvez, são

indivíduos criados com uma rigidez particular de visão e de conduta; muitas

vezes, foram criados acreditando que todo o mundo tem ou deveria ter,

essencialmente, os mesmo sentimentos e comportamentos que eles (ELIAS;

SCOTSON, 2000, p. 175).

No caso específico de Winston Parva, o outsider é o recém chegado, é aquele que coloca

em risco os modos de organização socioterritorial já estabelecida. Pode-se dizer que inferiorizar e

negar o outro é parte de um conjunto de estratégias criadas e imaginadas que visam impor ao

outro sua condição como outro, no caso específico demonstrado por Norbert Elias e John L.

Scotson (2000, p. 35), é ―a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e

35

O nome do bairro é fictício. A pesquisa foi realizada no final dos anos de 1950.

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outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo

estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a aversão – o preconceito – que seus

membros sentem perante os que compõem o grupo outsider.

Estigmatizar o outro é parte integrante da construção e invenção das representações

construídas sobre eles, permeadas de fantasias que foram criadas nos imbricamentos da diferença,

podendo ser estabelecida de múltiplas maneiras, como é o caso de Winston Parva envolvendo

disputas entre velhos e novos moradores. Mas, também, é necessário ressaltar, para além de um

estudo de caso de recorte territorial local, que as disputas se dão no sistema-mundo moderno-

colonial entre as classes sociais, nas diferenças de gênero, de orientação sexual, de geração e,

podemos considerar, também, pelas diferenças nos aspectos físico-biológicos (fenótipo e

genótipo) que envolvem a construção do outro.

Para compreender esta relação retomamos as contribuições de Frantz Fanon acerca das

afirmações dos aspectos negativos do negro, atribuìdo pelo mundo ―branco‖, como uma condição

de confirmar a sua inferioridade (e, como já foi dito, quando não é a cor da pele, outros elementos

podem ser inventados para a criação do outro). Para Frantz Fanon (2008, p. 46) esta relação pode

ser entendida da seguinte forma: ―No caso do negro, nada é parecido. Ele não tem cultura, não

tem civilização, nem um longo passado histórico. Provavelmente, aqui está a origem dos esforços

dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de uma

civilização negra‖.

Esta relação, referente a estigmatização do outro pela cor da pele, pode ser entendida a

partir do Kaiowa Maciel da RID (Jaguapirú), com aproximadamente vinte e cinco anos de idade,

ao dizer que: ―eles olham pra gente e já sabe, é índio‖. Esta expressão trás a pré-concepção dos

―olhares‖ do outro sobre si mesmo, muitas vezes permeados de pré-conceitos, que coloca-o em

uma condição de vergonha frente aos outros, muitas vezes impossibilitando maiores relações com

os outros por ser indígena.

Os indígenas estão de distintas formas se relacionando com os não indígenas no

município de Dourados, nestes desencontros, muitas vezes os não indígenas os relacionam com a

preguiça, a bebedeira, a possibilidade de serem ladrões, os ―comedores de gente‖, os mal

educados, os invasores de terras entre tantas outras características pejorativas36. Por isso,

36

Estas características são comuns aos olhos das gentes douradenses. Este olhar aqui expresso foi parte de diálogos

que estabelecemos com mulheres e homens da cidade de Dourados, principalmente com os comerciantes que tem um

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entendemos que há um conflito entre os modos distintos de fazer-se gente e, ainda, do que os não

indígenas imaginam serem os indígenas, ao mesmo modo em que os indígenas possam imaginar

serem os brancos.

Neste contexto, esta relação é parte dos ―jogos‖ de identidades socialmente construìdas,

em que os indígenas estão inseridos ao pensarem a si mesmo e os outros não indígenas, podendo

perceber as relações que envolve o ―outro-eu‖ e/ou outro-nós, e muitas vezes surgem como um

dado a priori e/ou uma fatalidade, não como parte de um imaginário socialmente construído.

A construção do outro pode ser demonstrado a partir de Frantz Fanon (1975) ao dizer

que alguns julgamentos sobre os outros pode ser parte de alguns desejos e vontades projetadas

sobre/no outro. Exemplificando, assim, a estigmatização sobre o negro em torno de uma imagem

atrelada a animalidade e irracionalidade, principalmente no que concerne ao não controle dos

extintos do corpo, referenciando ao desejo sexual, existindo a necessidade de inferiorizar o outro

na medida em que, aquele que inferioriza, nega suas vontades e seus próprios instintos,

projetando seus desejos nos outros. Negando vontades, neste caso, juntamente com outras formas

de relacionar-se com o corpo, inferioriza o outro, a partir dos pressupostos da animalidade, assim

como da irracionalidade, já que partem da indagação de assimilá-los aos animais.

Nesta perspectiva, Frantz Fanon (1975, p. 204), no caso das relações envolvendo os

negros e os brancos, considera que ―[...] é porque o Branco se sente frustrado pelo Negro, que o

vai também frustrar, encerrando-o em proibições de toda a espécie. E, ainda ai, o Branco é a

vítima do seu inconsciente [...]37‖.

Nossos desejos inconscientemente reprimidos viabilizam a invenção do outro. Não

podemos ser ―iguais‖ ao outro na diferença, pois o outro é assimilado à animalidade, não tem

controle sobre seu corpo, sobre seus instintos. Enquanto, os ―brancos‖, diferentes dos negros,

pode-se dizer também dos índios, possuem autocontrole, e não podem deixar que seus desejos

tomem conta de seu corpo, de seus territórios íntimos. Estes territórios individuais são a primeira

escala espacial, na qual, nos comunicamos com o mundo.

convívio expressivo com os indígenas que transitam pelo centro e outros espaços da cidade. Vamos tratar desse

assunto mais especificamente no quarto capítulo. 37

Frantz Fanon (2008, p. 34), para além do debate étnico-racial, discute, também, acerca do conflito criado entre

colonizador e colonizado, afirmando que: ―Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um

complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição diante da linguagem

da nação civilizadora‖.

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O corpo se funde espacialmente à sociedade. Os lugares são ocupados pelas gentes a

partir de seu corpo. Como elucida Graciela Cândida Chamorro (2009, p. 34) o corpo é onde

―pasan todas las experiências humanas, lós logros e desejos frustrados, las adaptaciones y

resistências, y las instituciones sociales que molden el comportamiento humano [...]‖.

Desse modo, podemos dizer que as características culturais dominantes impostas pela

sociedade moderna-colonial em torno do corpo, logo, dos gestos e jeitos diversos de se vestir,

andar, falar, comer, entre outras, a fim de legitimar o status quo dominante, contrapostas com

aquelas não dominantes, podem propiciar que os mesmos sejam imaginados como selvagens,

bárbaros, irracionais, incivilizados...

Aqui, há necessidade de considerarmos, que os indígenas de hoje em suas diversas

formas de sê-lo, no olhar do ocidente, é aquele mesmo ―ìndio‖ do passado, e que lá deveria estar.

Demonstrando que a história se movimenta em tempos modernos ou pós-modernos, contudo, os

imaginários são recriados, são sobrepostos, já que as gentes indígenas continuam a reproduzir-se

como ciclo sem fim, de barbarismo aos olhos do sistema-mundo moderno-colonial, dizendo ser a

história dos ―vencidos‖.

Portanto, há necessidade de dizer que há sempre resistências ou re-existências, como

demonstrado por Carlos Walter Porto Gonçalves (2001, p. 130). Há outras formas de resistir

existindo e/ou existindo resistindo, pois os movimentos de re-existências não se fazem somente

para aqueles que ―[...] lutam para resistir contra os que matam e desmatam, mas por uma

determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção, por modos

diferenciados de sentir, agir e pensar‖. Possibilitando-nos sonhar que há outras possibilidades de

viver o mundo, reconhecendo os outros participantes dela como um todo heterogêneo de

encontros e desencontros. Nesta perspectiva, Doreen Massey (2008, p. 21), referindo-se ao

encontro dos espanhóis com os astecas, explicita e traz a esperança: ―os impérios não duram

para sempre‖.

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1.3.1.1 – A construção do outro e as sociedades indígenas falantes da língua guarani: os

Ñandeva, Kaiowa e Mbya

Existem múltiplos processos contínuos e descontínuos no espetáculo da vida, por isso

que encontrar o outro e entendê-lo é sempre complexo. Esta presunção deve ser também pensada

na relação de que ―compreender os outros é, certamente, não idealizá-los‖, como demonstra

Edgard Ferreira Neto (1997, p.324). Ainda considerando que o ―olhar‖ sobre o outro é apenas

uma forma de imaginá-lo, já que mesmo os de ―dentro‖, por vezes, não sabem como fazê-lo, pois

os de ―dentro‖ também se diferem entre si.

As sociedades indìgenas, denominadas como ―guaranis‖ por serem falantes desta

língua, embora com diferenciações dialetais, foram ―descobertas‖, e havendo entre elas relações

distintas com as riquezas naturais e dos homens entre si (MELIÀ, 1993), nos abrem um campo de

possibilidades que devemos considerar. Em determinados momentos, de acordo com

determinadas conjunturas sociais, estas sociedades estabeleceram relações e reações

diferenciadas com os conquistadores.

Muitas dessas relações permitiram interações sociais que culminaram, muitas vezes, em

distintos modos de identificar e denominar as sociedades indígenas. Considerando também, as

distintas formas em que os indígenas representaram e identificaram os não indígenas, os

colonizadores. O que concerne às sociedades indígenas muitas identificações de hoje são

criações e invenções moderno-coloniais. Sendo necessário compreender, como pontua Eni

Puccinelli Orlandi (1990), que, para os europeus, conhecer é saber dar nomes, de modo que dar

nomes é uma forma de identificação. Protásio Paulo Langer (2011, p. 04-06) considera que:

[...] os nomes dizem mais sobre quem os atribui do que sobre os seres nomeados

[...] A começar pelo nome que denomina toda uma família lingüística, guarani

tornou-se um termo usual a partir da expedição de Sebastian Caboto que, em

1526, explorava o estuário do Rio da Prata. Provavelmente o primeiro a grafar

uma das variantes desse nome foi Luís Ramíres que, em correspondência ao seu

pai, em 1528, em dois momentos se refere aos guarenís. [...] naquele ano os

espanhóis já tinham ricas informações sobre a abrangência dos territórios que

esses ocupavam [...]. Em poucos anos guarani tornou-se um filtro que em meio

à ―babel‖ étnica e lingüìstica do Paraguai quinhentista discriminava aqueles que

falavam um idioma e apresentavam sistemas sócio-econômicos e simbólicos

semelhantes. Nas palavras de Noelli, o termo passou a referir diversos grupos

que ―[...] tinham em comum a lìngua, a cultura material, as tecnologias, as

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formas de subsistência, os padrões de assentamento e adaptativos, a organização

sócio-política, a religião e os mitos. Entre eles havia, contudo, variações

dialetais, de adaptabilidade e de etnicidade‖.

Partimos do pressuposto considerado por Graciela Cândido Chamorro (2009, p. 39), de

que ―[...] ―guarani‖ es una especie de identidad atribuida‖ por otros a los grupos indìgenas que

hablaban y hablan idiomas semejantes y compartían o comparten una historia y una cultura

similares‖. Assim, há a necessidade de considerar que a identidade atribuída está em contínua

transformação, sofrendo modificações no espaço-tempo.

Neste contexto, as sociedades indígenas, denominadas popularmente e na literatura

etnográfica como ―sociedades que falam a lìngua guarani‖, referem-se ao que conhecemos hoje

por: Kaiowa, Mbya e Ñandeva (e/ou Guarani – auto-identificação em Mato Grosso do Sul)38.

Segundo a etnohistória, os primeiros contatos destas sociedades com os não indígenas se deram

logo no século XVI e XVII, de modo que Bartomeu Melià; Georg Grunberg e Frield Grunberg

(2008) consideram que as sociedades indígenas falantes do guarani são descendentes dos Itatins e

Caaguás (e/ou Monteses). Esta última denominação tinha relação direta com as características

físicas dos lugares e/ou territórios em que ocupavam. Como salienta Branislava Susnik (1965-

1966): ―en los montes inpenetrables‖.

Os Itatins eram vistos pelos colonizadores como aqueles que deveriam ser conquistados

ou reduzidos, de modo que apareciam com frequência como inimigos temidos e/ou aliados

importantes dos colonizadores (MELIÀ; GRUNBERG; GRUNBERG, 2008). Em linhas gerais,

são aqueles que não foram reduzidos pelas missões Jesuíticas, mas foram influenciados por

aspectos culturais durante o período das reduções, tendo aspectos culturais comuns entre si,

principalmente, por haver um consenso de que os mesmos ―adoram a Santa Cruz‖ - Chiru (cruzes

e varas)39.

As reduções jesuíticas tinham por características, lugares com intencionalidades de

civilizar as sociedades indígenas, visando assim à conversão ao cristianismo. Também, como

demonstra a etnografia histórica, estas reduções foram, na maioria das vezes, forçosamente

38

Ainda é necessário considerar os Chiriguanos e outros grupos que falam a língua guarani. Ainda, hoje em dia, no

caso dos Chiriguanos, estes se identificam como Guarani devido à participação na Assembleia do Povo Guarani.

(COMBÈS, 2005). Haja ainda necessidade de dizer que ‗―Guaranì‖ es um término que, a más de designar a um

grupo preciso de personas, indica uma pertenencia linguìstica [...]‖ (COMBÈS, 2005, p. 19). 39

Ver Fábio Mura (2010).

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abandonadas devido aos ataques de encomiendeiros 40 e bandeirantes. Para Graciela Cândida

Chamorro (2008), as reduções eram, para as sociedades indígenas, lugares onde estes podiam

defender-se de ataques, podendo ser consideradas como ―cidades‖ ou locais de refúgio.

Na condição de reduzidos, diferentemente dos indígenas presos ao sistema de

encomienda como escravos, as reduções possibilitavam, mesmo que minimamente, relações com

a natureza de acordo com seu modo de vida. Entretanto, inseridos em outra lógica de controle

territorial, eram obrigados a conviver com novos padrões de comportamentos e regimentos

disciplinadores que não condiziam com sua organização socioterritorial.

Entretanto, é notório destacar que as principais práticas utilizadas pelos jesuítas (hoje

parte integrante da cosmologia destas sociedades, reproduzindo-se como Kesuíta ou Quechuíta41)

nas reduções foram norteadas pelo medo indígena de serem escravizados pelos portugueses e

espanhóis – encomiendeiros. Tornando as reduções pontos de refúgios, apresentou-se como

alternativa possível de resistência a alguns delineamentos do Processo Civilizador colonial.

Ainda, de acordo com o padre Antônio Ruiz de Montoya (apud Bartomeu Melià, 1992,

p. 193):

Llamamos de reducciones a los pueblos de indios, que viviendo a su antigua

usanza en montes, sierras y valles, en escondidos arroyos, en tres, cuatro o seis

casas solas, separadas a legua, dos, tres y más, unos de otros, los redujo la

diligencia de los padres a poblaciones grandes y a vida política y humana, a

beneficiar algodón con que se visitan.

Segundo a corrente histórica guaranítica, o que entendemos hoje por Guarani, Kaiowa e

Mbyá foram àqueles que resistiram tanto ao sistema de encomienda, como as reduções jesuíticas

(resistiam à Cruz e à Espada), escondendo-se em matos, ficando ―prensados‖ entre ―... la

conquista española, el empuje guaycurú, las incursines bandeirantes-tupies y las inquietudes

40

Para Graciela Chamorro (2008, p. 112) ―A encomienda consistiu na concessão temporária de um certo número de

indígenas aos cuidados de um senhor, o encomendero, que devia catequizar e proteger os indígenas a ele

encomendados em troca dos serviços prestados como tributo. Apesar de concebido como um dispositivo legal para

apaziguar a escravidão, a instituição acabou servindo de cobertura para novas expedições armadas, a fim de capturar

novos indìgenas, pois os já incorporados à colônia tinham se acabado ou já não atendiam à demanda‖. Neimar

Machado de Sousa (2009, p.02) considera ainda que, ―no período colonial, os índios infiéis não contavam com a

proteção legal das reduções e podiam ser escravizados, uma vez que os métodos ―brandos‖ dos jesuìtas não

funcionavam, eles podiam ser submetidos a métodos mais duros sob o regime de encomienda. Sob este regime, os

índios tinham de prestar todo tipo de serviço aos colonos ou ficar à sua disposição em verdadeiras reservas de mão-

de-obra [...]. A encomienda era uma espécie de contrato bem vantajoso para o colono cujas obrigações eram a

alimentação, a vestimenta e a catequese do indígena que, em troca de todos estes benefícios, tinha de prestar todo

tipo serviço ao encomendeiro. Nesta perspectiva, o encomendero era transformado num agente civilizador‖. 41

Para maiores informações ver: Sílvia Maria Ferreira Guimarães (2005).

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tribales en la outra ribera del rio Paraná‖(SUSNIK apud BRAND, 1997, p.51). Silvia Maria

Ferreira Guimarães (2005, p.109), com base em Bartomeu Melià, que ―[...] o projeto missionário

foi um evento marcante na vida dos guaranis que, de certa forma, contribuiu para a formação das

cosmologias de alguns grupos‖.

É neste contexto que os Caaguá, identificados pelos colonizadores como infiéis e

bárbaros, foram aqueles que nem foram ―[...] colonizados ni misionados, pero em contacto com la

colônia y la misión; ahì estribaria su identidad y su diferencia‖. (MELIÀ; GRUNBERG;

GRUNBERG, 2008, p. 33). Ainda, Caaguá (e suas equivalencias fonéticas e ortográficas:

Cainguá, kaa‘iwá, Cayuá, Kayová) ―[...] etimológicamente significa ―habitantes de la selva o del

monte‖, son también los llamados Monteses42, o Montañeses‖ (MELIÀ; GRUNBERG;

GRUNBERG, 2008, p. 33).

No contexto de indagar sobre as sociedades indígenas falantes da língua guarani,

segundo Maria Inês Ladeira (2007, p.59), estas integravam a nação conhecida como Guarani-

Tupi, ocupando ―[...] uma vasta região que, de maneira descontìnua descia pelas costas do

Oceano Atlântico, desde a desembocadura do Amazonas até o estuário Platino, estendo-se rumo

ao interior até os contrafortes andinos, especialmente em volta dos rios [...]‖. Para Pierre Clastres

(apud Maria Inês Ladeira, 2007, p. 60) a ocupação territorial Tupi - Guarani e/ou Guarani - Tupi,

no século XVI se estabelecia da seguinte forma:

Os Tupis ocupavam a parte média e inferior da bacia do Amazonas e dos

principais afluentes da margem direita. Dominavam uma grande extensão do

litoral Atlântico, da embocadura do Amazonas até Cananéia. Os guaranis

ocupavam a porção do litoral compreendida entre Cananéia (SP) e o Rio Grande

do Sul; a partir daí, estendiam-se para o interior até o rio Paraná, as aldeias

indígenas distribuíram-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e

pelas duas margens do Paraná.

Seu território era limitado ao norte pelo Rio Tietê, a oeste pelo Rio Paraguai.

Separado deste bloco pelo Chaco, vivia outro povo Guarani, os Chiriguanos,

junto às fronteiras do Império Inca.

No interior dos debates em torno de uma língua tupi e/ou guarani, Graciela Cândido

Chamorro (2008, p.33) contribui à medida que consegue esclarecer que ―os grupos guarani atuais

pertencem à tradição denominada de tupiguarani e ao tronco linguístico tupi-guarani, que por sua

vez se desenvolveu há pelo menos 2.500 anos do tronco tupi, cuja formação remonta há 5.000

42

Selvagens – do Mato, não foram reduzidos nem pelos bandeirantes nem pelos encomiendeiros.

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anos‖. A autora ainda assinala que estas lìnguas eram uma só, apenas com algumas variações

dialetais43.

A autora ainda assinala que o termo ―tupi‖ e ―guarani‖ nos parecem indicar distinções

populares entre ―[...] o ―tupi, brasileiro‖ e o ―guarani‖, ―paraguaio‖ [sendo] uma invenção

posterior e [atendendo] a uma conjuntura histórica especìfica‖ (CHAMORRO, 2008, p. 35).

Em torno de toda esta discussão, consideramos ainda que os Guarani e Kaiowa de Mato

Grosso do Sul tem identificações próprias, vendo-se diferenciados entre si. Tendo em vista que a

identificação Guarani é uma auto-identificação especifica dos Ñandeva no Estado de Mato

Grosso do Sul, outras denominações aparecem em outras espacialidades vividas por eles,

aparecendo e sendo conhecidos também como: enquanto Guarani-Ñandeva, Ava-Chiripa, Ava-

Guarani, Xiripa e Tupi-Guarani. E os Kaiowa são também conhecidos como: Pai-Tavyterã,

Tembekuára (ISA, 2010a; 2010b).

Para Maria Inês Ladeira (2008, p. 61):

[...] os Paĩ-Tavyterã concentram-se na região oriental do Paraguai e na região

sul do Mato Grosso do Sul. De todo modo, nas décadas de 1980 e 1990,

conhecemos dois grupos familiares distintos que, em movimentos distintos,

chegaram ao litoral passando a conviver junto ou próximo de aldeias Mbya, um

deles no Espírito Santo e depois em São Paulo, e o outro no Rio de Janeiro.

Os Nhandéva/Xiripa, no Paraguai, concentram-se na região compreendida entre

os rios Jejui Guazu e Acaray; [...] e, no Brasil, vivem em aldeias situadas no

Mato Grosso do Sul, no interior dos Estados de São Paulo (Posto Indígena de

Araribá), do Paraná e do Rio Grande do Sul e no litoral de São Paulo e de Santa

Catarina.

43

Segundo Graciela Chamorro (2008, p. 34-36), ―O termo ―tupi‖ aplicado à fala dos indìgenas aparece somente no

início da conquista, com o soldado alemão Hans Staden (1557) e o pastor calvinista Jean de Léry (1578), que o

empregaram para designar a lìngua dos ―tupinambá‖ ou ―toupinambaults‖, falada na costa do Brasil [...]. Os jesuìtas

que misionavam entre os indígenas da costa brasileira desde 1549, já nos seus primeiros escritos (1575) se referem

ao tupi antigo como ―lìngua brasìlica‖, ―lìngua geral da costa do Brasil‖ ou ―lìngua geral do Brasil‖, mas nunca

língua tupi ou tupinambá [...]. Foi Karl von den Steinen [1886] quem, no auge do Romantismo brasileiro, criou o

termo tupi-guarani (Von den Steinen, 1942, p. 342), aparentemente sem justificativas lingüísticas senão para

designar com ele, quando usado como substantivo, ―a grande famìlia lingüìstica‖ e quando empregado como

adjetivo,―todos os elementos culturais comuns às tribos da mesma famìlia‖ (Edelweiss, 1947, p. 8) [...]. considero

importante destacar que a expressão ―famìlia tupi-guarani‖ é uma designação convencional que arrola lìnguas,

muitas delas já mortas, procedentes de uma língua ancestral que se convencionou denominar de proto-tupi-guarani e

que seria para as línguas indígenas classificadas de tupi-guarani o que o latim é para a família lingüística românica.

A família tupi-guarani forma, com outras seis famìlias, o ―tronco lingüìstico tupi‖, comparável com o tronco

lingüístico indo-europeu. No final do século XX, ela arrolava, só no Brasil, 21 línguas vivas, aparentadas entre si,

faladas por grupos tupi-guarani modernos espalhados por 13 estados brasileiros e por vários outros países. Por

exemplo, o Mbyá é falado também no Paraguai e na Argentina, o Kaiová ou Paĩ-Tavyterã e Guarani (Ñandeva,

Chiripá), no Paraguai e o Chiriguano na Bolívia e na Argentina. Outras línguas, além de serem faladas no Brasil, são

empregadas também no Peru, na Colômbia, na Venezuela e na Guiana Francesa [...]‖.

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Referente ainda aos Guarani, conhecidos no Paraguai oriental por Ava-Xiripa ou

Ava/Chiripá, é significativo que a palavra Ava tenha para os Guarani, Kaiowa e Mbya indicativo

de índio-gente-humano, diferindo-se explicitamente daqueles que não são eles. Ainda é mais

notório, a partir de Egon Schaden (1974) que a denominação Chiripá, Txiripá í, e ou ―os

txiripazinhos‖ fora um apelido dado pelo Mbya aos Guarani do Paraguai, expressando sentido

diminutivo, sinalizado pelo morfema í, diferenciando-os.

Os Mbya ou M'byá estão presentes em várias ―aldeias‖44

na região oriental do Paraguai,

no nordeste da Argentina (Província de Misiones) e norte do Uruguai. No Brasil, encontram-se

em aldeias situadas no interior e no litoral dos Estados do Sul – Paraná, Santa Catarina e Rio

Grande do Sul - São Paulo, Rio de Janeiro e no Espírito Santo em várias aldeias junto à mata

Atlântica do litoral. Também, na região Norte do país, encontram-se famílias Mbya originárias,

vieram ao Brasil após a Guerra Contra o Paraguai45, separando-se em grupos familiares.

Atualmente vivem no Pará (município de Jacundá), em Tocantins, em uma das áreas Karajá de

Xambioá, além de poucas famílias dispersas na região Centro-Oeste.

Podemos considerar que as diversas formas em que às sociedades indígenas falantes da

língua guarani se identificam estão inter-relacionadas as espacialidades por elas ocupadas,

estando estas relacionadas às distintas formas em que elas percebem a si mesmo e aos outros.

1.4 – O sistema-mundo moderno-colonial e a imposição de novas territorialidades

A história da América é marcada pela invasão e espoliação dos territórios indígenas, no

prisma de uma sociedade europeia que tinha como foco colonizar, civilizar e cristianizar,

impondo seu modo de vida como supremo e superior, negando outros saberes e relações sociais

dos homens entre si e com a natureza, concomitantemente, negando outras histórias-trajetórias.

Nestes pressupostos, a construção do sistema-mundo moderno-colonial, nos

delineamentos eurocêntrismo, se fez negando e impondo outras formas de apropriação das

riquezas naturais, assim como as múltiplas formas de viver e morrer. Carlos Walter Porto

44

A discussão da categoria aldeia está presente no terceiro capítulo. 45

Também conhecida como Guerra do Paraguai ou Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai). A

guerra durou entre os anos de 1864 a 1870.

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Gonçalves (2006a, p.24) considera que a ―descoberta‖ da América tornou-se um fato decisivo

para a consolidação da hegemonia européia no mundo, e se deram ―[...] ao preço da servidão,

etnocídio e, até mesmo, genocídio de povos indígenas e da escravidão para fins de produção

mercantil de negros trazidos, com a consequente desorganização das sociedades originárias e a

exploração de seus recursos naturais‖.

Explica que, as transformações ocorrentes a partir da/na Europa, no contexto do

―descobrimento‖ do ―novo mundo‖, século XV-XVI, se fez no período de grandes

transformações políticas e econômicas no desenvolvimento e/ou nascimento do capitalismo, e

que as novas formas de ocupação do espaço na América, assim como as novas territorialidades

que passam a ser definidas e redefinidas na Europa, não podem ser entendidas sem considerar as

transformações espaciais na América.

Em linhas gerais, as novas formas de ocupação do espaço se deram em um contexto de

intensos conflitos e disputas territoriais, de modo que as territorialidades em disputa passam

fundamentalmente pelas diversas formas de apropriação das riquezas naturais, que propiciaram o

desenvolvimento do capitalismo46. É neste contexto de grandes transformações territoriais,

referindo-se ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, que Ariovaldo Umbelino de Oliveira

(1988, p.15) considera que:

O território capitalista brasileiro foi produto da conquista e destruição do

território indígena. Espaço e tempo do universo cultural índio foram sendo

46

É no capitalismo que ocorre a superação das estruturas milenares, das sociedades ditas ―naturais‖. Nas palavras

de Karl Marx, ocorre a ―separação do trabalhador da propriedade das próprias condições de trabalho‖. (p. 106).

―Ele aparece ‗primitivo‘ porque constitui a pré-história do capital‖. (p.104). Por isso, a acumulação primitiva deve

ser entendida como sendo a dissolução das sociedades naturais, com criação da história universal, através da

formação do mercado mundial. Assim, ―a história universal não existiu sempre; a história universal é um resultado‖

desse processo. Isto porque ―a produção baseada no capital é a produção da circulação continuamente ampliada‖.

Este processo vai quebrando o isolamento dos velhos modos de produção baseados no valor de uso e revolucionando

os meios transporte e de comunicação. Logo, ―o capital tende a superar todo obstáculo espacial‖. (p. 126). No

capitalismo, a produção de novas necessidades de consumo leva inevitavelmente a exploração sistemática da

natureza. Logo, ―a natureza se torna um puro objeto para o homem‖, e o conhecimento das suas leis apresenta-se

simplesmente como astúcia capaz de subordiná-la as necessidades humanas, quer como objeto de consumo, quer

como meio de produção. Portanto, o capital atua destrutivamente, abate todos os obstáculos que freiam o

desenvolvimento das forças produtivas. No capitalismo, a produção se torna a finalidade do homem, e a riqueza, a

finalidade da produção (QUAINI, 1979).

Também, como considerado por Rogério Haesbaert (2007, p.175), ―[...] na ótica do materialismo histórico podemos

dizer que a primeira grande desterritorialização capitalista relaciona-se à sua própria origem, seu ―ponto de partida‖,

que é a chamada acumulação primitiva de capital, separando produtor e meios de produção. Trata-se da

―expropriação do povo do campo de sua base fundiária‖ e sua transformação em trabalhador livre rumo ao

assalariamento nas cidades. A dissociação entre trabalhador e ―controle‖ (domìnio e apropriação) dos meios de

produção (da terra para cultivar à fábrica ou aos instrumentos para produzir) é a grande desterritorialização,

imprescindìvel, de qualquer modo, à construção e a reprodução do capitalismo‖.

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moldados ao espaço e tempo do capital. [...]. A marca contraditória do país que

se desenhava podia ser buscada na luta pelos espaços e tempos distintos e pelos

territórios destruídos/construídos.

Ao assinalar a correlação espaço e tempo indígena, comparando-o com outros modos de

viver do mundo ocidental-europeu-cristão, nos desmembramentos do sistema capitalista de

produção, ocorreram conflitos pelos distintos usos da apropriação social das riquezas naturais, ou

seja, das águas, rios, matas, florestas, terra, animais, minerais entre outros. Assim, nestes

diferentes usos, têm-se o palco de territórios-territorialidades em disputas. Paul E. Little (2002,

p.04-05) assinala que são as frentes de expansão (açúcar, algodão, gado, café e minério), por sua

vez, ondas históricas de territorialização47 de um determinado grupo no espaço, que redefinem os

territórios e as territorialidades, demonstrando que:

Se percorrermos rapidamente os diversos processos de expansão de fronteiras no

Brasil colonial e imperial – a colonização do litoral no século XVI, seguida por

dois séculos das entradas ao interior pelos bandeirantes; a ocupação da

Amazônia e escravização dos índios nos século XVII e XVIII; o estabelecimento

das plantations açucareiras e algodoeiras no Nordeste nos séculos XVII e XVIII

baseadas no uso intensivo de escravos africanos; a expansão das fazendas de

gado ao Sertão do Nordeste e Centro-Oeste e as frentes de mineração em Minhas

Gerais e no Centro-Oeste, ambas a partir do século XVIII; a expansão da

cafeicultura no sudeste nos séculos XVIII e XIX – podemos entender como cada

frente de expansão produziu um conjunto próprio de choques territoriais e como

isto provocou novas ondas de territorialização por parte dos povos indígenas e

dos escravos africanos.

É assim que pensamos os processos de territorialização entre os Guarani e Kaiowa em

Mato Grosso do Sul, tendo em vista que as frentes de expansão, principalmente a partir da década

de 1950 redefiniram os ―formatos‖ territoriais em que estas sociedades estão vivendo hoje,

explicitamente na RID, onde discutiremos as relações na/da condição de reserva em que vivem os

Guarani e Kaiowa, compartilhando territórios entre si e com os indígenas Terena48. Neste

contexto, partimos do pressuposto de que ―[...] a história das fronteiras em expansão no Brasil, é

necessariamente, uma história territorial, já que a expansão de um grupo social, com sua própria

47

Para Marcos Aurélio Saquet (2009, p.83) ―A territorialização constitui e é substantivada, nesse sentido, por

diferentes temporalidades e territorialidades multidimensionais, plurais e estão em unidade. A territorialização é

resultado e condição dos processos sociais e espaciais, significa movimento histórico e relacional. Sendo

multidimensional, pode ser detalhada através das desigualdades e das diferenças e, sendo unitária, através das

identidades‖. 48

Discutiremos profundamente esta questão no terceiro capítulo ao sinalizar prioritariamente a criação-instituição da

RID e suas configurações na atualidade.

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conduta territorial, entra em choque com as territorialidades dos grupos que residem aì [...]‖

(LITTLE, 2002, p.04).

Nesta perspectiva, as territorialidades em confronto, assim como a constituição da

propriedade privada no Brasil, estão se fazendo pelo avanço das frentes de expansão e, logo,

pelos processos de territorialização do capital que se impõe, podendo ser entendida pelo

movimento de des-re-territorialização, tendo em vista que a desterritorialização de uma relação

socioterritorial não pode ser desconsiderada fora do contexto da territorialização de outra e vice-

versa.

É possível analisar o movimento de T-D-R (Territorialização-Desterritorialização-

Reterritorialização), partindo do pressuposto de que a territorialização foi o que engendrou o

―território original‖. A desterritorialização engendrou as modificações e destruições do território

determinadas pelas disputas territoriais que transformaram o uso e o controle sobre o território. A

reterritorialização, nestes desdobramentos, se coloca intrinsecamente na possibilidade do

contínuo vir-a-ser, a possibilidade de ―criação‖ de outro território, a partir da desterritorialização

de outrem.

Como compreendido por Doreen Massey (2008, p.201), os lugares são sempre ―[...]

sucessões de encontros, [e ainda são] as acumulações de tramas e encontros [que] formam uma

história‖, e estas histórias, nunca são apenas uma, são múltiplas. O que está em jogo são as

multiplicidades das ―histórias-trajetórias‖, encontrando-se e desencontrando-se nos espaços-

tempos, como já demonstrado e exemplificado em torno da imposição do modo de vida centrado

no sistema-mundo moderno-colonial sobre o modo de vida indígena (também negro, camponês

etc.), mas havendo sempre resistências, colocando-se no entorno de territórios em disputas.

Tendo em vista que, no contexto de movimentos das gentes, de tempos e espaços, os processos de

T-D-R não podem ser desconsiderados. Como exemplificado por Alecsandro J. P. Ratts (2004,

p.81), com base em Raffestin, ―o território, assim formulado, não se reduz à terra ocupada e

abrange o espaço apropriado pelo grupo, ainda que seja nos limites da representação e do

conhecimento produzido‖. Todavia, estamos defendendo a ideia de que o território é muito mais

que terra, sendo um conjunto de dimensões materiais e imateriais – simbólicas que permitem as

gentes viver.

Deste modo, devemos partir do pressuposto de que a constituição do sistema-mundo

moderno-colonial se fez ―jogando‖ com territórios e territorialidades em disputas. Tendo em vista

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que desde o ―descobrimento‖ do ―novo mundo‖, novas configurações de tempo e espaço foram

impostas às sociedades nativas pela sociedade dominante ocidental, novas redefinições territoriais

em torno de todo o arcabouço civilizatório vigente foram reconfiguradas.

Ainda é notório que os diversos processos de desterritorialização das sociedades nativas

em torno do avanço das frentes de expansão, fizeram com que estes grupos buscassem outros

espaços de morada - reterritorialização, tendo em vista que:

Esses múltiplos, longos e complexos processos resultaram na criação de

territórios dos distintos grupos sociais e mostram como a constituição e a

resistência cultural de um grupo social são dois lados de um mesmo processo.

Além do mais, o território de um grupo social determinado, incluindo suas

condutas territoriais que o sustentam, pode mudar ao longo do tempo

dependendo das forças históricas que exercem pressão sobre ele (LITTLE, 2002,

p.05).

Assim, o movimento de T-D-R explica o processo de espoliação dos territórios

indígenas. Pois, estes passaram a disputar seus territórios com outras formas de territorialidade

não indígenas, considerando que o território-terra estava intrinsecamente relacionado ao valor de

uso coletivo por parte da comunidade. Onde este uso restringia-se, ao máximo, aos laços da

família, ou seja, à rede do mundo dos parentes, como são perceptíveis em algumas sociedades

indígenas fundantes da organização socioterritorial Guarani e Kaiowa.

Desta forma, a sociedade em que vivemos hoje, não pode ser compreendida sem

entendermos as multiplicidades de histórias participantes, de índios e não índios, que trazem

diferentes concepções espaciais e temporais de um grupo e outro. Neste sentido, Lylia da Silva

Guedes Galetti (2000, p. 34) assinala que ―Sertões... desertos: ìnvios, desconhecidos e quiçá

depositários de magníficos tesouros, [foram] a primeira representação do colonizador português

sobre o espaço geográfico que se alongava em direção ao interior das terras brasílicas, rumo ao

Ocidente [...]‖.

Demonstrando ainda que, ―Nalgum ponto desta vasta extensão de terras sabiam os

portugueses situar-se a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (1494), limite duvidoso entre

os domìnios de Portugal e os da Espanha na América Meridional‖ (GALETTI, 2000, p. 34). São

estas diferentes histórias-trajetórias de viver e controlar o espaço e o tempo nos limites de

territórios-territorialidades em disputa.

O Tratado de Tordesilhas pode ser considerado como um desses limites. A primeira

divisão do ―novo mundo‖, formalizando os limites de domínio entre Espanha e Portugal,

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―restringiu‖ o exercìcio de exploração sobre as riquezas naturais das sociedades nativas. Assim,

separaram o inseparável, territorializando novos modos de vida e impondo novas formas de

organização social no espaço.

Os europeus, ao imporem que diferente das sociedades indígenas e suas espacialidades,

novos formatos espaciais deveriam ser formados, a ―lógica‖ de apropriação da natureza passará a

ser marcado por tempos-espaços distintos do universo indígena. De modo que as mesmas já não

são movidos pelos laços com a natureza, nas geografias da noite e do dia, da chuva e do sol, da

caça e da pesca (embora estes, também limitassem o poderio europeu), passando agora a ser

marcadas pela lógica capitalista de produção, neste momento, o capital mercantil.

Com o tratado, dividia-se o continente a partir das estratégias políticas/econômicas dos

países colonizadores, Portugal e Espanha, desconsiderando os territórios indígenas e a mobilidade

sócio-espacial destas. Limitando-os por uma política de posse e controle territorial que vigorou

―cortando‖ territórios tradicionais, monopolizando as terras-territórios das gentes que sobre elas

viviam.

Neste contexto, portugueses e espanhóis passaram a influenciar na organização das

sociedades originárias, redimensionando e transformando seus territórios, logo, criando novas

territorialidades. Embora, haja necessidade de dizer, como menciona Ligia Ozório Silva (2009 –

não paginado) que:

A colonização do século XVI e a descoberta das sociedades indígenas da

América puseram diante dos europeus uma nova forma de relação entre o

território e seus habitantes. A quase ausência da noção de propriedade, em geral,

mas particularmente o seu desconhecimento em relação à propriedade da terra –

o Estado de natureza – impressionou sobremaneira o imaginário dos europeus. A

impressão foi tanto mais forte porque a afirmação de uma nova definição dos

―direitos de propriedade‖ estava se sobrepondo às noções tradicionais de espaço

e apropriação [...].

É notório ainda, que foram despertadas várias teorias em torno da existência do ―novo

mundo‖, como já visto anteriormente. Este imaginário era imbuìdo por uma realidade que

distanciava indígenas e europeus. Para os europeus, estes começaram a questionar e a buscar

respostas em torno de suas origens, aparência, relações sociais dos homens entre si e com a

natureza, a fim de explicar suas diferenciações sobre os indígenas.

O mito do bom selvagem foi uma das possibilidades de explicação destas gentes. A

partir de uma idealização eurocêntrica, completamente distinta dos padrões de comportamento e

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racionalidades ameríndias, que serviu, ora para enaltecê-los e protegê-los da escravidão, como

também, e muitas vezes, para justificar a conquista e a posse de seus territórios.

O Estado de natureza encontrado na América deu nova vida aos mitos antigos

sobre a existência de uma idade de ouro da humanidade, época sem conflito,

quando a distinção entre o meu e o teu era desconhecida. Mas o mito serviu

também de contraponto para os teóricos do Estado garantidor da propriedade, no

seu conceito moderno (isto é, exclusivo e excludente). Embora enaltecendo a

felicidade que um tal estado proporcionava aos seus integrantes, certos teóricos

do contratualismo – Hobbes, Locke, Rousseau, com certeza – reforçaram a nova

concepção de propriedade na medida em que colocaram a propriedade como um

dos símbolos do progresso e um dos sustentáculos do Estado social (SILVA,

2009 - não paginado).

A partir das contribuições de Ligia Ozório Silva (2009), entendemos que a natureza da

propriedade para os europeus era baseada na ―distinção sobre o meu e o teu‖. Esta perspectiva

implicava também nos conflitos no tocante aos distintos usos sobre a natureza. Como já

demonstrado, o tempo não é mais ―contado‖ pelo sol e o cantar dos pássaros - da natureza. Aos

olhos dos colonizadores, estas relações com a natureza foram, muitas vezes, o que possibilitou a

prova de que estas sociedades eram irracionais e inferiores, justificando, assim, a disponibilidade

da posse sobre os seus territórios-terras.

Portanto, no caso do Brasil (e outras realidades latinos americanas, africanas,

orientais...), a história dominante se deu sobre a posse dos territórios indígenas, formatada em

grandes extensões de terras (latifúndio-plantations) sobre a posse-propriedade dos portugueses. A

partir da desterritorialização, exploração e escravização das sociedades indígenas49, e da mesma

forma, a natureza.

Esses sistemas expansionistas e limitacionistas implicavam na consolidação de uma

superioridade eurocêntrica. O colonizador, agente de grandes transformações sociais no ―novo

mundo‖, buscou nas correlações de organização socioterritorial do universo europeu, nos

fundamentos da cristandade, da Fé, da Lei e do Rei, sua territorialização (WOORTMANN,

2004). Para Alberto Passos Guimarães (2005, p. 62):

Quando D. João III dividiu sistematicamente o nosso território em latifúndios

denominados capitanias, já existiam aqui capitães-mores nomeados para as

capitanias do Brasil. O que se fez então foi demarcar o solo, atribuir-lhes e

declarar-lhes os respectivos direitos e deveres e os direitos, foros, tributos e

cousas que tinham os colonos de pagar ao rei e aos donatários, passando-se a

49

Ver: MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.

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cada um deles a sua carta de doação, ou donataria com a suma dos poderes

conferidos pela Coroa portuguesa autorizando-os a expedir forais, que eram uma

espécie de contrato em virtude do qual os sesmeiros ou colonos se constituíam

perpétuos tributários da Coroa ou dos seus donatários ou capitães-mores. A terra

dividida em senhorios, dentro do senhorio do Estado, eis o esboço geral do

sistema administrativo na primeira fase de nossa história.

Podemos dizer, então, que as novas geometrias de poder (MASSEY, 2008) foram

impostas. Os europeus entrelaçados nas ―novas‖ terras, anteriormente sobre o controle das

sociedades nativas, criaram mecanismos, a partir da realidade em que estavam inseridos, para se

apropriarem-dominarem os homens e as riquezas naturais desconhecidas. A lei e o Rei foram

partes desse processo civilizatório. Os preceitos cristianos passaram a vigorar no ―novo mundo‖.

A posse das terras-territórios dos indígenas, por sua vez, passou a cada dia mais ficar sobre o

domínio europeu.

No enredo destas divisões de controle territorial entre Espanha e Portugal, tais disputas

acabaram culminando em maiores dispersões e encurralamento territorial sobre as sociedades

indígenas. Impuseram às sociedades indígenas novos padrões de organização socioterritorial que

não mais poderiam ser configuradas nos preceitos tradicionais. Exemplo desse processo foi a

função social da guerra entre os Tupinambá, ainda no século XVI. Agora inseridos no valor da

guerra da sociedade europeia, contextualizando o que já discutimos sobre o formato das alianças

entre indìgenas e ―brancos‖ 50.

É cabível ainda dizer que parte dessas modificações no modo de vida indígena é

exemplificada entre as sociedades Guarani e Kaiowa, que já no século XVI foram impactadas

pelas disputas territoriais entre portugueses e espanhóis. Cabendo assinalar que na atualidade

estas terras fazem parte de algumas áreas reivindicadas pelos Guarani e Kaiowa. Podendo esta

correlação ser entendida nas premissas de Valmir Batista Corrêa (1999, p. 11), ao assinalar que

50

Segundo Florestan Fernandes (1970, p.319) a guerra para os Tupinambá tinha como base a reprodução da

sociedade e a manutenção do equilíbrio cultural, sendo que a antropofagia praticada por estes, [...] nascia da

interpretação, por meios xamanìsticos, da vontade dos ―espìritos‖ antepassados e dos ancestrais mìticos [...]. O

sacrifìcio humano tupinambá possuìa, por sua vez, a sua ―dialética interna‖, a qual [...] constituía, do ponto de vista

das relações com as entidades sobrenaturais, uma espécie de cadeia fechada, posta em movimento continuamente,

por meio do massacre de vítimas sucessivas aos mesmos espíritos.

Ainda o francês Jean de Lèry esteve com os Tupinambá no século XVI. Em suas palavras: ―[...] Os selvagens se

guerreiam não para conquistar países e terra uns aos outros, porquanto sobejam terras para todos; não pretendem

tampouco enriquecer-se com os despojos dos vencidos ou o resgate dos prisioneiros. Nada disso os move.

Confessam eles próprios serem impelidos por outro motivo: o de vingar pais e amigos presos e comidos, no passado

[...]. E são tão encarniçados uns contra os outros que quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão‖

(1972, p.137 – grifo nosso).

Para maiores informações ver Juliana Grasiéli Bueno Mota (2009a).

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―[...] salvos raras povoações e fortificações, na prática, esta vasta extensão de terra caracterizou-

se pelo colonialismo português como uma área de apresamento indígena e de passagem para

outras regiões‖.

Estas áreas, palco de conflitos e interesses estratégicos entre Espanha e Portugal,

prejudicaram ainda mais as sociedades indígenas que estavam territorializadas nestes locais.

Neimar Machado de Souza (2009, p. 01) salienta que:

[...] os embates, nesta região, ocorreram no período compreendido entre a

destruição das missões jesuíticas do Guairá (1628) e a destruição das missões do

Itatim (1659) com o deslocamento de grande contingente indígena para a região

abaixo do rio Apa e a fuga de muitos outros para as matas de difícil acesso na

região do rio Brilhante e Serra de Maracajú, entre 1630 e 1670,

aproximadamente.

A despeito destes espaços configurados como lócus dos territórios tradicionais Guarani e

Kaiowa atuais, é notório que estas configurações se deram pela nova organização territorial

imposta, explícitos no Tratado de Tordesilhas, nas Capitanias Hereditárias e no regime de

Sesmaria51-. Posteriormente, substituída pela Lei de Terras de 1850 que marca a constituição da

propriedade privada da terra. Assim, se o Tratado de Tordesilhas foi a primeira divisão, impondo

limites entre Espanha e Portugal sobre o ―novo mundo‖, pode-se dizer também que estes foram

limitantes na organização espacial das sociedades indígenas (GALETTI, 2000; SILVA, 2009;

LITTLE, 2002).

As Capitanias Hereditárias foram o primeiro sistema de distribuição de terras e teve a

intencionalidade de transformar o território nacional a partir da organização espacial européia. As

capitanias eram um sistema de grandes extensões de terras que tinha como princípio a doação

destas pela Coroa Portuguesa a donatários, nos limites (na linha imaginária) do Tratado de

Tordesilhas.

A primeira forma de distribuição da terra foi o sistema de capitanias hereditárias,

pelo qual a Coroa destinava grandes extensões de terra a donatários, que eram

sempre membros da nobreza portuguesa ou prestadores de serviços á Coroa. Em

troca de favores e de tributos, eles recebiam essas concessões, obrigando-se a

explorá-las e, sobretudo, á protegê-las, tendo ainda o direito de deixar para seus

herdeiros essas terras. Os donatários tinham o direito de repartir e distribuir

parcelas de sua capitania, que eram chamadas de Sesmarias entregues aqueles

51 ―Sesmaria – Nome dado ao lote de terra que as autoridades portuguesas davam a pessoas para que as cultivassem.

Variavam de meia légua a 20 léguas quadradas. Geralmente a légua de sesmaria possui 6.600 metros‖ (ALMEIDA,

2004, p. 2).

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que, além de interesse, apresentassem recursos para explorá-las. Isso implicava

produzir gêneros comercializáveis, gerando tributos e, conseqüentemente, lucros

para a Coroa (STEDILE, 1998, p. 09).

Conforme salienta Caio Prado Júnior (2004), estas capitanias se constituíram dividindo

as terras em doze setores lineares, com extensões que variavam de 30 a 100 léguas (ou entre 180

a 600 quilômetros, considerando a relação 1 légua = 6 km). Os donatários a quem foram doadas

estas terras, tinham obrigação de nelas nomearem autoridades administrativas, receber taxas de

impostos para a coroa, além de redistribuir as terras – povoando-as. Esses sistemas de

redistribuição, por sua vez, tinham sua subdivisão na Lei de Sesmarias, devendo:

[...] ser entendida dentro do quadro que decorre da grande desestruturação por

que passou a organização da propriedade fundiária em Portugal, após a peste de

1348-50, que despovoou o campo e gerou grandes áreas abandonadas. Significa

também o fato de que ela visava a regulamentar o uso e a exploração das

extensas terras estatais e da Igreja. A Lei das Sesmarias deve ser entendida,

portanto, dentro do quadro geral de um sistema produtivo que o Estado pretendia

organizar, a partir de uma forma de domínio condicionado (SMITH apud

PEREIRA, 2009).

O sistema de Sesmarias, ainda segundo Luciene Maria Pires Pereira (2009), baseava-se

em uma legislação criada em 1375 em Portugal pelo rei D. Fernando I, visando solucionar os

problemas referentes à escassez de alimentos, tendo como princípio uma política de

reestruturação do sistema fundiário, visando fixar os trabalhadores a terra, a fim de estimular a

produção. Sendo notório que estes sistemas vigoraram para consolidação e manutenção do

controle territorial por parte da Coroa Portuguesa, não tendo como finalidade entender as

complexidades e diferenciações territoriais das ―novas terras‖ encontradas, nos limites da

natureza e na vivência que delas eram exercidas pelas sociedades indígenas. Dessa maneira, o

território brasileiro foi assim,

Uma sociedade, um espaço social que se distinguia também pelos modos de vida

de seus moderadores: índios, mineiros, vaqueiros, desertores, escravos fugidos,

senhores de muito cabedal e poder de mando, uns e outros constituindo a gente do

sertão, não raro tida como arredia às leis da Metrópole e inclinada a liberdades

mal vistas por seus representantes (GALETTI, 2000, p. 46).

O que essas novas configurações espaciais revelam é que novas ―histórias-trajetórias‖

passam a ser definidas. Espacialidades/territorialidades distintas das sociedades indígenas foram

se confrontando entre si. Podendo-se dizer que o Tratado de Tordesilhas, e, especificamente no

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Brasil as Capitanias Hereditárias, foi o ―divisor de águas‖ das territorialidades existentes no

―novo mundo‖. Após o ―descobrimento‖ da América, novas definições territoriais passam a ser

configuradas, novos modos de apropriação do espaço passam a se confrontar com a organização

espacial das sociedades indígenas, transformando e impondo novas territorialidades, novas

formas de viver e morrer. Ainda é necessário dizer que as transformações espaciais/territoriais na

América se deram pelo encontro com o não indígena, que desde o século XVI tem redefinido as

territorialidades indígenas, assim como sua própria territorialidade. Exemplo este poderá ser

percebido nas novas formas dos Guarani e Kaiowa se organizarem socioterritorialmente nos dias

de hoje, em sua maioria em reservas indígenas (discussão presente no terceiro, quarto e quinto

capítulo).

Nesta perspectiva, Paul Little (2002, p.04) salienta que:

As transformações territoriais que a área que hoje é o Brasil sofreu nos últimos

séculos estão imbricadas com os incessantes processos de expansão de fronteiras

[...] a conduta territorial surge quando as terras de um grupo estão sendo

invadidas, numa dinâmica em que, internamente, a defesa do território torna-se

um elemento unificador do grupo e, externamente, as pressões exercidas por

outros grupos ou pelo governo da sociedade dominante moldam (e às vezes

impõem) outras formas territoriais.

Os processos de expansão de fronteiras são definidas pela/na situação de contato,

considerando que a fronteira não se reduz a fronteira geográfica com seus limites demarcados,

mas há uma multiplicidade de fronteiras, pois como considera José de Souza Martins (1997, p.

13), é necessário considerar a ―fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se

oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira

da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano‖.

É na fronteira que ocorrem os encontros e os desencontros de modos de viver. É ainda

por meio dela que se põem ―[...] em contato conflitivo populações cujos antagonismos incluem o

desencontro dos tempos históricos em que vivem‖ (MARTINS, 1997, p. 174), considerando ser a

própria fronteira, o momento inaugural do contato. O conflito é, por sua vez, o desencontro de

temporalidades e territorialidades. Para Martins (1997), pensar a fronteira, é pensar na frente de

expansão e na frente pioneira, já que a distinção entre uma e outra deve ser considerada.

Se a frente pioneira se define essencialmente pela presença do capital na

produção, o mesmo não ocorre, portanto, na frente de expansão, que não se

constitui pela precedência do que nós definimos como econômico na

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constituição de seus modos de vida e da mentalidade de seus agentes. Embora

sua dinâmica resulte da ação e dos interesses do capital [...].

A frente de expansão tornou-se, no fundo, o mundo residual da expansão

capitalista, o que está além do território cujas terras podem ser apropriadas

lucrativamente pelo capital. [...].

A frente de expansão também é expansão de relações mercantis. Mas, numa

concepção inversa à da expansão da produção capitalista [...] (MARTINS, 1997,

p.186-187 – grifo nosso).

A partir da consideração de José de Souza Martins (1997), a frente de expansão é

baseada por relações sociais não tipicamente capitalistas, que são mediadoras da reprodução

capitalista, ao contrário, a frente pioneira significa a efetiva territorialização do capital. Dessa

maneira, o movimento da frente pioneira desterritorializa outras formas de ocupação tradicional

do espaço, como ocorrente com as sociedades indígenas, camponesas, remanescentes de

quilombolas, entre outros. A frente de expansão não se desenvolve a partir de atividades

econômicas que tenham como o ―núcleo duro‖ o salário, o capital e a renda da terra, portanto não

tem a racionalidade do capital. Ao contrário, na frente pioneira, o capital se torna proprietário de

terra e recria no espaço a reprodução ampliada do capital com mercado de produtos e força de

trabalho, extraindo renda capitalista da terra e criando o seu território a sua imagem e

semelhança52. Neste sentido, o autor conclui que: ―A teoria da fronteira é, no meu modo de ver,

basicamente um desdobramento da teoria da expansão territorial do capital‖ (MARTINS, 1997,

p. 187).

Ao discutir frentes de expansão e/ou expansão das fronteiras, Paul Little53 (2002, p. 04-

05) afirma que ―[...] cada frente de expansão precisa ser contextualizada com respeito ao

momento histórico no qual acontece, à região geográfica que serve como seu palco principal, aos

atores sociais presentes no processo, à tecnologia a sua disposição e às cosmografias54 que

promovem‖.

52

Aqui, José de Souza Martins (1997) confirma a perspectiva da leitura geográfica de que relações sociais

capitalistas criam territórios capitalistas (como do agronegócio) e relações sociais não capitalistas criam territórios

não capitalistas (como os indígenas, quilombolas, camponeses etc.) A partir dessa análise podemos afirmar que as

frentes pioneiras significam a territorialização do capital de que nos fala Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1999;

2004). 53

Devemos frisar que essa distinção entre frente pioneira e frente de expansão é uma interpretação de José de Souza

Martins (1997) e que não está presente na discussão de Paul Little (2002). 54

Por cosmografia, Paul Little (2002, p. 04) define todas as relações de homens e mulheres com a terra/território,

portanto, sua territorialidade sobre/no mundo. Desta forma, a mesma é definida ―[...] como os saberes ambientais,

ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social utiliza para

estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos

afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso

social que dá ao território e as formas de defesa dele‖.

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Portanto, entender a complexidade da fronteira é considerar a imposição de novas

territorialidades que foram se fazendo a partir de novos processos de territorialização, ao mesmo

tempo em que ocorria a desterritorialização de outras formas de ocupação espacial que não é a

dominante. Logo, como consequência do ―descobrimento‖ e a imposição de outras formas

espaciais de organizar-se socialmente, temos mais de ―[...] quinhentos anos de guerras,

confrontos, extinções, migrações forçadas e reagrupamento étnico envolvendo centenas de povos

indìgenas e múltiplas forças invasoras de portugueses, espanhóis, franceses, holandeses‖

(LITTLE, 2002, p.05).

Entretanto, é necessário dizer que os conflitos que envolviam territorialidades distintas,

logo, múltiplos modos de fazer-se gente, foram se fazendo pela/na resistência a imposição de

novas territorialidades, de modo que Paul Little (2002) salienta que a resistência ativa às invasões

de seus territórios se colocava como resposta ao avanço da fronteira capitalista. As rebeliões,

fugas, alianças, entre outras formas de resistência, demonstram a não passividade do indígena e

de escravos negros.

Pensando na imposição de novas formas de viver para as sociedades indígenas,

elencamos as grandes transformações ocorrentes no espaço brasileiro a partir do século XIX que

tem como um marco relevante à instituição da propriedade privada no Brasil por meio da Lei de

Terras de 185055. Por isso, podemos dizer que as grandes transformações na organização do

território brasileiro passaram a ocorrer a partir da segunda metade do século XIX. Nesta

perspectiva, segundo Ligia Osório Silva (2009, p. 13),

Em termos da influência exercida pelo primeiro contato da civilização européia

da Época Moderna com os povos da América e com a abundância dos recursos

ali existentes sobre o pensamento político e filosófico, podemos dizer que, no

século XIX, houve uma reviravolta de 180 graus: à medida que evoluíram as

condições econômicas e sociais e, a Europa ―mercantilista‖ [capitalismo

mercantil] deu lugar à Europa do capitalismo [capitalismo concorrencial],

difundiu-se a propriedade privada exclusiva e excludente, corolário deste

55

―Foi a Lei Nº 601 de 18 de Setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, que atuou como marco jurídico de

constituição da propriedade capitalista da terra no Brasil. E, é óbvio, da transformação da terra em mercadoria, pois,

a partir desta lei, ela somente poderia ser obtida por compra e venda (artigo 1º). Tratou esta lei de legalizar os títulos

de sesmarias e as posses quaisquer que fossem suas extensões, mas que tivessem cultivos, desde que medidas e

levadas a registro em livros próprios nas freguesias (artigos 4º, 5º, 7º e 8º). Resumindo, todos os títulos de sesmarias

concedidos ou os grilos das terras reais e ou imperiais, eufemisticamente chamadas de ―posses mansas e pacìficas‖

puderam ser legalizadas por aqueles que as grilaram, porém, após a lei, isto não era mais possível, pois, somente a

Coroa Imperial podia vender as terras devolutas em hasta pública‖ (OLIVEIRA; FARIA, 2011, p. 04).

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sistema, e não houve mais espaço para terras ―livres‖, não cercadas, não

apropriadas (no sentido ―moderno‖), nem para seus habitantes.

Sendo assim, é desta forma que a organização espacial do atual Estado nacional

brasileiro foi se transformando em territórios privados. E nesta mesma perspectiva, é necessário

considerar que a organização espacial da América sempre foi se fazendo a partir das

transformações ocorrentes na Europa, pode-se dizer, ao modo europeu. Se por um lado o modelo

de colonização e organização espacial europeia nos primeiros anos de ocupação do território no

―novo mundo‖ consolidou-se no espelho de suas redefinições territoriais, esta mesma relação é

definida a partir do século XIX, na consolidação-constituição-invenção da propriedade privada,

nas bases da constituição e desenvolvimento do capitalismo56.

Deste modo, no Brasil, a Lei de Terras de 1850 passou a garantir a legitimidade do

direito do ―meu‖ e o ―teu‖ nas terras do Brasil, que diferente das sociedades indìgenas, a noção

de propriedade privada era inexistente. Contudo, é necessário dizer que esta condição foi muitas

vezes utilizada para institucionalizar o esbulho dos indígenas de seus territórios tradicionalmente

ocupados, como considerado por Ligia Osório Silva (2009, p. 05; 11) ao dizer que:

Um dos aspectos mais interessantes da lenda elaborada a partir do contato dos

europeus com os habitantes do novo mundo foi a relação estabelecida entre a

bondade natural do homem e a existência de uma ―idade de ouro da

humanidade‖, invariavelmente caracterizada pela inexistência da propriedade

privada (ou por sua presença mínima).

[...] Espalhava-se a ideia, de modo geral correta, que os habitantes do Brasil não

conheciam o patrimônio, nem a propriedade, sendo todos os seus bens possuídos

em comum. O aspecto mítico consistia na crença de que graças a este traço da

sociedade indígena, os selvagens viviam num permanente estado de felicidade e

que este ―estado de natureza‖ correspondia a um estágio primitivo da história da

humanidade. [...] mas nosso interesse é chamar a atenção para o fato de que seu

discurso aponta para a consequência tirada pelos europeus da ausência da

propriedade privada entre os indígenas da América: a de que era justificado

apropriarem-se das terras indígenas porque estes povos não conheciam a

propriedade...

Também, a partir de Paul Little (2002, p. 08) podemos compreender que:

56

Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira e Camila Salles de Faria (2001, p.04) ―Somente em julho de 1822 (com a

Resolução Nº 76 Reino - de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço) suspendeu-se a concessão de sesmarias

futuras até a convocação da Assembleia Geral Constituinte. O regime de sesmarias foi abolido após a Independência,

quando foi revogada a legislação portuguesa, deixando assim, de incidir sobre as terras brasileiras. Entre a

independência e 1850 existiu uma espécie de vácuo jurídico, embora, tenha existido legislações maiores que de certo

modo atuaram como referência para o Império, no que se refere ao direito de propriedade‖.

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99

[...] a noção de propriedade privada da terra não existe [em alguns casos não

existia] nas sociedades indígenas. [...] Embora o produto do trabalho pudesse ser

individual, ou, melhor dizendo, familiar, o acesso aos recursos era coletivo [...].

A terra e suas riquezas naturais sempre pertenceram às comunidades que os

utilizavam, de modo que praticamente não existe escassez, socialmente

provocada, desses recursos.

A constituição da propriedade privada da terra na lógica dominante da sociedade

moderna-colonial, a partir de 1850 por meio de compra, avançou consolidando-se no desencontro

de novas frentes de colonização com os indígenas, mas também, de negros, camponeses... Para

José de Souza Martins (1991, p. 64):

Até a extinção do regime de sesmarias, em 1822, concessão real era o meio

reconhecidamente legítimo de ocupação do território. O regime de sesmarias era

racialmente seletivo, contemplando os homens de condição e de sangue limpo,

mais do que senhores de terras, senhores de escravos (MARTINS, 1991, p. 64).

Diferentemente do regime sesmarias, a partir da Lei de Terras de 1850 foi instituído um

regime de propriedade privada da terra no Brasil que permanece até os dias de hoje, objetivando-

se em tornar a terra cativa57, na mesma proporção em que a escravidão no Brasil já estava em

período de extinção. Logo, o acesso à terra continuava sendo negado às camadas subalternas da

sociedade, e continuava sendo privilégio da elite agrária, como vemos até os dias de hoje.

[...] percebendo a inevitabilidade da libertação dos escravos, a Coroa tratou de

legislar o processo de posse, para que o acesso à terra fosse mais restrito,

assegurando a disponibilidade de mão-de-obra, já que os escravos libertos

deveriam permanecer nas fazendas como trabalhadores assalariados. Nessa

mesma época, na Europa, a tensão social agravava-se em decorrência da crise

verificada, sobretudo no campo, onde crescia o número de camponeses pobres ou

miseráveis compelidos a emigrar para a América, o que resolveria parcialmente

os problemas sociais naqueles países. Mas esses camponeses europeus tinham já

uma tradição de propriedade da terra e dificilmente seriam atraídos para a

América para se tornarem assalariados rurais. Foi dentro desse contexto que dom

Pedro II promulgou a Lei n°. 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a

primeira Lei de Terras, que definiu a forma como seria constituída a propriedade

privada no Brasil. Essa lei determinava que somente poderia ser considerado

proprietário da terra quem legalizasse sua propriedade nos cartórios, pagando

certa quantidade para a Coroa (STEDILE, 1998, p. 10-11).

Para Murillo Marx (apud Júlio César Suzuki, 2009, p. 01) ―[...] A Lei de Terras

estabeleceu como única forma possível de adquirir ou de transmitir a outrem que não os

57

―Num regime de terras livres, o trabalhador tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser

cativa‖ (MARTINS apud ALMEIDA; PAULINO, 2010, p. 15).

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100

herdeiros, a compra e a venda de terras‖. A partir desse momento, novas formas de ocupação do

espaço são novamente definidas. Se antes da Lei de Terras de 1850 o acesso a terra não se dava

por meio de compra, neste momento a posse e uso da terra passa, prioritariamente, a ser exercido

por meio da compra.

Neste contexto, para entender as novas redefinições territoriais de posse e uso da terra,

deve-se compreender a necessidade do pensamento moderno-colonial de ocupação dos ―espaços

vazios‖. O conceito ideológico de ―espaços vazios‖, demonstrado por Ligia Ozório Silva (2009)

também funda e justifica a constituição da propriedade privada da terra, como também demonstra

Lilya da Silva Guedes Galetti (2000). As representações do Mato Grosso pelos colonizadores

foram consolidadas nos mesmos moldes, o que garantiu sua ocupação. Para a autora:

[...] no que diz respeito à relação entre a presença indígena e o território destaca-

se um conjunto de representações que se pode considerar presente, em maior ou

menor medida, em todos os relatos analisados. Ressalte-se inicialmente que a

quantidade de índios em relação ao conjunto da população, sua dispersão

geográfica, seus hábitos e costumes selvagens, o modo como se relacionam com

a natureza faz com que amiúde sejam percebidos quase como um dado a mais da

paisagem natural e não apenas como um grupo populacional que se distingue

entre os demais habitantes do lugar.

Na caracterização de áreas geográficas distintas, por exemplo, a presença de

uma determinada sociedade indígena é um dado essencial, catalogada, sobretudo

quando se trata de áreas ainda indevassadas, à semelhança de um ―recurso

natural‖. Desse modo, em algumas narrativas a descrição de uma área comporta,

além do tipo de solo, espécies animais e vegetais, determinação do clima, relevo,

hidrografia, o grupo indígena que a habita, com informações variadas sobre seus

costumes e sugestões de como ―aproveitá-los‖ (GALETTI, 2000, p. 106-107).

É nesse outro indígena não reconhecido, bárbaro, selvagem, indolente... necessitando ser

civilizado, é que devemos considerar o princípio de privado. O sistema-mundo moderno-colonial

negou os direitos coletivos em favorecimento do individual. Detrimento de tempos múltiplos de

imaginação em favorecimento da racionalização/razão, pautado em uma relação desconectada

com a natureza e com os outros homens, a partir de ―um universalismo não-universal na medida

em que nega todo direito diferente do liberal, cuja sustentação está na propriedade individual‖.

Bartolomé Clavero apud Edgardo Lander (2005, p. 27), considera que:

[...] Locke no segundo Treatise of Government, elabora mais concretamente esse

direito como direito de propriedade, como propriedade privada, por uma razão

muito precisa. A propriedade, para ele, é fundamentalmente um direito de um

indivíduo sobre si mesmo. É um princípio de disposição pessoal, de liberdade

radical. E o direito de propriedade também pode sê-lo sobre essas coisas desde

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101

que resulte da própria disposição do indivíduo não apenas sobre si mesmo, mas

sobre a natureza, ocupando-a e nela trabalhando. É o direito subjetivo,

individual, que constitui, que deve assim constituir o direito objetivo social. A

ordem da sociedade terá de responder à faculdade do indivíduo. Não há direito

legítimo fora desta composição.

Portanto, a propriedade privada tem que ser pensada no tempo-espaço, na dicotomia do

homem diante da natureza e destes nas relações estabelecidas em uma sociedade dinâmica e

conflituosa. Devemos considerar que a constituição da propriedade privada da terra, assim como

tudo o que temos construído até hoje, a partir das diversas formas de fazer-se humanamente,

passa, necessariamente, pelo elemento primário, qual seja, a relação do ser humano com as

riquezas naturais. Esta relação engendra as mais diversas formas das gentes fazerem-se no

espaço-tempo.

Todavia, essa relação primitiva e inerente ao ser humano é transfigurada totalmente com

o advento do modo de produção capitalista. Com a instituição da terra como mercadoria e a

consequente expropriação das gentes, rompe-se a relação interdependente do homem com a

natureza, ou seja, dos seres humanos com os seus territórios. Em outras palavras: ocorre ―a

separação entre o trabalhador e a terra como seu laboratório natural, portanto a dissolução

tanto da pequena propriedade fundiária livre, quanto da propriedade fundiária coletiva‖

(MARX apud QUAINI, 1979, p. 87 – grifo nosso).

A imposição de temporalidades ―medidas‖, ―pesadas‖ e controladas pelo tempo do

relógio e da fábrica fordista-taylorista58

- do ―Time is Money‖, são influenciadas pelo poder das

ideias e das ideologias dominantes construídas como leis naturais, como é o caso da ideologia

dominante em torno do que entendemos ser privado e público. Nesse sentido, se institui na

sociedade uma única forma como sendo a possível de apropriação das riquezas naturais, pois as

58

No capitalismo existe sempre o desejo da intensificação das formas de exploração, uma dessas formas é por meio

da subordinação do tempo ao capital. O regime denominado de Fordismo-Taylorista tem como características

principais: rigidez, redução do tempo e fragmentação do trabalho. O taylorismo e o fordismo são sistemas que

introduzem pela primeira vez uma mudança na organização dos processos de trabalho, tendo em vista um aumento

da produtividade (DAL ROSSO, 2008). Este sistema predominou no século XX, principalmente, a partir da segunda

década, e se estabeleceu na grande indústria. Tinha como base ―[...] a produção em massa de mercadorias, que se

estruturava a partir de uma produção mais homogeneizada e enormemente verticalizada [...]‖ (ANTUNES, 1999, p.

36 - grifo do autor). Assim, a lógica era de ―[...] racionalizar ao máximo as operações realizadas pelos trabalhadores,

combatendo o ―desperdìcio‖ na produção, reduzindo o tempo e aumentando o ritmo de trabalho [...]‖ (ANTUNES,

1999, p. 36).

O taylorismo, enquanto proposta de administração científica do trabalho, pode ser considerado como uma forma de

reorganização do trabalho fora de um período de revolução tecnológica. Estas características aparecem, de maneira

muito bem ilustrada, no filme: Tempos Modernos, de Charles Chaplin, estreado em 1936, que é uma sátira à

sociedade industrial que faz o homem tornar-se simples ferramenta do processo produtivo. O trabalho repetitivo e o

controle sobre o tempo são marcas retratadas fielmente nesta obra cinematográfica.

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mesmas se transformam em mercadorias. E assim, passam a estar interligadas ao

desenvolvimento da sociedade capitalista, movidas e controladas pelo tempo-espaço do capital,

desconsiderando outras temporalidades-espacialidades, como as diversas formas em que as

sociedades baseadas em relações não capitalistas têm de se relacionar com a natureza e, assim,

produzir seus territórios/territorialidades fazendo-se gente por meio deles.

Para Edgardo Lander (2005, p. 22), a modernidade e o liberalismo/neoliberalismo

constituíram-se em detrimento de diversas outras formas de pensar o mundo, estabelecendo ―[...]

não apenas a ordem social desejável, mas também a única possìvel [...]‖. A razão, parte integrante

da sociedade moderna, se estabeleceu em todos os aspectos da vida humana, colocando em

‗xeque‘ a própria humanidade das gentes, delineadas no tempo da conquista, nas transformações

ocorrentes na Europa no final do século XV e início do século XVI.

Cabe ainda assinalar que esta lógica não só desterritorializou sociedades nativas, mas

impôs a elas outras redefinições territoriais. Determinado, muitas vezes, a diáspora que se

transforma em resistência. A mobilidade imposta, a saída, por vezes foi o único meio de ficarem

longe dos interesses eurocêntricos de posse-propriedade sobre seus territórios-terra (isto quando

não eram por eles escravizados e assassinados). Entretanto, muitas vezes, a diáspora foi parte de

um projeto civilizatório, que empunha entre outras coisas, o ir e vir destas sociedades. John

Manuel Monteiro (1994) assinala que a mão-de-obra escrava indígena no período colonial foi

umas das formas de imposição de novas territorialidades. Um exemplo desse processo, no enredo

dos conflitos entre bandeirantes e jesuítas, foi à caça aos índios para serem escravizados no

processo de formação/origem de São Paulo.

Contudo, o movimento do ―passado‖, com outras modalidades no avanço das frentes de

expansão, ainda vai impondo novas redefinições territoriais. Entretanto, impõe novas estratégias

de luta e de retorno (re-territorialização) aos territórios tradicionalmente ocupados. Assim, em

cada movimento de chegada e partida, fugidas do colonizador, estas sociedades indígenas foram,

em diferentes momentos, precariamente se territorializando.

O que estamos querendo dizer com tudo isso, é que a conquista europeia e seu arsenal

civilizatório criaram novas correlações de poder - geometrias do poder (MASSEY, 2008) para

limitar os modos de viver das sociedades nativas em seus espaços de vida e de morte. Porque o

modelo ocidental de viver, imbuído pelo sistema capitalista de produção vem desterritorializando

e, muitas vezes, extinguindo sociedades nativas inteiras. Contudo, ao mesmo tempo, as

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103

sociedades indígenas sobreviventes são o exemplo de que esta não foi a única história-geografia

possível. Estas sociedades recriaram possibilidades de territorialização não tipicamente

capitalistas. Devendo ser entendidas para além do discurso eurocêntrico da história-geografia que

buscou legitimar o ―descobrimento‖ do novo mundo como a história-geografia global de

descobertas, tendo em seu centro, a Europa. Como se somente esta pudesse ser a única história-

geografia possìvel. No entanto, repetindo e reafirmando as palavras de Doreen Massey, ―os

impérios não duram para sempre‖. Outras histórias-geografias, histórias-trajetórias

reconstruídas, redefinidas, repensadas...

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SEGUNDO CAPÍTULO

ORGANIZAÇÃO SOCIOTERRITORIAL GUARANI E KAIOWA NO

TEKOHA: ENTRE O TEKOYMA E TEKOPYAHU

―A gente vive a cultura, o Tekoha vive a cultura do índio. O nosso lugar é aqui,

no Tekoha‖.

Kaiowa Ñanderu Jorge

Reserva Indígena de Dourados- Jaguapirú, 2010.

―O Tekoyma é coisa dos antigo, é o ensinamento pra gente... num pode perdê a

cultura, num pode, porque antigamente é de um jeito e agora é de outro... Pra

isso tem contá a história, mostrá a cultura. Esse é nosso jeito de vivê, né? se

num passá, num falá isso daí, cultura perde, jove esquece isso daí... num pode

esquecê, tem que mostrá... (silêncio) é, tem que mostrá‖.

Kaiowa Ñandesy Floriza

Reserva Indígena de Dourados - Jaguapirú, 2011.

Neste capítulo, estaremos trabalhando com duas palavras na língua guarani que

expressam relações temporais-espaciais. A primeira, o Tekoyma, que significa o modo de vida

dos antigos e/ou dos antepassados; e a segunda, o Tekopyahu, que significa (a imposição) o novo

modo de viver. Estes modos de viver não estão divorciados dos lugares onde as relações

acontecem. O primeiro está relacionado ao modo de vida nos territórios tradicionalmente

ocupados – Tekoha, enquanto o segundo está relacionado ao modo de vida imposto pelo não

indígena, aparecendo constantemente à condição de viver na reserva.

Nas relações entre o Tekoyma e o Tekopyahu, os Guarani e Kaiowa traçam suas

histórias-trajetórias no mundo. O passado e o presente pela/na narrativa passam a se confundir, de

modo que o passado torna-se presente e o presente passa a se fazer pelo/no passado, buscando a

partir dele possibilidades de futuro nos preceitos do Teko Porã.

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Partimos do pressuposto de que toda mudança no espaço se faz de maneira

interdependente com as mudanças no tempo, e vice-versa. É a partir desta relação que buscamos

compreender as territorialidades vivenciadas pelos Guarani e Kaiowa em seus territórios

tradicionalmente ocupados – Tekoha, a partir das relações que estas sociedades exercem com o

passado, considerando que este passado torna-se referência em contraposição ao novo modo de

viver na RID. Sendo que esta racionalidade não pode ser entendida nos delineamentos ocidentais

de tempo-espaço.

Por meio da categoria geográfica de território, tentamos compreender a

multidimensionalidade do significado da palavra Tekoha para os Guarani e Kaiowa, que marca a

noção ―do meu lugar no mundo‖, o lugar onde é possível reproduzir o bom e correto modo de

viver, nos preceitos do modo de vida dos antigos – Tekoyma. Os laços simbólicos e materiais que

os Guarani e Kaiowa exercem com seus territórios tradicionalmente ocupados, nos possibilitam

traçar a multiterritorialidade vivida por estas sociedades no espaço-tempo, entre o Tekoyma e o

Tekopyahu, nas relações socioterritoriais que envolvem relações com o natural e o sobrenatural

(neste caso, com os Jará – os donos de tudo).

2.1 – A relação espaço-temporal entre os Guarani e Kaiowa

―Antigamente, naquele tempo, na época do vovô e da vovó, os nossos antepassados, faz

tempo aquele lá...‖ Termos que marcam e demarcam no presente o tempo passado na/da memória

e oralidade Guarani e Kaiowa, recriando o passado no presente e também fazendo do passado-

presente possibilidade de futuro. Nesta relação espaço-temporal é considerável que o passado,

presente e futuro são construções e invenções sociais que permite a orientação e localização dos

sujeitos no tempo, mas também, como afirma Norbert Elias (1998, p. 15), o tempo é sobretudo

muito mais que isso, ―[...] ele é também uma instituição cujo caráter varia conforme o estágio de

desenvolvimento atingido pelas sociedades. O indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os

sinais temporais usados em sua sociedade e a orientar sua conduta em função deles‖.

Assim, a partir do autor, é possível conceber que as temporalidades não são vividas da

mesma forma em todas as sociedades e que nem todas têm no controle do relógio e do calendário

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as formas de perceber a realidade em que vivem, viveram ou poderão viver. Sendo assim,

podemos considerar, de forma geral, que o tempo-espaço métrico-cartesiano marcado e

delimitado é uma necessidade da sociedade ocidental que visa controlar as transformações

ocorrentes nas relações naturais e sociais, tendo em vista que ―time is money‖ na sociedade

moderna-capitalista-ocidental. Isto porque, nesta sociedade, a relação espaço-tempo não aparece

de maneira interdependente, mas dissociados entre si, como se fosse possível pensar o espaço

sem o tempo e/ou vice versa (como já assinalamos no primeiro capítulo). O que é perceptível na

sociedade dominante, é a des-historicidade do espaço, mas também, a des-espacialidade da

história, como demonstram Rogério Haesbaert (2007) e Doreen Massey (2008).

Estes questionamentos estão entrelaçados na lógica capitalista de produção, atendo-se ao

tempo da ―contabilização‖ do controle da vida social de homens e mulheres e da natureza em

segundos e minutos. Ideologicamente o que está em voga nos discursos homogeneizantes e

globais da civilização eurocêntrica moderna-colonial é, de certa forma, como se o espaço

estivesse sendo suprimido pelo tempo, desconsiderando que o espaço ―[...] não desaparece, mas

muda de ―localização‖, ou melhor, adquire outro sentido relacional. O que antes fazia parte de

um aqui e agora conjugado (―encaixado‖, diria Giddens) passa a se dissociar espacialmente (se

―distanciar‖ ou ―se alongar‖, ainda nos termos de Giddens) [...]‖ (HAESBAERT, 2007, p. 156).

Ainda, nesta discussão, a partir de Jones Dari Goettert (2011, p. 219), no que se remete aos

―deslocamentos‖ espaciais no tempo, podemos dizer que o espaço ―[...] é, também, uma

invenção; ou uma reinvenção a cada tempo; os jeitos de como as gentes se produzem e se

inventam espacialmente‖ e, assim, fazendo-se geograficamente.

Podemos dizer que a configuração espaço-tempo está correlacionada e interdependente

entre si, por isso, o controle sobre a sociedade e a natureza passam pelos mais diversos

ajustamentos sociais de condutas, como, as relações com/sobre o corpo, intrínseco a um conjunto

de normas e regras que envolvem modos de pensar, falar, comer, jeitos e gestos das gentes no

espaço-tempo, seja no/pelo controle do corpo a partir dos outros - ―imposição externa‖

(sociogênese) e/ou o autocontrole de cada homem e mulher sobre seu corpo (psicogênese)

(ELIAS, 1999).

Considerando que estas relações não são opostas e não podem ser desvinculadas, o

autocontrole sobre o corpo é o principal meio de controle social, onde os meios de coerção são

criados e recriados substancialmente pelas/nas relações com o corpo do ―nós-eu‖, ou seja, ―todo o

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aparelho que modela o indivíduo, o modo de operação das exigências e proibições sociais que lhe

moldam a constituição social e, acima de tudo, os tipos de medos que desempenham um papel em

sua vida‖ (ELIAS, 1994, p. 17).

Neste sentido, pensando as relações com o corpo no espaço-tempo, Graciela Cândida

Chamorro (2009) demonstra as relações e transformações do corpo nos conflitos entre o modo de

vida dos antigos (Tekoyma) Guarani e Kaiowa e o ―novo‖ modo de vida (Tekopyahu), no

contexto das missões jesuíticas, destacando a dualidade e também a complementaridade destes

dois modos de viver. Considera que as relações e transformações do corpo são fundamentais para

entendermos o movimento das sociedades no espaço-tempo que, ao mesmo tempo em que se

movimenta redefinindo as espacialidades-temporalidades, também se redefinem.

Pensando as novas formas de relacionar com o corpo no espaço-tempo, o processo

civilizador jesuítico (reduções), passam a redefinir novas formas de fazer-se humanamente

pelo/com os sentidos do corpo, demonstrando as oposições e imposições entre ―[...] nuevo versus

viejo, alma versus corpo, hombre versus mujer, monogamia versus poligamia, partes nobles des

cuerpo versus partes plebeyas, caritas versus eros‖ (CHAMORRO, 2009, p. 332).

Os apontamentos de Graciela Cândida Chamorro (2009) nos permitem pensar que nas

relações com o corpo estão imbricadas as mudanças das sociedades, já aqui mudanças de

temporalidades e espacialidades nos modos de vida Guarani e Kaiowa, pois as mudanças em

relacionar-se com o corpo, não estão fora das imposições de novas territorialidades.

Isto quer dizer que, ―consideremos a relação entre o espaço e o tempo, estando os dois

infinitos simultâneos e atuais se diferenciam e se cruzam na representação. Cada um se representa

no outro e somente se representa através desse outro‖ (LEFEBVRE apud SANTOS, 2002, p.26-

27). Neste contexto, é considerável que nas relações espaços-temporais entre o Tekoyma e o

Tekopyahu, demonstrem que nem todas estas relações são passíveis de periodização, pois as

relações entre o passado e presente, entre o antigo e o novo, se fazem interdependentes entre si.

O tempo e o espaço cartesianos inerentes ao sistema-mundo moderno-colonial não são o

único modo de pensar as mudanças espaciais-temporais. Nem todas as sociedades têm uma

relação ―datada‖ e cronometrada passìvel de serem dividas entre ―antes‖ e ―depois‖ e/ou

quantificadas por segundos e minutos. Norbert Elias (1998, p.34) contribui para a reflexão,

considerando que ―a experiência humana do que chamamos ―tempo‖ modificou-se ao longo do

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passado, e continua a se modificar em nossos dias, não de um modo histórico e contingente, mas

de modo estruturado, orientado, e como tal, passìvel de explicação‖.

Nesta perspectiva, podemos dizer que o tempo e o espaço, tal qual como nos orientamos

no mundo, é algo que se desenvolveu em relação a determinadas intenções e a tarefas específicas

dos homens. Nos dias atuais, é um instrumento de orientação indispensável para realizarmos uma

multiplicidade de tarefas variadas, tais como: comer, trabalhar, dormir, namorar, descansar, entre

outras atividades, sendo a expressão de que o tempo-espaço tornou-se ―a representação simbólica

de uma vasta rede de relações que reúnem diversas sequencias de caráter individual, social ou

puramente fìsico‖ (ELIAS, 1998, p. 17).

Em suma, as relações espaços-temporais estão correlacionadas às transformações no

modo de vida Guarani e Kaiowa, contudo, não se fazem no espaço-tempo linear, tal qual a

sociedade ocidental. Stuart Hall (2009, p.29) argumenta que ―A história, como a flecha do

Tempo, é sucessiva, senão linear. A estrutura narrativa dos mitos é cíclica. Mas dentro da

história, seu significado é frequentemente transformado‖. Desta maneira, entendemos que as

representações espaço-temporais do passado e do presente se fazem interconectadas e

interdependentes, ou seja, estão em trânsito59. Por isso, se fundem e se confundem nas narrativas,

podendo-se considerar como ―atual‖ algo ocorrente e presente no modo de vida, acontecimentos

que sejam do passado.

Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (2009, p.220-221) assinalam que:

Entre povos indígenas sul-americanos, antropólogos dificilmente conseguem

fazer diagramas de parentesco indicando mais de cinco gerações acima da

geração a que pertence o indivíduo de referência, denominado ego (―eu‖ em

latim). Isto porque os sistemas sociais, em geral, se articulam a partir de pouca

profundidade genealógica, já que a ênfase no campo do parentesco é dada às

relações de lateralidade. Não é de se estranhar, portanto, que a memória coletiva

dos Kaiowa possa recuar até em torno de uns 150 anos, haja vista que uma

geração tem em média de 20 a 25 anos. O que vai além dessa cronologia está no

campo do imemorial e sua interpretação exige muita habilidade etnográfica e

etnológica. No caso específico das comunidades Kaiowa, o tempo imemorial é

denominado yma guare [e/ou tekoyma] ou ―tempo dos antigos‖, uma categoria

nativa de dimensão temporal vasta, que incorpora os antepassados reais e

míticos.

59

Poderíamos pensar esta relação de transitar por vários tempos de maneira interdependente, fazendo alusão a

mesma interação que ocorre com os territórios, de multitemporalidade, já que espaço-tempo são elementos

indissociáveis da realidade.

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109

A narrativa, segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2007, p. 43), é ―a forma

através da qual constroem a própria noção de temporalidade e, portanto, articulam o próprio

passado e seus eventos‖. Pode-se dizer, que no caso dos Guarani e Kaiowa a memória possibilita

acessar e/ou mesmo transitar por outras espacialidades, onde o Tekoyma aparece representando o

tempo daqueles que já morreram e/ou mesmo das pessoas mais velhas que viveram no Tekoha.

Pela oralidade, na memória que é ―ativada‖ no ato de relembrar o passado e/ou re-

inventá-lo60

, é que se reproduz a cultura para aqueles que nunca materialmente lá estiveram,

tornando-se, assim, um importante meio de vivenciar o tempo dos antigos, de vivenciá-lo por

meio da narrativa, que, por sua vez, proporciona a construção de identidades (vide quinto capítulo

sobre as estratégias de luta nos acampamentos).

Neste sentido, o Tekoyma e Tekopyahu aparecem imbricados um ao outro,

principalmente quando o primeiro, pela memória, torna-se um meio de retorno ao modo de vida

dos antigos. Esse retorno só é possível a partir das novas relações em que estão inseridos, em

linhas gerais, a partir do espaço-tempo em que hoje vivem. No entanto, as novas modalidades de

territorialização têm demonstrado estarem distantes da realidade vivida nos dias atuais,

comparando-se ao modo de vida dos antigos – Tekoyma. Pois, as novas modalidades de

territorialização são: a condição de reserva, nos acampamentos de retomadas de territórios

tradicionalmente ocupados, como índios de fazendas e de cidades, enfim, formas de

territorialização precária (vide terceiro, quarto e quinto capítulo), que se fazem recriando relações

do ―passado‖, como espaços de morada, de caça, de mata, de encontros e desencontros, de festas,

de conflitos... De acordo com Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2007, p. 72), essas relações

são construídas pela memória, necessariamente, porque,

[...] as histórias são escritas [e faladas] do ponto de vista dos homens,

mergulhados em seu cotidiano, pressentindo que fazem parte de algo mais

60

Considerando que não há somente uma narrativa possível, ou seja, uma única forma de contar a história – os fatos

do passado, cabe-nos dizer que o passado em sua narrativa dominante não considerou as histórias-trajetórias dos

―homens simples‖ (MARTINS, 2000) e/ou mesmo dos subalternos. No caso das sociedades indìgenas em Mato

Grosso do Sul, a história dominante, do desbravamento e da colonização do estado, não é a versão indígena. Assim,

concordamos com Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2007, p. 61) que considera ―[...] o passado como uma

invenção, de que fizeram parte sucessivas camadas de discursos e práticas. Percebemos o passado como um abismo

que não se para de cavar; quanto mais queremos nos aproximar dele, mais nos afastamos. Damos conta de que a

História não está serviço da memória, de sua salvação, mas está, sim, a serviço do esquecimento. Ela está sempre

pronta a desmanchar uma imagem do passado que já tenha sido produzida, institucionalizada, cristalizada. Inventado,

a partir do presente, o passado só adquire sentido na relação com este presente que passa, portanto, ele enuncia já a

sua morte prematura. Como diz Nietzsche, a História só pode ser suportada por personalidades fortes, porque, ao

falar de nossa finitude e da finitude de todas as coisas, ela está falando é da morte‖.

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grandioso, que são peças em uma engrenagem social complexa, problemática,

conflitiva, de que só pode divisar contornos parciais, de que só se pode conhecer

verdades interessadas e relativas a tempos, lugares e contextos.

Desse modo, os Guarani e Kaiowa só podem narrar a partir do Tekopyahu, só podem

dizer quem são e quem foram os seus antepassados, a partir do ―aqui e agora‖ e, se suas

narrativas se fazem no trânsito de entre-lugares, ou melhor, entre Tekoyma e Tekopyahu, esta

condição é visìvel na ―confusão‖ de narrativas que faz do passado, o presente, quando pela

oralidade constroem suas ―histórias-trajetórias‖.

O passado-presente segue complementando-se um ao outro, demonstrando as relações

de interdependência entre si. A partir de Norbert Elias (1998, p.33) podemos considerar que

―Muitos fatos atestam que os homens [também as mulheres] nem sempre aprenderam as

seqüências de acontecimentos sob a forma que hoje representamos, simbolicamente, com o

conceito de ―tempo‖‖, tendo em vista que as relações espaços-temporais não são um dado a

priori.

É necessário ressaltar que entre o Tekoyma e o Tekopyahu há a representatividade do

fazer-se Guarani e Kaiowa, tendo em vista que fazer-se é, como escreveu Jones Dari Goettert

(2008) pensando a identidade gaúcha ―fora‖ (mas, também de quem ficou) do Rio Grande Sul,

uma forma de mostrar-se. Tendo em vista que ao fazê-lo estão implícitos, concomitantemente,

processos de auto-identificação e identificação-diferenciação de outrem.

A partir das palavras do autor: ―Fazer-se que é também desfazer-se, refazer-se. Dos

sujeitos, dos lugares e de seus jeitos‖ (GOETTERT, 2008, p. 30). Fazer-se que não está

desconectado do movimento dos gestos corporais, dos olhares, da narrativa pronunciada pela

boca que fala e ―omite‖, reivindicando sonhos, retornando ao passado, vivendo o presente,

sonhando com o futuro, inertes nas imaginações, pensamentos...

O fazer-se Guarani e Kaiowa se dá no ―trânsito‖ entre passado-presente-futuro de forma

não linear. Entre passado-presente e as possibilidades de futuro, é notório a confusão das/nas

temporalidades-espacialidades indígenas. A Kaiowa Ñandesy61 Floriza (esposa do Ñanderu

Jorge) ao exemplificar que ―Nóis já não é como nós, não. [...] Antigamente é muito arrastado62,

não dá pra entender, a gente mêmo aqui num entende‖, permite entender que a mudança é

61

A priori consideramos a palavra guarani Ñandesy referente a rezadora. 62

Está referindo-se ao modo de falar dos Kaiowa, assinalando que antigamente, comparado com os modos de falar

hoje, no passado, a língua é muito mais arrastado, pode-se dizer ―pesada‖.

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sempre necessária a partir de contextos em que as gentes estão inseridas. Talvez, esta expressão

de uma Kaiowa ―tradicional‖ possibilite uma aproximação ao que Stuart Hall (2009, p. 80)

assinala, que ―todos nós nos originamos e falamos a partir de ―algum lugar‖: somos localizados –

e neste sentido até os mais ―modernos‖ carregam traços de uma ―etnia‖ [do passado]‖. O mesmo

autor ainda assinala que, ―Como Laclau argumenta, parafraseando Derrida, nós só podemos

pensar ―dentro de uma tradição‖ (HALL, 2009, p. 80).

Partindo da premissa de que os Guarani e Kaiowa só podem pensar ―dentro de uma

tradição‖, logo, de um modo de vida, compreendemos por tradição um conjunto de relações

sociais, fazendo-se na reprodução e recriação dos aspectos culturais comuns de uma sociedade.

Como salientam Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1997, p. 10), a tradição tem:

[...] a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar

até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve

parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer

mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente,

continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. [...] O

―costume‖ não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim

nem mesmo nas sociedades tradicionais.

Portanto, a tradição exerce sempre a condição de ser reinventada pelas gentes ao

cruzarem a fronteira que permite o encontro com o outro, que, por sua vez, delineia novos

costumes e tradições, outras maneiras de fazer-se homem, mulher, indígena, camponês,

quilombola... Pode-se dizer que os homens e mulheres do mundo criam e recriam múltiplas

formas de explicar seus jeitos, gestos e gostos, explicando-as em um conjunto de formas, normas

e regras comportamentais de viver de uma sociedade frente à outra. Neste desdobramento, Jones

Dari Goettert (2006, p. 17) elucida que ―as mulheres e homens inventaram mitos para dizer como

tudo foi inventado. Inclusive as mulheres e os homens‖.

Nesta invenção, criação e recriação, pensamos a fronteira como uma relação de

encontro, mas também, de desencontro com o outro. Todavia, que permite a remodelação das

tradições, e a reconstrução da(s) identidade(s), a partir dos marcadores de diferenciação que

possibilitam a criação e invenção do outro (e das tradições) no/pelo contato, logo, no movimento

da sociedade (HOBSBAWN; RANGER, 1997).

Nesta perspectiva, primeiramente, devemos considerar a multiplicidade do fazer e ser

Guarani e Kaiowa tendo no modo de vida dos antigos - Tekoyma, a necessidade de sua

reprodução-reinvenção das tradições, em que passado-presente é demonstrado pela/na geografia

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da memória e/ou, poderíamos dizer, na memória da geografia, como participantes de uma nova

realidade em que estão inseridos - Tekopyahu.

O que denominamos de geografia da memória, e/ou memória da geografia, está

relacionado às ―histórias-trajetórias‖ de vida das gentes, no caso dos Guarani e Kaiowa, na

―conexão‖ entre passado-presente pela/na oralidade, pelas marcas deixadas no corpo, pelos

lugares-territórios vividos que já não são os mesmos, fazendo-se presentes na/pela memória.

Logo, como assinala Jones Dari Goettert (2008, p. 77) ―responder, discorrer, comentar, falar e

narrar, sobre as trajetórias, as vivências e as experiências [...] requer o trabalho de lembrar‖.

Pensando as conexões dos Guarani e Kaiowa nas relações com o passado, relembrar

permite o estabelecimento das identidades com os lugares-territórios, tornando também possível,

no presente, o futuro pelo passado.

[...] entre portadores da fala e lugares, não deixa de indicar que as próprias

identidades e suas reconstruções se materializam como identidades e

reconstruções dentre possíveis outras identidades e reconstruções. [...].

[...] as possibilidades de futuro de quem fala participam da reconstrução das

identidades com os lugares do passado ou do presente, numa inconteste relação

entre lugares e tempos.

As mulheres e homens que falam são comuns, assim também o são os lugares

nos quais falam. Lugares comuns. Sujeitos e lugares comuns que se cruzam sem,

no entanto, se dissiparem. Há pessoas nos lugares e lugares nas pessoas, ambos

se produzindo e se reproduzindo no ladrilhar de pedaços de lugares, de jeitos e

de sujeitos. Por meio desses lugares comuns constroem lugares de identidade,

que se fazem de lugares próximos e de lugares distantes. Por entre esses

pequenos lugares – partes de um lugar maior – falam de suas vidas, de suas

saídas e chegadas, dos tropeços e sucessos, dos trabalhos e da família – dos de

cá e dos de lá (GOETTERT, 2008, p. 75 - grifo nosso).

O passado pode ser ainda pensado, como simplificou Cazuza na música ―O tempo não

pára‖, como possibilidade de ―retorno‖. No caso dos Guarani e Kaiowa, no contexto daqueles

que querem retornar aos territórios tradicionalmente ocupados, a interlocução entre passado-

presente se faz nos/pelos sonhos de que o futuro possa ―repetir o passado‖, logo, no retorno aos

lugares-territórios. Talvez, essa linearidade cíclica, não relacionando com o que quis dizer

Cazuza criticando a sociedade conservadora, na forma de imaginar melhores formas de viver na

―repetição dos fatos‖, se faz no sonho futuro de retorno aos territórios tradicionalmente ocupados,

mesmo que esta possibilidade fique restringida pela memória e oralidade, na necessidade de ―não

esquecer a cultura‖ como sempre consideram os Ñanderu e Ñandesy da RID.

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O passado, no presente, é sempre uma relação mutável. Assim, reviver o passado no

presente tem na memória uma das possibilidades. Esse retorno é sempre recolocado, havendo

sempre novas reinterpretações do mesmo ―fato‖, pois que o passado nunca é o mesmo. Como

movimento das gentes, o passado é sempre reformulado no tempo presente e, se partimos do

pressuposto de que a sociedade é movimento, o retorno torna-se possível pela memória,

proporcionando o reviver das geografias-históricas do passado, tornando-as presente no espaço-

tempo em que elas são ―proferidas‖. Em aproximação, Norbert Elias (1998, p.33) demonstra que:

[...] a percepção de eventos que se produzem ―sucedendo-se no tempo‖

pressupõe, com efeito, existirem no mundo seres que sejam capazes, como os

homens, de identificar em sua memória acontecimentos passados, e de construir

mentalmente uma imagem que os associe a outros acontecimentos mais recentes,

ou que estejam em curso. Em outras palavras, a percepção do tempo exige

centros de perspectiva – os seres humanos – capazes de elaborar uma imagem

mental em que eventos sucessivos, A, B e C, estejam presentes em conjunto,

embora sejam, claramente reconhecidos como não simultâneos.

O passado é vivido pela memória, tendo na oralidade um meio consequente de retorno às

relações espaço-tempo do modo de vida dos antigos – Tekoyma - interligada ao ―novo‖ modo de

vida - Tekopyahu - do presente. Estas relações estão em contínuo vir-a-ser, tendo em vista que o

modo antigo de viver dos antigos é transformado pelo ―novo‖, o ―novo‖ transformado e

transformando-se pelo antigo, e pela narrativa, no ato humano de falar, torna-se possível

relembrar, retornar ao passado.

Nesta correlação de contínuo vir a ser, as sociedades estão mudando-transformando-se,

muitas vezes buscando na mudança a continuidade de sua existência. Assim, é considerável que a

identidade Guarani e Kaiowa, nos laços com os territórios tradicionalmente ocupados, seja um

dos exemplos que muitas vezes pode-se mudar (o passado no presente) para continuarem ―sendo

os mesmos‖.

Partindo do princìpio de que o passado é mutável pelo presente, ser uma ―determinada‖

gente se faz sendo no ―aqui e agora‖. Por isso, os Guarani e Kaiowa ao retornarem ao passado, só

conseguem fazê-lo a partir do que constituíram no presente, tendo em vista que seus anseios pelo

futuro não se fazem desconectados desta relação.

O tempo transforma algumas ações e reações, e tendo clareza sobre o movimento

espaço-temporal, os Guarani e Kaiowa demonstram ter um medo enorme de ―perder a cultura‖ 63.

63

Expressão frequente entre os Ñanderu e Ñandesy da RID.

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Esta perspectiva de análise faz-se também pela narrativa do Kaiowa Ñanderu Jorge (2010a) ao

assinalar que ―é que a gente fica contente né, como você, é bom a gente contá uma história, pá

num tá sabendo mais essa história [refere - se aos jovens]. Então, vai indo por ai, acaba que eu

tava falando, acaba a cultura. [...] é assim, os gurizada tem que orientá, senão perde a cultura‖.

Neste contexto, para Jones Dari Goettert (1999, p. 350), pensando a migração de

gaúchas e gaúchos a partir das representações dos lugares deixados, o Rio Grande do Sul, percebe

que ―a fala é a produção de uma comunicação que se desenrola em informações [...]. Compõem

nesse sentido, partes da própria vida dos que falam – narram –, dos lugares partes da vida de

quem partiu. Falar sobre os lugares e sobre as gentes – em especial daqueles que partiram – é, de

uma ou de outra forma, falar de partes da própria vida [...]‖.

A fala possibilita fazer, do passado, o presente, pela memória. Na fala não está

somente ―a palavra que sai da boca‖, estão os olhos, os risos e gargalhadas, a tristeza, a lágrima e

os mínimos gestos, jeitos e expressões do falar. Estão também o mundo-lugar em latidos de

cachorro, as brincadeiras, choros e risos de crianças, sopros de vento, barulhos de chuva e sol

―fervente‖. Ainda, estão às casas de sapé, barracos de lona, casas de alvenaria entre terras, matas,

animais e rios. Juntamente com eles estão às gentes que falam e as que não falam, mas observam.

Estão as rezas, os cânticos, os barulhos de rádio, carros, entre outros barulhos múltiplos que

fazem parte do ato de falar e do silenciamento. Ainda estão na narrativa, no ato de falar, os

sonhos e os medos da vida cotidiana64.

Nesse contexto, as territorialidades vividas no Tekoyma, considerado pelo Kaiowa

Ñanderu Jorge, é uma das ―forma de mostrá a cultura, de passá aquele lá. É mostrá né, mostrá

como vivia o vovó, vovô, a mamãe, pai dele lá, tudo lá... A gente lembra daquele lá, num pode

esquecê... [...] num pode esquecê o nosso lugar, tem que passá [...]‖. Diante de silenciamentos e

nostalgias ao falar do tempo dos antigos, a narrativa de Jorge, assim como da maioria dos

rezadores, se faz na necessidade de relembrar para não se esquecer do passado. Nas palavras da

Ñandesy Floriza (2010), relembrar é necessário, porque ―[...] passa a palavra, pra palavra num

perdê, tem que regatá (resgatar), tem que falar isso daí (silêncio)‖.

64

Essas relações foram sentidas e vividas durante os encontros com os Guarani e Kaiowa. Tentamos aqui, descrever

alguns momentos que nos foram marcados, para que os leitores não sintam só as palavras ditas, mas possam

imaginar o contexto em que elas foram proferidas, muitas vezes, omitidas e silenciadas, minimamente visualizando o

―não dito‖.

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Neste sentido, podemos dizer que nas fronteiras entre o modo e vida dos antepassados -

Tekoyma, e o novo modo de vida - Tekopyahu, estas se fazem redefinindo um ao outro, no

conjunto de ações e reações em que os Guarani e Kaiowa estabeleceram e estabelecem entre os

territórios e territorialidades que viveram e vivem. Pela narrativa há a possibilidade de retornar e

reviver o modo de vida dos antigos, vivenciando e ampliando suas multiterritorialidades65

, ao

mesmo tempo em que ocorre a ampliação das multitemporalidades66.

Logo, é essencial entendermos que a territorialidade exercida pela narrativa no

Tekopyahu, encontra-se e desencontra-se com as condições socioterritoriais vivida pelos antigos.

Entender os novos reordenamentos territoriais inerentes ao novo modo de vida, (demonstrado no

capítulo terceiro, quarto e quinto), só é possível se compreendermos minimamente as

territorialidades existentes no Tekoha.

65

No decorrer do trabalho discutiremos nosso entendimento de multiterritorialidade. Todavia, podemos dizer a partir

de Rogério Haesbaert (2005, p. 6774) que ―[...] Multiterritorialidade aparece como uma resposta a esse processo

identificado por muitos como ―desterritorialização‖: mais do que a perda ou o desaparecimento dos territórios,

propomos discutir a complexidade dos processos de (re) territorialização em que estamos envolvidos, construindo

territórios muito mais múltiplos [...]‖. 66

Se os mesmos transitam por diversos tempos-espaços da memória, temos de maneira interdependente

multitemporalidades e multiterritorialidades imbricadas no processo, já que espaço-tempo são elementos

indissociáveis.

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2.2 – O território como categoria geográfica e como subsídio para compreender o Tekoha

―No Tekoha é assim, é diferente daqui [referente a RID]. É lindo aquele lá, tem

bicho, cará de tudo cor, é coisa mais linda. É assim. [...] Tinha água linda lá, o

índio memo fica cada um numa cabicera, né, ali vive bem, num tem briga, num

mora perto do outro. O índio de verdade num sabe isso daí. Quê fica longe...

[...]. é assim desse jeito, aqui nói vive [referente a RID], mas lá, no Iguarussu

[Tekoha], é bom memo... tá tudo junto lá.... antigamente é assim, se casa com

uma pessoa aqui, muié ou homem mesmo, muda pra cá, ai vai mudando... Vou

explicá melhor, se o guri casa com uma muié da Panambizinho, muda pra cá, ai

os filho casa, muda pra lá... ai vai, é assim antigamente, igual festa, vai

acontecê uma festa [...] ai andando, andando, chamando o pessoal... [...]. O

Tekoha é o lugar do índio, é o lugar memo do Kaiowa de verdadeiro...‖.

Kaiowa Ñanderu Jorge

Reserva Indígena de Dourados, Jaguapirú, 2010.

Na narrativa do Kaiowa Ñanderu Jorge, ele sinaliza, na organização socioterritorial no

Tekoha do Iguarussu, o seguinte: ―[...] água muito grandão, Iguarussu é onde o pessoal pegava

água aquela época, ai o pessoal colocaram o nome dele, depois os brancos colocaro o nome de

sardinha, mas antigamente memo é o Iguarussu‖. Pode-se dizer que a nomeação dos lugares se

dava de acordo com os aspectos naturais presentes no espaço geográfico em que estes se

apropriavam, transformando-os, portanto, em um território Kaiowa.

O Iguarussu é referente ao Córrego Sardinha, onde o curso de água natural representa o

modo de vida deste grupo. Compondo, assim, significados para com o lugar a partir das relações

entre homem e natureza. A nomeação do Tekoha como Iguarussu é a representatividade da

importância dos elementos naturais do território, sobretudo da água, para esta sociedade. Outra

forma de nomeação dos lugares se fazia a partir do nome de um grande líder religioso – Ñanderu

e Ñandesy.

A partir dos laços com o Tekoha, considerando-o enquanto um território, é que se

constrói a identidade dos Guarani e Kaiowa. Dialeticamente, a identificação com os lugares

vividos são gerados a partir do processo de apropriação dos espaços que, por sua vez, são

territorializados por estas sociedades que constroem, nestes espaços, seus territórios - Tekoha.

Primeiramente, consideramos que o conceito e/ou categoria geográfica de território não explica

toda a complexidade existente no modo de vida destas sociedades, todavia, dentre os conceitos

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científicos, o território apresenta-se como o principal meio de considerar os aspectos

fundamentais inerentes ao Tekoha, com todos os seus significados expressos na língua guarani.

No que concerne ao significado da palavra Tekoha na língua guarani, esta deve ser

localizada espacial e historicamente no avanço das frentes de expansão não indígenas,

principalmente a partir da década de 1970, criando a necessidade dos Guarani e Kaiowa (também

Mbya) referenciarem primordialmente os territórios tradicionalmente ocupados como Tekoha.

Esta consideração é encontrada nos trabalhos de Fabio Mura (2006), Fabio Mura e Rubem Tomaz

de Almeida (2002) e Alexandra Barbosa da Silva (2007), ao sinalizarem que seu uso é também

político. É também usado como forma de identificar e buscar demonstrar as diferentes realidades

vividas no Tekoyma comparando-o ao Tekopyahu.

Assim, se antes da chegada dos não indígenas não havia necessidade de se pontuar os

lugares ocupados e vividos, embora estas relações de pertencimento existissem no bojo das redes

sociais, com a chegada dos ―brancos‖, os territórios tradicionalmente ocupados passam a sofrer

redefinições, culminando na desterritorialização dos Guarani e Kaiowa e no reordenamento de

novas territorialidades. É neste contexto que aparece a condição de reserva, uma territorialização

imposta marcada pela expressão Teko Vai, referente ao modo incorreto de viver (discutiremos a

condição de reserva no terceiro capítulo).

Por outro lado, a palavra Tekoha traz a representatividade do Teko Porã. Assim, a

palavra guarani Teko, traz a representatividade de um modo de vida que pode ou não se

reproduzir corretamente, por isso é necessário considerar as espacialidades vividas Guarani e

Kaiowa, pois as condições territoriais podem ou não possibilitar a reprodução do Teko Porã.

A partir de Levi Marques Pereira (1999; 2004) a junção das palavras Teko + Ha é a

exemplificação de que Sem Tekoha não há Teko67, mas também que Sem Teko, não há Tekoha.

Considerando, então, o Teko como um modo de vida e o Tekoha a espacialidade geográfica de

sua atuação corporificada pelo sufixo Ha, indicando a ação em que o modo de vida se realiza. O

Tekoha é a exemplificação de que o Teko se faz em articulação com todas as relações que fazem

parte do universo Guarani e Kaiowa, como elucidam Bartomeu Melià, Georg Grunberg e Frield

Grunberg (2008). Para Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (2009, p. 52),

67

O autor faz essa consideração a partir do trabalho de Francisco Silva Noelli (1993) que, utiliza esta prerrogativa a

partir de Bartomeu Melià, utilizando como parte do tìtulo de dissertação de mestrado ―SEM TEKOHA NÃO HÁ

TEKÓ: em Busca de um Modelo Etnoarqueológico da Aldeia e da Subsistência Guarani e sua Aplicação a uma Área

de Domínio no Delta do Rio Jacuí-RS.

.

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No sistema de comunicação linguístico das comunidades Kaiowa atuais, tekoha

seria mais bem descrito da seguinte maneira: lugar ou espaço geográfico – já

que a ênfase atual recai sobre a terra, por ela ter se constituído no principal fator

limitante para a realização do modo de ser – que reúne as condições ambientais

para realizar o sistema cultural que define seu modo de ser. Grande importância

é dada ainda à ligação histórica da comunidade com o espaço e aos vínculos de

natureza afetiva e religiosa. Isto explica o porquê dos Kaiowa não reivindicam

quaisquer terras, mas especificamente aquelas às quais se reconhecem ligados

pela existência dos vínculos retro apontados.

Embasando-se nas considerações dos autores acima, nossa compreensão em torno da

palavra guarani Tekoha se faz considerando todas as esferas do modo de vida Guarani e Kaiowa

relacionados com a base territorial que permite a reprodução do bom modo de viver. Em relação

a esta condição de viver no Tekoha nas bases do Teko Porã, o Kaiowa Ñanderu Jorge (2009)

relata que ―lá no Tekoha é alegria, tem muito bicho, cará, quati... mais tem muita coisa memo.

Muita coisa‖.

Desta forma, o Tekoha segue representando o modo de vida Guarani e Kaiowa pautado

no Tekoyma, e que estas relações passam fundamentalmente pela recriação de um modo de viver,

uma cultura. Nas palavras de Joel Bonnemaison e Vanuatu Orstom (2002, p.86) considerando as

identificações das gentes com os territórios, salientam que esta relação,

[...] é rica de significados porque é tida como um tipo de resposta, no plano

ideológico e espiritual, ao problema de existir coletivamente num determinado

ambiente natural, num espaço e numa conjuntura histórica econômica colocada

em causa a cada geração. Por isso, o cultural aparece como a face oculta da

realidade: ele é, ao mesmo tempo, herança e projeto; e, nos dois casos,

confrontação com uma realidade histórica que às vezes o esconde

(especialmente quando os problemas de sobrevivência têm primazia sobre todos

os outros), outras o revela.

A cultura como uma visão de mundo, é também reproduzida pelas relações que

envolvem a(s) sociedade(s) com a natureza. Os laços simbólicos com o território estão

relacionados à sua geografia, com uma diversidade de espacialidades que possibilitam a

reprodução de diversos modos de viver. O território possibilita a criação da identidade do grupo

aos lugares-territórios vividos, no sentido de que esta identidade torna-se uma identidade cultural,

ao mesmo tempo em que é, inseparavelmente, uma identidade territorial. Assim, pode-se dizer

que além dos Guarani e Kaiowa possuírem um território, estes se fazem humanamente a partir

dele, podendo dizer que as relações destas sociedades com o território é um importante e

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imprescindível meio para construção identitária destas sociedades, pois refere-se sempre a um

modo de vida no território, no caso específico, no Tekoha.

Neste contexto dialético de ―identificar o território e a partir dele serem identificados‖,

ou seja, de ser produtor e ao mesmo tempo produto do seu próprio território, é que devemos

pensar as identidades culturais-territoriais. O território e a identidade se fazem construindo,

dialeticamente, um ao outro, na perspectiva de que construir territórios é construir identidades, ao

mesmo tempo em que construir identidades é construir territórios.

Para estas sociedades, na construção de seus territórios, a cultura não pode estar

dissociada das outras esferas que compõem o território, como a natureza, já que estas são

dimensões interdependentes que se fundem entre a materialidade e a imaterialidade do território.

Pensando a relação cultura e natureza, Carlos Walter Porto Gonçalves (2001, p.26) considera que

esta dissociação ocorreu quando:

A cultura é tomada como algo superior e que conseguiu controlar e dominar a

natureza. Daí se tomar a revolução neolítica, a agriCULTURA, um marco da

história, posto que com ela o homem passou da coleta daquilo que a natureza

―naturalmente‖ dá para a coleta daquilo que se planta, que se cultiva.

Entretanto, sabendo que a relação entre a natureza e a cultura é um processo instituído

histórica e conflitivamente pelos homens, a mesma é passível de ser superada e substituída se não

conseguir mais gerar satisfatoriamente as mudanças na realidade.

[...] toda a cultura é uma criação dos homens; é instituída num processo cheio de

tensões entre diversos possíveis históricos. Se a nossa sociedade-cultura institui

a forma presente de relação com a natureza e dos homens entre si, é necessário

percebermos que esse conceito de natureza e de homem que temos não é mais

nem menos natural que qualquer outro e se ele não nos agrada, temos que

superá-lo através de um pensar e de um agir mais lúcidos (PORTO-

GONÇALVES, 2001, p. 76).

Ainda, podemos considerar, a partir de Rogério Haesbaert (2007b, p. 35-36), que ―ao

―definirem‖ a cultura e a identidade, natureza e diferença, nunca o fazem pela separação, mas

pelos elos que as perpassam, na medida em que devem ser vistos enquanto (parcialmente pelo

menos) inseridas um no outro, tornando-se assim parcelas indissociáveis de suas próprias

definições‖.

Entendemos o conceito de identidade territorial como sendo o resultado de uma

construção na mediação entre o meio cultural e o natural, existindo como fator de diferenciação

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dos outros, determinando a construção dos territórios ao mesmo tempo em que são construídos

por estes, já que ―[...] ―não há território sem algum tipo de valoração simbólica (positiva ou

negativa) do espaço pelos seus habitantes‖. [e também que] toda dinâmica de construção

identitária é inerentemente espacial [...]‖ (HAESBAERT, 2007b, p.38).

A partir de Rogério Haesbaert (2007, p. 95-96), o território ―[...] desdobra-se ao longo

de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‗concreta‘ e ‗funcional‘ à

apropriação mais subjetiva e/ou ‗cultural-simbólica‘‖.

Embora seja completamente equivocado separar estas esferas, cada grupo social,

classe ou instituição pode ―territorializar-se‖ através de processos de caráter

mais funcional (econômico-politico) ou mais simbólico (político-cultural) na

relação que desenvolvem com os ―seus‖ espaços, dependendo da dinâmica de

poder e das estratégias que estão em jogo. Não é preciso dizer que são muitos os

potenciais conflitos a se desdobrar dentro desse jogo de territorialidades

(HAESBAERT, 2007, p. 95-96).

O autor define o território numa perspectiva integradora, múltipla e relacional,

envolvendo o processo tanto de domínio material (político-econômico) quanto de apropriação

imaterial (simbólico-cultural). Desconstruindo as perspectivas que analisam o território

fragmentariamente em interpretações isoladas que podem ser naturalistas, economicistas,

políticas, culturalistas, idealistas, entre outros, ao invés de pensarem o território enquanto

totalidade, com toda sua multidimensionalidade, abarcando todas estas relações de maneira

interdependente.

No que concerne ainda o entendimento de território, Rogério Haesbaert (2007c, p.20)

demonstra que desde a origem da palavra, etimologicamente, este aparece com uma dupla

conotação, tanto materialista quanto simbólica, indicando demarcar desde o início uma fronteira

entre ―os de fora‖ e ―os de dentro‖. O autor ao explicar etimologicamente a origem da palavra

território considera que seu significado aproxima-se de terror e medo, mas ao mesmo tempo dá

sentido de uma espacialidade geográfica que permitia segurança e abrigo. Por isso, para Claude

Raffestin (1993, p.144) ―o espaço é a ―prisão original‖, o território é a prisão que os homens

constroem para si‖.

Antes de adentrarmos as discussões do autor e sua diferenciação entre espaço e

território, elencamos que o território é permeado por relações de poder, pois, como considera

Claude Raffestin (1993, p.53), toda ―relação é o ponto de surgimento do poder, e isso fundamenta

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a sua multidimensionalidade. A intencionalidade revela a importância das finalidades, e a

resistência exprime o caráter dissimétrico que quase sempre caracteriza as relações‖.

Logo, o poder está nas múltiplas formas de apropriação dos espaços, impondo, por sua

vez, negociações que podem se estabelecer mais funcionalmente e/ou simbolicamente. Funcional

no sentido de necessidade material humana de sobreviver, se alimentar, se abrigar etc. Simbólica,

porque o ser humano dá significado à natureza que ultrapassa o seu caráter meramente funcional

de recurso natural, se apropriando culturalmente dos espaços habitados.

Todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes

combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço

tanto para realizar ―funções‖ quanto para produzir ―significados‖. O território é

funcional a começar pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo

(―lar‖ para o nosso repouso), seja como fonte de ―recursos naturais‖ – ―matérias-

primas‖ que variam em importância de acordo com o(s) modelo(s) de

sociedade(s) vigente(s) (como é o caso do petróleo no atual modelo energético

capitalista) (HAESBAERT, 2005, p. 6776).

Claude Raffestin (1993) difere o seu entendimento de espaço e território, afirmando que

o espaço é um a priori e o território um a posteriori e, que o território nasce a partir da ação

humana sobre o espaço natural, onde um ator sintagmático, por meio de relações de poder se

territorializa. Para o autor:

O espaço é, portanto anterior, preexistente a qualquer ação. O espaço é, de certa

forma, ―dado‖ como se fosse uma matéria-prima. Preexistente a qualquer ação

[...] Evidentemente, o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma

produção, a partir do espaço (RAFFESTIN, 1993, p. 144).

No tocante ao território e ao espaço, o autor concebe o espaço como sinônimo de espaço

natural, enquanto recurso ou matéria-prima, referenciando-o ainda como um espaço ―dado‖ que

antecede o território. A concepção de espaço de Claude Raffestin é uma visão reducionista, que

simplifica a categoria geográfica de espaço como ―espaço natural‖ que, para Marcelo Lopes de

Souza (2010, p.96-97), automaticamente, faz com que o território torne-se sinônimo de espaço

social.

Todo território pressupõe um espaço social, mas nem todo espaço social é um

território: pense-se no caso extremo de uma cidade-fantasma, testemunho de

uma antiga civilização, outrora fervilhante de vida e mesmo esplendorosa, e hoje

reduzida a ruínas esquecidas e cobertas pela selva; essa cidade hipotética,

abandonada, não retrocedeu, lógico, à condição de objeto natural, mas ao mesmo

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tempo ―morreu‖, em termos de dinâmica social, não sendo mais diretamente

território de quem quer que seja.

Percebe-se que no exemplo de uma cidade-fantasma, por falta de habitantes, a mesma

não voltou a ser um espaço natural e/ou dado, mas nem por isso deixou de ser um espaço social,

não significando que seja um território. Marcelo Lopes de Souza (2010, p.97) considera ainda,

que ―o território não é substrato, o espaço social em si, um campo de forças, as relações de poder

espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial‖. Desta forma,

podemos dizer que:

O espaço é anterior ao território. Mas acreditamos que este autor [referente a

Claude Raffestin] incorre no equìvoco de ―coisificar‖, ―reificar‖ o território, ao

incorporar o conceito ao próprio substrato material - vale dizer, o espaço social

[...]. Assim, como o poder é onipresente nas relações sociais, o território está,

outrossim, presente em toda a espacialidade social – ao menos enquanto o

homem também estiver presente (SOUZA, 2010, p. 96).

Para Rogério Haesbaert (2007), o espaço e o território aparecem como contraparte

indissociável, não sendo possível pensar o território fora do espaço. Ainda aproximando-se de

Claude Raffestin, concebe o território nas múltiplas relações de poder estabelecidas pelos autores

sociais no espaço, podendo ser estabelecidas nas apropriações que podem variar entre simbólico-

imateriais às materiais-funcionais.

Neste sentido, consideramos o território um campo multidimensional fazendo-se no/pelo

movimento em contínuo vir a ser. Partindo-se da premissa de que os territórios são construídos

pelas relações humanas - espaço humanizado. Mas, também, são destruídos e reconstruídos

pelo/no movimento de T-D-R (Territorialização-Desterritorialização-Reterritorialização), como

propõe Claude Raffestin (inspirado em Gilles Deleuze e Félix Guattari).

Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997, p.224):

A desterritorialização [...] é inseparável de reterritorializações correlativas. É

que a desterritorialização nunca é simples, mas sempre múltipla e composta: não

apenas porque participa a um só tempo por formas diversas, mas porque faz

convergirem velocidades e movimentos distintos, segundo os quais se assinala a

tal ou qual momento um ―desterritorializado‖ e um ―desterritorializante‖.

De acordo com os autores, a desterritorialização só pode ser pensada no movimento de

re-territorialização que proporciona a recriação de um antigo território em outro. No caso dos

Guarani e Kaiowa, pode-se recriar o Tekoyma no Tekopyahu, considerando que no ―novo‖ há

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sempre a aparente relação de que os territórios de partida, se revestem nos territórios de chegada

pelo/no movimento de des-re-territorialização. Consideramos, assim, que todo processo de

territorialização se faz envolvido em ―teias‖ de antigas territorialidades, ou seja, nos laços

simbólicos, logo, nas relações de pertencimento que liga o homem ao território de partida -

territorialidade, carregando consigo diferentes possibilidades de controle de seu espaço

(MONDARDO, 2009).

A territorialidade humana, nossos laços com o território, se fazem a partir de uma

concepção bastante aberta, múltipla e plural, que segundo Claude Raffestin (1993, p. 160 - 162),

―[...] pode ser definida como um conjunto de relações que se originam num sistema

tridimensional sociedade-espaço-tempo [manifestando-se] em todas as escalas espaciais e sociais;

ela é consubstancial a todas as relações e seria possìvel dizer que, de certa forma, é a ―face

vivida‘ da ―face agida‖ do poder‖.

Daì considerarmos que todo território é ―movido‖ por uma territorialidade, contudo, nem

toda territorialidade pode ser passível de territorialização. Isto quer dizer que existem

territorialidades externas que agem sobre territórios de outrem68. Raffestin (1993) demonstra que

a dimensão da territorialidade, nem sempre é precedida de uma territorialização efetiva, ou seja,

do controle do território – materialidade. Pois, nem todo processo de territorialidade visa o

controle territorial. Para Rogério Haesbaert (2009, p.106):

Pela expressão ―territorialidade‖ – já que não se trata do território em seu

sentido pleno, ou seja, onde a sua ―materialização‖ se torna imprescindìvel.

Embora todo território tenha uma territorialidade (tanto no sentido abstrato de

―qualidade ou condições de ser território‖ quanto no de sua dimensão real-

simbólica), nem toda territorialidade – ou, se quisermos, também, aqui,

espacialidade – possui um território (no sentido de sua efetiva realização

material).

Claude Raffestin relaciona a territorialidade às qualidades multidimensionais e

imateriais do vivido materialmente nos territórios pelos sujeitos. Afirma que estas relações não se

68

Exemplos estes podem ser referiados as territorialidades exercidas pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio),

FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), entre outros agentes ―externos‖, como as territorialidades das usinas

sucroalcooleiras. Estas exercem influência na organização socioterritorial na reserva através de aliciamento de mão

de obra. Assim, o território da usina em sua plenitude pode até não estar na reserva, mas, sua territorialidade se faz

presente. Ainda é necessário dizer que no caso da FUNAI e da FUNASA, a participação desta na organização

espacial da reserva se faz com maiores influências, no que concerne sua ligação direta com as sociedades indígenas.

Portanto, no tocante a estes questionamentos, acreditamos a necessidade de maiores averiguações.

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separam das relações de poder, tendo em vista que o mesmo está presente em todas as relações

sociais.

A territorialidade adquire um valor particular, pois reflete a

muldimensionalidade do ―vivido‖ territorial pelos membros de coletividade,

pelas sociedades em geral. Os homens ―vivem‖, ao mesmo tempo, o processo

territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações

existenciais e/ou produtivistas. Quer se trate de relações existenciais ou

produtivistas, todas são relações de poder, visto que há interação entre os atores

que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações

sociais. Os atores sem se darem conta disso, se automodificam também. O poder

é inevitável e, de modo algum, inocente. Enfim, é impossível manter uma

relação que não seja marcada por ele (RAFFESTIN, 1993, p.158-159).

É neste conjunto de representações - o simbólico - que a territorialidade se manifesta,

aparecendo nas interpelações da multidimensionalidade do ―vivido‖ das gentes. Não podendo,

então, estar dissociado das relações de poder que se ―funde‖ nas relações com a sociedade e a

natureza e, também, com o corpo, primeira escala de relação com o território. Em linhas gerais,

se funde com tudo que possibilite relações de pertencimento em uma certa espacialidade

geográfica, podendo estar, ou não, territorializada, já que a territorialidade, diferente do território,

não se faz, necessariamente, com a apropriação material do território, envolvendo o controle

sobre o mesmo, mas se faz, fundamentalmente, pelas relações que a construiu, ou seja, nos

―lugares em que ela se desenvolve e os ritmos que ela implica‖ (RAFFESTIN, 1993, p.162).

A territorialidade é interdependente das relações de pertencimento de um grupo, estando

plenamente relacionada à identidade cultural e/ou social que são negociadas no território que, por

sua vez, refletem uma forma de fazer-se humanamente nos espaços ocupados/territorializados. A

territorialidade para Rogério Haesbaert (2007, p. 218) ―é uma caracterìstica central de

agenciamentos‖, de modo que para Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1997, p. 218):

Todo o agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta

dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há

alguma: dentro de sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens [...] criam

para si um território. Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém, homem

ou animal: ―minha casa‖. [...] o território cria o agenciamento. O território

excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e a relação entre ambos; por

isso, o agenciamento ultrapassa também o simples ―comportamento‖.

Neste contexto, o território se faz integrado aos laços afetivos que as gentes têm com os

espaços-lugares e, também, estabelecendo-se nas redes de sociabilidade, onde tais relações são

sempre reajustadas, sendo agenciadas. Assim, toda sociedade é com maior ou menor grau uma

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entidade que se faz com alguns ―papeis‖ sociais bem delimitados, como é o caso exemplificado

no modo de vida Guarani e Kaiowa e a importância dos Ñanderu e Ñandesy, exercendo

centralidade na organização social no/do território. Estas relações se fazem pelas negociações-

agenciamentos das gentes, de quem pode ou não deter maior controle social, por sua vez, o poder,

daqueles que conseguem da melhor forma articular o mundo social nas relações dos homens entre

si, com o mundo natural e sobrenatural, fazendo-se nas bases políticos-culturais do/no Tekoyma.

Em aproximação a Rogério Haesbaert (2007, p. 123), esse processo ocorre articulado ao

movimento de des-re-territorialização.

Os agenciamentos são, assim, moldados nos movimentos concomitantes de

territorialização e desterritorialização. Todo agenciamento é territorial e

duplamente articulado em torno de um conteúdo e uma expressão,

reciprocamente pressupostos e sem hierarquia entre si. Um território, portanto,

pode ser visto como o produto ―agenciado‖ de um determinado movimento em

que predominam os ―campos de interioridade‖ sobre as ―linhas de fuga‖, ou, em

outras palavras, um movimento mais centrípeto do que centrífugo.

As relações das sociedades com o território são sempre reajustadas, negociadas e/ou

agenciadas, e para que elas possam ocorrer, o poder torna-se o centro das relações. Não estamos

querendo dizer que todas as relações de poder se fazem nas relações de subordinação e

dominação, mas que o poder, das mais diversas formas que se expressa na sociedade, existe e se

faz sempre em contínua negociação de concessão entre as partes envolvidas, podendo-se dizer a

partir de relações que se fazem interdependentes entre si. Assim, para ser um determinado tipo de

gente em uma sociedade, é necessário que a sociedade o reconheça como tal, a partir de um

conjunto de símbolos, normas, formas que ao mesmo tempo em que se fazem também podem se

desfazer.

Como já considerado, o pressuposto de que todo território tem uma territorialidade, por

mínima que esta apareça, contraditoriamente, nem toda territorialidade possui, necessariamente,

um território (HAESBAERT, 2009). Nesse sentido, todo processo de territorialização impõe,

mesmo que minimamente, a apropriação simbólica do território, assim como todo processo de

desterritorialização implica na perda de controle do mesmo. ―Enquanto ―continuum‖ dentro de

um processo de dominação e/ou apropriação, o território e a territorialização devem ser

trabalhados na multiplicidade de suas manifestações – que é também e, sobretudo, multiplicidade

de poderes, neles incorporados através dos múltiplos agentes/sujeitos envolvidos‖

(HAESBAERT, 2005, p. 6776).

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Nesse caso, podemos dizer que a territorialidade, assim como a identidade, se manifesta

em seu caráter simbólico-cultural de pertencimento e de enraizamento das gentes ao território,

mas, também, como um modo de vida, nas diversas formas com que as pessoas se relacionam

com a natureza e dela tiram seu sustento.

A territorialidade ligada à apropriação simbólica do território pode ser representada da

seguinte forma:

O caso da ―Terra Prometida‖ dos judeus é sempre o primeiro exemplo que nos

vem à mente, pois há uma referência sobre um espaço simbólico [e não

corresponde] a um território em seu sentido material – embora, é claro, muitos

processos concretos de ―territorialização‖ tenham se desencadeado (a nìvel local,

por exemplo [bairros e guetos judeus]) a partir dessa identidade em que um dos

elementos fundantes era a referência geográfica à ―Terra Prometida‖

(HAESBAERT, 2009, p. 106).

As distintas formas nas quais os homens e as mulheres se apropriam dos territórios, se

dão nas relações simbólico-imateriais e concreto-materiais. No caso dos Guarani e Kaiowa, o

Tekoha é o que possibilita essa apropriação e emerge como um campo de controle que permite

sua territorialização efetiva, para além da possibilidade ―mìnima‖ de apropriação simbólica-

imaterial, como é perceptível na RID, onde existe uma apropriação simbólica-imaterial, mas

também, um domínio material sobre o território constituído, apesar da sua precariedade. No

entanto, no que concerne à busca pelo processo de re-territorialização dos territórios

tradicionalmente ocupados, onde as lutas pelo território se fazem pelos laços afetivos com o

território, este é vivenciado sem nele exercer controle territorial e também sem necessariamente

nele estarem inseridos.

Neste contexto, a territorialidade como expressão dos laços dos Guarani e Kaiowa com o

Tekoha, possibilita pensar a formação das identidades territoriais (HAESBAERT, 1999; 2007b),

no contexto da multidimensionalidade do universo político, econômico, natural e, mesmo,

cultural-sobrenatural do que corresponde aos territórios e territorialidades destas sociedades.

É a partir desta multidimensionalidade territorial, também, que Maria Inês Ladeira

(2008) discute a formação da identidade dos Mbya. A autora assinala que a constituição da(s)

identidade(s) dos mesmos relaciona-se com o espaço-território vivido. Considerando, neste

contexto, o Tekoha enquanto uma visão de mundo e acrescentando ainda que a questão do

território contém a perspectiva de manutenção de um modo de participar no/do mundo

(LADEIRA, 2007; 2008). O território, portanto, está inter-relacionado a uma visão de mundo,

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sendo também um modo de viver que está imbricado com a criação de identidades, que no caso

dos Mbya, Maria Inês Ladeira (2007, p. 38) entende que:

Mbya refere-se a gente, sim. Mas refere-se a gente diferente, que vem de longe,

que é nova no lugar e, portanto, ―estranha‖. Mas o curioso do que se pode

observar [por meio de interlocutor Mbya] é que o processo de identificação com

o outro passa pelo sentimento de se reconhecer no outro mediante a sua própria e

igual condição de diferente.

A autora demonstra como se dá, então, o processo de formação da identidade Mbya e

que estas perpassam pelas/nas relações com o outro. Entende, também, que a formação da

identidade Mbya está intrinsecamente atrelada ao espaço geográfico, afirmando que os mesmos

podem ser identificados enquanto pessoas ―que vem de longe, que é nova no lugar‖.

Esta conclusão feita por Maria Inês Ladeira reforça imprescindibilidade em torno da

construção do conceito de identidades territoriais engendrada por Rogério Haesbaert (1999, p.

172). Para explicar as identidades territoriais o autor está partindo ―do pressuposto geral de que

toda identidade territorial é uma identidade social, ou seja, dentro de uma relação de apropriação

que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico

constitui assim parte fundamental dos processos de identificação social‖.

Compreendemos ainda que a identidade territorial tem ligação com os lugares-territórios

―deixados‖ (desterritorialização) aos lugares-territórios ―chegados‖ (reterritorialização), é um

modo de vida que finca o homem a terra-solo, as águas, as matas, as relações dos homens entre

si, que fazem destas multiplicidades espaciais, permeada por relações de poder, o território.

Podemos pensar o movimento contínuo de des-re-territorialização a partir do poema de Carlos

Drummont de Andrade - ―A ilusão do migrante‖, quando o mesmo diz que:

Quando vim da minha terra,

se é que vim da minha terra

(não estou morto por lá)

a correnteza do rio

me sussurrou vagamente

que eu havia de quedar

lá donde me despedia.

(...) Quando vim de minha terra

não vim, perdi-me no espaço

na ilusão de ter saído

Ai de mim, nunca saí.

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Rogério Haesbaert (1999, p.169-170) assinala que estes laços tornam-se condição de

―levar a terra consigo‖ ou ―ficar (simbolicamente) na terra de origem‖. Pode-se considerar

também, o viver em uma relação de meio, entre o ―lá‖ e o ―aqui‖. As relações dos Guarani e

Kaiowa no reviver o Tekoyma, é a exemplificação de que a partir da/pela memória da geografia,

revivendo as espacialidades vividas do que ―ficou lá‖, é que as mesmas estão carregadas de

identificações que traçam as interdependências entre passado e presente, assim, continuam a fazer

parte da vida dos sujeitos, por vezes, dando a impressão de nunca ter saído do lugar deixado.

Podendo ser alusivo na narrativa do Kaiowa Ñanderu Jorge da RID, que em sua narrativa traz

muitas espacialidades, logo, múltiplas territorialidades que se fundem e se confundem,

permitindo a conexão do Tekoyma com o Tekopyahu.

Eu tinha bastante madeira aqui (referindo-se ao território tradicional).

Tinha ipê, peroba, tinha de tudo, coisa mais linda. Ali de baixo, onde

meu guri tá morando, tinha Ipê ali, dá um metro, quase quatro metro de

largura. Chego ali, ai alugo, você (vou) trazê pro cê. Quatro hora, até

hoje, nunca chegava. Tinha cará por baixo, num queria acabá, por causa

que tinha muito cará ali no meio da pedra. Mêmo assim tinha cará, onde

tem ferro. É igual como nóis, vai plantá o milho no meio, plantemo muito

milho no meio [...] lá no alto Maracajú. A gente tem Saracuá 69

ali, se vai

procurando onde tem terra, ai se abre o buraco [...].

A gente vai, saracuá70

, onde não pega pedra, ai você vai procurando onde

é a terra [...] Onde dá pra plantá milho. Cada ramo que dá, o mato dá

muito (silêncio). É... quantos anos que tem aquele adubado, ai você

queimando aquele mato, tanto assim, natural, em cima da terra. Ai na

onde você planta, a planta nasce. E o cerrado não, o cerrado se tem que

tratá, é mais fraco [...]. A mandioca preta dá melhor no campo, da

amarela, já num dá [...]. [...] tem que passá a cultura, regatá pra num

esquecê.

Percebe-se que Jorge inicia sua frase falando no tempo passado. Contudo no decorrer de

sua narrativa transita entre passado-presente, mostrando, por sua vez, não só a territorialidade

existente no modo de vida dos antigos, mas trazendo a territorialidade do tempo presente,

representando a ele o novo modo de vida.

69

Espécie de cavadeira de madeira. 70

O Sapicuá e/ou Sapiquá assemelha-se a uma bolsa, parecido com bornal, muito utilizada por camponeses. Segundo

os Guarani e Kaiowa, antigamente era feito com Caraguatá, uma espécie de cipó, utilizado por homens e mulheres

em atividades de coleta de frutos e, também, para o depósito de sementes na atividade da agricultura.

O Saracuá e/ou Saraquá, é utilizado na atividade da agricultura durante o roçado e depósito de semente no solo, sua

utilização se aproxima de uma enxada. Essas informações foram coletadas em trabalho de campo, mas algumas

contribuições podem ser encontradas no trabalho de Luis Augusto Cândido Benatti (2004).

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Neste contexto, de participar, ou mesmo de vivenciar, mais de um território pela

oralidade, é notório a participação de Jorge em dois tempos, no presente e passado de múltiplos

territórios que se fundem a um só, e ao mesmo tempo se confundem. Durante conversas, também

com sua esposa, a Kaiowa Ñandesy Floriza (2010) assinala que quando se lembra do passado é

como se o estivesse novamente lá. Para ela ―quando a gente lembra dessa história bonita memo,

a gente fica triste... [...] num vive mais esse daí [referente ao novo modo], num sabe bem... a

gente até volta quando lembra da época...‖.

Através desta narrativa, é possível dizer que no momento em que a narrativa se

estabelece, o modo de vida dos antigos - Tekoyma, se cruza ao novo modo de vida - Tekopyahu,

havendo de certo modo uma desterritorialização do presente e uma re-territorialização no

passado. Se considerarmos que todo movimento de territorialização é, necessariamente, um

movimento de des-re-territorialização, já que ―no cotidiano, a dinâmica mais comum é que

passemos constantemente de um território para outro. Trata-se de uma des-reterritorialização

cotidiana, onde se abandona, mas não se destrói o território abandonado‖ (HAESBAERT, 2007,

p. 138).

A existência de multiterritorialidades/multitemporalidades pela oralidade Guarani e

Kaiowa se mostra para além da apropriação simbólica da necessidade de um território, no caso

específico o da RID com todos os seus multidimensionamentos. Por multiterritorialidade

entendemos o movimento das gentes por múltiplos territórios, estabelecidos pelos laços

simbólicos e materiais com os territórios pela/na mobilidade, podendo-se também ser acionado

e/ou mesmo exercido sem necessariamente deslocar-se, como é vivenciada nas múltiplas

territorialidades da/na narrativa Guarani e Kaiowa.

Neste sentido, a partir de Rogério Haesbaert (2007, p.19), a multiterritorialidade:

Aparece como uma alternativa conceitual dentro de um processo denominado

por muitos como ―desterritorialização‖. Muito mais do que perdendo ou

destruindo nossos territórios, ou melhor, nossos processos de territorialização

(para enfatizar a ação, a dinâmica), estamos na maior parte das vezes

vivenciando a intensificação e complexificação de um processo de

(re)territorialização muito mais múltiplo, "multiterritorial".

No contexto da narrativa de Jorge ao descrever os modos de cultivar a terra, aponta os

modos corretos de fazê-lo em referência ao Tekoyma e, por sua vez, traça caminhos na geografia

da memória que possibilita transitar por multiterritorialidades/multitemporalidades pela/na

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narrativa. Ao conseguir descrever, a partir de uma realidade diferente do modo de vida dos

territórios tradicionalmente ocupados - Tekoyma, e pela memória recordada, exemplifica a

necessidade em falar e/ou narrar o mundo dos antigos, onde o ―passá a cultura‖ torna-se uma

necessidade socialmente construída.

O território, assim como a territorialidade, enquanto condições interdependentes, se

estabelecem a partir das relações sociais no espaço-tempo, no movimento de destruição e

construção de territórios que, por sua vez, proporciona reconstruções/re-apropriações/re-

significações identitárias. A multiterritorialidade, como movimento de apropriação e acesso a

múltiplos territórios, podendo ser acionada uma de cada vez ou simultaneamente, como se faz

pelas narrativas, desmitifica a ideia ocorrente de desterritorialização ligado a concepção do ―fim

dos territórios‖. Elencando, assim, a necessidade humana do homem de territorializar-se sempre,

a partir das condições necessárias ou quando estas se dão impostamente, gerando uma

territorialização precária, como no caso específico da re-territorialização dos Guarani, Kaiowa e

Terena na RID (analisaremos no terceiro capítulo).

Também, podemos compreender a multiterritorialidade como uma forma dominante da

sociedade moderna dos homens e mulheres des-re-territorializar-se, de apropriar-se não só de um,

mas de múltiplos territórios, considerando que o homem, a partir de Yves Barel ―é também um

―animal territorializador‖. Sua especificidade é que esta territorialização humana não é uma

relação que restringe ao habitar um território, pois estes são capazes de [...] produzir e habitar

mais de um território‖ (apud HAESBAERT, 2007, p.344). Ainda, segundo Rogério Haesbaert

(2007, p. 344), envolve ―um fenômeno de multipertencimento e superposição territorial‖.

Embora Rogério Haesbaert não discuta, evidentemente, a existência da

multiterritorialidade em formas mais ―antigas‖ de des-re-territorialização, nos permite dizer que a

multiterritorialidade é uma condição humana de vivenciar não somente um, mas múltiplos

territórios. Por isso, no caso específico dos Guarani e Kaiowa, essa multiterritorialidade talvez

sempre tenha existido, fazendo-se nas interlocuções das redes de sociabilidade dos Tekoha e

Tekoha Guasu (fundamentalmente sua expressão se refere a um território grande e/ou extenso,

marcado pela palavra guarani Guasu).

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2.3 - Organização socioterritorial no Tekoyma: as multidimensionalidades e

multiterritorialidades do Tekoha e Tekoha Guasu

―El tekoha ‗el lugar en que vivimos según nuestras costumbres‘, es la

comunidad semi-autónoma de los Paî. Su tamaño puede variar em superfície

[...] y la cantidad de familias (de 8 a 120, em los casos extremos), pero

estructura y función se mantien igual: tienen liderazgo religioso proprio

(tekoaruvicha) y político (mburuvicha, yvyra‘ija) y fuerte cohesiõn social. Al

tekoha corresponden las grandes fiestas religiosas (avatikyry y mitã pepy) y lãs

decisiones a nível político y formal em lãs reuniões osambleas generales (aty

guasu). El tekoha tiene una area bien definida, delimitada generalmente por

cerros, arroyos o ríos, y es propiedad comunal y exclusiva (tekoha kuaaha); es

decir, que no se permite la incorporación o presencia de extraños. El tekoha es

una institución divina (tekoha ñe‘e pyru jeguangypy) creada por Ñande Ru [...].

El tekoaruvicha es el vicário y lugarteniente de Dios-Criador, Ñane Ramõi Jusu

papa, quien es el tekoaruvicha pavê (el dirigente de todos)‖.

Bartomeu Melià, Georg Grunberg e Frield Grunberg (2008, p. 131).

―A existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo menos

no sentido de experimentar vários territórios ao mesmo tempo e de, a partir daí,

formular uma territorialização efetivamente múltipla, não é exatamente uma

novidade, pelo simples fato de que, se o processo de territorialização parte do

nível individual ou de pequenos grupos, toda relação social implica uma

interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo

sentido, teríamos vivido sempre uma ―multiterritorialidade‖.

Rogério Haesbaert (2007, p. 344).

Considerando a análise da organização territorial Guarani e Kaiowa por Bartomeu

Melià, Georg Grunberg e Frield Grunberg (2008), percebe-se que o eixo central de todas as

relações do modo de vida destas sociedades se faz no Tekoha, tendo em vista que é a partir dele

que todas as relações humanas e não humanas (natureza e espíritos) estão correlacionadas e

interdependentes entre si. No que concerne às relações humanas e às não humanas, Eduardo

Viveiros de Castro (2004, p.227) considera a partir da etnografia amazônica, que:

A uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos

vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses,

espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos

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meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos — é profundamente

diferente do modo como esses seres vêem os humanos e se vêem a si mesmos.

Tentando estabelecer uma relação a partir das considerações levantadas pelo autor,

acerca de sociedades da Amazônia com o nosso estudo de caso específico, podemos considerar os

Jará como imprescindíveis na organização socioterritorial Guarani e Kaiowa, havendo uma

relação de deferência, respeito e dependência na organização socioterritorial destas sociedades,

como demonstrado por Levi Marques Pereira (2004). Nas relações que envolvem os Guarani e

Kaiowa com o sobrenatural, com os não humanos, Eduardo Viveiro de Castro (2004, p.228)

considera que:

Alguns não humanos atualizam essas potencialidades de modo mais completo

que outros; certos deles, aliás, manifestam-nas com uma intensidade superior à

de nossa espécie, e, neste sentido, são ‗mais pessoas‘ que os humanos. Além

disso, a questão possui uma qualidade a posteriori essencial. A possibilidade de

que um ser até então insignificante revele-se como um agente [...] capaz de

afetar os negócios humanos está sempre aberta; a experiência pessoal, própria

ou alheia, prevalece sobre qualquer dogma cosmológico substantivo.

A partir das colocações do autor, podemos dizer que os Jará na cosmologia Guarani e

Kaiowa são os donos de tudo, já que todas as ―coisas‖ do mundo tem necessidade de ter um

dono, de modo que as relações com estes seres são permeadas por relações de poder, pois é

necessário negociar, pedir permissão para ter acesso as ―coisas do mundo‖. Nas relações que

envolvem os indígenas no campo do sobrenatural, Dominique Gallois apud Levi Marques Pereira

(2004, p.233) salienta a necessidade de relacionar-se com um dono, pois, segundo a autora, ―a

relação com um dono garante, assim, a vida‖.

Podemos elencar que, nossa compreensão de humanidade e animalidade são criações e

invenções sociais, mas, em linhas gerais, esta invenção está inter-relacionada a reinvenção e

reprodução de modos de ser Guarani e Kaiowa, pois estes estão inter-dependentes destes seres,

pois os Jará são os donos de tudo, já que são também eles que permitem a organização

socioterritorial Guarani e Kaiowa.

Para explicarmos a organização socioterritorial Guarani e Kaiowa partimos de uma

concepção integradora de território, por meio, principalmente, do arcabouço teórico de Rogério

Haesbaert (1997; 1999; 2005; 2006; 2007; 2007b; 2007c; 2008; 2011). Assim, podemos dizer

que o Tekoha contém intrinsecamente e de maneira interdependente as dimensões social, política,

cultural e econômica marcadas por relações de poder. Consideramos, também, que essas relações

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de poder são a condição sine qua non que faz de todo espaço, dos lugares vividos das gentes, seu

território. Partindo desse pressuposto do que é o território Guarani e Kaiowa, verificamos que

toda a configuração geográfica do Tekoha era fruto de escolhas dessas sociedades que se

estabeleciam a partir de seis condições básicas, consideradas por Levi Marques Pereira (2004,

p.196) da seguinte forma:

a) A fertilidade do solo nas proximidades, onde possam implantar as

roças; b) localização de água corrente ou nascente de água potável; c)

proximidade de áreas de caça e pesca; d) o espaço a ser habitado por

espíritos benéficos ou hostis ao convívio próximo das pessoas; e)

relações de vizinhanças entre fogos e parentelas; f) bem como aspectos

estéticos do relevo e da vegetação (PEREIRA, 2004, p.196).

A organização socioterritorial no Tekoha, como demonstra o autor, se dava a partir dos

cursos d‘água, próximos e aos arredores das áreas de mato, sendo que com o mato, juntamente

com a reza, formam o conjunto do universo Guarani e Kaiowa. Portanto, este fato reitera nossa

análise, baseando-se principalmente em Rogério Haesbaert (1997; 1999; 2005; 2006; 2007;

2007b; 2007c; 2008; 2011), de que o território é uma totalidade, multiescalar e multidimensional,

que integra natureza e sociedade, os conjuntos materiais (sociais, econômicos, políticos e

culturais) e imateriais (marcado pelos laços simbólicos-culturais com o território) e a relação

espaço-tempo.

Existe uma indissociabilidade entre natureza e cultura. A natureza está presente no

território Guarani e Kaiowa e, é necessária para a sua reprodução física/material, como a água, as

árvores, as plantas medicinais, o milho, a mandioca, a erva matte, etc. Mas, todos esses elementos

naturais estão interligados aos aspectos culturais de representações simbólicas destas sociedades,

com base na religiosidade, permitindo interações dos homens com a natureza e com o mundo

sobrenatural. Logo, a relação que os Guarani e Kaiowa estabelecem com a natureza perpassa as

relações simbólicas e materiais com o território, demonstrando que a multidimensionalidade do

mesmo está em constante interação.

No sentido de entendermos como a interação da multidimensionalidade permeiam as

relações materiais e simbólicas da organização socioterritorial dos Guarani e Kaiowa é necessário

demonstrar como se dão as redes de sociabilidade existente no Tekoha, ou seja, como ocorrem os

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ordenamentos da família extensa e/ou parentela - te‘yi e/ou ñemoñare71, pois todos estes fatores

estão interdependentemente relacionados dando ao Tekoha a condição de território. É a família

extensa que possibilita a organização socioterritorial Guarani e Kaiowa, desde a formação-

constituição de um Tekoha até nas relações com outros Tekoha. Podendo considerar que é ela

quem possibilita sua manutenção.

Assim, sua constituição e formação é permeada por relações de poder, principalmente

por meio de lideranças religiosas - Tekoaruvicha72 - tendo o papel central na organização

socioterritorial, estes também são reconhecidos como Ñanderu e/ou rezadores e Ñandesy e/ou

rezadoras, tendo como representação o Pai e Mãe da família extensa, ou como prefere Levi

Marques Pereira (2004), os ―cabeças de parentela‖, em que o homem prioritariamente tende a

cumprir esta função. Estes representam na terra o Ñanderuvussu, sendo este o pai maior e/ou o

primeiro ―Deus‖, o criador do mundo e dos próprios Guarani e Kaiowa73, e são a exemplificação

do Ñande Reko - nosso modo de ser e viver.

Neste contexto, consideramos que o Tekoha, assim como seu corolário Tekoha Guasu -

território extenso, juntamente com o conjunto de relações que estes exercem interdepentemente,

são a representatividade do Teko Porã. No que concerne ao Tekoha Guasu, este deve ser pensado

a partir do Tekoha (exclusivo) estando correlacionado a outros Tekoha (inclusivo), ou seja, em

uma rede de relações sociais entre si.

71

Segundo demonstra Levi Marques Pereira (2004, p.91): ―A demonstração de solidariedade (polìtica, religiosa,

econômica) é identificada pelo Kaiowa como um comportamento tradicional, criando laços de compromisso e

obrigação entre as pessoas. Assim, mesmo o comportamento de uma pessoa sendo considerado socialmente

condenado, ela receberá o apoio de sua parentela, principalmente de seu cabeça, desde que seja reconhecida como

membro ativo e solidário do grupo de parentes. Dessa forma, mesmo casos graves, como assassinatos, roubos e

acusações de feitiçaria, tendem a ser ‗abafados‘ no interior da parentela, desde que estes crimes não atinjam o circulo

restrito dos parentes. Aqui também vale o jargão popular no meio polìtico do Estado Brasileiro: ‗para os amigos

tudo, para os inimigos a lei‖, mas talvez entre os Kaiowa deveria ser mudado: ―para os parentes tudo, para os não

parentes, a lei‖. 72

De acordo com Bartomeu Melià, George Grünberg e Friedl Grünberg (2008, p. 131-132) ―Su principal función es

ser mitã kutucha (el que perfora el lábio de lós muchachos) durante la iniciación de los Kunumi (mitã pepy, mitã

kutu), ya que mediante su acción garantiza el desenvolvimento de las creaturas (oñeme‘e kakuaávy ichupe). Él es

también responsable del bienestar moral, esse modo de ser sin sofocos (teko ñemboro‘y) y social de amor mutuo y

juesticia (teko johayhu, teko jojo) em su tekoha y tiene la oblegación de purificar-se y ―refrescarse‖ junto com su

comunidad em lós rezos (oñemboro‘y ojehe oñembo‘épe). Por eso la principal condición para ser tekoaruvicha es su

bondad, su sabeduría y su serenidad reconocidas [...]. La transmisión de este mando no es hereditaria, sino depende

de la selección del anterior tekoaruvicha y su bondad y sabiduria reconocidas en la comunidad. Si una comunidad se

queda sin líder religioso, otros tekoaruvicha [...] quando muere uno dirigente religioso, con juntas razones se pone

otro nuevo. De todos modos, uno tekoaruvicha puede mudarse a uno nuevo tekoha‖. 73

Ao perguntarmos aos Ñanderu Jorge e Ñandesy Floriza o porquê do uso do prefixo Ñande, correspondente a

Ñanderuvussu, estes salientam que são seus representantes no mundo, responsáveis de ―passá a cultura‖, sendo

providos de muitos ensinamentos. Em suma, são aqueles que tudo sabem.

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Na perspectiva de Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (2009), as relações

entre os Tekoha se davam em intensos intercâmbios matrimoniais, festas rituais e momentos

festivos. Mas, também, poderia haver conflitos e disputas nestas relações, o que viabilizava a

mudança de um grupo e/ou mesmo de uma pessoa do grupo para outro lugar. Estas relações de

conflito e solidariedade são evidenciadas por Levi Marques Pereira (2005, p. 117) ao considerar o

fato de o Tekoha ser formado ―por diversas famìlias extensas ou parentelas relacionadas entre si

por vetores sociológicos de aproximação e repulsa‖.

De acordo com Bartomeu Melià, George Grünberg e Friedl Grünberg (2008), no que

concerne à organização social no Tekoha, estes autores consideram que antigamente

provavelmente este se constituísse com uma família nuclear (grupo local) e o Tekoha Guasu

aparece abrangendo a família extensa. Neste caso, o Tekoha Guasu seguia como um

representativo do Pai Retã (pode-se dizer o Tekoaruvicha Guasu), cabendo a este organizar este

território extenso e/ou grande. Este também é representado nas narrativas dos Guarani e Kaiowa

da RID, como Ñanderu Guasu - rezador grande.

Estes autores ainda consideram que a mudança do Tekoha passou a ter maior

representatividade como família extensa nos dias atuais, dando-se primordialmente pelo fato de

que ―el Tekoha Guasu se fraccionó en varios entes com liderazgo propio. Este fraccionamiento

paulatino lo podemos observar, hoy mismo, en la división del Tekoha tradicional en varias

comunidades polìticamente autónomas‖ (MELIÀ; GRUNBERG; GRUNBERG, 2008, p.94).

O que concierne ao Tekoha Guasu, estes autores ainda consideran que ―La

composición del Tekoha Guasu no es estático y puede variar con el tiempo; es

decir, una comunidad puede salir de una alianza y adherirse a outra. Así por

ejemplo la comunidad Itajeguaká, que formo parte del Tekoha Guasu de lós

―Valiente‖, hoy, más bien tiende a aliarse con las comunidades del Tekoha

Guasu de ―Cerro Sarambi‖. Este cambio es fácil a entender, si uno recuerda que

las comunidades actuales integran muchas veces grupos locales de diferentes

tekoha de origen y que, pode ende, un cambio interno político puede llevar al

poder grupos que, tradicionalmente, están relacionados con otro Tekoha Guasu‖

(idem, 2008, p.94).

De acordo com as narrativas dos Guarani e Kaiowa, e indo ao encontro das

considerações dos autores acima, podemos dizer, a partir de Rogério Haesbaert (2007, p. 79), que

o território não se faz pelo fechamento e/ou reclusão de interação com outros territórios. Isso

implica que ―não há território sem uma estruturação em rede que conecta diferentes pontos ou

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áreas‖. Assim, as relações entre o Tekoha e o Tekoha Guasu tornam-se a expressão do que Joel

Bonnemaison e Orstom Vanuatu (2002, p.126) consideraram acerca do território:

O território é, primeiramente uma determinada maneira de viver com os outro;

em inúmeros casos seus limites geográficos são os das relações cotidianas. [...]

cada grupo existe criando um equilíbrio – sempre instável – entre o território e o

espaço, entre a segurança e o risco, entre o fixo e o móvel, entre o olhar para si –

etnocêntrico – e o olhar para os outros. Em outras palavras, poderíamos dizer

que o território é, antes de tudo, uma convivialidade.

Isso significa dizer que o território deve ser pensado nas inter-relações que o liga a

outros territórios, nas inter-relações entre os Tekoha. Segundo Jorge Eremites de Oliveira e Levi

Marques Pereira (2009, p.143),

Uma comunidade Kaiowa não desenvolve sua existência de maneira

completamente isolada, pelo contrário; desenvolve relações de interdependência

com um número variável de comunidades, com as quais se sente particularmente

vinculada por laços de natureza política e religiosa. Essas comunidades

desenvolvem intercâmbio frequente, o qual tem como suporte a proximidade

geográfica e a construção de uma rede de caminhos ou trilhas, chamado de tape

po‘i, que permite a visitação frequente entre pessoas relacionadas por parentesco

e outras formas de aliança.

Dessa maneira, a circulação de um grupo social em uma rede mais ampla de territórios -

Tekoha Guasu é suporte para que o Tekoha possa se manter, principalmente em referência a uma

rede de alianças e relações de parentesco que estas sociedades são ―obrigadas‖ a desenvolver para

a manutenção e controle socioterritorial do Tekoha.

O papel dos caminhos na sociedade Guarani e Kaiowa é um fato imprescindível para

entender as relações sociais entre as sociedades. A abertura de caminhos que leva um Tekoha a

outro e a falta de caminhos que demonstra a não expressividade de maiores relações sociais. Os

caminhos, assim, são a mostra que há entre um Tekoha e outro uma rede de alianças estabelecidas

principalmente por meio do matrimônio, já que casamentos consanguíneos não são permitidos

por estas sociedades. Como considera Levi Marques Pereira (2004, p. 91) a respeito desses

caminhos que ―combina em sua estruturação diversos vetores de aproximação com a finalidade

de cimentar relações e formar grupos: 1) parentesco cognático; 2) alianças matrimoniais; 3)

alianças políticas, baseadas em amizade, redes de apoio mútuo e relações de compadrio; 4)

participação em uma mesma comunidade religiosa‖.

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Ao considerarmos que as inter-relações entre os Tekoha possibilitam a formação de um

Tekoha Guasu, entendemos que essas inter-relações representam o caráter multiterritorializador

das sociedades Guarani e Kaiowa. Estas podem ser percebidas nas palavras de Bartomeu Melià,

Georg Grunberg e Frield Grunberg (2008, p. 93):

Nacidos, históricamente, de las alianzas matrimoniales de los grupos locales

(familias extensas), al igual que los tekoha se puede caracterizar al Tekoha

Guasu como una densa red de parentesco sanguíneo y a fin que une a las

familias extensas. Es decir que, aunque existen también relaciones de parentesco

con grupos locales de otros Tekoha Guasu, estas relaciones son mucho más

frecuentes dentro de un Tekoha Guasu.

A partir destes autores é notória a existência das redes de interconexões entre um Tekoha

e outro, logo, entre um Tekoha Guasu e outro, onde as redes de sociabilidade aparecem ser muito

mais amplas do que é possível imaginar, onde a construção de territórios se faz nestas

interconexões entre uma espacialidade e outra. Entretanto, no que concerne ao movimento das

gentes Guarani e Kaiowa, no processo de criação, destruição e recriação de territórios, a

representatividade e abrangência de multiterritorializar-se é demonstrada pelo Kaiowa Ñanderu

Jorge (2010) ao se reterritorializar no passado e mostrar pela oralidade as multiterritorialidades

vivenciadas no Tekoyma.

Urucuí que chama. E vindo, vindo pra cá. Vindo pra cá, ai chama

Iguarussu74

. [...] É Iguarussu. E Urucuí é, é que fica ali onde morava

meu vô. Seu Zacarias de Souza Brite, é lá na tekoha mesmo, é lá pra

minha mãe, meu pai... (silêncio).

Morou lá, ele tinha casa de reza, é mais grande isso aqui (referindo-se a

casa de reza hoje), porque a época nosso a gente num morava assim

esparramado, e um na casa e mora ali cada um num canto, e mais tem

outro, a outra a pessoa. A comunidade que fala, mora do outro lado,

distante que fala, né? Aí quando tem a Jerosy [festa religiosa do batismo

do milho] que fala né, é Guaxiré [festa religiosa], chicha, e vem tudo ali.

[... ] é família, parentes. E que mora ali no canto, né, cada canto. [...] é

cada família um tekoha. O tekoha é a primeira coisa que a gente, é que o

nosso vô que chamava o Zacaria Brite de Souza e a gente não sabia, a...

era pequena, né, e num fazia parte da participá aonde nosso vô é, rezava,

né? Ele é desse tamanho, enorme, o pau vinha aqui lá. Daqui mais ou

menos vamos supor até na estrada, cumprido, é o pau grandão, aquele lá

chama urirá gurixá, é que tá dando agora é cada árvore bunito, né, e

tudo bairro tá esparramando isso daí, árvore linda e vem aquele flor, né,

74

Para Jorge, antigamente não tinha nome, tudo era apelido. Acreditamos que este esteja referenciando que o nome é

algo extremamente recorrente no mundo dos brancos, considerando que a nomeação dos lugares relaciona-se com o

modo de vida dos lugares-territórios.

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muito bunita, e ali meu vô e minha vó rezava, cantava e nóis ficava sem

assistindo. Nóis num sâmo igual agora criança não, só eu é curiosidade

é, eu sou curioso e pra quê que o vô tá fazendo esse daí. E ai um dia eu

fiquei mais um pouquinho mais grande, né, ai eu preguntei pra quê que o

vô e a vó foi rezá ali, e aí ele disse pra mim não esse uirirá gurixá esse

daí que vai opaiuaguiraxá o rota ai vai esparramando tudo do paí e ai

vem flor, ai vem tudo, e vem flor, cipó e caraguatá, e fruta, guaporóitú,

pitanga, xagua‘íu, que fala, e ele tem que falá memo pra nóis senão nóis

num ia sabê, né?.

Considerando as especificidades dos Tekoha inter-relacionando entre si, demonstrando

as múltiplas dimensões dos homens e mulheres no espaço geográfico, partirmos da ideia de que

se des-re-territorializar não significa, necessariamente, abandonar o território de morada, há

necessidade de se reconsiderar que:

A vida é um constante movimento de desterritorialização e reterritorialização, ou

seja, estamos sempre passando de um território para outro, abandonando

territórios, fundando novos. A escala espacial e a temporalidade é que são

distintas.

No cotidiano, a dinâmica mais comum é que passemos constantemente de um

território para outro. Trata-se de uma des-reterritorialização cotidiana, onde se

abandona, mas não se destrói o território abandonado (HAESBAERT, 2007, p.

138).

No que se refere ao trânsito dos Guarani e Kaiowa em torno de seus territórios

tradicionalmente ocupados, o Kaiowa Ñanderu Jorge (2010) considera que o trânsito entre

múltiplos territórios poderiam ocorrer por diversos aspectos, até mesmo na necessidade de

reorganização do Tekoha em outro lugar de acordo com a necessidade do grupo, principalmente,

devido a conflitos sociais e/ou escassez de riqueza naturais. No que concerne ao último aspecto,

o abandono do território se dava pela necessidade do mato - Ka‘agua - recompor-se.

Ainda nas narrativas, aparecem as interlocuções com outros grupos pertencentes a outros

Tekoha Guasu, o que evidencia a multiplicidade das relações sociais dos Tekoha, possibilitando

aos Guarani e Kaiowa multiterritorializarem-se. Pois, é considerável que cada Tekoha ―é

constituído pelo adensamento de redes de relações sociais estabelecidas entre seus sujeitos

constituintes‖, e possui ―fronteiras geográficas e sociológicas relativamente instáveis‖

(PEREIRA, 2004, p.117).

Outra característica relevante da organização socioterritorial dos Guarani e Kaiowa,

sobretudo, se tratando da dimensão cultural, são as festas religiosas como o Jerosy e Guaxiré que

são movidas por momento de encontros entre os Guarani e Kaiowa. No caso do Jerosy este se

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apresenta como uma festa estritamente religiosa que se faz pelo batismo do milho novo e/ou

branco - Avati Moroti e de outros cultivos novos, ocorrendo nos meses de fevereiro e março.

Segundo Levi Marques Pereira (2004, p.257; 262),

O batismo do milho marca o calendário anual kaiowa, que vai de uma a outra

colheita. Nesse ritual, o tempo histórico da formação social humana participa do

tempo mítico dos deuses, assim, estas sociedades acreditam que sem o ritual o

tempo não se renova, nem se sacraliza. A não realização do ritual implica na

ausência de revigoramento do tempo e a não incorporação da força e da pureza

necessária para a reprodução e a recriação da formação social de maneira

perfeita. Sem o ritual, os homens ficam em certo sentido abandonados pelas

divindades. [Ainda no concerne ao avatí é que] o milho se originou de um

sacrifício de uma pessoa em benefício dos habitantes de sua aldeia: naquele

tempo não existia morte, mas a fome maltratava todo uma aldeia; uma jovem

pediu para ser enterra viva, atenderam seu pedido e no dia seguinte, do local

onde estava seu nariz, havia brotado uma planta de milho, daí o nome avatí

(Ava: gente, e tim: nariz).

Nessa renovação dos ciclos, ocorre juntamente com o batismo dos cultivos novos,

principalmente do milho, o batismo das crianças. Por isso, sem milho não há Jerosy, entre outras

festas religiosas como o Kunumy Pepy 75(Ritual de iniciação dos meninos – Kunumi - menino,

Pepy - festa e/ou convite), onde são os Tekoaruvicha e/ou Ñanderu e Ñandesy é quem viabiliza

todo o ritual (SCHADEN, 1974; SOUZA, 2009).

O milho é tão expressivo no modo de vida Guarani e Kaiowa, ao ponto de Egon Schaden

(1974, p.42) considerar parte da religião a cultura do milho, pois ―tudo o que diz respeito ao

milho se associa ao mundo sobrenatural‖. Entretanto, hoje na RID poucas famílias o cultivam,

tendo como consequência uma diminuição expressiva das ocorrências destes rituais. Neste

contexto, muitas famílias consideram que esta falta é responsável pelo modo incorreto de viver de

muitas famílias - Teko Vai. A ―falta do milho‖ ocorre pela perda das condições necessárias para

que estes possam ser cultivados, desde a disponibilidade necessária de terras, até a falta de

desestabilidade social.

Contudo, o que estamos querendo dizer ao discorrer sobre a importância destas festas no

modo de vida Guarani e Kaiowa é que ela é um importante fator para se compreender a

multiterritorialidade:

Quando vai fazê a festa, ai convida todo mundo, ai vai passando na casa

de um e de outro, é... vai convidando... assim, o índio ele anda muito,

75

Ritual presente entre os Kaiowa.

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andando, andando, vai andando e convidando o pessoal, e o pessoal vai

indo, acompanhando isso daí. [...] Vixi, isso demora, né, tem vez que fica

meses mesmo pra convidá. [...] o Kaiowa vai convidado, mai vai se

divertindo no mato, ele anda, mata um bicho pra comê, é a coisa mais

linda isso daí, porque é nossa história de verdade. [...] ai vai conversano

com a pessoa, convida pra festa... [...]. Ai que a festa é a coisa mais

linda... (Kaiowa Ñanderu Jorge, 2010).

O que é perceptível pela narrativa é que estas festas possibilitavam maiores relações

entre um Tekoha e outro. Tem, então, um expressivo papel no que diz respeito aos Guarani e

Kaiowa vivenciarem outras territorialidades, seja do mato, do universo sobrenatural e/ou mesmo

nas interações com outros Tekoha. É importante ressaltar que hoje estas sociedades recriaram

outras formas de vivenciarem outras territorialidades, onde as festas têm um papel expressivo,

pois a mesma se relaciona com o encontro de territorialidades distintas, nas visitas aos parentes e

nas festas religiosas, como o Jerosy e o Guaxiré.

No que concerne às visitas aos parentes e ao contato na organização das festas religiosas,

o telefone celular, por exemplo, é um importante objeto que viabiliza a conexão dessas gentes

entre as diversas multiterritorialidades ocupadas pelos Guarani e Kaiowa. Possibilitando a

conexão dos que foram precariamente territorializados em condição de reserva, com outras Terras

Indígenas76, com a cidade, ou ainda, com os indígenas que estão em acampamentos indígenas,

acampamentos de retomadas e fazendas, possibilitando que o convite para a festa seja feito com

maior velocidade. Desse modo, estas sociedades recriaram outras formas de viver, com

facilidades de acessarem outras territorialidades que possibilitam a reprodução do modo de vida

Guarani e Kaiowa, viabilizando a conexão direta entre o Tekoyma e Tekopyahu.

76

Neste contexto, o conceito Terras Indígenas (TIs) é referente a uma terminologia, como já assinalado, jurídica-

administrativa que garante às sociedades indígenas direitos de uso e posse sobre as terras tradicionalmente ocupadas,

sendo estas gerenciadas sobre e pela responsabilidade do Estado. Enquanto porções territoriais pertencentes à União,

as Terras Indígenas ficam sob a responsabilidade da FUNAI de assegurar permanentemente as sociedades indígenas

o usufruto da natureza com base nos seus costumes, usos e tradições. Maria Inês Ladeira (2008, p.87) chama atenção

para essas conceitualizações: ―A categoria Terra Indìgena, abrangendo as ―terras ocupadas pelos ìndios‖, de acordo

com a Constituição Federal, as ―áreas reservadas‖ (destinadas à posse e ocupação dos índios, sem confundirem-se

com as de ―posse imemorial‖), e as ―terras de domìnio indìgena‖ (de propriedade plena do ìndio ou da comunidade

indígena), não inclui a noção de territorialidade. Todavia, uma vez que área revela o seu valor fragmentário, e

reserva o conteúdo de confinamento, foi produzida a categoria Terra Indígena, com todas as suposições e

implicações (Lei nº 6.001 – dezembro de 1973, Tìtulo III ―Das Terras dos Índios‖)‖.

No contexto do que a Constituição Federal de 1988 denomina como Terras Indígenas e do que entendemos por

Território Indìgena, a partir das reflexões de Dominique Tilkin Gallois (2010, p.39), podemos dizer que ―[...] Terra

refere-se ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto território remete à vivência,

culturalmente variável da relação entre uma sociedade especìfica e sua base espacial [...]‖.

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Neste contexto, o território não é fixo/zona, não pode ser pensando fora das interações

com outros territórios (na mobilidade, em rede), já que sua criação se faz fundamentalmente na

relação com o outro. Contudo, esses fatores não significam que o território não seja uma busca

pela exclusividade. Fazer-se exclusivamente no espaço é criar território, e sua criação se faz no

confronto e conhecimento da existência do outro, como considerado por Jones Dari Goettert e

Marcos Mondardo (2009, p.113) de que ―A territorialidade pode ser definida como a expressão

territorial de uma identidade‖.

Quando definimos o Tekoha como território é porque existem diversas potencialidades

intrínsecas nas relações sociais dos homens entre si e destes com a natureza que permitem a

apropriação simbólica e material desse espaço, que se faz possível porque existe entre os

territórios uma rede de relações vividas e vivenciadas que ultrapassam as noções funcionais do

território. Podemos dizer ainda, abrangendo ainda mais a complexidade da multiterritorialidade

dos Guarani e Kaiowa no Tekoyma, é que este território engloba as experiências de vida e morte,

as relações mais materiais-funcionais com os espaços de morada para a manutenção da vida (as

riquezas naturais que propiciam a caça, pesca, coleta e a agricultura de coivara) e suas

explicações de existência pela/na natureza. Estas várias esferas possibilitam a criação das

identidades territoriais ou, poderíamos dizer, multiterritoriais, para maior controle e manutenção

do Tekoha, prioritariamente, fazendo-se nos fundamentos do Ñande Reko.

A multiplicidade do viver nos territórios tradicionalmente ocupados se faz na

multiterritorialidade da narrativa do Ñanderu Jorge, nas relações entre o Tekoyma e o Tekopyahu.

O Kaiowa muda também quando briga... É, ele fica assim, é vai pra

outro lugar, muda de lugar. É assim nosso jeito. [...]. Quando casa

também muda de lugar, acho que muda sempre, tem que ficá com a

família dele, né? Acho que isso, é desse jeito, o Kaiowa memo muda,

agora num muda muito, num tem Tekoha pra mudá (2009).

Um mora aqui na casa de reza, no meio, e o outro aqui, aqui se vem aqui,

daqui vai lá e aqui tem outro. (referente aos diversos Tekoha). [...]

Joromingo, o nome ficou São domingo. Esse aqui que mora cada um

numa casa de reza, cada um muda aqui, e esse aqui vai aqui, esse aqui

vem aqui [...] e o outro também é a mesma coisa. Então um morador que

mora aqui, com neto, muda aqui. Casa aqui e vem aqui, casa daqui e vem

aqui... Esse aqui casa aqui nu Panambizinho. Por isso que tekoha dele,

pessoal fala, tekoha dele, tem nome dele lá, cresceu, crio, se formô aqui.

Por isso que o vô morreu, fala que é Tekoha dele.

[...] aqui é Tekoha grande [...] Tem a casa de reza, aqui é Iguarussu, aqui

é Urucuí, Tatuí. No Tatuí colocaro o nome dele porque chamar

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Tatutingué... colocava o nome da pessoa, porque gostava de comê carne

de tatu [...] o Perobá memo, colocaro o nome de Perobá. É o Iguarussu,

que o sardinha, mas mudaro o nome dele. Do Iguarussu vem subindo,

subindo assim, aldeia né? Ai vai subindo era tudo é mato.

O pessoal vai caçá aqui, outro vai caçá ali, vai caçando, ali no meio, no

Caiuaná, ali no cabiceira, é bebedor de bicho, vinha tudo bicho assim.

Pessoal vinha aqui pra matá, é, matero, queixada, porco do mato, é, e

aqui morava o nome, aqui é dourado, farinha seca, o finado da minha

mãe morava ali guasu piquê é o pai do matero o finado meu vô gostava

de comê o pé do materio, por isso que pusero o nome dele guasu piquê

[...].O mato vai vindo e o pessoal morava. O mato é só pra caçá, num

tinha roça. Cada redoma [referente aos Tekoha] tinha a roça, o outro é

só pra caçá [...]. Aqui no Cuchuimguá é onde é bebedor do bicho. O

urucuí é nascido, cheio de coloral (2010).

O Kaiowa Ñanderu Jorge traz vários aspectos sobre a dinamicidade do Tekoha,

demonstrando de forma expressiva que o controle territorial se dá com exclusividade na família

extensa, mas também interconectada com outros Tekoha, por relações de aproximação social e/ou

mesmo de distanciamento (ver Figura I).

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Figura I – Representação do Kaiowa Ñanderu Jorge em torno da multiterritorialidade do Tekoha

Iguarussu

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2010.

A Figura I demonstra um conjunto de Tekoha, que representa onde a família extensa de

Jorge vivenciava sua multiterritorialidade, sendo um território extenso - Tekoha Guasu. Esta

multiterritorialidade se dava por meio de relações de parentesco (por laços consanguíneos,

afinidade e alianças políticas) e pelas relações que estabeleciam com a natureza. Este território

extenso é denominado de Ka‘aguyrusu (território tradicionalmente ocupado pelos Kaiowa), que

compreendia um número superior de Tekoha do representado por Jorge na figura, de modo que o

mesmo faz referência aos Tekoha: Urucuí, Iguarussu, Cuchuí Iguá, Tatuí, São Domingos

(Soromingo), Guasu Piqué (lugar onde sua mãe morou durante um tempo e, segundo Jorge, o

nome do lugar é referente ao pé do matero – pé de erva matte, porque sua mãe gostava muito da

erva) e Peroba.

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Ao consideramos o Tekoha Guasu Ka‘aguyrusu como uma relação multiterritorial,

estamos partindo sempre da análise de relação entre as múltiplas escalas em que as relações

socioterritoriais são estabelecidas no espaço-tempo. Desta forma, pensando as relações entre os

Tekoha transitados e vividos pelos Guarani e Kaiowa, consideramos que cada um deles tem

características específicas, como foram demonstradas pela Kaiowa Alzira (2010a) ao dizer que ―o

nome do Tekoha é o nome do lugar dele... o Tekoha não é igual, tem um que é assim, o outro já é

diferente [...] tem o jeito do lugar, da pessoa que mora ali...‖.

Neste contexto, partimos da análise da organização socioterritorial Guarani e Kaiowa,

nos modos em que os mesmos organizam suas espacialidades, definem e redefinem suas

territorialidades no espaço-tempo, fazendo-se pelos espaços de morada, de caça, pesca... Assim

como, nos espaços de passagem de um Tekoha a outro, marcado pelo ato de caminhar - Oguata.

Ainda, no que concerne a esta relação multiterritorial, o Kaiowa Ñanderu Jorge

representa outros elementos que faziam parte desta multiterritorialidade exercida no Tekoyma,

tais como: ―bebedor de bicho‖ (lugar onde os Kaiowa se dirigiam para caçar, já que concentrava

um grande número de animais que bebiam água. Em suma, é referente a um córrego. Pode-se

considerar que este lugar era também um espaço de sociabilidade entre os diversos Tekoha, pois,

segundo Jorge, era recorrente encontrar alguém caçando ou mesmo fazendo coleta de frutas,

sementes e ervas no lugar) e o Potrerito (referente a um lugar onde tinha muitos indígenas. O

lugar é próximo a uma escola da RID – Bororó, chamada Lacuí).

Ainda, aparece a representação da cidade de Dourados e seu distrito, chamado Itaum e a

Terra Indígena Panambizinho, havendo a necessidade de considerar que estes elementos são

referencias que possibilitam, a partir das espacialidades atuais (Tekopyahu), melhor compreensão

da multiterritorialidade vivida por Jorge no Tekoyma. Consideramos ainda, a importância dos

referencias de cursos de água, como o córrego Sardinha e São Domingo, demonstrando uma

participação expressiva dos córregos e rios (riquezas naturais do território) para a organização

socioterritorial Guarani e Kaiowa.

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2.4 – A reza e a ampliação da multiterritorialidade Guarani e Kaiowa nas relações com a

natureza e o sobrenatural - os Jará: a importância da apropriação simbólica dos seus

territórios

―É pela reza que o Guarani de verdadeiro consegue falar com Nanderu...

Porque Kaiowa e Guarani, de verdade, tem que saber rezá, tem que sabê sará a

criança, tem que sabê a verdade memo do mundo. [...] A reza memo é coisa

mais linda, pode dizê assim, é nossa herança...‖.

Ñandesy Guarani Antônia

Reserva Indígena de Dourados - Bororó, 2010.

―O mato é aqui, lá, é lindo o mato. Lá tem muito bicho, bicho demais chegar ali,

se vai lá no mato e encontra de tudo lá. [...] Cê pode caçá, corrê, fazê... no mato

memo, fazê o que quisé, leva a gurizada no mato pra acalmá... [...] é só alegria.

Mais é isso que to falando, tem que pedi permissão pro dono do mato...‖.

Kaiowa Ñanderu Jorge

Reserva Indígena de Dourados - Jaguapirú, 2009.

―Recordemos sobretudo que, se há uma noção virtualmente universal no

pensamento ameríndio [que não é o ocidental], é aquela de um estado original

de indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia. Os

mitos são povoados de seres cuja forma, nome e comportamento misturam

inextricavelmente atributos humanos e animais, em um contexto comum de

intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. [...].

A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a

humanidade‖.

Eduardo Viveiros de Castro (2006, p. 118).

Para Levi Marques Pereira (2009b), os Guarani e Kaiowa se fazem pelo ethos77 do

discurso religioso, no sentido de que todas as relações com a sociedade e com a natureza se

77

Segundo Mércio Pereira Gomes (2009, p. 49-50) ―A palavra ethos, com th ou sem h, deriva do grego, que quer

dizer costume, comportamento. Equivale, no latim, à palavra more. Derivados adjetivos dessas duas palavras se

tornaram, respectivamente, ética e moral, dois termos equivalentes de grande significância para a filosofia e para a

cultura. Porém, a palavra ethos só foi usada teoricamente a partir do antropólogo inglês Grewgory Bateson, quando,

na década de 1930, tentou explicar a singularidade do modo de sentir o mundo e de se comportar de acordo com

princípios, normas e valores reconhecidos dos povos Iatmul, das ilhas Samoa, onde ele fazia pesquisas

antropológicas [...]. Hoje a palavra ethos transbordou os interesses da Antropologia e parece que se encontra no uso

de literatos brasileiros [refere-se a Luís Fernando Veríssimo]. [...] quando se fala no ethos de um povo, de uma

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fazem por meio da palavra, pela importância da reza. O autor afirma que a religião é fator

inseparável de toda a organização social/territorial, como parte inerente da territorialidade destes

grupos. Assim, todas as relações com a natureza e dos homens entre si é estabelecido pela reza,

no sentido de que se reza para tudo dar certo, e caso haja a falta da reza, a harmonia social do

grupo é colocada em risco. A reza possibilita o próprio caminhar da vida, como o melhor

caminho a seguir, define formas de manejo com as riquezas naturais, jeitos de comporta-se -

Ñande Reko. Nas palavras do Kaiowa Ñanderu Jorge (2010),

Tem que rezá em todo lugar, pra nóis, pra mim, pra Floriza, pra todo

mundo, pra tudo mundo, né, ai pra rezá é muito importante [...]. Se o cê

num rezá, milho num sai, ai o bicho já num encontra mais... se reza pá

sabê o caminho, que rezá pra falá, dizê se tá certo o caminho... [...] tem

que rezá pra tudo, se num rezá... é, assim, se ocê num rezá, tudo fica

ruim, fica meio desorientado isso daí. Tem que sabê falá pra consegui

falá com o Ñanderu, pra sabê da verdade, é assim que nói rezador sabe

de tudo. [...] a reza, você tem que sabê rezá. O Ñanderu passa a rezá, é

assim que acontece...‖.

Da mesma forma que na narrativa de Jorge ele explica a importância da reza em seu

modo de vida, praticamente toda a literatura etnográfica sobre as sociedades Guarani e Kaiowa

mostra o papel da religiosidade na sua organização social/territorial, assim como meio de

mediação para relacionarem-se com a natureza e conseguirem falar com Ñanderuvusu, papel este

exercido pelo Tekoaruvicha e/ou Ñanderu e Ñandesy.

Em algumas narrativas na RID, a palavra se faz ―gente‖, pois, manifestada pela boca de

quem a prolifera este tem a responsabilidade de ―criar-reproduzir‖ o bem ou o mal. É com a

palavra que a comunicação entre o humano e o sobrenatural ocorre, podendo a partir dessas

relações, acreditam os Guarani e Kaiowa, ―destruir o mundo‖ quando este já não corresponde aos

anseios de vida.

Para Bartomeu Melià (apud Maria Inês Ladeira, 2008, p.32), ―a arte da palavra é a arte

da vida‖. Assim como alma e palavra possuem o mesmo significado, o portador de uma alma

(nhee) estrutura sua vida para ser ―suporte e fundamento de palavras verdadeiras‖. [...] Desse

modo, palavra/humanidade/cosmos/eternidade são indissociáveis‖. No que corresponde à

animalidade e/ou humanidade, a partir de Eduardo Viveiros de Castro (1996, p. 117) é necessário

pensarmos no caso dos Guarani e Kaiowa que:

coletividade [...] queremos dizer a subjetividade ou interioridade de sua cultura, a qual tem repercussão como valores

e normas no seu comportamento e no seu modo de ver o mundo‖.

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Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está

quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um

mero envelope (uma ―roupa‖78) a esconder uma forma interna humana,

normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres

transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma

intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana,

materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a

máscara animal.

É por meio da reza que os Guarani e Kaiowa, como consideram em suas narrativas,

conseguem se desligar do mundo material e ―participar‖ de outro mundo, como pontua a Floriza

ao dizer que ―no mundo de lá, num consegue vê sem rezá‖. Este mundo está no âmbito do

sobrenatural - mítico religioso e, coloca-se como equilíbrio a todas as relações na terra. Uma

Ñandesy da Terra Indìgena Panambizinho, ao dizer que os ―verdadeiros‖ indìgenas, referindo-se

aos Kaiowa, são aqueles que sabem rezar e não se encantaram pelo mundo do Karaí, conseguem

pela reza ―chegar‖ fazer seu corpo flutuar e/ou levitar.

No que concerne aos Karaí, Graciela Cândida Chamorro (1999, p. 19-20) assinala que a

religião é uma das formas que os Guarani e Kaiowa conseguem afirmar seu modo de vida perante

a sociedade ocidental, no sentido de que estes:

Escolheram sua religião como afirmação diante da sociedade ocidental, como

forma de continuarem sendo os mesmos e evitarem a ser reduzidos a cidadãos

genéricos. Nessa religião, a ―palavra‖ ocupa o centro do sistema. Ela é o

conceito-existência que explica como o indígena se compreende e compreende

sua existência.

Assim, a religião ocupa em todos os desmembramentos de afirmação e negação do

outro, papel central na construção de identidades, de quem sabe ou não rezar, e/ou mesmo dizer

quem é ou não um verdadeiro Ñanderu e Ñandesy. Na RID é muito frequente nos espaços de

socialização dizer quem tem a melhor reza ou quem sabe rezar. Neste aspecto, Levi Marques

Pereira (2004) assinala nunca ter havido um rezador que fosse unanimamente reconhecido por

todos Guarani e Kaiowa nos arredores de um Tekoha Guasu.

78 ―A noção de ‗roupa‘ é, com efeito, uma das expressões privilegiadas da metamorfose — espíritos, mortos e xamãs

que assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em

animais —, processo onipresente no ―mundo altamente transformacional‖ (Rivière 1994) proposto pelas culturas

amazônicas‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.228).

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Referente à consideração da Ñandesy, a reza possibilita fazer o corpo flutuar e/ou levitar,

este fato é integrante de um conjunto de fatores que se misturam a dança e ao canto,

possibilitando as gentes, claro, para estes, os verdadeiros rezadores, transcenderem. Este sair de si

mesmo e se ―conectar‖ com outros lugares deve ser compreendido com uma possibilidade de

multiterritoralização Guarani e Kaiowa que não se faz materialmente, mas por meio de crenças

que possibilita a eles viverem, ou melhor, acionarem ―outros mundos‖, onde se encontra as

divindades, os deuses, sendo estes os responsáveis pelo equilíbrio social e natural.

Levi Marques Pereira (2004, p. 223) considera que os Guarani e Kaiowa,

[...] Não se vêem eternamente ligadas ao território ocupado. A cosmologia

Kaiowa enfatiza que a existência na terra é transitória, o destino final da

humanidade é retomar o convívio com os deuses, e isto não será possível na

existência terrena. [...]. Os Kaiowa apresentam sentimento semelhante quando se

referem à vida na formação social atual: destituídos desde tempos imemoriais de

seus xamãs poderosos, capazes, como dizem, de curar, ressuscitar, fazer as

plantas crescerem e produzirem bem, fazer aparecer a caça, etc., se sentem como

órfãos no mundo atual, altamente desfavorável às suas comunidades. Parecem

emprestar do branco – karai – instrumentos que lhes permitam produzir e viver

nas atuais circunstâncias e, mais do que nunca, a terra é atualmente um lugar de

breve passagem.

A terra é uma condição passageira, enquanto o mundo cosmológico é o que possibilita a

presença eterna. No sentido a ser considerado por Joel Bonnemaison e Orstom Vanuatu (2002,

p.116) em torno de uma pequena ilha, de que ―a terra não [é] apenas um lugar de produção, mas

também o suporte de uma visão de mundo‖.

No que se remete à formação das gentes em torno de uma comunidade e/ou sociedade,

para os Guarani e Kaiowa os laços atribuídos a família extensa, apresentam-se como fator

distintivo daqueles que não pertencem à determinada rede de sociabilidade. Pois, a reza media

todas as relações da vida e morte, sendo que é a partir dela que estas sociedades conseguem

explicar suas relações com a natureza, com os homens, com o sobrenatural... É através dela que o

poder da palavra torna-se presente, podendo ser proferida pela narrativa, de modo que não é só na

palavra profetizada, mas também, pelos cantos e pela dança que possibilita o ―trânsito‖ entre o

mundo material e imaterial. É ―pela palavra que Kaiowa é Kaiowa‖, ―é pelo jeito da gente que

fala‖, considera a Ñandesy Antônia.

A época nossa é seis mês que vem o milho saboró, colhe e faz Jerosy e

depois Jerosy kubaká. Ai vem caldo de milho saboró, aquele lá é nosso

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comida típica, aquela época [...]. É nossa orige, a época. Creio que esse

ano vai acontecê pra nói, pra nóis é muito importante esse milho saboró,

milho, [...] é nossa comida típica mesma.

Pode-se dizer que a reza é narrada pelo movimento do corpo, cantada pelo ritmo do

Mbaracá79 e da Taquara80 (vide foto I), buscando pelo ritual conectar-se com o outro mundo. A

reza é um poder tão importante que estas sociedades consideram através dela terem o poder de

matar e se matarem, no que se refere ao segundo, a presença de tais ―rezas‖ é assimilado a

feitiços que servem para fazer o mal. Mas, segundo consideram, somente aquele que sabe rezar

poderá fazer um feitiço para outra pessoa. Segundo Levi Marques Pereira (2004, p. 78) o feitiço é

um distintor de maus comportamentos, pois ―a pessoa pode estar com seu comportamento

alterado porque é vítima de feitiço ou pela interferência de seus fins, como, por exemplo, dois

irmãos não se entendem tão bem como deveriam por causa da interferência de uma das cunhadas,

ou vice-versa. Assim, a turbulência nas relações é projetada para do campo da consanguinidade‖.

Em condição de reserva, a reza torna-se um importante agregador social, onde todo e

qualquer problema interno tende a ser apontado como feitiçaria. Contudo, com a ―reza boa‖, os

problemas são resolvidos, já que segundo os Guarani e Kaiowa, é pela reza que se pode acalmar e

curar gentes. No entanto, nestas novas modalidades de territorialização (PEREIRA, 2006; 2007),

os rezadores tem seus poderes desprestigiados. A ―falta‖ da reza é apontada pelas famìlias

tradicionais como principal fator da desorganização social, remetendo-se a ―falta de rezadores‖.

Consideramos que o poder da reza tradicional e a importância desta no modo de vida

Guarani e Kaiowa na RID não é uma relação presente em todas as famílias, mas que ocupa eixo

central no modo de vida das ―famìlias mais tradicionais‖, principalmente daquelas que veem a

necessidade de retomar o Tekoha (discutiremos no quinto capítulo). Assim, devido à condição de

reserva, ou seja, devido às implicações do Tekopyahu, a reza passa a ser um importante fator a ser

resgatado, como considera a Ñandesy Floriza (2010): ―tem que regatá a cultura, regatá a reza...

Se num rezá a violência fica...‖.

Para estas sociedades, sem rezador, logo, sem Ñanderu e Ñandesy ―[...] não há

agricultura, caça, pesca, parentela, nem Tekoha. O xamã em seu ofício desencadeia as forças

vitais responsáveis pela reprodução dos diversos campos da existência; ação do xamã atual imita

79

Assemelha-se a um chacoalho, sendo feito por cabeças e sementes. Segundo Bartomeu Melià, George Grünberg e

Friedl Grünberg (2008, p. 168) ―[...] es la maraca de uso oblegatorio para cada hombre adulto y lleva um nombre

individual, revelado a través de inspiración divina. También mujeres le pueden hacer hablar [...]‖. 80

Nome de árvore - Taquaral.

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a ação criadora do primeiro criador – Ñanderuvussu [...]‖ (PEREIRA, 2004, p.228, - grifo do

autor). O ―cacique81 rezador‖, como salienta um Kaiowa, é um sujeito que estabelece a relação

direta com o ―criador‖, é quem tem o dom nas relações estabelecidas com o natural e o

sobrenatural. É aquele que tudo sente e sabe, e a partir dele que conseguem recriar e resistir às

imposições - Tekopyahu, conseguem tirar força para dar continuidade ao Teko Porã, no sentido

de que ―tem de sabê falá com Deus‖, para conhecer o futuro.

É a partir da reza que os caminhos são traçados e descobertos, mostrando as trilhas a

serem seguidas pelos Guarani e Kaiowa. Ainda é por meio dela que se tem a revelação do que

futuramente poderá acontecer. É nela que o Tekoyma se faz presente no ato de conectar-se com o

sobrenatural por meio da reza, através do poder daquele que sabe rezar. Alguns Ñanderu e

Ñandesy assinalam que desde criança há uma revelação de quem representará Ñanderuvussu,

sendo que o novo representante deve ter como características humanas, a bondade e a humildade.

Acredita-se que somente com estas características este poderá conseguir conectar-se a

dois mundos, o cosmológico e a vida terrena, isso significa conseguir estabelecer relações com o

sobrenatural e ―falar diretamente‖ com Ñanderuvusu, logo, estabelecer relações entre as esferas

humanas e inumanas. Entretanto, se para os Kaiowa esta condição é prioritariamente uma

construção no bojo das redes sociais, para os Guarani, por vezes, esta condição aparece como

algo a ser herdado a partir do nascimento.

Segundo Eduardo Viveiros de Castro (1996, p. 116-117) a diferenciação entre humano e

não humano, natureza e cultura, animal e humano etc. não é uma relação tão simples de ser

resolvida em sociedades tradicionais (como podemos observar nas narrativas dos Guarani e

Kaiowa), pois essas diferenças não seguem a mesma lógica ocidental. Na cosmologia, os

humanos são também natureza, mas revestidos das mais distintas formas animais.

[...] as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não

subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus

análogos ocidentais - elas não designam províncias ontológicas, mas apontam

para contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista.

[...] O estímulo inicial para esta reflexão são as numerosas referências, na

etnografia amazônica, a uma teoria indígena segundo a qual o modo como os

humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo —

deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos

meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefato -, é profundamente

81

Nomeação não tradicional, imposta pelos agentes indigenistas oficiais que foram apropriados pelos indígenas

como meio de corresponder aos seus anseios no Tekoha.

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diferente do modo como esses seres os vêem e se vêem. Tipicamente, os

humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos, os animais

como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais

(predadores) e os espíritos vêem os humanos como animais (de presa), ao passo

que os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais

(predadores). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos:

apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas

próprias casas ou aldeias, e experimenta seus próprios hábitos e características

sob a espécie da cultura - vêem seu alimento como alimento humano (os

jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os

urubus vêem os vermes da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos

corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos

culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as

instituições humanas (com chefes, xamãs, festas, ritos etc.).

Aproximando-se das colocações do autor, se a reza é a essência da vida Guarani e

Kaiowa, por meio da reza é que todos os aspectos da vida, e sua relação com a natureza, são

dinamizados. Os Guarani e Kaiowa acreditam na presença do senhor e/ou dono de todas as coisas

que, de forma mais intensa os Ñanderu e Ñandesy, conseguem estabelecer maiores relações com

eles. Neste aspecto, Ñanderuvusu apresenta-se com o ―dono maior‖, sendo ―o dono de outros

donos‖. As relações com estes seres míticos são feitas juntamente com a natureza, ao mesmo

tempo em que se confundem a ela, pois a divisão entre cultura e natureza é uma invenção

estritamente ocidental.

Entender este perspectivismo ameríndio, como discorre Eduardo Viveiros de Castro

(1996), é perceber que a dimensão dos laços simbólicos com o território - territorialidade, nestas

interações com os outros mundos, com outros seres não humanos, permite aos Guarani e Kaiowa

vivenciarem múltiplos aspectos de sua territorialidade, onde alguns se restringem e se confundem

a alguns personagens humanos, pois se tudo tem um dono, logo, os Guarani e Kaiowa também

são os donos. Entretanto, o papel dos donos, os diversos Jará destas sociedades, restringe-se aos

outros donos pertencentes aos seus campos místicos e míticos. Neste sentido, é considerável a

existência de multiterritorialidades que perpassam as relações das gentes Guarani e Kaiowa com

seres visíveis e invisíveis.

Segundo Levi Marques Pereira (2004) somente os rezadores sabem se comunicar com os

Jará, o que demonstra que algumas territorialidades são vividas especificamente por alguns

membros desta sociedade, onde os Ñanderu e Ñandesy ocupam papel central, já que são eles que

dialogam e negociam com os diversos donos, e claro, com os donos de tudo.

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Como considera Levi Marques Pereira (2004), os Jará são os donos de tudo, toda a vida

Guarani e Kaiowa sofre a influência destes. Em suma, estes aparecem de distintas formas, os

donos das florestas – Ka‘aguy Jará, os donos das plantas agrícolas – Jakaira, os donos dos

animais - So‘o Jará. Entretanto, há sempre relações destes com o mato, no sentido de que

―acaba o mato os Jará muda de lugar‖. Ainda para o autor, no que se remete as relações dos

Guarani e Kaiowa com os Ka‘aguy Jará, estas relações no Tekoyma eram muito mais restritas, já

que estes ocupavam os espaços ―fora‖ das redes de sociabilidade mais intensa, como a casa e as

áreas de roça82. Contudo, hoje, devido à desterritorialização de seus Tekoha e a inserção em

outros processos de territorialização, culminando na desarticulação de vários aspectos que

intermediava as relações com o Jará, o papel das áreas de mata tende a ser o fator mais

considerado entre os Guarani e Kaiowa, sendo viável considerarmos que tal relação se dá porque

estas sociedades sempre acreditaram que o mato era uma riqueza natural finita83 (PEREIRA,

2004). Ainda em Levi Marques Pereira (2004, p. 41):

A bibliografia guarani atesta a ênfase especial na linguagem religiosa, como um

traço distintivo desse grupo étnico. Os Kaiowa explicam que esse tipo de

linguagem é o único que possibilita a comunicação entre os homens e os outros

seres situados em planos de existência diferentes, como os deuses e os donos –

Jará – de animais ou plantas, pois ―só o rezador (xamã) sabe conversar com

eles‖. A comunicação xamânica é uma espécie de superlinguagem, permitindo a

comunicação dos homens com seres situados em outros planos cósmicos:

havendo comunicação há também relação, e esta pressupõe a comunicação. De

certa forma, a linguagem xamânica é uma linguagem não-humana, seu uso se

restringe à comunicação com ―os de cima‖ ela não serve para veìculos

informações entre as pessoas na convivência diária.

82

Levi Marques Pereira (2004) considera a existência de outros Jará, pertencentes a outros patamares celestes, para

além do plano terreno, como é a representatividade de Ñandejara (nosso senhor ou dono). Como para os Guarani e

Kaiowa a terra é um lugar de passagem, o destino almejado é atingir a morada de Ñanderuvusu, a divindade primeira

da cosmologia destas sociedades. 83

A agricultura de coivara entre os Guarani e Kaiowa está relacionada com a necessidade da recomposição das

perdas nutritivas do solo, e esta prática implicava nos processos de mudança de lugar por estas sociedades, pois

possibilitava a reconstituição da mata e do solo. Levi Marques Pereira (2004, p.187-188) demonstra que o próprio

uso do fogo, participante da agricultura de coivara, ―[...] funcionava muito bem no sistema de manejo tradicional,

quando os Kaiowá dispunham sempre de novas áreas de floresta para roçados enquanto a antiga roça – kokue kue -,

tornada pouco produtiva pelo desgaste do solo ou, mais provavelmente, pela invasão de plantas daninhas, era

abandonada para a lenta regeneração da floresta. Durante alguns anos, a antiga roça continuava sendo visitada por

expedições de coleta, para recolher produtos de plantas perenes ou semiperenes, como banana, batata, fumo, urucum,

mamão e outras espécie de frutas. O uso do fogo enquanto técnica para limpar e preparar o solo é associado ao

trabalho masculino de roçar e queimar – kopi e ohapi (okaipa) -, que envolvem o trabalho de preparação da nova

roça. Estas atividades antecedem o plantio – oñotyu -, trabalho no qual geralmente as mulheres têm uma participação

efetiva e, no caso de certas espécies, [...] só elas devem semear. Estas atividades seguem, portanto, o eixo da divisão

sexual do trabalho‖.

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Os donos dos animais, das árvores, das frutas, dos rios, das casas, dos homens... O

poder instituído aos Guarani e Kaiowa ao falarem com os Jará se faz em todos os aspectos de sua

vida, aparecendo sempre relacionados e confundindo-se com o próprio mato - Ka‘aguy,

mediando a partir desta condição as restrições dos diversos usos dessas áreas nos processos de

negociação com os Jará, como aparece nas narrativas abaixo:

Aí, o branco num sabe o segredo nativo da terra. Que a terra é uma

coisa que deve... (silêncio) porque o peixe cai lá de cima, na terra, cê o

dono dele era igual a nóis. Nóis temo um bicho né, galinha, um porcão, e

tudo as coisa põe na panela, derruba as coisa. O dono dele num mata,

doa pra pessoa bicho do mar. Às vezes você vai lá, você sai daqui, cê

acha um bicho lá, ele num mata, é assim que é a natureza (Kaiowa

Ñanderu Jorge, 2009).

O porco do mato, cê vê, todo mundo fala que num tem dono, ele é, acho

que a gente se cria assim, natural, sem dono, mas tem dono. E o porco do

mato, já corta assim, na pontinha, tudo marcado, o dono dele que marca

ele (Kaiowa Ñandesy Floriza, 2009).

É a mesma coisa bicho do mato, cê vê, não morre nenhum, só se for

atropelado de carro, essas coisa. É assim que é, e o índio num pega um

tatu, galinha, bicho do mato pra vendê na cidade, ele mesmo come na

casa dele. Cê pode andá no mato, nem se acha, que nenhum morre. [...]

É assim a vida do pessoal, nem a cobra, cê vê que não morre. Igual o

bicho do mato, renova o dono dele, renova. Se você foi no mato, assim e

o cê não acha nada, o dono dele, o dono dele não mostra pra pessoa pra

achá aquele bicho. Até de agosto ruim, é um dia muito ruim. É por isso

que o povo não tem violência, assim, caçava bem, vivê com o pessoal.

Nessa época tem muita fruta, o índio anda muito no mato pra comê

aquela fruta (Kaiowa Ñanderu Jorge, 2009).

Tudo tem o dono dele. Jára é o dono, tudo, por isso que tem rezá de tudo,

criança, milho, pra terra... tem que falá, Jára [...] (Kaiowa Ñanderu

Admiro, 2010).

É que aquele lá só dá no mato né, ali o mato acabô, ele acaba. O cará,

cada um tem um dono, essas coisa da planta [...] a onde desmatô, não

tem mais mato, ele muda daquele lugar [...] muda pra lugar, é assim que

é a lei da natureza. Aqui nesse lugar (Jaguapirú) tinha cará, mas cada

cará bonito, o cipó dele arrancava ele, um batatão de cará [...] ai finado

minha mãe, gostava de rancá, ela falava: ―filho vão ranca cará. Ia lá no

mato e trazia quase meia bolsa de cará. Ai na hora do almoço já tinha

aquele lá. E faz no almoço no lugar de uma mandioca, se faz o cará.

Aquele cará, depois que tá cozido, ele é seco, igual uma farinha de trigo,

cê pode comê com carne. Se quizê fazê guizado dele, é tudo. Ele mudô,

mudô daqui, mudô ceropo‘y, lá é o lugar dele [...] é lá no pindoroká

(Kaiowa Ñandesy Floriza, 2009).

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Por isso, na narrativa dos Guarani e Kaiowa acerca da ―fuga no mato‖, estes explicam

que são espaços de caças, coletas e pescas, ocupados também para a liberdade, como refúgio do

cansaço do convívio cotidiano, das alegrias e brincadeiras. É onde podem des-re-territorializar da

vida ―pacata‖ da casa e vivenciarem outras (multi) territorialidades.

Assim, essas interações são narradas por Jorge e Floriza (2009), demonstrando ainda

uma multiterritorialidade mais complexa que ultrapassa as temporalidades entre o Tekoyma e o

Tekopyahu, ultrapassa os limites dos territórios da casa, de outros Tekoha, com o mato, com os

Jará, com os Ñanderuvusu... Mostrando assim, uma multiplicidade do fazer-se Guarani e Kaiowa

nas inter-relações com os homens e com a natureza, estando sempre em negociação.

Podemos pensar estas relações a partir da afirmação de Joel Bonnemaison e Orstom

Vanuatu (2002, p. 110) de que os territórios explicitamente são uma construção vivida

cotidianamente, logo, estes são construídos e reconstruídos pelo movimento das gentes, mas,

também, da natureza: ―o espaço vivido é [...] um espaço movimento formado pela soma dos

lugares e trajetos que são usuais a um grupo ou indivíduo. Portanto, trata-se de um espaço de

reconhecimento e familiaridade ligada a vida cotidiana‖.

O mato é coisa mais linda, num mato tem tudo, quati, onça do mato...

mais tem muito macaco lá, tem muito mel também... [...] é assim o

Ñanderu conversa com os dono dos bicho, pá podê ficá no mato, brigá no

mato... Quando vai no mato, é assim... [...].

A gente vai, saracuá, onde não pega pedra, ai cê vai procurando onde é a

terra [...] onde dá pra plantá milho. Cada ramo que dá. O mato dá

muito, é, quanto anos que tem aquele adubado, ai você queimando

aquele mato, tanto assim, natural, em cima da terra. Ai na onde você

planta, a planta nasce. E o cerrado não, o cerrado se tem que tratá, é

mais fraco [...]. a mandioca preta dá melhor no campo, da amarela, já

num dá.

É o mato, a natureza natural do Kaiowa é do mato, vai lá no mato, fazê

uma caçada e vê um bicho que canta [...] to passando... [...] É ali, esse

que eu to passando, que esse mato, ali é pra gente, num tem, num chega

doença, pra nóis aquele lá, que nas cê criança, é [...] Quando criança

nasce.

Os índios fica dividido naquele mato, é que você vai lá no mato, num tem

briga, num tem violência, dia e domingo, dia da época que sábado,

finado, semana, você lembra pra ir, se você tivé um cachorro, se é pra

mata um caçador de tatu. Ai você vai naquele mato lá, você começa se

divertí, pareci que você num tem uma tristeza pra você na vida. Ai você

vai lá no mato e cachorro começa latí, se diverti muito, cê corre pra cá,

praça, se num passa hora que passa. É a mesma coisa que uma pescada.

Uma pescada de peixe, você vai lá no meio do rio, erra se diverti muito,

num tem uma tristeza. Você num pensa do outro que fala que aquele lá é

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descontrola do outro, brigando. Você só lembra daquele bicho que o cê

vai caçá e enquanto num mata aquele bicho. O sistema do Kaiowa né,

não lembra do nome do outro, é uma alegria pra gente, corre pra cá,

outro corre pra lá.

Inclusive se você acha um macaco, o macaco cê você tiver no mato, se

corre pra cá, se corre pra cá, se corre pra lá, é o dia embora. [...] Num

tem, por isso que uns índio fica triste, se num lembra aqui na casa, assim,

dia de sábado, meio dia o pessoal ia caçá, assim, caçá bicho e chega lá

no mato, corria pra cá e pra cá, pra lá, melhor tem diversão. E agora

não se fica na casa assim, parece que o cê fica triste debaixo de uma

árvore, ali você sente. Na minha época e porque que o caço muito, todo

ano. Eu tinha um cachorro bom, agorinha falei pro meu cunhado, nóis

podia caçá tatu pra nóis comê carne diferente. Chega de carne de gado.

Inclusive se você acha um macaco, o macaco cê você tiver no mato, se

corre pra cá, se corre pra lá, é o dia embora...

Agora? Num tem! Por isso que uns índio fica triste, o cê num lembra aqui

na casa, assim, dia de sábado, meio dia o pessoal ia caçá, assim, caçá

bicho e chega lá no mato, corria pra cá e pra cá, pra lá, melhor tem

diversão. E agora não se fica na casa assim, parece que você fica triste

debaixo de uma árvore ali, você sente. Na minha época e porque que o

caço muito, todo ano. Eu tinha um cachorro bom. Agorinha falei pro meu

cunhado, nóis podia caçá tatu pra nóis comê carne diferente. Chega de

carne de gado! (Silêncio) (Kaiowa Ñanderu Jorge; Kaiowa Ñandesy

Floriza, 2010).

O que é considerável é que o Tekoha se faz como uma complementaridade de lugares,

a partir de um conjunto de correlações dos homens e a natureza; dos homens e os seres míticos e

místicos (sobrenatural) e dos homens entre si. O que essas sociedades entendem por humano está

intrinsecamente relacionado ao que estes entendem por natureza, tal qual das relações e

intervenções destes seres míticos na organização socioterritorial Guarani e Kaiowa.

Nesta perspectiva, é necessário pensarmos que para os Guarani e Kaiowa seu modo de

vida está interdependentemente relacionado com/na natureza, pode-se dizer, ―o homem na

natureza, a natureza do homem‖. No sentido de entender o natural e o sobrenatural como parte

integrante da humanidade, demonstrando assim que ―a cultura é a própria natureza fazendo-se

humanamente‖, e, por sua vez, o Tekoha é a expressão e a condição necessária desta

multiterritorialidade.

Percebe-se que o ―viver livre no mato‖, presentes nas narrativas, nas relações

constituídas no Tekoyma, tem sua oposição no viver ―preso‖ na reserva - Tekopyahu, onde este

novo ―estar‖ se delineia em um invólucro de perdas territoriais, ou seja, de seus Tekoha à

territorialização precária nas reservas. Assim, como já salientando anteriormente, a ―condição de

reservados‖, em reservas demarcadas pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio), impôs a estas

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sociedades novos modos de aprender e conviver, por isso estes tiveram que desvendar os

segredos das novas relações de convívio, não intrinsecamente pautados no Tekoyma84.

Assim, os Jará são ―sobrepostos‖ a outras relações, são recriados. A figura do Plata

Jará - o dono do dinheiro, referenciando ao ―branco‖, é uma recriação estabelecida com a

finalidade de estabelecer negociações, já que as relações com os Jará são sempre uma rede de

negociações. Os novos ordenamentos territoriais em condição de reserva, também são

responsáveis para que os Jará mudem de lugar, devido à indisponibilidade espacial para ele se

reproduzir, principalmente com a ―mudança do mato‖, expressão que estas sociedades usam para

sintetizar a presença do não indígena em seus territórios - os desmatamentos.

Portanto, é conseguindo estabelecer novas relações com as riquezas naturais, com o

retorno aos Tekoha, que os Guarani e Kaiowa acreditam que novamente conseguirão falar e

negociar com os mais diversos Jará. Também, no que concerne à territorialização imposta dos

Guarani e Kaiowa em condição de reserva (o Tekopyahu - desarticulação do modo correto de

viver - Teko Porã), o Teko Porã, é possível e necessário de ser reproduzido novamente com o

retorno ao Tekoha (como melhor explicaremos no quinto capítulo).

84 No caso dos Guarani e Kaiowa em condição de reserva, os poderes dos Ñanderu e Ñandesy não são mais

confiáveis, muitos consideram que a comunidade está em risco, já que não há tantos rezadores para negociar com os

donos e estabelecerem relações com os múltiplos deuses. Em via de mão dupla, a diminuição de área de matas, com

o desmatamento, está relacionada com o deslocamento dos Jará para outros lugares, assim são mudadas todas as

relações destas sociedades com a natureza, já que com o fim do mato, os Jará mudam de lugar, pois estes se

encontram no mato – Ka‘aguy. (PEREIRA, 2004).

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Foto I – Parte interna da Ogapysy e/ou casa de reza do Ñanderu Jorge e Ñandesy Floriza85

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2010.

A partir da Foto I, podemos dizer que o Mbaracá e a Taquara86, são elementos materiais

da cultura Guarani e Kaiowa que propiciam a comunicação com os deuses, pois é com estes

instrumentos (entre outros, como o Takuapu, Guyrapa‘i, Mimby Apyka87...) que os rezadores e

rezadoras se comunicam com Ñanderuvussu – nosso pai maior. Pois, a comunicação se faz pelo

poder da palavra, que é envolvida pelo canto, pela dança e pelo som dos instrumentos religiosos,

possibilitando mediar relações dos homens com os deuses, revivendo os mitos de origem,

85

Segundo Deise Lucy Oliveira Montardo (2009, p.70) ―O altar, yvyra marangatu (yvyra – madeira, marangatu –

bom, sagrado), tem várias partes e basicamente é formado por três varas fincadas no chão, colocadas uma ao lado da

outra. A do meio, a mais alta, adornada com fitas que são seu jeguaka (― adorno de cabeça‖), é o local por onde

desce o relâmpago: ela o segura e conta a mensagem por ele trazida. Durante o ritual sempre deve ficar algum

yvyra‘ija, ―guardião‖, cuidando deste local. Aos pés do yvyra marangatu, repousa um barco confeccionado em

cedro, que deve permanecer sempre naquele local, com um pouco de água para que o beija-flor venha beber‖. 86

A Taquara é somente tocada por mulheres. 87

Para melhor compreensão em torno dos instrumentos religiosos Guarani e Kaiowa, indicamos o trabalho de Deise

Lucy Oliveira Montardo (2009).

Mbaracá

Taquara

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ampliando os espaços de socialização, revivendo o modo de vida dos antigos (Tekoyma),

esperando pelo retorno ao Tekoha.

Com relação à importância dos elementos religiosos para a reprodução do modo de vida

Guarani e Kaiowa, segundo Deise Lucy Oliveira Montardo (2009, p. 275): ―Os instrumentos,

principalmente, têm o papel de atingir a escuta dos deuses ―lá‖ em sua morada‖. Para Ñandesy

Floriza (2010), há necessidade de ―sabê rezá‖, de modo que esta relação perpassa a necessidade

de saber tocar os instrumentos religiosos, pois são ―as armas da gente‖.

Em síntese, as relações que os Guarani e Kaiowa estabelecem com a natureza e com o

sobrenatural em seu território podem ser compreendidas, por meio de Rogério Haesbaert (2007,

p.16), como a representação das dimensões materiais e simbólicas do território. Estas relações

nos revelam, pautados na realidade, que o território deve ser entendido numa ―perspectiva

geográfica, intrinsecamente integradora, [...] [abrangendo] o processo de domínio (político-

econômico) e/ou de apropriação (simbólico-cultural) do espaço pelos grupos humanos‖.

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TERCEIRO CAPÍTULO

A CRIAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS:

TERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA E IMPOSIÇÃO DO TEKOPYAHU

―O índio num é igual vocês brancu... é... o índio, num gosta de morá de

parede... Num é igual vocês da cidade... (risos). [...] o índio num sabe vivê

apertado. Assim né, esparramado. ―Se óia bem, mudô tudo... Antes vivia assim,

vivia cada um no Tekoha dele, agora tá tudo junto‖.

Kaiowa Ñanderu Jorge

Reserva Indígena de Dourados -Jaguapirú, 2010.

―Cada um de nós necessita, como um ―recurso‖ básico, territorializar-se‖.

Rogério Haesbaert (2007, p. 16).

A RID é parte de uma criação e invenção da sociedade moderna-colonial, pois

compreendemos que as territorialidades e multiterritorialidades vividas pelos Guarani e Kaiowa

em seus territórios tradicionalmente ocupados (Tekoha) não são condizentes com os modos de

viver em condição de reserva, ou seja, como ―indígenas reservados‖. Pela narrativa do Kaiowa

Ñanderu Jorge acima, podemos dizer que a organização socioterritorial destas sociedades no/do

passado, com base no modo de vida dos antigos (Tekoyma), é distinta da realidade em que vivem

hoje, sendo marcada por uma territorialização precária, expressa na dificuldade de ―morá de

parede‖.

A reserva está localizada nos municípios de Dourados e Itaporã (MS), e a mesma é

compartilhada territorialmente pelas sociedades indígenas Guarani, Kaiowa, Terena88 e outros

88

Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1976) ―Os Terena representam, pois, um dos subgrupos Guaná ou Txané

[...]‖. (p. 21). Os demais grupos Guaná são Laiana e Kinikinawa. ―Todos estes grupos indígenas que falam a língua

Aruak têm diferenças entre si, mas possuem uma mesma língua de origem. Além desta proximidade que indica uma

origem comum, estes grupos têm semelhanças na forma de sua organização social. Todos esses grupos possuem ou

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grupos indígenas como os Kadiwéu e Xavante89, mas também, por não indígenas. Para

compreender minimamente esta reserva, primeiramente é necessário dizer que esta tem a maior

densidade populacional por extensão territorial comparado a outras Terras Indígenas no Brasil,

estimando haver uma população de 13.020 indivíduos, segundo os dados oficiais da Fundação

Nacional de Saúde (FUNASA, 2007), para uma extensão territorial de aproximadamente 3.475

hectares, segundo os dados da Fundação Nacional do Índio (1985) e do Instituto Socioambiental

(2009). Deste total, temos 7.837 Kaiowa, 2.691 Guarani, 2.429 Terena, 03 Kadiwéu, 01 Xavante

e 59 não indígenas, podendo considerar que em termos quantitativos, os Kaiowa têm a maior

representatividade, correspondendo a 60% da população total. Segue os Guarani com 21% e os

Terena com 19%. Referente aos outros indígenas e não indígenas, estes não atingem 0,1% da

população total da reserva.

Estes dados nos mostram que, diferente das territorialidades vividas pelos Guarani e

Kaiowa no Tekoha, a imposição do Tekopyahu na RID impossibilitou e impossibilita, em muitos

aspectos, a recriação e reprodução do modo de vida destas sociedades nos preceitos do Tekoyma,

considerando que a reserva é fundamentalmente a expressão do modo incorreto de viver (Teko

Vai). A precariedade de viver na RID implica em redimensionamentos territoriais que constituem

outras territorialidades e multiterritorialidades Guarani e Kaiowa. Implica, também, na

construção de novas fronteiras de encontro e desencontro com o outro, novas formas de imaginar

os outros, de ser e estar no mundo...

Deste modo, em condição de reserva, cada grupo étnico e/ou cada família extensa busca

conseguir a exclusividade territorial. Para melhor entender esta relação é necessário considerar as

territorialidades vividas pelos Guarani, Kaiowa e Terena. Por isso, as questões que temos que

entender são as seguintes: Quem são os Guarani e Kaiowa aos ―olhos‖ dos Terena? Quem são os

Terena aos ―olhos‖ dos Guarani e Kaiowa? Quem são os Guarani aos ―olhos‖ dos Kaiowa? Quem

são os Kaiowa aos ―olhos‖ dos Guarani? Quem são os ―brancos‖ aos ―olhos‖ dos Guarani,

Kaiowa e Terena? Estes ―olhares‖ demonstram as múltiplas histórias-trajetórias que estão se

fazendo na RID, assim como os múltiplos territórios e territorialidades em disputa.

possuíam formas de organização internas características, sendo tradicionalmente agricultores e conhecedores das

técnicas de tecelagem e cerâmica‖ (BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, p. 19). 89

Dados da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA, 2007). É importante dizer que alguns Terena sinalizam que são

Kinikinawa, como discutiremos posteriormente neste capítulo. Os Kadiwéu e Xavante podem também, como caráter

político acionarem outras identidades indígenas existentes. Contudo, durante a pesquisa, não encontramos subsídios

para discutir estas duas sociedades indígenas territorializadas também na RID.

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Para os Guarani e Kaiowa todas as conflitualidades existentes na reserva estão

diretamente relacionadas à ―falta‖ de espaço, ou seja, aos exìguos espaços disponìveis para a

reprodução do modo correto de viver. Por isso, são obrigados a compartilharem territórios com

aqueles que no Tekoyma estabeleceriam relações de distanciamento. Mas, esta possibilidade é

admitida por alguns motivos nos quais podemos elencar os seguintes: por estarem longe dos

parentes, pela proximidade com a cidade, pelas interferências do modo de vida não indígena...

Nesta perspectiva,, compreender as novas formas de organização socioterritorial na

reserva passa fundamentalmente pela compreensão dos por quês a RID foi criada e os por quês

dos Guarani, Kaiowa e Terena compartilharem este território. Em síntese, podemos afirmar que a

criação da RID está diretamente relacionada ao processo de desterritorialização das sociedades

indígenas de seus territórios tradicionalmente ocupados – Tekoha. A partir desta condição,

buscamos entender as políticas indigenistas oficiais, no caso o SPI (Serviço de Proteção ao

Índio), no início do século XX, no contexto da criação da reserva e a multidimensionalidade das

territorialidades existentes na RID.

3.1 – A criação da Reserva Indígena de Dourados e as novas formas de ocupação do

território Guarani e Kaiowa

A RID e/ou Posto Indígena (PI) Francisco Horta Barbosa90 foi a segunda reserva criada

pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Este órgão criou entre os anos de 1915 a 192891 oito

reservas indígenas para os Guarani e Kaiowa. Todas estas reservas estão localizadas na porção

90

Os Postos Indígenas (PIs) eram unidades administrativas locais, onde o órgão indigenista que o criou, no caso o

SPI, buscava acomodar os índios encontrados na região, retirando-os de seus territórios tradicionalmente ocupados, e

re-territorializando em reservas e/ou aldeias demarcadas pelo SPI. Segundo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida

(2001, p. 22) ―[...] o aspecto determinante de ―aldeia‖, era sua condição de unidade administrativa sob controle de

funcionários, cidadãos particulares ou clérigos missionários designados ou reconhecidos pelas autoridades de

governo [...]‖. 91

Também é notório as áreas reservadas aos Terena, antes mesmo da criação do SPI, sendo: Reserva Indígena

Cacheirinha - município de Miranda - 1905. Reserva Indígena Ipegue - durante a formação pertencia à Miranda, mas

atualmente é Aquidauna – 1905.

Após 1910, com a criação do órgão indigenista foram criadas as reservas: Reserva Indígena Brejão - Nioaque (1922);

Reserva Indígena Buriti – Sidrolândia (1928); Dois Irmãos do Buriti - Sidrolândia (1928); Reseva Indígena Limão

Verde – Aquidauana (1928). No último caso, embora os indígenas estejam vivendo na área não conseguiram

legalizá-la definitivamente durante a atuação do SPI (VARGAS, 2003).

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Centro-Sul do atual estado de Mato Grosso do Sul (ver Mapa I), que naquele momento pertencia

ao estado de Mato Grosso92. Esta porção territorial compreendia aos territórios tradicionalmente

ocupados pelos Guarani e Kaiowa.

A criação destas reservas partia do princípio de que estas fossem terras devolutas e que

não ultrapassassem dois lotes de 3.600 hectares de terras, conforme a Resolução de n°. 725, de

24/09/1915 em seu artigo 3°, sancionada pelo governo do estado de Mato Grosso (OLIVEIRA,

PEREIRA, 2009). Contudo, o SPI não criou nenhuma reserva com tamanho superior a 3.600

hectares, embora pudesse reservar até dois lotes com a mesma proporção territorial. Ainda, a

maioria das reservas ficou com limites muito menores do que fora reservado (ver Tabela I).

Exceto a reserva de Pirajuí em Sete Quedas, reservada pelo SPI com 2.000 hectares em 1928, foi

homologada com uma área maior do que a reservada, correspondendo a uma extensão territorial

de 2.118 hectares.

Tabela I – Reservas criadas pelo SPI entre 1915 -1928

Reservas demarcadas pelo SPI Município

Ano de criação

Área

reservada

Extensão

homologada

Amambaí Amambaí (1915) 3.600 hectares 2.429 hectares

Caarapó Caarapó (1924) 3.600 hectares 3.594 hectares

Limão Verde Amambaí (1928) 900 hectares 668 hectares

Pirajuí Sete Quedas (1928) 2.000 hectares 2.118 hectares

Porto Lindo Japorã (1928) 2.000 hectares 1.650 hectares

Reserva Indígena de Dourados Dourados (1917) 3.600 hectares 3.475 hectares

Sassoró Tacuru (1928) 2.000 hectares 1.923 hectares

Takuapery Coronel Sapucaia (1928) 2.000 hectares 1.886 hectares

Fonte: Oliveira; Pereira (2009).

92

Estado de Mato Grosso do Sul foi criado em 1977 (ALMEIDA, 2006).

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Mapa I - Localização das Reservas Indígenas criadas pelo SPI entre 1915 a 1928

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No contexto da criação das reservas, faz-se necessário elencar a figura de Marechal

Candido Rondon, dirigindo a Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao

Amazonas, denominado posteriormente de Comissão Rondon, que buscava no contexto da

integração do território nacional a pacificação de indígenas93. A partir desta ação e dos contatos

entre indígenas e a Comissão Rondon, em 1910 cria-se o SPILTN (Serviço de Proteção aos

Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais), que possibilitou a criação de reservas

indígenas94. Este órgão em 1911 foi reformulado, visando prioritariamente o tratamento

específico com as sociedades indígenas, criando o SPI95, e a partir de 1967, transformou-se na

Fundação Nacional do Índio (FUNAI96).

Nesta perspectiva, segundo Renata Lourenço (2008) cria-se por meio do decreto nº 404,

de 03 de setembro de 1917 a RID. Contudo, a mesma só foi devidamente titulada e registrada em

cartório em 14 de fevereiro de 1965, na folha 82 do livro nº 23, no Cartório de Registro de

Imóveis na Delegacia Especial de Terras e Colonização de Campo Grande. Reservada como uma

área territorial de 3.600 hectares de terras, constando nos documentos do SPI que a criação da

reserva se fez com a finalidade para abrigar os Kaiowa, sendo esta a população predominante e

tradicional da região.

93

―A Comissão Rondon fora uma aplicação prática, consciente, das ideias de Comte no terreno militar: a utilização

pacífica do Exército no desbravamento dos sertões interiores, na construção de obras civis, como a linha telegráfica:

na realização de objetos humanísticos, como a proteção ao índio. É, pois, de Comte que vem a inspiração para esta

epopeia dos sertões brasileiros: um corpo de tropa que, avançando em território habitado por índios hostis, se nega a

fazer uso das armas, mesmo quando atacado, em nome de um princìpio de justiça‖ (RIBEIRO, 1996, p.155).

94 Darcy Ribeiro (1996, p. 280), comparando as diferentes etapas de integração dos indígenas à sociedade nacional,

em meados de 1900, demonstra que nos primeiros registros e/ou contatos dos não indígenas com as sociedades

indígenas no processo de integração nacional e avanço das fronteiras de expansão, categorizando por troncos

lingüìsticos: ―[...] os Tupi, representados em 1900 por 52 grupos, foram reduzidos a 26; os Aruak, que eram 37,

reduziram-se a 23; os Karib passaram de 32 a 22; os Jê, de 27 a 18. Os demais grupos de nossa amostra caíram de 82

para 54‖. 95

Apesar desta reformulação, segundo Lourenço (2008), somente em 1918 o Serviço de Localização de

Trabalhadores Nacionais é transferido para outra competência. 96

Segundo Ana Valéria Araújo (2006, p. 31) ―No final da década de 60, o SPI enfrentou uma avalanche de

denúncias sobre irregularidades do patrimônio indígena, em especial dos recursos naturais das terras indígenas. Em

função disso, o governo federal prometeu esclarecer as denúncias, punir os culpados e criar um novo órgão que faria

tudo de modo diferente. De concreto, porém, fez muito pouco. Acabou por extinguir o SPI em 1967, anunciando a

criação de um novo órgão para centralizar a prestação de serviços aos povos indígenas. É aí que surge a Fundação

Nacional do Índio (FUNAI), com competência para exercer o papel de tutor dos índios e, dentre outras funções,

―garantir a posse permanente‖ das terras habitadas pelos ìndios e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas

existentes‖. Neste sentido, pode-se dizer que a criação da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), sendo esta, o órgão

indigenista oficial responsável pela proteção e garantia de direitos das sociedades indígenas em todo território

nacional, prosseguiu com bases semelhantes às do antigo órgão indigenista oficial. Contudo, embora esta tenha

grandes problemas instituições, a mesma é extremamente importante para as sociedades indígenas, principalmente no

que tange a garantia de direitos constitucionalmente reconhecidos.

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Contudo, segundo Marina Evaristo Wenceslau (1990), a solicitação da área para criar a

reserva se deu em meados de 1910, ano este que é criado o SPI. Este fator não é uma

coincidência, mas, sobretudo, elucida que o órgão indigenista oficial, antes mesmo de sua atuação

formalizada como SPI, sabia do contingente populacional indígena nesta porção territorial desde

o final do século XIX e início do século XX, assim como do avanço das novas frentes de

ocupação em seus territórios tradicionais. A localização da RID se inseria como parte do

território extenso Kaiowa, denominando de Ka‘aguyrusu (ver Figura II).

Figura II – Ka’aguyrusu

Fonte: VIETTA, 2007, p. 95.

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166

A criação da RID tinha como finalidade o deslocamento dos indígenas de seus territórios

tradicionais para dentro das reservas. Assim, um conjunto de te‘yi, pertencentes a diversos

Tekoha, ―fora‖ do Ka‘aguyrusu, foram também reterritorizados em condição de reserva, ou seja,

diversos te‘yi que não estabeleciam relações sociais de afinidade e laços políticos passaram a

compartilhar o território da reserva.

Ainda, a partir de Levi Marques Pereira (1999; 2004) percebemos que a criação da

reserva não considerou os padrões socioterritoriais Guarani e Kaiowa, tendo em vista que nas

proximidades da mesma, não tinha grandes ocorrências de fluxos d‘água suficientes que

propiciassem os padrões socioterritoriais Guarani e Kaiowa, o que inviabilizava a ocorrência de

moradias fixas, Oypysy e/ou ogapysy. Por isso, esta área que corresponde a reserva era

tradicionalmente utilizada, principalmente, na coleta e caça de alimentos.

A representatividade da Oypysy está diretamente relacionada à presença de moradias, o

que não era ocorrente na espacialidade do que compreende a RID. Segundo considera Fábio

Mura (2006, p. 334), referente à moradia Guarani e Kaiowa, é que as mesmas eram construções

―[...] utilizadas pelos Kaiowa como residência, hoje denominadas ogapysy (de oga ypy sy, ―casa

mãe das origens‖), destinadas a uso ritual e como sìmbolo de diferenciação étnica [chamada

também de oca e com maior frequência como casa de reza]97‖. Os lugares onde se encontrava

Oypysy eram os espaços que os Guarani e Kaiowa utilizavam como espaços de morada, fato este

que não era ocorrente no momento em que foi criada a RID, de modo que esta era

fundamentalmente utilizada como um lugar de passagem (ver Figura III).

97

Oga é correspondente a casa, muitas vezes traduzidos como Oca. Fábio Mura (2006, p. 334) considera que

―Embora não seja obrigatório, os ìndios indicam essas construções como o lugar mais apropriado para se conservar

os chiru (em forma de cruz)‖.

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Figura III - Representação do Kaiowa Ñanderu Jorge sobre a organização de Tekoha’s nas

proximidades da RID

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2010. Figura modificada pela autora.

Segundo Jorge, os Tekoha estão nas proximidades do que ele representa como sendo a

divisão da reserva, marcada por pontos vermelhos. Na proximidade tem um conjunto de Tekoha,

como: Iguarussu, Urucuí, Cuchuí Iguá e Tatuí. Representa também um Tekoha antigo

denominado aldeia velha (lugar onde sua mãe morou durante um tempo), sendo banhada pelo

Córrego Farinha Seca. É necessário dizer que este lugar é próximo à residência de Jorge na RID,

e de certa forma demonstra a necessidade do grupo em manter relações de proximidade com os

territórios tradicionalmente ocupados98. Jorge considera que este lugar em que compreende a

reserva, não eram lugares privilegiados para a construção de ogapysy, pois havia poucas e

escassas cabeceiras de córregos, mas era muito utilizado para a caça e coleta.

98

Esta relação deve ser melhor pesquisada, pois quem escolhia os lugares em que cada família iria ocupar na reserva

era o capitão, figura esta que iremos discutir em outro momento neste capítulo.

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Assim, considerando que não havia ocorrência de moradias no que compreende a RID, a

aldeia velha, que ficava muito próxima da divisão da reserva, e talvez dentro do que concerne a

reserva hoje, pudesse ser utilizada como um espaço de passagem, pode-se dizer de ―trânsito‖ que

interligava um Tekoha a outro, possibilitando a comunicação entre eles.

Entendemos que a criação da RID em nenhum momento considerou os fatores

socioterritoriais Guarani e Kaiowa, pois fundamentalmente não considerou que a escolha de

moradias relacionava-se com a localização de água corrente e nascente de água potável,

demonstrada por Levi Marques Pereira (2004). Isso não significa que a reserva não tinha

nenhuma cabeceira de água, mas que não tinha de forma suficiente para a construção de

moradias. A partir do Kaiowa João (2010), indo ao encontro das colocações do Kaiowa Ñanderu

Jorge, salienta que a área territorial do que compreende hoje a RID era organizada

socioterritorialmente da seguinte forma:

E aqui não era, isso daqui não era um... não era aldeia, isso aqui era

uma terra na verdade devoluta. A aldeia tava mais pra região de Cambé,

Eldorado, um pouco mais pra região de [...] sabe, porque aqui não tem

água. Aqui sempre foi esses riachinho, e os indígenas nunca tavam [...]

aqui na verdade eu acho que é um lugar de caça.

Em linhas gerais, a criação da RID, se deu pela aglomeração indígena nesta região, não

só pela ocupação tradicional Kaiowa, mas também pela aglomeração de indígenas trabalhando na

extração da erva mate à Companhia Matte Larangeiras99. A explotação da erva-mate pelos

Guarani e Kaiowa trouxe alguns problemas referentes a espacialidade vivida por estas sociedades

em seus territórios tradicionalmente ocupados, já que toda área concedida à Cia para explotação

da erva é parte do território tradicionalmente ocupado por estas sociedades, pois até o significado

da palavra erva-mate (Ilex paraguariensis) na língua guarani, significa Ka‘a (folha e/ou erva),

sendo uma expressão da identificação e reconhecimento do que entendemos ser os Guarani e

Kaiowa (Ka‘agua – aquele que veio do mato e/ou da erva), sendo parte indissociável de sua

territorialidade no mundo.

99

As concessões de terras à Companhia Matte Larangeiras desde 1882, tendo sua primeira concessão de terras feita

pelo estado de Mato Grosso, através do Decreto Imperial n° 8.799 (9/12), a Tomaz Larangeira, passando este a deter

a exploração dos ervais ―[...] nos limites da Provìncia do Paraguay, entre os rios Amambahy e Verde, e pela linha

que desses pontos for levado para o interior, na extensão‖. (CORRÊA FILHO apud MORENO, 2007, p. 87). Ainda a

mesma tinha o direito de usufruto dos ervais e de posse da terra.

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Esta relação é demonstrada por Jorge Eremites de Oliveira (2005, p.11), ao sinalizar

que:

[...] Ao contrário do que muitos possam supor, esses ―ervais nativos‖ devem

corresponder a paisagens de origem antrópica, isso é, humanizadas, haja vista

que sua constituição deve estar diretamente associada a práticas de manejo

agroflorestal comuns entre grupos indígenas de língua guarani. Ervais assim

somente ocorrem na região platina, em áreas de ocupação imemorial e

tradicional de povos nativos como os Kaiowa, Ñandeva e Mbyá, cujos

antepassados aqui chegaram há séculos ou milênios, os mais antigos ao redor do

início da Era Cristã. Estudos realizados em outras regiões brasileiras, como nos

cerrados, Amazônia, Pantanal e planalto meridional, por exemplo, comprovam

que paisagens aparentemente naturais, na verdade são antrópicas.

Os territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa possibilitaram a

criação das reservas, que naquele momento estavam sendo monopolizados pela Companhia

Matte Larangeiras, como apontam Levi Marques Pereira e Jorge Eremites de Oliveira (2009). O

Kaiowa Ñanderu Jorge (2011) salienta que muitos índios iam para o trabalho e demoravam muito

tempo para retornar, calculando em torno de seis meses. ―[...] Meu pai conta... ia pra lá o índio,

fica lá seis meses. Ia pra Caarapó, é, Rio Brilhante [...] era longe esse daí, enquanto num

acabava, ficava. A muié, a muié fica em casa, num vai junto [...]‖.

Pode-se ainda dizer que no contexto das relações de trabalho entre indígenas e

Companhia Matte Larangeiras, esta tenha sido uma das primeiras responsáveis pela

desarticulação dos Guarani e Kaiowa nos seus Tekoha. Portanto, concordamos com Eva Maria

Luis Ferreira (2007, p.71) de que: ―para boa parte dos Kaiowa e Guarani, o trabalho nos ervais

parecia se constituir como uma oportunidade de interação com os novos sujeitos sociais, com os

quais passam a, compulsoriamente, compartilhar o território que dispunham até então com

exclusividade [...]‖.

Segundo Katya Vietta e Antônio Jacó Brand (2004, p. 221), ―[...] o trabalho na colheita

da erva-mate foi certamente responsável pelo deslocamento de inúmeras famílias e núcleos

populacionais inteiros, tendo em vista a colheita em novos e por vezes distantes ervais. Por isso,

ao que parece, atingiu pouco a sua estrutura social interna [...]‖. Ainda, os autores consideram

que a formação das primeiras fazendas, no final do século XIX e início do século XX, tampouco

trouxeram grandes problemas para a organização socioterritorial Guarani e Kaiowa, porque as

mesmas ―[...] se instalaram nas regiões de campo entre Amambaì, Ponta Porã e Bela Vista [...],

pois, os Kaiowa e os Guarani localizavam suas aldeias, preferencialmente, nas regiões de mata‖.

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Contudo, durante o monopólio dos territórios tradicionais à Companhia Matte

Larangeiras, esta também se colocou impossibilitando frentes de ocupação, em que as bases

estendiam-se ao domìnio privado sobre os territórios Guarani e Kaiowa, tendo em vista que ―[...]

a companhia mantinha sua polícia própria para evitar a entrada de colonizadores brasileiros, que

pudessem por em risco seu monopólio‖ (FOWERAKER apud BRAND, 1997, p. 51 - grifo

nosso).

Para entendermos porque a Companhia Matte Larangeiras não precisou se territorializar

e expropriar os indígenas para continuar reproduzindo/acumulando capital é necessário

entendermos o que Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1997; 1999; 2004) e José de Souza Martins

(1981) explicam acerca do desenvolvimento do capitalismo no campo100

. Estes autores vão

afirmar que existe um desenvolvimento contraditório do capitalismo, que para se desenvolver é

necessário que este se alimente de relações sociais não-capitalistas, como são as relações

indígenas, camponesas e quilombolas.

Isto porque, segundo José de Souza Martins (1981), somente em alguns setores da

produção agrícola é que ocorre a expansão das relações capitalistas de produção, no caso, as mais

lucrativas ao capital, destinadas, principalmente, à exportação (commodities). Portanto, em alguns

setores não compensa ao capital se tornar proprietário de terras e, portanto, territorializar-se.

Quando ocorre este processo dizemos que houve a monopolização do território pelo capital

monopolista, ou ainda, a territorialidade do capital sobre os territórios não-capitalistas

(indígenas, camponeses, quilombolas...). Nesse caso, o indígena, camponês, quilombola não é

expropriado. Assim, quando o capital monopoliza o território, ele cria/recria/redefine relações

não-capitalistas. Ele abre espaço para que essas gentes se reproduzam enquanto grupo social.

Embora ocorra uma disputa territorial pelo controle das formas de uso desses territórios quando o

capital incorpora sua territorialidade em territórios camponeses, indígenas, quilombolas

(OLIVEIRA, 1997; 1999; 2004).

No caso específico, os Kaiowa e os Guarani conseguem neste processo continuar

existindo e se reproduzindo material e culturalmente. Mas, ocorre uma redefinição dessas

relações pelo capital, pois estes estão sendo subordinados ao capital que precisa dessas gentes

100

Aqui estamos redefinindo o que estes autores discutiram acerca da reprodução da classe camponesa no

capitalismo contemporâneo brasileiro, pensando no estudo de caso específico acerca dos territórios Guarani e

Kaiowa. Sendo que esses autores discutem a sujeição da renda camponesa ao capital e não a utilização de mão-de-

obra indígena pelo capital.

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para se reproduzir. Em última instância, este processo impede o processo de ―desterritorialização

absoluta‖.

Esse caso se difere de quando ocorre o processo de ―territorialização do capital

monopolista‖, em que o capital se desenvolve de maneira plena. É quando o capital destrói o

processo de produção/reprodução territorial camponesa, indígena, quilombola. Nesse processo, o

capitalista é o proprietário industrial e o proprietário fundiário ao mesmo tempo. É nessa lógica

que se instala o agronegócio, caracterizando a paisagem do campo com a lógica da produção

agrícola do capital mundializado, ou seja, um mar de cana, soja, laranja, pastagem (digamos

assim, ―mar de monocultura‖) (OLIVEIRA, 2004).

Em linhas gerais, podemos dizer que a monopolização das terras dos Guarani e Kaiowa

para Companhia Matte Larangeiras, possibilitou que permanecessem em seus territórios

tradicionalmente ocupados, fato este, que passa a ser mudado a partir das novas frentes de

ocupação do território, a partir de políticas integracionistas do Governo Federal de ocupação do

Norte e Centro-Oeste do Brasil, a partir do século XX. Este projeto de integração se consolidou

na contramão da exclusividade de monopólio das terras pela Companhia Matte Larangeiras,

embora esta ―[...] tivesse seguido até 1943, ano em que o então Presidente da República, Getúlio

Vargas, criou o Território Federal de Ponta Porã e anulou os direitos da Companhia. [...]. E, em

1947, o então governador Dr. Arnaldo Estevão Figueiredo cancelou o contrato com esta

companhia [...]‖ (BRAND, 1997, p.87).

As políticas públicas de integração territorial tiveram um papel expressivo na formação

e re-territorialização dos Guarani e Kaiowa para as reservas. Se por uma lado é a partir de 1950

que o processo de desterritorialização Guarani e Kaiowa de seus territórios tradicionalmente

ocupados torna-se mais intensa, podemos dizer que a criação das reservas no início do século XX

é parte de um processo de colonização e ocupação do território tradicional destas sociedades.

Pois, como já considerado por Katia Vietta e Antônia Brand, já no final do século XIX ocorria

um processo de formação de fazendas nos territórios Guarani e Kaiowa sobre a monopolização

da Companhia Matte Larangeiras.

Assim, partindo do contexto de que o declínio da exploração da erva-mate foi parte de

um projeto de liberação de terras para colonização, diferentemente da concessão dada pelo

Estado à Companhia Matte Larangeiras a ―usar‖ o território, as novas frentes de ocupação

tiveram como base primordial a constituição da propriedade privada. Este fato pode ser

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correlacionado à criação da primeira reserva criada pelo SPI em Amambaí, em 1915, indo ao

encontro à primeira crise da Companhia Matte Larangeiras, em que o Estado, não renovando o

arrendamento para a exploração ervateira sobre uma área total de terras de 1.440.000 hectares,

através da Lei nº 725, de 24 de setembro de 1915, demonstra e elucida que era necessário liberar

as terras para novas frentes de colonização (BRAND, 1997).

Segundo João Edmilson Fabrini (1996, p. 47), as novas frentes de ocupação-

colonização já estavam sendo encaminhadas pelo Estado a partir do final do século XIX.

Contudo, é no século XX que as novas frentes de ocupação tornam-se mais frequentes indo na

contramão do controle territorial da exploração ervateira pela Companhia Matte Larangeiras.

Ainda segundo o autor:

O sul de Mato Grosso do Sul foi ocupado através de duas frentes colonizadoras.

Uma das mais antigas, formada por imigrantes vindos do Rio Grande do Sul no

final do século XIX e início do XX, que buscavam áreas de campos para a

prática da pecuária e a atividade ervateira, em áreas de topografia mais elevada

na Serra de Amambaí próximo aos limites com os Estados de São Paulo e

Paraná, em área onde predominavam as florestas. A ocupação dessa última área

foi feita basicamente por paulistas, paranaenses e nordestinos, no processo da

―frente pioneira‖ para o oeste.

A partir do declínio da Companhia Matte Laranjeira há mudanças muito mais

significativas nos modos de apropriação e controle territorial Guarani e Kaiowa, comparado ao

tempo do monopólio destes territórios pela Companhia Matte Larangeiras. Os Guarani e Kaiowa

não só perderam a exclusividade de viver em seus territórios, mas foram obrigados a ―sair‖ deles,

aparecendo na condição de reserva proposto pelos órgãos indigenistas oficiais, como o único

caminho possível de re-territorialização Guarani e Kaiowa, seja pelo SPI e, posteriormente, a

FUNAI. Desta forma, a partir de 1950 o avanço das frentes de expansão e pioneiras para

integração do Centro-Oeste e Norte do Brasil se delineou desconsiderando a presença indígena. A

partir das considerações de Lylia da Silva Guedes Galetti (2000, p. 105) sobre ―espaços vazios‖,

esta negação da presença indìgena foi também uma estratégia de que ―fazia-se necessário ocupar

o sertão‖.

El ojo de la civilización expressa primorosamente a visão predominante entre

estes ―homens cultos‖, quase sempre europeus que, entre a segunda metade do

século XIX e as primeiras décadas do XX, movidos embora por interesses

diversos, penetraram nestas regiões remotas. Sensibilidade já meio embotada na

sua capacidade de ver paisagens e admirá-las, imaginação atada ao tempo das

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realizações capitalistas, ao poder da ciência e da técnica, sinais da natureza

superior de seu próprio mundo, eles imaginaram estes espaços vazios, reservas

de inesgotável abundância, à espera de que a civilização deles se apossasse.

É por meio desta negação do indígena que se estabelece o processo de ocupação e

integração nacional para as regiões Norte e Centro Oeste que culminou em um processo de

desterritorialização das comunidades indígenas e de territorialização do capital no campo. Tendo

em vista que estes fundamentos,

São todas ideias que de certa forma terão sua concretização iniciada ainda na

década de 50. A construção de Brasília (uma base de penetração no Centro –

Oeste) e da Belém – Brasília, tornar-se-ão elementos fundamentais para a

―captura‖ do imenso território setentrional do paìs. Entretanto, [...] serão

empreendimentos estatais e privados (sobretudo as medidas e os

empreendimentos estatais) na década de 70, durante a execução do Plano de

Integração Nacional, os problemas de transformação da Amazônia, definindo

processos que perduram até os nossos dias (COSTA, 1996, p. 51).

Pode-se dizer que na medida em que a criação e estabelecimento das fazendas iam se

consolidando, os indígenas que continuaram resistindo nestas condições como trabalhadores,

formando as fazendas, após sua concretização, se dirigiram às reservas. Segundo os Guarani e

Kaiowa, ainda há indígenas em fazendas, mas claro, com um número inferior das ocorrências na

década de 1970 e 1980. Ainda, estes assinalam que esta ida para as reservas após a formação das

fazendas fora uma imposição. Para a Kaiowa Alzira (2010) esta relação se estabelecia da seguinte

forma: ―formava a fazenda e o índio ia embora. Tinha que ir, né?‖.

Referente aos índios que ficaram nos fundos de fazendas até a formação das fazendas,

Antônio Jacó Brand (1997, p. 39) assinala que ―[...] a estratégia dos Kaiowa/Guarani, de

enfrentamento com o não-guarani, tem-se transformado. Enquanto havia espaço de refúgio nos

fundos das fazendas, isto é, naqueles locais onde o desmatamento processou-se por último, eles

buscaram estes espaços [...]‖. É neste contexto de saìda dos indìgenas que ficaram resistindo nos

fundos de fazendas, dirigindo-se para as reservas a partir da década de 1970-1980, que alguns

indígenas dizem que o viver na reserva ficou mais difícil.

Antigamente num era assim, tudo junto. Tinha espaço, o índio pudia

chegá aqui e ficá. Ia lá no posto e dava um terreno pra ele, isso em 50,

né. Agora tem que comprá, é assim. Já num tem espaço, é cheio de gente

a reserva. Cê nem anda mais, num tem espaço [...]. Antigamente era

melhor. Conversava com o veio Ireno e ficava ali. Agora já num é.... se

você sai daqui, perdeu a terra já [...].

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174

Isso que a gente fala memô de tá cheio de gente, ficô apertado, é por isso

memô. Chegô gente muito aqui. Ai num é bom, né? Acho que num é não,

reserva fico muito violenta com isso daí101

.

O Processo de esbulhos dos territórios Guarani e Kaiowa, neste caso, referente ao

Tekoha Guasu Ka‘aguyrusu, tem-se a expressividade da formação e criação das CAND (Colônia

Agrícola Nacional de Dourados), estabelecendo em território Kaiowa (Capítulo II),

desconsiderando a presença indígena e trazendo um intenso espaço de disputas por território,

envolvendo indígenas e não indígenas.

A criação da CAND era parte de uma preocupação do Estado governado por Getúlio

Vargas em ―[...] consolidar, definitivamente, os alicerces da nação, mediante a conquista de si

mesmo (...). A criação da brasilidade repousava, pois, numa proposta que combinava colonização

e industrialização‖ (LENHARO apud BRAND, 1997, p.74), em que as sociedades indígenas

eram uma barreira para este desenvolvimento. Não obstante, a colonização do estado tenha se

consolidado em alguns momentos por pequenos produtores rurais sem terras, como é o caso da

CAND, em sua maioria a colonização se consolidou no latifúndio, que para Rosemeire Aparecida

de Almeida (2006, p.115) se construiu:

[...] neste ambiente de crise da colonização estatal voltada à pequena

propriedade, que vamos ter o florescimento da colonização privada. Desta

forma, Companhias como Someco; Viação São Paulo – Mato Grosso; e, Moura

Andrade aportam no sul de Mato Grosso adquirindo terras, ora do Estado, ora de

particulares com vistas à colonização através dos loteamentos.

Neste contexto, a CAND foi um projeto que buscava viabilizar o desenvolvimento do

Brasil sem o entrave arcaico do latifúndio, tendo como ―[...] estratégia de colonização, armar o

cerco ao latifúndio, de fôlego longo. Apoiar a pequena propriedade de modo que ela, lentamente,

corroesse a velha ordem latifundiária e, aos poucos, instaurasse a nova realidade agrícola que o

desenvolvimento industrial do país exigia‖ [...]‖ (LENHARO apud BRAND, 1997, p. 74).

Consolidou-se no território tradicionalmente ocupado pelos Kaiowa, onde estes tiveram como

pontos de refúgio as reservas. Segundo Katya Vietta e Antônio Jacó Brand (2004, p. 221-222),

A instalação dos colonos em território indígena provoca de imediato problemas

diversos e sérios, pois questiona a presença indígena e impõem a sua

transferência para outros espaços. No entanto, diversas parentelas conseguiram

resistir a pressão da CAND, logrando manter sob sua posse dois lotes de terra de

101

Entrevista com um morador da RID (Bororó). O mesmo pediu que não fizesse referência a seu nome no trabalho.

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175

60 hectares em Panambizinho, distrito de Panambi, município de Dourados, e

outros 300 hectares em Panambi, município de Douradina.

Nestes casos, diferente da territorialização de fazendas nos territórios Guarani e Kaiowa,

no caso da CAND, com a colonização de pequenos produtores rurais, os indígenas não puderam

se manter como trabalhadores de fazendas. Pois, os colonos não tinham dinheiro para pagar o

trabalho indígena (VIETTA, BRAND, 2004; VIETTA, 2007). Este exemplo demonstra que o

processo de desterritorialização Guarani e Kaiowa de seus Tekoha se estabeleceu de distintas

formas, fazendo necessário não homogeneizar as lutas territoriais como se estabelecessem apenas

no confronto entre fazendeiros e indígenas. Pois, a colonização da CAND se consolidou na

doação de terras pelo Estado a pequenos produtores rurais sem terra (VIETTA, BRAND, 2004;

VIETTA, 2004).

Neste momento há um intenso deslocamento dos indígenas para as reservas, tendo um

expressivo aumento da densidade populacional na RID. De acordo com Fábio Mura (2006, p.86),

pode-se dizer que o avanço das frentes pioneiras ligados ao projeto de integração nacional, se

relaciona com ―o maciço desmatamento ocorrido nos anos de 1960 e 1970 que levou os indìgenas

não residentes nas reservas a deslocarem-se continuamente, fugindo das áreas ecologicamente

descaracterizadas e da hostilidade dos colonos ―brancos‖ [...]‖. Cabe dizer que o aumento

populacional se deu intensamente nas três primeiras reservas demarcadas: Amambaí, Caarapó e

Dourados, demonstrando que foi prioritariamente para estas três reservas que os órgãos

indigenistas oficiais impuseram a re-territorialização aos Guarani e Kaiowa, observando ainda

que o dado de densidade populacional na RID se mostra sempre superior a todas as outras

reservas criadas pelo SPI (ver Tabela II)102

.

102

Estes novos processos de territorialização culminaram no que os Guarani e Kaiowa elucidam ser o esparramo (em

guarani sarambipá), sendo este, a representativa desarticulação das famílias extensas de seus territórios tradicionais e

sua dispersão para as reservas indígenas demarcadas pelo SPI. Todavia, deve ser considerado que as reservas não se

consolidaram como o único caminho possível de re-territorialização proposto pelos órgãos indigenistas oficiais, pois

os refúgios em fundos de fazendas, foram e ainda pode-se dizer que são parte das estratégias de resistência da não

submissão à condição de reservados e/ou aldeados.

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Tabela II – População das Reservas Indígenas Demarcadas pelo SPI de 1947 - 1984

1947 1949 1965 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973

Pirajuí 350 260 - - - - 267 267 352 442

Porto Lindo 250 300 307 - - - 310 310 - -

Sassoró 250 150 144 - - - 352 352 - -

Limão Verde - - - 311 - - - - - -

Amambaí - 470 315 - - - 677 - - -

Takuapery 520 375 254 211 211 378 371 414 504 536

Caarapó - 500 382 - - - 932 - - -

Dourados - 548 1463 - - - 1902 1902 - -

Fonte: FUNAI apud MURA (2006, p. 87).

O que estes dados nos mostram é que a partir da década de 1970, mas, já em 1950, a

desterritorialização Guarani e Kaiowa se deu de forma intensa, cada dia mais acelerada pelas

frentes pioneiras de ocupação, com o avanço de outras formas de territorialização dos territórios

tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa. Neste sentido, o termo aldeia foi também um

meio utilizado para subdividir a RID, e está diretamente relacionada ao processo de esbulho dos

Guarani e Kaiowa de seus territórios tradicionalmente, viabilizados pelo SPI e FUNAI.

Os indígenas buscavam resistir nos territórios tradicionalmente ocupados, mesmo após a

formação das fazendas, período este que se dá, principalmente, a partir da década de 1970, no

momento em que a mão de obra indígena para a formação das mesmas já não era mais necessária.

É também a partir deste momento que se tem a necessidade de dividir a RID entre Jaguapirú e

Bororó, fato este que é parte dos conflitos internos na reserva por disputa territorial,

principalmente envolvendo os tensionamentos entre os Kaiowa e Terena. Também podemos dizer

que a divisão da RID entre Jaguapirú e Bororó não se dá pela necessidade de exercer controle

territorial devido a extensa área da reserva, mas sim pela alta densidade demográfica após a

década de 1970. Esta relação pode ser visualizada pela narrativa da Ñandesy Guarani Aparecida

(2010):

1974 1975 1976 1977 1978 1979 1981 1983 1984

Pirajuí 448 487 502 500 500 500 588 685 1562

Porto Lindo 572 591 609 600 600 914 1102 1019 1725

Sassoro - - 600 - - 1000 1500 2371 1563

Limão Verde - - - - - - 252 - 380

Amambaí - - - - - 1846 1617 1947 3428

Takuapery 557 563 609 618 620 814 906 2511

Caarapó - - - - - 1271 1296 1620 2141

Dourados 2171 2348 2344 - - 2700 3354 4490 6075

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Moro aqui na Bororó, é o lugar que a gente mora, mais antigamente num é

assim. [...] tem bastante gente que mora aqui e num se dá bem. O Guarani, o

Kaiowa memo tem essa dificuldade, é muita... Se vai pra lá tem gente, vem pra

cá tem gente... Tudo tem gente. Vive tudo aqui na Bororó. [...] Mais é assim, lá

no Jaguapirú tem mais gente, e tem o Terena. Tem o Guarani também, mai é

pouco....

A narrativa demonstra que a reserva tem suas territorialidades, suas fronteiras, mas que

estas não são compatíveis ao modo de vida Guarani e Kaiowa. Ao sinalizar a divisão vivida na

reserva entre Jaguapirú e Bororó, demonstra minimamente a organização socioterritorial destas

sociedades na RID.

A mesma divide-se entre Jaguapirú e Bororó, e esta divisão se deu em meados da década

de 1970 com a justificativa de facilitar a administração interna na reserva. Estas denominações se

fazem a partir da memória coletiva das gentes territorializadas nestas duas ―aldeias‖. A aldeia

Bororó tem como denominação a presença do Bororo e/ou Mbororo Antônio Roberto103, que para

grande maioria das gentes com quem conversamos é lembrado como Antônio Bororó, conhecido

também como indígena participante da etnia Terena104

, e/ou Kinikinawa, e/ou Kadiwéu,

salientando que ele era ―índio misturado‖, não havendo um consenso na reserva sobre sua

etnia105.

Neste contexto, as configurações espaciais que propiciaram a criação da RID se fazem

primeiramente interligado ao princípio da exploração da erva-mate que, por sua vez, tornava-se

uma estratégia para trazê-los às reservas. E, em outro momento, o aumento da densidade

populacional na reserva está ligado às novas frentes de ocupação, consequência da viabilidade

que o órgão indigenista oficial criou desde a criação da reserva.

Portanto, a criação da RID, como todas as outras reservas criadas entre 1915 a 1928 pelo

SPI, se consolidaram nas bases colonialistas de liberação dos territórios Guarani e Kaiowa em

outras formas de territorialização, não indígenas. As políticas indigenistas não consideraram as

relações sociais Guarani e Kaiowa com a natureza, com as relações de parentesco, com a

103

Levi Marques Pereira (2009) sinaliza como parte das representações dos Terena de Buriti como índio Bororo José

Ubiratam, sendo este criado por Marechal Candido Rondon. 104

Jorge e Floriza, também salientam que Antônio Bororó é índio misturado. Segundo consta no trabalho de Troquez

(2006) de acordo com uma senhora Terena de sessenta e seis anos, nascida e criada na reserva, ―[...] o avô era ìndio

Bororó, mas todos pensavam que era índio Terena, pois viveu entre os Terena. Falava Terena e casou-se com uma

Terena [...]‖. (p. 38). 105

Podemos dizer também, que a divisão da reserva entre Jaguapirú e Bororó cria uma multiplicidade de

identificações entre os Guarani, Kaiowa e Terena, de modo que esta divisão está diretamente relacionada com a

organização territorial vivida pelas mesmas, que será melhor discutida no tópico 3.4 deste capítulo.

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religiosidade, com o trabalho e a sua organização política, enfim, sua organização socioterritorial

com toda a sua complexidade e multidimensionalidade. Em suma, buscaram criar as reservas

indígenas, como é o caso da RID, como sendo o único caminho possível para o modo de vidas

das sociedades indìgenas, a tal ponto que sua constituição se fez como sendo o ―lugar dos

índios‖.

3.1.1 – A presença Guarani no Ka’aguyrusu e na criação da Reserva Indígena de

Dourados

A partir das narrativas Guarani, Kaiowa e Terena, a presença Guarani deve ser analisada

a partir de variáveis múltiplas, principalmente no que concerne às várias frentes migratórias que

culminaram na territorialização precária de alguns grupos Guarani na RID. Uma destas frentes

migratórias remete-se à migração Guarani do Paraguai para o Brasil, no caso, para a RID no

início do século XX.

Ainda há relatos entre os Kaiowa, que a presença Guarani remonta ao início desse

século, anteriormente à criação da reserva pelo SPI, relatando a presença de outras sociedades

indígenas, como a presença de um grupo Mbyá. Estas afirmações são perceptíveis nas narrativas

de Jorge e Floriza (2009), que salientam que o Ka‘aguyrusu é território dos Kaiowa, contudo,

esta exclusividade se dá no entrelaçamento de existirem nas proximidades outras sociedades

indígenas, onde estes assinalam que ―[...] só Kaiowa e Guarani, já tava aqui, o guarani primera

coisa que chegô aqui, o guarani mbyá, o guarani Ñandeva, que mora ali na Bororó, Dona

Tereza, igual agora que morava, o gaúcho, diferente, cada Tekoha. Quando vem Terena pra cá

começa mudá [...]‖.

Os Guarani aparecem, muitas vezes, interligados a uma identidade paraguaia, sendo

comum, principalmente entre os mais idosos, por parte dos Kaiowa, uma identificação como

―ìndios paraguaios‖ e/ou ―os paraguaios‖, relacionando sua presença ao paìs de origem. Ainda é

comum nas narrativas misturarem o que a sociedade ocidental entende por Paraguai e Brasil, em

que estes países aparecem correlacionados um ao outro, não havendo fronteiras internacionais. A

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expressão da Kaiowa Alzira (2009) é, nesse sentido, elucidativa: ―os Guarani daqui são tudo

paraguaio, tudo paraguaio... veio de lá‖.

Assim, é muito comum entre os Kaiowa a expressão recorrente de haver na reserva

alguns Guarani paraguaios e/ou somente os paraguaios106. O Kaiowa João (2010) também

demonstra esta relação ao dizer que, ―agora os Ñandeva, eles já estão aqui com os Kaiowa. Eles

já constituíam a aldeia aqui junto com... Por isso, que tem uns guarani aqui que eles considera

paraguaio. É o caso do meu sogro, por exemplo. E eles falam que são os guarani paraguaio, e

são os Ñandeva que já tava aqui, mas tem uns que desce daqui‖.

A partir de Fábio Mura (2002), podemos considerar que alguns Guarani estavam

tradicionalmente territorializados a partir da margem direita do Rio Iguatemi e seus afluentes, nas

proximidades com o Rio Paraná. Estas considerações são importantes porque os Guarani e

Kaiowa salientam que os Guarani em Mato Grosso do Sul, estão primordialmente nas

proximidades do Rio Iguatemi, adentrando ao Paraguai, e que ―acima do Iguatemi é os Kaiowa‖,

como salienta o Kaiowa Ñanderu Jorge (aproximação da localização geográfica do território

tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa, ver Mapa II e III). Tal consideração é

relatada por Curt Unkel Nimuendaju (1987, p. 08) ao dizer que:

O habitat original dos Apapocúva situa-se na margem direita do rio Iguatemi,

no extremo sul do Estado de Mato Grosso. Não há tradição que afirme ter a

horda estado submetida como as outras ao domínio dos jesuítas, nos séculos

XVII e XVIII. Isto pode, contudo, ser considerado possível, devido à vizinhança

imediata da sua região com as missões de Ontiveiros e Guairá, assim como

devido a alguns indícios quase apagados de um contato muito remoto com o

cristianismo. Relatos sobre os ―Tupi‖ antropófagos sugerem que talvez os

Apapocúva também tenha sofrido os assaltos dos paulistas e seus aliados, os

Tupi da costa (grifo nosso).

Neste contexto, pode-se considerar, a partir das diversas narrativas, a ocorrência de

frentes migratórias dos Guarani para a região que compreende o Ka‘aguyrusu, antes da criação da

RID, vindos do Paraguai e/ou de regiões de fronteira entre Brasil-Paraguai, nas margens do Rio

Iguatemi. Ainda, pode-se considerar que um dos focos norteadores dessa migração tenha sido

acompanhada com as transformações socioterritoriais dos Guarani e Kaiowa pós-guerra contra o

Paraguai, que transformou as territorialidades vividas nos territórios tradicionalmente ocupados.

106

Não desconsideramos algumas frentes de paraguaios à RID.

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Mapa II - Ocupação Tradicional Guarani em Mato Grosso do Sul

Mapa III - Ocupação Tradicional Kaiowa em Mato Grosso do Sul

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A partir deste período, os Guarani sofrem um expressivo processo de desarticulação

socioterritorial, é que parte da monopolização do território Guarani e Kaiowa para explotação da

erva-mate, que utilizou a mão de obra indígena, trouxe como consequência a dispersão de

familiares para o trabalho nos ervais. Ainda, neste momento, têm-se no início do século XX a

criação das reservas indígenas pelo SPI. Estes fatores indicam o conjunto de transformações que

ocorrem nos territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa, transformando seus

modos de viver, que culminou na re-territorialização Guarani na RID.

Ainda, outras frentes migratórias Guarani se fazem na reserva, correlacionadas ao papel

das igrejas pentecostais107, tendo como expressividade a Missão Caiuá108. O Kaiowa João (2010)

relata que os Ñandeva chegaram junto à missão no final da década de 1920 e início de 1930, em

referência a família Souza, sendo estes, oriundos de São Paulo.

107

Segundo Gedeon Freire de Alencar (2008, p. 774-775), o pentecostalismo é fundamentalmente um ―Movimento

religioso evangélico onde há manifestações chamadas pentecostais, expressão dos dons espirituais como profecia,

cura, falar em lìnguas estranhas‖. Socialmente, o pentecostalismo alcançou majoritariamente as classes de baixa

renda e pouca escolaridade. Atualmente, ―[...] já existe uma presença quantitativa de pentecostais em classes sociais

mais altas, além do processo de ascensão social muito enfatizado no neopentecostalismo‖.

As igrejas pentecostais na RID são, assim, aqueles tradicionalistas, como a Deus é Amor. E as neopentecostais, são

igrejas que tem como base a Teologia da Prosperidade, como a Universal do Reino de Deus entre outras (CAMPOS,

2008). Contudo, é necessário considerar que algumas igrejas pentecostais têm utilizado de alguns mecanismos das

igrejas neopentecostais. 108

Segundo Carlos Barros Gonçalves (2009, 123) a Missão Evangélica Presbiteriana, conhecida como a Missão

Evangélica Cauiá, foi fundada em 1929 na RID. Como ainda demonstra o autor, a missão adquiriu na década de

1930 duas áreas de terras em lados opostos à reserva. A primeira sendo uma área de 1.020 hectares a cerca de duas

léguas da reserva, estando nas proximidades da mesma, onde esta não satisfez e/ou supriu os requisitos básicos para

uma efetiva instalação. E a segunda, visando ―[...] o desenvolvimento a contento dos objetivos evangélicos, os

missionários compraram uma área menor e mais próxima ao posto Indígena e à vila de Dourados entre 1931 e 1932.

Somente com esta última iniciaram os trabalhos de construção fìsica da Missão [...]‖.

A aquisição de terras por parte da missão, também foi negociada com o General Marechal Cândido Rondon que

havia procurado pela Missão para ajudar na instalação da mesma. Assim, durante uma reunião, realizada em 15 de

junho de 1929, o general havia dito que ―[...] durante sua próxima visita à região matogrossense aproveitaria a

oportunidade para visitar a Missão, tendo prometido fazer tudo o que estiver ao seu alcance para ajudar a Missão na

aquisição do terreno sem a cláusula referida [...]‖. (GONÇALVES, 2009, p. 192) (ver Anexo II).

No contexto de hoje, é necessário elucidar o papel das igrejas evangélicas na vida dos Guarani, Kaiowa e Terena na

RID, tendo em vista que segundo Graciela Chamorro (2011), em 2008 havia 36 igrejas evangélicas na aldeia

Jaguapirú, acreditando que este número seja ainda maior. Ainda considerando as igrejas na Bororó, este número

poderá ser duplicado.

Ainda é importante dizer que, segundo Levi Marques Pereira (2004, p. 141), no lugar onde instalou-se a Missão

Caiuá (a partir da narrativa do Ñanderu Tingasu), ―[existia] um tekoha pavêm que ia dos fundos da Missão Caiuá, ao

lado da atual reserva de Dourados, e seguia o curso do rio Laranja Doce e seus córregos afluentes até o rio Brilhante,

englobando populações de várias parentelas (casas comunais) articuladas por líderes cujo prestígio se estendia por

várias parentelas – tekoha -, mas que em seu conjunto reconheciam a orientação de um grande líder religioso –

tekoha ruvicha pavêm. Essas parentelas foram expulsas dos locais em que viviam entre décadas de 1920 e 1960,

sendo reunidas nas reservas de Panambi, Panambizinho e Dourados. Ele diz ter nascido na casa comunal de um xamã

conhecido como Luis, nos fundos da Missão, numa área situada ao lado da atual reserva de Dourados. Ainda

segundo sua informação, o tekoruvicha também era denominado de ñe‘engararuvicha, cuja tradução aproximada

seria o ―senhor das palavras‖, tinha como incumbência ―comandar toda essa região‖.

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Então, tem uma leva de guarani que eles vêm de São Paulo, que é esses do...

(Souza) esses parente do..., aqui parente do Cláudio. Do Marcelo de Souza,

esses pessoal é..., vem dos tupi, vem de São Paulo. A família do..., a família

inteira do Marcelo de Souza, do Claudio, eles falam que veio, tanto é que

quando houve uma tensão aqui eles levaram o pessoal lá pro Paraná. Na aldeia

do Paraná, que eles vem do Paraná.

Segundo Marta Coelho Castro Troquez (2006, p. 36-37), a partir dos relatos do

Reverendo Orlando Andrade da Missão Caiuá,

[...] chegaram nestas terras por volta de 1920 uma família Guarani, os Souza,

vindos do litoral brasileiro. Rev. Orlando teria conhecido Olegário de Souza o

qual lhe contou que tinha vindo com seus pais de ―uma terra ao lado do mar‖

[...]. Este registro coincide com o ―depoimento‖ da senhora Julia (80 anos) filha

de Olegário109

. Dona Júlia afirmou que sua família foi a primeira família

Guarani (Ñandeva) a chegar na Reserva de Dourados. Segundo ela, seu pai e

irmãos, teriam ficado cerca de um mês a cavalo para Campo Grande a fim de

garantir para sua família um pedaço de terra na área reservada em Dourados. De

acordo com Dona Júlia, seu pai e seus tios, teriam vindo da região de Sorocaba

―fugidos‖ para Dourados.

No que concerne ao papel da Missão Caiuá na RID, há uma considerável interferência

no modo de vida das populações indígenas em condição de reserva110, pois tinham como

fundamentos desta interferência, os projetos civilizatórios do órgão indigenista oficial de

integração dos índios à comunhão nacional, em que a igreja e a educação escolar aparecem como

apoio destes fundamentos. Renata Lourenço (2008, p. 137) faz a seguinte afirmação acerca do

papel da escola e da igreja:

[...] o objetivo fundamental da educação escolar era tornar os índios

definitivamente homens/mulheres (cidadãos) úteis à Nação, que vivia ―a lutar

contra a falta de braços para a lavoura‖ com tantos ―filhos selvagens‖ a serem

―instruìdos‖. A Igreja cabia, em muita paciência e obstinação desses

missionários, que se ―privaram‖, como ―heróis‖, das comodidades da vida.

109

Irmão do pai de Marçal de Souza. 110

A Missão Cauiá teve e tem um trabalho extremamente importante junto às populações indígenas. Embora tenha

interferido entre muitos aspectos na organização cultural destas sociedades, foi esta que, muitas vezes, criou

mecanismos de ajudar esta sociedade, exemplo este é a diminuição da taxa de mortalidade entre os Guarani e Kaiowa

na reserva. Em 1977, Loide de Andrade, na época uma das pessoas responsáveis pelo trabalho desenvolvido pela

Missão Caiuá, informa que no período da criação do PI Francisco Hortas, entre os Kaiowa habitantes da região de

Dourados, registra-se um alto índice de óbitos, provocados, principalmente, pela desnutrição, tuberculose e DSTs

(SILVA apud VIETTA, 2007).

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183

Neste contexto, retomando a reflexão acerca da história do processo de territorialização

precária dos Guarani à RID, pode-se dizer que antes mesmo da criação da reserva, a primeira

frente migratória provavelmente tenha se dado no início do século XX e, posteriormente, a este

momento tem-se uma frente migratória de Guarani com a atuação da Missão Caiuá na RID.

3.1.2 – A presença Terena no Ka’aguyrusu e na Reserva Indígena de Dourados

―Bom, o que eu... Assim, pelo que eu percebo, nesse tempo que eu andei lendo

essas tese acadêmica do pessoal da UFMS mesmo [...]o pessoal pesquisador né,

a gente nota que o que tem registrado é que os TERENA chegaram aqui em 30,

né? Em 1930, década de 20... Mas, até a gente se questiona isso, porque, por

exemplo, eu tenho... eu tiro por mim né, eu tenho 49 anos né, eu nasci em 60, tá,

e o pai também nasceu aqui. Voltando pro lado do tronco do meu pai né... aí o

pai nasceu em 38... aqui também. E o avô dele, o pai dele também nasceu aqui,

aí vamos supor que o pai dele tivesse... que casou com 15 anos. Aí voltando pra

trás mais o calendário vai dar o que? 38 menos 15 vai dar... 19, né? Acho que é

19, né? 19 anos (Aqui dá 23 anos). Aí já são, no caso 1919, o avô dele né, o pai

dele, nascimento do pai dele. Mas o pai dele também nasceu aqui. E aí? Supõe

de novo que ele casou com 15 anos, jogando só no entorno de 15 anos que

menos que isso aí era impossível de um pai e uma mãe dar uma mulher pra

alguém casar na época. Aí já vai descer pra 1904, então em torno de 1900

alguns TERENA já devia tá aqui. Mas isso não tá confirmado nas tese... pra eles

tá falando que é 1920, 1930, mas que não tá assim muito, sei lá, eles têm que

pesquisar [...]‖.

Kaiowa João

Reserva Indígena de Dourados (Bororó), 2010.

―Aqui também é nosso lugar‖

Terena Gabriel

Reserva Indígena de Dourados (Jaguapirú), 2010.

De antemão, devemos recolocar a narrativa de João no espaço-tempo, partindo do

contexto de que os Terena são descendentes dos Chané, Guaná e/ou Chané-Guaná, falantes da

língua Aruak, do tronco linguístico Aruak, que, tradicionalmente, ocupavam a bacia do Rio

Paraguai na região do Chaco e do Pantanal, juntamente com os Kinikinawa e Laiana

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(BITTENCOURT; LADEIRA, 2000; VARGAS, 2003; EREMITES DE OLIVEIRA; PEREIRA,

2007; LADEIRA, 2010).

A desterritorialização destas sociedades de seus territórios tradicionalmente ocupados se

deram anteriormente ao processo de ―descontrole‖ territorial Guarani e Kaiowa. Vera Lúcia

Ferreira Vargas (2003) considera alguns fatores históricos que envolvem os Terena, tais como: as

frentes migratórias dos Terena advindos do Chaco paraguaio à territorialização no sul do antigo

Mato Grosso, a participação desta sociedade na guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança e,

posteriormente, o pós guerra.

Referente à desterritorialização Terena do Chaco Paraguaio, a autora assinala que ―[...]

aconteceu principalmente devido a questões econômicas que envolviam, a região e os interesses

dos colonizadores que viam essa sociedade e as demais como empecilhos para os seus interesses,

uma vez que elas ocupavam aquelas terras [...]‖ (VARGAS, 2003, p.45). Posteriormente a este

processo de desterritorialização, a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança é compreendida

como o segundo e principal momento deste processo de desterritorialização e dispersão dos

Terena no sul de Mato Grosso, nos propiciando entender a presença Terena nas proximidades da

RID.

No contexto da Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, esta marcou

profundamente a história dos Terena, que aliados aos brasileiros sofreram ataques e represálias

por parte das tropas paraguaias. É quase certo que as ―aldeias‖, então existentes na região dos rios

Miranda e Aquidauana desapareceram e, consequentemente, houve o refúgio destas sociedades

nas serras de Maracajú e Bodoquena. Ao final da guerra, em 1870, os Terena começaram a voltar

para suas antigas aldeias, que, por sua vez, foram destruídas durante a Guerra contra o Paraguai e

estavam sendo disputadas pelas frentes de colonização e ocupação, em geral, por oficiais

desmobilizados do exército brasileiro e comerciantes que lucraram com a guerra e que

permaneceram na região (VARGAS, 2003).

Neste contexto, Circe Maria Bittencourt e Maria Elisa Ladeira (2000, p.77) explicam

que ocorriam conflitos entre os Terena e a novas frentes de ocupação, como os fazendeiros,

assinalando que ―[...] havia muita exploração dos proprietários brancos sobre o trabalho dos

Terena [...]‖, e que este momento da história Terena é lembrado e/ou conhecida como Tempos de

Servidão, demonstrado a partir da fala do Terena João Menootó Martins.

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185

O pessoal daquela época tinha medo porque ainda se lembrava do patrão que

os chicoteava na fazenda. Quem se atrasava para tomar chá de manhã era

surrado... foi o finado meu avô quem me contou. Como castigo o pessoal tinha

que arrancar o mato com as próprias mãos. Quando a comida estava pronta,

eles mediam toda a sua tarefa. Eram quinze braças de tarefa e, mesmo não

terminando a tarefa do dia, de manhã mediam outra tarefa, que acumulava

(apud BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, p. 77).

Nesta perspectiva, os Terena desterritorializados de seus territórios tradicionalmente

ocupados pelas frentes de ocupação para o antigo estado de Mato Grosso, se dispersaram na

mesma proporção em que sofriam o impacto da perda de seus territórios tradicionalmente

ocupados, podendo a partir daí sinalizar a presença Terena na RID, considerada na narrativa do

Kaiowa João (2010).

Então eu, na minha opinião sabe, algumas família Terena, eles deveriam tá por

aqui em torno de 1900. E não só pro lado do tronco do meu pai, mas assim

também os Silva, a família Silva, a família Reginaldo, que era legal também

você entrevistar eles, a família Silva, a família Reginaldo... são esses três, que

era os Terena que tava aqui na época [...] Pode sê por causa da guerra

(referente a guerra do Paraguai e a Tríplice Aliança), mais não só os Terena,

mas também os Kinikinawa, Bororo, tava aqui...

A partir da narrativa de Vilson (2010) percebemos, também, a mobilidade dos Terena no

período pós-guerra.

[...] Era em função da Guerra. Porque o certo eu acredito assim, porque a

comunidade ela se abre toda vez que ela toma uma pressão. É quase que um Big

Brother assim, o Big Brother às vezes tá tenso assim, e quem que eles vai

eliminar? Eles elimina o que é mais pentelho. O mais né, aquele que eles vai

botar no paredão. Então, quando há mais tensão, assim, os mais pentelho que

num tá muito satisfeito, ele acaba saindo. Eu acredito que minha família teve

alguma tensão, alguma coisa, né. Essa informação eu presumo que seja assim.

Então eles desce, eles começa a descer, e eles passa vários anos até chegar

aqui. Tinha gente recém nascido lá e eles chega aqui com três anos. Lá é

Miranda. Eu já não sei se no caminho, minha vó falava né, pelo jeito na saída.

Agora não sei quanto na saída, né, se ainda na aldeia ou já no trecho, né. E eles

saem e desce, vem pelo Rio Nabileque, desce, né, desce no Rio Branco, e tal, e

vem pelo Rio Paraguai e se instala, acho que eles para um pouco ali no Chaco

Paraguaio. Lá dentro do Paraguai mesmo. E de lá que eles sobem e vem por

aqui no Laguna, ali por onde passou a batalha do Lopes, né. Franscisco

Fernando Lopes, e ai sobe até chegar aqui. Itaum, é Itaum ainda ficou um

pouco deles. Lá ficou uma, duas ou três famílias que você vê que tá, vira o volta

eles tão lá, né. Mas, que, que, esses índios quer aqui, eles ficam olhando, fica lá,

onde, porque lá é onde ficou um grupo também, Itaum, né. E ai o grupo maior

veio pra cá. [...].

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Na vinda... da minha família, né (está relacionando a chegada no que entende

hoje por RID), da família do meu vô, eles vinha, eles desce do Chaco

Paraguaio, depois da Guerra do Paraguai, né, em 1867, né. Depois que acaba a

guerra do Paraguai, eles desce no Chaco. E do Chaco eles vêm até aqui na...

Chega aqui em Dourados, e eles entra aqui pela Picadinha. Então, eles se

instalam exatamente lá aonde é o Bororó, mais precisamente ali perto... agora

num tem mais Calipau, primeiro tinha um Calipau ali.

Segundo a narrativa de Vilson, os primeiros Terena ocupavam os fundões do que

compreende ser hoje a RID, nas proximidades da escola Araporã, sinalizando que havia ―[...]

uma área de mato grande, tinha um Calipau ali‖, sendo este um ponto de referência ao

sinalizarem a presença Terena anteriormente à passagem de Marechal Candido Rondon com a

rede de linhas telegráficas utilizando a mão-de-obra Terena.

Estas narrativas tornam perceptíveis que a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança

possivelmente foi o estopim do ―descontrole‖ territorial dessas sociedades. Desterritorializados

de seus territórios, estes vão se refugiar nos fundos de fazendas como sem terras e sem condições

mínimas de reprodução sociocultural nos preceitos tradicionais de sua organização. Na memória

dos Terena, descendentes daqueles primeiros que chegaram à reserva, é consenso dizer que neste

momento histórico passaram por muitas dificuldades e tiveram que recriar condições

socioculturais para continuarem a viver. A narrativa de João (2010) demonstra esta dificuldade:

[...] os Terena tava aqui na reserva, minha mãe, a vó conta isso... Ah, conta que

ficou tudo bagunçado, num sabia pra onde ia mais, ai veio aqui. Ai, nisso daí,

foi ficando, ficando... [...]. tem muita gente que fala que foi o Rondon que

trouxe, mas num foi, ele trouxe, mas ai já foi a segunda leva, minha vó conta

isso [...].

A partir da narrativa de João, visualizamos o papel de Marechal Candido Rondon em

propiciar a vinda dos Terena à reserva, que liga-se a sua passagem na década de 1920. Mas, é

corriqueiro, entre muitos autores, demonstrarem a presença Terena na reserva após este

momento, incentivados pela política do órgão indigenista oficial, como é relatado por Olívio

Mangolin (1993, p. 23): ―[...] na década de 1930, um grupo de ìndios Terena (famìlia Aruak),

habitantes de uma região mais ao norte do estado foi levado para a área indígena de Dourados

pelo antigo SPI, com o objetivo de civilizar os Guarani [e Kaiowa] ali localizados‖. Entretanto,

na contramão deste consenso, relatos de Terena, Guarani e Kaiowa na reserva, constatou-se outra

realidade. Ainda nas palavras de João (2010) ao sinalizar a presença Terena, no final do século

XIX e início do século XX, na região onde se estende a RID, este sinaliza que:

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Eu acho que... o que eu poderia confirmar pra você é que a família Machado, a

família Silva e a família Reginaldo, esses eram... não sei, eu não saberia a

época que eles estavam aqui, mas só que baseando pro lado do meu pai,

voltando o tempo atrás, eu acho que em 1900 eles estavam aqui, já.

Os Terena, não sendo tradicionalmente do Tekoha Guasu Ka‘aguyrusu, salientam que

estão nesta região antes mesmo da criação da RID, fazendo menção à organização socioterritorial

dos Kaiowa e Guarani, já estavam vivendo nas proximidades do que compreende a reserva hoje,

havendo tensionamento muito intenso do que compreende a presença Terena na RID antes

mesmo de sua criação, de modo que os Kaiowa tendem a dizer em sua maioria que os Terena

chegaram com a passagem de Rondon pela região com as redes de linhas telegráficas pela região.

Segundo Circe Maria Bittencourt e Maria Elisa Ladeira (2000), a instalação de redes de linhas

telegráficas sobre o comando de Rondon, utilizou primeiramente a mão-de-obra Bororo e,

posteriormente, a Terena, quando já se encontravam em território Guaicuru e Terena, aparecendo

à concepção de que este seria o segundo grupo de Terena que chegou à reserva. O Terena Vilson

(2010) salienta que:

A segunda [referente ao segundo momento de chegada dos Terena na RID] foi

com o Rondon, isso ai a segunda a gente já se lembra, né, o pessoal. Porque

como tava, né, um pessoal novo ai que veio dos Terena de lá e tal. Na época, na

época quando eu nasci, já tinha vindo essa leva, né. Veio em 59 e eu nasci em

61. Mas se comentava, né. Olha esse fulano, é novo ai. E tinha a situação de

num aceitar, né. Eles num aceita muito e a tensão que tem é com esse grupo que

veio de lá, né.

O Kaiowa João, ao sinalizar a década de 1950, possivelmente tenha considerado outras

frentes de migração de Terena para a reserva, como a família Terena do Sr. Gabriel que chegou à

reserva na década de 1950, assinalando que ―quando chegô, já tinha Terena aqui‖. O que nos

possibilita deduzir que esta fosse a terceira geração de Terena migrando para a reserva, sendo a

primeira dispersa pela região, a segundo e a terceira como parte dos incentivos do órgão

indigenista oficial – o SPI. Referente à segunda geração, Roberto Cardoso de Oliveira (1976,

p.87) assinala que:

[...] parece que somente depois de 1917 é que começaram a chegar à Reserva

famílias Terêna, provenientes do alto da Serra de Maracajú. Tudo indica que as

primeiras famílias foram atraídas para lá pelo Coronel de Engenharia Nicolau

Bueno Horta Barboza, então Inspetor daquela região, com o objetivo de

estimular a lavoura Kaiwá pela reconhecida eficiência do trabalho Terêna. As

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famílias, que continuariam a chegar a Francisco Horta, seriam atraídas por seus

parentes, que muito bem se acomodaram junto aos Kaiwá.

Nesta configuração, observa-se que na narrativa de João (2010), estas frentes migratórias

distinguem-se entre si. Considerando os primeiros Terena que chegaram e/ou já estavam no

entorno da reserva, também assinala que:

É diferente dos outro, porque esses outros Terena eles também não tinha assim

essa vocação de cultivar a terra, inclusive aqui o trigo (...), tem um pouco de

soja, um pouco era o... tanto a missão, tanto a Funai [...]. Trabalhou mais com

essas família quando vieram, por isso que elas ganharam um lote aqui. Elas

ganhavam um lote de (dois/doze) alqueire, e aí eles plantavam. E os outros

quase não plantavam aqui. Depois foi vendo também que compensava plantar e

eles foram plantando também. E aí dessa família Machado também são quatro

troncos, tem o tronco do Ramon Machado, né, que o pessoal fala muito dele, aí

tem o tronco do Miguel Machado. O tronco do... o pai do Ramon era Valdivino,

Valdivino Machado, que chamava (...), esse que é o pai do Ramon, é o tronco

Machado. Aí o outro tronco Machado é Miguel Machado, e o outro tronco

Machado é o João Machado, que no caso ficou bisavô meu. E aí tinha um outro

tronco do Machado que era do... era de uma mulher, né, que essa mulher que

era Machado. Inclusive eles tão tudo lá na... eles foram embora, não voltaram,

mas tem alguns por aí... Foram lá pra, eles tão pleiteando terra, ali no... pro

(Itaum), ali no... junto com o pessoal dos quilombola, porque ali (...) Então, né,

são quatro troncos de Machado que entraram aqui, tavam aqui. Quando que

chegou, eu não sei. A única coisa que o pai sempre me fala é que o meu bisavô,

ele veio de (Laiana), mas ele veio sozinho. Aí ele chegou aqui, trabalhou nas

(ervas), depois casou com minha vó, a minha bisavó que era Guarani daqui,

então ficou aqui. Só que ela também não era Guarani daqui, ela era Guarani do

Paraguai, ela tava aqui, aí ele casou com ela. Aí (disso daí) saiu o meu vô

Joaquim, e aí o Joaquim casou com a minha mãe... não, casou com a outra

minha vó, que é a Dona Floriza, ela é viva ainda. Ela é Guarani também, ela

fala a língua.

Diante da mobilidade Terena, entre encontros e desencontros, pode-se considerar a

presença Terena na RID que, a partir de Levi Marques Pereira (2009b, p. 119-120), é possível

dizer que está relacionada a um contexto do projeto civilizatório dos órgãos indigenistas oficiais:

No que diz respeito à relação com o Estado, através do órgão indigenista oficial,

vale lembrar que no período anterior a década de 1960, ainda na vigência do

SPI, essa suposta tendência já se fazia presente. Assim, o SPI identifica a

propensão dos Terena para a assimilação, manifestada na facilidade e habilidade

em incorporar novas tecnologias e formas organizacionais. Os Terena passam a

ser vistos inclusive como aliados estratégicos na tentativa de atingir outras

populações indígenas consideradas como mais refratárias aos objetivos

integracionistas do órgão indigenista. É com esta intenção que o SPI promoveu o

recolhimento de Terenas que viviam como agregados em fazendas nos

municípios de Dourados e Ponta Porã na reserva kaiowa de Dourados. A

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intenção expressa era de que eles pudessem facilitar a assimilação dos Kaiowa,

considerados pouco solícitos aos intentos integracionistas do Estado.

Na primeira metade do século XX o SPI além de atrair para a reserva de

Dourados índios Terena, dispersos pela região, também facilitou o ingresso de

regionais pobres e paraguaios que tivessem relações de proximidade com a

população Kaiowa e Guarani aí recolhida. A idéia era que essa interação e

mestiçagem favoreceriam a assimilação gradativa da população Kaiowa e

Guarani. Disto resulta uma população bastante heterogênea na reserva de

Dourados. O certo é que nesse momento se atribui aos Terena um papel

civilizador, tanto é que famílias terena foram transferidas para a reserva Araribá,

em Bauru -SP, com a intenção de facilitar a ―aculturação‖ dos Kaingang.

A partir do autor, consideramos como formas que impulsionaram o processo de

territorialização precária Terena: a dispersão Terena nas fazendas da região e a intervenção do

órgão indigenista oficial em trazê-los à reserva, contudo sem retirar o caráter inerente de

construção de ―trajetórias-histórias‖ de grupos Terena à RID.

Buscando demonstrar os ―vários olhares‖ sobre a organização socioterritorial multiétnica

da RID, assinalamos que tais ―deslocamentos‖ nas narrativas se fazem inerentes as disputas

internas na reserva, criando fatores de aproximação e/ou mesmo de ―repulsão‖ de uma sociedade

frente à outra. O compartilhamento territorial entre Guarani, Kaiowa e Terena deve ser entendido

nas prerrogativas de que distintas territorialidades se colocam em disputa em condição de reserva,

demonstrando, assim, que distintos modos de vida foram sobrepostos na RID, configurando-a

como um território precário, tendo como características intrínsecas nesta relação de precariedade:

a dinamicidade, a complexidade e a conflitualidade.

Portanto, podemos dizer que a presença de três sociedades indígenas na RID, com

modos de organização socioespaciais distintas, traz a reserva uma dinâmica muito específica,

envolvendo tensionamentos entre um modo de vida e outro, ao mesmo tempo em que estes

modos passam a ser confundidos nas redes de sociabilidade, principalmente quando envolve

relações de casamento, alianças políticas, julgamentos sobre um modo de ser e de viver, estando

fundamentalmente relacionados às territorialidades em que cada sociedade ocupa e transita na

reserva.

Em suma, o fato de existir um questionamento no que concerne a explicação de ―quem

chegou primeiro, segundo ou terceiro na reserva‖, significa dizer que as territorialidades Guarani,

Kaiowa e Terena estão em disputa, criando fronteiras e processos de identificação com a RID.

No caso dos Terena, por não serem tradicionalmente do Ka‘aguyrusu, os mesmos buscam

demonstrar sua presença nas proximidades da reserva antes mesmo de sua criação. Logo, dizer

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que estavam no lugar antes de 1900, é dizer que as relações que exercem com/na RID e com os

Guarani e Kaiowa, ultrapassam as datações pós Rondon, e buscam dizer que a reserva, é também

Terena.

3.2 – O processo de constituição da Reserva Indígena de Dourados enquanto um

território precário

―E a moradia dos antigo, dos índio é ... num é igual aqui né, apertado. A gente

fala que é apertado aqui né, já é apertado. E lá não, o Tekoha nosso aqui, o

outro aqui, o outro lá. Então a gente viaja um dia pra chegar no lugar, né?‖.

Kaiowa Ñanderu Jorge

Reserva Indígena de Dourados - Jaguapirú, 2010.

A partir da narrativa do Kaiowa Ñanderu Jorge, podemos perceber como a organização

socioterritorial na RID é extremamente contrastante ao modo de vida em que os Guarani e

Kaiowa exerciam no Tekoha. Nosso entendimento parte do pressuposto de que as reservas

criadas pelo SPI se deram pela necessidade de liberar os territórios tradicionalmente ocupados

pelos indígenas às novas formas de ocupação territorial não indígena111.

Entendendo que a criação da RID é parte do processo de esbulho dos territórios

tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa, a mesma se constituíra como território

precário, pois não propiciava as condições mínimas de organização socioterritorial destas

sociedades, mas sim o recolhimento destas sociedades para dentro das reservas, constituindo-se

como aglomerados humanos de exclusão, termo utilizado por Rogério Haesbaert (1999; 2007)

que traduz:

111

―Segundo é amplamente conhecido, até o início do século XX era comum o Estado delegar à Igreja Católica a

atribuição de gerir os ―aldeamentos indìgenas‖. Esta prática começou a arrefecer-se com a criação do órgão

indigenista oficial ligado aos militares de orientação positivista que postulavam o indigenismo laico (Ver Carneiro da

Cunha 1992; Grupioni 1995; Lopes da Silva & Grupioni 1994)‖. (OLIVEIRA; PEREIRA, 2009, p. 46).

Ainda consideramos, a partir de Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (1999, p.49) que durante a

criação da reserva não havia preocupação em demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelas sociedades

indígenas, mas sim, ―[...] a legislação da época se preocupava apenas em reservar algumas áreas para os ìndios [...]‖.

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191

[...] a dimensão geográfica ou espacial dos processos mais extremos de exclusão

social porque ela parece expressar bem a condição de ―desterritorialização‖- ou

de ―territorialização precária‖ – a que estamos nos referindo, a começar pelos

próprios significados que carrega no senso comum, explicitados pelo Novo

Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: Aglomeração – ação ou efeito de

aglomerar (-se); ajuntamento, agrupamento, amontoamento; Aglomerar – 1.

Juntar, reunir, acumular. 2. Ajuntar-se, reunir-se, amontoar-se; Aglomerado –

adj. 1. Junto, reunido; acumulação, amontoado. S.m. 2. Conjunto, reunião,

aglomeração (HAESBAERT, 2007, p.311-312).

Esta relação de aglomerar, juntar, reunir, agrupar e amontoar está diretamente

relacionada ao modo com que a RID se constitui como um território precário e com quais

implicamentos políticos e econômicos sua criação envolvia impondo novas dinâmicas espaciais

aos Guarani e Kaiowa. Territorialização precária é um conceito utilizado por Rogério Haesbaert

(2007) ao demonstrar que não existe desterritorialização plena, mas sim, uma inclusão precária

que se espacializa enquanto territorialização precária. Para o autor, como já elucidado, o território

constrói-se no movimento de Territorialização-Desterritorialização-Reterritorialização (T-D-R),

tendo em vista que ninguém está fora do território, mas é uma necessidade humana territorializar-

se. Todavia, os processos de territorialização, no caso da RID, aparecem muitas vezes sendo

reterritorializações-desterritorializadoras, já que configura uma territorialização precária.

A criação da RID culminou em um espaço para conter-afastar as sociedades indígenas

das novas formas de ocupação do espaço, criando-lhes um espaço que visava separar indígenas e

não indígenas, por isso a necessidade por parte do órgão indigenista oficial em criar as reservas.

Neste sentido, se a reserva por um lado buscava a aglomeração e o ajuntamento das sociedades

indígenas que estavam sendo desterritorializadas de seus territórios tradicionais, buscando

integrá-las à sociedade nacional, esta relação se fazia ao mesmo tempo como um espaço de

contenção territorial, pois tinha a pretensão de recolher os indígenas para liberar as terras para a

ocupação não indígena, tendo em vista que se os mesmos estivessem dispersos ocupando seus

territórios tradicionais atrapalhariam esse processo de territorialização não indígena dos

territórios. Significando, assim, como propõe Rogério Haesbaert (2009, p.96):

[...] estratégias que, num mundo tomado de aglomerados humanos

extremamente precarizados, envolvem não mais a possibilidade (e a ―utilidade‖)

da reclusão em espaços relativamente fechados, mas a retenção/contenção

(provisória, instável e sempre parcial) em ―campos‖ [...] territorialidades-limbo

onde mal distinguimos o dentro e o fora, o limite/fronteira (entre o) legítimo e o

ilegítimo.

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192

Dessa maneira, a partir de Rogério Haesbaert (2009), compreendemos que além dessa

territorialização precária, onde se encontram os aglomerados de exclusão, a RID cumpre uma

função de ―contenção territorial‖, pois a expansão dos seus territórios e o trânsito tradicional feito

entre os seus tekoha, bem como nas áreas de pesca, caça, coleta de materiais para artesanato etc.

foi sendo restringidos, desconfigurando a dinâmica socioterritorial dessas sociedades. Nas

palavras do autor, a contenção territorial ―[...] tem também a vantagem de significar, através

desse efeito represa, ao mesmo tempo a obstrução de um caminho – ou, pelo menos, a abreviação

e/ou o desvio de uma dinâmica, e o impedimento ou a restrição a sua expansão, à sua proliferação

[...]‖ (HAESBAERT, 2009, p. 115).

Assim, a contenção territorial pode ―[...] revelar, sobretudo, o sentido ambivalente, a

começar pelas novas cercas e muros, de toda ordem, que proliferam pela superfície do planeta, e

que não significam, simplesmente, um processo de ―exclusão‖ [...]‖ (HAESBAERT, 2009, p.

114), mas, como em nosso caso, mesmo sem muros que delimitam o espaço da reserva,

significam uma inclusão precária, constituindo um território precário, que tinha como intenção

maior conter o retorno aos seus territórios tradicionalmente ocupados.

Todavia, podemos dizer, a partir de Rogério Haesbaert (2009, p. 115), que a contenção

possui um sentido ambivalente, pois ao mesmo tempo em que dificulta a mobilidade dos outros,

também, limita a nossa. Logo, a linha que separa quem está contido e quem está fora é sempre

tênue. É neste sentido que podemos pensar também as relações estabelecidas entre indígenas e

não indígenas que vivem em seu entorno.

Contenção envolve também esta característica de ambivalência em que estamos

ao mesmo tempo ―contendo‖ a progressão de outros e ―nos contendo‖ em termos

da nossa própria progressão/mobilidade, de modo que o ―conter‖ (o outro) e o

―estar contido‖ (pela não-progressão do outro) se mesclam de tal forma que,

podemos dizer, o ―outro‖ está em nós pelo mesmo processo de contenção que,

ao evitar sua expansão, provoca também, de alguma forma, o nosso retraimento.

Nesta relação contraditória de abertura/fechamento é que entendemos que as políticas

indigenistas oficiais do SPI constituíam sua finalidade. Este ato de conter, marcado pela

separação e a segregação, está diretamente relacionado ao estabelecimento da reserva como

aglomerado humano de exclusão resultante da desterritorialização de seus territórios tradicionais

do qual foram submetidos. Neste sentido, a expropriação de seus territórios tradicionais pode ser

pensada como exclusão social, tendo vista que Rogério Haesbaert (2009, p.315) considera que

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193

―[...] toda exclusão social, é também, em algum nìvel, exclusão socioespacial e, por extensão,

exclusão territorial – isto é, em outras palavras, ―desterritorialização‖.

Neste sentido, entendemos o conceito de ―contenção territorial‖ como um modo de

―conter‖ as sociedades indìgenas em áreas que poderiam ser consideradas por meio do Estado e

da sociedade nacional, como ―lugares de/do ìndio‖. Desta forma ao mesmo tempo em que visava

aglomerar estas sociedades em reservas indígenas, buscavam também contê-los em espaços

ínfimos, que impossibilitava e impossibilita a reprodução do modo de viver Guarani e Kaiowa

nos delineamentos do Tekoyma.

O antigo modo de viver confronta-se com a condição de reserva, ou seja, com o novo

modo de viver (Tekopyahu), podendo ser elucidado nos dizeres da Kaiowa Ñandesy Floriza:

―Antigamente num é igual hoje, viver assim, apertado. Antigamente memo, cada um... é, cada um

tem seu lugar, cada família vive assim, num esparrama esse, daí‖. O estar esparramado

exemplifica o não estar junto com os parentes. Muitas vezes, ao narrarem a condição atual em

que vivem hoje, no viés de ―cada um foi pro um lado‖, é demonstrado o novo modo de vida no

qual foram obrigados a viver – Tekopyahu, que, por sua vez, os impõe outras e novas

configurações territoriais não existentes no Tekoyma.

A RID trouxe a condição do conter e aglomerar as sociedades indígenas, constituindo-se

enquanto um território precário para os Guarani e Kaiowa, e também para os Terena. Para os

Guarani e Kaiowa, compartilhar territórios com aqueles que estabeleciam relações de

distanciamento, fora das redes de sociabilidade no Tekoha e Tekoha Guasu (fora das redes de

sociabilidade pautada na família extensa, seja por laços de parentesco ou de afinidade social) e

compartilhar territórios com outras sociedades indígenas e/ou grupos étnicos, é a expressividade

do Teko Vai.

É necessário considerar que os processos de desterritorialização entre os Guarani,

Kaiowa e Terena implicou no compartilhamento territorial na RID em diferentes processos de re-

territorialização, e que estes novos modos de viver com base no ―conviver junto‖ possibilita a

criação de novas territorialidades, novas fronteiras e identidades, havendo assim, a necessidade

de entender cada processo de des-re-territorialização vivida por estas sociedades, no que concerne

ao processo de desterritorialização de seus territórios tradicionalmente à re-territorialização

precária na RID.

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194

Assim, transpomos esta conceituação para os moldes da precariedade em que alguns

homens e mulheres são obrigados a viver, como é o caso das reservas criadas pelo SPI,

objetivando separá-los do restante da sociedade não indígena ao mesmo tempo em que se

buscava sua integração na sociedade nacional.

Para compreendermos o processo de constituição da RID enquanto um território precário

é necessário entendermos como foi pensado o processo para construção desse projeto de

formação de aldeias e/ou reservas com intuito de promover a integração e ocupação nacional:

O próprio órgão indigenista oficial do Estado Brasileiro, SPI e depois FUNAI,

teve papel fundamental no processo de esbulho impetrado conta terras indígenas

na região. Esta afirmativa se justifica porque, ao invés de procurar os meios

legais para assegurar que as comunidades indígenas permanecem nos espaços

em que se encontravam, algo era sua obrigação moral e legal no papel de tutor

dos índios, aquele órgão acabou pautando sua atuação pelo entendimento de que

o direito indígena à posse da terra se restringia a recolher os índios em

aldeamentos ou reservas oficiais. Dessa maneira, o órgão indigenista oficial se

recusou a estender qualquer apoio legal e assistência às comunidades que

insistiam em permanecer nos locais onde sempre viveram [...] (PEREIRA;

OLIVEIRA, 1999, p.93).

É neste contexto, que a denominação jurídica de aldeia112 foi construída como sendo o

―lugar dos índios‖, tendo em vista que as reservas demarcadas pelo SPI foram muitas vezes

correlacionadas aos lugares de ocupação tradicional Guarani e Kaiowa (PACHECO, 2004),

contradizendo, assim, a ocupação destas sociedades nos Tekoha, a partir da organização

socioterritorial com base na família extensa.

Logo, o termo aldeia e/ou aldeamento, foi construído como sendo as reservas indígenas,

ou seja, como se todas as famílias extensas Guarani e Kaiowa fossem oriundas tradicionalmente

daquelas áreas reservadas pelo SPI, constituindo-se como aldeamentos indígenas, ao mesmo

tempo em que os territórios tradicionalmente ocupados por eles estavam ―disponìveis‖ para

ocupação não indígena. Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (2009, p.48-49)

consideram que:

112

―Aldeia‖, por sua vez, termo do qual deriva ―aldeamento‖, originalmente era utilizada para designar pequenos

vilarejos ou distritos rurais. Na língua portuguesa falada no Brasil, esse vocábulo corresponde a uma categoria

linguística forjada na situação do contato das populações indígenas com o Estado Nacional. Normalmente a palavra é

utilizada para designar o local de maior concentração de famílias indígenas, prevalecendo no imaginário social a

ideia de que essas famìlias viveriam agrupadas na forma de vilarejo, dirigidas por um lìder denominado ―cacique‖.

Um imaginário assim é reforçado pela indústria cinematográfica de Hollywood e por imagens de aldeias xinguanas

veiculadas pela mídia nacional. (OLIVEIRA; PEREIRA, 2009, p. 47-48).

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Com o início da ação do órgão indigenista na região sul do atual estado de Mato

Grosso do Sul, o SPI e depois a FUNAI passaram muitas vezes a denominar

como ―aldeia‖ os espaços demarcados para os ìndios ou mesmo os locais em que

existiam comunidades indígenas. Assim, em muitos documentos do SPI e

mesmo da FUNAI esse termo é utilizado para designar as unidades

administrativas do próprio órgão, ou seja, aquelas terras reservadas para os

índios que estavam sob sua jurisdição.

Quanto ao processo de deslocamento dos indígenas para as mesmas, Levi Marques

Pereira (2001) salienta que as reservas foram criadas como área de acomodação para a

população indìgena, considerando que o SPI, ―financiava‖ os deslocamentos dos indìgenas das

áreas tradicionalmente ocupadas para as aldeias e/ou reservas, perpetuando a ideia de que eram os

territórios tradicionalmente ocupados por eles. Deste modo, aqueles que estavam retornando aos

seus territórios, agora transfigurado em fazendas, opondo-se a condição de reserva, passaram a

não serem reconhecidos como legítimos indígenas.

Podemos afirmar que este fato se configura como sendo parte do processo de

recolhimento dos indígenas que estavam resistindo nos territórios tradicionalmente ocupados.

Pois, havia a necessidade de confiná-los dentro das reservas, de modo que este recolhimento foi

muitas vezes tratado ideologicamente como uma condição de ―retorno‖ dos indìgenas para os

seus territórios tradicionalmente ocupados, enquanto, na verdade, se impunha uma condição de

viver nas reservas113.

Neste sentido, aqueles que estivessem fora das reservas e/ou aldeias não eram

reconhecidos, legitimamente, como índios, pois também como considera Levi Marques Pereira

(1999, p. 39), o recolhimento se dava da seguinte forma:

O chefe de Posto do PI Dourados [Posto Indígena de Dourados] solicita através

do Ofício n.º 046/79, a cedência de uma Kombi para ―atender aos vários

problemas que surgem com indígenas desaldeados, principalmente no transporte

destes ìndios no retorno à aldeia‖ (apud Brand, 1997, p, 105). Aqui aparece a

ideia de ―ìndio desaldeado‖, categoria forjada para dar conta daqueles casos em

que os Guarani continuam insistindo em não aceitar a vida na reserva, sob a

proteção e assistência do Estado (PEREIRA, 2001, p.39).

113

Para Levi Marques Pereira (2001, p. 39) ―[...] a ideia de ―retorno‖ à reserva desempenha, assim, a função de

ocultar o confinamento desses índios, que é o que está realmente acontecendo no período. É revelador o fato de que o

crescimento demográfico nas reservas demarcadas pelo SPI atinge seu índice mais alto a partir da década de 1970,

quando desaparecem os últimos refúgios dos índios que ainda viviam nos fundos de fazendas, que passam a ser

totalmente ocupadas com pastagens e plantações. Vale lembrar mais uma vez que o aumento da população nas

reservas supera em muito as possibilidades de crescimento vegetativo nas décadas de 1960, 1970 e 1980‖.

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Tanto o SPI, como posteriormente a FUNAI, buscaram criar formas para recolher os

Guarani e Kaiowa que estavam sendo desterritorializados de seus territórios tradicionalmente

ocupados para as reservas, assim como viabilizar o retorno daqueles que estavam saindo das

reservas em direção aos Tekoha. Neste sentido, Antônio Jacó Brand (1997, p. 104) assinala que:

[...] o delegado da FUNAI deslocou um motorista e caminhão para ficar à

disposição do P.I [Posto Indígena] de Caarapó, por um espaço de três dias,

―objetivando efetuar o transporte de índios que desejassem regressar ao P.I

[Posto Indígena]. proveniente das fazendas circunvizinhas [...]‖.

Como podemos perceber com base nesta passagem, é que ―o problema maior na região

não era simplesmente o fato de doar terras aos índios, mas principalmente, recrutá-los para

essas terras, tendo em vista a enorme dispersão em que os grupos indígenas do Sul de Mato

Grosso viviam‖ (GRESSLER; SWENSSON apud BRAND, 1997, p.117).

Ao sair dos territórios tradicionalmente ocupados, a reserva, para muitos Guarani e

Kaiowa, se estabeleceu como caráter provisório, estando relacionada à falsas promessas do órgão

indigenista oficial em trazê-los para as reservas, pois, para viabilizar a vinda dos indígenas para a

reserva, Antônio Jacó Brand (1997, p. 06) afirma que ―[...] os ìndios desaldeados, que viviam

fora das Reservas, não tinham acesso à assistência do órgão oficial e não eram plenamente índios.

Os aldeados, através da exclusão dentro das reservas, tinham pleno acesso aos benefícios da ação

tutelar. [...]‖.

É que é assim... (silêncio) que o... (risos) os índio mora lá, ali sabe.

Então um branco prometeu pros índio, prometeu. Prometeu assim... [...]

Então os índio quer ver aquelas coisa que acontece pra ele. Então por

isso que os índio vem... eu falei não, vamo pra frente que nós vamo

ganhar coisa. Então os índio vem vindo né, aí mudou pra cá, né!

(referente a RID). Então o branco prometeu pra ele pra arrumar muitas

coisas pra ele, né, se [...] a reserva, porque alugou muito, né. Então os

índio queria saber. Queria ver, queria saber, e... queria que acontece,

por isso que os índio veio vindo pra cá.

Então o pessoal (referente aos brancos)114

veio vindo empurrando, vem

empurrando, vem empurrando... foi empurrado, né? Então ela largou os

tekoha dela, os índio pra vim, pra ver que acontece qualquer coisa aqui

pra frente, né. E aí veio vindo mais ou menos, calculou mais ou menos,

fez isso aí, essa, da reserva, né. Então ali, ô... (silêncio) é, a maioria, o

114

Neste momento o Kaiowa Ñanderu Jorge narra as relações com um Colombiano que chegara no Tekoha

Iguarusu.

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branco ali pegou... um pouco que pegou assim... sem, pouquinhas coisa,

que compra as coisa, isso a terra dos índio, né.

Esse aqui mesmo (referindo-se a uma fazenda perto da RID), esse aqui

mesmo eu sei bem por quanto que ele comprou essa fazenda aí, por vinte

conto de réis. Era, trabalhava, ele veio de São Paulo, seu Sílvio Zocolar,

e ele trabalhava negócio de vender tora, comprava do... comprava tora

pra vender aí na... aonde serrava a madeira. E por aí, ele... ele e o irmão

dele comprou com, com vinte conto [...]. É assim, depois... depois o índio

num pode mais voltá... ai tamô aqui té hoje, aqui na reserva... (silêncio)

(Kaiowa Ñanderu Jorge, 2010).

O que os relatos evidenciam é que a saída dos Tekoha fora uma imposição, muitas

vezes, algumas encobertas por falsas promessas e outras por meio da coerção física. Kaiowa

Ñanderu Jorge (2010) evidencia que sua família veio para reserva porque ouvia comentários de

que o lugar era bom. Mas, quando quiseram retornar ao seu Tekoha, já não puderam, pois ―o

fazendeiro não deixou‖. Ainda assinala que os fazendeiros, por meio de seus capangas e

pistoleiros, obrigavam os índios a saírem por meio da violência física. ―[...] É assim né, o

fazendero fala, você sai... ai fala vô bate em você... o índio sai, senão apanha‖ (2009).

Estas relações eram, também, práticas dos órgãos indigenistas oficiais, tanto do SPI,

como da FUNAI. Se, por vezes, as promessas de que a reserva era um lugar melhor não

funcionavam, buscavam retirar os indígenas por meio da coerção física. Segundo relatos de um

Kaiowa morador da RID (2010) ―o fazendero ele fala: é... sai. Ai tem que saí. Se o cê num sai, o

SPI vai lá e fala pra saí. Se num sai, é, pode apanhá... (risos) [...] eu ouvi isso daí, meu pai falô

isso daí. Esta história..‖.

Assim, o SPI, quanto à viabilização da ida dos Guarani e Kaiowa para as reservas,

quando conseguiam, tinham muitos problemas em mantê-los nesta condição, sendo comum,

posteriormente, os indígenas retornarem aos seus Tekoha. É neste contexto que o órgão

indigenista cria mecanismos de coerção para que estes não pudessem retornar. A partir de Alzira

(2009), este processo era dessa forma: ―[...] num pode saí... se saí, tem que ter papel, tem que

pegá. Ai assina, assinava lá no posto (referindo-se ao Posto Indígena). [...] é, tem que sabê

quando vai voltá, já, tem que dizê pra onde vai [...]‖. Esta relação, indo ao encontro da fala de

Alzira, é também evidenciada por Eva Maria Luis Ferreira (2007, p. 42-43) demonstrando que:

[...] para impedir a circulação dos índios foram feitas várias tentativas durante os

anos de operação do SPI. A criação de guias de licença, para saída, foi uma

dessas tentativas de impedir que os índios deixassem a área do posto indígena.

Com essa medida o SPI pretendia fazer o controle de saída e entrada de pessoas

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nas dependências dos postos. A saída da área indígena era permitida para

cumprir tarefas e determinações (remuneradas ou não), ordenadas pelo

encarregado do posto indígena – inclusive para buscar outros índios que estavam

fora da sua área do posto indígena ou para o trabalho em fazendas próximas, que

não era considerado como nomadismo, mas como uma prática distinta e

louvável.

O que é perceptível no processo de constituição das reservas, observadas por João

Pacheco de Oliveira (1999, p. 109), é que os critérios para definir as terras dos índios passavam

pela função do órgão em mediar às situações sociais no avanço da fronteira econômica. ―[...] O

objetivo fundamental era estabelecer um controle sobre as relações entre índios e brancos,

evitando o conflito e prevenindo suas consequências maléficas para os índios (extermínio,

correrias, escravizamento, etc.)‖. Neste sentido, elencamos que o termo aldeia com a criação das

reservas, nascia pela necessidade e finalidade de amenizar um relativo estado de conflito entre

índios e colonizadores, já que nas prerrogativas de índios aldeados e desaldeados, os indígenas,

que resistiam fora dos aldeamentos e/ou reservas estavam em situação irregular (OLIVEIRA;

PEREIRA, 2009).

Neste contexto, reafirmamos que as reservas tinham como finalidade principal o

recolhimento dos indígenas para o seu interior e a liberação de seus territórios tradicionalmente

ocupados para ocupação não indígena, de forma que a criação das mesmas, a partir dos ideários

de aldeia e aldeamento, tem possibilitado ―[...] um pensamento generalizado no Mato Grosso do

Sul de que as fazendas ocupadas atualmente pelos fazendeiros e reivindicadas pelos índios nunca

pertenceram a eles, porque a ideia dominante é que terras de ìndios são as reservas‖ (STEFANES

PACHECO apud OLIVEIRA; PEREIRA, 2009, p. 115).

Este processo se deu a partir da imposição de um único modelo de fazer-se

humanamente, que não era ser indígena, o objetivo era impor uma humanidade aos índios, pois

como assinalava um agente do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa (agente do SPI), esta relação se

fazia pela necessidade de ―Não incorporar párias, mas fazer do índio, um índio melhor‖

(RIBEIRO, 1996, p. 212).

Neste momento, as leis que amparavam os indígenas aos seus territórios

tradicionalmente ocupados tinham sempre caráter provisório, garantindo-lhes alguns direitos até

que a efetiva assimilação e integração das sociedades indígenas à sociedade nacional não se

consolidava (SOUZA FILHO, 2003). São nestes delineamentos que a RID foi criada, já que

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―futuramente‖ na perspectiva do órgão indigenista oficial do SPI, não haveria necessidade de

garantir terras aos índios, pois os mesmos já estariam integrados à sociedade nacional.

Como parte desta política assimilacionista e integracionista, a prioridade era que as

reservas estivessem perto de núcleos urbanos, e que possibilitasse maiores proximidades com não

indígenas, de modo que a partir de processos de miscigenação, estes seriam integrados à

sociedade nacional. Esta ocorrência é elucidativa na localização da RID próximo ao que

compreende hoje a cidade de Dourados, que naquele momento era um pequeno povoado

pertencente ao município de Ponta Porã, localizado aproximadamente a 130 quilômetros da

cidade de Dourados. Consideramos também, que a proximidade entre cidade e reserva (ver Mapa

IV) se intensificou devido ao avanço da cidade nas proximidades da reserva, aparecendo hoje,

conurbadas entre si.

Todas as formas de impossibilitar a reprodução do modo de vida Guarani e Kaiowa se

colocaram como parte integrante da criação das reservas. Os tensionamentos entre o antigo e

novo modo de viver era para o SPI uma forma de desajustar seus modos de viver, e possibilitar da

melhor forma possível sua integração (digamos também, inclusão precária) à sociedade. Neste

contexto, escolher as reservas nas proximidades de núcleos urbanos era para o SPI um importante

elemento que possibilitaria melhores formas de interação social entre indígenas e não indígenas,

buscando a inserção destes na sociedade. Contudo, esta inserção, ou melhor, inclusão, sempre se

fez precariamente.

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Mapa IV– A conurbação existente entre a RID e a cidade de Dourados

Esta relação de proximidade com a cidade trouxe conflitos no decorrer do processo de

criação da RID, ou seja, embora as reservas se consolidassem como ―o lugar do ìndio‖, a sua

criação foi encoberta de tensionamentos com a sociedade regional. Isto porque a RID tinha a

intenção dúbia de separar e, combinadamente/contraditoriamente, aproximar os indígenas da

sociedade nacional, pois a grande questão em torno da criação das reservas era viabilizar a

liberação dos territórios tradicionalmente ocupados para colonização.

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O Kaiowa Ñanderu Jorge expressa os conflitos das disputas territoriais que ocorreu entre

indígenas e não indígenas envolvendo a criação da reserva, ao dizer que havia por parte da

sociedade não indígena, principalmente referenciando aos fazendeiros da região, o

prolongamento de suas fazendas para a área territorial que compreende a reserva. Em suas

palavras, Jorge assinala que ―o branco foi invadindo a reserva, a reserva num é aqui, num é isso

daí. A reserva erva bem maior, isso vou tê dizê porque era. Agora, onde é reserva tem casa, tem

tudo lá...‖.

O avanço das fazendas sobre a reserva, somado ao crescimento da cidade que foi se

conurbando à reserva, fez com que alguns bairros da cidade de Dourados invadissem o território

da RID, como exemplificam os indígenas no caso do Conjunto Residencial Monte Carlo ao

dizerem que aquele lugar era parte da reserva. Desta forma, demonstram que ao mesmo tempo

em que estavam sendo desterritorializados de seus territórios tradicionalmente ocupados, também

sofriam o processo de compressão territorial pelo avanço da cidade e a formação das fazendas e

chácaras no entorno da reserva, significando maior precariedade nos modos de viver.

Neste sentido, a redução de 125 hectares de terras da RID (de 3.600 para 3.475

hectares), deve ser visualizada como parte do processo de ocupação não indígena, demonstrando

que a criação da reserva não se consolidou com tranquilidade frente à sociedade não indígena.

Embora a mesma tenha sido criada nos pressupostos de ser o ―lugar do ìndio‖, estes

tensionamentos demonstram que nem as reservas criadas pelo SPI foram respeitadas pelas novas

frentes de ocupação do território. Assim, a redução territorial da reserva contribui para os

problemas internos no que concerne ao compartilhamento territorial entre os Guarani, Kaiowa e

Terena, pois desconsidera o modo em que cada família extensa e nuclear se organiza através de

relações de parentesco e alianças políticas na reserva.

Atualmente, cada indivíduo tem disponível, aproximadamente, 0,26 hectare de terras115.

Por isso, apesar de considerarmos que existe uma organização socioespacial destas sociedades

Guarani, Kaiowa e Terena na RID, a partir dos modos em que cada família nuclear ou extensa

115

Na RID, segundo dados do Ministério Público Federal – MPF (2011 – Jornal o Progresso - ver Anexo I), cerca de

400 hectares de terras, correspondendo a 1,2 mil de área agricultável, estão nas mãos de não indígenas. Estas terras

são arrendadas por indígenas há terceiros, principalmente, para o cultivo da soja. A precariedade em que vivem as

sociedades indígenas em condição de reserva favorece tais arrendamentos que financeiramente são revertidos aos

indígenas que recebem uma renda anual de R$1.000, 00, ou seja, menos de R$ 100,00 por mês. No entanto,

considerando que a divisão socioterritorial da reserva pode variar entre as gentes que ali vivem, acarretando o fato de

existirem áreas menores do que a média apresentada individualmente, este fato torna esta situação apresentada mais

precária para determinadas famílias, já que considerando as áreas arrendadas, individualmente, a reserva corresponde

a 0,23 hectares de terras para usufruto individual.

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organiza sua territorialidade na reserva, ela é precária. Pois, é necessário apontar que a densidade

populacional da reserva é maior do que alguns municípios de MS, mas com uma área territorial

muito menor, como é o caso dos municípios de Japorã e Douradina116 (a organização

socioterritorial por densidade populacional pode ser minimamente visualizada no Mapa V).

3.2.1 – As ocorrências de suicídios e assassinatos na Reserva Indígena de Dourados

A densidade populacional presente na RID de 0,26 hectare de terras, influência, em

muitos aspectos, na desarticulação da organização socioterritorial tradicional dessas sociedades,

contribuindo para o grande índice de suicídios e assassinatos. As ocorrências de suicídios e

assassinatos divulgados pelos Relatórios de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil -

Conselho Indigenista Missionário – CIMI117, no período entre 2003 a 2009, demonstra que o

estado de Mato Grosso do Sul aparece com os maiores índices de violência envolvendo as

sociedades indígenas, principalmente envolvendo os Guarani e Kaiowa.

Segundo o CIMI, a RID aparece em todo o período com os maiores índices de suicídios

e assassinatos (ver Gráfico I e Tabela III).

116

Douradina tem uma população com 5.364 para 280,8 km ², tendo uma densidade populacional de 18,43 e o

município de Japorã tem uma população estimada de 7.731 para 419,4 km², com uma densidade populacional de

19.10, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE, 2010). 117 Segundo Paulo Suess (2011) o CIMI é ―[...] uma entidade articuladora de missionários, e missionários que fazem

uma autocrítica da pastoral indigenista, nasceu durante a ditadura militar, numa década de violência causada pelo

modelo de desenvolvimento. [...]. Na época da fundação do Cimi, em 1972, a sociedade brasileira e as Igrejas locais

não acreditavam na possibilidade de os povos indígenas virem a ter futuro próprio, como povos e nações. Esperavam

que o desenvolvimento e o progresso pudessem solucionar a questão indígena. Na década desenvolvimentista dos

anos 70, seguida pela década perdida dos anos 80, as palavras ―civilização‖, ―progresso‖ e ―desenvolvimento‖

exerceram certo fascínio mágico. [...] Foi neste contexto de construção de estradas e de descrença no futuro dos

povos indígenas que o Cimi iniciou seu trabalho, propondo a ruptura com o modelo desenvolvimentista em marcha, e

assumiu uma pastoral específica, integral e amplamente articulada. Uma solução justa para a questão das terras dos

povos indígenas exigiria mudanças profundas dos modelos econômico e sociopolítico vigente, com seus pilares de

acumulação, aceleração e autoritarismo. Essa opção causou conflitos, não somente nas relações com o Estado, mas

também no interior das Igrejas locais‖. Referente aos dados coletados e divulgados, Lúcia Helena Vitalli Rangel (2007, p. 09) salienta que os mesmos ―[...]

foram registrados a partir de fontes da imprensa – local e internacional – de documentos elaborados por comunidades

e organizações indígenas e, também, de registros elaborados pelas equipes de área que acompanham as comunidades

em diversas regiões do território nacional. Os dados apresentados não cobrem todos os casos ocorridos no período,

mas, constituem uma indicação bastante significativa do que acontece no Brasil‖.

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Mapa V - Territorialização precária: a densidade populacional da Reserva Indígena de Dourados

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Gráfico I – Ocorrências de suicídios em Terras e Reservas Indígenas em MS

Fonte: CIMI, 2003-2009. Elaborado pela autora deste trabalho.

Tabela III – Suicídios na Reserva Indígena de Dourados

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Total

Jaguapirú 01 0 01 0 01 02 02 07

Bororó 06 03 04 12 08 07 04 44

Não especificado 0 02 01 01 04 0 0 08

Total 07 05 06 13 13 09 06 59

Fonte: CIMI, 2003-2009. Elaborado pela autora deste trabalho.

As ocorrências entre os Guarani e Kaiowa na RID trazem grandes revelações.

Primeiramente que do total de ocorrências de suicídios nas reservas indígenas, contando com 163

ocorrências de suicídios no período de 2003 a 2009, 121 destas ocorrências envolveram jovens na

média dos 15 aos 25 anos de idade, revelando que aproximadamente 75% das ocorrências de

suicídios estão nesta faixa etária118. E, também, que as reservas de Amambaí e Dourados,

reservadas na década de 1910, apresentam as maiores ocorrências, ao que corresponde ao total de

55% do total de assassinatos e 51% dos suicídios, demonstram ainda, que os suicídios por

118

Segundo relatos Guarani, Kaiowa e Terena, algumas ocorrências de suicídios são, na verdade, homicídios,

possivelmente, resultantes das tensões internas da RID, necessitando, por isso, de melhor averiguação de algumas

ocorrências.

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205

enforcamento são os mais frequentes entre os Guarani e Kaiowa, correspondendo a 84,2% das

formas de suicídios.

A partir da análise dos relatórios do CIMI, estas ocorrências se dão das mais diversas

formas, utilizando diversos objetos para prática, como: corda amarrada junto a uma árvore,

enforcamento com cadarço de tênis, com fio de eletricidade, entre outros. Ainda retrata que os

lugares escolhidos são, em sua maioria, lugares isolados. Há ocorrências também de suicídios

feitos em casas, mas todos eles, ocorridos de forma isolada e em extremo sigilo.

O suicídio quase nunca é comentado nas redes de sociabilidade, fato este que pode ser

entendido a partir da Kaiowa Ñandesy Floriza (2010) ao dizer que não pode falar sobre isso, são

palavras ruins, não devem ser proferidas. Ao mencionar quem suicidou, relata que àquele que

pretende cometer suicídio é tomado por uma tristeza enorme. Neste contexto, em poucas palavras

a mesma diz: ―você olha e sabe que num qué vivê, tá muito triste‖. Ainda a partir da Kaiowa

Alzira (2010) esta retratação também é notória. ―Se decide, vai embora. Ele tá triste, então a

gente sabe... mas, é coisa do ―angue [e/ou anguery] 119‖. [...] Quando um Kaiowa diz, coloca na

cabeça que num qué mais, aí pode sabê que ele vai memo, ele num desiste... [...]‖.

Os Guarani e Kaiowa contam que o espírito da pessoa morta, após o suicídio de um

membro da famìlia, retorna sempre para ―buscar‖ as pessoas mais próximas. Também, este fator

não se remete só àqueles que cometeram o suicídio, mas também às mortes comuns. Por isso, as

pessoas mais próximas das famílias durante algum período criam mecanismos de dispersar o

119 Segundo Spensy Kmitta Pimentel (2006, p. 05) ―A teoria Kaiowa e a de que temos duas almas: a e nhe‘ẽ. Uma,

grosso modo, e a nossa sombra, e a outra, a nossa fala (ou esses dois fenômenos seriam manifestação dessas almas –

varia segundo o formulador). A nhe‘ẽ, que e, na linguagem dos xamãs, identificada como guyra, ou seja pássaro,

alada, volta imediatamente para o céu após a morte. Já da a, a depender da morte sofrida pela pessoa (o suicídio e as

violências físicas são especialmente perigosos) fica por aqui um resto, a angue (ou anguery, a depender da fonte),

que se torna um perigo para os vivos, fazendo esforços para atacá-los e levá-los consigo para a morte. Especialmente

parentes e outras pessoas próximas do morto podem ser afetados por ela. Tonico Benitez explica que ―angue se

controla com tiha (reza). Senão perturba morador, judia de cachorro, bate porta, acorda criança. Nhanderu vai lá e

conversa com ele, porque ele ainda pode ouvir. Se não convence ele a ir embora, chama Nhanderyke‘y (o Sol) e

denuncia ele. Ele vai ordenar, então, que o Veravajara, dono do raio, mande raio no angue. Mas é perigoso mesmo:

angue muito antigo vira dono de poder, por isso tem que ter cuidado‖. Essa base ―dualista‖ da teoria da alma pode

encontrar variantes que não contradizem sua característica considerada principal para o entendimento da pessoa tupi-

guarani como devir-outro, constituído por um equilíbrio entre divino e animal (ver capitulo 1). Fausto (2005) discute

as implicações dessa ideia da divisão em relação ao panorama da teoria tupi sobre a alma. Entre os tupi da

Amazônia, registra que existe a ideia de uma alma que se divide em dois aspectos após a morte. Um deles ascende, o

outro permanece, mas, entre vários povos, o xamanismo o utiliza como espírito auxiliar. A valoração negativa da

alma animal, segundo Fausto, integra o processo de desjaguarificacão (novamente, ver capitulo 1). Segundo os

Apapokuva de Nimuendaju, a segunda alma, ―animal‖, e chamada acygua, e seu ―tipo ideal‖, na visão de Fausto,

seria o jaguar (embora, segundo outras interpretações, a cada pessoa corresponda um bicho, que nem sempre e

feroz). A pessoa dominada pelo acygua, por isso, e, de certa forma, o protótipo da negação do social, tomada,

fundamentalmente, pelo ―desejo de comer carne crua‖[...]‖.

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espírito do morto. Maciel (2009) conta como é esta relação a partir do que dizia sua avó Alzira.

Comenta que após a morte de seu avô, sua avó passou cerca de duas semanas em sua casa, pois

tinha medo do Angue e/ou Anguery.

Parte dessa dinâmica social pode ser entendida nos entrelaçamentos das relações

socioculturais que os Guarani e Kaiowa estabelecem com os mortos, sendo sempre uma relação

de distanciamento120, em que o medo não se dá no entorno da morte, mas sim do morto, no

sentido de que quem retorna é permeado por um espírito assombroso daquele que comete o

suicídio. O espírito da pessoa que se suicidou retorna, fazendo vítimas, por meio de incentivar ou

convencer a pessoa a suicidar-se. Curt Unkel Nimuendaju (1987, p. 35-36), referindo-se aos

Apapocuva-Guarani (Ñandeva), aponta que:

[...] o Guarani tem mais medo dos mortos que da morte. Quando se convencem

que seu fim está realmente próximo eles são, como todos os índios, de um

sangue frio admirável. Esta atitude deriva principalmente do temperamento dos

índios e é consideravelmente reforçado pelas suas convicções religiosas. O

Guarani não teme nenhum purgatório e nenhum inferno, e está absolutamente

seguro quanto ao destino póstumo de sua alma.

Da mesma forma, Egon Schaden (1976, 131) ressalta a aclamação dos Guarani e Kaiowa

pela morte e, ao mesmo tempo, o medo da mesma, no qual diz que os mesmos tem ―[...]

naturalmente o medo instintivo e muito humano da morte, responsável, entre outras coisas, pela

existência de rezas especiais, para afastar o perigo da morte próxima. Do outro, o desejo

profundamente religioso de morrer [...]‖. Assim, segundo Georg Grünberg (apud Antônio Jacó

Brand, 1997) a morte aparece, muitas vezes, como uma opção, tendo em vista que diante de todos

os tipos de rezas há também rezas pedindo pela morte, uma delas pelo fim do mundo.

120

Angue é uma assombração, devendo ser considerada da seguinte forma: ―Para os Kaiowa o lugar onde os mortos

foram sepultados, sobremaneira em se tratando de indivíduos com prestígio social, como caciques e xamãs, não é um

espaço venerado pelo grupo. É um lugar que deve permanecer no passado e quase que apagado da memória dos

vivos. Muitas vezes os locais de enterramento correspondem a antigas residências onde as pessoas viveram, as quais

logo após a partida do morto foram abandonadas ou, o que é raro, destruídas com fogo. Acompanhando os mortos

geralmente são enterrados ou deixados ao lado das sepulturas vários de seus pertences. Hoje em dia esses pertences

podem ser desde um colar de contas até uma bicicleta. Isto ocorre porque eles acreditam na dualidade da alma, quer

dizer, que as pessoas possuem duas almas, uma carnal (anguery) e outra espiritual (ñe‘e). A alma carnal permanece

com o defunto e não deve ser lembrada, pois traz más influências à saúde e à convivência social entre os membros da

comunidade. Portanto, locais sagrados onde estão os mortos não devem ser profanados em hipótese alguma, sob pena

de perturbar a ordem social e espiritual dos indígenas. Essas perturbações podem ser escavações arqueológicas ou

mesmo buracos feitos por tatus. Daí entender o porquê de uma sepultura encontrada em campo se encontrar cercada

para evitar que a alma carnal do defunto fosse perturbada por tatus ou por outros animais‖. (OLIVEIRA; PEREIRA,

2009, p.240 - 241).

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Se há rezas para suplicar vida longa, há-as também para pedir a morte (...). De

modo inequívoco resulta de tudo isso que a morte não equivale necessariamente

a destruição. Já sabemos que o falecido continua a viver e, entre os Ñandeva,

pode até renascer (GRÜNBERG apud BRAND, 1997, p. 167).

Os Guarani e Kaiowa da RID, nunca se referem ao medo pela morte, mas, muito pelo

contrário, a morte é uma possibilidade de solucionar os problemas em que vivem hoje, pois a

vida material para os Guarani e Kaiowa é uma condição passageira, o que efetivamente se espera

é estar próximo a Ñanderuvussu (nosso pai maior). Mas, os medos envolvem o morto,

principalmente aquele que se suicidou e tentará fazer mais vítimas.

Diferentemente da sociedade ocidental, a morte para os Guarani e Kaiowa coloca-se

como um momento de perda, buscando o desligamento total com o morto. Contudo, o medo de

morrer entre estas sociedades se coloca em outro patamar, já que em momentos de incertezas e

desajustamento social, estes podem clamar pela morte, tendo em vista que muitas vezes esta

condição faz-se presente nas narrativas, dizendo que no atual modo em que vivem, no

Tekopyahu, muitas vezes é preferível morrer121 (PEREIRA, 2004). Contudo, apesar das

ocorrências de suicídios estarem entrelaçadas aos aspectos culturais, as mesmas devem ser

consideradas no entorno dos impactos causados a essas gentes devido a sua submissão a uma re-

territorialização precária na reserva, nos desajustamentos dos preceitos corretos de viver, tendo

como base o modo de viver dos antigos – Tekoyma, sendo este o Teko Porã.

121

Nesse sentido, aparecem os clamores pelo fim do mundo, como o ocorrente no ano de 2009, durante uma

manifestação em frente ao prédio da FUNAI no perímetro urbano de Dourados. A atual situação de conflito

envolvendo essas sociedades Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul, demonstrou em meados do segundo

semestre de 2009, que a reza para essas sociedades tem potencial de vida e morte. Durante um acampamento em

frente a FUNAI, buscando pressionar o mesmo no tocante a algumas exigências referente a demarcação dos

territórios tradicionalmente ocupadas, alguns grupos Guarani e Kaiowa iniciam uma reza, a fim de provar que os

Ñanderu e Ñandesy são tão ―fortes‖ como os rezadores dos tempos dos antigos. Esse fato se dá, porque segundo

alguns indígenas da RID, a FUNAI haviam duvidado da força da reza dos mesmos. O fato é que durante a reza,

ocorre em grande parte do território nacional um apagão, atingindo doze estados brasileiros121

. Segundo o Kaiowa

Ñanderu Jorge, o apagão ocorreu, pois as lideranças acampadas começaram a rezar aclamando pelo fim do mundo, a

fim de demonstrar de que há ainda o verdadeiro Kaiowa e Guarani conseguem falar com Ñanderuvussu. Em suas

palavras, ele relata da seguinte forma: ―O rezadô, reza a vida da pessoa, o mundo inteiro. Se o meu aqui não tivesse

a reza, ia acontece igual lá na China, todo mês, quinze dias, 20 dia, 10 dia, 5 dia, 3 dia já dá aquele terremoto que

tem o rezador pá pode rezá, controla o mundo. Inclusive aqui no MS, nóis rezamo pra isso, pra protegê, pra num

acontece isso ai. Que na China, cê vê muito na televisão, que não tem nenhum rezador, ai por ai o Ñanderu, tem que

rezá muito, todo dia, e rezá até meia noite, tem dia que dá vontade de você rezá, é, amanhece o dia. Cada um tem a

reza, pô cê vê, nóis rezamo esse dia pô mundo acabá, e se viu o que aconteceu, quase acabo o mundo inteiro [...] o

Nanderu começo, é bravo que a FUNAI não tá atendendo a gente e a gente chega lá então, nóis conversemo aquele

negócio lá, que em mais poder pra fazer. E existe aquela pessoa e a FUNAI fala: ―Não existe mais, acabô o índio

Kaiowa e Guarani‖. O que aconteceu, então, comecei, e nóis rezamo, pequeninho, você não pode rezá muito, aquela

reza é ainda, assim, que é nossa vivência, reza um pouquinho pra prová que existe ainda, ou, não existe mais [...]‖.

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Outro fator importante para compreendermos os fatores que são condicionantes do

processo de territorialização precária sofrida pelos Guarani e Kaiowa está relacionado aos

grandes índices de ocorrências de assassinatos (ver Gráfico II e Tabela IV).

Gráfico II – Ocorrências de assassinatos em Terras e Reservas Indígenas em MS

Fonte: CIMI, 2003-2009. Elaborado pela autora deste trabalho.

Tabela IV – Assassinatos na Reserva Indígena de Dourados

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Total

Jaguapirú 02 01 02 02 08 04 04 23

Bororó 03 07 04 03 12 06 04 39

Não especificado 0 03 04 02 02 01 01 13

Total 05 11 10 07 22 11 09 75

Fonte: CIMI, 2003-2009. Elaborado pela autora deste trabalho.

O que se remete a RID, do total de assassinatos neste período, correspondendo a 75

ocorrências, destas, 39 ocorrências foram registradas na aldeia Bororó, correspondendo assim, a

52% do total das ocorrências totais. Referente à ocorrência de suicídios na reserva, do total de 59

ocorrências, 44 destas, ocorreram na Bororó, o que corresponde a aproximadamente 75% das

ocorrências do total.

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Os dados ainda nos revelam que das oito reservas criadas pelo SPI, seis delas, sendo:

Dourados, Caarapó, Aldeia Limão Verde, Taquapery, Aldeia Porto Lindo e Amambaí,

correspondem a 71% das ocorrências de assassinatos e 73% do total de suicídios do total de

ocorrências em Mato Grosso do Sul. Outras ocorrências dividem-se por todas as outras terras

indígenas, por corresponderam a menos de 05 ocorrências em todo o período de 2003 a 2009,

revelando ainda que os problemas de assassinatos e suicídios se estendem as reservas criadas pelo

SPI. Acrescentamos ainda que as ocorrências de suicídios em todo o Brasil correspondem a 168

durante os anos de 2003 a 2009, destas, 163 foram registradas no Mato Grosso do Sul, o estado

tem unanimidade em tais ocorrências. Referente aos assassinatos no Brasil, correspondendo a 288

ocorrências do total, o estado de Mato Grosso do Sul registra 216 ocorrências, logo, 75% do total

de ocorrências foram registradas em Mato Grosso do Sul.

Os Kaiowa Jorge e Floriza (2010) explicam a questão da violência como sendo parte da

desorientação dos jovens, no sentido de que estes já não ouvem as palavras dos antigos, não

sabem discernir entre o certo e o errado. Para Floriza (2010), ―[...] parece que o jovem tá mais

perto do brancu, do que do índio [...]‖. Analisando os assassinatos, juntamente com as

ocorrências de suicídios, podemos considerar, a partir do Ñanderu Jorge (2010), que estes são

resultado de uma situação de confusão e conflito entre dois modos distintos de viver – Tekoyma e

Tekopyahu, tendo em vista que ―[...] Se o pai num ensina o caminho pá criança, pro jovem, pá

gurizada, este vai ser violento [...]‖.

A Kaiowa Odália (2010) assinala que tal violência é ocorrente do processo de mistura

étnica, ou seja, no contato com o não indígena, e também, com os Terena122, na perspectiva de

que o ―verdadeiro Guarani e Kaiowa‖ não comete nenhum ato de violência, assinalando que

Kaiowa de verdade ―nunca briga, só ouve‖. Ao sinalizar a violência do homem ―branco‖, aponta

que quanto maior for o distanciamento dos jovens do Teko Porã, maior se torna a possibilidade

da violência entre as pessoas.

Você sabe, aqui é tudo Kaiowa, num é mais esse daí... Aí que chega branco,

Tereno, chega aqui... Ai falô que nós, falô esse daí, trouxe violência pra dentro

da reserva, num era assim, aldeia num era violento. Veio o branco, o índio que

fica igual o branco ai traz violência. [...]. Aqui na minha casa, é Kaiowa, tá com

Guarani, mas num é violento... agora se junta cum Terena fica violento. [...]. Na

reserva, antes dava pra você andá tudo aqui... agora num dá mais esse daí,você

fica aqui dentro, senão você morre. É que agora nóis aqui vive tudo junto, antes

122

Para Odália, o Terena é praticamente um não indígena. (Vide 3.4)

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210

é só Kaiowa, Guarani, num esse ai, o Terena. Ali já mora o Baiano, o gaúcho...

Mora ali... Ficô violento aqui.

Em um contexto geral, os Guarani e Kaiowa entendem que os territórios

tradicionalmente ocupados é um bom lugar para viver (Teko Porã) e a condição de reserva está

atrelada a violência, a um mal estar, sendo a representação do Teko Vai, que nas palavras de

Floriza (2010), permite a reprodução da violência. O que é perceptível, é que as territorialidades

vividas na RID, por meio do compartilhamento territorial entre diversas famílias extensas e entre

grupos étnicos distintos, não permitem o bem estar, criando uma condição de conflitos,

possibilitando a reprodução da violência, ao mesmo tempo em que representa ―tudo que Kaiowa

num gosta‖.

As atuais condições de vida na reserva tendem a remontar as impossibilidades de

reprodução dos diversos fatores essenciais à manutenção da vida Guarani e Kaiowa, muitas vezes

remetendo-se a estes desajustamentos ao modo de viver do não indígena, é a impossibilidade de

reproduzirem as multiterritorialidades vividas no Tekoyma. Em um contexto geral, esses dados

nos revelam que todas as reservas criadas pelo SPI apresentam os maiores índices de suicídios e

assassinatos, revelando a precariedade do modo de viver Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do

Sul.

O que estes dados nos revelam é que os Guarani e Kaiowa sofreram uma

territorialização precária imposta, ―fora‖ dos fundamentos do Teko Katu, ou seja, no modo antigo

de viver - Tekoyma. Em condição de reserva, há inviabilidade deste modo de fazer-se Guarani e

Kaiowa, considerando que as territorialidades nos territórios tradicionalmente ocupados não

correspondem com a territorialização precária da reserva em que estão inseridos. Como assinala a

Ñandesy Floriza (2010), ―[...] a gente num reconheci os lugar, assim fica tudo confuso, fica

assim... [...]. É, fica sem sabê o jeito que é, tá tudo confuso, violento isso daí [...]‖.

Nas palavras do Ñanderu Jorge (2010), ―[...] de num tê que ficá assim apertado, junto,

cê qué sai, num sai‖ [...] dos Nanderu consegui falá, mai falá memo, com Ñande Jará de novo

[...]‖. Estas relações de desordem do universo Guarani e Kaiowa em condição de reserva devem

ser considerados na análise dos dados de suicídios e assassinatos, colocando a RID no ranking do

desrespeito aos direitos das sociedades indígenas de viverem segundo seus usos, costumes e

tradições, garantidos pela Constituição de 1988.

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211

A multidimensionalidade de fatores que leva um adolescente e/ou um adulto jovem a

cometer o suicídio pode ser explicada por diversas situações relacionadas às múltiplas mudanças

socioterritoriais sofridas em condição de reserva, nos desencontros entre as territorialidades

vividas no Tekoyma e as territorialidades no Tekopyahu, que trazem grandes desajustamentos no

modo de viver destas sociedades. Os altos índices de suicídios e assassinato na RID nos permite

comparar que sua criação se fez enquanto um ―campo de refugiados e/ou campo de

concentração‖, já que tinha por objetivo recolher os indìgenas que estavam sendo

desterritorializados de seus territórios tradicionalmente ocupados, impondo-lhes novos modos de

viver que são incompatíveis com as multiterritorialidades vividas no Tekoyma.

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3.3 – A construção de fronteiras e identidades socioterritoriais entre os Guarani, Kaiowa

e Terena: “Quem vive na Jaguapirú é quase branco... quem é da Bororó é Kaiowa de

verdade”

[...] na fronteira que encontramos o humano no seu limite histórico. É nela que

nos defrontamos mais claramente com as dificuldades antropológicas do que é o

fazer História, a história das ações que superam necessidades sociais,

transformam as relações sociais e desse modo fundam e criam a humanidade do

homem.

José de Souza Martins (1997, p. 13).

―Na Jaguapirú e a Bororó é diferente pela cultura. [...] Na Jaguapirú quem

domina é os terena, os guarani tenta quere domina, mas num consegue, os

terena gosta muito da arma de fogo. Aqui (bororó) é Guarani e Kaiowa, aqui

eles domina, e é com facão mesmo. Mas aqui eles domina na violência [...]‖.

Guarani José

Reserva Indígena de Dourados - Jaguapirú, 2009123

.

Entrelaçados pelo passado e presente, cantos e rezas, saídas e chegadas, vida e morte...

De diversas formas a RID se constrói pelo movimento das gentes que vão e vem das escolas, da

cidade de Dourados, na visita aos parentes, idas ao médico, nos cansativos dias de trabalho

(Changa)... Vão e voltam, a pé, de bicicleta, de carro, de moto, de ônibus, de trator e carroça (ver

Foto V). Podem ir sozinhos, estando ansiosos pelo retorno, mas podem também, irem juntos aos

parentes e amigos, que fazem dos momentos de partida-chegada, principalmente naqueles

momentos que sair não é uma escolha, mas sim uma necessidade - tempos de cooperação e

solidariedade.

Nesse dinamismo, é impossível descrever profundamente os diversos caminhos

percorridos pelos Guarani, Kaiowa e Terena, tendo em vista que é pelo caminhar que o

reconhecimento de si e dos outros se constrói e reconstrói, criando territorialidades, pois como

considera Rogério Haesbaert (1997, p.44), as mesmas ―são ativadas de acordo com os interesses,

o momento e o lugar em que nos encontramos‖.

123

Morador da RID– Jaguapirú. A conversa se estabeleceu na aldeia Bororó, onde o mesmo trabalha como segurança

de escola.

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213

Assim, compreendendo a RID como um espaço de múltiplas fronteiras criadas e

recriadas no contexto do compartilhamento territorial, esta é construída na multiplicidade de

territórios, entre um modo de vida e outro. Este é requisito para criação e recriação de identidades

e fronteiras, que em condição de reserva, tornam-se ainda mais múltiplas, ao mesmo tempo em

que complexificam as territorialidades das gentes que ali vivem, e buscam a ampliação, já que a

mesma, ―[...] muda suas ações de acordo com a estratégia adotada a atender os interesses de

determinados tempos-espaços, de determinados indivìduos e/ou grupos‖ (MONDARDO, 2009,

p.66).

Viver em condição de reserva é traçar novas estratégias e recriar territorialidades no

espaço-tempo. É buscar novas formas de viver a partir dos referenciais do passado, e a partir

delas estabelecerem relações com os outros que possibilitam a identificar-se e identificá-los,

criando fronteiras e identidades, pois estas relações demonstram ser a territorialidade parte de um

comportamento humano, a necessidade de ―localizar‖ modos, de reconhecer-se no espaço-tempo.

A territorialidade é a expressa de um comportamento vivido: ela engloba, ao

mesmo tempo, a relação com o território e, a partir dela, a relação com o espaço

―estrangeiro‖. [...] Toda territorialidade se apoia sobre uma relação interna e

sobre uma relação externa: a territorialidade é uma oscilação contínua entre o

fixo e móvel, entre o território ―que dá segurança, sìmbolo de identidade, e o

espaço que se abre para a liberdade, às vezes também para a alienação‖

(BONNEMAISON; ORSTOM, 2002, p.107).

A afirmação e a negação de identidades em condição de reserva se dão explicitamente

no conviver com o outro. Entre os Guarani e Kaiowa a importância se dá na exclusividade

familiar no Tekoha, tendo em vista que cada um, embora com similaridades têm especificidades

na organização socioterritorial, com base nos referenciais que une uma família, e que faz dela ser

um tipo específico de gente, logo, de ser Guarani e Kaiowa. Assim, o que está em disputa entre

estas sociedades em condição de reserva é o território, e a exclusividade territorial para aqueles

que são considerados parte da família, que no caso dos Guarani e Kaiowa se dá em torno da

família extensa, seja por meio de laços de consanguinidade, por afinidade ou por alianças

políticas.

A partir do Kaiowa Ñanderu Jorge (2010), conseguimos perceber as relações

socioterritoriais na RID. Fazendo comparações do novo modo de viver (Tekopyahu), com o modo

de vida dos antigos (Tekoyma), na condição de vida nas reservas, observe-se que o

compartilhamento territorial por sociedades indígenas distintas, a sobreposição de Tekoha entre

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os Guarani e Kaiowa são reestabelecidas de diferentes formas, contrapondo-se à organização

tradicional.

Antigamente a gente vivi cada um no lugar dele, é assim que vive. Num é de

parede, junto assim, igual aqui (reserva). Vive um índio ali, outro aqui

(referente a família extensa)... num vive junto esse daí [...]. É assim, mora lá no

Urucuí, é porque tem muito urucun ali. Tem bastante lá. É tinha né, naquela

época. Agora modifico! Mai também, é assim... O lugar dele tem o nome. O

cuchuiguá tem o nome dele, é ele que mora lá. Ai tem o nome, mai na verdade

num é nome, é pelido (apelido), num tem nome igual hoje em dia, tudo apelido

[...]. É, o lugar que tem laranja, tem laranja doce e tem a outra. Ai tem o nome

dele... é, o Laranja Doce (referente ao córrego) é porque tinha muita laranja

lá, aquela ali (aponta para um pé de laranja doce). Ai tem esse daí, tem muito....

Vixi, o índio comia muito isso daí [...].

Agora aqui na reserva também é assim, aqui no sardinha é por causa do corgo

né. Ai tem o nome dele. Mai num é nome esse daí, é o apelido dele. Aqui na

reserva, é, aqui... tudo tem o lugar dele tamém, parece que é assim. Ai tem o

farinha seca, tem sardinha... [...]. A turma do Ireno mora lá no lugar dele, ai

fala que o pessoal lá é do Ireno [...].

Na Bororó lá é o bororo que mora lá, o índio bororo... Morava lá ai deu o nome

dele. Ai tem o nome dele [...] Jaguapirú é onça magra. Ai leva o nome.

Apareceu uma onça magra... [...]. Mai num é assim, é igual bairro, mas num é

assim... ai a liderança toma conta do lugar, ai tem o nome. Aqui é o Sardinha,

sô liderança do Sardinha, ai fica assim [...]. Antigamente... naquela érpoca

memô, é assim... mora tudo longe, agora mora perto, né. Ali onde mora o grupo

do Senhor Nelson, é do Senhor Nelson, antigamente num tinha o nome dele, era

apelido como já falei, né?.

Jorge aponta importantíssimas questões para pensar a sobreposição de Tekoha na RID

em contraposição ao modo de vida dos antigos, onde estes se estabeleciam exclusivamente, com

uma liderança familiar ―bem definida‖, ou seja, pelo tekoaruvicha e mburuvicha, como podemos

ver no capítulo II.

Ao sinalizar os nomes de ―grupos‖ na reserva, a partir da importância política ou

religiosa que tem o grupo, ocorre juntamente com essas identificações a identificação com os

lugares ocupados e vividos, correlacionando às práticas de identificação do Tekoha no tempo dos

antigos. Ainda ao assinalar que é liderança do Sardinha124, que é por sua vez uma porção

territorial da RID, demonstra que as relações de poder mesmo instituídas não se dão

tranquilamente, pois estão sendo disputadas da mesma forma que a nomeação e identificação

com os lugares estão em disputas.

124

É referente às diversas organizações socioterritoriais na RID, apresentando-se como um ―bairro‖ que é

representando por uma liderança religiosa e/ou política.

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Neste contexto, é possível dizer que as tradições são criadas e recriadas pelas

sociedades nas práticas e organizações socioterritoriais que estão inseridas, e de que há sempre

uma reinvenção das tradições (HOBSBAWN, 1997; SAHLINS, 2007), que são estabelecidas

pelo trânsito entre o modo de vida antigo (Tekoyma) e novo modo de vida (Tekopyahu), criando e

possibilitando a criação de territorialidades nas/pelas relações com o outro, nas fronteiras do

desencontro do compartilhamento territorial.

Esta relação demonstra que a manutenção da diversidade étnico-cultural, não está,

necessariamente, relacionada ao isolamento sociocultural e geográfico, pois o compartilhamento

territorial é hoje parte fundamental da organização socioterritorial Guarani e Kaiowa. Tendo em

vista que é no contato entre gentes distintas, com modos de vida distintos, vivenciando

territorialidades distintas, que é possível a invenção-reinvenção das tradições, assim como a

busca em manter e reproduzir os territórios e territorialidades, pois as condições socioculturais e

geográficas condicionam as transformações socioterritoriais.

Por isso, entender as fronteiras existentes em condição de reserva é considerar as

múltiplas territorialidades existentes, nas quais o território da reserva se faz pelo

multidimensionamento do vivido (a partir de MASSEY, 2008), ou seja, não somente com um

modo de viver, mas múltiplos modos que se fundem, confundem-se e diferenciam-se entre si. Nas

relações de pertencimento, de auto-reconhecimento e diferenciação, estas correlações se fazem na

fronteira, no limite do encontro e desencontro com o outro. Portanto, na RID, no

compartilhamento territorial entre sociedades, as identificações e diferenciações e, logo, as

fronteiras são recriadas e ―[...] as tradições são inventadas no e para os objetivos do presente

[...]‖ (SAHLINS, 2007, p. 505).

Primeiramente, consideramos que os conflitos existentes entre Guarani, Kaiowa e

Terena não ocorrem apenas devido à condição de territorialização precária de reserva, mas sim,

porque há uma relação histórica e espacial de disputas territoriais de um grupo sobre o outro. No

contexto dos conflitos existentes entre Kaiowa e Terena, Katya Vietta (2007), a partir da Terra

Indígena Panambizinho, demonstra os desencontros entre estas duas sociedades e/ou pode-se

dizer entre alguns grupos Terena e, também, relatos dos índios cavaleiros – Guaicurus (ancestrais

dos Kadiwéu). Nas narrativas dos Kaiowa, é frequente os Terena aparecerem como aqueles que

saqueiam casas, roças, levam suas mulheres, entre outros. Parte destas histórias pode ser

constatada na narrativa do Kaiowa João Aquino:

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216

Meu pai dizia que lá para o lado de Maracaju mataram muitos Kaiowa. Eles

queriam levar as meninas para criar, para ser a mulher deles. Então, entravam na

aldeia esparramando tudo! Matavam os homens, matavam as velhas e pegavam

as meninas... As pessoas que trabalhavam na estrada de ferro. Eles ficavam 2, 3

anos sem mulher, então iam roubar as mulheres dos Kaiowa... Eles eram Terena.

A [empresa] Continental era quem empreitava o trabalho deles.

Empreitava os Terena para matar os Kaiowa. Terena já matou muito Kaiowa!

Terena era mbaja [inimigo] (apud VIETTA, 2007, p.187).

No contexto da narrativa de João Aquino, muitos dos conflitos entre estes grupos

tinham relações mediadas por não indígenas, aparecendo em sua narrativa a empresa Continental

como propulsora destas tensões. Aponta ainda uma relação próxima entre os Terena e os Mbaja,

sendo estes os ―inimigos‖ dos Kaiowa. Curt Unkel Nimuendaju (1987, p. 101) considera que os

maiores inimigos dos Guarani e Kaiowa eram os Kaingang:

Mesmo que eu nada soubesse sobre a religião Guarani, eu teria que considerar

esta afirmação muito improvável, pelos motivos seguintes: os únicos inimigos

de Mato Grosso mencionados pela tradição eram as horadas Guaikurú

provenientes do oeste e noroeste, além dos Chané que estavam em relação de

dependência para com os primeiros. Estes inimigos foram chamados pelos

Guarani de Mymbá (animal doméstico) jará (senhores), abreviado para Mbajá,

isto é, ―criadores de animais‖, porque se dedicavam à criação de cavalos em

grande escala [...]. Para os Guarani, inimigos muito piores eram os Avavaí

(Kaingýgn) que habitavam o leste do Paraná.

Dessa forma, considerando que os conflitos existentes entre Terena e Kaiowa perpassam

a condição de vida existentes na reserva, é possível questionar o órgão indigenista oficial (SPI),

que colaborou com a inserção destes grupos na reserva, como parte do projeto de liberação das

terras ocupadas pelos indígenas à colonização não indígena.

Portanto, não estamos relacionando os conflitos entre estas sociedades em condição de

reserva permeadas pela presença Terena, haja vista que as tensões entre um grupo e outro

perpassam as relações atuais. Contudo, é necessário considerar que, muitas vezes, estes grupos se

confrontaram pela interferência do ―branco‖, como demonstra o Kaiowa João Aquino. Ainda no

que se remete aos conflitos históricos entre Terena, Guarani e Kaiowa, é necessário considerar

que os dois últimos, conflitaram entre si, se desencontraram, como é ocorrente entre os Guarani e

Kaiowa em condição de reserva. Todavia, pensando na relação dos conflitos e a interferência do

mundo não indígena, podemos afirmar, a partir de Levi Marques Pereira (1999, p. 16), que

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217

muitas tensões existentes na RID, principalmente as que envolvem os Terena, se fazem com base

no:

[...] modelo hegemônico do indigenismo praticado nesta área [que] identifica os

Terena como mais aptos e receptivos às iniciativas de desenvolvimento e

integração à sociedade nacional, os Kaiowa estariam no pólo oposto,

considerados como os mais apegados aos seus próprios valores, enquanto os

Ñandeva constituiriam uma categoria intermediária entre Kaiowa, com quem o

parentesco linguístico e cultural é indisfarçável e os Terena, entre os quais

realizam preferencialmente suas escolhas matrimoniais.

No contexto da reserva, é notório que as relações entre os Guarani e Kaiowa se

estabelecem de forma mais recíproca se comparadas com as relações que estes têm com os

Terena. Ou seja, as relações com os Terena são mais conflitivas, com disputas internas mais

constantes e com fronteiras étnico-sociais mais rígidas, podendo ser justificado pelas

aproximações socioculturais dos Guarani e Kaiowa. De acordo com Levi Marques Pereira (1999,

p.16), os marcadores de diferenciação, e/ou as fronteiras, entre um grupo e outro na RID,

parecem ―[...] ser mais social do que étnica, na qual as pessoas pertencentes a cada um destes

grupos manipulam os marcadores que compõem o sistema multiétnico [...]‖.

Esta relação apontada pelo autor pode ser exemplificada de distintas formas, uma delas é

através do poder de compra na reserva por parte dos Terena, pois estes aparecem tendo maiores

condições de vida referente a questões financeiras, já que, em sua maioria, possuem empregos

melhor remunerados125, principalmente cargos públicos como professores e funcionários

contratados ou efetivos da FUNAI e FUNASA. Pode-se considerar também que no caso dos

Guarani e Kaiowa, referente aos ―poucos recursos financeiros‖ que usufruem, relaciona-se com a

condição de permanecerem e resistirem ―mais tradicionalmente na cultura‖. Esta relação é

exemplificada, principalmente, para os Guarani, tendo em vista que nos ―olhares‖ Terena sobre

estes, eles ―vive na cultura guarani porque muitos não tem condições de subi (de melhorar as

condições financeiras)[...]‖, elucidada pelo Terena André (2010).

Salientam ainda que os Guarani preferem se casar com os Terena porque trazem a

possibilidade de melhores condições de vida no que concerne a ascensão social dentro da reserva.

Para os Guarani, os Terena, em sua grande maioria, são ―os donos do dinheiro na reserva‖,

―parecidos aos brancus, tem bar, mercado, tem terra‖, de modo que é necessário manter relações

125

Hoje são os trabalhos de ―não indìgenas‖ que propiciam a ascensão social ou não para uma famìlia extensa dentro

da reserva. Quanto maior o poder aquisitivo, maior o poder de mando.

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a partir de casamentos e/ou alianças políticas. Entretanto, salientam que os Terena são a

representatividade do modo incorreto de viver, não estando mais apegados aos ensinamentos do

pai maior. Nesta relação, comparam os Terena com os Kaiowa, demonstrando que o segundo são

os ―donos do conhecimento‖, buscam da melhor forma a reprodução do Teko Porã.

Os Guarani conseguem estabelecer ―boas‖ relações com os Kaiowa e Terena, transitam

entre os dois mundos, podendo dizer que viabilizam a melhor forma de conviver na reserva. Aos

olhos dos Terena, os Guarani são extremamente estratégicos, conseguem estabelecer boas

relações na reserva, mas uma grande maioria prefere estabelecer maiores negociações com os

Terena, pois ―o mundo está sendo dominado pelo branco‖ (expressão de um Terena da RID).

Percebe-se que as identidades estão sendo negociadas na reserva, e esta negociação é,

sobretudo, uma negociação de territorialidades que possibilita o acesso a diversas espacialidades

na reserva, seja na Jaguapirú, próxima ao mundo dos ―brancos‖, seja na Bororó, voltando-se mais

à tradição.

Ainda, se faz necessário considerarmos as relações de ―afinidade‖ entre Guarani,

Kaiowa e Terena, principalmente no que se remete aos espaços de socialização, como nos jogos

de futebol, no espaço da escola, entre outras espacialidades de interação social na reserva, que

redefinem as territorialidades nas reservas. Se por um lado alguns espaços têm uma ―dominação‖

de Terena e Kaiowa, ao mesmo tempo em que os Guarani ficam em uma relação de entre-meio,

estas relações podem ser redefinidas em uma partida de futebol. Maciel (2009) assinala que na

―hora da bola tá tudo junto‖. Esta relação possibilita a compreensão de como as territorialidades

estão sendo negociadas, havendo a necessidade de considerar que as relações de proximidade

e/ou mesmo de distanciamento, muitas vezes, são mais perceptíveis pela oralidade do que pelas

relações sociais em si. Muitas vezes, as diferenciações entre Guarani, Kaiowa e Terena

pertencem muito mais ao plano do discurso, pois na vida cotidiana as relações se fazem de forma

muito menos conflituosa do que aparecem nas narrativas.

Exemplificamos esta relação no caso da família tradicional de rezadores Kaiowa, Jorge e

Floriza, na medida em que em suas narrativas aparecem muito mais relações de distanciamento

do que de proximidade com os Terena, por acreditarem que os mesmos são a causa da violência e

dos conflitos na reserva. Contudo, estes têm relações muito próximas com uma família Terena na

aldeia Bororó, inclusive são padrinhos de uma criança Terena desta família, estando presente nas

relações comemorativas dos rezadores na aldeia Jaguapirú. Diferente do que demonstra a

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oralidade, como demonstraremos nas narrativas abaixo, muitas famílias Terena e Kaiowa têm

relações muito próximas entre si.

Consideramos o seguinte, as territorialidades na reserva estão em negociação constante,

de modo que cada um busca ao seu modo viver da melhor forma possível, e para que esta

possibilidade se consolide, consiga se manter na reserva, é necessário estabelecer relações de

proximidade com o maior número de famílias possíveis, sejam elas Guarani, Kaiowa ou Terena,

pois a ampliação das redes de sociabilidade é, por sua vez, um importante mecanismos de

ampliação das territorialidades de um grupo e/ou família na reserva, que mesmo querendo se

manter exclusivamente, criam estratégias para viabilizar a ampliação de seu ―domìnio‖

socioterritorial na RID.

Neste contexto, é possível dizer que os diversos grupos que adentraram o atual território

precário da reserva, tiveram que ―aprender a conviver‖ com sistemas diferenciados à sua

organização socioterritorial. As diversas formas em que estes se identificam e diferem entre si,

têm como base a identidade coletiva que os insere como gentes participantes de uma sociedade,

muitas vezes, ―manipulando os marcadores de diferenciação‖ pela/na narrativa, como já

apontamos a partir de Levi Marques Pereira (1999). Desse modo, podemos apontar que os grupos

buscam diferir-se entre si, pois as relações de diferenciação dos modos de viver em uma

sociedade indìgena são corporificados nas relações entre o ―eu‖ e o ―outro‖, mostrando ser uma

necessidade criar-fazer o ―outro‖ a partir de si mesmo. Carlos Rodrigues Brandão (1986, p. 86)

traz contribuições pertinentes a estas relações ao sinalizar que:

Ora, todos esses complexos sistemas internos de organização da vida coletiva de

uma sociedade indígena – o de parentesco, o de chefia, o do trabalho, o da

reprodução do saber, o do cerimonial religioso e mais alguns outros, todos eles

inter-relacionados fortemente entre si – são redigidos por códigos sociais, são

codificados como sistemas de regras que não existem escritas, mas que o uso

coletivo consagra e que têm o poder de orientar o comportamento de todas as

categorias de pessoas do grupo. Que orientam a conduta porque são consensuais,

consagradas e necessárias; porque definem tipos de sujeitos, possibilidades de

relações de direitos e deveres entre elas e, consequentemente, modos adequados

de fazer a vida social funcionar, na ordem da família elementar, da família

extensa, da parentela, do clã e assim por diante, passando pelo todo da aldeia,

um dos espaços de troca cotidianamente mais vitais na vida do índio [...].

Na condição de compartilhamento territorial entre Guarani, Kaiowa e Terena fazem-se

presentes os marcadores necessários de conduta de um grupo sobre o outro, nos quais a oralidade

é uma expressão desta relação. Em alguns contextos presentes na oralidade Guarani e Kaiowa, é

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comum que estes acionem diferenciações entre si, prioritariamente em referência aos Terena,

sendo estes explicitamente relacionados aos não-indígenas, ou seja, o modo de vida Terena para

estas sociedades, principalmente aos ―olhos‖ dos Kaiowa, relaciona-se e aproxima-se do ―mundo

dos brancos‖.

Ao considerarmos algumas narrativas Terena, podemos dizer que ser Kaiowa e Guarani

está estritamente relacionado ao passado, sendo este o ―indígena estagnado‖, como nos aponta

um Terena morador da RID (Jaguapirú) durante uma conversa. Contudo, em muitas narrativas de

Terena, os Guarani são comparados aos Kaiowa, sendo aqueles que estabelecem maiores relações

de sociabilidade, em que estes ―não estão presos a tradição‖, como considera o Terena André

(2010) de quarenta e nove anos de idade, territorializado na aldeia Jaguapirú. André é advogado,

fato este que o diferencia não só dos Guarani e Kaiowa, mas também de muitos Terena que

vivem em condições precárias na reserva.

Na narrativa de André, como segue abaixo, os Guarani ocupam na reserva uma condição

intermediária, comparando-os aos Kaiowa, estando estes mais arraigados à cultura, e os Terena

próximos ao modo de vida do não índio.

A questão da tradição, muitas vezes, a gente, mesmo tendo a nossa, a Terena,

aqui, a gente se aproxima às vezes muito da língua, da cultura guarani, é e

também dos ritos da língua, né, porque um Guarani e um Kaiowa consegue se

comunicar na língua, já o Guarani é.... Kaiowa não consegue se comunicar

com o Terena e, então, por isso, é mais fácil quando tinha um diálogo entre um

Terena com o Guarani ou com o Kaiowa, esse diálogo teria que ser em

português e quando há o diálogo com o Kaiowa e com o Guarani esse diálogo

poderia ser feito com o Guarani, né, então por isso, ás vezes, a gente acaba

ouvindo mais o Guarani e acaba até aprendendo.

A partir de André, é possível considerar que nessa dinâmica, nas relações de

diferenciação e identificação da RID, os Guarani aparecem na posição intermediária, não são nem

Terena, ou seja, ―não perderam a cultura‖, mas também não vivem como os Kaiowa, próximos ao

Teko Porã. Os Terena, na grande maioria das vezes, aparecerem relacionados ao modo incorreto

de viver, aproximando-se ao modo de vida dos Karaí, são aqueles que até sua localização

geográfica se faz perto dos ―brancos‖, tendo em vista que grande parte dos Terena vivem na

aldeia Jaguapirú.

Neste sentido, percebe-se um consenso na reserva, até entre os Terena, de que na aldeia

Jaguapirú se está mais próximo da cidade, do não indígena, demonstrando que grande parte dos

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comércios existentes na reserva localiza-se na mesma. A ―opção‖ dos Terena em territorializa-se

na Jaguapirú se dá, também, por estar mais próximo da Missão Caiuá, pois viabilizava maior

acesso ao hospital da missão, auxílio de alimentação, roupas e calçados. A Missão Cauiá foi uma

das principais responsáveis, segundo as narrativas dos indígenas, para a espacialização dos

Terena nas suas proximidades, assim como a ampliação do comércio na Jaguapirú, escolas e

posto de saúde (ver Mapa V no Tópico 3.2).

Neste sentido, percebemos que as fronteiras existentes nas relações entre Guarani,

Kaiowa e Terena, dão a reserva uma territorialidade distinta, considerando que o ―jogo de

identidades‖ de quem mora na Bororó e/ou na Jaguapirú define que tipo de gentes estes são, ou

seja, definem o caráter de tradicionalidade e desapego cultural de acordo com os lugares

ocupados, percorridos e vividos, podendo ser visualizado pela narrativa da Kaiowa Antônia

(2010),

Na Bororó tá mais longe... num tem aquele barulho de carro, num tem muito

Terena também, já tem poco. Num tem esse negócio do branco, né? Aqui o

Kaiowa preserva a cultura [...]. O Kaiowa, é, fica mais perto do Karaí

(referente aos Kaiowa da Jaguapirú)... da cidade, do branco. É barulho lá [...].

O Kaiowa vive na Bororó, porque num qué misturá, na reserva tá quase tudo

misturado...

A Kaiowa Ñandesy Antônia demonstra que todos aqueles que não são Kaiowa estão

próximos ao não indígena, inclusive aqueles que moram na Bororó, e mesmo os Kaiowa da

Jaguapirú estão envolvidos diretamente com o modo incorreto de viver, ou seja, com o mundo do

não índio. Assinala ainda a mistura como um processo de casamentos inter-étnicos, comum na

reserva, podendo-se considerar a partir das narrativas que estes se dão prioritariamente nos

casamentos entre Guarani e Terena e entre Kaiowa e Guarani, havendo poucas relações entre

Kaiowa e Terena, o que demonstra maiores distanciamentos entre estas duas sociedades na RID.

Assim, grande parte dos Kaiowa referem-se aos casamentos inter-étnicos como sendo um dos

responsáveis pela violência e os conflitos internos na reserva, principalmente nas relações com os

Terena. A Kaiowa Odália (2009) discorre sobre esta relação da seguinte forma:

Eu e da minha parte, é violência num é, de briga, de matá alguém, num tem,

num tem chicha, só isso. Num tem bagunça na estrada, mas de hoje em diante,

ah, por isso que tô falando, né, misturô, pelo que, casô com Terena. O Terena

amigô de novo e casô co baiano, ai foi indo, foi assim. Por isso, que já tem

violência dentro da aldeia [...]. Tem que casá Kaiowa e Kaiowa. O pai fala

guarani, mãe guarani e a criança manda falá português, ai aquele criança casa

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com Terena, ai vem os branco. Se fala guarani, ai não sabe falá, sabe catá num

chocalho assim. E Kaiowa não, onde Kaiowa canta, já canta mesmo.

O Ñanderu Jorge e a Ñandesy Floriza consideram que estes relacionamentos são comuns

hoje na reserva, dizendo que ―é por isso que criança tá brava, num ouve mais palavra dos

antigos‖. Então, considerando a narrativa de Antônio, os Kaiowa da Jaguapirú ainda preservam o

modo de ser, tendo em vista que estes são Kaiowa e moram na Jaguapirú, e buscam demonstrar a

autenticidade de ser ou não indígena na reserva, elucidam diferenciações entre eles e os Guarani,

ao afirmarem que os Kaiowa preservam o modo correto de viver, já que os Guarani ―fica no

meio‖, frase proferida por Floriza (2009). Esta relação também é alusiva na narrativa de André

(2010):

O Kaiowa dificilmente ele tem carro, ou ele liga pra isso. Pelo menos ele tá

mais arredio ainda na cultura. Agora que alguns deles já tem carro, daqui a

pouco, daqui a cinqüenta anos ou vinte anos, sei lá, ele vai ter a necessidade

que eu tenho hoje, mas por, enquanto, ele não tem ainda, porque ele ainda está

arraigado na sua cultura, o Terena, não. Nós que vimos de lá, a gente já tinha

uma grande convivência com o branco, que foi a passagem que eles tiveram, né,

nas fazendas, né, fazenda, Changa, que eles falavam, né, nas fazendas [...]. Ai

você vê, tem uns arredios que num sai de lá, o pai do João Machado, num saiu

de lá. O Ângelo, o tio do João Machado, num saiu de lá. Tem várias famílias de

Terena, de Terena Kinikinawa, que iniciou, ele tão lá, eles não saíram de lá,

agora os que filhos saiu, por quê? Porque ele quer ficar mais perto da missão,

ai adoece meu filho e ai eu pego e vou de noite lá. Antigamente, num tinha posto

de saúde, o posto de saúde só era aqui [...]. E as pessoas que tão evoluindo, que

tão estudando, elas vai comprar do outro aqui. E o outro vai pra onde? Ele vai

lá pro fundão. Naturalmente, ele vai lá pro fundão, aonde ainda existe um

espaço maior. Então, o Bororó foi ficando assim, ele foi ficando um pedaço

mais longe da escola. E aonde que era a escola? Na Missão. E aonde que era o

hospital? Na Missão. Onde que era o posto de saúde? Na Missão. E ai num ia,

se num ia, se acabava entende? E ai foi puxando, e eu morava lá pertinho da

Missão. E agora, depois que faz a estrada, porque a estrada não era aqui, a

estrada era ali, ó.

A partir da narrativa de André, é possível perceber as transformações na reserva,

remetendo-se a este contexto de transformação o papel da Missão Caiuá. Elucida, também, a

presença Terena na Bororó, dos que não se mudaram para a Jaguapirú, considerando que estes

Terena, que em sua concepção são Kinikinawa, estão voltados para a tradição. Mas menciona as

relações com os Kaiowa, tendo em vista os casamentos inter-étnicos, talvez, seja o motivo da

escolha em continuar na Bororó. Remete-se à aldeia Jaguapirú como tendo os melhores acessos à

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saúde, saneamentos básico, e claro, as relações de proximidade com a cidade, diferentemente da

Bororó.

A narrativa de André demonstra a ―escolha‖ da maioria dos Kaiowa a viver na Bororó,

contrariamente a ―escolha‖ dos Terena, preferindo viver na Jaguapirú. Referente ao modo de

vida Kaiowa, considera-os apegados à tradição, elucidado da seguinte forma: ―O Terena vai

desenvolvendo, crescendo, vê o que é bom... O Kaiowa não, sempre com o Maracá dele... lá

chacoalhando. [...] Os Terena já até aperfeiçoô o artesanato, mas o Kaiowa nas coisinhas dele

[...]. Acho que num desenvolveu, fica no passado, apego à tradição... (risos)‖.

É perceptível, para André, que os Terena e Guarani estão, em sua grande maioria,

territorializados na aldeia Jaguapirú, enquanto os Kaiowa ocupam, primordialmente, a

espacialidade da aldeia Bororó. Nesta mesma percepção, o Kaiowa Ñanderu Jorge (2010)

assinala que ―[...] os Terena tão mais na Bororó, mas tem Kaiowa também.... mas, é que os

Terena e Guarani tá mais aqui memo‖.

Em proximidade às considerações de André e Jorge, os dados da FUNASA (2007),

como já demonstrado acima, possibilitam maiores compreensões em torno da ocupação destas

sociedades na reserva, do que se entende ser Jaguapirú e Bororó. Nas representações

cartográficas do Kaiowa Ñanderu Jorge (2010), a organização socioterritorial destas sociedades

aparece da seguinte forma, representado pela Figura IV.

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Figura IV – Olhares do Kaiowa e Ñanderu Jorge sobre a organização socioterritorial da RID

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2010. Figura modificada pela autora.

A partir da Figura IV, representando a organização socioterritorial na reserva, assim

como as territorialidades que os Guarani, Kaiowa e Terena ocupam na mesma, a partir do ―olhar‖

do Kaiowa Ñanderu Jorge, podemos fazer a seguinte leitura: os pontos em vermelho representam

a Rodovia que liga Dourados a Itaporã – MS 156. Do lado direito da rodovia, têm-se a aldeia

Jaguapirú, que o autor da figura salienta ser predominantemente de ocupação Terena (percebe-se

a proximidade com a Missão Caiuá) e do lado esquerdo da rodovia, representa parte da Jaguapirú

(constando a escola Tengatuì) e aponta como um marco importante a cabeceira ―do Sardinha‖

com pontos em verde, que é o divisor das aldeias Jaguapirú e Bororó na RID.

Entre a rodovia e o córrego, considera a ocupação de Kaiowa, Guarani e Terena (índios

misturados). Nesta relação, faz referência aos casamentos inter-étnicos, salientando que naquela

região tem muito Guarani que casa-se com Terena. Ainda, na Jaguapirú, na parte superior da

figura, sentido ao Tekoha Iguarusu, o mesmo faz referência a ocupação de Kaiowa. A

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predominância de Kaiowa na aldeia Bororó é demonstrado pela representatividade do ―cabeceira

do Sardinha‖, ao dizer que ―lá é tudo Kaiowa‖.

Consideramos ainda que a família de Jorge está territorializada na Jaguapirú, acionando

marcadores de diferenciação ao elucidar pela narrativa que na Jaguapirú há muitos Kaiowa,

buscando demonstrar que mesmo na Jaguapirú tendo um grande índice de Terena, os Kaiowa

possibilitam melhores condições de viver, buscando reproduzir o Teko Porã.

Para compreendermos a afirmação de que há um grande número de Kaiowa na Bororó e

Terena na Jaguapirú, a FUNASA (2007) traz os dados da densidade populacional destas

sociedades por aldeia (Jaguapirú e Bororó), possibilitando entendermos a territorialização destas

sociedades na RID. Referente a Jaguapirú, os Kaiowa representam 33,8% da população total;

Terena 36,1% e os Guarani 30,7%. Na Bororó, 87,5% são Kaiowa; 10,1% são Guarani e 2,14%

são Terena. .

Percebe-se que estes dados nos trazem um grande índice de Kaiowa territorializados na

Jaguapirú, demonstrando que nem todos os Kaiowa da RID estão na Bororó, e da mesma forma,

que a representatividade dos Terena na Jaguapirú é quase equivalente ao percentual ocupado

pelos Guarani e Kaiowa. Assim, o que é perceptìvel nas narrativas, ao elucidarem que ―os

Kaiowa é da Bororó e os Terena é da Jaguapirú‖, está estritamente relacionado às relações de

poder na reserva, das identidades que dominam uma porção territorial na mesma, fazendo-se

enquanto identidades territoriais, que propiciam a reprodução do que os Guarani e Kaiowa

entendem ser as aldeias Jaguapirú e Bororó, mesmo que tais identificações, como visualizado,

estejam em contínuo confrontamento.

Desta forma, os processos de construção, identificação e diferenciação das identidades

se fazem nos desdobramentos do que Rogério Haesbaert (1999; 2007b) entende por identidades

territoriais, nos permitindo uma abordagem geográfica da identidade. Em suas palavras, estas

relações se fazem entrelaçadas na ―[...] construção identitária, sempre produzida na relação com

aquele que é estabelecido como o seu ―outro‖‖. (HAESBAERT, 2007, p.36).

Assim, o que está em disputa entre estas sociedades em condição de reserva é o

território, e a exclusividade deste. Se por um lado na organização socioterritorial tradicional

destas sociedades, a identidade das gentes se fazia em referência à ―identidade dos lugares‖, é

notório que em condição de reserva esta condição tenha sido recriada, embora tenha outras

correlações nos processo de identificação e pertencimento. No sentido considerado por Rogério

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Haesbaert (2007, p.172), de que o espaço geográfico constitui-se fundamentalmente dos

processos de identificação social, também ―[...] De uma forma genérica podemos afirmar que não

há território sem algum tipo de identificação (positiva ou negativa) do espaço pelos seus

habitantes‖. A afirmação e negação das identidades em condição de reserva se dão explicitamente

no conviver com o outro. Entre os Guarani e Kaiowa a importância se dá na exclusividade

familiar no território - Tekoha -, com base nos referenciais no ―mundo dos parentes‖, como

adverte Levi Marques Pereira (2004; 2008).

Neste sentido, podemos representar estas relações a partir de figuras-retângulos que

representam os ―olhares‖ Kaiowa e Terena e pela figura-retangular, representando os ―olhares‖

Guarani, dando-nos subsídios para entender as relações entre Guarani, Kaiowa e Terena na RID

(ver Figuras V, VI e VII). Nas relações entre Guarani, Kaiowa e Terena, os marcadores de

diferenciação aparecem relacionados entre dois extremos do que se subentende ser

―verdadeiramente indìgena‖, aparecendo como uma condição variável, considerando as múltiplas

formas de sê-lo em condição de reserva, no qual o modo de viver Kaiowa aparece com maiores

apegos à tradição, nos fundamentos dos modos de vida dos antigos (Tekoyma) e, diferentemente,

os Terena aparecem no outro extremo, como a representação do novo modo de viver

(Tekopyahu), estando estes mais próximo do ―mundo dos brancos‖ (ver Figura VI).

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227

Figura V - “Olhares Kaiowa”

Teko Porã (Bom modo de viver)

Teko Vai (modo incorreto de viver)

Fonte: Elaborado pela autora deste trabalho.

Figura VI - “Olhares Terena”

Bom modo de viver

Atrasados

Fonte: Elaborado pela autora deste trabalho.

Guarani

Kaiowa

Terena

Guarani

Terena

Kaiowa

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Figura VII - “Olhares Guarani”

Modo correto de viver

Fonte: Elaborado pela autora deste trabalho.

Na Figura V, os Terena invertem os ―olhares‖ sobre os Kaiowa, pois, para os

mesmos, quanto maior apegado a tradição (modo de viver dos antigos - Tekoyma), mais

―atrasado‖ se coloca em condição de reserva. Já para os Kaiowa, o ―desprezo‖ as tradições e a

forma de viver mais próxima da cultura do branco, colocam os Terena no outro extremo do

retângulo, pois, para os mesmos, o mais importante é a preservação da cultura. Dessa forma,

entre estas relações temos desde uma condição extrema de marcadores de diferenciação, entre

o ponto mais alto do retângulo ao seu inverso (no caso da relação entre Kaiowa-

Terena/Terena-Kaiowa), mas também temos a situação de conseguir viver em ―uma condição

de meio‖, como é o caso dos Guarani (ver Figura VII).

Assim, entre as relações que podem ser consideradas parcialmente em condição de

―atrasado‖ e/ou de apego as tradições, estão os Guarani, ocupando uma ambiguidade entre ser

Terena e/ou Kaiowa, ―vivem no meio‖. Por isso, vivem negociando seu o modo de viver na

RID, pois conseguem estabelecer boas relações com Terena e Kaiowa. Dessa forma, os

Guarani conseguem viver de melhor forma e transitar na RID sem grandes confrontos.

Contudo, aos ―olhares‖ de alguns Terena e Kaiowa, que negociam com eles a relação de

meio, por vezes, podem colocá-los a uma condição de não pertencer a lugar nenhum.

Estas relações são marcadas pelo ―viver na fronteira‖, de encontro e desencontro com

o outro, considerando que é na fronteira que as territorialidades ―se chocam‖ e se

reconfiguram, possibilitando a criação de outras fronteiras, de outras identidades e de

vivenciar outras territorialidades. Nesta perspectiva, as relações entre Guarani, Kaiowa e

Terena na RID são permeadas de tensionamentos, que envolvem o sentido de ―quem se é‖ na

reserva, gerando até uma tipologia de ser indígena.

O retângulo, como metodologia de representação destes marcadores de diferenciação

entre dois extremos, o modo de vida Kaiowa e Terena, é também uma forma de demonstrar

que independente do grupo étnico que um indivìduo pertence na reserva, a partir do ―olhar‖

do outro, que pode ser do grupo de sua própria etnia, por meio do julgamento social, suas

Terena Guarani Kaiowa

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atitudes (modos de viver) poderá levá-lo ao status mais alto e/ou o mais baixo do retângulo.

Quer dizer, para os Kaiowa, quanto mais próximo de seus costumes tradicionais, do modo

correto de viver, maior aceitabilidade o mesmo terá no seu grupo social. Bem como, para os

Terena, quando maior ascensão social o mesmo tiver, maior será o seu prestígio no seu grupo.

O lugar que se ocupa no retângulo social, dependerá dos ―olhares‖ de julgamento, e

estes ―olhares‖ são múltiplos, de modo que ao ser ―aprovado‖ de um lado, por outro, suas

atitudes serão ―reprovadas‖. Talvez, a melhor forma de viver, como considerado por um

Guarani, morador da Jaguapirú, ―é ficar no meio, num tê partido... na reserva é tudo igual,

né? É complicado vivê aqui na reserva, se você pegá a briga do Terena, ai você é Terena, tá

igual branco... [...] ai aceita do Kaiowa.. vai na casa dele, é o jeito dele, sabê rezá, Kaiowa

reza muito... Eu sou Guarani...126‖.

Desta forma, dependendo das relações de poder estabelecidas em condição de

reserva, os Kaiowa podem ocupar o status mais baixo e/ou mais alto, assim como os Terena e

os Guarani. Pode-se dizer que entre os Guarani, Kaiowa e Terena na RID, ser um tipo de

indígena depende do modo em que você se comporta no mundo, das relações que poderão se

dar para ―dentro‖ da tradição e/ou para ―fora‖, tendo como parâmetro de comparação o modo

de viver do ―branco‖.

O que é perceptível na RID, considerando a discussão de Fredrik Barth (1998, p.

194) sobre as relações de contato entre grupos-étnicos, é que ―[...] pertencer a uma categoria

étnica [e/ou sociedade] implica ser um certo tipo de pessoa que possui aquela identidade

básica, isso implica igualmente que se reconheça direito de ser julgado e de julgar-se pelos

padrões que são relevantes para aquela identidade [...]‖. Nesta correlação entre ser ou não o

verdadeiro indígena nas relações entre Guarani, Kaiowa e Terena, há necessidade que se

perceba, com base em Lúcia Helena Rangel (2004, p.175), que ―[...] para a população

indígena, o outro não é índio [...]‖ (RANGEL, 2004, p. 175).

O que a autora está querendo dizer é que para as sociedades indígenas, o indígena

―verdadeiro‖, é tão somente o seu grupo étnico. Podemos exemplificar esta relação da

seguinte forma: para o Kaiowa, ser indígena é ser Kaiowa, da mesma forma que para um

Terena, ser indìgena é ser Terena. Em linhas gerais, ser indìgena é ser um ―tipo‖ específico de

fazer-se indígena, que pode ser Bororo, Kaiowa, Terena, Guarani...

Assim, entender o compartilhamento territorial Guarani, Kaiowa e Terena, é

compreender os modos de fazer-se indígena na RID. Estes demonstram, muitas vezes, nas

126

Esta narrativa é parte de algumas conversas com indígenas na Feira da Rua Cuiabá no ano de 2009.

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relações entre si, mesmo pela oralidade, distanciamentos no modo de perceber uns aos outros,

e em outros momentos, de proximidade, fazendo pelo reconhecimento do outro como ―igual‖

e/ou diferente de si, que perpassa os modos de fazer-se indígena. Sendo assim, as relações

conflituosas na reserva apontam que estas sociedades não escolheram compartilhar territórios,

mas foram as distintas ―trajetórias-histórias‖ de cada famìlia, de cada grupo, como

consequência dos projetos de integração nacional dos ―espaços vazios‖ e da sociedade

indígena, que lhes impuseram o que aqui definimos de territorialização precária, estritamente

relacionada ao processo de desterritorialização de seus territórios tradicionalmente ocupados.

Todavia, podemos considerar que apesar das grandes conflitualidades engendradas

pelo compartilhamento territorial entre sociedades distintas, fruto de suas territorializações

precárias na reserva, nada se compara com a conflitualidade gerada com o desencontro entre

índios e não índios, que envolve, inclusive, neste processo, o esbulho dos territórios indígenas

por não indígenas e, portanto, a perda de relações materiais e simbólicas, como elucida Carlos

Rodrigues Brandão (1986, p.87-88):

[....] contatos de tribos com tribos podem alterar o equilíbrio de tudo [...].

Uma tribo pode quase dizimar a outra, ou pode submetê-la a um regime de

escravidão. Duas ou mais podem descobrir formas de convivência em um

mesmo território e, assim, podem ser obrigadas a resolver juntas a questão

de interdependência que a convivência deverá gerar. Mas o contato com o

mundo dos brancos é de uma outra natureza. Não são duas tribos. Não são

dois grupos sociais diferentes, mas iguais. São dois tipos de sociedade

desiguais em suas diferenças, onde uma se relaciona com a outra dentro dos

padrões de dominância [...]. Ele perde suas terras ou uma parte delas [...] ele

perde toda ou parte da autonomia de suas relações políticas [...] ele perde as

condições anteriores de manter equação de trocas de bens e trabalhos que

preserva vida física e social de todos entre todos [...].

Compreender estas relações no contexto da RID é extremamente importante, na

medida em que os ―marcadores de diferenciação‖ são, também, formas de re-existências

frente à precariedade em que foram impostos a viver, como consequência dos desencontros

com os não indígenas, no que concerne ao processo de esbulho sobre seus territórios

tradicionalmente ocupados, tendo como força motriz desse processo o pensamento dominante

do sistema-mundo moderno-colonial em que estas sociedades foram obrigadas a inserir-se.

Contudo, o que estas relações de encontros e desencontros nos mostram é que as sociedades

indígenas resistem, recriando e produzindo identidades e culturas, criando novos territórios

diante da imposição do compartilhamento territorial. Assim, as gentes Guarani, Kaiowa e

Terena nas fronteiras criadas e recriadas na RID se encontram, negociam e se transformam,

sem necessariamente ―perder‖ suas concepções de mundo, já que pertencer a determinada

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sociedade implica necessariamente em participar de determinadas práticas culturais, costumes

e tradições, tornando ―[...] possìvel à compreensão de uma forma final de manutenção de

fronteiras, através da qual as unidades e os limites culturais persistem [...]‖ (BARTH, 1998,

196).

Ainda no que concerne à manutenção e/ou mesmo a criação das fronteiras que

possibilitam a construção de territórios, assim como à participação em múltiplas

territorialidades, com base na ampliação das redes socioterritoriais de interlocução do lado de

―lá‖ e de ―cá‖ da fronteira em condição de reserva, podemos dizer, de acordo com Jones Dari

Goettert (2008, não paginado) que:

A fronteira é, por isso, como movimento contínuo de produção/reprodução, a

construção de relações – materiais e simbólicas – entre as gentes de um e de

outro lado, próximas ou distantes, amistosa ou conflituosamente, explicita ou

sub-repticiamente. A fronteira, nesse sentido, não deve ser compreendida

como saldo – ou território(s) – dado: sua existência tanto depende da

reafirmação constante dos Estados fronteiriços (as leis, normas, fiscalização,

controle, polícia, exército, diplomacia...) como do conjunto de relações

construídas, material, simbólica e discursivamente, em torno da fronteira.

Nas relações de fronteiras entre os Guarani, Kaiowa e Terena, a partir de Fredrik

Barth (1998, p.196) as ―[...] situações e contato social entre pessoas de culturas diferentes

também [implicam a] manutenção da fronteira étnica [...]‖, podendo dizer que a partir de

novos contextos de interação social, construir identidades é fazê-la nos lugares de encontros

e/ou desencontros com o outro, com aqueles que se diferem e/ou se identifica.

As relações sociais propiciam as formas em que vemos, inventamos, imaginamos e

pensamos os outros e nós no mundo. Em especial, como aponta Rogério Haesbaert (2005, p.

6777) a partir das contribuições de Joël Bonnemaison e Luc Cambrèzy, o território ―não diz

respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser‖.

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3.3.1 - As fronteiras étnico-culturais e a construção de territórios/territorialidades

entre os Guarani e Kaiowa

―Eu vou fala pra você uma coisa, porque, porque num é tudo igual. Tem

diferença, o Kaiowa é diferente do Guarani. A reza dele é diferente, fala

diferente também. Tem diferença todo aqui, é só você percebê‖.

Kaiowa Fátima

Terra Indígena Jarará, 2009.

Ao adentrarmos o universo Guarani e Kaiowa, eram muito frequentes nos diálogos

que estabelecíamos junto a estas sociedades, que com muitas similaridades entre si no tocante

ao modo de vida na RID, ambos fazem questão de diferenciar-se. A convergência e

divergência das culturas que se encontram e/ou se desencontram na fronteira, possibilita com

que os homens e mulheres criem marcadores de diferenciação que possibilite aos grupos

construir seus territórios em condição de reserva. Neste sentido, os Guarani e Kaiowa

negociam com o modo de vida dos antigos – Tekoyma, e o novo modo de ser - Tekopyahu -

em condição de reserva, vivenciando o trânsito permeado pelos desdobramentos do passado-

presente, buscando recriar seus modos de vida no território precário que lhes foi imposto.

Deste contexto, no que concerne ao compartilhamento territorial entre estas

sociedades, de acordo com Marshall Sahlins (2007, p.39), é ―[...] o que parece mais

estupendo, como um poderoso comentário sobre a natureza da cultura, é que as pessoas

possam participar plena e mutuamente de uma mesma sociedade, num mesmo universo de

sentido, tendo experiências totalmente diferentes (e intransmissìveis) do mundo [...]‖.

Estas experiências distintas se fazem a partir das diversas percepções em que as

gentes vêem a si mesmo e aos outros, na qual estes distanciamentos e mesmo proximidades,

se fazem pela/na construção de fronteiras, limite entre os ―dentro‖ e os de ―fora‖, podendo

nesta perspectiva dizer, estando de acordo com Claude Raffestin (1993, p.164-165), que ―[...]

entrar em relação com os seres e as coisas é traçar limites ou se chocar com limites [...]. [já

que] o limite é um sinal ou, mais exatamente, um sistema sêmico utilizado pelas coletividades

para marcar o território [...]‖, onde este é marcado por especificidades próprias de

territorialidades, delimitados por limites visíveis ou invisíveis, criando assim, identidades e,

consequentemente, fronteiras (RAFFESTIN, 1993).

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A permanência da diferença no contato é o que possibilita a resistência e recriação

das sociedades indígenas, pois ser Guarani, Kaiowa e Terena significa sê-lo de uma forma

específica, diferindo-se daqueles que não são, e como demonstra o Kaiowa Ñanderu Jorge

(2010):

Aqui na reserva cada um é de um jeito, é assim, o Kaiowa, Guarani ele tem

um jeito de vivê no lugar dele... ai cada um tem um lugar aqui na reserva,

aqui memo nói mora no Sardinha [referente a um lugar na reserva onde

Jorge é liderança], aqui mora nesta terra aqui (referente ao seu lote na

reserva), mora a famía nossa aqui... [...] mais aqui memo tem parente

esparramado que num mora aqui...

Jorge, ao demonstrar a organização socioterritorial na reserva, onde cada grupo

familiar segue apropriando-se de algumas espacialidades da reserva, apesar de suas vidas não

se limitarem a esta condição, mas também, de estarem interconectadas com outras realidades,

sendo estes, os lugares onde os parentes se encontram, podendo estar ―dentro‖ e ―fora‖ da

reserva. No que concerne à organização socioterritorial dos Guarani e Kaiowa, primeiramente

gostaríamos de sinalizar a necessidade destas sociedades criarem fronteiras que visa diferir

um modo de vida e outro.

Jorge, ao demonstrar a organização socioterritorial na reserva, salienta que as

territorialidades da RID estão inter-relacionadas com outras realidades, no caso, as relações

com os parentes que não estão na reserva, mas estão territorializados em outras modalidades

territoriais. Possibilitando compreendermos que as fronteiras socioterritoriais, por vezes,

podem estar mais ―abertas‖ àquelas que estão longe, do que necessariamente para o ―vizinho

que mora ao lado‖. Porque a fronteira é o limite da incompatibilidade de compartilhar

territórios com os outros que não fazem parte do ―nós‖. A organização socioterritorial dos

Guarani e Kaiowa na RID demonstra que as fronteiras impossibilitam maiores interações

sociais entre redes familiares, pois visam diferir um modo de vida do outro. Estas relações,

determinam os modos de organizar-se espacialmente por meio da família extensa.

Nesta perspectiva, as fronteiras são construídas, destruídas e reconstruídas

cotidianamente a partir das interações sociais, onde estes criam, recriam e reinventam

territórios e territorialidades. De acordo com Jones Dari Goettert (2008b - Não paginado):

[...] o movimento de construção de fronteiras ultrapassa uma marca ou um

sinal histórico que esvai com o tempo, mas gruda no próprio espaço e é nele

– incorporador dos próprios tempos – que a fronteira, (re) feita diária,

cotidiana, diuturna e relacionalmente, se apresenta/representa, é

apresentada/representada e é produzida/consumida no interior de um habitus,

portado pelas gentes de/da fronteira.

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Para o autor, a produção da fronteira deve ser compreendida a partir das ―[...]

múltiplas territorialidades humanas, de indivíduos, grupos, tribos, classes, povos,

nacionalidades... [...]‖. A territorialidade reflete uma multidimensionalidade do ―vivido‖

territorial pelos membros de uma sociedade, não sendo ―[...] possível compreender essa

territorialidade se não se considerar aquilo que a construiu, os lugares em que ela se

desenvolve e os ritmos que ela implica [...]‖ (RAFFESTIN, 1993, p.162). Portanto, é possìvel

dizer que ―[...] a identidade é irrevogavelmente uma questão histórica [...]‖ (HALL, 2004, p.

30) construída pelas gentes no espaço-tempo.

Os Guarani e Kaiowa, embora se constituam como sociedades com muitos aspectos

culturais similares, as diferenciações de modo de vida é uma condição sempre a ser

demarcada, havendo a necessidade de diferenciar o que é o outro, já que estes grupos têm

especificidades nos modos de participar e ver o mundo. A alimentação, as vestimentas, os

lugares ocupados tradicionalmente são acionados a fim de diferenciá-los. É muito comum

aparecerem referenciais de diferenciação da alimentação tradicional destes grupos,

participando como meio importante de diferenciação.

No que remete as diferenças físico-humanas, segundo a narrativa de um Kaiowa127,

este considera que o Coró128 é um importante elemento que marca as diferenciações culturais

entre os Guarani e Kaiowa.

[...] heim, no meu modo de entendê, pai meu, vô, explica a diferença nossa,

é essa aqui. O Kaiowa nosso, nóis que somo Kaiowa mesmo [...] nóis

Kaiowa já bebe chicha. Diz que é mais ou menos assim. Diz que os Guarani

lá nas aldeia dele, eles corta aqueles coqueiro, deixa lá mais uns quinze dias

no chão, corta no meio, acha o coró, desse coró eles faz parte torresmo,

coloca na panela, torra. E aquela banha tira pra fervê, pra remédio. Nossa

alimentação, Kaiowa é na chicha, a do Guarani é no coró, por isso não se

dá bem Kaiowa. [...] A comida do Kaiowa é do milho, cana, mandioca, a

127

Entrevista concedida na CBAA Destilaria de Açúcar e Álcool Debrasa (2007). 128

O Coró é uma espécie de larva de coco, conhecido também como bicho-do-coco (Pachymerus nucleorum).

Segundo Carlos Everaldo Coimbra Júnior (1984, p.44), ―Métraux (1948) descreve o consumo de larvas de R.

palmarum entre os Cainguá [entre os guarani], ao sul do pais: derrubam algumas árvores com o objetivo de

fornecer substrato para o desenvolvimento de larvas, que se multiplicam na madeira em decomposição‖. (p. 09).

Ainda o mesmo autor (1984) diz ―[...] os insetos desempenham um significativo papel na alimentação de

diversos grupos indígenas que habitam o Brasil, não só pela frequência com que o hábito é constatado, como

também pelo seu valor nutricional. Ao que tudo indica, essas larvas seriam capazes de suprir, pelo menos em

parte, as necessidades diárias de compostos nitrogenados. O possível aproveitamento dessa percentagem de

nitrogênio total elevada deve ser interpretado com cautela, pois, como se sabe, existe nos insetos um

polissacarídeo nitrogenado denominado quitina, que é um dos principais constituintes do tegumento destes

artrópodos e/ou artrópodes, podendo também ocorrer em outras partes do corpo. Os mamíferos não possuem

enzimas digestivas capazes de atuar sobre a quitina; desse modo, o nitrogênio proveniente dessa substância não

pode ser assimilado por nosso organismo [...]‖.

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chicha do Kaiowa faz da mandioca, o do Guarani não faz da mandioca, tem

diferença [...].O coró é bom pra criança quando sai boqueira na criança,

pra cabelo. E não é qualquer coró, tem que ser de coqueiro, 15 dias lá. De

coqueiro, não é qualquer madeira, só dá no coqueiro [...]. Mas a gente já

não faz mais.

Percebe-se, a partir da narrativa, que alguns tipos específicos de alimentação são

importantes marcadores de diferenciação, como é o caso do Coró. Ele está relacionado com

um importante fator de diferenciação entre os Guarani e Kaiowa, a cor da pele.. Porque a

explicação para esta diferença, segundo os Kaiowa, se dá pelo consumo alimentício do Coró

entre os Guarani. Este fato é também demonstrado por Levi Marques Pereira (2004, p.184),

ao dizer que ―[...] os Ñandeva possuem a pele mais clara e delicada porque consomem o coró

(espécie de larva) que se desenvolve nos caules dos coqueiros apodrecidos, enquanto os

Kaiowa não o utilizam em sua dieta. Isto porque o coró tem a pele lisa e transmite essa

caracterìstica para as pessoas que dele se alimentam [...]‖. Desta forma, os Guarani e Kaiowa

acreditam que a diferenciação de cor de pele se dá pelo consumo do Coró.

Os Kaiowa salientam que essas diferenciações são perceptíveis, na medida em que a

mulher Guarani é muito diferente, não parecendo necessariamente com uma indígena

(Kaiowa), mas sim, com uma ―branca‖. A partir destes fatores distintivos, alguns Kaiowa

demonstram esta diferenciação da seguinte forma: ―[...] diferença do Guarani e Kaiowa. O

Guarani não se adapta bem com o Kaiowa. Sabe por quê? As pessoas Guarani são bem mais

assim nas raças dele, são bem mais branca, as mulher, são assim, não aprece índia de longe.

Bem mais branca [...]‖.

Embora estas relações não apareçam visíveis na RID, haja vista que por vezes as

relações entre algumas famílias Guarani e Kaiowa apareçam menos conflituosas do que

realmente são. Diferenciar torna-se um elemento importante para a criação da identidade em

condição de reserva, pois ela possibilita a permanência, ou seja, a continuidade de um modo

de vida que se faz no/pelo movimento das gentes.

Para a Kaiowa Odália, moradora da Jaguapirú (2009), há muitas diferenças entre os

Guarani e Kaiowa, que, em seu modo de perceber tais diferenciações, os Guarani aparecem

relacionado ao modo de vida dos ―brancos‖, novamente trazendo como elemento distintivo, o

consumo do Coró.

É diferente, por isso que tem Kaiowa e Guarani. [...] Guarani de verdade

mesmo, o mais bom que é, o importante é ter o coró dele, o coró assim tem

que por dentro daquele pindó, tira de lá, põe na panela e ai faz aquele [...].

Cê ele come, se tem que comê também, algum pessoal num come, eu mesmo

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num como. O Guarani verdadeiro que morava lá, falo que é remédio, você

tem lá doença, num sabe, você passa e sara [...].

Chicha eu tomo, Coró não. Quem me ensinô foi a mãe que tá me ensinando.

Agora num tem mais milho verde, como é que a gente vai fazê? Chicha tem

que você, amassá né, como é que a mãe ensinô [...] tem que mordê mesmo,

chicha mesmo tem que mordê, põe na boca e põe na panela né, e põe (2009).

A partir de Odália, podemos perceber que diversas práticas culturais em condição de

reserva já não aparecem com muita frequência se comparado ao modo de vida dos antigos -

Tekoyma, contudo, é a partir do passado que estas sociedades buscam seus marcadores de

diferenciação, já que a tradição é sempre algo a ser reinventada, seja para afirmar ou para

negar as identidades.

Com base na narrativa do Kaiowa Maciel (2009), podemos entender minimamente

estas relações, que em suas palavras, aparece da seguinte forma: ―Eu acho que não é tudo

igual. Acho que parece um pouco... mas, minha vó fala assim: é diferente, Kaiowa é um,

Guarani é outro. É outra coisa. Acho que tem diferença, tem mesmo. Eu acho isso, Kaiowa é

diferente do Guarani. Eu memo sô Kaiowa, falo Kaiowa, é...‖. Algumas diferenças que

marcam o ser Guarani e Kaiowa se dão pelas diferenças de linguagem (dialetos), elencada

também por Curt Unkel Nimuendaju (1978, p. 07-08), ao dizer que:

Só quem fala exatamente o mesmo dialeto é considerado pelos Guarani

como membro da tribo. A menor diferença de sotaque em relação ao dialeto

da horda é motivo de escárnio e caracteriza a pessoa como estrangeira.

Quando se fala em outro dialeto, é frequente os índios se recusarem a

entender, embora pudessem fazê-lo. Cada horda reivindica apenas para si o

nome da nação toda, sorrindo com desdém do atrevimento das demais que,

por sua vez, arrogam – se o mesmo direito. Da mesma maneira, cada horda

afirma que só ela fala a verdadeira e correta língua Guarani [...].

Em Maciel, os marcadores de diferenciação se fazem a partir de sua avó, assinalando

que esta sempre lhe disse que os Guarani e Kaiowa são diferentes. Talvez, em suas

percepções possa não haver tantas diferenças entre um e outro, mas a grande questão que se

coloca é a necessidade de diferenciar-se dos outros, demarcando territorialidades por meio da

linguagem e de modos de viver dos antigos, mesmo que estes elementos não se apresentem de

forma aparente e/ou facilmente percebido em condição de reserva. A partir de Odália (2009),

as diferenciações nas reservas ultrapassam os diferentes modos de viver dos Guarani e

Kaiowa, dando-se da seguinte forma:

[...] tem o branco, tem o gaúcho, tem o terena... (silêncio). Tá misturado

aqui, num é igual antigamente, antigamente num vive assim, vive diferente,

num é do jeito que está agora, misturado. Agora tá tudo junto. Kaiowa casa

com Guarani, Terena, tá assim. Num é igual lá no Panambizinho, lá num é

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desse jeito... Acho que num tá certo viver assim. [...]. Vai lá e já num entendi

a língua, é arrastado. Agora o novo, o novo num igual antigamente [...]. Nu

Panambizinho... lá é o sistema do índio tradicional.

A necessidade de Odália referir-se à Terra Indígena Panambizinho se dá

explicitamente em referência a um lugar onde os Kaiowa podem reproduzir o verdadeiro

modo de ser, com base nos ensinamentos dos antigos. Ainda, demonstra o modo de vida dos

Kaiowa comparando aos Guarani, que em sua concepção está próximo do modo de viver dos

Terena. Em suas palavras: ―[...] Cê você já percebeu, os Guarani mora aqui na Jaguapirú

pra fica perto dos Terena, por causa do ―branco‖ também. Dizê que porque ele é mai

branco, ai que fica com o branco? Eu acho que é por causa disso daí, se dá bem assim... é

diferente dos Kaiowa... [...]‖.

Apesar das relações entre Guarani e Kaiowa aparecerem na narrativa como um

―palco de conflitos‖, estas aparecem ser mais amistosas do que concerne as suas relações com

os Terena (vide 3.3), como demonstra o Kaiowa Ñanderu Jorge ao dizer que na reserva ―é

tudo misturado, Kaiowa e Guarani casa né, porque é parente‖. Contudo, nestas relações, a

partir da necessidade de diferenciar, assinalam que os casamentos entre Kaiowa e Guarani são

complicados, porque ―o Guarani é mais bravo. Óia, cê você passá na casa dele, ele fala alto,

o Kaiowa já não, num é assim [...]‖.

Esta necessidade de diferenciar pela/na oralidade, demonstra que ser indígena é ser

de modo especìfico, como se não existisse nenhuma sociedade ―mais indìgena‖ que a sua,

assim, a necessidade de apegar-se aos marcadores de diferenciação torna-se necessário e

imprescindível para a reprodução sociocultural destas sociedades em condição de reserva.

A partir desta colocação, elencamos que uma senhora Kaiowa ao perguntarmos a ela

o que é ser Kaiowa, a mesma fica durante algum tempo em silêncio e nada responde,

posteriormente, olha e prossegue dizendo sobre os modos de viver hoje em condição de

reserva, demonstrando a impossibilidade de viver em um lugar que ―falta de espaço‖,

dizendo-nos o seguinte: ―Óia, índio é nóis que é Kaiowa, nóis sabe o que é... (silêncio), a

gente queria vivê livre, no nosso lugar‖. Posteriormente sinalizou que na reserva grande

parte dos Kaiowa procuram morar na Bororó, buscando um modo de ficar ―longe‖ dos

―brancos‖, pela crença de que a Jaguapirú está próxima ao mundo dos ―brancos‖. Demonstra

ainda que este ―branco‖ não é necessariamente os não indìgenas, mas, pode sê-lo todos os

indígenas que vivem iguais a estes, representando a aldeia Jaguapirú como o lócus da

desfiguração do que esta entende ser o verdadeiro modo de ser indígena.

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Neste contexto, talvez, a partir das considerações da narrativa acima, os Guarani e

Kaiowa busquem marcar suas diferenças étnico-culturais na reserva a partir da exclusividade

étnica no território, onde as redes de alianças políticas possibilitam maiores condições para

algumas famílias terem maior prestígio e, consequentemente, maior poder político sobre o

território. Consideramos ainda que as alianças com os agentes externos também são um

importante meio para o reconhecimento interno e externo à reserva, principalmente no que

concerne ao acesso aos recursos que ficam restritos a algumas famílias, àquelas que segundo

os Guarani e Kaiowa possuem maiores vínculos com os não indígenas.

Diante destas questões, a organização socioterritorial na reserva ao mesmo tempo

em que é bastante exclusiva, torna-se também inclusiva, no sentido de que quanto maior for a

rede de alianças polìticas de uma famìlia ―dentro‖ e ―fora‖ da reserva, maior será seu

prestígio. A atuação de uma rede política sólida de alianças entre familiares é muitas vezes

construída por meio de casamentos.

Ainda, é notório que ao mesmo tempo em que a condição de reserva aparece

desagregando a organização socioterritorial que, antigamente tinha suas bases sólidas no

Tekoha, estas agora se fazem agregando novas condições territoriais, visando, de certa forma,

recriar os Tekoha na reserva, apegados aos elementos de organização socioterritorial do modo

de vida dos antigos. Nesta relação, abre-se a possibilidade de criação de multiterritorialidades

vividas na reserva a partir das relações com o Tekoyma, e tais relações perpassam a

multitemporalidade vivida na reserva, havendo uma conexão direta entre as relações vividas

na reserva, marcadas pelo Tekopyahu com o Tekoyma, que perpassam as multiterritorialidades

vividas na reserva.

A localização das famílias extensas na reserva é um importante fator distintivo,

podendo ser visualizado pela organização socioterritorial do Ñanderu Jorge e a Ñandesy

Floriza, sempre salientando a necessidade de estar próximos aos parentes. A partir das novas

condições, estes grupos sociais vão se reorganizando nas bases da exclusividade territorial,

apesar de hoje terem maior dificuldade de estabelecer estas redes de alianças, principalmente

em referência aos parentes que estão longe, pois como considera o Ñanderu Jorge (2010),

―[...] um tá lá e outro tá aqui... é assim, num tá junto, tá tudo esparramado [...]‖.

Embora esta condição apareça com frequência, os Guarani e Kaiowa se fazem

criando territórios ―exclusivos‖, nos quais algumas espacialidades são consideradas lugares do

―fulano de tal‖, é que este é um imprescindìvel meio de identificar um território, assim como

as territorialidades existentes no lugar. Mas, é necessário dizer que para muitos grupos a sua

rede de sociabilidade é muito mais ampla do que é perceptível à primeira vista, ou seja, as

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territorialidades são extremamente amplas, possibilitando correlações como às expressas nesta

narrativa: ―o grupo do fulano de tal vive na aldeia tal‖.

Nesta perspectiva, na RID cada família se organiza espacialmente a partir de uma

rede social marcada por relações de parentesco, afinidade social e alianças políticas. Assim,

nos lugares onde está localizado o ―cabeça da parentela‖, normalmente um xamã (Ñanderu e

Ñandesy) e/ou liderança política, normalmente é marcado pela expressão do nome da pessoa

que é liderança do lugar, como é o caso da família do Jorge. As referências em torno de sua

família se fazem a partir dele, no sentido de que os parentes também são identificados como

parte do grupo familiar pertencente, assim as identificações como: ―ah, é parente do Jorge‖;

―mora no sardinha, do Jorge, né?‖; ―é da família do Jorge‖, são extremamente comuns ao

referenciar a pessoa ao grupo familiar que a mesma está relacionada. Esta relação significa

que a pessoa ocupa um lugar na RID, pertence a uma rede de sociabilidade, de alianças

polìticas que permite maior mobilidade ―dentro‖ e ―fora‖ da reserva, já que o mesmo está

amparado pela família, principalmente, quando esta tem prestígio social, como é o caso da

família de Jorge.

Ainda, consideramos que quando isso não ocorre, a pessoa normalmente está

―excluìda‖ da rede de sociabilidade, exemplo este é quando um parente não é reconhecido

pelo grupo na reserva, normalmente quando o mesmo comete alguma atitude que não é

representada como um ―bom modo de viver‖ do grupo, e é julgado por suas atitudes nas redes

de sociabilidade da RID, (como considerado no tópico 3.3). A ―exclusão‖ dentro de uma

família Kaiowa normalmente se dá pela reprovação de comportamentos sociais (normalmente

comportamentos graves, como ocorrências de assassinatos), ou mesmo por estar tendo

comportamentos que são reprovados pela família, sendo muito comum os parentes referenciá-

los como próximo ao modo de viver dos Terena, aparecendo muito as identificações de que os

mesmo ―está ficando branco‖; ―tá pensando igual branco‖.

―Fora‖ da RID, os laços com os parentes seguem esta mesma relação, pois segundo

Jorge, o reconhecimento da pessoa ocorre da seguinte forma: ―chega em Antônio João, fala

que é parente do Jorge... eu sou liderança aqui na reserva.. é rezador aqui, ele me conhece,

vai sabê quem é‖. Esta relação do reconhecimento da liderança é extremamente importante,

pois ela insere a pessoa nas redes de sociabilidade, contudo, por outro lado, quando a

liderança não é vista com ―bons olhos‖, ocorre o não reconhecimento da pessoa no grupo.

O que estas relações nos demonstram, é que as redes de sociabilidade são

importantes meios para criar identidades, fronteiras e territórios múltiplos ―dentro‖ e ―fora‖ da

RID. A partir da organização socioterritorial das famílias dos Ñanderu e Ñandesy Jorge e

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Floriza e Antônia e Admiro, podemos perceber a expressividade da construção de territórios

na reserva, mesmo que alguns parentes estejam territorializados ―fora‖ da mesma, em:

fazendas, outras reservas indígenas, Terras Indígenas etc.

Neste caso, a construção de territórios se faz pela mobilidade de ―ir‖ e ―vir‖ das

visitas aos parentes, pela mobilidade que os leva da reserva a outros territórios indígenas, e

esta está estritamente vinculada pelos laços do ―mundo dos parentes‖. Para estas sociedades

toda e qualquer relação política implica uma rede de sociabilidade familiar, agregada por

laços de consanguinidade e/ou alianças políticas (como demonstrado no segundo capítulo).

Trazendo para a organização socioterritorial da RID, podemos considerar que na

maioria dos lotes, os mesmos são compartilhadas por parentes próximos, como pai, mãe e

filhos(as) e, juntamente com estes, genros e/ou noras e netos (ver Figuras VIII, IX e X,

considerando que as duas últimas figuras são referentes a família de Admiro e Antônia).

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Figura VIII - Organização socioterritorial da família dos Kaiowa Ñanderu Jorge e Ñandesy

Floriza na Reserva Indígena de Dourados (Jaguapirú)

Fonte: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3656. Elaborado pela autora.

Figura IX - Organização socioterritorial da família dos Kaiowa Ñanderu Admiro e Ñandesy

Antônia na Reserva Indígena de Dourados (Bororó)

Fonte: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3656. Elaborado pela autora.

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Figura X - Organização socioterritorial da família dos Kaiowa Ñanderu Admiro e Ñandesy

Floriza em desenho da filha Laudeci na Reserva Indígena de Dourados (Bororó)

Fonte: Desenho da aluna Ladeci, do Projovem129, 2010.

129

―O PROJOVEM Campo - Saberes da Terra oferece qualificação profissional e escolarização aos jovens

agricultores familiares de 18 a 29 anos que não concluíram o ensino fundamental. O programa visa ampliar o

acesso e a qualidade da educação à essa parcela da população historicamente excluídas do processo

educacional, respeitando as características, necessidades e pluralidade de gênero, étnico-racial, cultural,

geracional, política, econômica, territorial e produtivas dos povos do campo.

Implementado em 2005, a ação que se denominava Saberes da Terra integrou-se dois anos depois ao Programa

Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), cuja a gestão é da Secretaria Nacional de Juventude. O Projovem

possui outras três modalidades, Adolescente, Trabalhador e Urbano‖ (PORTAL MEC, 2011).

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Estas três figuras, acima, nos dão um panorama geral da organização socioterritorial

de duas famílias de rezadores Kaiowa na RID que buscam retomar os territórios

tradicionalmente ocupados. A localização da Oypysy nestas duas famílias demonstra que

ambas tem uma espacialidade muito exclusiva, de modo que traz a dimensão de que as redes

de sociabilidade se dão no entorno dos rezadores da família, e que ter uma casa de reza na

reserva, é um demonstrativo de ascensão político-religiosa na mesma.

Consideramos que as formas de organização socioterritorial na RID são amplas,

ultrapassam o território precário da RID, pois elas estão correlacionadas a outros espaços de

sociabilidade dentro (muito mais ampla do que demonstra a figura) e fora da reserva. O

compartilhamento territorial dentro de um lote na reserva, em sua maioria, ocorre com os

parentes de consanguinidade extremamente próximas, como os filhos e filhas do casal de

rezadores e, consequentemente, com suas esposas e esposos, seus filhos e filhas, que como

considerado pelos Kaiowa, serão aqueles que darão continuidade a família extensa.

Apesar de entendermos que estas relações devam ser melhor investigada, podemos

dizer que as relações dos filhos e filhas com os pais estão diretamente relacionadas aos modos

de organização social entre os Kaiowa, refletindo aos modos em que cada família se organiza

socioterritorialmente na RID. Segundo considera Levi Marques Pereira (1999), as filhas

normalmente continuam a morar com os pais ou na proximidade da casa dos mesmos após o

casamento, trazendo o genro para a família. Esta relação é muito perceptível na família de

Admiro e Antônia, pois as filhas são casadas e continuaram a morar no mesmo lote com os

pais.

Na família de Jorge e Floriza são os filhos homens que compartilham o lote com os

pais, em primeiro lugar, porque o casal tem, em sua maioria, filhos homens, e porque a

―saìda‖ destes da famìlia, desarticularia as relações de prestìgio que a mesma tem na reserva,

impossibilitando maior ascensão social na RID, principalmente no que concerne a

necessidade de prestígio político, que está diretamente relacionado aos espaços de morada e o

número de pessoas que conseguem articular em torno de si, onde os filhos e filhas são um

importante elemento destas relações, pois como considera o Kaiowa Jorge ―o filho que vai

levá a cultura pra frente‖.

O que é perceptível na organização socioterritorial das famílias na RID, é que as

territorialidades vividas por cada família estão diretamente relacionadas a um líder político e

religioso, aproximando-se da organização socioterritorial do Tekoha. Os novos

reordenamentos territoriais vividos pelos Guarani e Kaiowa na reserva, se faz pela

necessidade de trazer os parentes, principalmente os filhos, e juntamente com eles, os seus

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filhos e esposas para dentro dos espaços de sociabilidade organizados pelo ―cabeça de

parentela‖. Consideramos que nem todas as famìlias na RID se organizam desta forma, mas

no caso das lideranças religiosas e/ou políticas, este tipo de organização socioterritorial são

similares.

Ao trazer estas figuras para a compreensão da organização socioterritorial dos

Guarani e Kaiowa na RID, pudemos demonstrar que os mesmos se fazem construindo

territórios exclusivos em condição de reserva, considerando que esta exclusividade ultrapassa

as territorialidades vividas em cada lote (representada pela Figuras VIII, IX e X) , pois elas

são extremamente amplas e dinâmicas, já que as relações de parentesco é sempre uma

negociação permanente. Os que fazem parte das redes de sociabilidade de um grupo na

reserva, normalmente, mesmo em lotes diferentes, tem uma mobilidade permanente, de visita

aos parentes e/ou mesmo rotatividade de espaços de morada entre alguns membros da família.

Todavia, estas relações possibilitam a diferenciação de um grupo familiar sobre o

outro, cabendo dizer que estas diferenciações demonstram, sobretudo, as territorialidades em

disputa na reserva. A partir de Robert David Sack (apud Rogério Haesbaert 1999, p.36)

podemos dizer, que: esses espaços são utilizados ―[...] para moldar, influenciar ou controlar

[...]. Vendo a territorialidade, sobretudo, como uma estratégia, o território pode ser utilizado

para conter, restringir ou excluir pessoas, objetos ou relacionamentos. Assim, para Robert

David Sack: ―A territorialidade corresponde às ações humanas. Ou seja, à tentativa de um

indivíduo ou grupo para controlar, influenciar ou afetar objetos, pessoas e relações numa área

delimitada. Esta área é o território [...]‖ (apud SAQUET, 2009, p. 86).

Logo, estas relações de diferenciação são inerentes a multidimensionalidade do

vivido per estas sociedades, ―[...] que pode ser traduzido pelas diferenças, identidades e

desigualdades, ou seja, pelas territorialidades cotidianas: todos os processos espaço-temporais

e territoriais inerentes a [...] vida na sociedade e na natureza‖ (SAQUET, 2009, p. 85).

Desta forma, as relações estabelecidas entre os Guarani e Kaiowa, nos espaços de

sociabilidade da família extensa na reserva, demonstram que os territórios e territorialidades

de cada grupo familiar na RID se fazem construindo fronteiras, criando identidades territoriais

que estão diretamente relacionadas aos modos de viver em cada espacialidade da RID, e está

diretamente relacionada aos modos de organização socioterritorial no Tekoha, demonstrando,

fundamentalmente, que as territorialidades em condição de reserva são permeadas por

relações de poder e, por isso, estão sendo permanentemente disputadas.

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QUARTO CAPÍTULO

DA TERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA À

MULTITERRITORIALIDADE: ESTRATÉGIAS DE RE-EXISTÊNCIAS

―Encontrei muitas vezes na literatura que os Avá Kaiowa haviam perdido a

identidade e que não eram mais índios, e que era necessário resgatar a

cultura para que não desaparecêssemos e, ainda, que esse resgate teria que

ser realizado na escola. Essas opiniões me deixaram confuso e isso me levou

a pesquisar sobre o assunto. Ao termino da pesquisa, pude concluir que os

Kaiowa atuais são homens do seu tempo, que vivemos de maneira diferente

dos nossos ancestrais, pois, como seres históricos que somos, mudamos com o

tempo, interagindo em condições históricas diferentes. Entre o teko

ymanguare, modo de ser antigo, e o teko pyahu, modo de ser atual, existem

tanto continuidades quanto mudanças. Porém, isso não quer dizer que os Ava

deixaram de ser Ava; apenas são seres do seu tempo, um tempo atual tão

diverso que possibilita, inclusive, a produção de um teko reta, modo de ser

múltiplo, que permite experimentar uma variação de possibilidades nunca

vista antes na vida Kaiowa‖.

Kaiowa Tonico Benites (apud Marta Coelho Castro Troquez, 2006, p.07).

Neste capítulo, buscamos discutir as diversas estratégias de resistências e/ou re-

exitências Guarani e Kaiowa para além do território precário da RID, traçando as

multiterritorialidades vivenciadas ―dentro‖ e ―fora‖ da reserva que envolve especialmente as

territorialidades entre cidade e reserva, mas também, a participação de outras modalidades

territoriais, como as relações estabelecidas com as fazendas e os acampamentos. Por meio

destas relações, buscamos interpretar as territorialidades Guarani e Kaiowa a parir do

processo de produção e comercialização do artesanato, assim como na comercialização de

produtos agrícolas, como mandioca e milho que estão estritamente relacionados aos processos

de negociações de identidades nos múltiplos territórios transitados e vividos.

Estas relações implicam em novos modos de viver, que estão diretamente

relacionados aos mecanismos de resistência ao mundo moderno-colonial em que os Guarani e

Kaiowa estão inseridos e, assim, coloca-se em confrontamento com as ―coisas dos brancos‖,

ou seja, outros modos de viver, ampliando ainda mais as relações de encontro e desencontro

com o outro que estão sendo construídas no espaço-tempo. Desta forma, consideramos as

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identidades sempre em processo de fazer-se, ou seja, consideramos que as múltiplas

identidades podem ser acionadas ou negadas no espaço-tempo. Estas relações envolvem

negociações entre o Tekoyma e Tekopyahu que se faz entre indígenas e não indígenas, nas

ambiguidades de viver entre o ―mundo dos brancos‖ e o ―mundo dos ìndios‖.

4.1 – As múltiplas identidades Guarani e Kaiowa

Dialogando com as pontuações do Kaiowa Tonico Benites, acima, os Guarani e

Kaiowa passaram e passam por grandes transformações socioterritoriais, permitindo a estas

sociedades criarem novas formas de ser e estar no mundo sem deixar os referenciais do modo

de vida dos antigos – Tekoyma. Estas grandes mudanças no modo de vida destas sociedades

se dão prioritariamente a partir do encontro e/ou desencontro com o Karaí, que traz para o

mundo destas sociedades, novos processos de identificação de si e dos outros, construindo

novas fronteiras, construindo novos territórios que ampliam as territorialidades vividas no

espaço-tempo no/pelo encontro com o outro.

O novo modo de viver (Tekopyahu) confronta-se com o mundo que aí está, fazendo-

se na contramão dos ensinamentos deixados por Ñanderuvusu, impondo a estas sociedades

―adaptações‖ com a sociedade envolvente, ao mesmo tempo em que estas vão criando

necessidades da continuidade, fundamentalmente nas prerrogativas de que ―em toda mudança

existe continuidade‖ (como apontado por Marshall Shalins, 2007).

Pensando as identidades múltiplas, partindo do pressuposto de que as identidades

Guarani e Kaiowa passaram a ser ainda mais complexificadas a partir do contato com os

Karaí, a partir de Rogério Haesbaert (2007b, p.46) pontuamos:

[...] ocorre igualmente uma mutação nas formas da relação entre território e

identidade, tanto no sentido território-identidade, porque a territorialização

se tornou múltipla e complexa, afetando as nossas construções identitárias,

quanto no sentido identidade-território, pois os processos de identificação

nunca foram tão mutáveis nem estiveram afetados por tamanha

multiplicidade e/ou hibridismo cultural, repercutindo assim na intensificação

do fenômeno que denominamos de multiterritorialidade.

O contato com os não indígenas criou novas necessidades para o modo de vida

Guarani e Kaiowa, assim como impôs novos reajustamentos no que confere aos processos de

territorialização. No tocante às mudanças e continuidades, o Kaiowa Tonico Benites (2009, p.

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49; 100) elucida o debate em torno das mudanças identitárias Guarani e Kaiowa a partir da

dimensão da educação escolar:

Para as famílias Kaiowa, principalmente nas aldeias foram apresentadas

diversas estratégias educativas e um modelo de vida ideal, etnocêntricos,

com o intuito de desvalorizar os métodos próprios de educação e de ser e

viver das famílias indígenas. Assim, se começou a ensinar e socializar os

modos de se vestir, alimentar, namorar, casar, punir, adorar a Deus, tratas as

doenças, ler e escrever etc. Em decorrência disso, as famílias passaram a se

deparar com um leque de possibilidades de experimentar elementos culturais

diversificados. [...]. Claramente é entendido que apesar de incorporação dos

elementos culturais e saberes do Karaí Reko, não se deixaria de ser Ava

Kaiowa. [...].

Enfim, considera-se que em decorrência da presença e do avanço da

tecnologia, com a ampla difusão e uso de computador, internet e outros

aparelhos sofisticados nas escolas, aldeias e entorno, surgem outras

curiosidades e novas exigências por parte das famílias indígenas para se

apropriarem adequadamente desses recursos tecnológicos. Coloca-se, assim,

em evidencia a necessidade e a urgência de repensar as atividades das

escolas indígenas em vigor e reproduzir constantemente um novo Projeto

político pedagógico que leve em consideração todos estes fatores. Desse

modo é entendido que esta escola indígena nas aldeias deve atender as

demandas reais das famílias interessadas, e não ter papel somente de

caricaturizar e julgar os elementos culturais apropriados e resignificados

pelos Kaiowa. Deve-se ao contrário, estar a serviço da diversidade de ser e

de viver de cada família extensa contemporânea, o Ava kuera reko reta

(―modo de ser múltiplo‖).

O autor se remete às transformações no modo de vida destas sociedades a partir da

inserção da educação formal nas reservas, tendo em vista que esta forma de educação não

indígena buscou desarticular os modos de educação tradicionais inerentes aos espaços de

sociabilidade da família Guarani e Kaiowa. Assim, a escola teve como principal objetivo

desarticular os modos de viver destas sociedades, buscando impor o modo de viver do não

índio.

Todavia, é necessário ressaltar que a escola trouxe novas necessidades e incorporou

novos elementos no modo de vida destas sociedades, possibilitando que experimentassem

elementos culturais diversificados e criando a demanda de se apropriarem adequadamente dos

recursos tecnológicos disponíveis. Estas mudanças possibilitaram um modo de ser ainda mais

múltiplo, que passa fundamentalmente pelas relações com o ―mundo do branco‖, pois se ―o

sistema do branco é o sistema do papel‖, considerado pelo Kaiowa Ñanderu Admiro, é

necessário que estas sociedades aprendam a trabalhar com o papel para negociar com o

―branco‖.

Neste contexto, as sociedades indígenas estão negociando com os elementos externos

de seu modo de vida, de forma expressiva com os ―brancos‖. Diferente do passado, as

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territorialidades vivenciadas hoje ―dentro‖ e ―fora‖ da reserva se tornaram ainda mais

múltiplas, assim como as identidades acionadas. As múltiplas identidades são

fundamentalmente parte das relações com os outros, no sair e entrar de territórios, que

possibilita a construção de múltiplas territorialidades vivenciadas no trânsito de entrada e

saída.

Neste contexto, é no território que as gentes vão construindo suas identidades, tendo

sempre a seu alcance uma identidade de referência, podendo se localizar no mundo

encontrando o outro, e a partir dele criar múltiplas identidades, ao mesmo tempo sem perder a

referência da sua identidade étnico-cultural primária. Esta identidade de referência só é

possível de ser construída estabelecendo-se comparação a outras identidades, possibilitando

sua construção e a recriação, pois a identidade só é possível de ser adquirida no contato, no

processo de diferenciação dos ―outro-eu‖.

Nesta perspectiva, as referências de mundo na formação das identidades se fazem

pela recriação e apropriação de novos modos de pensar e fazer-se humanamente, a partir dos

lugares transitados e vividos. De acordo com Douglas Santos (2002, p. 23) ―[...] a identidade

do indivíduo realiza-se na construção da identidade dos lugares [podendo-se afirmar] que a

construção cultural da humanidade é, entre outras coisas, a construção de sua geografia [...]‖

(grifo nosso). Dessa forma, os sujeitos geo-grafam os lugares, traçando suas histórias-

trajetórias de vida. ―Entendendo que o ato de localizar-se (ou perder-se) impõe uma unidade

entre objetividade/subjetividade e sua alteridade - o não humano, as marcas territoriais

conhecidas contra as não conhecidas, o significado operacional e mítico de cada ato/lugar

[...]‖ (SANTOS, 2002, p. 23).

Paul Claval (1999, p.16) é elucidativo quando aponta que o:

[...] sentimento identitário [que] permite que se sinta plenamente membro de

um grupo, dotá-lo de uma base espacial ancorada na realidade [...]. Os

problemas do território e a questão da identidade estão indissociavelmente

ligados: a construção das representações que fazem certas porções do espaço

humanizado dos territórios é inseparável da construção das identidades. Uma

e outra, estas categorias são produtos da cultura, em um certo momento, num

certo ambiente.

Por isso, podemos considerar que as identidades dos lugares, e/ou os lugares das

identidades, são também construções simbólico-imateriais, e muitas vezes, para as gentes, as

identidades em ―transe‖ torna-se inviabilizadas de serem ―vistas‖, mas são plenamente

passíveis de serem sentidas-vividas por aqueles que estão afirmando e negando identidades no

espaço-tempo. Carlos Rodrigues Brandão (1986, p. 07) aponta que:

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[...] o outro sugere ser decifrado, para que os laços mais difíceis de meu eu,

do meu mundo, de minha cultura sejam traduzidos também através dele, de

seu mundo e de sua cultura. Através do que há de meu nele, quando, então, o

outro reflete a minha imagem espelhada e é às vezes ali onde eu melhor me

vejo. Através do que ele afirma e torna claro em mim, na diferença que há

entre ele e eu.

As múltiplas identidades coletivas e individuais só são possíveis de serem traduzidas

no contato com o outro nas relações multiterritoriais. Os processos de identificação e de

diferenciação estão sendo construídos no espaço-tempo, considerando que toda forma de

identificação é por si só um processo de diferenciação, pois compreendemos que o outro só

existe sobre e em comparação ao ―nós‖, nos múltiplos territórios transitados e vividos, onde

as múltiplas identidades estão sendo negociadas e construídas.

A mobilidade permite que os homens e mulheres construam, produzam, criem,

inventem, reinventem identidades, possibilitando nos deslocamentos das fronteiras do

encontro com o outro, a criação de multiterritorialidades. No ―ir e vir‖ das gentes, cada modo

de viver em uma ―delimitada‖ porção territorial, como é visualizado no processo de

territorialização precária na RID, se reconfigura em novos redimensionamentos territoriais

que, através da passagem que liga um território a outro e/ou mesmo a construção do outro,

possibilita a criação de territorialidades múltiplas.

A partir de Homi Bhabha (1998) podemos dizer que este trânsito se faz em entre-

lugares de encontros e desencontros que possibilitam a reorganização das identidades no

campo do ―indefinìvel‖, no qual novas identificações vão se fazendo e se refazendo

continuamente.

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ―o novo‖ que não

seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo

como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o

passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado,

refigurando-o como um ―entre-lugar‖ contingente, que inova e interrompe a

atuação do presente. O ―passado-presente‖ torna-se parte da necessidade, e

não da nostalgia, de viver (BHABHA, 1998, p.27).

Na presença do fazer-se, o que os Guarani e Kaiowa nos colocam é que a partir das

novas conjunturas sociais estes inventaram, instituíram ou desenvolveram novas redes de

convenções e rotinas, atualizando modos de vida a partir dos referenciais do Tekoyma.

Consideramos, a partir de Marshall Sahlins (2007, p. 531), que ―[...] elas revelam suas

propriedades pela maneira com que reagem às diferentes circunstâncias, organizando as

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circunstâncias de formas específicas e, como se constata, alterando suas formas de maneiras

especìficas [...]‖.

Novos modos de vida são adquiridos pelo/no contato, sendo necessário percebermos

o caráter de atualização e manutenção dos modos de vida no espaço-tempo. Essas

atualizações podem ser demonstradas por Atanás (Xamã ou cacique) de Ñande Ru

Marangatu, ao assinalar que mesmo os Kaiowa tendo passado por diversas transformações,

abandonando algumas práticas tradicionais, estes ainda serão reconhecidos pelo Deus

supremo (Pa‘i kuara).

... Sempre seremos irmãos dos Ñande Rykey [Deuses]. Apesar de hoje

usarmos roupas diferentes e enfeites diferentes dos Ñande Rykey, eles vão

nos reconhecer por meio de colar, voz, ñembo‘e, jeguaka etc. Com estes

enfeites, vão nos reconhecer.

Mesmo nós tendo errado porque não nos comportamos mais como eles;

mesmo que vivamos já diferentes deles, pois ficamos bêbados, violentos,

brincamos muito; mesmo que nossas roupas, alimentos, atitudes, modo de

ser, sejam diferentes de Nossos Irmãos; mesmo que queiramos ser diferentes

deles, isto é impossível porque eles são Nossos Irmãos legítimos, são nosso

princípio, sempre gostam de nós! Eles aceitam, não estão nos excluindo por

causa de nossos novos comportamentos.

Eles têm a missão e a obrigação de cuidar dos seus irmãos menores em

qualquer situação. Eles também têm medo de Pa‘i Kuara, o irmão maior e

supremo e que cuida da luz do mundo. Se Nossos Irmãos não cuidarem bem

de nós, ele (Pa‘i Kuara) pode apagar a luz. Isso será difìcil, não só para nós,

mas para todos no mundo, isto é, para todos os seres vivos da Terra e dos

yváy. Por isso que o fim do mundo está nas mãos de Pa‘i Kuara. Mas este

tem afirmado definitivamente que não apagará a luz, não neste tempo, visto

que nem nós ñanderu na Terra nem os Ñande Rykey concordam com que

ocorra o fim do mundo. Punições aos povos de diversas formas, isso sim! Os

crentes anunciam que vai acabar o mundo, mas é mentira; às vezes alguns

ñanderu também falam a mesma coisa, mas não é verdade. O único que sabe

é Pa‘i Kuara (Ñande Ru Marangatu, 06 de agosto de 2000 – apud MURA,

2006, p. 248-249).

As relações e, por sua vez, as negociações dos Guarani e os Kaiowa com a sociedade

envolvente, seja esta indígena e não indígena, culminam na construção de múltiplas

identidades. Os homens e mulheres do mundo criaram e criam diversas formas de explicar

seus jeitos, gestos e gostos, a fim de terem pontos de referência para explicar suas formas,

normas e regras frente aos outros, ou seja, aos não pertencentes ao seu modo de vida. A

afirmação da identidade mostra que meio a um processo de trocas culturais os Guarani e

Kaiowa continuam a ter referências que os distinguem dos outros, criando também modos em

que os aproximam e/ou os distanciam, redefinindo modos múltiplos de ser Guarani e Kaiowa,

construindo/redefinindo assim, uma multiplicidade de identidades que se fazem no espaço-

tempo.

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251

Compreender estas múltiplas identidades Guarani e Kaiowa, passa

fundamentalmente pela necessidade de entendimento do que cada sociedade indígena entende

ser ela mesma, principalmente do que é ser indígena. Para Eduardo Viveiros de Castro (2009)

a identidade indígena se liga a uma premissa chave, de que no Brasil ―todo mundo é índio,

exceto quem não é‖. A concepção de ìndio e de não ìndio está intrinsecamente relacionada ao

sentimento de pertencimento do indivíduo como membro de um grupo étnico e/ou sociedade,

considerando que o papel do antropólogo (podemos dizer de todos os cientistas sociais,

inclusive os geógrafos), é ―[...] criar condições teóricas e polìticas para permitir que as

comunidades interessadas articulem sua indianidade‖ (CASTRO, 2009, não paginado).

Consideramos, também, ser possível afirmar que ser ou não ser indígena na

sociedade atual ―[...] não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de

aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de ‗estado de

espìrito‘. Um modo de ser e não um modo de aparecer‖ (CASTRO, 2009, não paginado). As

identidades que definem os outros, no caso os indígenas, devem ser pensadas para além das

identificações dominantes que, a priori, tentam definir quem é o outro.

O autor considera que as sociedades não indígenas têm um imaginário sobre os

indígenas muitas vezes atrelados a uma condição de passado relacionada à história da

colonização, em que estas sociedades aparecem de forma descompassada com a realidade

presente, como se a condição de ―ser‖ ìndio se fizesse por meio de um arco e flecha na mão e

cocar na cabeça.

Uma das grandes contribuições do autor é dizer que não são os cocares, colares,

arcos e flechas que devem definir a indianidade de uma sociedade e/ou de um grupo étnico-

cultural, mas sim o modo em que estas sociedades se reconhecem e são reconhecidas entre si,

nos distintos e diversos modos em que negociam a identidade indígena com outras sociedades

indígenas e não indígenas.

Os Guarani e Kaiowa negociaram, resistiram, criaram e recriaram possibilidades

múltiplas de re-existir. Nesta perspectiva, hoje, nos diversos contatos em que travaram no

espaço-tempo, se mobilizam em movimentos de re-existências, de recriação e invenção de

identidades no/pelo contato com o outro. Logo, partimos da premissa de que a identidade não

se perde, como se fosse possível uma identidade dominante se sobrepor a outra subalterna,

impondo-lhes modos de viver, como atenta as teorias de aculturação130, que em linhas gerais

uma cultura dominante se sobrepõe à outra.

130

O conceito e/ou termo aculturação foi durante muito tempo utilizado para se avaliar que o contato entre duas

culturas diferentes implicaria na perda da cultura entre uma delas. Segundo Paula Monteiro (2006, p. 35) ―[...]

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252

O que estas relações de contatos com os outros nos colocam é que o diferente, entre

encontros e desencontros, permite sempre renegociações de identidades, porque estas não

estão pré-determinadas, pré-definidas, pois as identidades se fazem no espaço-tempo. Como

demonstra Doreen Massey (2008, p. 174; 177) esta relação se dá por que:

[...] não são apenas histórias enterradas que estão em questão aqui, mas

histórias ainda sendo feitas, agora [...]. Mas o faz não apenas, como é

geralmente argumentado, mercantilizado ―o passado‖, mas também

recusando-se a reconhecer as histórias que estão em processo através do

presente.

Assim, é notório que nestas multiplicidades de relações que possibilitam

renegociações identitárias, estabelecemos diálogo com Carlos Rodrigues Brandão (1986, p.

155) em torno das discussões de ―Identidade e Etnia‖, permitindo pensá-las como

manifestações não existentes ―[...] sob a forma de um repertório dado, estável e facilmente

reconhecível, de sentimentos e idéias, regras e ornamentos do corpo. Mas, onde quer que

situações concretas o exijam, ela, a identidade étnica, é construìda‖. Assim, muito mais do

que construída, a identidade é redefinida a partir das condições do presente. Portanto, não são

as estruturas que se fazem presente, mas as ―desestruturações‖ das identidades tornando-as

ainda mais múltiplas, plurais e mutáveis, permitindo que as identidades possam ser

construídas e redefinidas no espaço-tempo de encontro e desencontro com o outro.

Darcy Ribeiro (apud Manuela Carneiro da Cunha, 1998) considera que a identidade

indígena é construída pelo reconhecimento de si e dos outros participantes do ethos coletivo.

Também consideramos que este reconhecimento tem participação dos de ―fora‖, aqueles que

estão do outro lado, buscando definir e inventar o outro, assim como quem é índio e quem não

é. Podemos dizer que a identidade étnica pode também ser traduzida como ―herança‖,

necessariamente naquilo que permite a continuidade de um modo de vida atrelado ao

antigamente, no caso dos Guarani e Kaiowa, ao Tekoyma, nas redes de sociabilidade que

No processo da antropologia brasileira sobre o contato entre índios e brancos, essa problemática foi marcada

pelo menos até a década de 1970 [...]‖. Para melhores esclarecimentos, ver obra de Egon Schaden. Aspectos

fundamentais da cultura Guarani, 1974. Contudo, é necessário diferenciarmos aculturação de transculturação,

pois diferente de aculturação, o termo transculturação traz a necessidade de pensarmos as culturas hibridas, nos

modos em que as culturas vão se interagindo uma na outra, a partir de um processo de devoração em sentido

duplo, uma cultura devorando a outro, pois como considera Rogério Haesbaert (2011 – não paginado), ―A vida é

devoração pura‖. Assim, transculturação ―é um processo de zona de contato‖, como diria Stuart Hall (2009,

p.31), podendo dizer que nos encontros e desencontros com o outro, torna-se impossível não haver trocas

culturais, pois diferente da ideia de aculturação, no sentido de que uma cultura dominante se sobrepõe sobre a

outra, é necessário considerar que ―[...] Através da transculturação ―grupos subordinados ou marginais

selecionam e inventam a partir dos materiais a eles transmitidos pela cultura metropolitana dominante [havendo

entrecruzamentos de histórias e trajetórias, pois há interações sociais – socioculturais, já que há interações

territoriais]‖ (HALL, 2009, p.31).

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253

propiciam o processo de transmissão da cultura enquanto uma construção social. Contudo,

esta construção se faz no mesmo movimento em que a identidade indígena se atualiza a partir

das condições do presente, do novo modo de vida - Tekopyahu, permitindo a construção de

outras identidades.

Pode-se dizer, fundamentalmente, a partir de Homi Bhabha (1998, p.228), que a

identidade é constituìda a partir ―[...] do lócus do Outro, o que sugere que o objeto de

identificação é ambivalente e ainda, de maneira mais significativa, que a agência de

identificação nunca é pura ou holística, mas sempre construída em um processo de

substituição, deslocamento ou projeção‖.

No que concerne às mudanças em torno de uma cultura, considerando as negociações

identitárias que estabelecemos com o outro, Zygmund Bauman (2005, p.17-18) elenca que:

[...] a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante

negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma,

os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se

manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ―pertencimento‖

quanto para a ―identidade‖.

As identidades vão se fazendo e se desfazendo nos imbricamentos das

territorialidades vivenciadas, no trânsito do viver entre fronteiras, logo, entre múltiplos

territórios, permitindo diversas formas de identificação com o espaço e com as gentes dos/nos

espaços vividos, assim como possibilitam a participação de territorialidades múltiplas, já que

há a intensificação dos encontros com o outro, até então desconhecidos.

Pensando esta multiplicidade, a identidade é um fator de ampliação do modo de vida

Guarani e Kaiowa, já que também estes passam a acionar a identidade nacional brasileira,

podendo ser exemplificada na garantia de direitos, principalmente, o direito originário sobre

os territórios tradicionalmente ocupados, garantido pela Constituição Federal de 1988 (2006).

Para Stuart Hall (2004, p.75-76), a afirmação de uma identidade não anula outras identidades,

pois no caso da identidade nacional, consideramos ainda, que esta participa de um conjunto de

identificações das gentes no espaço-tempo, no sentido de que:

[...] As identidades nacionais, como vimos, representam vínculos a lugares,

eventos, símbolos, histórias particulares. Elas representam o que algumas

vezes é chamado de uma forma particularista de vínculo de pertencimento.

Sempre houve uma tensão entre essas identificações mais universalistas –

por exemplo, uma identificação maior com a ―humanidade‖ do que com a

―inglesidade‖ (englishness). [...] somos confrontados por uma gama de

diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo

apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma

escolha [...].

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254

As identidades acionadas e/ou negadas se constroem envolvendo-se em processos de

representação social no espaço-tempo, sendo representadas de acordo com as necessidades em

que estão e são inseridas, mediadas sempre por relações de poder. A necessidade de alguns

Guarani e Kaiowa acionarem a identidade brasileira, seja na escola ou nas redes sociais em

que participam, significa que os mesmos estão acionando múltiplas identidades que são

fundamentalmente parte indissociável da identidade étnica.

As diversas formas em que as gentes se posicionam no cenário social fazem parte das

identificações socialmente construídas no espaço-tempo, nas mobilizações com os lugares-

territórios identificados e nas identidades que se reconhecem e/ou identificam-nos. Por

exemplo, não há necessidade de nos auto-identificar enquanto brasileiros no Brasil, mas caso

estejamos em outro país, a identidade nacional poderá ser acionada.

Ao conversarmos com um dos atores do filme Terra Vermelha, um jovem Kaiowa da

Terra Indígena Panambizinho, em Mato Grosso do Sul, o mesmo salientava que quando

participava do lançamento do filme, na Europa, ao conversar com os europeus, se identificava

de diversas formas, transitando por um conjunto de identidades que, apesar de estarem

atreladas ao ser Kaiowa, se articulavam em torno desta identidade maior que passava pela

identidade sul-americana, brasileira, sul-matogrossense e indígena. Logo, as identidades

territoriais que buscavam ―localizar‖ os Kaiowa no mundo, fazia-se concomitantemente pela

identidade étnica Kaiowa, sendo a principal expressão de identificação e diferenciação com os

outros não Kaiowa.

Dessa maneira, para este jovem Kaiowa, a identidade étnica, que é por sua vez uma

identidade coletiva, possibilitava sua diferenciação (assim como identificação) de todos os

outros europeus, brasileiros, sul-matogrossenses e indígenas. É a partir da identidade

individual e coletiva que as gentes se fazem distintamente de outras gentes. Para Paul Claval

(2007, p. 98) ―a identidade é de uma só vez individual e coletiva. As atitudes, os gostos e a

experiência variam em cada pessoa, mas a interiorização, que torna consciente, no decorrer da

adolescência, os valores a respeitar, tende a impor uma mesma forma à imagem que se faz de

si mesmo‖.

As múltiplas identidades que permeiam o universo Guarani e Kaiowa são acionadas

de acordo com determinadas conjunturas sociais, de modo que tais identificações e

diferenciações aparecem no âmbito das redes de relações sociais no/nos território(s). Neste

sentido, podemos dizer que os Guarani e Kaiowa, no caso específico da RID, vivenciam

multiterritorialidades, transitando e interagindo espacialmente, assim como, negociando

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255

múltiplas identidades no processo de des-re-territorialização, ou seja, na ―saìda‖ e ―entrada‖

de territórios.

A construção de identidades parte sempre de um ―ponto central‖, no caso ―Ser‖

Guarani e Kaiowa é a condição sine qua non da diferenciação frente aos outros que também

se identificam, sejam trabalhadores, cantores de Hip Hop, estudantes, entre outras identidades.

Os indígenas, cortadores de cana-de-açúcar, estes são proletários, especificamente,

trabalhadores rurais assalariados do agronegócio/agroindústria sucroalcooleira que trabalham

no corte de cana-de-açúcar, junto aos alagoanos e os Terena, mas, diferentemente destes, são

Guarani e/ou Kaiowa. Cabe salientar que dentro dos processos de reconhecimento e

diferenciação frente aos outros na usina Debrasa, estes têm com referência na identidade

étnica, múltiplas formas de fazer-se enquanto tal.

A afirmação da identidade se faz nos distintos territórios em que acionar identidades

diversas é uma estratégia de re-existência, já que sua afirmação e/ou negação depende das

relações com o outro, quando lhe é necessário acionar ou negar uma identidade. De forma

simplificada, entre os que pertencem ao ―nós coletivo‖, ou seja, a identidade étnica, não há

necessidade de diferenciação entre si. Contudo, há outras formas de diferenciação que estão

estritamente relacionadas à participação social do indivíduo na sociedade, tais como as

identificações com as famílias extensas dentro da RID, quando estes são identificados como

―membros da famìlia fulano de tal‖. Temos, também, as hierarquias internas estabelecidas

culturalmente que elegem as lideranças e/ou rezadores que se diferenciam dos demais por

suas qualidades entendidas como necessárias para manter a coesão do coletivo. Neste sentido,

a grande questão a considerar a partir de Stuart Hall (2004, p.21) é que:

Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é

interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas, pode ser

ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes,

descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de

classe) para uma política de diferença [...].

Nas mediações entre a identidade social e a identidade étnico-cultural, há identidades

que não se apresentam como um todo visível, facilmente identificadas na fronteira do

encontro e desencontro com o diferente, em um vir-a-ser de identidades negociadas. Assim,

algumas identidades se ―escondem‖ nas relações entre-territórios, entre-identidades, como

pontua Rogério Haesbaert (2007), não sendo perceptíveis à primeira vista, mas estão sempre

em negociação de acordo com as conjunturas sociais.

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As identidades Guarani e Kaiowa estão sendo construídas de distintas maneiras,

podendo ser visualizada por meio da reprodução de objetos materiais de sua cultura, no caso,

destacamos a importância da reprodução do artesanato como uma forma de recriação e

reinvenção dos novos modos de viver, que está diretamente relacionado às negociações com o

Karaí no espaço-tempo.

4.1.1 - Os marcadores de diferenciação entre os Guarani e Kaiowa e a construção de

multiterritorialidades a partir do artesanato

De antemão, consideramos que o artesanato é para os Guarani e Kaiowa um novo

modo de negociar as identidades que estão sendo construídas no encontro com o outro,

fundamentalmente, com os Karaí. De modo que a transformação na relação com os objetos

materiais de sua cultura é parte integrante das transformações nas suas relações sociais. Para

estas sociedades, no Tekoyma, esses objetos, que são símbolos de sua cultura, tinham somente

valor de uso e, hoje, é, também, parte das relações de troca que propiciam aquisição de renda

para as famílias e, assim, auxiliam na sua reprodução material e cultural. Desta forma,

consideramos que o artesanato é um elemento de resistência e/ou re-existência aos novos

modos de viver imposto aos Guarani e Kaiowa, sendo assim é parte do processo de recriação

de um modo de vida.

Neste sentido, acrescentamos que a cultura material é a relação de como os objetos

fazem parte de um modo de viver e não está dissociada dos modos em que as gentes se vêem

e se enxergam no mundo, assim como vêem os outros no mundo. A cultura material é um

conjunto de simbolismos indissociáveis de um modo de viver, pois como considera Mércio

Pereira Gomes (2009, p.35) a cultura ―[...] é todo o complexo que inclui conhecimentos,

crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo

homem como membro de uma sociedade‖. Ainda elencamos a partir do autor, que:

Cultura é o modo próprio de ser do homem [e da mulher] em coletividade,

que se realiza em parte consciente, em parte inconsciente, constituindo um

sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se,

posicionar-se perante o absoluto, e, enfim, reproduzir-se (GOMES, 2009, p.

36).

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É neste sentido que consideramos o artesanato como parte da cultura Guarani e

Kaiowa, sendo um elemento importante do modo de vida destas sociedades e, também, um

importante marcador de diferenciação, sendo que a partir dele os grupos marcam e demarcam

suas identidades. Por exemplo: na produção de cocares de diversos tipos estes podem ser

marcadores de diferenciação a partir do que se entende ser tradicionalmente Guarani e

Kaiowa. Nestas identificações de ser e pertencer a uma rede de relações sociais distintas, os

aspectos culturais nas fronteiras, através da produção artesanal, é um importante elemento de

distinção, desde os modos de produção das peças até o processo de venda e compra. Sendo

que além da multiplicidade de identidades que são construídas a partir da produção e

distribuição do artesanato, estes aparecem como um importante meio de subsistência.

Dessa forma, é importante considerarmos que dentre os deslocamentos territoriais

praticados pelos Guarani e Kaiowa, que os possibilitam experimentar novas

multiterritorialidades, podemos destacar a importância que tem o processo de produção e

comercialização do artesanato para concretização desse processo.

O processo de construção do artesanato se faz nas negociações de viver entre-

territórios, através de meios técnicos de trabalhos, possibilitando a circulação dos Guarani e

Kaiowa na compra e venda de objetos, a partir da construção de territórios-rede. Sobre

territórios-rede Rogério Haesbaert (2007, p. 279-280) aponta que:

Talvez seja esta a grande novidade da nossa experiência espaço-temporal

dita pós-moderna, onde controlar o espaço indispensável à nossa reprodução

social não significa (apenas) controlar áreas e definir ―fronteiras‖, mas,

sobretudo, viver em redes, onde nossas próprias identificações e referenciais

espaço-simbólicas são feitas não apenas no enraizamento e na (sempre

relativa) estabilidade, mas na própria mobilidade – uma parcela expressiva

da humanidade identifica-se no e com o espaço em movimento, podemos

dizer. Assim, territorializar-se significa também, hoje, construir e/ou

controlar fluxos/redes e criar referenciais simbólicos num espaço em

movimento, no e pelo movimento.

O artesanato possibilita acessos/conexões a múltiplos territórios, construindo novas

formas de viver estabelecidas a partir das relações com o Karaí. O processo de produção e de

distribuição do artesanato deve ser considerado como um mecanismo de resistência, pois o

artesanato sendo utilizado, também, como uma atividade comercial é um importante elemento

para compreendermos as novas estratégias de ser e estar no mundo Guarani e Kaiowa, que

passa pela necessidade de ―arrumar o dinheirinho‖, como considera a Kaiowa Alzira. Assim,

é partir da comercialização do artesanato que os Guarani e Kaiowa obtêm recursos financeiros

para comprar alimentos, roupas, sapatos... Ou seja, são novas relações que tiveram que

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incorporar a sua cultura, aprender a negociar, que é parte integrante do ―mundo dos brancos‖,

mas passa, também, a ser parte do ―mundo dos ìndios‖.

Mas, este negociar é feito com outra racionalidade, tendo em vista que o mesmo traz

uma multiplicidade de relações que se colocam em confronto com as territorialidades-

temporalidades dominantes que foram impostas pela sociedade moderna-colonial, assim é

uma importante experiência de resistência. As multiterritorialidades engendradas a partir das

formas de produção e comercialização do artesanato se fazem chocando uma multiplicidade

de temporalidades-territorialidades, de modos de viver, pois o objetivo final não é a produção-

comercialização com intenção de acumulação, mas com o objetivo de conseguir o dinheiro

enquanto forma de trocar por mercadorias necessárias à sobrevivência. Isto quer dizer que é

uma relação que se constrói a partir de fundamentos não capitalistas.

Esse processo de produção e comercialização que se faz por meio das negociações

estabelecidas entre indígenas e não indígenas, além de significar a resignificação de sua

cultura, permite estabelecer relações com os ―de fora‖: os que não são da famìlia, os que não

pertencem a sua etnia, os da cidade, os não índios, os turistas etc. Dialogando, assim, com

outros territórios e territorialidades como forma de re-existirem e continuarem sendo Guarani

e Kaiowa, mas agora com outras experiências espaços-temporais131.

Dessa forma, os territórios se fazem construídos a partir de outros territórios, ou seja,

interconectados em redes, numa mescla entre territórios fixos e móveis. Fundamentalmente, o

que Joël Bonnemaison apud Rogério Haesbaert (2007, p.280) aponta:

[...] um território, antes de ser uma fronteira, é primeiro um conjunto de

lugares hierarquizados, conectados a uma rede de itinerários [...]. A

territorialização [....] engloba ao mesmo tempo aquilo que é fixação

[enraizamento] e aquilo que é mobilidade, em outras palavras, tanto os

itinerários quanto os lugares.

Neste contexto, estamos exemplificando o papel do artesanato como meio de

mobilidade territorial e de construção de múltiplas identidades. Os processos de construção

dessas identidades se dão conectadas às relações sociais entre um território e outro, assim

como no encontro de uma identidade e outra. A produção e distribuição do artesanato se

fazem conectando reservas e cidades, reservas e acampamentos, reservas e fazendas, entre

outras modalidades territoriais, havendo a necessidade de explicitar que não ocorrem

necessariamente nesta ordem.

131

O mesmo exemplo vale para venda da mandioca na feira. Também, a realidade dos acampamentos de

retomadas de territórios indígenas, de fazendas e das cidades é um exemplo dessa construção multiterritorial e de

resistência dessas sociedades.

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As narrativas dos Ñanderu e Ñandesy Jorge e Floriza e Antônia e Admiro são

expressões da multiterritorialidade Guarani e Kaiowa, construídas a partir de territórios-rede

nas relações de produção (coleta, caça e compra de objetos) e de distribuição (venda, troca

simbólica132) do artesanato (ver figura XI).

Na grande maioria das vezes, esta passagem de um território a outro liga-se a redes

de sociabilidade destas famílias, ou seja, laços afetivos que se fazem por relações de

parentesco e/ou alianças políticas. No que concerne às fazendas, na grande maioria das vezes,

este trânsito se dá nas proximidades aos territórios tradicionalmente ocupados, em suma, nas

territorialidades vividas no Tekoyma.

Nesse sentido,

[...] Se o território hoje, mas do que nunca, é também movimento, ritmo,

fluxo, rede, não se trata de um movimento qualquer, ou de um movimento de

feições meramente funcionais: ele é também um movimento dotado de

significado, de expressividade, isto é, que tem um significado determinado

para quem o constroem e/ou para quem dele usufrui (HAESBAERT, 2007,

p.281).

Esta passagem que liga um território a outro pode ser adentrado de múltiplas formas.

Assim, há necessidade de perguntarmos quais são os papeis dos carros, celulares, motos,

ônibus, bicicletas, charretes, entre outros objetos de comunicação e transporte, identificados

como sendo do mundo não indígena, e apropriados pelos indígenas? Entendemos que eles

possibilitam a criação de identidades ainda mais múltiplas, possibilitando o acesso e/ou

trânsito a outros territórios com maior velocidade de tempo.

132

As trocas simbólicas são parte das relações da economia da reciprocidade das sociedades Guarani e Kaiowa,

denominado Jopói. Esta palavra na língua guarani significa ajuda ou reciprocidade, sendo esta uma prática

econômica que envolve fundamentalmente as relações com o outro (MELIÀ; TEMPLE, 2004).

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Figura XI - A Reserva Indígena de Dourados e a construção de multiterritorialidades Guarani e

Kaiowa na produção e circulação do artesanato a partir de territórios-rede

Fonte: Elaborado pela autora da pesquisa.

O Kaiowa Ñanderu Jorge (2010) aponta que:

Antigamente se vai andando, andando memo, andando... vai andando

assim, passa muito dia esse daí, mais vai indo... Agora o cê pergunta de hoje

diante, é diferente. [...] tem o carro, a moto do fio [filho], essa coisa que a

gente vai e chega mais rápido. Ai vai na cidade, vai visita um parente, vai

indo tudo... o duro é que o carro, é num funciona, é muito véio... o branco

tem o carro e vai rápido e o índio fica oiando [olhando] lá atrás. Mai

melhora. [...]. Ai tem o celular, né [...]. Dá até pra visitá o parente, avisa

ele lá e vai. Antigamente é diferente... (risos)‖.

Jorge demonstra que os objetos identificados como de ―brancos‖ são apropriados

pelos indígenas (mas ainda com menor acesso do que o não índio) e possibilitam novas

configurações da identidade e novos reordenamentos territoriais, da mesma forma que as

multiplicidades de pertencimento tornam-se ainda mais complexas, possibilitando com maior

velocidade a participação em outras territorialidades. Rogério Haesbaert (1997, p. 344)

considera que:

A principal novidade é que hoje temos uma diversidade ou um conjunto de

opções muito maior de territórios/territorialidades com os/as quais podemos

―jogar‖ com uma velocidade (ou facilidade, via internet, por exemplo) muito

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maior (e mais múltipla) de acesso e trânsito por essas territorialidades – elas

próprias muito mais instáveis e móveis – e, dependendo de nossa condição

social, também muito mais opções para desfazer e refazer constantemente

essa multiterritorialidade.

A partir do autor, podemos dizer que a tecnologia propicia, para aqueles que têm

acesso, maior velocidade de deslocamento no mundo. Para os Guarani e Kaiowa em escala

local, no ―ir‖ e ―vir‖ de um lugar a outro, pois dependendo do poder financeiro das famìlias,

àquelas que têm melhores condições de acesso à tecnologia, maior velocidade exercerá no

trânsito entre um território e outro, vivenciando e construindo multiterritorialidades. Portanto,

para compreender o trânsito entre um território e outro no Tekopyahu, é necessário que se

compreenda as novas formas de deslocamento territorial entre os Guarani e Kaiowa.

Podemos dizer, que esta mobilidade é possibilitada por novos meios técnicos que

passaram a fazer parte dos modos de viver destas sociedades, podendo ser exemplificado pelo

uso do aparelho telefônico celular, pois consideramos que este é um importante meio de

transitar por outras territorialidades, ―acessar‖ os parentes do outro lado do celular,

estabelecer diálogos na língua guarani, reforçando este importante elemento de distinção e

marcador da identidade Guarani e Kaiowa.

O Kaiowa Ñanderu Jorge demonstra em sua narrativa que o celular aproxima os

parentes que estão distantes, assim como hoje é muito fácil saber o que está acontecendo em

outras terras indígenas, reservas e acampamentos. Em uma de suas falas ele narra que hoje se

tem facilidade em saber de uma festa que vai acontecer em outros lugares, e assim receber o

convite por meio de uma ligação de celular. Ainda demonstra que acessar outros territórios

sem necessariamente deslocar-se fisicamente, pode ser exemplificado na morte de um parente

e/ou amigo, ao dizer que: ―se morre lá você sabe, liga aqui e você até sente a tristeza‖.

É a partir desses novos elementos que passaram a fazer parte do seu modo de viver e

que foram apropriadas e resignificados, que podemos encontrar novas formas de resistência à

imposição do Tekopyahu. Tendo em vista que os usos de novas tecnologias por estas

sociedades propiciam a mistura de múltiplas temporalidades-territorialidades, aquelas

impostas pelo ―mundo dos brancos‖ e as relações que os indìgenas fazem delas, ou seja,

recriam os valores estabelecendo novas formas que podem se colocar no mundo.

Assim, as multiterritorialidades que estas sociedades vivenciam hoje não estão

separadas das multiterritorialidades vivenciadas no Tekoyma, que trazem também uma

multiplicidade de identidades acionadas e vividas pelos Guarani e Kaiowa. Contudo, hoje,

estas relações se fazem de distintas formas, pois ao mesmo tempo em que propicia maior

velocidade de deslocar-se no mundo, também estas condições foram lhes colocadas

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precariamente, primeiro visando o aprisionamento em reservas indígenas a partir

territorialização precária e, em segundo lugar, impondo-lhes novas formas de estar no mundo,

recolocados de ―fora‖ para ―dentro‖, ou seja, de uma sociedade dominante não indìgena para

a indígena.

Podemos dizer que o Ñanderu Admiro e a Ñandesy Antônia (2010), a partir dos

mecanismos utilizados para a produção do artesanato, constroem redes de conexão entre o

mundo exterior e a reserva. No processo de produção artesanal tem-se o deslocamento por

fazendas, em propriedades privadas para buscar Caraguatá e o Guaimbé (ver Foto II),

coletados nas margens do rio Dourados. Ainda, vão para os armazéns da cidade, comprando

linhas e lãs. Mas vendem o artesanato, na maioria das vezes na cidade, já que por morarem na

Bororó, o acesso daqueles que querem comprar, principalmente o turista, não indígena, é

restrito. No caso de Antônia e Admiro, a feira municipal de Dourados, conhecida como feira

da rua Cuiabá, é um importante território para vender seus produtos, na qual a mobilidade da

reserva para a feira se dá, prioritariamente, de charrete e bicicleta.

Ainda consideramos que os carros, motos, carroças e/ou charretes, bicicletas,

ônibus133, os celulares, são meios técnicos frequentemente utilizados para o deslocamento

fìsico e a comunicação entre os Guarani e Kaiowa. Estes possibilitam o ―encurtamento do

tempo‖, já que há ocorrências da ampliação da velocidade para participar de outras

territorialidades. Nas narrativas indígenas a mobilidade no Tekoyma se dava necessariamente

pelos caminhos percorridos - Oguata, que poderia levar dias e/ou até meses para deslocar-se

de um lugar a outro. Entretanto, hoje, estes meios técnicos facilitam a passagem de um

território a outro, a participação mais intensa de outras territorialidades e a construção de

identidades ainda mais múltiplas, ampliando as redes de multipertencimento. Como salientado

por Floriza (2009), ―[...] a gente compra no armazém esses aqui (miçangas, pedras, linhas e

entre outros), vai busca lá, mas tem dia que num tem dinheiro [...]. Vai de todo jeito... pede

pro guri ir de bicicleta, é mais rápido. Agora de carro é bom, é bem rápido...‖.

Floriza demonstra que os objetos técnicos utilizados hoje, ligados ao modo de vida

não indígena, são apropriados pelos indígenas e possibilitam maior velocidade de acesso ao

mundo exterior da reserva, ainda que alguns meios de deslocamento tornam os acessos

133

As charretes, bicicletas e ônibus são um dos principais meios de deslocamento na reserva, algumas famílias

ainda tem a necessidade de fazer os trajetos a pé, pois não tem condições financeiras de adquirir estes recursos

que facilitam a mobilidade, e ainda outros, não tem dinheiro para deslocar-se. Segunda narra uma senhora

kaiowa ―se você vai a pé você economiza, ai compra alguma coisa na cidade pra comê‖. Poucas famílias têm

acesso a carros e motos, ficando restringidas àqueles que têm um poder aquisitivo melhor, apesar de, muitas

vezes, os carros e motos não terem condições de serem utilizados, considerando que muitos deles,

principalmente fuscas e brasílias, foram adquiridos por algumas famílias através de trocas, seja dos indígenas

entre si e/ou com não indígenas.

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rápidos e outros lentos ao apontarem que a velocidade do carro é superior ao da bicicleta,

assim como a velocidade da bicicleta é maior do que caminhar a pé. Assim, estes podem

propiciar maior velocidade de acesso às riquezas naturais ―fora‖ da reserva e também o

estabelecimento de relações de compra de mercadorias na cidade.

No caso de Jorge e Floriza, a charrete também é muito utilizada, mas estes, por

algumas vezes, se deslocam de carro e/ou de moto, facilitando a compra de matéria-prima

para produção do artesanato. Estes vendem seus produtos artesanais principalmente na

reserva, onde há um deslocamento de ―fora‖ para ―dentro‖ de não indígenas. Neste caso

específico, há um grande número de não indígenas e indígenas (moradores de acampamentos,

fazendas, reservas...) que se dirigem até a reserva para comprar artesanatos, também para

comprar milho, mandioca e abóbora. Ainda é necessário dizer que há com frequência,

principalmente nos finais de semana, um deslocamento de não indígenas para a RID em busca

de ervas medicinais, remédios e para receberem benzimentos.

É necessário considerar que estas novas modalidades de territorialização precária a

partir do artesanato ampliaram a ―visão de mundo‖ Guarani e Kaiowa, apontando outros

mecanismos de atualização e reprodução de seus modos de vida. Estes passaram a apropriar-

se dos certos meios técnicos da sociedade não indígena, buscando dar continuidade à

identidade étnico-cultural, utilizando os novos meios de reprodução da cultura material como

processo de identificação de si mesmo e dos outros.

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Foto II - Caraguatá e Guaimbé

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2009.

As identidades étnico-culturais são acionadas por meio do artesanato, pois o mesmo

é um importante dispositivo de afirmação da identidade, pois os arcos, flechas, cocares entre

outros elementos culturais marcam a identidade indígena e se constroem também nas

negociações diretas com o mundo dos ―brancos‖. O Kaiowa Ñanderu Jorge (2009) faz um

importantìssimo relato destas negociações, ao dizer que ―[...] foi assim, chegô e foi colocando,

colocando, mas a gente aprendeu a pegá o brancu‖.

O Kaiowa Geraldo Fernandes (2010) salienta sobre as outras dimensões percorridas

pelos indígenas de hoje, que:

O índio memo hoje já é, é um monte de coisa, é até índio... (risos). [...] É

porque é assim, tem o Kaiowa, e tem o Guarani, e tem o Tereno é tudo índio.

[...] Hoje é diferente do antigamente, agora trabaia na cidade, o filho já é

professor, ai é assim que tá, a gente vai indo assim... [...]. tá tudo misturado,

junto...

A partir de Geraldo, é notório que os Guarani e Kaiowa a partir do contato com a

sociedade não indígena e outras sociedades indígenas, foram vivenciando outras (multi)

territorialidades que, por sua vez, possibilitaram novas formas de perceber-se no mundo.

Assim, ao possibilitar relações com territorialidades múltiplas, há a criação de múltiplas

identidades.

No processo de construção de identidades, muito mais do que um modo de ser, são

um modo de estar no mundo, sendo sempre construídas em referência aos territórios ocupados

e transitadas no espaço-tempo. Por isso, o processo de construção de identidades se faz no

Antônia e Admiro - Guaimbé

Antônia e Admiro - Caraguatá

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entrecruzamento de territórios, proporcionando a construção de territorialidades múltiplas nos

objetos construídos e apropriados nas relações com o outro.

Referente à dinamicidade da RID, o artesanato é um importante elemento de

diferenciação étnico-cultural dos Guarani e Kaiowa. Segundo Jorge e Floriza (2009), os

cocares de penas são utilizados pelos Guarani e os de algodão são utilizados pelos Kaiowa.

Em suas palavras: ―[...] esse cocar aqui é o Kaiowa que usa, o Kaiowa usa, né. Esse aqui é

Guarani, o Guarani usa esse, essa é diferença [...]‖.

Foto III – Diferenciações entre Guarani e Kaiowa a partir do artesanato

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2009.

De forma geral, os dois grupos apropriaram-se na vida cotidiana de referenciais para

diferir-se entre si, apropriando-se de referenciais não indígenas que os colocam distintamente

no mundo. O artesanato Guarani e Kaiowa é um símbolo expressivo de multiterritorialidade,

pois não só representa as multidimensionalidades no encontro de sociedades indígenas que

dificilmente compartilhariam territórios ―fora‖ da condição de reserva, mas também

representam as relações com não indígenas.

Neste contexto, a interlocução entre objetos que são fundamentalmente do mundo

indígena também se fazem nas interlocuções com o mundo não indígena, mostrando as

Cocar feito de

penas - Guarani.

Cocar feito de

algodão - Kaiowa.

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diversas conexões entre sociedades indígenas e destas com não indígenas. É fundamental

dizer que as múltiplas identidades Guarani e Kaiowa, acionadas e negociadas, estão

estritamente interligadas ao passado - Tekoyma, ao mesmo tempo em que possibilitam a

afirmação da identidade de hoje, apropriando-se de relações exteriores, de identidades

participantes do modo de vida de outrem.

Pode-se dizer que as territorialidades e temporalidades vividas pelos Guarani e

Kaiowa possibilitam a criação e recriação das identidades e/ou mesmo a ―destruição‖ das

mesmas, tendo em vista que as identidades sociais, étnicas, culturais e de classe, são,

sobretudo, identidades territoriais, pois é pelo ―andar‖ e/ou caminhar - Oguata - que as

identidades são sempre redefinidas, a partir de relações de poder. Deste modo, Rogério

Haesbaert (2007b, p. 55) sinaliza o reconhecimento de ―[...] que a construção de identidades

territoriais envolve um movimento que vai da identidade ao território e do território a

identidade [...]‖.

Com tudo isto, pontuamos que nestas relações multiculturais e multiterritoriais entre

indígenas e não indígenas, no caso dos Guarani e Kaiowa, algumas famílias ampliaram seus

referenciais de mundo, tendo em vista que seus artesanatos se fazem interconectados,

participando do processo de produção e de distribuição/comercialização. Os Guarani e

Kaiowa comercializam seus produtos artesanais, mas também alimentícios, na cidade, sendo

estes vendidos em feiras, no comércio - mercados, nas casas (de porta em porta - por

encomenda)... Estas relações possibilitam maior participação do indígena no mundo dos não

indígenas e vice versa, sendo necessário percebermos os distintos jeitos que os Guarani e

Kaiowa se inserem nas ―tramas‖ não indìgenas na cidade e na reserva, ou como o não

indìgena se insere em ―tramas‖ indìgenas.

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Foto IV– Múltiplos produtos artesanais produzidos pelo Guarani e Kaiowa

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora.

Artesanatos - Antônia e Admiro, 2010

Artesanatos - Jorge e Floriza, 2011.

Cocares e Arco e fleche – Jorge e Floriza, 2009

Tear - Jorge e Floriza, 2009

Foto, 2011.

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4.2 – A cidade e a reserva: “a cidade mudô muito lá, tá diferente... Aqui mudô também”

Não podemos pensar a reserva sem considerar as relações que os indígenas

estabelecem com a cidade. A cidade está quase dentro da reserva, dizem alguns Guarani e

Kaiowa. Mas, também, é necessário dizer que a reserva está dentro da cidade, assim, ―a

cidade já chegou na reserva, acho que uma tá na outra‖, narra a Kaiowa Ñandesy Floriza.

Não é nossa pretensão discutir a cidade, contudo, torna-se difícil pensar a reserva sem a

cidade, pois como demonstrado no terceiro capítulo, a RID e a cidade estão conurbadas uma

na outra.

Pressupomos que os indígenas não só estabelecem relações com a cidade, mas fazem

com que cidade e reserva, a partir de relações dialéticas de solidariedade e conflitualidade,

simultaneamente, constituam uma totalidade de realidades integradas, como também,

podemos dizer que os indígenas estão na cidade. Por isso, as transformações no espaço urbano

não estão desvinculadas das mudanças espaciais que ocorrem com os Guarani e Kaiowa nos

seus territórios tradicionalmente ocupados e a reterritorialização dos mesmos na RID134.

Pensando a relação cidade e reserva, acreditamos ser necessário considerar que a

população indígena brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

– IBGE (2010), corresponde a 800.000 indivíduos. Deste total, 300.000 vivem em cidades,

podendo dizer com base nestes dados, que 37,5% da população indígena ocupam os espaços

urbanos. Para pensar os indígenas nas cidades partimos da compreensão de que as relações

urbanas devem ser entendidas ―[...] através da análise da vida cotidiana como prática sócio-

espacial; isto é, a cidade como o espaço onde se desenrola e ganha sentido a vida cotidiana

[...]‖ (CARLOS, 2007b, p.12). Assim, nas relações de encontros e desencontros com o outro

nas fronteiras étnico-culturais da vida cotidiana há uma flexibilidade na criação, ―destruição‖

e recriação de territórios, permitindo às gentes continuidades e descontinuidades de modos de

vida no espaço-tempo da cidade e, neste caso, acrescentamos, no espaço-tempo da RID.

Neste sentido, pensar a cidade, na vida Guarani e Kaiowa, possibilita ir ao encontro

do que Ana Fani Alessandri Carlos (1994, p. 26) considera ser a cidade: ―[...] um modo de

134

Consideramos também que as grandes transformações entre cidade e reserva é parte do processo de grandes

transformações socioespaciais da sociedade brasileira que implicou no êxodo do campo à cidade. A partir da

década de 1950 há uma inversão da população brasileira, que anteriormente eminentemente rural, passa a partir

deste período à urbana, devido ao processo de industrialização das cidades, principalmente nos grandes centros,

e a mecanização no campo, como alerta Eduardo Paulon Girardi (2008).

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viver, pensar, mas também sentir. O modo de vida urbano produz ideias, comportamentos,

valores, conhecimentos, formas de lazer, e também uma cultura [...]‖.

A cidade é a representação de um modo de viver, com temporalidades e

territorialidades que se distinguem, por exemplo, dos espaços-tempos da RID. A cidade

aparece como o lócus do ―desenvolvimento‖ e do ―progresso‖, em oposição ao campo

(referente ao espaço rural) que passa a aparecer como o arcaico e símbolo do passado. As

transformações da/na reserva, assim como a opção de algumas famílias de mudarem para a

cidade é, de maneira geral, resultado deste ideário simbólico de que o campo, e a reserva de

forma mais específica, são a representatividade do atraso.

O que é necessário pontuar é que há uma precariedade no processo de

territorialização na reserva, por vezes impossibilitando a auto-sustentabilidade de muitas

famílias, podendo dizer que o processo intenso de desmatamento desordenado no espaço

rural, durante o período de formação de fazendas, utilizando-se, principalmente, a mão de

obra indígena é parte integrante desta precariedade em que muitas famílias vivem hoje. Da

mesma forma, esse processo de desmatamento ocorre nas reservas, sendo financiado pelo

órgão indigenista oficial, nos permitindo dizer que as relações externas se ligam aos novos

reordenamentos territoriais dos indígenas em condição de reserva.

Na década de 1950, a exploração da madeira intensificou-se, tendo em vista

o aumento da população indígena, que exigia cada vez mais instalações e

meios de subsistência, como também aumentavam as necessidades do

próprio Posto e de outras instituições de apoio, como a Missão Evangélica

Caiuá. Para que esta pudesse estabelecer-se e expandir os seus serviços na

área de saúde e de educação, era preciso construir novas acomodações feitas

de madeira. Temos os casos do Orfanato e do Hospital, este último

construído com objetivos primordial de atender às vítimas de tuberculose,

cada vez mais numerosas. Há também as solicitações da Prefeitura de

Dourados sobre a necessidade de cascalho e de madeira sempre atendidas

pelo Agente do Posto (LOURENÇO, 2008, p. 70).

Como é perceptível nos apontamentos da autora, temos várias questões em torno do

desmatamento. Esta relação se faz muito presente nas narrativas indígenas, e segundo o

Kaiowa Ñanderu Jorge (2010b), pode ser apresentada da seguinte forma:

[...] decidi desmatá, o chefe do posto decidia isso daí, ai vem gente de todo

lado comprá a madeira. Os índio vende, derruba isso daí, num tem comida

pra dar pra crianças, pra gurizada... (silêncio). Ai derruba, agora já num

tem mais nada...[...] nem pra fazê casa do índio tem, ai faz de casa de

branco. [...] Antigamente tinha muito mato, bonito... grande assim, bem

grande. Tinha uma aroeira aqui, coisa mais linda, corto isso daí, ai, ai já

num tem mais, se num acha aqui, tem que ir pra longe pra achá‖.

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Neste contexto de intenso conflito, a cidade apresenta uma alternativa de vida à

precariedade vivida na reserva, já que o espaço da reserva se torna insuficiente para a

reprodução do ―bom viver‖ - Tekove Porã, podendo ser percebida pela narrativa da Kaiowa

Odália (2009), ―[...] tem gente que saiu, saiu porque tá violento, ai vai... vai pra cidade, pra

reserva [referente a outra reserva], vai pro acampamento, vai indo... [...]‖.

Dessa maneira, a cidade tem em seu processo de organização (também produção)

socioespacial a articulação e desarticulação dos modos de vida na reserva. Neste contexto, no

que confere às temporalidades-territorialidades vividas entre cidade e reserva, partimos das

proposições de Milton Santos (2009) para interpretar que a cidade apresenta-se como a

exemplificação dos tempos rápidos, enquanto a reserva representa os tempos lentos.

Para entendermos a cidade enquanto a representação dos tempos rápidos, participante

dos ideais de progresso, desenvolvimento e futuro, enquanto a reserva é a representação dos

tempos lentos, temos que partir da concepção de que os tempos lentos e tempos rápidos são

proposições de interpretação da realidade que devem ser consideradas como relativas. Pois

elas só existem na comparação das ações que se estabelecem nas temporalidades-

territorialidades de uma com a outra. Mesmo com seus limites, esta interpretação nos permite

melhor entender a relação indissociável de espaço e tempo, pois a diferenças entre essas duas

velocidades de tempo são construídas/construtoras de relações sociais distintas, ao mesmo

tempo em que integradas numa totalidade, que são produzidas/produtoras de espaços

distintos. Vejam nas palavras de Milton Santos (2009, p. 267):

[...] Aqui, estamos falando de quantidades relativas. De um lado o que nós

chamamos de tempo lento, somente o é em relação ao tempo rápido; e vice

versa, tais denominações não sendo absolutas. É essa contabilidade do tempo

vivida pelos homens, empresas, instituições será diferente de lugar para

lugar. Não há, pois, tempos absolutos. E, na verdade, os ―tempos

intermediários‖ temperam o rigor das expressões tempo rápido e tempo

lento. Mas a vantagem de nossa proposta é a sua objetividade. É certo que o

tempo a considerar não é o das máquinas ou instrumentos em si, mas o das

ações que animam os objetos técnicos. Mesmo assim, são estes que oferecem

as possibilidades e dão os limites.

Portanto, a ―animação‖ é dada por homens e mulheres que no ato de suas ações dão

formas e funções ao espaço/território, logo, ―os sistemas de objetos e os sistemas de ações‖

não podem ser considerados separadamente, são estes que dão significado as gentes e vice

versa, territorializando os espaços, tendo em vista que diferentes espaços impõem diferentes

limites espaços-temporais.

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Sendo assim, a cidade ao apresentar-se, em alguns momentos, como o lugar de

melhores condições de vida (tempos rápidos em contraposição aos tempos lentos da reserva;

ou citadinos em contraposição aos povos do campo) viabilizou a saída de algumas famílias da

reserva, dirigindo-se à cidade. Entretanto, muitas destas famílias, posteriormente, decidiram

retornar para a reserva, como é demonstrado nas diversas narrativas Guarani e Kaiowa: ―na

cidade você tem que pagar tudo‖. Também, os mesmos fazem o apontamento em suas falas

das diversas implicações dos modos de vida Guarani e Kaiowa na cidade, comparando a

reserva. Afirmando que na reserva a organização socioterritorial é influenciada pelas relações

que algumas famílias com prestígio estabelecem com o Estado, no caso, na representatividade

da FUNAI, entretanto, na cidade, a ―lei é dos brancos‖.

―Dentro‖ ou ―fora‖ da reserva, a lei, em linhas gerais, é a dos ―brancos‖, pois há de

forma expressiva o poder ―externo‖ no direcionamento da organização socioterritorial da

reserva. Assim, é comum as narrativas não indìgenas de que ―na reserva, os índios é

problema da FUNAI‖. Logo, os limites entre a reserva e a cidade visam separar ìndios e não

índios, mesmo que os primeiros estejam também territorializados na cidade e participem

cotidianamente das territorialidades da mesma.

Concebendo a cidade como lócus dos tempos rápidos em oposição aos tempos lentos

da reserva, a movimentação de saída e chegada dos indígenas da/na cidade se faz nestas

representações, para indígenas e não indígenas. Nas narrativas indígenas, explicitamente

Guarani e Kaiowa, a cidade se envolve em outras temporalidades-territorialidades, marcadas

pela rapidez em que as gentes, carros, motos, entre outros, tomam as ruas. Numa velocidade

em que o tempo-espaço, marcado pelo capital, se faz infinitamente superior as

temporalidades-territorialidades da reserva. Nestas condições, a cidade, embora concebida

como símbolo do progresso e desenvolvimento, apresenta, na verdade, uma série de

dificuldades para os Guarani e Kaiowa viverem nesta espacialidade, no sentido econômico,

mas também político-ideológico.

Em conversas na reserva, entre aqueles que já moraram e/ou conhecem pessoas que

moraram na cidade, estes demonstram que o acesso ao trabalho é, muitas vezes, dificultado

pelo preconceito por serem indígenas. Por vezes, estes dizem ser paraguaios, pois facilita os

acessos a empregos na cidade. Para as mulheres, estes se dão, principalmente, como

domésticas e babás, e aos homens, nas empresas agroindustriais e no corte da cana.

Elucidativo nas palavras de uma senhora Guarani que já morou na cidade e retornou à reserva:

―se falasse que é índia, aí num tinha trabaio na cidade‖.

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A Vila Índio, bairro do município de Dourados, é a expressão daqueles que

preferiram sair da reserva e mudar-se para a cidade, imbuídos pelo sonho de melhores

condições de vida contrapondo-se à territorialização precária da reserva, aparecendo esta, na

maioria das narrativas, como território em tensão. A Vila Índio tem uma representatividade

expressiva de indígenas que, segundo alguns Guarani e Kaiowa da RID, aparecem no

processo de migração dos indígenas para a cidade. Há na cidade de Dourados diversos

núcleos de ocupação indígenas, principalmente nas periferias, muitas vezes, em condições

precárias, sem nenhum tipo de assistência a saúde, educação e saneamento básico135.

Ainda, no que concerne à Vila Índio e às novas modalidades de ocupação da cidade,

deve ser considerado o que os indígenas pensam ser os territórios tradicionalmente ocupados,

hoje, pois eles foram transformados em cidades e outras modalidades de territorialização não

indígena, como as fazendas e chácaras que se localizam nas proximidades da RID. Assim,

para os mesmos, muitas vezes, estar na cidade é estar em um território que anteriormente lhes

pertenciam. Logo, a sua concepção de cidade pode diferir em muito do não indígena. Com

isso temos que considerar que o processo de migração reserva-cidade vai além do fluxo de

migração campo-cidade pelo qual o Brasil tem passado, apesar de perpassar também pelo

mesmo.

No caso da Vila Índio, pelo fato de o bairro estar extremamente próximo a reserva,

possibilita o trânsito de indígenas para a cidade e, também, ao espaço rural próximo a RID,

como chácaras, fazendas e sítios em suas proximidades. Dessa forma, tanto os indígenas que

saíram da reserva e moram na Vila Índio e os que estão na reserva, nas fazendas e nas

chácaras estabelecem por meio do bairro um intenso fluxo de acessos entre estas modalidades

territoriais.

Para pensarmos a Vila Índio e o processo de mobilidade dos indígenas da reserva à

cidade, assim como o movimento dos indígenas das fazendas à cidade, devem ser

consideradas as grandes transformações no espaço urbano do município de Dourados, como

apontado por Maria José Martinelli Silva Calixto e Francisco da Silva Queiroz (2011, p. 02-

03): ―Partindo de um breve resgate, podemos afirmar que as primeiras ocupações de áreas

urbanas em Dourados, surgem em meados da década de 1970, momento em que a cidade

passou a vivenciar um expressivo processo de crescimento populacional‖.

Nesta perspectiva, se conseguimos enxergar, sobretudo a partir do exemplo da Vila

Índio, que a ―RID está dentro da cidade‖, para podermos pensar as narrativas indìgenas que

135

A ocupação de indígenas na cidade de Dourados merecia maiores pesquisas, pois acreditamos que avinda

para a cidade se dá também por tensionamentos internos na RID.

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afirmam que ―a cidade está dentro da reserva‖, temos que entender as grandes transformações

ocorridas no espaço urbano a partir da década de 1950 e com maior intensidade a partir da

década de 1970.

Maria José Martinelli Silva Calixto (2008) afirma que até a década de 1970 a

população do município de Dourados era 60,61% rural e 39,90% urbana. A partir da década

de 1980 tem-se uma população de 20,33% rural e 79,67% urbana. A partir destes dados torna-

se perceptível que as grandes transformações na cidade de Dourados, assim como na reserva,

ocorreram a partir de 1970, mas consideramos que a partir da década de 1950 o espaço rural e

urbano de Dourados já estava passando por um processo de transformação.

Assim, o processo de aumento populacional na cidade contribuiu para o avanço da

cidade nas proximidades da reserva. Maria José Martinelli Silva Calixto (2008, p.23)

demonstra as mudanças espaciais no município de Dourados, trazendo os seguintes dados:

[...] a partir do início dos anos 1950, os proprietários de chácaras,

principalmente as localizadas próximo ao núcleo urbano, desmembraram

suas propriedades em lotes, inserindo-se no ramo da transação imobiliária. A

atuação desses agentes loteadores fez com que, na década de 1950, ocorresse

a implantação de 49 loteamentos aprovados pela Prefeitura Municipal.

Estes fatores contribuíram para o avanço da cidade sobre a reserva, criando bairros

que muitas vezes foram se constituindo por meio do aumento populacional na cidade, mas

também, pela saída de indígenas da reserva. Neste contexto, as grandes transformações na

reserva se dão simultaneamente às mudanças na organização socioespacial da cidade. O

aumento da densidade populacional na cidade, criando novos bairros, tem sido determinante

para que a cidade esteja a cada dia mais próxima da reserva, ao ponto de alguns indígenas

relatarem que já não se sabe onde se inicia um território e termina o outro.

No contexto pertinente a ser considerado, o aumento populacional do perímetro

urbano de Dourados que intensificou a proximidade entre reserva e cidade é consequência

inerente das intencionalidades propostas desde a criação da RID, como considerado no

terceiro capítulo. Pode-se dizer, a partir desses imbricamentos, e pelas narrativas Guarani e

Kaiowa, que, dialeticamente, a reserva vai fazendo a cidade e a cidade vai fazendo a reserva,

tendo em vista que as grandes mudanças no modo de vida destas sociedades em condição de

reserva só podem ser entendidas a partir das mudanças ―externas‖ e ―internas‖ a reserva. A

Kaiowa Ñandesy Floriza (2010) salienta que ―[...] a cidade mudô muito lá, tá diferente... Aqui

mudô também [...]‖.

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A proximidade do perímetro urbano aponta para grandes transformações na reserva,

principalmente no que concerne ao acesso aos ―bolichos‖. Estes são lugares onde se vende

diversas mercadorias e são criados prioritariamente para atender a clientela indígena. Embora

vendam as mercadorias acima do valor comercial, comparado a venda a não indígenas, como

trabalham com a lógica ―do pagar depois‖, como assinala os Guarani e Kaiowa, esse fato

facilita a compra. Estes indígenas argumentam que anteriormente, quando a cidade não estava

tão perto da reserva, estes bolichos eram, em sua maioria, de não indígenas, mas hoje também

tem bolicheiros indígenas, principalmente, Terena.

Os Guarani e Kaiowa argumentam que, aproximadamente, há 30 anos, quando a

reserva tinha grandes áreas de mata, vendiam lenha na cidade para o não indígena,

argumentando que naquele tempo não tinha forno a gás, assim dirigiam para a cidade de

carroça e trocavam a lenha com os Karaí. O trocar, palavra representativa nas narrativas, é

parte do modo de viver destas sociedades, o que Bartomeu Melià (2004) aponta ser a

economia da reciprocidade fazendo menção ao ato de trocas simbólicas, seja por dinheiro e/ou

trocas de alimentos, roupas, sapatos, entre outros.

Apesar de terem pontos comerciais muito próximos à reserva, inclusive pontos de

venda dentro da mesma, há entre os indìgenas uma mobilidade de ―ir‖ e ―vir‖ ao centro da

cidade, dirigindo-se para fazerem compras quando recebem o pagamento do salário mensal.

Além de evidenciarem que em algumas lojas no centro da cidade estes podem comprar a

prazo. Contudo, o pagamento a vista é mais frequente, pois como assinala um senhor Kaiowa

de aproximadamente 40 anos, ―[...] o índio vem pra cidade quando tem dinheiro, quando num

tem, não vem, traz criança e criança fica com vontade de tudo [...]‖.

Os indígenas estão na reserva, mas também participam de toda dinâmica da cidade

de Dourados. Sua representatividade é tão expressiva que consideramos a participação

econômica da produção indígena da reserva na cidade, por vezes vendidas por eles,

principalmente em feiras e nos bairros da cidade. Ainda, consideramos haver a ocorrência de

um grande número de não indígenas que procuram a reserva para comprar produtos

alimentícios, como: abóbora, milho e mandioca. Ainda, muitos compram em grande

quantidade de algumas famílias e vendem em feiras e mercados da cidade. Os produtos são

vendidos na cidade sem nenhum selo de identificação do produto, identificando a procedência

do produto. Ou seja, quem compra não faz ideia de que quem produziu esses alimentos foram

os indígenas.

A venda de produtos agrícolas, principalmente de mandioca e milho, produzidos na

reserva e vendidos na cidade por não indígenas, foi intensificada a partir do momento que

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criou-se o selo de garantia do produto, impossibilitando a venda dos indígenas na cidade com

maior frequência. Assim, torna-se comum a ocorrência da compra do produto por não

indígenas na reserva.

Os Guarani e Kaiowa elucidam que há cerca de 20 anos era muito comum as

famílias venderam os produtos alimentícios agrícolas cultivados na reserva, na cidade, mas

hoje essa prática torna-se inviabilizada, pois o regulamento para se vender na cidade obriga a

necessidade do selo de aprovação de produtos alimentícios que os indígenas não têm

condições de pagar.

Normalmente, os indígenas estabelecem relações de troca na cidade com os não

indígenas, em sua maioria, vendendo mandioca de casa em casa, o que muitas vezes

possibilita que estes ganhem comida, roupas, sapatos, móveis domésticos. Esta é uma das

principais formas em que os indígenas vendem a produção agrícola na cidade.

O que estas relações nos demonstram, é que a ideia de que ―lugar de índio é na

reserva‖, por parte da população douradense não indìgena, é ilusória, pois os indígenas estão

ocupando todas as esferas do que se entende ser o município de Dourados, inclusive a cidade,

não só transitando entre um lugar e outro, mas movem o poder econômico municipal,

garantindo o barateamento de alguns produtos agrícolas136.

Estas relações econômicas em que os indígenas da reserva estabelecem com a cidade,

de compra e venda de produtos agrícolas e artesanatos (neste caso vendem nas feiras. Há

também algumas lojas comerciais da cidade que vendem os artesanatos de famílias

produzidos na reserva), podem ser consideradas como estando inclusas no que Milton Santos

(2004) considerou como sendo os ―circuitos inferiores da economia137‖, que é parte das

contradições do capitalismo dos países periféricos.

Milton Santos demonstra como ocorreram as relações econômicas nas cidades dos

países subdesenvolvidos. Para ele, haveriam dois movimentos dialéticos da economia urbana

ocorrendo no mesmo espaço-tempo, um modelo dominante: os circuitos superiores, e um

modelo subalterno e alternativo: os circuitos inferiores. Os circuitos superiores seriam

baseados em relações tipicamente capitalistas, tendo como características: o trabalho

assalariado predominantemente, utilização de tecnologia avançada, produção em larga escala,

136

Não há dados sobre a produção agrícola dos indígenas na RID, mas, consideramos que os produtos agrícolas

vendidos na cidade não fazem referencia a produção agrícola na reserva, principalmente da mandioca, que são

vendidos na cidade com valores abaixo do preço normal de mercado, facilitando o barateamento do produto. 137

Eliseu Spósito (2004, p. 186) explica que a teoria dos ―dois circuitos da economia urbana‖ foi ―[...] elaborada

por Milton Santos, tema central do livro O espaço dividido, publicado no Brasil em 1979, a partir de seus

estudos e experiências profissionais em vários paìses, como Tanzânia, Estados Unidos, Venezuela e França [...]‖.

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acumulação de capital como objetivo principal etc. Do, outro lado, os circuitos inferiores

teriam características distintas, como: a produção em pequena escala, o trabalho

predominantemente familiar etc. Enquanto a primeira tem como marca principal o capital, a

segunda tem o trabalho como o fator essencial. Em suas palavras:

[...] o circuito inferior é o resultado de uma situação dinâmica e engloba

atividades de transformação como a doméstica e os transportes, assim como

as atividades de transformação como o artesanato e as formas pré-modernas

de fabricação, caracterizadas por traços comuns que vão além de suas

definições específicas e que têm uma filiação comum (SANTOS, 2004,

p.201 – grifo nosso).

Nesta perspectiva, podemos dizer que o autor descreve as características do circuito

inferior da economia, citando as atividades de fabricação tradicionais, como o artesanato, a

produção e o comércio em escala reduzida, ou seja, em pequenas quantidades. Ainda,

considera o uso do trabalho doméstico na produção e a comercialização da produção agrícola

na cidade, de modo que essa relação de produção e comercialização envolve os indígenas da

RID e a cidade de Dourados, podendo ser classificada no conjunto de atividades descritas por

Milton Santos (2004), como pertencentes aos circuitos inferiores da economia urbana dos

países periféricos do capitalismo globalizado.

Ainda, no que concerne à participação indígena na sociedade não indígena, grande

parte da renda das famílias da RID, outras reservas e Terras Indígenas, é oriunda do trabalho

do corte da cana de açúcar em usinas sucroalcooleiras. Em sua maioria, os indígenas estão

inseridos em mão de obra degradante de trabalho, como foi retratada no ano de 2007 na

Companhia Brasileira de Álcool e Açúcar - Debrasa (município de Brasilândia), por isso a

mesma foi embargada e interditada pelo Ministério Público do Trabalho - MPT e Polícia

Federal138.

As relações entre indígenas e não indígenas na cidade de Dourados, a presença

indígena está entrelaçada aos não indígenas e/ou aos Karaí, como prefere os Guarani e

Kaiowa. Diferentemente do que ocorre no território precário da reserva, as identidades étnico-

138

Até o primeiro semestre de 2007 haviam 31 usinas sucroalcooleiras implantadas, 15 em implantação e 28 em

negociação em Mato Grosso do Sul, em sua maioria, em território tradicionalmente ocupados pelos Guarani e

Kaiowa. Contraditoriamente, neste mesmo ano, no segundo semestre, a usina sucroalcooleira Debrasa foi

embargada por manter dois mil funcionários alocados nesta unidade, sendo que destas, 830 eram indígenas em

condições precárias de trabalho. A usina, neste período, era a maior empregadora de mão de obra indígena, e foi

a primeira a aderir ao Pacto de Erradicação do Trabalho Infantil e incentivou o Pacto do Trabalho Indígena, no

ano de 2003. Ainda é necessário dizer que até o ano de 2001 a mão de obra indígena era explorada sem carteira

de trabalho. Segundo o Ministério Público Federal há mais de 13.000 indígenas no corte da cana, considerando

que o mesmo órgão alega que os Guarani e Kaiowa são a maioria nos casos de superexploração no estado de

Mato Grosso do Sul (ver Anexo III).

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culturais não são identificadas na cidade, como assinala Odália (2010), ―é todo mundo índio‖,

onde estes aparecem aos olhos da sociedade douradense não indígena da seguinte forma: o

―índio é índio, vejo que tudo igual‖, como assinala uma comerciante.

A representação do indígena, para a sociedade douradense não indígena, está

relacionada ao ―olhar‖ pejorativo e preconceituoso, porque, na maioria das vezes,

principalmente no comércio douradense ao perguntarmos sobre a presença indígena na cidade

de Dourados, normalmente os principais estereótipos sobre os indígenas aparecem como:

bêbados, incapazes, violentos, sujos, irracionais, ladrões, entre outros, tornando notório que a

construção do indìgena na vida dos ―brancos‖ envolve-se em olhares que visam a

descaracterização da participação indígena na sociedade douradense. Mesmo estando

diretamente interligados às dinâmicas da cidade, os indígenas são invisibilizados das cenas do

cotidiano, aparecendo a necessidade de marcar fronteiras entre o indígena e não indígena.

Acrescentamos que esta relação pode ser visualizada da seguinte forma nas

narrativas dos não indígenas, em sua maioria, comerciantes da cidade de Dourados:

[...] os índios compram aqui? Eles compram bastante, mas é daquele jeito...

Aqui perto tem um bar, aqui virando, né. Ai você vai ali. Vai ali só tem índio

bêbado, só bebê. Ai compra e não paga aqui depois... Eu só vendo pra quem

paga, mas quem não paga não compra aqui... [...]. Eu não sei, né, você pode

num concordá, né, mas é o seguinte: pra mim esse negócio de demarcá num

adianta, só vai tirá terra do cara que trabalha pra consegui ela. Você acha

que o índio vai trabaiá? Num vai, é o jeito dele...‖ (Comerciante de

Dourados, 2009).

Já trabalhei com índio, fiquei muito tempo assim, é... como eu vou te dizê,

morando junto mesmo. O índio que morei era preguiçoso, num fazia nada. A

cama dele era uma sujeira [...]. Ai um dia nóis falô pra ele: é... a gente falô

que num dava, né. [...] Aí eu vim embora, num vi mais [...] (Comerciante de

Dourados, 2009).

Estas narrativas demonstram a presença indígena na cidade de Dourados, sendo

permeada por estereótipos de quem é o ìndio no ―mundo do branco‖ e que as mesmas estão se

fazendo pelo confrontamento, muitas vezes marcado pela necessidade de separar um e outro,

o que acreditam ser bom e/ou ruim, bem e/ou mal, como demonstrado por Roberto Gambini

(2002, p. 28): ―[...] tudo aquilo que é inconsciente em nós mesmos descobrimos no vizinho

[...]‖.

Desta forma, podemos dizer que os modos em que índios e não indígenas se vêem na

cidade se fazem pelas multiterritorialidades cruzadas e chocadas que envolvem os Guarani e

Kaiowa em mundos não indígenas, ao mesmo tempo em que não indígenas os envolvem em

mundos indígenas, criando e recriando para estas sociedades novas formas de ser e estar no

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mundo. A condição de índios nas cidades, assim como de indígenas acampados e em fundos

de fazendas, não existia anteriormente ao encontro com o não indígena, principalmente

quando foram desterritorializados de seus territórios tradicionais, de modo que as novas

espacialidades, os novos territórios vividos e apropriados aparecem nas narrativas a partir do

momento em que há na vida indígena, o não indígena.

Ainda, referente ao espaço urbano, é muito comum que aos sábado e domingos,

mulheres e crianças se dirijam a cidade, principalmente de carroças e bicicletas para pedir

alimentos, roupas, calçados, além de venderem produtos da reserva, tais como: milho,

abóbora e mandioca. O último é sempre comum entre os indígenas, pois além de ser

praticamente cultivado todo o ano, o mesmo é um dos alimentos agrícolas mais trocados com

não indígenas.

A maioria dos indígenas que conversamos se encontravam nos bairros como: Jardim

Alvorada, Parque dos Ipês, Chácara Sete, Vila Alvorada e outros bairros. Na maioria das

vezes são as crianças que vendem e pedem ajuda de casa em casa, pois, segundo os indígenas,

é uma forma de melhor estabelecer relações com os não indígenas, porque normalmente as

pessoas adultas costumam não negar ―coisas‖ as crianças, segundo nos conta uma Kaiowa que

estava com seus filhos no Parque Alvorada vendendo milho.

O que é perceptível é que muitos não indígenas contribuem com comida, roupas e

comprando alguns produtos dos indígenas (principalmente mandioca), contudo, é necessário

dizer que em alguns momentos estas relações de negociação no ato de pedir são permeadas

por conflitualidades, no sentido de que muitos não indígenas não aceitam maiores

proximidades dos índios em suas casas. Segundo nos conta uma senhora Kaiowa (2009),

―parece que eles acha que a gente vai robá [roubar]‖. Outras narrativas trazem nestas

conflitualidades as relações que envolvem indígenas e não indígenas em torno da demarcação

de Terras Indìgenas, que segundo a narrativa da mesma senhora ―eles acha que a gente vai

robá porque tem índio que qué a terra dos brancos‖ (será melhor retratado no quinto

capítulo).

No que concerne a estas relações de conflitualidade no ato de ―pedir‖, podemos

perceber por meio da narrativa da Guarani Joseana (2009), nas proximidades do Parque dos

Ipês, esta assinala o seguinte frente aos encontros e desencontros entre indígenas e não

indígenas:

A gente pede porque precisa, é assim. Traz as crianças e vai pedindo. Se

pedi adulto, ai já num dá nada. [...] a gente vende muita coisa aqui sim,

muita... é mais mandioca, a gente trabalha mais com isso... [...] lá na aldeia

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é difícil vivê, num tá fácil, a gente num tem lugar pra prantá mais, ai

dificulta. A gente pedi tudo, tudo que dá a gente leva [...]. Mais tem gente

que é ruim, os brancu num é bom... Já recebi bicho na sacola, criança pegô

bicho morto, ai foi ruim, fico triste. [...] Tem dia que pega coisa boa, muito

boa mesmo, mais tem dia que pareci que o branco nem liga que o cê tá

passando... Tem uns que xinga, mais a gente pede porque precisa...

(silêncio).[...]. Acho que é isso que to falando, é ruim vim pra cidade, a

gente vem trocá, né?

As relações conflituosas entre indígenas e não indígenas se fazem de forma muito

intensa. Neste sentido, a Kaiowa Odália (2009) expressa o seguinte sobre o ato de pedir,

produzir, comercializar, trocar e as transformações ocorrentes no modo de viver Guarani e

Kaiowa:

Eu acho que é diferente, né, você, também, Kaiowa, vixi. [...] O branco tem

carro, tem a cidade, muita roupa limpa e aqui na reserva, vixi... eu vive

assim, mas nunca que jogo minha criança no lixo, isso ele faz [referente aos

brancos], num tem lixo não, eu num levo. Vende mandioca na cidade, feira,

vem busca aqui também, mas só minha criança eu não levo no lixo não, dá

doença. É isso que eu to falando por causa de estudo, né? Falei pra minha

cunhada, catá latinha? Não carrego lata no carrinho. Kaiowa tem que

plantá, né, tem o terreninho dele, plantá mandioca pra vendê milho verde,

né. [...] Kaiowa num tem onde vive desse jeito. Já vai na cidade, já depois

que acabô aquele de caçá, de ficá ai, vai levá criança pra se virá, batê

palma, plantá mandioca, banana, maçã, de ouro, nanica. Quando nasce

criança começa a plantá de novo, pra criança mais, algo mais não, algo

mais diferente [...]. O branco vem, um saco diz: ―vinte, se tivé vontade de

levá, vendê‖. Tem que criá galinha, vinte, né [preço pago pelos não

indígenas ao irem buscar uma caixa de milho, aproximadamente, trinta a

quarenta espigas], pra se virar mais, vende isso ai. Tem uns que tem poco

também. [...] Kaiowa é diferente, num tem dinheiro, ai faz uma troca, né,

traz sabão, erva, óleo [...].

O ato de pedir está ligado a vários fatores, comumente, relaciona-se a falta de espaço

na reserva e, principalmente, às territorialidades que estas sociedades viviam no Tekoha que

foram desarticuladas em condição de reserva. A escassez de áreas de mata e terra na RID

impossibilita o trabalho com a agricultura, assim como atividades de coleta e caça de

alimentos. Odália reclama da escassez de terra na reserva, que se restringe a algumas famílias.

Estas relações são permeadas de conflitos na reserva, demonstrando que a organização

socioterritorial da mesma se dá desigualmente entre as famílias, sendo que algumas têm áreas

expressivas de terras, com cerca de 40 a 60 hectares de terras, enquanto outras têm menos de

um hectare.

Outro fator extremamente importante é que nas negociações que os Guarani e

Kaiowa estabelecem com os não indígenas na cidade, partem da concepção de que para eles:

―o branco é o dono do dinheiro‖, por isso cria-se um imaginário de que o ―branco‖ é rico e o

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índio é pobre, de modo que alguns indígenas relaciona o ato de ―ter que dar coisas aos ìndios‖

como uma obrigação. Mas, fundamentalmente, esta relação se dá porque alguns indígenas

acreditam que o ―branco‖ é o responsável pelo modo incorreto de viverem na reserva, pois

como elucida uma Kaiowa, ―o branco tirô tudo do índio, foi assim que foi, ai o índio é pobre

e o branco é rico‖139.

Na narrativa de Odália percebemos estas relações conflituosas, de indígenas e não

indígenas no ato de trocar, que podem ser explicadas a partir da concepção de que para os

indígenas se trata sempre de uma troca desigual, expressa em suas palavras no ato do

―branco‖ ter dinheiro, e não dar ao ìndio, e também, dos indìgenas serem pobres,

considerando que as trocas entre eles se dão, principalmente, por alimentos. Odália, também,

faz a seguinte comparação em sua narrativa, que apesar de estarem pedindo junto com suas

crianças, eles não agem como os brancos que jogam suas crianças no lixo, informação esta

que chega à reserva através da televisão e do rádio, assim alega que apesar de toda pobreza, os

índios, não fazem este tipo de coisa. Com relação à forma de comercialização da produção

agrícola da reserva, percebemos que é prioritariamente para subsistência da família e o que

―sobra‖ vende ou troca por roupas, sapatos e alimentos que estão faltando em casa.

Referente ao ―ato de pedir‖, o Parque Alvorada é um lugar em que os Guarani e

Kaiowa sempre procuram ter acesso, pois, como salienta Odália, ―muita gente lá, dá as coisa

pros índio‖. A expressividade que tem este lugar nas narrativas, aparecendo como espaço de

menores tensões entre indígenas e não indígenas, deve ser considerado pelo fato de que este

bairro nobre, de classe média alta, tenha uma população expressiva oriunda da universidade,

139

A relação dos ìndios serem pobres e os ―brancos‖ ricos é muito elucidativo nas narrativas Guarani e Kaiowa,

e é também, demonstrado por Katia Vietta (2007, p.143-144) como uma visão cosmológica na criação do

mundo, especificamente, na criação dos homens e dos ornamentos que foram concedidos aos índios e aos

―brancos‖, que hoje definem a condição de pobreza e riqueza entre eles. Em sua tese de doutorado esta

demonstra a partir da Kaiowa da TI Panambizinho, Maria Aquino, que: ―Ficou escuro, depois que acabou o

mundo ficou escuro. Acabou o mundo porque a onça caiu aqui na Terra. Não havia luz, só uma estrela [visível

no céu por volta das 3 horas] iluminava o mundo. Pa‘i Kuara [Pa‘i Kuara é identificado como Ñãderu] ainda

não havia nascido, ainda não havia aparecido aqui na Terra... Pa‘i Kuara nasceu! Quando ele ainda era

criancinha mamou na base da cruz, mamou xixa, na base da cruz. Então ele foi crescendo e criando o mundo.

Ele foi gatinhando por todas as direções para fazer crescer [criar] o mundo. Para o mundo ficar o que é hoje.

Ele foi aqui, foi para cá, para cá, para lá, foi aqui. Este caminho aqui ele pegou quando foi fazer o branco. Para

decidir como seria o branco e como seria o Kaiowa, Ñãderu propôs um jogo. Ele colocou lado a lado a cruz

vermelha (da cor do Kaiowa - pitã) e a cruz branca (da cor das cinzas - tanibu nemo ãgurusu). Ao lado da cruz

vermelha estava Karai Papa, e ao lado da cruz branca estava Jesus. Então, Ñãderu espalhou, no chão, vários

objetos: xiripa, tebeta, mborika, ku‘akuara, nãvaytury [Adornos masculinos usados especialmente durante os

rituais]. Ele espalhou também lápis, caneta, papel e a bíblia. Lá do outro lado ele colocou as crianças: um

menino e uma menina kaiowa, um menino e uma menina brancos. Ñãderu mandou as crianças pegarem os

objetos que elas mais gostavam e trazê-los para Karai Papa e para Jesus. Foi aí que o branco ganhou o jogo!

Por isso que o branco é rico e o Kaiowa é pobre. Por isso que o branco é estudioso e pode ser doutor. E o

Kaiowa vai para escola, estuda, estuda e não passa de ano. É que a escola foi feita para o branco. A escola não

foi feita para o Kaiowa‖.

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principalmente professores, o que facilita as relações entre indígenas e não indígenas. Nas

palavras do Kaiowa Maciel ―eles pedem lá porque tem muito professor, aí dá as coisas... eles

têm carro, aí dá as coisa pro índio‖.

É pertinente pontuar que as narrativas não indìgenas que fazem referência ao ―ato de

pedir‖ do indìgena na cidade refletem um sentimento de pena, e está envolvida pelo discurso

dominante que liga o indígena à preguiça, aparecendo sempre a noção dos índios como

bêbados e preguiçosos, comumente aparecendo a idéia por parte do não indígena, de que os

indìgenas não gostam de trabalhar e vivem bêbados. Referente a este ―olhar‖ sobre os outros,

uma senhora, moradora do Parque dos Ipês (2009), diz o seguinte: ―eles pedem porque não

trabalham, e a gente fica com, com esse sentimento de dó das crianças‖. Estes fatos

demonstram que a ajuda, na maioria das vezes, se dá entrelaçada pelo preconceito ao indígena

que envolve a sociedade douradense não indígena.

Neste contexto, a condição de ser indígena aparece como sendo a explicação do ato

de pedir, como se a pobreza, ou mesmo a miséria, de muitas famílias se desse,

prioritariamente, por um determinismo social. O que aparece nesta correlação preconceituosa

e de não aceitação do outro, pode ser exemplificado por Frantz Fanon (2008, p. 47) quando

assinala a condição do negro na sociedade, no sentindo de que ―[...] do negro [também do

indígena] exige-se que seja um bom preto [bom indìgena]‖.

Esta relação que envolve o que é ser um ―bom indìgena‖, é demonstrado nas

narrativas de alguns comerciantes da cidade de Dourados, como é o caso de Maria (2009) ao

dizer que ―eles têm que se inserir na sociedade, pra vivê melhor‖. A necessidade de integrar

os indìgenas é comumente parte de um ideário de que o indìgena seja ―igual‖ ao não indìgena,

de modo que índio bom é aquele que está integrado no mundo dos ―brancos‖, em uma relação

que se coloca da seguinte forma: ―é quase igual branco, mas é índio‖.

O que esta relação nos revela é que ser índio para os não indígenas é participar dos

estereótipos do que eles consideram ser o indígena, muitas vezes, correlacionado a sujeira e a

preguiça. Assim, se os ―olhares‖ dos não indìgenas se dão de forma diferente dessa, conclui-

se, assim, que ele seja um ―bom índio‖, está próximo do mundo do ―branco‖.

Desta forma, o ato dos indìgenas ―pedir‖ na cidade é referenciado como falta de

―disposição para o trabalho‖, sinalizando ainda que:

[...] eu acredito assim, os índio... (silêncio), não gosta do trabalho, prefere

ficar pedindo. [...] Tem até uns que trabaia, é difícil mais tem, né? [...] Eles

andam... assim, a cidade toda pedindo, dá uma dor no coração por causa

das crianças, tá sempre suja, sem comer... Os pais bebe e tráz pra cidade

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pra pedir. Eu vejo, é, dessa forma, o índio tem que ter vontade de trabalhá.

As vezes, num tem o trabalho, só porque bebe [...].

A partir da expressividade do ato de pedir, o poeta Emmanuel Marinho compõe um

poema relacionando a extrema pobreza na reserva e as relações que os indígenas estabelecem

com não indígenas ao sinalizarem, como diz o poema, Tem pão velho? (ver Anexo IX). O que

é necessário pontuar é que muitos indígenas vivem em condições miseráveis na reserva,

algumas famílias vivem com pouco mais de R$100,00 reais mensais, vivendo, em sua

maioria, das cestas básicas do Estado140, aparecendo na expressão de que ―falta cesta, o índio

morre de fome‖, demonstrada na narrativa da senhora Kaiowa Alzira. Ainda, a pobreza de

muitas famílias agrava os índices de homens e mulheres envolvidas com alcoolismo e drogas,

como sinaliza um senhor Kaiowa da Bororó, ―muitos bebem pra passar a dor, tem gente que

nem tem comida em casa, aí bebe‖.

Pode-se dizer que estas relações estão diretamente relacionadas ao processo de

desterritorialização de seus territórios tradicionalmente ocupados e a territorialização precária

nas reservas, participando dessa condição novas relações com o território dentro e fora da

mesma, sejam na cidade, ou nos arredores. As relações ―do pedir‖, também devem ser

pontuadas com outras esferas em que os Guarani e Kaiowa conseguem estabelecer relações

para ―fora‖ da reserva. Para o Kaiowa Maciel (2009) ―é muito chato ficá na reserva, aí a

gente vem pra cidade‖.

A cidade apresenta-se como uma multiplicidade gentes, comércios, que se torna um

ponto de fuga à condição de precariedade na reserva. Segundo Fábio Mura (2006, p. 412),

esse estar na cidade, a prática ―do pedir‖ na cidade, pode ser também interpretada como parte

das novas formas de organização socioterritorial, ligando a casa familiar a outras esferas do

território, áreas de caça, coleta, pesca, entre outros. A cidade, para o autor, pode aparecer

como outras formas de ―caçar‖ e ―coletar‖, em novas espacialidades que são para os Guarani

e Kaiowa extremamente recentes.

Utilizando carroças, mulheres e crianças costumam, aos domingos pela

manhã, empreender atividades de coleta compósitas no ambiente urbano. A

dinâmica consiste em chegar ao setor noroeste da cidade entre as 07 e 08

horas da manhã, distribuindo as crianças ao longo das ruas transversais

com a finalidade de arrecadar alimentos variados (especialmente pão e

biscoitos) nas residências locais. A técnica utilizada é formalmente idêntica

140

Atividade assistencialista do governo do estado, fornecidas pelo Programa Estadual de Segurança Alimentar.

Segundo o Conselho Indigenista Missionário - CIMI, em 2006, 90% dos Guarani e Kaiowa dependiam de cestas

básicas, onde as mesmas não possibilitam a estas sociedades obterem uma dieta balanceada, com carnes, peixes,

entre outros.

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ao que entenderíamos como pedido de esmola, os índios tendo observado e

reproduzido este fenômeno do melhor modo possível, buscando comover a

pessoa alvo de suas ações. De fato, procura-se enviar as crianças

imaginando suscitar no ―branco‖ maior efeito, conforme o escopo

pretendido. Contemporaneamente a esta prática, com o auxílio de um

bastão de cerca de 4 metros de comprimento, as mulheres coletam mangas

nas redondezas, estocando-as na carroça. Ao cabo de algumas horas, todo o

grupo se dirige para a feira localizada no centro da cidade. Neste último

local, já em fase de encerramento das atividades comerciais, os índios dão

continuidade à coleta de frutas e verduras, descartadas pelos feirantes, e

dedicam-se eventualmente a comprar grãos (feijão), cereais (arroz) e

carnes.

Com o fenômeno descrito se pretendia colocar em evidência como em

certas circunstâncias as atividades de coleta de alimentos podem ser

desenvolvidas em ambientes cuja exploração é relativamente recente de

parte dos Kaiowa, refinando eles, para tanto, técnicas específicas de

aquisição. De qualquer forma, não é certamente este o uso mais difuso que

os índios fazem desses locais, a maior parte dos alimentos conseguidos

procedendo principalmente de transações comerciais. Por outro lado, os

itinerários de ida cotidiana ou periódica às cidades não são motivados

simplesmente pela necessidade de captar alimentos, sendo também

significativo o aprovisionamento de bens materiais de diferentes tipos,

como roupas, objetos para as atividades culinárias, ferramentas, pólvora e

chumbo para a caça, anzóis e linhas para a pesca, eletrônicos e outros

objetos mais (MURA, 2006, p. 411).

Por meio do ato de pedir, os Guarani e Kaiowa, como sinaliza o autor acima, podem,

com sua dinamicidade, participar de outras territorialidades ―fora‖ da reserva, talvez, porque

grande parte daqueles que pedem demonstram ter lugares bem definidos ao ato de pedir.

Segundo a Guarani Joseana (2009), ―[...] tem que sabê pedi, tem brancu que não dá, ai a

gente pede sempre nas casa, né? É assim, tem brancu que não dá mesmo, até xinga a gente

[...]‖. Pode-se dizer que estas relações de conflitualidades, envolvendo os indígenas no mundo

dos ―brancos‖ no/pelo ―ato de pedir‖, definem para estas sociedades os lugares transitados

para pedir alimentos, roupas, sapatos, na cidade.

A presença indígena na cidade de Dourados é muito mais ampla do que o ato de

pedir, pois estes participam da dinamicidade do centro da cidade, sobretudo, na principal

avenida Marcelino Pires e, também, com destaque para a mobilidade de indígenas aos sábados

e domingos na feira da Rua Cuiabá, dirigindo-se para a mesma para comprar alimentos e, no

caso das famílias mais carentes, coletar restos de comida no final da feira.

Segundo o Kaiowa João Machado (2010), as relações dos indígenas com a cidade,

em sua maioria relações conflituosas, devem ser pensadas da seguinte forma:

O indígena ele não vai na cidade sem dinheiro, ele só vai na cidade com

dinheiro. Salvo algumas crianças que vão, né, às vezes na feira pedir, mas

também a maioria dessas crianças que vão pedir eles não são daqui. Hoje

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mesmo, por exemplo, eu descobri uma família aí que tem quatro crianças

sem registro, eles vieram pelas fazendas, assim, todas já na idade de

estudar, o menor tem oito ano, o mais velho tá quase com dezoito anos, sem

documento nenhum. Aí, eles agora tão acampado ali pelo Douradão, aí eu

até fiquei de visitar eles sábado, se tiver o tempo bom sábado, ou no

próximo sábado. Então, tão aí pela periferia da cidade. E aí esses que

andam às vezes na rua também, porque aqueles que já tem assim uma

localização aqui, é difícil ir assim nas cidades, assim pra pedir, né. Eles vão

né, mas pra comprar as coisas, passear, coisa assim. Isso daí que o pessoal

da cidade generaliza, acha que todo mundo lá tá sem dinheiro, pedindo, ou

tá afim de qualquer coisa, roubar, acho que é um preconceito muito forte

que acontece [...].

João considera que muitos pedintes indígenas não são, necessariamente, da RID,

demonstrando que há diversos indígenas ocupando o centro da cidade, e também moradores

indígenas em acampamentos de retomadas nas proximidades da cidade de Dourados e de

fazendas. No que confere a presença dos indígenas na cidade, podemos dizer que os mesmos

estão se relacionando de distintas formas, alguns, como espaço de moradia, outros como

espaço de transição entre reserva e cidade; outros nas interlocuções entre reserva, cidade e

fazenda; e outros nas negociações com os Karaí (podemos dizer que este é o dono do

dinheiro), sejam vendendo artesanatos e produtos agrícolas produzidos na reserva e, também,

nas relações que envolvem o ato de pedir na cidade (ver Mapa VI141).

141

No mapa IV, demonstramos algumas territorialidades vividas pelos Guarani e Kaiowa que conversamos na

cidade, assim como, os principais caminhos utilizados na transição dos indígenas vivendo entre a cidade e a

reserva, muitas delas foram descritas por meio de narrativas pelos indígenas e outras percebidas pela

pesquisadora em trabalho de campo.

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Mapa VI – Localização das territorialidades Guarani e Kaiowa nas relações entre reserva e cidade de Dourados

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No que concerne ao encontro com o outro na cidade, muitos Guarani e Kaiowa

passam a ter o sentimento de vergonha142 como consequência deste trânsito de viver e sentir-

se em entre-lugares. O jovem Kaiowa Rodrigo é um exemplo elucidativo desta relação, tendo

em vista que, embora tenha medo do preconceito que o cerca, ou seja, das ―coisas de branco‖,

são estas mesmas ―coisas‖ que o fascina, principalmente o que envolve seu imaginário sobre a

cidade como sendo o ―lugar do branco‖, enquanto a reserva é ―lugar do ìndio‖.

Nesta relação ambìgua do que é ser indìgena e ser o ―branco‖, o mesmo se coloca em

uma condição de viver em entre-lugares, em uma relação de meio, de ser indìgena e ―querer

ser branco‖ ao mesmo tempo em que o ―branco‖ é a representação do modo incorreto de

viver, e que nesta relação entre um modo de ser e outro, de viver entre a reserva e a cidade,

pode trazê-lo a uma condição de não estar em nenhum lugar, ou melhor dizendo, não saber a

que mundo pertence, viver entre ―o mundo do branco‖ e ―o mundo do ìndio‖, assim, viver na

fronteira do encontro e desencontro com o outro.

Contudo, este viver entre-lugares, é permeado por sensações de medo, fazendo-se

pelo medo de não ser reconhecido em nenhum dos ―mundos‖ em que transita, de modo que na

reserva, por vezes, é reconhecido como ―branco‖, pois tem atitudes e se comporta como

―branco‖ (como identifica sua avó) e, por outro lado, no ―mundo dos brancos‖, Rodrigo é

índio. Estas relações são envolvidas por relação de medo que não se restringe as relações de

entre-lugares vividas por um jovem Kaiowa, mas traz para o âmbito da família, da sociedade

em que participa, o medo do ―mundo do branco‖, que confrontam-se com os modos de vida

dos antigos, ou seja, o bom e correto modo de viver.

O medo do ―branco‖ por parte das sociedades indìgenas, muitas vezes, é reedificado

pelo estranhamento e o distanciamento. Este medo pode ser considerado, em José de Souza

Martins (1996, p. 16; 21), quando o mesmo assinala que ele nos impede de ―[...] conciliar a

nossa vontade com o nosso destino‖, considerando ainda, que ―[...] Uma vida, portanto, em

que o sonho tende a se confundir com o pesadelo‖. Talvez, esta condição esteja relacionada

ao medo de ultrapassar os limites e buscar outras possibilidades de viver.

José de Souza Martins (1996) demonstra que o limite do encontro com o outro é,

muitas vezes, movido pelo temor e o terror de experimentar novas realidades, e/ou mesmo,

uma realidade que lhes é imposta precariamente, vivida no limite do estar em contato com o

outro. A cidade, muitas vezes, representa para os não indígenas o limite que busca separar o

142

Para Johan Goudsblom (2009, p.56): ―a vergonha ocorre quando os laços de solidariedade e hierarquia são

danificados. Isto é sempre desagradável e doloroso. A dor física ocorre quando há algo de errado com o corpo; é

um sinal, um aviso de que o corpo está ferido. Em sentido similar, a vergonha é um sinal de que há algo errado

em uma figuração social‖.

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entendimento do que é o ―branco‖ e o ―ìndio‖, de modo que nestes encontros na cidade, aos

―olhos‖ do não indìgena, o ìndio aparece como aquele atrelado a condição de ìndio reservado,

tutelado, sem condições mínimas de falar por si mesmo, da mesma forma, de ter condições de

ouvir. O medo do outro, reflete em si mesmo, movido por relações de controle e autocontrole

que os impede de viver, pensar e agir da forma como querem e do jeito que querem ser em

sociedade.

Desta forma, a cidade, é também a representatividade do medo, pois os Guarani e

Kaiowa se vêem perdidos no emaranhado de sonhos movidos pela coerção e os limites de

estarem e participarem da dinâmica da cidade. Neste aspecto, é necessário elucidar que a

condição precária de viver na reserva, no desencaixe entre um mundo e outro, os dá a

sensação de não pertencer a lugar nenhum, havendo um desarranjo total do ser e estar no

mundo. Esta relação é por muitas vezes, envolvida por crises, que pode fazê-los desistir de

viver143. Portanto, concordamos que:

[...] o que nos aterroriza nos sonhos é a denúncia que nós mesmos nos

fazemos de nossos temores e terrores, matérias-primas de nosso

conformismo. A coragem de conhecer da nossa noite põe diante dos nossos

olhos e da nossa consciência a coragem que nos falta durante o dia em face

do que nos conforma e nos obriga. A loucura da noite e do sonho denuncia a

insanidade do dia e da vigília: a insanidade de um agir conduzido e

demarcado por um querer alheio e não interrogado nem questionado

(MARTINS, 1996, p. 16).

É nesta condição de medo, terror e horror que as sociedades indígenas vivem seus

tensionamentos entre reserva e cidade, entre o ―mundo dos brancos‖ e o ―mundo dos ìndios‖,

no sentido de os distanciamentos entre indígenas e não indígenas, e permitimos dizer que as

mesmas também se fazem em relações de aproximação do viver em entre-lugares.

No que concerne ao Kaiowa Rodrigo (2009), ao demonstrar suas relações com não

indígenas fora da reserva percebemos que é, na grande maioria das vezes, uma relação

conflituosa. É a partir da escola não indígena, entre outras relações socioespaciais, que ocorre

o desencontro entre índios e não índios, que esses conflitos se colocam na vida de Rodrigo.

Estudando grande parte de sua vida ―fora‖ da RID, as suas principais manifestações em torno

de suas relações com não indígenas se deram na Escola Estadual Professor Celso Muller do

Amaral, onde cursou parte do ensino fundamental e todo ensino médio. Demonstra que na

escola sua principal identificação é ser ―o ìndio‖.

143

Podemos pensar como parte desta (des)figuração as ocorrências de suicídios nas reservas, dominado pelo mal

estar.

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Eu estudei na cidade. Na cidade é melhor estudá... [silêncio]. Muita gente

me chama de índio... fala assim, olha o índio, ow índio... [...] Eu ia, é... vô

de bicicleta, vô e volto. Ando muito de bicicleta. A escola não é longe, é

perto. Lá tenho amigos, mas tem uns que num conversa, nunca conversô

comigo. [...] É o seguinte, quando entra [entrei] lá na escola, ficava mais

sozinho, no canto mêmo... [risos]. É assim a escola... Hoje já tenho amigo

branco. [...] na escola eu tenho amigos lá, é legal. Mas tem gente que nem

vê você... [...] Onde estudo, tem bastante índio que estuda lá, a maioria fica

sozinho no recreio... [silêncio] ninguém conversa com ele. [...] eu já fiquei

sozinho, ficava sentado lá, olhando...

Com base na narrativa do jovem Kaiowa Rodrigo, é perceptível que suas relações

com não indìgenas, ―dentro‖ e ―fora‖ da escola, são relações conflituosas. Na Escola Estadual

Professor Celso Muller do Amaral a sua identificação, principalmente, por parte dos não

indígenas, remete-se a sua identidade indígena, que é a oposição-diferenciação com o não

índio. As identidades, neste contexto, são acionadas para diferenciar, classificar e segregar,

tendo em vista que ser indígena na escola é ser o diferente, é ser o estranho.

Por vezes, é notório que os meios de inserção de alguns jovens indígenas no mundo

dos ―brancos‖ se fazem de maneira a buscar nos seus modos comportamentais, modos de

inserção na sociedade não indígena, no caso de Rodrigo, na vida dos alunos e alunas nas

espacialidades-territorialidades da escola. A partir de Frantz Fanon (2008, p. 136), pensando o

negro no mundo dos brancos, neste caso, o Kaiowa Rodrigo no mundo dos não indígenas, há

necessidade de considerar algumas questões.

Qual é a nossa proposição? Simplesmente esta: quando os pretos abordam o

mundo branco, há uma certa ação sensibilizante. Se a estrutura psíquica se

revela frágil, tem-se um desmoronamento do ego. O negro cessa de se

comportar como indivíduo acional. O sentido de sua ação estará no Outro

(sob a forma do branco), pois só o Outro pode valorizá-lo. No plano ético, ou

seja, a valorização de si. Mas há algo mais [...].

O ―desmoronamento do ego‖, apontado pelo autor, é fundamentalmente inerente nas

relações de vergonha e medo que Rodrigo sente e vive na escola. Em todas essas relações de

encontro e desencontro com o mundo não indígena, passa a acreditar que, ao parecer com

eles, poderá melhor relacionar-se e reconhecer-se neles.

O mundo de Rodrigo no universo da cidade é carregado de recordações de

preconceito e descriminação. Diz que no final do ano de 2007 entrou em uma livraria para

comprar canetas e a dona da loja o expulsou dizendo que os indígenas queriam roubar suas

terras: ―ela estava muito brava, disse que eu queria a loja dela... eu não queria... fui só

comprá a caneta [...]. Ai a dona, a mulher disse assim... lugar de índio num é com os

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branco... (silêncio e lágrimas). [...]. disse que era feio, sujo... falô assim: o índio é assim! Não

gosto de lembrá disso‖ (Rodrigo, 2009).

A narrativa de Rodrigo elucida parte dos momentos conflituosos entre indígenas e

não indígenas, parte do processo de identificação e demarcação dos territórios

tradicionalmente ocupados, muitas vezes, permeado pela sensação de vergonha em ―retomar‖

o Tekoha frente à instituição da propriedade privada no Brasil, por muitas vezes, faz com que

alguns indígenas se coloquem contra a demarcação das terras indígenas. Conversando com a

Kaiowa Odália (2010), a mesma diz que ―[...] sou contra a demarcação porque a gente nem

pode mais andá na cidade, as criança tá tudo vista como animal, aí é muita vergonha... [...]‖.

Nas narrativas dos não indígenas, a demarcação das terras indígenas é vista de

diversas formas, alguns até reconhecem de direito dos indígenas, mas acrescentam sempre

que primeiramente ―estes tem que ter vontade de trabalhar‖, como sinaliza um comerciante.

Ainda há aqueles que percebem a presença indígena, mas a mesma é referenciada a uma

condição de medo, como relata a comerciante Maria (2009).

[...] não sei o que dizer, mas, os índios são assim, eles andam aqui todo dia,

acho que só fazem isso. Acho que eles têm que vivê melhor, mas eles têm que

trabalhá, tem que cuidá dessas crianças deles. [...] Elas anda todas suja,

vem todas sujas da aldeia [...]. Vem aqui e gastam tudo [...] não tem noção

não, eu não sei, mas acho que quer a terra é pra trabalhá, só querem bebê,

vira e mexe passa um bêbedo aqui, caindo, mas quer a terra dos outros?

Não sei, o governo tem que vê isso [...]. Eu não gosto de falá, mas é

verdade, você anda pela cidade, você só vê índio bêbado, roubando, é desse

jeito. Quando vejo... é, vejo alguns deles vindo, eu não fico perto, falo pra

não ficá perto. Tenho medo!

A relação que a comerciante faz entre os indígenas e a sujeira busca correlacioná-los

a ideia de que alguns problemas da cidade de Dourados, como o alcoolismo e a violência têm

sua causa na proximidade da reserva com a cidade. Contrariamente a percepção da

comerciante, a terra para muitos Guarani e Kaiowa é um modo de viver, podendo ser

considerada a partir da narrativa do Kaiowa Ñanderu Jorge, ao sinalizar que ―[...] o Kaiowa é

terra, nós somo terra, vive da terra, a vida do índio é terra. Os branco... vocês... quê fica no

limpo. É diferente, fazendeiro não qué a terra [...]144‖.

144

A partir desta relação entre o fazendeiro e Jorge nos modos de apropriação da natureza, quando Jorge diz que

―o fazendeiro não qué a terra‖, demonstra que para os Guarani e Kaiowa, a terra não é só o chão em se produz

mercadorias, mas é o território onde propicia o exercício de um modo de viver. Assim, a terra-território

confunde-se com o seu próprio ser, pois está relacionado à multidimensionalidade da vida, enquanto, para o

fazendeiro, a terra é mercadoria, pois a sua principal relação com a terra é fundamentalmente negócio. O que está

em questão é que as relações com o fazendeiro com a terra, se faz por meio de que a garantia de sua posse se dá

por meio de que o mesmo comprou, pagou e produziu e produz na terra. Ainda, ao dizer ―que o fazendeiro não

cuida da terra‖, o que está implìcito nesta relação são outras formas de apropriação do território, tendo em vista

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Desta forma, as relações entre indígenas e não indígenas na cidade, participante do

discurso dominante, sempre se faz na prerrogativa de que ―lugar de índio é na reserva‖,

buscando ―restringir‖ a participação indìgena na sociedade douradense não indìgena à reserva.

A reserva se coloca como fronteira que divide ―o mundo dos brancos‖ do ―mundo dos

indìgenas‖, viabilizando necessidades de identificação do que é ser o indígena na cidade, de

modo que estas identificações, dialogando com Doreen Massey (2008, p. 31) podem ser

pensadas da seguinte forma:

[...] se nenhum lugar/espaço é uma autenticidade coerente e contínua, então

uma questão que é levantada é a de sua negociação interna. Se as

identidades, tanto as especificamente espaciais quanto as outras, são, de

fato, construídas relacionalmente, então isto coloca a questão da geografia

dessas relações de construção [...] (grifo nosso).

Desta forma, a formação e construção de identidades na cidade, constroem e

redefinem as histórias-trajetórias de indígenas e não indígenas, possibilitando a construção de

identidades e identificações diversas no espaço-tempo, como ocorrente na Vila Índio, na qual

a necessidade de viver na cidade fez surgir uma nova identidade-identificação para os

indìgenas, atrelado ao ser ―paraguaio‖. Por muitas vezes, os indìgenas sinalizam que é melhor

identificar-se como paraguaio do que como indígena, pois ser paraguaio possibilita melhores

condições para sua inserção como mão de obra local, principalmente para as mulheres que

trabalham como domésticas, pois segundo uma indìgena Kaiowa (2009), ―o branco sabe que

é índio, mas é melhor contrata paraguaia‖.

Percebe-se assim, que as identidades são negociadas, tanto com os ―brancos‖ que

preferem sua identificação atrelada ao paraguaio e por parte dos indígenas que negociam as

facilidades de trabalhar na cidade, acionando a identidade paraguaia. Nas relações que

que, muitas vezes, a terra deixa de ter valor de uso, passando a ter explicitamente valor de troca, é

fundamentalmente negócio, no caso, o agronegócio. A terra para o fazendeiro, a partir de José de Souza Martins

(1981, p. 55), é terra de negócio, pois em comparação com as relações não tipicamente capitalistas como o

campesinato, o autor assinala que: ―Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio,

em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de

trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro‖. Desta forma, aproximando-

se do autor e trazendo o debate para a questão indígena, é possível dizer que o significado da terra para o

fazendeiro difere das relações que envolvem o indígena e a terra. Com relação aos indígenas temos que

considerar a relação terra-mato, pois fundamentalmente o que difere o indìgena de pertencer a terra e ―ser terra‖,

é marcado pela relação que envolve os laços com o território, envolvendo relações materiais e imateriais,

permeadas de significados. Desta forma, podemos dizer a partir de Joel Bonnemaison e Vanuatu Orstom (2002,

p.123), considerando estas relações de pertencimento com os lugares, a partir de geossìmbolos, que ―[...] os

lugares, os rochedos, os bosques de arvoredos, os caminhos: cada um deles tinham um nome e possuía um

sentido [...]‖. Com base na relação de apropriação do território entre Jorge e o fazendeiro, podemos dizer que os

distanciamentos entre indígenas e não indígenas envolvem em conjunto de relações socioterritorias distintas, ou

seja, os diferentes modos de apropriar-se do espaço e as relações distintas de ser e estar no mundo.

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envolvem os indígenas na cidade, podemos dizer que as identidades estão em negociação no

espaço-tempo, podendo dizer que, transitar e vivenciar a cidade nas relações com os não

indígenas é negociar identidade(s).

Os caminhos percorridos pelos indígenas da reserva à cidade devem ser pensados

como sendo resultados/resultantes dos desdobramentos de novas territorialidades que os

Guarani e Kaiowa passaram a vivenciar ―fora‖ de seus territórios tradicionalmente ocupados,

ou seja, na construção de multiterritorialidades. A cidade não está ―fora‖ da reserva, pois a

mesma se faz adentrando e modificando as relações internas e externas a ela mesma, pois

―[...] a cidade tá pertinho da gente, pareci que tá aqui‖ (Ñandesy Floriza, 2010) (ver Foto V).

Foto V – Indígenas cruzando a Avenida Marcelino Pires em Dourados

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2011.

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QUINTO CAPÍTULO

TERRITÓRIOS EM DISPUTA E AS MULTITERRITORIALIDADES

NAS RETOMADAS DOS TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE

OCUPADOS: O TEKOHA

A problemática do território é central na existência atual dos índios e se

reflete não apenas nas suas mobilizações político-reivindicatórias, mas

também ocupa uma posição central na definição dos padrões de sua

organização social e nas suas manifestações identitárias e culturais. Mas da

sua importância atual não é possível deduzir automaticamente a sua

relevância em outros contextos históricos muito diferentes.

João Pacheco de Oliveira (1999, p.108).

Neste quinto capítulo, buscamos demonstrar os conflitos em torno das disputas

territoriais, sendo que essas disputas perpassam fundamentalmente pelas formas distintas de

apropriação social da natureza envolvendo indígenas e não indígenas. As disputas territoriais

envolvem a seguinte contradição: se para alguns a apropriação da natureza liga-se, a priori, à

dominação da natureza, em que os homens e mulheres aparecem divorciados desta, para os

Guarani e Kaiowa, o território é, principalmente, o espaço onde a multidimensionalidade da

vida se realiza, ou seja, é onde essas sociedades podem se reproduzir material e

simbolicamente. De maneira geral, podemos dizer que a importância da busca pelo território

se dá pelo fato do mesmo ser a junção do chão (natureza/material) mais a identidade

(imaterial), como afirma Milton Santos (2006). Por isso, ele ó trunfo (RAFFESTIN, 1993)

para as sociedades Guarani e Kaiowa.

Nosso objetivo é o de revelar as múltiplas estratégias de luta e resistência dos

Guarani e Kaiowa no que concerne a retomada dos territórios tradicionalmente ocupados –

Tekoha. Esta luta está diretamente relacionada com a contraposição de se viver em condição

de reserva, pois é nos territórios tradicionalmente ocupados que os Guarani e Kaiowa buscam

reproduzir seu modo de viver pautados nas relações do modo de vida dos antigos.

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Podemos considerar que as lutas em torno das retomadas territoriais Guarani e

Kaiowa é, fundamentalmente, a busca pela reterritorialização, ou seja, é a necessidade de

retorno ao Teko Porã. Tendo em vista que a possibilidade de viver o Teko Porã é

inviabilizada para algumas famílias em condição de reserva, havendo a necessidade de

disputar o território com as novas formas de apropriação social de seus territórios

tradicionalmente ocupados. Assim, se a RID foi criada com a finalidade de desorganizar os

modos de vida das sociedades indígenas, as lutas pelos territórios tradicionalmente ocupados

se colocam em disputas pelas mais diversas formas de apropriação da natureza, em que

distintos modos de ser e estar no mundo impõe múltiplos modos de interação com/na

natureza.

Desta forma, as relações humanas na vida concreta se fazem agindo e interagindo

com as riquezas naturais, se fazem estabelecendo formas diferenciadas na constituição-

organização dos territórios, e são estas múltiplas relações que necessitam e passam pela

construção e identificação das gentes com/na natureza, que possibilitam a construção e

criação de territorialidades múltiplas. Por isso, centramos nossa análise nas

multiterritorialidades de sonho e esperança pelo retorno dos Guarani e Kaiowa ao Tekoha.

Estas estão materializadas nas múltiplas formas de resistir e re-existir ao processo de

desterritorialização de seus territórios tradicionais.

As estratégias de luta e re-existência estão sendo construídas nas relações

estabelecidas entre várias modalidades territoriais: as cidades, os acampamentos de

retomadas, as fazendas, os acampamentos de Reforma Agrária, os acampamentos em área de

litígio e fazendas, em suma, estratégias que se fazem por meio de territórios-rede, dando-se

também pela busca de parcerias e alianças políticas, seja com as famílias que estão lutando

pelo retorno a partir da RID, nos acampamentos de retomadas, ou com aqueles que traçam

suas lutas entre o acampamento e a reserva.

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5.1 – “O Kaiowa é mato, vive do mato”: a necessidade de retorno ao Tekoha

―A terra no limpo, o calor que vem pra gente, o mato não é uma coisa que,

mesma coisa que você tá aqui dentro [ogapysy - casa de reza], sai um

pouquinho pra fora, pro cê vê, o calor. Sapê essas coisas conserva gelado

né, o mato, mesma coisa, num adianta, o calor vem, o calor bate, calor vem

na gente, ninguém aguenta. Se você entra no mato, tem um matinho ali, se

você entra aqui, parece uma coisa que evapora o mato, é assim, por isso que

o passarinho gosta do mato [...]‖.

Kaiowa Ñanderu Jorge - Reserva Indígena de Dourados - Jaguapirú, 2009.

―Temos que regatá [resgatar] nossa cultura. Criança tem que saber rezá,

tem que aprender isso daí. Antigamente, antigamente memo... era diferente

isso daí. Vovô e vovó... é... aprendia de pequenininho ainda... Naquele

lugar, onde os índios morava era coisa mais linda [...]. Era bonito isso daí.

Tinha bastante urucu lá. A gente tem que voltá. Tem que mostrá a cultura...

Criança, o jovens já num ouvi mais.. Tem que sabê a cultura. [...]‖.

Kaiowa Ñandesy Floriza - Reserva Indígena de Dourados- Jaguapirú, 2009.

O Kaiowa Ñanderu Jorge (2009) ressalta a importância da terra para os Guarani e

Kaiowa advertindo que, mais do que terra, as lutas pelo retorno aos Tekoha estão

intrinsecamente relacionadas à multidimensionalidade que liga o homem a natureza, tais

como os cursos d‘água, a fauna, a flora e, juntamente a estes, as espacialidades construìdas

com o mundo sobrenatural. Neste sentido, podemos dizer que as lutas pelo retorno aos Tekoha

se dão na busca pelo Teko Porã, fundamentalmente por ser este, como aponta Bartomeu

Melià (2008, p. 103), ―[...] es ‗lo que está bien‘ [...] um cuadro de virtudes, ante todo sociales,

pero que rigen también lós comportamientos individuales [...]‖.

A luta pela terra é um movimento político-ideológico apropriado pelos movimentos

sociais indígenas e não indígenas que significa, substancialmente, a luta pela terra-território,

ou seja, são disputas territoriais que se fazem pela busca de um jeito de ser e estar no mundo-

lugar. Nesta perspectiva, no que concerne à busca pelo Teko Porã, este se dá pela realização

totalizadora do território que tem maior representatividade na vida Guarani e Kaiowa em seus

referenciais materiais-simbólicos com a ―terra-mato‖ do que em referência a terra-solo,

considerando que sua importância se dá através do/pelo terra-mato, no sentido de que a ―terra

no limpo‖ não traz a amplitude do modo de vida Guarani e Kaiowa. Por isso, o valor da terra

se dá pelas relações com todos os aspectos naturais que envolvem a própria terra, como a

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relação com o mato e, também pelas práticas humanizadoras que integram o território com

seus modos de vida, seja na construção de espaços de morada e na sustentabilidade das

gentes, seja pela produção de alimentos - agricultura145.

Neste sentido, na terra-mato, se reproduz um modo específico de viver, onde as

relações humanas com a natureza se fazem na multidimensionalidade do Tekoha, que liga os

Guarani e Kaiowa à natureza, confundindo-a consigo próprios. Como demonstra Jorge, ―o

Kaiowa é mato, vive do mato‖, demonstrando que as relações gentes e natureza não estão

dissociadas, mas, sim, se fazem imbricadas, logo, gentes-natureza. O que esta relação implica

é que em grande medida a representatividade do mato demonstra a amplitude

multidimensional do território, já que consideramos que sem o mato, as relações com a terra,

com as águas e com a fauna, ficam prejudicadas, impossibilitando os Guarani e Kaiowa de

reproduzir e vivenciar o Teko Porã.

Neste sentido, podemos dizer que a natureza tem uma representatividade muitíssimo

importante para a reprodução do modo de vida Guarani e Kaiowa, explicitamente porque o

mato e/ou:

[...] a floresta com seus campos naturais era "tudo o que contava", era tudo o

que conheciam do mundo, era o seu mundo. Domesticar a floresta com seus

perigos era a oportunidade que tinham os homens para desenvolver sua

personalidade e para obter prestígio. A comunicação vital com os animais e

com os espíritos da floresta permitia-lhes desenvolver sua rica vida

espiritual. Tudo isto está irremediavelmente perdido, pois com a perda da

floresta, também se perdeu, quase ao mesmo tempo, os saberes a ela

relacionados e a prática da convivência vital com as plantas e os animais

(GRÜNBERG, 2011, p. 02).

Os Guarani e Kaiowa estabelecem uma relação direta com o mato. O mato é a

possibilidade de viver, nele se encontra a terra boa e farta, onde estão os deuses no qual deve

se pedir permissão para caçar, coletar... É no mato que se está o peixe, pois é pelo mato que os

145

Segundo Levi Marques Pereira (2004, p.207-208) ―A agricultura Kaiowa, pelo conjunto de técnicas

empregadas, não acarreta a exaustão do solo quando praticada dentro das condições demográficas que

prevaleciam antes da ocupação agropecuária. Trata-se de uma policultura em grande medida compatível com os

processos de regeneração natural da floresta e, consequentemente, de manutenção da fertilidade do solo.

Aplicando o consórcio de espécie de distintas estaturas, a vegetação forma andares ou extratos, impedindo a

incidência direta dos raios solares sobre o solo, o que provocaria a queima da matéria orgânica e a aceleração da

volatilização de determinados nutrientes. Em certo sentido, as espécies cultivadas imitam os processos que

ocorrem na vegetação da floresta: plantas com distintos sistemas radiculares retiram nutrientes das diversas

camadas do solo, realizando a sucção seletiva dos nutrientes de acordo com as necessidades de cada espécie. Isto

possibilita o aproveitamento ótimo da água e dos nutrientes do solo. Por outro lado, os restos vegetais que

permanecem sobre o solo (troncos, tocos e galhos) reduzem o impacto direto da água da chuva, reduzindo à

incidência da erosão, principalmente quando se trata de solos porosos, sujeitos à lixiviação [...]‖. Estes fatores

como pontua o autor, coloca a agricultura como uma atividade econômica importantíssima para os Guarani e

Kaiowa, colocando-a em risco pela impossibilidade de áreas propicias para sua reprodução, como é o caso da

RID.

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Guarani e Kaiowa acessam os rios, os córregos, acessam seus modos múltiplos de viver no

Tekoha, fundamentalmente, nas relações com/na natureza que os permite humanizá-la, assim

como ver-se como parte dela.

A necessidade em retornar aos Tekoha, nas palavras do Kaiowa Ñanderu Jorge,

―retomá nosso Tekoha‖, se dá pela incessante luta pelo sonho em reviver as relações

socioterritoriais do Tekoyma, em sair da precariedade da territorialização na RID que, em suas

palavras, impõe o Tekopyahu. Neste contexto, as disputas territoriais se dão na congruência

das disputas pelo espaço natural-social, já que a terra é uma de suas dimensões. Por isso, a

luta pelo retorno se faz na perspectiva da totalidade do território, ou seja, pela apropriação

material e simbólica que permite a sobrevivência físico-biológica e cultural das gentes em sua

multidimensionalidade.

Nesta perspectiva, Boaventura de Souza Santos (2003, p.60) aponta as dicotomias de

sentido entre terra-propriedade, numa perspectiva eurocêntrica, e os territórios indígenas

significando à vida. Em suas palavras: ―[...] a concepção eurocêntrica de ―terras indìgenas‖,

sujeitas ao direito de propriedade, e as concepções indìgenas de ―território‖ que designam um

espaço coletivo pertencente a um povo [sociedade], aos que hoje o integram e aos seus

antepassados [...]‖.

A busca pelo retorno aos Tekoha é uma luta pelo retorno aos espaços de caça, de

pesca, de coleta, de moradia, de agricultura e de todas as relações cosmológicas que permite a

ligação dos Guarani e Kaiowa com a natureza. Estes espaços são conquistados, também, a

partir das lutas por garantias de direitos principalmente depois do reconhecimento na

Constituição Federativa do Brasil de 1988, no parágrafo I do seu artigo 231, que:

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas

146 pelos índios as por eles

habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades

produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais

necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua preservação física e

cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Os movimentos sociais indígenas147, a partir da década de 1970, conquistaram a

garantia de direitos aos índios com a constituição de 1988. No que concerne ao movimento

146

Ao conceituar as terras tradicionalmente ocupadas, a Constituição de 1988 rompe com o paradigma da

―Imemoralidade‖ que orientava os trabalhos de demarcação. Estes trabalhos ficavam orientados em uma

perspectiva muito mais arqueológica do que histórica e antropológica. Ao referir-se ―são terras tradicionalmente

ocupadas‖ buscaram pensar o modo tradicional em que os ìndios ocupavam e utilizavam as terras,

proporcionando a reprodução do modo de vida (ARAÚJO, 2006). 147

A primeira Assembleia Indígena foi realizada em Diamantino/MT em abril de 1974. Na década de 1980 a

principal bandeira é a luta pela terra, pelo reconhecimento étnico, pelo respeito ao modo de vida das

comunidades indígenas e pela construção de autonomia perante o Estado (SILVA, 1999).

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indígena, Daniel Munduruku (2004, p.322-323) prefere denominá-los de indígenas em

movimento, pois o autor considera que estes não formam um todo ―homogêneo‖ e unificado.

Em suas palavras:

[...] Não considero exatamente um movimento, não chamo movimento

indígena, mas estou usando um trocadilhozinho: que sempre existem

indígenas em movimento. Porque o movimento indígena requer mais ou

menos um grupo caminhando com suas próprias pernas. [...] Porque, em uma

sociedade como a indígena, que é plural, que é ―pluriétnica‖, não pode ter

unanimidade. [...] E isso torna o movimento indígena um pouco frágil.

O que o autor chama atenção é para pensarmos o movimento indígena na perspectiva

das multiplicidades do ser indígena, pressupondo que cada sociedade indígena vive uma

realidade específica. Mesmo assim, estes buscavam maiores forças para a resistência e para as

garantias de direitos comuns frente ao estado nacional. Segundo Gerson dos Santos Luciano

(2006, p.61), ―[...] existem muitos movimentos indìgenas, uma vez que cada aldeia, cada povo

ou cada território indìgena estabelece e desenvolve o seu movimento‖.

Neste contexto, o movimento indígena e/ou indígenas em movimento criaram a UNI

(União das Nações Indígenas), no contexto do encontro de lideranças indígenas em Campo

Grande, entre os dias 07 e 09 de julho de 1980. Várias lideranças indígenas estavam

organizadas discutindo questões em comum, principalmente no que concerne as lutas pelo

retorno aos territórios tradicionalmente ocupados148.

Neste contexto, pode-se dizer que com a constituição de 1988 a garantia de direitos,

até então não reconhecidos aos ìndios, passaram a ser considerados. ―Saindo de cena‖, ao

Nesse sentido, a partir de 1970 com uma organização efetiva de indígenas nos quatro cantos do Brasil, se

estabelecia um contraponto as políticas desenvolvimentistas de integração que iniciaram, especificamente, a

partir de 1950, nos ―últimos refúgios‖ de indìgenas no Brasil que levara ao processo de desterritorialização das

sociedades indígenas dos seus territórios tradicionalmente ocupados. 148

Participaram da reunião, lideranças como: Daniel Matenho, Mário Juruna, Angelo Kretan, Marcos Terena,

Ailton Krenak, Marçal de Souza, entre outros. O movimento indígena organizava-se contra a repressão e

desrespeito aos direitos das sociedades indígenas, advindo de um processo de abertura política após o período de

1964 a 1985 da Ditadura Militar. É neste mesmo contexto que a representatividade da liderança indígena Marçal

de Souza, assinado em 1987 por pistoleiros a mando de fazendeiros em Mato Grosso do Sul, desponta como uma

das maiores lideranças indígenas do país.

O Guarani Marçal de Souza - Tupã‘i (Pequeno Deus Trovão) foi uma dessas lideranças extremamente

representativa no movimento indígena, sendo que sua importância foi essencial para a organização do

movimento indìgena na década de 1980. Em suas palavras, ―Aqui estou representando duas aldeias: Posto

Indígena Dourados e a idéia Campestre. Seu eu tivesse na aldeia, não teria oportunidade de chegar até aqui,

porque eles - os chefes brancos, os capitães manipulados pelo posto [da Funai] - não dariam licença pra gente

sair. Primeiro, porque sou enfermeiro da Funai e, segundo, porque sou índio e índios não tem licença de sair.

Tem de estar baixando a cabeça, pedindo bênção pra branco da Funai para poder sair e, às vezes, eles não

deixam. E se a gente teimar, eles – a polícia indígena148

ou a Policia Federal – pegam a gente em qualquer lugar

e levam pra trás. Atualmente, estou trabalhando na fronteira com o Paraguai, lá numa aldeia muito pequena,

composta de 9 famílias apenas. Lá nós não temos lugar ainda, nada definido. Vivemos de teimosia. Nós temos

que teimar, meus irmãos, teimar e bater, e bater e lutar, e lutar pra poder sobreviver neste país tão imenso e tão

grande e que foi nosso e que foi roubado de nós‖ (apud PREZIA, 2006, p. 56 - 57).

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menos no âmbito dos discursos políticos, modelos de sociedades indígenas futuristas, na

perspectiva da integração e assimilação destas sociedades à sociedade nacional, que visavam

transformá-los em não índios, trabalhadores rurais e cristãos (LIMA, 1995).

Sobre a Constituição de 1988, João Pacheco de Oliveira Filho (1999, p. 205) assinala

que:

Há também mudanças significativas no contexto jurídico-legal. A

constituição de 1988 dedica um capítulo inteiro aos índios, reconhecendo

seus direitos às terras de ocupação tradicional, bem como à preservação de

sua cultura e de canais próprios de expressão e representação (antes

monopolizadas pela FUNAI em decorrência de um entendimento restritivo

da tutela). A lei complementar que substituiu o Estatuto do Índio (Lei

6.001/73) tem como inovação doutrinária fundamental o reconhecimento

das ―sociedades indígenas‖ como coletividades situadas entre os índios

(enquanto indivíduos e cidadãos brasileiros) e o Estado. Trata-se de um

passo importantíssimo no sentido de rever os pressupostos

homogeneizadores que nortearam a implantação dos Estados modernos,

transplantados para as instituições políticas brasileiras e que embasaram

políticas integradoras e assimilacionistas inclusive num passado recente.

A partir de Roberto Cardoso de Oliveira (2006), podemos dizer que embora a

Constituição Federal de 1988 redefinisse a herança tutelar das sociedades indígenas,

implícitas no Código Civil de 1916 (tutelados - Lei do SPI), permitindo que estes individual

ou coletivamente possam se organizar, não mudou estruturalmente uma das principais

diretrizes das políticas indigenistas oficiais. Ou seja, o Estatuto do Índio criado em 1973,

ainda vigente, é assentado na integração e assimilação dos indígenas. Em síntese, é parte

integrante de um modelo de tutoria que nega a autonomia das gentes indígenas de tomarem

suas próprias decisões e serem agentes de suas próprias histórias.

Contudo, é nesse processo de lutas dos movimentos indígenas que se torna

fundamental entendermos as lutas Guarani e Kaiowa pelo retorno aos territórios

tradicionalmente ocupados, pois estas implicações foram estabelecidas praticamente no

mesmo período em que o movimento indígena no Brasil passa a ter maior força política. Há

necessidade de se considerar que neste período praticamente todas as terras tradicionalmente

ocupadas tinham ou estavam sendo ocupadas por não índios, tendo no aparelho do Estado seu

principal ―financiador‖ e interlocutor para a perda dos territórios indìgenas, como é caso do

estado de Mato Grosso do Sul.

Pensando os movimentos indígenas, Lino João de Oliveira Neves (2003, p. 115-116),

assinala que:

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Para o movimento indígena no Brasil, os anos 70 representam o período das

―assembleias indìgenas‖, marcado por descobertas mútuas e trocas de

informação sobre os contextos interétnicos enfrentados por cada povo. É

nessa fase que a troca de experiências e problemas vividos dá origem a uma

noção de solidariedade indígena nunca antes experimentada, constituindo um

―espìrito de corporação‖ [...] que é a marca dessa fase e que passou a ser à

base de todas as mobilizações indígenas.

Os movimentos de afirmação étnica tomam conta das conjunturas sociais, até então

estabelecidas, visando garantir a estas sociedades diferenciadas o direito e o reconhecimento

de serem diferentes, na medida em que esta diferença implica garantias de direitos

específicos, assim o reconhecimento das multiplicidades de ―histórias-trajetórias‖ que estão

sendo construídas no espaço-tempo. Cabe ainda considerar que os movimentos sociais não só

indígenas, neste período, surgiram da necessidade de sair da invisibilidade, passando a

marchar por garantias de direitos historicamente negados, de forma que ―[...] o principal papel

de um movimento social é o de ajudar a mudar as representações vigentes em uma sociedade‖

(NEVES, 2005, p. 92).

Partimos do pressuposto de que o nascimento dos movimentos indígenas se deu

prioritariamente na busca por garantias de direitos aos territórios tradicionalmente ocupados,

passando pelo contexto de buscar o reconhecimento da sociedade nacional sobre tais direitos.

Neste sentido, Paulo Suess (1997, p. 30) afirma:

[...] se não mudarmos a imagem que a sociedade brasileira tem dos povos

indígenas, dificilmente mudaremos o quadro da defesa de sua causa.

Historicamente, a sociedade brasileira privilegia a imagem do colonizador

sobre o colonizado. Nesta visão, o índio [assim, como outros sujeitos] é

preguiçoso, improdutivo, atrasado e infantil. Trabalhar o imaginário e as

representações negativas nas respectivas sociedades nacionais é um

imperativo pedagógico.

Concordamos com Suess (1997, p. 30-31) de que a mudança do imaginário e a

criação de um novo ―[...] são processos demorados que inspiram e pressupõem novas

avaliações, motivações e comportamentos. Sem a mudança do imaginário é impossível pensar

em mudanças persistentes da realidade sócio-polìtica‖. Mudar o imaginário é imaginar outras

possibilidades de imaginar os outros e nós, priorizando o reconhecimento do outro na sua

diferença, fundamentalmente, nos pressupostos considerados por Boaventura de Souza Santos

(2003, p.64) da necessidade de ―defender a igualdade sempre que a diferença gerar

inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade implicar descaracterização‖.

Neste contexto, na busca pelo reconhecimento do outro na diferença é necessário

dizer que as lutas em torno dos territórios tradicionalmente ocupados se dão em torno de

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modos de vida diferentes em disputa que se fazem nas distintas formas de apropriação e uso

das riquezas naturais. Portanto, as disputas territoriais se fazem pelas relações que estas gentes

estabelecem com a natureza e, a partir dela, com o espaço cultural-sobrenatural, pois estes são

partes fundantes da constituição do modo de vida Guarani e Kaiowa, fazendo-se em

referência as espacialidades e temporalidades vividas pelos antigos, em contraposição à

territorialização precária nas reservas.

É necessário ressaltarmos que no sistema-mundo moderno-colonial, as disputas

territoriais envolvendo os Guarani e Kaiowa se dão, sobretudo, no entorno da expansão

territorial do capitalismo no campo, que avança sobre os territórios tradicionalmente ocupados

de forma mais intensa a partir de 1950. Esta expansão se dá a partir de um modelo de

desenvolvimento desigual e combinado, considerado por Ariovaldo Umbelino de Oliveira

(2003)149, impondo às sociedades indígenas, mas também aos camponeses, remanescentes

quilombolas, entre outras racionalidades não capitalistas150, um modo único de viver,

expropriando-os de seus territórios (desteritorializando). As disputas territoriais têm como

eixo central as distintas formas de apropriação social da natureza entre as formas capitalistas

(agronegócio) e as formas não capitalistas de produzir os seus territórios. Deste modo, Carlos

Walter Porto Gonçalves (2006, p. 61) aponta que:

O desafio ambiental está no centro das contradições do mundo moderno-

colonial. Afinal, a ideia de progresso e, sua versão mais atual,

desenvolvimento é, rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza!

Portanto, aquilo que o ambientalista apresentará como desafio é, exatamente,

o que o projeto civilizatório, nas suas mais diferentes visões hegemônicas,

acredita ser a solução: à ideia de dominação da natureza do mundo

moderno-colonial, o ambientalismo coloca-nos diante da questão de que há

limites para a dominação da natureza.

A dominação da natureza, marcada pelo símbolo do progresso e do desenvolvimento

é parte da racionalidade do que constitui o sistema-mundo moderno-colonial, já que a

natureza impõe novos limites de atuação, marcados por grandes desastres naturais, logo,

149

Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2002, p. 46) ―o desenvolvimento capitalista se faz movido pelas suas

contradições. Ele é, portanto, em si, contraditório e desigual. Isso significa dizer que para que seu

desenvolvimento seja possìvel, ele tem que desenvolver aqueles aspectos aparentemente contraditórios‖.

Ainda é necessário dizer, a partir de Rosemeire Aparecida de Almeida apud Ariovaldo Umbelino de Oliveira

(2003, p.75), que ―[...] o desenvolvimento do capitalismo tem que ser entendido como processo (contraditório)

de reprodução capitalista ampliada do capital. E esta como reprodução de formas sociais não-capitalistas,

embora a lógica, a dinâmica, seja plenamente capitalista; neste sentido o capitalismo se nutre de realidades não-

capitalistas, e essas desigualdades não aparecem como incapacidades históricas de superação, mas mostram as

condições recriadas pelo desenvolvimento capitalista‖. 150

Estamos concebendo como relações sociais não capitalistas todas aquelas que não tenham como princípio

fundamental a lógica dominante de produção visando à acumulação ampliada de capital (MARTINS, 1981;

OLIVEIRA, 1997; 1999; 2004; FERNANDES, 2005; 2009; ALMEIDA, 2006).

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desastres sociais. Neste sentido, Eduardo Viveiros de Castro (2008, p. 12) coloca-nos que

―Devastamos mais da metade de nosso País pensando que era preciso deixar a natureza para

entrar na história: mais eis que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia,

exige-nos agora como passaporte justamente a natureza‖.

Portanto, consideramos que as lutas pelos territórios tradicionalmente ocupados

Guarani e Kaiowa trazem em seu bojo disputas territoriais, logo, disputas de saberes sobre a

apropriação da/na natureza, pois estas sociedades pressupõem outras possibilidades de relação

sociais dos homens entre si, com o natural e o sobrenatural, pressupondo outras relações

cosmológicas interdependentes nas relações dos homens com a natureza.

Nestes conflitos entre racionalidades distintas, há a intensificação do processo de

destruição/reconstrução de territórios, e/ou melhor, a reterritorialização destas sociedades em

outras dimensões espaciais, como a cidade, os acampamentos, as fazendas e outras

modalidades de territorialização. Na medida em que as relações capitalistas disputam

territórios com as relações não capitalistas ocorrem às destruições e construções de novos

territórios. Neste contexto, para Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1999, p. 74-75), se faz a

necessidade de pontuar que:

O processo de construção do território é simultaneamente

construção/destruição/manutenção/transformação. Em síntese, é a unidade

dialética, portanto contraditória, da espacialidade que a sociedade tem

desenvolvido. Logo, a construção do território é contraditoriamente o

desenvolvimento desigual, simultâneo e combinado, o que quer dizer:

valorização, produção e reprodução.

Quando assinalamos as lutas das sociedades indígenas em torno dos territórios

tradicionalmente ocupados estamos demonstrando que existem relações não tipicamente

capitalistas, de uso e posse151 sobre as riquezas naturais, conflitando prioritariamente com a

lógica capitalista de produção, indicando a existência das disputas territoriais. A partir de

Bernardo Mançano Fernandes (2009, p.21), podemos pensar estas disputas territoriais

considerando que: ―A construção de um tipo de território significa, quase sempre, a destruição

de um outro tipo de território, de modo que a maior parte dos movimentos socioterritoriais

forma-se a partir dos processos de territorialização e desterritorialização‖.

Dessa forma, nestas lutas em que os territórios e territorialidades estão em disputa, os

movimentos sociais ou grupos sociais que lutam por sua conquista tem o território como

trunfo (RAFFESTIN, 1993; FERNANDES, 2005; ALMEIDA, 2006). Por isso, os

151

Ver Francisco José Avelino Júnior (2004).

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movimentos indígenas (ou os indígenas em movimento, conforme Daniel Munduruku, 2004)

são considerados por Bernardo Mançano Fernandes (2005) como sendo movimentos

socioterritoriais152, pois o que está posto como central nas disputas territoriais envolvendo os

Guarani e Kaiowa na busca em retomar os seus territórios tradicionalmente ocupados

(Tekoha), é a necessidade de continuarem sendo Guarani e Kaiowa a partir dos preceitos do

modo de viver dos antigos (Tekoyma) e este objetivo só poderá ser alcançado com a

reterritorialização aos Tekoha.

5.1.1 - O “discurso competente” do agronegócio - Ordem, Progresso e

Desenvolvimento

―A produção rural de Mato Grosso do Sul vem sendo gravemente afetada

pelas portarias da FUNAI, que trazem insegurança àqueles que querem

investir no setor. Isso prejudica toda a nossa população‖.

Jornal Diário MS, no dia 15 de abril de 2009.

Deputado e fazendeiro José Teixeira

―É muito fácil, índio quer terra. Mais ele num planta, num faz nada na

terra. Isso, eu acho... não é certo, índio tem que querer terra para trabaiá.

Não é querendo terra do outro, ele quer a melhor terra. Meu modo de

pensar é o seguinte: você entrega a terra, ele não vai trabalhar, é o jeito

dele, não quer saber de trabalhar... [...]. Já te muita terra, a reserva é bem

grande [...]. Eu sou contra a demarcação, acho que temos que pensar no

futuro. Quer terra do outro é fácil...‖.

Francisca – Trabalhadora assalariada do comércio de Dourados, 2009.

Estas duas narrativas demonstram minimamente como os indígenas são

representados no imaginário da sociedade moderna-colonial, aparecendo como integrantes do

passado, do atraso, do não trabalho, detentores de muitas terras, em suma, a representação das

contradições fundamentais dos discursos baseados na ordem, progresso e desenvolvimento.

152

―Para evitar mal-entendidos com relação a nosso pensamento, enfatizamos que movimento social e

movimento socioterritorial são um mesmo sujeito coletivo ou grupo social que se organiza para desenvolver uma

determinada ação em defesa de seus interesses, em possíveis enfrentamentos e conflitos, com objetivo de

transformação da realidade. Portanto, não existem ―um e outro‖. Existem movimentos sociais desde uma

perspectiva sociológica e movimentos socioterritoriais ou movimentos socioespaciais desde uma perspectiva

geográfica‖ (FERNANDES, 2005, p. 21).

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303

No contexto dessa premissa utilizada pelos movimentos sociais patronais que lutam contra a

demarcação, Carlos Walter Porto Gonçalves (2006) vai pontuar que o papel ideológico em

torno do desenvolvimento se dá como uma prerrogativa que visa falsear a realidade, como se

fosse possível haver um relógio que marcasse universalmente quem está adiantado e/ou

atrasado no espaço-tempo.

A palavra desenvolvimento é referenciada como sendo sinônimo de crescimento

econômico, pois desenvolver tornara-se assim a única possibilidade para evolução da

humanidade. Inclusive quando pensamos em superação das desigualdades e construção da

igualdade153, não conseguimos superar a homogeneidade do padrão europeu de civilidade, não

respeitando as diferentes temporalidades e territorialidades existentes:

[...] todos temos direito à igualdade - sem que nos indaguemos acerca dos

diferentes modos de sermos iguais, como as diferentes culturas e povos que a

humanidade inventou ao longo da história atestam. Assim, nos vemos diante

de um desses paradoxos do mundo moderno-colonial, em que a superação da

desigualdade se transforma, na verdade numa busca para que todos sejam

iguais... ao padrão cultural europeu norte ocidental e estadunidense [...]

(PORTO-GONÇALVES, 2006, p.64).

Desta forma, as sociedades indígenas aparecem como integrantes do modo incorreto

de viver. Pois, para a maioria dos não indígenas, nestes mais de 500 anos de Brasil, os

indígenas não ―progrediram‖, concepção esta reproduzida por uma comerciante de Dourados

enquanto referia-se aos indígenas e o papel destes na sociedade douradense. A questão

principal do progresso é que com ele está intrinsecamente relacionado à lógica da ordem e do

desenvolvimento. Estes se fazem a partir dos ideários burgueses-coloniais, onde crescimento

econômico se coloca a frente de todas as outras dimensões das relações sociais. Assim, este

projeto de futuro corresponde, ideologicamente, ao almejado pela sociedade capitalista-

moderna-colonial.

153

No que concerne aos ideários de igualdade moderno-colonial, Carlos Walter Porto Gonçalves (2006, p. 62),

pontua que ―Os anos de 1950/60 comportam essa ambiguidade com relação a ideia de desenvolvimento cujos

efeitos se sentirão no novo período do processo de globalização que se lhe seguirá. É que naqueles anos se

questiona desenvolvimento lá mesmo onde ele parecia ter dado certo, na Europa e nos Estados Unidos, ao

mesmo tempo em que essa mesma ideia estará sendo recuperada na América Latina, na África e na Ásia,

quando ganha corpo o subdesenvolvimento. É que na própria ideia de subdesenvolvimento já está embutido o

que seria a sua superação: o desenvolvimento. Deste modo, o desenvolvimentismo ganhava corpo, no mesmo

momento em que o desenvolvimento era questionado. É emblemática nessa situação a posição do governo

brasileiro na reunião de Estocolmo, convocada pela ONU para debater pela primeira vez o meio ambiente, em

1972, quando afirmou que a pior poluição era a pobreza e, a partir daí, convidava a que se trouxesse o

desenvolvimento por meio de investimentos no Brasil. Na época dizia-se – ―venham poluir no Brasil‖ – numa

aceitação absolutamente acrítica de que o desenvolvimento naturalmente está associado à degradação ambiental

– é o preço que se paga pelo progresso, aceitava-se‖.

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304

Neste sentido, o tripé ordem-progresso-desenvolvimento não pode ser pensado

indissociavelmente, pois como demonstra Carlos Walter Porto Gonçalves (2006, p. 61-62), no

que concerne aos usos das riquezas naturais, estas concepções se colocam em contraposição

aos limites impostos na apropriação da natureza pelos homens e mulheres, tendo em vista que:

O desafio ambiental está no centro das contradições do mundo moderno-

colonial. Afinal, a ideia de progresso e, sua versão mais atual,

desenvolvimento é, rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza. [...].

Afinal, ser desenvolvido é ser urbano, é ser industrializado, enfim, é ser tudo

aquilo que nos afasta da natureza e que nos coloque diante de constructos

humanos, como a cidade, como a indústria [...].

Nesta perspectiva, a idéia de desenvolvimento no campo se refere ao não-

envolvimento entre as gentes e a natureza, logo, representa os distanciamentos do homem no

reconhecimento de si mesmo e da natureza, na mesma proporção em que há o não

reconhecimento do outro. É necessário dizer que neste desencontro entre racionalidades

distintas nos diversos usos da natureza, o que denominamos de moderno é prioritariamente o

desrespeito aos limites de uso e apropriação da natureza. Desqualificando, assim, outros

modos de vida, em que natureza e sociedade se fazem conjuntamente, ou seja, envolvendo-os

com a natureza e não contra a natureza (LEFF, 2006).

A questão chave para entendermos os conflitos em torno das disputas territoriais é a

compreensão do discurso latente das classes dominantes para não demarcação dos territórios

indígenas. Este discurso ideológico dominante baseia-se em uma lógica produtivista.

Podemos visualizar essa consideração na frase: ―Sim a produção, não a demarcação!‖,

marcando os slogans por toda a região do centro-sul do estado de Mato Grosso do Sul no ano

de 2008 (ver Figura XII). Esse discurso competente visa desconsiderar as sociedades

indígenas, pois as mesmas são incompatíveis com as relações dominantes estabelecidas na

sociedade capitalista-moderna-ocidental em que, via de regra, há desencaixes nas relações

sociais, considerado por Anthony Giddens (apud Rogério Haesbaert 2007), quando afirmam

que ocorre a separação do espaço-tempo e da natureza-sociedade.

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Figura XII – Discurso do agronegócio contra a demarcação de Terras Indígenas

Fonte: MOTA; KUDLAVICZ; CAMACHO; SOARES, 2008.

A questão primordial apontada na figura XII é a necessidade de dar visibilidade ao

discurso competente que se faz em detrimento das sociedades indígenas e de todos aqueles

que coloquem em risco a soberania do poder econômico do agronegócio, sendo este a

representatividade dominante no campo do moderno-colonial. Neste contexto, os conflitos em

torno das concepções imagináveis do indígena ligado ao não trabalho e o agronegócio como

base para considerar a produtividade é discurso competente autorizado no Estado de Mato

Grosso do Sul, pois, como considera Marilena Chauí (2007, p.19):

O discurso competente é o discurso instituído. É aquele que no qual a

linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é

qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer

lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois,

com a linguagem institucionalmente permitida e autorizada, isto é, com um

discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como

tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já

foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no

qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera

de sua própria competência.

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306

A autora considera o papel da ideologia como parte fundamental do discurso

competente, considerando que nem todos podem dizer o que querem, no momento em que

querem, pois há discursos permitidos a serem reproduzidos, assim todo discurso é um

posicionamento político-ideológico, e o mesmo ―[...] se sustenta, justamente, porque não pode

dizer até o fim aquilo que pretende dizer. Se o disser, se preencher todas as lacunas, ele se

autodestrói como ideologia. A força do discurso ideológico provém de uma lógica que

poderíamos chamar de lógica da lacuna, lógica do branco‖ (CHAUÍ, 2007, p.33).

Contudo, queremos chamar atenção para o discurso dominante em torno da não

demarcação de territórios indígenas fazendo-se em contraposição as ―minorias‖ sociais,

daqueles que tem pouco direito de falar na sociedade capitalista-moderna-colonial, tendo em

vista que esses modos de vida não estão relacionados a ordem-desenvolvimento-progresso do

agro-negócio. Isso é demonstrado já em seu sufixo, sendo a representação de que o domínio

sobre as riquezas naturais é sinônimo de desenvolvimento econômico - capital, pautado na

ordem economicista da sociedade, logo, tudo está interligada a lógica do negócio, inclusive a

natureza.

Desta forma, o agro-negócio é, fundamentalmente, negócio, e se faz, materialmente,

por meio da concentração fundiária e produção de monocultivos visando à exportação e, logo,

a geração de commodities. É o que Carlos Walter Porto-Gonçalves (2004; 2006) pontua ser o

modelo agrário-agrícola dominante no campo. Segundo o autor, esta se faz ancorada em dois

pilares básicos: ―[...] (1) no uso de um modo de produção de conhecimento próprio do capital

que se traduz na supervalorização da ciência das técnicas ocidentais (que se querem

universais); (2) na expansão das terras cultivadas, sobretudo em regiões onde as terras são

baratas‖ (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 224).

Assim, a produção tão referenciada do agronegócio não pode ser considerada agri-

cultura, mas, sim, agri-negócio (agro-negócio), sem cultura, explicitamente porque a mesma

é também uma agricultura sem agricultores. A base de sua produção se faz por meio de

máquinas e insumos de alta tecnologia, integrados a lógica de produção, circulação,

distribuição e consumo globalizado, ligados as grandes corporações multinacionais do capital

industrial, comercial e financeiro. Apresenta-se, assim, com o que há de mais moderno, que

apresenta uma ótima capacidade produtiva, e, ao mesmo tempo, o que há de mais arcaico-

colonial, pois se faz concentrando terras para a produção de monocultivos voltados para a

exportação, utilizando, inclusive, mão de obra análoga à escrava (e/ou denominada de

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trabalho escravo)154, sendo assim podemos considerá-lo como a reprodução dos plantation do

século XVI. Por isso, Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2003) afirma que o agronegócio é ao

mesmo tempo Barbárie e Modernidade.

Nesta perspectiva, Carlos Walter Porto Gonçalves (2004, p.227) elenca que:

[...] o modelo agrário-agrícola, que se apresenta como o que há de mais

moderno, sobretudo por sua capacidade produtiva, na verdade atualiza o que

há de mais antigo e colonial em termos de padrão de poder ao estabelecer

uma forte oligárquica entre: (1) as grandes corporações financeiras

internacionais; (2) as grandes indústrias-laboratórios de adubos e de

fertilizantes, de herbicidas e de sementes; (3) as grandes cadeias de

comercialização ligadas aos supermercados e farmácias; e (4) os grandes

latifúndios exportadores de grãos. Esses latifúndios produtivos são, mutatis

mutandis, tão modernos como o foram as grandes fazendas e seus engenhos

de produção da principal commodity dos séculos XVI e XVII: a cana-de-

açúcar, no Brasil e nas Antilhas. Na época não havia nada de mais moderno.

Neste sentido, é perceptìvel que o ideário ―ordem e progresso‖ elucidado na bandeira

brasileira, nada mais é do que uma conotação moderna-colonial embasada nos delineamentos

da dominação da sociedade sobre a natureza e de umas sociedades/grupos/classes sobre as

outras. É nessa perspectiva que os conceitos ideológicos de desenvolvimento sustentável e de

ecodesenvolvimento se fazem presentes. Demonstrando que a preocupação principal não está

na natureza, mas sim na continuidade do crescimento econômico, logo, na

produção/reprodução/acumulação/circulação de capital. É neste sentido que há sempre a

necessidade de se questionar os modos em que a natureza é apropriada para as mais diversas

sociedades/grupos/classes sociais de racionalidades distintas que disputam o controle de seus

territórios, como propõe Carlos Walter Porto Gonçalves (2001, p. 80):

Qual o significado de uma floresta para um índio, ou um caboclo extrativista

e para um madeireiro ou um pecuarista? E o de um rio para um caboclo

ribeirinho ou um moderno empresário? Cada uma dessas perspectivas

implica usos diferentes da natureza e, portanto, formas de organização do

espaço diferentes.

Assim, podemos dizer que a natureza é diversa e por sê-la pressupõe múltiplas as

formas de sua apropriação, sendo que as formas de apropriação, das sociedades tradicionais

154

O termo ―trabalho escravo‖ é uma denominação popular, que é conceituada no artigo 149 do código Penal

Brasileiro como: Redução à condição análoga á de escravo (CPT, 2003). ―O conceito de ―trabalho escravo‖ não

está relacionado diretamente com os trabalhos existentes durante o modo de produção escravista ou durante o

período colonial escravista brasileiro. Os critérios adotados pela CPT para fundamentar que o trabalhador está

e/ou foi vìtima de ―trabalho escravo‖ está na justificativa de que é preciso que ocorra cerceamento da liberdade, -

o DIREITO DE IR E VIR. Esta relação pode ser estabelecida por meio de endividamento, pelo uso da força

(proprietários e jagunços armados) ou até mesmo pelo isolamento que impede a saída desses trabalhadores por

meio de dìvida‖ (MOTA, 2009).

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não são condizentes com as perspectivas do presente e do futuro traçadas pelo modelo

econômico vigente. Desta forma, toda e qualquer forma de relação com a natureza que se

distancia da ordem, do progresso e do desenvolvimento, aparecem como sendo sinônimo do

atraso. Os preceitos fundamentais do que hoje é, ideologicamente, imposto como sendo

―mundo global‖ se baseia nos delineamentos das relações de dominação da sociedade sobre a

natureza direcionando as perspectivas do futuro.

Neste contexto, a demarcação das terras indígenas se faz neste embate entre distintos

modos de apropriação da natureza, contrapondo-se aos ideários econômicos do agronegócio,

na qual a natureza é, fundamentalmente, negócio. Tamanha é a intensidade desta disputa que

perpassa as várias instâncias dos poderes do Estado, como exemplo podemos citar o caso de

deputados do estado de Mato Grosso do Sul, que defendem a lógica moderna para o estado,

pois, para o mesmo, a demarcação das terras indígenas está atrelada ao passado, no sentido de

que os indígenas em sua concepção são o exemplo do residual e o arcaico a ser superado.

Apesar de entendermos que a garantia e a necessidade de retomada dos territórios

tradicionalmente ocupados pelos indígenas se dá pela relação com o passado - remetendo-se

sempre ao modo de vida dos antigos, é esta relação que dá possibilidade de futuro aos modos

de viver Guarani e Kaiowa, pois retomar o Tekoha é a possibilidade de reproduzirem o Teko

Porã. Contudo, para aqueles que se posicionam contra a demarcação, é a negação do passado

indígena em seus territórios tradicionalmente ocupados que se coloca como o principal

discurso para a não demarcação, já que a lógica do agro-negócio é amparada

fundamentalmente no discurso do moderno, pautado no modelo agrário-agrícola de produção

que nega outras formas de apropriação do território.

Por isso, contrariamente as lutas dos movimentos indígenas pelo direito de retomada

aos territórios tradicionalmente ocupados, outros movimentos não populares se colocam

contra a demarcação, explicitamente os movimentos patronais dos proprietários fundiários

que vivem do agronegócio, tendo papel expressivo, neste sentido, a Recovê e a Famasul.

A Recovê é uma Organização-Não-Governamental que tem como foco de sua

atuação o direito de propriedade, segundo aponta os seus teóricos no site da entidade:

É com enorme satisfação que o convidamos para o lançamento do site da

ONG RECOVÊ, uma Organização Não Governamental originalmente

idealizada e constituída por produtores rurais que buscam legitimidade para

participar dos eventos indigenistas que pensam o Direito Territorial Indígena

como absoluto, inflamando assim as invasões de propriedades privadas,

legais e legítimas.

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A ONG RECOVÊ não tem o índio como inimigo, mas pauta seus ideais nos

ditames do Estado Democrático e de Direito, primando pela JUSTIÇA!

(RECOVÊ, 2011).

A FAMASUL é uma organização de grandes proprietários fundiários que atua como

sindicato dos ruralistas desde 1979, sendo esta a data de sua fundação (FAMASUL, 2010).

Tem expressiva atenção de sua atuação nos meios de comunicação, buscando deslegitimar o

indígena na sociedade douradense, tentando representá-lo enquanto um invasor de terras155.

É notório que estas entidades funcionam como um dos principais braços ideológicos

da organização do agronegócio em Mato Grosso do Sul, posicionando-se contra as

demarcações de territórios indígenas, buscando na garantia da propriedade privada a

manutenção do status quo. Neste sentido, é elucidativo que ao mesmo tempo em que a

Constituição de 1988 garante a demarcação de territórios indígenas, quilombolas e projetos de

Reforma Agrária, contraditoriamente, garante o direito irrevogável da propriedade privada da

terra. Sendo que a propriedade privada da terra difere do direito de propriedade das

comunidades tradicionais, pois para as mesmas este não é um direito individual, como parte

integrante das relações do desenvolvimento do capitalismo. Este fato demonstra que a

garantia de direitos pela constituição, também, está em constante disputa, dependendo da

interpretação político-ideológica de cada um dos lados opostos que se colocam envolvidos

nestes conflitos pelo/no território. Todavia, aqueles que defendem os ideários

desenvolvimentistas pautados na ordem e no progresso do Estado brasileiro conseguem

melhores formas de garantir seus interesses, pois estão do lado dos que fomentam o

funcionamento da lógica vigente.

O ―Estado democrático de direito‖ que a grande mìdia defende é, na verdade, um

―Estado democrático de direita‖, uma democracia para poucos, para o latifúndio e o capital

(SANTIAGO, 2006). Utilizando-se do ―arsenal bélico/ideológico‖ - meios de comunicação,

estes se têm mostrado presente e atuante nos locais onde a moderna-colonialidade se coloca

como onipresente, buscando criminalizar as lutas dos movimentos sociais. Aline Castilho

Crespe Lutti (2009, p. 109) considera que os latifundiários organizam-se contra a demarcação

dos territórios indígenas em Mato Grosso do Sul apoiados pela mídia televisiva e/ou impressa

local que permite o exercício do poder por parte dos latifundiários organizados em nome do

progresso, enquanto tratam os movimentos indígenas como criminosos.

Para atender os interesses desta elite econômica e política, a mídia local

trabalha no sentido de formar uma opinião pública a favor dos proprietários

155

Ver Anexo IV.

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rurais. Par isso veicula, fortalecida por uma suposta imparcialidade da

imprensa, reportagens afirmando que as reocupações são uma forma de

―crime organizado. [...] a imprensa local projeta um estereótipo indìgena que

se contrapõe à representação feita da elite dominante, tratada como a única

classe que pode fazer Mato Grosso do Sul caminhar rumo ao ―progresso‖

econômico. Desta forma, trabalhando na construção de estereótipos e

mobilizando a opinião pública, os canais midiáticos possibilitam que a elite

agrária exerça um poder, não só econômico, mas também social e cultural,

por isso hegemônico.

Neste contexto, é necessário ainda salientar que os ideais de progresso e, tal qual, de

desenvolvimento, se fazem permeados pelo controle dos meios de comunicação por parte

daqueles que podem pagar para reproduzir o discurso competente. O discurso é difundido

visando reprimir os movimentos que se contrapõem à lógica vigente, tendo no aparelho do

estado, muitas vezes, sua maior expressão. Um exemplo que podemos citar é quando o

governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, eleito em 2006 pelo PMDB (Partido do

Movimento Democrático Brasileiro), por meio da mìdia, ideologicamente, pontua que: ―MS

não será terra de índio‖.156 Em torno deste discurso está embutido todo um imaginário sobre o

indígena, que o liga, necessariamente, a responsabilidade por fomentar um espaço de

―barbárie‖. O que está inerente a este posicionamento do governador do Estado é que o

mesmo se coloca a favor da propriedade privada e nega o papel do Estado como um dos

principais propulsores dos conflitos envolvendo indígenas, camponeses e fazendeiros no

estado de Mato Grosso do Sul, colocando-se, prioritariamente, em defesa do agronegócio.

A respeito do papel da mídia na sociedade atual, a favor dos representantes do

desenvolvimento e do progresso e contra os movimentos sociais populares, Marilene Felinto

(2006, p.09) afirma que:

Os veículos de comunicação se estruturam, segundo o princípio de

concentração de poderes. [...] A mídia, legitimadora da economia de

mercado, tornou-se fonte da retórica do embelezamento da desigualdade e

da dependência. [...] Com a sua aparência multívoca, escamoteia a realidade

e oferece um mundo ilusório em cores. Tornou-se uma técnica da exclusão

cognoscitiva diante do processo de exploração. Instaura a cegueira

conformista, fazendo da consciência ingênua ancila da consciência contábil.

Dessa maneira, as sociedades indígenas aparecem como as fomentadoras da

violência, pois atentam contra o direito da propriedade privada, como é representado por uma

charge no Jornal Diário MS (ver Figura XIII).

156

Jornal ―O Progresso‖, dia 04 de agosto de 2008.

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Figura XIII – Representação da mídia em torno das sociedades indígenas

Fonte: Jornal Diário MS, 10 de novembro de 2009.

A imagem dos indígenas com arcos e flechas, punhais e facões visam, de certa

forma, demonstrar a violência dos indígenas, colocando-os como vilões, a fim de mascarar a

violência fomentada pelos latifundiários e seus pistoleiros frente aos movimentos indígenas,

muitas vezes, por meio de armas de fogo, assassinando diversas lideranças de

representatividade, como: Ortiz Lopes157, Xurete Lopes, Rolindo Verá, Genildo Verá, entre

outras lideranças assassinadas no período de 2007 a 2010.

As informações acerca da violência no campo fomentada pelos fazendeiros, como o

grande índice de assassinatos envolvendo as sociedades indígenas, na maioria das vezes não

são denunciadas pelos meios de comunicação. Lembrando que todos nós somos diariamente

manipulados pelas informações distorcidas da mídia a respeito do assunto, que tenta esconder

a verdade em favor de uma minoria privilegiada. Assim, é notória a campanha que a mídia

vem fazendo a fim de criminalizar os movimentos sociais, sempre enfatizando o discurso

contra a demarcação, buscando viabilizar o imaginário social de que esses movimentos

157

No dia 8 de julho de 2007 ―[...] foi assassinado o lìder indìgena Ortiz Lopes, 46 anos. Liderança do povo

Guarani-Kaiowa, Ortiz sempre esteve à frente das lutas pela recuperação de suas terras, já havia sobrevivido a

outro atentado e vivia sob fortes ameaças de morte. Segundo depoimento da esposa de Ortiz Lopes, por volta das

18h30 do domingo, quando já estava escuro, um homem se aproximou da frente de sua casa, desejou boa noite e

chamou por Ortiz. Ao perguntar quem era, a vítima se dirigiu à porta e foi recebida por tiros. Enquanto

disparava sua arma, o assassino informou: ―os fazendeiros mandaram acertar contas com você‖ (CIMI, 2007).

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colocam em risco a democracia e o direito a propriedade privada. Todavia, estes escondem a

barbárie provocada pelos latifundiários no Brasil. Foram 1.280 assassinatos que ocorreram no

campo brasileiro em um período de um pouco mais de 15 anos. Dos 121 acusados de

mandantes dos crimes, apenas sete foram condenados até hoje. Da mesma forma também,

essa mídia tenta esconder a concentração fundiária brasileira, sendo esta, a segunda maior do

mundo (CAMACHO, 2008).

O processo de criminalização dos movimentos indígenas, parte integrante do

discurso para não demarcação, como já foi explicitado, é respaldado por grande parte da

sociedade a partir da defesa da lógica da produtividade. A produção de alimentos é uma das

bandeiras que assegura a defesa de parte da sociedade para com os camponeses sem terras nos

conflitos de áreas reivindicadas para fins de Reforma Agrária.

A grande questão é a quantificação da produção, de modo que, se para as sociedades

camponesas este é um dado distante, porque nem tudo é passível de quantificação158, ou seja,

lucro, para as sociedades indígenas estas relações tendem a ser ainda mais complexas, e na

lógica do negócio, torna-se ainda menos viável. Logo, por estar alheio aos ideais de

produtividade, o indígena é a representação do não trabalho, como elucida uma comerciante

douradense: ―nunca vi índio trabalhar‖.

Neste contexto, os territórios tradicionalmente ocupados são equiparados às relações

de não trabalho, pois não são considerados neste discurso os modos diversos de apropriação

das riquezas naturais, bem como as condições propícias para que estas sociedades possam

retirar sua subsistência. Com relação às Terras Indígenas Panambi e Panambizinho159, é

recorrente discursos tais como: ―Índio de Panambi têm terra, mas dependem da cesta

básica160‖. Ainda, dizem que estas sociedades invadem e se apoderam de terras anteriormente

―produtivas‖ e as transformam em ―areião‖. Como ilustrado na Figura XIII, os meios de

comunicação tentam construir a seguinte dicotomia: de um lado, a representação do

progresso, por meio do monocultivo do milho, e, do outro lado, representando o não trabalho,

a área indígena, ilustrado por uma área tomada pelo mato. Podemos enxergar aqui como a

mídia constrói uma dicotomia entre duas relações sociais não capitalistas: os camponeses

(produtivos) e os indígenas (improdutivos).

158

Vide Rosemeire Aparecida de Almeida, 2006. 159

A TIs Panambi e Panambizinho foram conquistas das lutas dos Kaiowa pela retomada de suas terras.

Segundo Antônio Brand, para os indígenas de Panambizinho foram reservados 30 hectares e para Panambi, 360

hectares. No caso da Panambizinho, esta já foi demarcada com uma extensão de 1.272 hectares de terras, a partir

do decreto demarcatório já foi homologado em 2004. A TI Panambi ocupa uma área com cerca de 400 hectares,

mas está tramitando um processo administrativo para ampliação da área pela FUNAI em 12/09/2005 pela

portaria 176 (ISA, 2010). 160

Jornal Diário MS, julho de 2009.

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Figura XIV – Panambizinho aos “olhos” do desenvolvimento

Fonte: Jornal O Progresso, 30 de abril de 2008.

O que está imbricado em torno das disputas territoriais é todo um imaginário que

sempre coloca os indígenas à margem da sociedade, buscando deturpar as relações

conflituosas que envolvem as lutas pelos territórios, entre indígenas e não indígenas. Todavia,

tendo em vista que nas relações sociais construídas pelos não indígenas há distintas formas de

apropriação da natureza, podemos pontuar que nas disputas territoriais que envolvem as

sociedades indígenas temos historicamente marcado os conflitos entre fazendeiros e

indígenas, mas esses conflitos podem ocorrer, também, nas relações com camponeses sem

terras, camponeses com terra, fazendeiros, empresários proprietários fundiários

(agronegócio), etc.

A partir dessas conflitualidades criadas pelo Estado tem-se tensionamentos entre

indígenas e não indígenas, muitas vezes, envolvendo camponeses sem terra que foram

historicamente desprovidos de acesso a terra, mas que acabaram sendo assentados em

territórios tradicionais indígenas. Este é o caso dos camponeses assentados em territórios

Kaiowa das Terras Indígenas Panambi e Panambizinho. O fato de o Estado ter assentado

camponeses sem terras (a maioria nordestinos) em territórios indígenas fomentou conflitos

entre os mesmos. Estes assentamentos são decorrentes dos projetos de Reforma Agrária do

governo getulista, no final da década de 1940, que culminou com a criação das Colônias

Agrícolas Nacionais – CANDs (como apontado no segundo capítulo).

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314

Contudo, apesar dessas exceções, os principais tensionamentos em torno das disputas

territoriais entre indígenas e não indígenas se dão nas relações que envolvem o poder

econômico do agronegócio. Todavia, a mídia burguesa de Mato Grosso do Sul que pauta-se

nos ideários do desenvolvimento do agronegócio, tenta representar essa falsa disputa

territorial entre camponeses sem terra e os indígenas. Conflito este, criado pelo Estado e

reproduzido ideologicamente pela mídia, como podemos visualizar em uma figura

demonstrando uma disputa territorial entre os indígenas e os camponeses do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (ver figura XV)161.

Da mesma maneira, podemos considerar que os mesmos buscam movimentar a

sociedade contra as demarcações dos territórios tradicionalmente ocupados, fazendo dos

espaços urbanos lócus dessa manifestação (não exclui os espaços rurais), tentando convencer

a sociedade de que eles (os grandes produtores) são ―os verdadeiros heróis‖, produtores de

alimentos, geradores de trabalho e renda para a toda a população.

Figura XV – Charge sobre disputas de territórios entre indígenas e camponeses sem terras

Fonte: Jornal Diário MS, 21 de maio de 2009.

161

Ver Anexo V.

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315

Na charge (Figura XV) tem-se um conflito que envolve os indígenas, os camponeses

sem terra e os fazendeiros, buscando demonstrar que são estes movimentos em torno das

disputas territoriais pela ―fazenda fulano‖, que são os responsáveis pela atual situação de

conflito existente no estado de Mato Grosso do Sul. Podemos dizer que os conflitos em torno

das disputas territoriais no estado têm envolvido indígenas e camponeses sem terra, de modo

que muitas das terras que poderiam ir para fins de Reforma Agrária, foram decretadas como

territórios tradicionalmente ocupados pelas sociedades indígenas. Algumas delas entram nas

portarias demarcatórias da FUNAI, como territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani

e Kaiowa.

Devemos considerar que as disputas territoriais, que tem como centro a terra-

território em Mato Grosso do Sul, envolve um conjunto de fatores, de modo que não só as

sociedades indígenas foram historicamente injustiçadas. Mas, os indígenas foram injustiçados,

pois o processo de colonização do estado, que envolve a concessão de terras pelo mesmo, foi

feita a partir da ocupação por não indígenas dos territórios tradicionalmente ocupados pelas

sociedades indígenas.

No entanto, apesar de outras conflitualidades fomentadas pelo Estado, podemos

afirmar e visualizar que a atual situação de conflito em detrimento das sociedades indígenas,

tem no latifúndio-agronegócio seu lastro mais cruel, pois além do mesmo ser o principal

financiador dos seus discursos, por meio da mídia em torno das disputas territoriais, é

também, o principal fomentador da violência no campo.

Neste contexto, podemos dizer que a demarcação dos territórios indígenas vai,

prioritariamente, contra a lógica do agronegócio que rege as ―distintas ordens‖ do mundo,

pois muitos conflitos engendrados pelas disputas territoriais estão ancorados na necessidade

de construção de uma outra realidade para além deste setor desenvolvimentista que é tratado

como a única possibilidade de relação sociedade-natureza. Por isso, têm-se envolvidas nestas

disputas territoriais outras racionalidades que visam outras formas dos usos das riquezas

naturais, com formas diferenciadas de executar trabalho, como podemos pontuar, além das

relações indígenas, as relações dos camponeses, sendo estes detentores de pequenas

propriedades rurais.

Estas disputas territoriais podem ser visualizadas a partir dos dados da Comissão

Pastoral da Terra - CPT162, Cadernos de Conflitos no Campo Brasil, demonstrando que as

disputas territoriais aparecem de forma expressiva na região do Cone Sul do Estado, onde há

162

A Comissão Pastoral da Terra – CPT, nasceu em 1975 a partir de um encontro da Pastoral da Amazônia,

convocada pela Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.

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maiores índices de ocorrências de ocupação de terras, ou seja, lutas pela posse e usos distintos

da natureza (ver Mapa VII e Mapa VIII). Pode-se dizer, em linhas gerais, que são disputas

pelas distintas formas de executar trabalho, já que partimos do pressuposto de Karl Marx e

Friedrich Engels163, a partir de Ricardo Antunes (1988, p. 121), que ―[...] o ato de produção e

reprodução da vida humana realiza-se pelo trabalho [...]‖. Da mesma forma, as

transformações dos espaços naturais em espaços sociais se dão a partir das relações de

trabalho entre homem-natureza.

Acreditamos ainda ser necessário pontuar nossa compreensão de trabalho, chamando

atenção ao fato de que não existe apenas uma forma de executar trabalho, mas existem

diferentes formas dos homens e mulheres se relacionarem com a natureza, de forma que há

distintas formas de executar trabalhos e não somente um modo único, hegemônico e,

ocidental de trabalhar. Assim, o trabalho no singular, por vezes, está atrelado ao sistema

capitalista de produção, aparecendo em uma relação em que este se faz alheio às gentes que o

executam.

163

O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza,

encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que

isso. É a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos

afirmar que o trabalho criou o próprio homem (ENGELS, 1977, p.63).

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Mapa VII – Disputas territoriais (ocupações de terras) fomentadas pelos movimentos

socioterritoriais em Mato Grosso do Sul (2000-2008)

Fonte: CPT, 2000-2008. Elaborado pela autora deste trabalho, 2010.

Mapa VIII - Conflitos em torno das disputas territoriais em Mato Grosso do Sul (2000-2008)

Fonte: CPT, 2000-2008. Elaborado pela autora deste trabalho, 2010.

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A partir dos mapas VII e VIII, podemos fazer as seguintes observações: os

movimentos socioterritoriais envolvidos nas ocupações de terras164 em Mato Grosso do Sul,

referem-se principalmente aos movimentos de camponeses sem-terra e sindicatos da

agricultura familiar, por meio da FETAGRI (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do

Mato Grosso do Sul); CUT/MS (Central Única dos Trabalhadores de Mato Grosso do Sul), o

MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); a FUVI (Famílias Unidas do Vale

do Ivinhema); a FAF (Federação da Agricultura Familiar), mas contempla também os

movimentos indígenas (Guarani, Kaiowa e Terena) e remanescentes de quilombolas. Torna-se

perceptível que as ocupações estão, em sua maioria, localizadas na região Centro Sul do

estado de Mato Grosso do Sul, correspondendo ao total de 192 ocorrências no período de

2000 a 2008. Percebemos também, que as ocorrências de ocupações vão ao encontro das

ocorrências de conflitos no campo registradas no mesmo período, 234 conflitos.

Segundo a CPT, os conflitos por terras (envolve violência contra a pessoa e violência

contra ocupação e posse), tais como: ocorrências de assassinatos, tentativas de assassinatos,

torturas, pessoas que foram presas, ameaças de morte, lesões corporais, despejos, casas

destruídas, bens destruídos, roças destruídas, ameaças de despejo, despejos, em suma, todas as

formas de coerção frente à manifestação contra a manutenção do status quo da estrutura

fundiária brasileira. Consideramos ainda, que as ocorrências de conflitos, envolvem os

conflitos por terra165

, conflitos trabalhistas (super exploração, desrespeito aos direitos

trabalhistas e trabalho análogo ao escravo) e conflitos por água.

Neste contexto, podemos dizer que estes dois mapas acima demonstram que há uma

relação direta entre o número de ocupações de terras registradas na porção Centro-Sul do

estado e, na mesma extensão territorial, um grande índice de violência no campo registrado

pela CPT no mesmo período. Desta forma, fica perceptível a existência das disputas

territoriais em Mato Grosso do Sul, demonstrando que toda e qualquer forma de manifestação

contra à manutenção do status quo traz como consequência a violência no campo praticada

pelos grupos/classes dominantes. Ainda, outra problemática revelada nos mapas, é que os

conflitos territoriais no estado de Mato Grosso do Sul estão, em sua maioria, localizados na

164

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (2011, p. 10) as ―ocupações são ações coletivas das famílias sem terra

que, por meio da entrada em imóveis rurais, reivindicam terras que não cumprem a função social.

Acampamentos são espaços de luta e formação, fruto de ações coletivas, localizados no campo ou na cidade,

onde as famílias sem terra organizadas, reivindicam assentamentos. Em nossa pesquisa registra-se somente o ato

de acampar‖. 165

Para a CPT (2011, p. 10) os ―Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e

propriedade da terra e pelo acesso a seringais, babaçuais ou castanhais, quando envolvem posseiros, assentados,

quilombolas, parceleiros, pequenos arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra, seringueiros,

quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc‖.

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área que compreende aos territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa (ver

Mapa IX). Confirmando a intensidade dos conflitos envolvendo os indígenas nesta porção do

estado de Mato Grosso do Sul.

Mapa IX - Território tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa

Neste contexto, é imprescindível refletirmos que o modo de vida dos antigos -

Tekoyma, traduz o que pode ser a melhor e verdadeira forma de viver, podendo ser resgatada

ao lado e junto aos antigos, como possibilidade e garantia de futuro.

É nos lugares vividos e transitados pelos antigos que a necessidade de retorno se faz como

possibilidade de retomar a terra e aos princípios bases da vida Guarani e Kaiowa, aqueles

princípios que em condição de reserva se fizeram de distintas formas, colocando a

possibilidade de novas negociações socioterritoriais, mesmo que precariamente. Assim, o

Tekoyma e o Tekopyahu se confundem e tornam-se um só, impossibilitando saber onde suas

referências se corporificam, e até onde se pode dizer ser o passado e/ou presente, já que talvez

seja necessário considerar que para aqueles que querem retomar os Tekoha, esta busca seja

minimamente uma face da busca pelo passado como possibilidade de futuro.

Essa perspectiva do retorno é a confirmação de que diferentemente do discurso do

agronegócio, os indígenas não trazem em sua lógica o princìpio do ―imediatismo‖ dos usos

das riquezas naturais, mas, o ―imediatismo‖ da necessidade de voltar aos territórios, pois o

retorno é se faz pela busca do Bem Viver que passa fundamentalmente pela necessidade de

retorno aos Tekoha.

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Desta forma, a necessidade pelo retorno não deve ser dissociado da necessidade

destas sociedades se colocarem como protagonistas da história, lutando contra os três

latifúndios que reproduzem o que denominamos de sistema-mundo moderno-colonial, ou seja,

lutar ―[...] contra três latifúndios improdutivos: contra o latifúndio da terra, dos meios de

comunicação e da ideologia do futuro calculável [...]‖ (SUESS, 1997, p.34).

Assim, mais do que nunca, as estratégias de retorno são múltiplas, em que as disputas

territoriais envolvendo os Guarani e Kaiowa se fazem na possibilidade de retomarem uma

condição de vida no qual a reserva impossibilita ser recriada. Ainda, é notório que ao não

conseguirem colocarem-se na condição ―do estar apertado‖ nas reservas, estas sociedades

recriam modalidades múltiplas de territórios que, por vezes, os possibilitam estar ―perto‖,

―dentro‖ e ―fora‖ dos Tekoha, logo, dos antigos, possibilitando-os lutarem pelo sonho de

retorno, onde as vidas se fazem juntamente pela esperança de novamente reproduzirem o Teko

Porã. Segundo a Kaiowa Antônia (2010) este retorno possibilitará que os Ñanderu os

reconheça de forma fácil e simples, pois estarão onde é o seu lugar no/do mundo. Em suas

palavras: ―cada um no lugar dele, fácil consegui falá com Ñanderu‖.

5.2 – Modalidades de territorialização e as estratégias de luta pela retomada dos

territórios tradicionais: a Reserva Indígena de Dourados e os acampamentos Apyka’y,

Ñu Porã e Pacurity166

No terceiro capítulo, demonstramos a multidimensionalidade do viver em condição

de reserva, bem como a maneira em que a mesma possibilita a recriação de novas formas de

organização socioterritorial e de criar multiterritorialidades como forma de re-exitência a

partir da produção e comercialização do artesanato e de alimentos, do ―trocar‖ e ―pedir‖ e da

luta pela retomada dos tekoha. Estas relações dos indígenas da RID são estabelecidas com a

cidade, acampamentos, assentamentos/acampamentos de Reforma Agrária, fazendas e outras

modalidades territoriais que permitem a ampliação das redes sociais, assim como a ocorrência

de uma multiplicidade de interações na passagem entre-territórios.

Neste capítulo, vamos priorizar a discussão da multiterritorialidade construída a

partir da luta e resistência pela retomada dos tekoha em outras modalidades territoriais para

166

Segundo Aline Castilho Crespe Lutti (2009), entre os Tekoha reivindicados, os acampamentos Pacurity e

Apyka‘y encontra-se no Termo de Ajustamento de Conduta – TAC.

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além do espaço da RID, bem como as relações conflituosas implicadas neste processo de

disputas territoriais. Neste contexto, Aline Castilho Crespe Lutti (2009), Alexandra Barbosa

da Silva (2009) e Levi Marques Pereira (2006; 2007) trazem grandes contribuições para

pensarmos outras modalidades de territorialização que se dão para além das reservas

indígenas demarcadas pelo SPI, apontando novas possibilidades de re-existir.

A partir de Levi Marques Pereira (2004; 2006; 2007; 2010), consideramos que

aqueles que ficaram fora do processo de imposição dos preceitos civilizatórios do viver em

condição de reserva, ficaram envolvidos com outras formas espaciais e temporais,

contrapondo-se ao modo de vida no Tekoha. Entretanto, diferente da reserva, como é o caso

dos indígenas em fundos de fazendas e/ou em fazendas e acampamentos, possibilitava e

possibilita melhores condições de continuar a usufruir da exclusividade territorial das

famílias. Estas novas modalidades de territorialização não podem estar dissociadas do

pressuposto de que para muitas famílias, a reserva é a representatividade do Teko Vai, ou seja,

o modo incorreto de viver e/ou se comportar.

O desordenamento territorial nas reservas tornara-se uma situação tão grave, no que

concerne à incompatibilidade do modo de viver antigo com o novo modo de vida, que muitos

recriam outras modalidades de territorialização que não estão relacionadas à condição de

indígenas reservados e/ou aldeados. É neste contexto, que aparece os indígenas desaldeados,

discutidos no terceiro capítulo, como sendo aqueles que não estão sobre a jurisdição do

Estado, mas estão territorializados em outras modalidades de assentamentos167, como

considera Levi Marques Pereira (2006; 2007, p.01), ao assinalar que ―[...] essas modalidades

são de desenvolvimento recente, sendo possível defini-las como respostas adaptativas das

populações Kaiowa às profundas transformações históricas e econômicas por que passou

Mato Grosso do Sul‖.

Neste contexto, as novas modalidades territoriais aparecem para os indígenas da

seguinte forma: fundos de fazendas e/ou índios de fazendas, acampados, nas cidades, em

acampamentos e assentamentos de Reforma Agrária. Estas diferentes formas de

territorialização devem ser consideradas como movimentos que se inter-relacionam entre si,

tendo em visto o movimento de dispersão das famílias, o processo de esparramo, onde ―cada

um foi pra um canto‖, como pontua o Ñanderu e Kaiowa Admiro. Assim, a possibilidade de

encontro com os parentes se dá na necessidade de transitar por outros territórios, da mesma

167

Levi Marques Pereira (2006; 2007) considera ser um termo muito utilizado na arqueologia e ecologia cultural.

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forma que as relações de trabalho, de comercialização, entre outros, propiciam interações

territoriais.

A partir desta relação, a mobilidade Guarani e Kaiowa tende a ser ainda mais

ampliada, se comparada à multiterritorialidade do modo de vida dos antigos, fazendo parte de

um processo de territorialização imposta destes novos modos de viver espaço-temporalmente,

ao mesmo tempo em que há outras formas de identificar-se a si mesmo e os outros. É comum

entre os Guarani e Kaiowa da RID referenciarem-se aos parentes de acordo com as novas

espacialidades em que vivem hoje, demonstrado por meio de narrativas, ao dizerem que: ―meu

parente está na fazenda do fulano de tal e/ou meu parente está no acampamento tal, fica em

tal lugar...‖.

Neste sentido, para entender estas novas interações socioterritoriais, consideramos

que estas não podem estar dissociadas do dinamismo dos processos de desterritorialização de

seus territórios tradicionalmente ocupados (demonstrado pela Figura XVI) e,

consequentemente, das novas possibilidades de reterritorialização, incluindo estas novas

interações territoriais dinamizadas pelas visitas aos parentes, já que ―cada um foi pra um

canto‖.

Assim, o que é necessário pontuar é que muitas destas interações socioterritoriais são

construídas pela noção de multiterritorialidade no Tekoyma, já que a maioria dos novos

lugares de morada, de trabalho e visita aos parentes, são espacialidades transitadas pelos

antigos, e foram transformadas pelo/no movimento de des-re-territorialização Guarani e

Kaiowa, após a chegada dos não indígenas.

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Figura XVI - As multiterritorialidades construídas no movimento de esparramo

Fonte: Elaborado pela autora deste trabalho.

Referente às novas relações socioterritoriais de retorno aos territórios

tradicionalmente ocupados, estas podem ser estabelecidas de múltiplas formas, no qual

podemos apontar duas noções básicas. O primeiro é referente ao conflito direto, ou seja, as

lutas em torno das reivindicações das retomadas territoriais, havendo o objetivo de conquistar

a territorialização efetiva, fazendo-se na busca pelo controle territorial, principalmente, na

forma dos acampamentos. E, em segundo, é a necessidade de estar próximo aos territórios

tradicionalmente ocupados, sem, necessariamente, desterritorializar os fazendeiros, estratégia

esta muito utilizada pelos indígenas que permaneceram, sobretudo, nas fazendas. Contudo,

posteriormente, é usada como um meio importante para reivindicarem seus territórios, já que

não foram totalmente desterritorializados, no sentido em que não houve o ―abandono‖

territorial, pois buscaram mecanismos de permanecerem aos seus arredores e mesmo neles.

O que estas relações em torno das disputas territoriais nos propõem pensar,

considerando o que nos diz Levi Marques Pereira (2010, p.119), é que:

[...] mesmo com todas estas dificuldades, muitas lideranças se lançam na

aventura de reorganizar suas comunidades, juntando as famílias num setor

definido de algumas das reservas ou acampando em áreas reocupadas ou em

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margens de rodovias. Com tais estratégias, buscam dar visibilidade as suas

comunidades e demandas territoriais [...].

Exatamente por isso que os fazendeiros têm uma organização socioterritorial muito

bem arquitetada, buscando retirar os indígenas das áreas reivindicadas e mesmo

acampamentos em sua proximidade, pois, fundamentalmente, esta é uma estratégia importante

para os Guarani e Kaiowa ―guardarem‖ e ―vigiarem‖ seus territórios que estão sobre o

controle dos ―brancos‖. É neste sentido que o movimento de fazendeiros no estado de Mato

Grosso do Sul vem se organizando por meio de ―seguranças‖ de empresas particulares,

visando que estes vigiem os acampamentos de retomadas territoriais, muitas vezes, utilizando

a violência física para retirar os indígenas dos acampamentos, buscando desorganizar a luta.

Ainda é expressiva a violência simbólica nos acampamentos, sendo comum a denúncia dos

indígenas dizerem que os fazendeiros mandam pistoleiros para ameaçá-los (ver Anexo IV).

Referente ao ―vigiar‖ e estar no Tekoha, uma expressão muito significativa são os

indígenas conhecidos como moradores de fundos de fazendas ou morando em fazendas. Esta

modalidade de territorialização nos coloca uma multiplicidade de resistências criadas pelos

Guarani e Kaiowa ao buscarem estar no Tekoha. No que confere aos indígenas de fundos de

fazendas, esta relação se deu com maior intensidade até a década de 1970, relacionado ao

processo de inserção da mão de obra indígena no processo de formação das fazendas. Pois,

havia por parte dos indígenas uma resistência que se opunha à condição de reserva, e estes

foram considerados pelo órgão indigenista oficial como indígenas desaldeados, por estarem

fora da jurisdição do Estado, como demonstramos no terceiro capítulo.

Nos dias de hoje, é muito comum, mesmo após o fim da formação de fazendas e o

recolhimento compulsório de indígenas para dentro das reservas, alguns membros das

famílias continuarem em seus territórios tradicionalmente ocupados trabalhando para o

fazendeiro. Estas relações são importantes, fundamentalmente, por serem estratégias de

resistência, já que havia a necessidade por alguns membros da família de continuarem a ter

vínculos com os lugares de origem, de forma que mesmo sobre outros ordenamentos

territoriais, estes continuam a ter vínculos com os Tekoha, e, mesmo que precariamente, neles

estarem territorializados. Exemplo da relação do estar no Tekoha é descrito por um Kaiowa da

RID, ao dizer que ―[...] nosso parente tá, fica lá. Ai a gente vai faz uma visita. Num pode

perdê o contato memo com nosso lugar. Lá é nosso, os véio tá cuidando pra gente [...]‖.

Neste aspecto, muito mais do que demonstrar as múltiplas territorialidades entre os

Guarani e Kaiowa após a desterritorialização de seus territórios tradicionalmente ocupados,

como demonstrado no terceiro e quarto capítulo, estas territorialidades se fazem como

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multiterritorialidades de resistências, portanto, nas diversas formas de estabelecerem

vínculos com os territórios tradicionalmente ocupados, e para algumas famílias, buscarem

meios de luta para retomá-los.

Portanto, é necessário dizer que as estratégias de retorno aos Tekoha são diversas e

complexas, pois cada grupo familiar tem estratégias de luta específicas, visando, futuramente,

buscar uma completa reterritorialização. Neste sentido, para entender outras possibilidades de

territorialização fora das reservas, há necessidade de considerar as múltiplas territorialidades

de resistência pelo/no Tekoha, já que a condição de reserva aparece como meio estratégico e

político de retorno aos territórios tradicionalmente ocupados. Assim, a RID ao mesmo tempo

em que representa uma territorialidade precária para o modo de vida Guarani e Kaiowa, esta

condição é um importante fator que potencializa as lutas pelo retorno aos Tekoha.

―Viver de parede‖, considerado pelo Kaiowa Ñanderu Jorge, é um elemento

importante para compreendemos esta necessidade, sendo que esta relação não está dissociada

das espacialidades e temporalidades de saída dos territórios tradicionalmente ocupados, nos

confrontos entre ―antigo‖ e o ―novo‖ modo de vida, já que retomar os Tekoha torna-se

significativo para que estas sociedades continuem a criar meios de continuarem a ser Guarani

e Kaiowa a partir dos laços com o passado, havendo uma relação interdependente do Tekoyma

e Tekopyahu, que permite a construção de territórios de esperança.

Jorge e Floriza (2010) demonstram as relações com o Tekoha na relação ambígua

que confronta passado e presente, misturando a chegada do ―branco‖, o processo de

desterritorialização de seus Tekoha, com a esperança em retomá-los – reterritorialização.

Fundamentalmente estas relações são marcadas por uma multiterritorialidade de sonhos,

esperança na busca pelo retorno, participante da memória coletiva que não os deixa esquecer

o ―lugar dos índios‖, a memória que reproduz territorialidades de esperança.

O branco pisa na terra, né. Primeira coisa que o branco descobriu, naquela

época, descobriu que os índio mora na terra [...]. E aí, como eu mesmo eu

sei, né, quando chegou o Xirurrerre [referindo-se ao branco], eu vou falar

um pouco, até eu fico emocionado, né... [silêncio]. Quando chegou o

Xirurrerre, deitou ali na rede [...] E aí deitou ali [...]. Ele não falava não,

falava esquisito, dá medo na gente [...] Pegou o manacu dela, colocou a

rede, e colocou em cima de um jegue, né, bastante as coisas. Ali colocou

manacu, colocou balaio, né, cheio de tralha. E aonde colocou o xipá, o bolo

que ele fez com milho saboró, né, e aí colocou na frente o jegue pra trazer a

tralha. E por ali atrás vem criança... chamando o burichá, que o criança

igualzinho esse Ñanderu ‗y, meu guri. Chamando o cavalo, o jegue.

A época a gente tem dó. Quando o diariruxi falou [...] aí nós viemos pra cá.

Essa história é comprido, e até a gente fica emocionado quando lembra...

(silêncio e lágrimas). Até deixou no papel esse palavra meu pai finado. Eu

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conhece tudo isso daí, porque é nosso Tekoha. Aqui o meu Tekoha é

Iguarusu. Urucu, Cuxiugua, é tudo minha família que mora ali. Iguarusu,

Cuxiugua é tudo [...]. É, ali é...os índios, os Kaiowa morava mesmo lá, né,

Iguarusu e Pindorocá... então o pai morava aqui em Dourado mesmo, né...

[...] Aqui na reserva. Então, como, como o negócio que chegou o chefe, o

branco chegou aqui na terra, queria terra pra ver lugar, né, e aí que o pai

como pessoal vem repontando pra cá, pra reserva. Pra ficar reserva agora,

não era reserva, era... não tinha fim, né, não tinha fim. Então aonde os índio

morava é lugar dele. Que o, o brilhante e o Dourado era uma bacia do...

Aonde os índio morava. Aí como falou que ia fazer reserva, reservado isso

aqui, né? Aí o branco empurrou pra cá, pra poder fazer... Ajuntar, largar

aquele Tekoha dele pra vim aqui na reserva, vim empurrando, né. Aí

marcou, né. Aí o pai e a mãe, meu povo, o pessoal, não gostou, aqueles lado,

não gostou. Então ele dali se esparramou. Quem ficou aqui, né... quem aí foi

se esparramando. E ali o pai mudou pra Pindarocá... Mas tava lá já a mãe

dele.. É, o vô, o parente do pai, a mãe, bisavó... Que morava lá... Que

morava lá. Então dali do Pindorocá, aqui no Iguarusu.

E vai lá também visitar, a época. Já tinha [tinha parente no pindorocá].

Dali tinha avó, tinha de tudo, né, tinha de tudo. Então como ele não quis vim

pra cá... como agora, né, se você recolher o lugar você mora, se eu quero

sair daqui eu vou pra Antônio João, outra região, né? Porque o pessoal,

minha parente, tá tudo lá. Se eu quiser ir pra Limão verde, parente da

Floriza, nós vamo pra lá, né. É isso que acontece naquela época. Então

como o homem branco empurrou, aí o pai e a mãe mudou. [...] Nasceu lá,

nasci [está dizendo que Jorge nasceu no Pindorocá]. Aqui no Iguarusu.

Nasci lá e se formei lá. Eu cheguei até aqui com 18 anos... não, 17 anos

[lugar onde morava e nasceu Floriza] [...]. Por isso que eu falo, pessoal

sabe aonde que Tekoha avô morava, então o pessoal requer. Queria

requerer, mas tá difícil pra requerer. Tá difícil, tá difícil. Que é a época que

o branco que veio e já pegou essa terra de graça, né. E aproveitou muito,

plantou as coisa, ficou rico naquele lugar, plantou todas as coisas. Ficou

rico, comprou a fazenda pra outro lugar [...] Como é igual esse aqui.

Na época foi em 1978, aí eu conversei com esse homem, perguntei pra ele:

Seu Santos [referente ao fazendeiro que trabalhava], era um... eu fui um

amigo com ele. Seu Santos, falei, você comprou a fazenda, e o Antonio

Gordo, a missão deu a escritura pra você? Alugando ele, né. Aí ele falou:

Jorge, já que você é meu peão véio, vou te contar. Falou, não tem, eu to

correndo atrás disso aqui pra mim registrar, senão perde. Isso que falou. É

assim que foi [...]. Isso aqui é Iguarusu [referente a fazenda em que

trabalhava].

É, hoje nós tem que lutar pra gente recorrer nosso tekoha, onde os pais

moravam, onde o vô morava. Como que nóis vamos perder o lugar que

aonde o avô, bisavô, tataravô, aonde morreu. Nós tem jeito de requerer isso

aí, nós tem que requerer isso aí.

―Então aonde os índio morava é lugar dele‖, salienta Jorge e Floriza, demonstrando

as relações conflituosas com o fazendeiro no sair do Tekoha e a necessidade de retorno.

Pontuando várias questões que perpassam a chegada na reserva, as relações de trabalho em

que viveram, considerando a condição da riqueza do ―branco‖ na terra do ìndio. Os mesmos

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demonstram as relações em que os Tekoha falam entre si pelas relações de parentesco

existentes entre os Tekoha Pindorocá e Iguarusu168.

Demonstrando a necessidade de retorno, os mesmos pontuam as múltiplas relações

que desorganizaram o modo de vida Guarani e Kaiowa ao saírem de seus territórios

tradicionais, assim como a necessidade de requerer e/ou retomar está permeada por uma

multiplicidade de estratégias, perpassando as relações simbólicas com os territórios

tradicionalmente ocupados a partir das referências dos antepassados, fazendo-se pela criação

de territorialidades de sonhos e esperança pelo retorno ao Tekoha.

Neste sentido, para compreendermos as relações de saída e busca pelo retorno, esta

relação só poderá ser entendida a partir da condição de reserva, que oferece condições de

busca pelas retomadas territoriais por parte de algumas famílias, já que a territorialização

precária destas sociedades, em condição de reserva, vai ao encontro das considerações de

Rogério Haesbaert (2007, p. 17), ao dizer que:

[...] a exclusão aviltante ou as inclusões extremamente precárias a que as

relações capitalistas relegaram a maior parte da humanidade faz com que

muitos, no lugar de partilharem múltiplos territórios, vaguem em busca de

um, o mais elementar território da sobrevivência cotidiana. Assim, os

múltiplos territórios que nos evolvem incluem esses territórios precários que

abrigam sem-tetos, sem terras e os tantos grupos minoritários que parecem

não ter lugar numa des-ordem de ―aglomerados humanos‖ que, em meio a

tantas redes, cada vez mais estigmatiza e separa. Assim, o sonho da

multiterritorialidade generalizada, dos ―territórios-redes‖ a conectar a

humanidade inteira, parte, antes de mais nada, da territorialidade mínima,

abrigo e aconchego, condição indispensável para, ao mesmo tempo,

estimular a individualidade e promover o convívio solidário das

multiplicidades - de todos e de cada um de nós.

O que o autor nos possibilita pensar, é que viver a multiterritorialidade parte do

princípio mínimo de obter o território básico de morada, ou seja, o território abrigo-

aconchego. Por isso, entendemos que o mesmo possa oferecer as condições de recriação do

modo de vida Guarani e Kaiowa. Esta análise torna possível entender as lutas pelos territórios

Guarani e Kaiowa a partir das famílias que estão na RID. Estar na reserva oferece condições

mínimas de sobrevivência, e é a partir dela que muitas famílias traçam suas estratégias de

lutas pelo Tekoha.

168

O Tekoha Pindorocá e Iguarusu estão sendo reivindicados por Jorge e Floriza. O Pindorocá refere-se à

família de Jorge, e o Iguarusu à família de Floriza. Contudo, é importante dizer que as relações da família de

Jorge e Floriza se fazia [plural/singular] nas proximidades do Iguarusu, ou melhor dizendo, nas relações que

ligava um território a outro, pois havia relações de parentesco e alianças políticas entre eles, de tal forma que

Jorge e Floriza casaram-se (ver Anexo VII e VIII).

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Da mesma forma, para Jorge e Floriza, Nelson e Antônia, Admiro e Antônia, Getúlio

e Alda, famílias que estão retomando seus Tekoha, estar na reserva não retira o sonho do

retorno, mas é, também, um instrumento de luta pelo retorno expressa na acessibilidade de

conseguir estabelecer maiores relações com aqueles que são os ―donos do papel‖, como

expressado por Nelson. Assim, a necessidade de apoio ―fora‖ da reserva é um importante

elemento para compreender as relações de alianças dos indígenas com os não indígenas,

considerados como parceiros, estas famílias estabelecem uma rede de apoio muito forte,

alguns com maiores ou menores prestígio, dependendo de sua capacidade de organização

social e de negociação com os agentes externos.

O apoio é extremamente importante, pois as lutas em torno da demarcação dos

territórios indígenas não é um consenso entre os indígenas, sendo que algumas famílias que

estão retomando Tekoha, muitas vezes, são representadas na reserva como sendo aqueles que

estão descumprindo a lei, ―roubando terras dos outros‖, como assinala um Guarani. É muito

comum, principalmente entre os indígenas convertidos ao protestantismo, estes serem contra a

demarcação.

Ainda, há aqueles indígenas que se colocam contra a demarcação porque recebem

dinheiro de fazendeiros e políticos, segundo relatos de indígenas na RID. Como, também, há

aquelas pessoas que ficam imbuídas de disseminar conflitos contra as famílias que estão

envolvidas nos processos de demarcação, buscando passar para a sociedade não indígena que

o indígena não precisa de terras. Estas atitudes de ―traição‖ podem ser, minimamente,

explicadas pela necessidade de muitas famílias buscarem meios de conseguirem uma renda

mínima para o sustento da família, esta condição acaba sendo um meio estratégico para os

fazendeiros que buscam viabilizar os indígenas contra a demarcação.

É difícil afirmar com objetividade porque alguns indígenas, também, se opõem à

demarcação. Mas, uma questão é importante de ser ressaltada, como a maioria das famílias

depende do trabalho ―fora‖ da reserva, principalmente no corte da cana em usinas

sucroalcooleiras, há um entendimento de que caso demarque as terras, os indígenas já não

terão mais empregos nestas usinas, e assim, passarão fome. Outra questão se faz referente às

cestas básicas recebidas do estado, pois alguns acreditam que demarcando os territórios

indígenas não haverá mais cestas básicas.

Estas relações conflituosas nos permitem pensar uma questão importante. Primeiro,

que há uma compreensão que todo indígena quer retornar aos seus territórios tradicionalmente

ocupados. Em segundo lugar, estas discussões tornam-se cada vez mais conflituosas,

considerando que o estado não garante políticas governamentais efetivas que na prática

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possibilite o retorno destas sociedades aos territórios tradicionalmente ocupados.

Disseminando, assim, o atual estado de conflito presente em Mato Grosso do Sul, e em todos

os lugares onde há reivindicações de territórios indígenas, ou de outros movimentos de

reivindicação social no campo, ou seja, onde a estrutura fundiária vigente esteja sendo

questionada.

Retornando ao que confere à organização socioterritorial nas reservas e a articulação

em torno das retomadas de Tekoha, há a necessidade por parte das famílias que estão

retomando seus territórios, que estas tenham força de levantar um Tekoha, a partir de um

―cabeça de parentela‖, podendo ser este um lìder religioso e/ou polìtico, alguém de prestìgio

que articule em torno de si um grupo pessoas aliadas, demonstrada por Levi Marques Pereira

(2004, p.99-102) da seguinte forma:

[...] O centro político – não necessariamente geográfico – do nucleamento

compreendido pelos fogos que compõem um te‘yi é a residência do cabeça

de parentela – hi‘u. O hi‘u é geralmente um homem de idade avançada que

gerou muitos filhos. Os Kaiowa explicam que ele é a ―raiz‖ o ―esteio‖ ou o

―tronco da casa‖, rememorando os tempos em que a parentela ocupava uma

única casa grande comunal [ogapysy].

A vida religiosa interfere diretamente na constituição da parentela. Seu

cabeça pode não ser xamã, mas, nesse caso, normalmente está aliado a

alguma xamã, responsável por assistir espiritualmente a seu grupo e

aconselhá-lo em momentos de tomadas de decisão ou resolução de conflitos.

[...]. Na situação atual acontece inclusive de capitães crentes de estarem

articulados com alguns xamã, responsáveis, segundo dizem, pela

―representação da cultura‖, quando acontecem eventos organizados por

órgãos governamentais ou indigenistas nos quais é solicitada a apresentação

de danças e rezas.

[...] O cabeça de parentela deve sempre dispor de palavras boas para proferir

às pessoas reunidas em torno de sua jurisdição. [...] Saber falar, no sentido

de proferir palavras edificantes para a boa convivência, é um atributo

imprescindível para a sociabilidade Kaiowa.

[...] É comum encontrar parentes e aliados morando em localidades distintas,

mas mantendo vínculos profundos e frequentes, formando redes de alianças

supralocais, que, na situação atual, se estendem por diversas reservas; as

pessoas nessas condições se consideram efetivamente como integrantes de

uma mesma parentela. Entretanto, morar junto é o definidor do laço de

parentesco, pois implica na interação constante. A co-residência atua como

elemento potencializador de laços de parentesco (consanguinidade e

afinidade) que, mesmo distantes, são vistos como próximos. Em sentido

oposto, o afastamento geográfico atua como um fator de diluição dos laços

de parentesco. Assim, nota-se a relatividade dos conceitos de afinidade e

consanguinidade, abertos à interferência de fatores espaciais.

Mesmo reconhecendo a co-residência como ingrediente importante na

constituição da parentela, é importante deixar claro que o fator definidor de

sua constituição é de natureza política: pertence à parentela quem se

identifica com o grupo, sendo que essa identificação passa necessariamente

pelo reconhecimento da posição de liderança de seu cabeça.

Necessariamente, alguns membros ou fogos pertencentes à parentela vivem

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em outras localidades, onde estão inseridos em outras parentelas, geralmente

a do cônjuge, essa participação dupla é fundamental para a constituição de

alianças supralocais.

Neste contexto, é perceptível que aqueles que estão envolvidos nas retomadas de

Tekoha são famílias extremamente articuladas, que buscam apoio ―fora‖ da reserva,

principalmente de seus parentes que estão em outros lugares devido ao processo de

esparramo. E ainda, procuram estabelecer relações com os parceiros não indígenas, buscando

fortalecer a parentela em torno do Tekoha reivindicado. Assim, é necessário dizer que

algumas famílias conseguem com maior facilidade estabelecer relações com redes sociais

―fora‖ das redes parentais, principalmente com não indìgenas, pois estas redes de relações

sociais permitem a ampliação da luta. Podemos citar como fazendo parte dessa rede social

construída fora da reserva: os pesquisadores, os antropólogos, o CIMI, os políticos, enfim

todos aqueles que estabelecem relações de proximidade com algumas destas famílias são

imprescindíveis parceiros para o fortalecimento da luta. De modo que quanto maior for o

prestígio externo, maior força política estas famílias terão para retomar o Tekoha.

Por isso, é necessário dizer que estar na reserva, e a partir dela lutar para retomar os

Tekoha, é uma condição estratégica de conseguir fortalecer a família. A condição de reserva é

considerada por alguns deles, apesar de todos os conflitos, o melhor lugar para estarem

territorializados até conseguirem retomar os Tekoha. É comum os Kaiowa salientarem as

dificuldades de viver nos acampamentos na beira de rodovias e vicinais, como também no

estabelecimento do conflito direto com os fazendeiros ocupando a área reivindicada, logo, em

litígio. Consideram que é difícil para as famílias viverem nos acampamentos, principalmente

para os idosos, mulheres e crianças, de modo que a reserva oferece um espaço de morada e de

luta muito mais seguro, ―longe da violência do branco, do fazendero‖, como adverte o

Ñanderu Jorge (2010)169.

A reserva, apesar de sua precariedade, ainda possibilita acessos e garantias de

direitos que nos acampamentos e/ou nas áreas em litígio torna-se um grande problema, como

acesso à água, às cestas básicas do estado, saúde e alimentação, possibilitando ainda o acesso

169

Ainda pontuamos que algumas destas famílias já acamparam na área em litígio e/ou mesmo nas proximidades

da área reivindicada. Contudo, devido a conflitos com o fazendeiro, decidiram retornar para as reservas. Esta

relação é extremamente importante porque há diversos acampamentos indígenas em reservas com a finalidade de

retomarem aos seus Tekoha, sendo que estas relações são distintas daquelas que criam estratégias de retorno a

partir da reserva, pois são famílias que após sofreram momentos de tensões com os fazendeiros dirigiriam as

reservas para revindicarem seus Tekoha, montando barracos de lona em uma área da reserva. Esta relação cria

grandes conflitos com as gentes do lugar. Estes dados que foram por nós apontados aqui fazem parte dos

diálogos que estabelecemos com o Conselho Indigenista Missionário de Mato Grosso do Sul, e que,

infelizmente, ainda não tivemos a oportunidade de conhecer estas modalidades de territorialização.

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à cidade que permite maiores articulações com a FUNAI, CIMI, FUNASA e outros aliados.

Nelson e Antonia salientaram certa vez que ―saí daqui [da casa deles na reserva] chegá lá no

CIMI, é rápido‖. Estes demonstram as facilidades de estarem na reserva, de modo que a

reserva aparece como um importante mecanismo de luta. Logo, a reserva possibilita

estabelecer melhor comunicação com o exterior, principalmente no tocante aos processos

judiciais, por conseguirem saber com maior velocidade de tempo os trâmites judiciais que

poderá facilitar, ou não, o retorno ao Tekoha.

O que estas famílias nos demonstram é que a condição de reserva, próximo à cidade,

de certo modo ao ―mundo do branco‖, permite uma rede de apoio extremamente forte ―fora‖

da reserva, portanto, ao mesmo tempo em há necessidade de prestígio interno, é necessário

que haja fecundas relações externas, principalmente com aqueles que consideram ser seus

parceiros, tendo como referência central os antropólogos, sendo estes a representação da

parceria que criará as melhores condições e mecanismos importantes destes retomarem os

Tekoha.

No entanto, o estar na reserva não impossibilita vínculos com os Tekoha. A

necessidade de estar próximo aos Tekoha participa da organização socioterritorial na condição

de reserva. Sendo necessário, por meio da narrativa, relembrar o tempo dos antigos, assim

como deslocarem-se aos territórios tradicionalmente ocupados, o que demonstra que estas

famílias continuam a estabelecer uma ligação frequente com os territórios reivindicados.

Alguns buscam estabelecer estas relações nas visitas aos parentes que ficaram

trabalhando para o fazendeiro, outros entrando escondidos para verificar como o Tekoha

passou por diversas modificações, como narra a Ñandesy Floriza (2010) ao dizer que ―[...]

vamos lá sempre... tem que ir, tem que vê a modificação do fazendero, levá a criança e

mostrá, falá isso daí. Como era diferente aquele tempo. É importante isso daí, muito

importante‖.

Da mesma forma, demonstram as relações de proximidade com o Tekoha, em que as

histórias do tempo dos antigos – Tekoyma - vão estabelecendo e intermediando as relações do

espaço-tempo do Tekopyahu, participando das redes de sociabilidade, possibilitando a

construção da identidade Guarani e Kaiowa construídas nas referências do/no passado, nos

vínculos socioterritoriais que os ligam ao Tekoha. Por isso, é frequente a atitude de ―passá a

cultura‖, como considera Jorge e Floriza.

Nesta relação, o pesquisador, principalmente o antropólogo, é um importante agente,

exercendo a função de registrar as ―histórias-trajetórias‖, pois como considera Admiro e

Antônia, ―é necessário falar o que sente‖. Mas, ainda nem tudo pode ser dito, pois

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consideram que algumas coisas devem ser guardadas, não podem ser proferidas, algumas só

podem ser ditas quando necessário, para aquele que pode saber ―os segredos nativos da

terra‖, como elucida Jorge e Floriza. Ainda Floriza (2010) considera que ―[...] tem que passá

a cultura, senão crianças esqueci isso daí, num pode perdê, tem que regatá a curtura do índio

de verdadero memo...‖.

Estas relações são extremamente importantes, principalmente com relação às

crianças e os jovens, os Guarani e Kaiowa pontuam que estes estão distantes da cultura do

ìndio, ―já não ouve os antigos‖, principalmente a terceira geração, aqueles que não nasceram

nos Tekoha reivindicados, nasceram em outras condições socioterritoriais, como nas reservas,

nos acampamentos, nas fazendas e cidades, carregando consigo outros referenciais espaciais.

Contudo, ―passá a curtura‖, como sempre pontuam Jorge e Floriza, torna-se um

elemento fundamental para a construção de referenciais para àqueles que não nasceram nos

territórios tradicionalmente ocupados, podendo ser acessados pela memória narrada pelos

mais velhos. Também a mobilidade de levar as gentes, que não necessariamente nasceram nos

territórios tradicionalmente ocupados, ou mesmo, morar em suas proximidades, é um

elemento fundamental para o estabelecimento das relações de construção da identidade

Guarani e Kaiowa, permitindo relações de identificação dos lugares vividos pelos antigos sem

nunca terem vivido a territorialização no/do Tekoha.

É pela palavra viva, exercida pela necessidade de contar as histórias, que permite a

estes vivenciarem territorialidades, podendo estes identificar o Tekoha como o lugar de

origem, lugar este que conta a história dos antepassados, como pontua o filho de Jorge e

Floriza, sendo este um Ñanderu‘y (pode-se dizer um Ñanderu pequeno). Desta forma, nesta

relação permeada pela necessidade de contar as histórias, que o Ñanderu Jorge (2009) salienta

que ―[...] é que a gente fica contente, né, como você, é bom a gente contá uma história, pá

num tá sabendo mais essa história [refere-se aos jovens]. Então, vai indo por ai, acabá que

eu tava falando, acabá a cultura [...]‖.

Nessa necessidade de reproduzir a cultura, ainda, muitos Guarani e Kaiowa salientam

que passam dias escondidos nos Tekoha, vendo como tudo mudou e revivendo o passado.

Também, outros sinalizam que, às vezes, se empregam nas fazendas ―pra saber como ele

[tekoha] tá pensando‖, como sinaliza o Ñanderu Jorge durante uma conversa. Comenta ainda

que é necessário sempre ter alguém cuidando do Tekoha, como demonstrado pela narrativa da

Ñandesy Floriza (2010).

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Lá no nosso lugar, é a coisa mais linda. Você fica lá e fica pensando,

pensando... Você até esqueci que tá lá. Num lembra, num lembra, eu num

lembro. Ai você fica naquele lugar do índio de verdade, fica lá. Vai indo...

[...]. Percebe que mudô tudo lá, se vê que mudô, mais é do índio. O

fazendero é assim, tudo ele mexe, mexe tudo. [...] nem aquele corguinho tá

igual... é diferente aquele, tá diferente do índio de antigamente... a gente

sabe disso daí, o Ñanderu sabe... [...] o branco mordificô tudo [...]. Por isso

memo que tem que tá no nosso lugar de orige.

O estar ―no nosso lugar de orige‖, como considera a Ñandesy Floriza, é um

importante meio de estreitarem maiores vínculos com o Tekoha, que ao mesmo tempo em que

representa o Tekoyma e o Tekopyahu, já que o fazendeiro ―mudô tudo de lugar‖. Nesta

relação conflituosa de passado e presente, tendo a representatividade do Tekoha, a

necessidade de retomá-los aparece na possibilidade de ―tudo tá [voltar] no lugar dele‖.

Por isso, aparece nas narrativas que o sonho pelo retorno, permeada pelas

territorialidades de esperança, transitado pelo passado e presente, a conquista do Tekoha, é a

possibilidade de novamente exercerem o modo de vida que passou por diversas

transformações quando deles foram desterritorializados. Contudo, muito mais do que voltar ao

modo de vida dos antigos, é buscar nos lugares vividos por eles a possibilidade de construção

de outros sonhos, outras formas de viver, que não seja a condição de reserva, entre outras

modalidades de territorialização precária.

Portanto, reafirmamos que há diversas estratégias em torno das retomadas de Tekoha,

permeadas pela esperança e o sonho de retorno. Os acampamentos as margens de rodovias e

vicinais e em áreas em litígio são permeadas por estratégias luta específicas, diferente

daqueles que estão retomando territórios tradicionais ―dentro‖ das reservas. Contudo, havendo

sempre similaridades entre elas, pois, é notório que todas as famílias que estão reivindicando

territórios transitem pelo Tekoyma e o Tekopyahu, de modo que há a necessidade de contar a

história dos antigos, aprender as rezas, aprender a falar com Ñanderu, a fim de que os

referenciais espaciais e culturais não se percam, não sejam esquecidos.

As transformações dos lugares reivindicados, no processo de territorialização dos

―brancos‖ e desterritorialização Guarani e Kaiowa em seus territórios tradicionalmente

ocupados, é um importante elemento para a criação de diversas estratégias que possibilitem às

famílias que estão retomando Tekoha continuarem a estabelecer vínculos com estes

territórios, estando próximos ou dentro deles. Os acampamentos de retomadas, como Apyka‘y,

Pacutiry e Ñu Porã, trazem especificidades nas estratégias de retorno, fundamentalmente,

porque o território do acampamento tem como base essencial, ―estar longe do mundo dos

brancos‖, embora estejam neles, e sua representação é nada mais do que parte do mundo não

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indígena. Entretanto, esta relação é reconhecida devido à desorganização socioterritorial da

vida Guarani e Kaiowa em condição de reserva, onde o compartilhamento territorial se faz

pelas redes familiares e por grupos étnicos distintos.

Os acampamentos constituem uma modalidade de territorialização importante para a

viabilização de retomada de territórios tradicionalmente ocupados, existindo duas variáveis de

acampamentos integrando nossas discussões em torno dos acampamentos Pacurity, Ñu Porã e

Apyka‘y. A primeira modalidade são os acampamentos nas beiras de rodovias e estradas

vicinais, localizadas nas proximidades das áreas que pretendem reivindicar,

fundamentalmente, nos limites entre a cerca da propriedade privada e o asfalto, sendo estas,

áreas públicas pertencentes ao Estado. Esta modalidade de territorialização é apontada por

Levi Marques Pereira (2006; 2007) como populações de ―corredor‖. Esta realidade é vivida

pelos indígenas dos acampamentos Apyka‘y e Pacurity. A segunda modalidade de

acampamento são os indígenas territorializados em uma porção territorial que é uma área em

litígio, como é a realidade de Ñu Porã.

Antes de adentramos às relações multiterritoriais entre estes acampamentos, essas

novas modalidades de territorialização, a partir das considerações de Alexandra Barbosa da

Silva (2007), são estratégias que possibilitam recriar o Tekoyma no Tekopyahu. Neste sentido,

nem todas estas modalidades de reterritorialização tem cunho reivindicatório de Tekoha,

envolvendo disputas com o proprietário da área, de modo que estes podem estabelecer lugares

de moradia fixa de algumas famílias.

Neste caso, pode-se dizer que, muitas vezes, é preferível viver em condição precária

nos acampamentos, do que viver a condição de reserva, pois nela não é possível estabelecer

exclusividade territorial. Levi Marques Pereira (2007, p. 05), referente a estas novas

modalidades de territorialização, salienta que:

É importante ter presente que o surgimento das novas modalidades de

assentamento ocorre de maneira paralela ao processo de desarticulação das

formas tradicionais de ocupação do território. Em certo sentido, as novas

modalidades de assentamento podem ser entendidas como respostas

adaptativas a esse processo, mobilizando a criatividade dos líderes de

parentelas e a habilidade de disporem de novos instrumentos culturais no

estabelecimento de relações com a sociedade nacional.

É necessário pontuar que os territórios produzidos pelas famílias envolvidas nas

retomadas territoriais, no caso dos acampamentos, são modalidades territoriais que buscam

ser passageiras, móveis ou cíclicas, que irá prevalecer até a conquista da reterritorialização

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aos seus territórios tradicionalmente ocupados170. Podemos dizer, com base em Marcelo Lopes

de Souza (2009, p. 67) ao considerar as ocupações de sem tetos no espaço urbano, que as

territorialidades vividas nos acampamentos são marcadas pela instabilidade, dando-se no

confronto direto com o Estado, e que estas ações sociais ao serem estabelecidas são práticas

sociais insurgentes. Para o autor estas praticas constituem ―territórios dissidentes‖, e que

estas ocupações são práticas espaciais de resistência, ou seja, buscam territorializar-se no

confronto direto com o status quo estabelecido, pois nas palavras do autor:

[...] Esses territórios dissidentes, expressões de práticas espaciais

insurgentes, são, assim como os ―territórios móveis‖ de Robert Sack [...] e

aquilo que eu chamei de ―territorialidade cíclica‖ [...] estímulos para nos

desvencilharmos de vez da representação do território como uma ―coisa‖ –

como um ―território-coisa‖. Em suma: ―descodificar‖ o território não quer

dizer negligenciar a materialidade do espaço (SOUZA, 2009, p.67 - grifo

nosso).

Entretanto, diferente das exemplificações do autor, a territorialidade dos

acampamentos indìgenas é uma condição que pode ser também ―definitiva‖ em algumas

situações, porque sua construção se dá pela necessidade de continuarem a estabelecer vínculos

com o território, de forma que é fundamental que os Guarani e Kaiowa estejam em suas

proximidades, ou mesmo, dentro deles. Mas, também podemos dizer que os acampamentos

para os indígenas que estão retomando Tekoha se colocam como uma condição provisória, já

que estes podem decidir em sair do acampamento, considerando que este sair é muitas vezes

uma condição imposta, devido aos conflitos com os fazendeiros. E assim, podem também,

criar outras formas de estar nas proximidades de fazendas, aquelas onde estão seus territórios

tradicionalmente ocupados.

Contudo, para aqueles que não têm uma articulação em torno de retomar os

territórios, há uma necessidade em estar de alguma forma nas proximidades dos territórios

tradicionalmente ocupados, que é fundamentalmente criada pela necessidade humana em

territorializar-se, mesmo que precariamente. Acreditamos que esta relação deve ser melhor

estudada buscando entender as multiplicidades que envolvem os acampamentos indígenas, na

perspectiva de que nem todos Guarani e Kaiowa estão reivindicando Tekoha. Portanto,

podemos dizer que os acampamentos indígenas são territórios de resistências, envolvidos em

uma multiplicidade de formas de re-existir, reproduzidos na multidimensionalidade de

transitar e interagir entre múltiplos territórios, sendo eles ou não, uma territorialidade que se

faz nas retomadas territoriais.

170

Esta relação também é presente entre os indígenas que estão retomando Tekoha a partir das reservas.

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Desta forma, as relações socioterritoriais aparecem expressivamente imbuídas pelas

estratégias de retorno, estabelecidas nas relações com a cerca, o asfalto, a reserva, a cidade, as

fazendas, o território precário do acampamento, e ainda, nas relações de esperança e sonho

pelo retorno aos Tekoha, em suma, pela saudade do Tekoyma. Segundo Aline Castilho Crespe

Lutti (2009), estes acampamentos surgem a partir da década de 1970, momento este que vai

ao encontro do boom populacional nas reservas e os últimos refúgios de indígenas de fundos

de fazendas.

Antes de adentramos as multiterritorialidades destes acampamentos, torna-se

necessário pontuar que o estado de Mato Grosso do Sul tem mais de 12 acampamentos

indígenas, envolvendo os Guarani e Kaiowa, e, destes, cinco estão localizados no município

de Dourados171, referenciando os acampamentos Jaguari (Itaum), Aldeinha, Ñu Porã,

Pacurity e Apyka‘y172 (ver Mapa X).

Há necessidade de dizer que estes acampamentos representam realidades diversas

nas estratégias de retomadas do Tekoha, ao mesmo tempo em que apresentam configurações

espaciais específicas, como é caso dos acampamentos Apyka‘y, Ñu Porã e Pacurity,

demonstrando algumas estratégias de lutas similares e distintas entre si.

Os Guarani e Kaiowa que estão reivindicando territórios, por vezes, dizem que

preferem viver no acampamento do que na reserva, pois esta não oferece exclusividade

territorial ao grupo familiar. A reserva, muitas vezes, é caracterizada como um lugar que não

oferece estabilidade aos grupos, o lugar criado para que os Guarani e Kaiowa perdessem suas

referências com seus antepassados nos Tekoha, aparecendo nas narrativas como o lugar do

conflito e da violência.

Todavia, é juntamente ao processo de criação da reserva e imposição deste novo

modo de vida, que para algumas famílias Guarani e Kaiowa os acampamentos de retomadas

territoriais surgem, devido à necessidade de recriação de outras possibilidades de

territorialização, ao reverso da condição imposta de territorialização precária nas reservas. É a

contraposição aos pressupostos de que o único caminho possível para a vida Guarani e

Kaiowa somente poderia ser estabelecido nas reservas, a partir de políticas assimilacionistas e

integracionistas.

171

O mapeamento destas áreas foi construído juntamente com o Conselho Indigenista Missionário, sendo apenas

dados preliminares de áreas que conseguimos ter acesso e mapear. Consideramos que o número de

acampamentos indígenas são muito maiores do que os pontuados neste trabalho. 172

Para maiores informações em torno da dinâmica destes acampamentos, vide Alexandra Barbosa da Silva

(2007) e Aline Castilho Crespe Lutti (2009).

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Os acampamentos são, portanto, a representação de outras possibilidades de

territorialização que estão sendo construídas e redefinidas para além da condição de reserva.

Apresentando multidimensionalidades onde os modos de vida Guarani e Kaiowa foram e

estão sendo recriados, a partir das condições da precariedade, mas também da resistência do

viver em acampamentos. Nestas condições, recriam possibilidades de concretização da

esperança pelo retorno aos Tekoha, ligados pelos laços com o território, logo, pelo sentimento

de pertencimento com os lugares tradicionalmente ocupados.

Os acampamentos são importantes espaços para a formação da identidade Guarani e

Kaiowa, possibilitando criarem e recriarem relações de pertencimento com os lugares

tradicionalmente ocupados (inclusive entre aqueles que nunca estiveram e compartilharam as

territorialidades vividas no Tekoha), sendo o espaço de formação e reprodução da identidade

de um grupo no bojo de sua família. Assim, as famílias que estão retomando Tekoha têm

como base de sua articulação política possibilitar que os parentes criem laços de

pertencimento com os territórios tradicionalmente ocupados, de modo que o acampamento é o

lugar de ―apego‖ as tradições, marcado pela necessidade de falar da cultura e reproduzir o

modo de viver dos antigos.

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Mapa X - Localização dos acampamentos Guarani, Kaiowa e Terena no município de Dourados

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A Kaiowa Damiana (2010), liderança do acampamento Apyka‘y, demonstra que a

importância do estar no acampamento se faz porque ele oferece muito mais condições de

viver do que a reserva, dizendo-nos, brevemente, ao mesmo tempo em que aponta em direção

a área reivindicada, que ―a gente olha pro nosso Tekoha, a gente sente ele...‖. A partir desta

narrativa, esta relação nos coloca duas questões importantes: Primeiramente, o acampamento

é o lugar onde estão os parceiros, não havendo a obrigação de compartilhar território com os

outros; E, em segundo lugar, no que confere ao compartilhamento territorial, este

acampamento tem uma mobilidade muito grande de pessoas que transitam e interagem,

contudo, não conseguem se estabelecer.

Para melhor entender o acampamento Apyka‘y, é necessário dizer que o mesmo está

localizado na BR 463, rodovia que liga Dourados a Ponta Porã. Este acampamento está na

beira da rodovia, fundamentalmente entre a cerca que dá acesso à propriedade privada da

fazenda e a rodovia (visualizar na Foto IX). Estar na fronteira com as fazendas propicia que os

indìgenas estabeleçam relações de ―proximidade‖ com os fazendeiros no tocante as relações

de trabalho.

Este acampamento, Apyka‘y, é formado por um grupo pequeno, não ultrapassando

vinte pessoas, embora, em alguns momentos, possam ter uma população de,

aproximadamente, quarenta pessoas, que, por diversos motivos, tem dificuldades de fixar-se

neste lugar. Esta relação agrava-se porque a maioria de seus aliados indígenas não são,

necessariamente, aqueles que fazem parte de sua rede de parentesco, havendo, assim, neste

acampamento, diversas relações conflituosas.

Estas relações de conflitos podem ser entendidas da seguinte forma: o acampamento

Apyka‘y tem um grupo pequeno de pessoas acampadas, havendo a necessidade de negociar

com outras famílias, ou seja, estabelecer alianças que possibilitem força política para

retomarem o Tekoha. Contudo, por outro lado, viver no acampamento com aqueles que não

são os parentes ou não tem vínculos de alianças sólidas, muitas vezes cria uma relação de

instabilidade, pois os grupos que chegam passam a se contrapor a algumas regras do

acampamento. Logo, a chegada de um novo grupo familiar, que não estabelece relações de

pertencimento com aquele lugar específico, é fomentador de tensionamentos, de modo que a

principal regra no acampamento é não entrar em confronto com a liderança que está sempre

apoiada por um grupo de pessoas, neste caso, com os filhos.

Ainda, temos que considerar que muitos indígenas que passam pelo acampamento

podem não estabelecer laços de pertencimento com o território reivindicado do grupo familiar

e, muitas vezes, se alia ao grupo como uma forma de buscar um lugar para viver,

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estabelecendo uma relação passageira. Essa relação pode ser interpretada pela intenção de

algumas famílias em buscarem outros lugares para viver fora da condição de reserva, de modo

que era expressivo nas narrativas de pessoas que estavam nos acampamentos a explicação de

que saíram da reserva em busca de melhores possibilidades de viver.

Então, buscam um lugar onde possam estabelecer-se da melhor maneira possível, e

como alguns indígenas demonstram não terem condições de levantar Tekoha e/ou parentela,

procuram redes familiares pelas quais possam criar parcerias e alianças políticas e,

consequentemente, fortalecer a luta pelo retorno. Entretanto, estas alianças, muitas vezes, são

estabelecidas em extrema precariedade, em que as condições mínimas de vida estão sendo

disputadas nos acampamentos. Estes fatos, em algumas situações, podem agravar os conflitos

sociais entre um grupo e outro, já que não há entre eles laços de afinidade estável, mas sim,

como no caso do Apyka‘y, apenas alianças passageiras.

Outro fator relevante é que a maioria das famílias que permanecem por algum tempo

no acampamento vieram de outras realidades de acampamentos a procura de lugares onde

possam se encontrar. Esses são os acampamentos de Reforma Agrária, principalmente da

Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Mato Grosso do Sul

(FETAGRI/MS), como é o caso de acampamentos que estão localizados no município de

Dourados, nas proximidades do acampamento Apyka‘y. Estes acampamentos são também

uma expressão da territorialização precária e passageira dos Guarani e Kaiowa, pois não

oferece a exclusividade territorial da família extensa.

Contudo, é necessário elencar que mesmo nesta situação de precariedade, os mesmos

favorecem modos de resistência ao processo de desterritorialização de seus territórios

tradicionalmente ocupados, pois mesmo não havendo exclusividade territorial familiar é

relatado como um lugar que propicia, de alguma forma, o retorno destes grupos a lugares que

poderão estabelecer maiores vínculos, mesmo que não sejam os territórios tradicionalmente

ocupados.

Ainda referente à mobilidade de algumas famílias nucleares no acampamento

Apyka‘y, podemos exemplificar como uma família Guarani, que se estabeleceu no

acampamento por aproximadamente um mês, se retirou por entrarem em conflito com a

liderança. Ao perguntarmos o que levou a família sair do acampamento, Damiana sinaliza que

―eles querem tomar a liderança‖. Talvez, esta relação móvel de pessoas no acampamento

possa estar relacionada ao fato de que cada família tem modos específicos de organizar-se,

podendo, em alguns momentos, entrar em confronto com outras famílias que não consegue

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estabelecer-se no lugar de acordo com a organização socioterritorial do acampamento, se vê

obrigada, então, a sair.

Também, existe a mobilidade de indígenas que vivem na RID, aliados as lutas, mas

que preferem estabelecer seus espaços de morada na reserva. Ou mesmo aqueles que estão na

Reserva Indígena de Caarapó, pois Damiana tem uma expressiva rede de alianças,

principalmente de consanguinidade nesta reserva, que permite, muitas vezes, principalmente

em situações de relações conflituosas com os fazendeiros, se refugiar nestes lugares, buscando

abrigo com os familiares. O que se percebe nesta relação, é que as redes de sociabilidade entre

diversas modalidades territoriais estão inter-relacionadas as estratégias de resistência.

Podemos considerar também, que muitas vezes as famílias acampadas buscam deixar um

número expressivo de parentes nas reservas, pois é necessário estabelecer uma rede de apoio

em outras modalidades territoriais ocupadas pelos parentes, podendo ser uma expressão de

uma multiterritorialidade de resistência em rede.

Neste aspecto, a saída dos parentes da reserva para o acampamento nem sempre é

uma boa estratégia para retomar o Tekoha, pois poderia limitar a mobilidade de saída e

retorno dos indígenas nas proximidades do território tradicionalmente ocupado e a

reterritorialização em suas margens por meio de acampamentos em momentos em que os

conflitos se tornam mais latentes com os fazendeiros. Estas relações nos demonstram que as

diversas modalidades territoriais vividas pelos parentes após o esparramo, são também

apropriadas como uma estratégia de retorno aos territórios tradicionalmente ocupados, pois

fundamentalmente funcionam como linhas de fuga, no sentido de que os processos de des-re-

territorialização se fazem como meio de resistência a desterritorialização imposta pelo

fazendeiro ao retirá-los dos acampamentos.

Assim, estas relações estabelecidas entre as diversas modalidades territoriais devem

ser consideradas como vetores de multiterritorialidades de resistência, sonho e esperança de

retorno ao Tekoha, considerando que cada acampamento tem e cria seus vetores de

resistências, estando assim, territorializados em rede. Portanto, entender esta

multiterritorialidade é compreender ―[...] que não há território sem um vetor de saída do

território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo,

um esforço para se reterritorializar em outra parte‖ (DELEUZE apud HAESBAERT;

GLAUCO, 2011, p.01).

Portanto, a partir da realidade estudada, podemos considerar que as relações

socioterritoriais estabelecidas em condição de acampamento, inclusive no que concerne à

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organização espacial dos barracos, se fazem a partir de laços de afinidade e/ou mesmo

distanciamento, como demonstra Levi Marques Pereira (2007, p.22):

A distribuição espacial dos barracos de lona era, aparentemente, aleatória.

Entretanto, a observação mais atenta revelou que ela seguia o padrão de

organização baseado no parentesco e na existência de unidades sociológicas

típicas da sociedade Kaiowa. Assim, analisando a planta do acampamento,

foi possível identificar uma série de características próprias ao sistema

Kaiowa de disposição das moradias, cuja proximidade ou distância se dá de

acordo com a intensidade da interação social. Os barracos formavam

aglomerados, delineando o espaço ocupado pelo grupo de parentes

próximos, que cooperavam entre si nas atividades cotidianas e

compartilhavam seus momentos de ócio e lazer. Na língua guarani, são

denominados de jehuvy, composto por certo número de fogos domésticos,

aglomerados em torno da residência do casal principal [...].

Estas relações socioterritoriais pontuadas pelo autor, de certa forma refletem a

organização socioterritorial do acampamento Apyka‘y, que se faz tendo como núcleo central a

casa de Damiana, por meio das relações de afinidade e distanciamento. As famílias que

passam por este acampamento, e por alguns momentos aliam-se na luta pela retomada do

Tekoha, tendem a se localizarem distantes quando não há vínculos sólidos entre eles. Exemplo

este, foi percebido na inserção desta família Guarani no acampamento.

As dificuldades de viverem acampados são demonstradas na narrativa da Kaiowa

Damiana, dizendo haver preconceitos por parte de alguns indígenas que estão na reserva,

referindo-se a Reserva de Caarapó, de forma que alguns indígenas se colocam contra a

demarcação e a permanência do grupo no acampamento. Este fato traz como consequência

tensionamentos entre aqueles que estão no acampamento frente aos que estão na reserva.

Muitas vezes, os indígenas são vítimas de chacota por aqueles que estão na reserva. Nas

palavras da Kaiowa Damiana (2010), as dificuldades de viver no acampamento se dão da

seguinte forma:

Difícil gente morar em acampamento assim, difícil pra arrumar coisa, onde

que precisava tem que pedir pra FUNAI, se FUNAI às vezes tem te arrumá,

se não tem FUNAI, não tem como fazer também, tem que esperar. Gente pra

morar, pra acampar, não é? [...]. Tudo pode morar porque é acampamento

do índio. Passou um monte de dificuldade, né, gente precisa, gente precisa,

tudo né. Então, acampamento, morar, precisa tudo, por isso que tudo parte é

acampamento. Então... resolve plantar uma coisa, fica lá, devagar, tem

plantá pra vender, né [referente a reserva]. Se morar no acampamento,

assim não dá, não. Tem que esperar a terra [...]. Porque, sim, melhor, sim...

dá pra plantar uma coisa, aqui no acampamento não, tem que sentar, tem

que pensar o que vai fazer. Quando nós morava dentro de reserva, nós

entrava na reserva... não pode sentar muito, tem que levantar, plantar coisa,

plantar milho, limpar casa, então tem que fazer, né, fazer tudo [...]. Melhor

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sim, melhor. Ganha mais, vem pela terra também, né, devagar, se morar

assim, não tem nem polícia, violência, não tem não. Só violência tem só

[referente a vida na reserva] Quando cheguei, quem não conhece aqui

gente, aí eu falei pra ele [...].

Entretanto, ao mesmo tempo em que a reserva se coloca como um território em

tensão com aqueles que se posicionam contra a demarcação, ou mesmo não aceitam as

condições vividas nos acampamentos, este território torna-se um importante espaço de ―fuga‖

quando os conflitos com os fazendeiros tendem a agravar-se, havendo uma relação constante

entre reserva e acampamento. Contudo, a condição de reserva está sempre relacionada à

condição de violência, a impossibilidade do exercício do modo de vida Guarani e Kaiowa.

O que estas implicações nos levam a refletir vai ao encontro às colocações de Levi

Marques Pereira (2010, p. 119) ao falar a respeito das dificuldades encontradas pelas

lideranças Guarani e Kaiowa, que buscam retomar Tekoha para manter a coesão de um grupo

na luta:

As lideranças indígenas dispõem de poucos recursos para deslocamento,

comunicação e mesmo para assegurar a subsistência de sua família nuclear e

das famílias de parentes que se dispõem a reconhecê-las como liderança. Isto

dificulta o reagrupamento das comunidades e o engajamento dos parentes na

luta pela demarcação da terra [...].

O que autor propõe pensar é que retomar os Tekoha não é uma situação fácil,

havendo a necessidade de articular o maior número possível de gentes que apoiam as lutas.

De tal forma que podemos considerar que os acampamentos, apesar de se fazerem isolados

entre si, buscam, na medida do possível, estabelecer relações. Buscam, também, estabelecer

relações com outras modalidades de lutas, sejam elas indígenas e não indígenas, havendo uma

troca de experiências de lutas pelo território.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST173, em algumas narrativas

indígenas, aparece como um movimento não indígena de referência no tocante às estratégias

de luta, pois no tocante às suas lutas pelo território, o MST busca a desapropriação de

fazendas para fins de Reforma Agrária. Assim, os indígenas entendem que as estratégias de

retorno têm que considerada pela necessidade de ocupar os territórios reivindicados,

compreendendo que ―sem reivindicação não há demarcação‖, considerada pelo Kaiowa

Zezinho do acampamento Laranjeira Ñanderu.

173

Após a conquista da demarcação da Reversa Indígena Raposa Serra do Sol, um importante marco na história

das lutas dos movimentos indígenas, o MST foi convidado a auxiliar no processo de organização socioterritorial,

principalmente, no que diz respeito a produção agrícola.

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A Kaiowa Damiana carrega consigo a percepção da necessidade do estar no

acampamento como uma estratégia que potencializa o retorno.

Tem que lutar devagar pra ganhar a terra. A terra não é de hoje, não é...

Pra arrumar na hora, e reserva, tem que lutar devagar, tem que ir pra o

local, pra arrumar terra, de novo, né, então. Por isso, que é no apuro,

também, tem que esperar [Grupo Técnico], tem que saber, também, às vez,

se não vai vim GT, quem é que dia que vai vim. Tem que esperar, não pode

entrar na hora, abusar do ordem, tem que cumprir ordem do juiz, né?‖.

Como demonstra Damiana, há uma verdadeira interação entre as relações

burocráticas que pode lhes garantir o direito de entrar nos territórios tradicionalmente

ocupados. Sinaliza, expressivamente, em outro momento, que ―o branco trabalha com papel,

índio tem que entender o papel‖, pontuando que é necessário conhecer a lei dos ―brancos‖

para melhor conseguirem reivindicar o ―seu lugar‖.

Neste caso, a fazenda que aparece na fotografia não é referente à área que estão

reivindicando, pois a mesma fica do outro lado da rodovia 174 (ver Figura XVII e Foto VI).

Entretanto, é necessário dizer que anteriormente os indígenas estavam acampados na área,

mas, foram despejados pelos fazendeiros, fato este que culminou na mudança do

acampamento para o outro lado da rodovia. Esta relação é demonstrada por Aline Castilho

Crespe Lutti (2009), ao dizer que por diversas vezes estes indígenas tentaram estar nas

proximidades de seus territórios tradicionalmente ocupados, que faz referência ao Tekoha

Jukery e/ou Curral de Arame, mas, que hoje Damiana redefine o Tekoha como Apyka‘y.

174

Anteriormente, o acampamento ocupava o outro lado da rodovia, facilitando a entrada dos indígenas no

Tekoha, já que estavam mais próximos a eles. A mudança de lugar se deu após o ataque sofrido por pistoleiros

que os obrigaram a sair do outro lado da rodovia e dirigirem-se a este. Nesta localidade conseguem, mesmo que

minimamente, estabelecerem relações com o fazendeiro, que os deixa pegar água no córrego e ainda estabelecem

relações de trabalho.

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Figura XVII – Área onde estava localizado o acampamento Apyka’y antes do despejo

Fonte: Aline Castilho Crespe Lutti (2009, p.58).

Foto VI – Área onde estava localizado o acampamento Apyka’y antes do despejo

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2010.

Localização do antigo

acampamento

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Ainda, com relação ao fato dos acampamentos buscarem estar próximos do Tekoha,

Ruth Henrique da Silva faz referência a este acampamento, salientando que: ―[...] desde 09 de

setembro de 2002, à beira da estrada de terra que liga Dourados a Laguna Carapã, a um

quilômetro do trevo da BR 163, sentido Ponta Porã‖ (apud LUTTI, 2009, p.49).

Foto VII – Acampamento Apyka’y

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2011.

No tocante ao acampamento Ñu Porã, este está localizado na BR 163, onde estes

indígenas residem na área em litígio, sendo esta uma área arrendada, conhecida como

Mudas/MS, no qual comercializam mudas de gramas para a região. Há indícios de que os

indígenas ocupam esta área há aproximadamente 30 anos, e a inserção no trabalho, na área

reivindicada é também uma estratégia de continuarem a manter laços com os territórios, neste

caso, expressivo, pois continuam nele. Nesta área em litígio, os indígenas trabalham fazendo

balaios, carpindo, plantando mudas, trabalhando na Olaria (dentro do Mudas/MS) e, também,

no pesqueiro Kanoa que fica ao lado do acampamento, que pertence ao mesmo arrendatário.

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Figura XVIII - Localização do acampamento Ñu Porã

Fonte: http://maps.google.com.br/maps. Elaborado pela autora deste trabalho.

No que ainda remete ao acampamento Ñu Porã, há a representatividade de três

lideranças importantes que estão à frente das retomadas territoriais. Primeiramente, Rogério e

Madalena (casados) e a representatividade do irmão de Rogério, Valdemir Cáceres. O casal é

uma liderança eminentemente interna, enquanto o segundo é uma liderança externa, pois, este

tem melhores condições de estabelecer relações com as parcerias externas ao acampamento,

possibilitando ao mesmo estabelecer maiores relações políticas no tocante à demarcação da

área reivindicada, participando de movimentos como a Aty Guasu, reivindicações frente à

FUNAI e o Ministério Público Federal (MPF). Enquanto Rogério e Madalena são lideranças

internas, articulando os parentes em torno de si.

O acampamento Ñu Porã tem características muito específicas, pois sendo uma área

arrendada, o mesmo não apresenta tensionamentos tão graves como ocorrentes nos

acampamentos Apyka‘y e Pacurity. Como a área é arrendada, o arrendatário não cria grandes

problemas com os indígenas frente à demarcação de terras, diferentemente das relações com o

fazendeiro que, segundo informações, reside em São Paulo e já salientou a possibilidade de

retirada dos indígenas da área arrendada.

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Foto VIII – Acampamento Ñu Porã localizando na área em litígio

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2010.

Há uma proximidade social, envolvendo as estratégias de lutas, entre os

acampamentos Apyka‘y e Ñu Porã. Esta relação pode ser pensada pela necessidade do grupo

agregar outras relações de proximidade nas estratégias de lutas pelo retorno, já que uma

expressiva parte está territorializada em outras realidades sociais, como os parentes que

buscam criar mecanismos de manter a luta não estando no acampamento, mas em fazendas

e/ou mesmo trabalhando na área reivindicada pelos Kaiowa de Ñu Porã. Estas redes sociais

que envolvem territorialidades do acampamento Apyka‘y e Ñu Porã estão, estritamente,

relacionadas às relações de trabalho. Desta forma, os indígenas vinculados às estratégias de

lutas do acampamento Apyka‘y, ao estarem territorializados no Ñu Porã, possibilitam maiores

condições de alguns parentes conseguirem manter-se no acampamento lutando pelo Tekoha.

Esta relação pode ser constatada a partir das considerações do Kaiowa Nivaldo, filho

de Damiana. Ao dizer que ao trabalhar no acampamento Ñu Porã, prestando serviços ao

arrendatário, esta relação viabiliza o acesso ao Plata Jará - o dono do dinheiro, sem,

necessariamente, estarem vinculadas as retomadas no Ñu Porã, havendo a necessidade de

considerar, que nem todas as pessoas que trabalham na área em litígio, estão reivindicando o

Tekoha.

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Pontuamos, também, frente às estratégias de lutas, fazendo referência ao

acampamento Apyka‘y, que a Kaiowa Damiana tem uma filha chamada Sandra, que mora em

uma fazenda juntamente ao seu marido, trabalhando para o fazendeiro. Esta relação é

pontuada por Damiana, ao dizer que é o trabalho na fazenda que os ajuda a manter no

acampamento. Salienta que sua filha, juntamente com seu marido e suas netas, vem visitá-la

aos finais de semana, trazendo-lhe alimentos, entre outras coisas necessárias para continuarem

no acampamento, demonstrando haver uma interação entre fazenda e acampamento,

parecendo ser irônico que os próprios fazendeiros, indiretamente e inconscientemente,

―financiem‖ a permanência e a luta dos Guarani e Kaiowa no tocante ao retorno ao seu

Tekoha. Entretanto, nesta relação é necessário que se pontue que o fazendeiro tende a utilizar

a mão de obra indígena, pois, na maioria das vezes, o trabalho indígena tende a ser mais

barato do que a utilização do trabalho não indígena.

Ainda, nesta perspectiva de pensar as interações entre acampamentos e fazendas, e

também as relações que envolvem de forma expressiva as estratégias de lutas em torno das

territorialidades construídas entre a reserva e o acampamento, encontramos uma característica

muito peculiar no acampamento Pacurity, localizada na BR 463, a dez quilômetros do

Apyka‘y, sendo liderada pelo Kaiowa Bonifácio e sua esposa Priscila. As pessoas que ali estão

acampadas vivem uma relação alternada entre reserva e acampamento, pontuando haver a

necessidade de deixar alguém tomando conta do acampamento e também da casa na reserva,

localizada na Bororó, já que suas estratégias de lutas se constroem, fundamentalmente, a

partir destas duas territorialidades em interação.

O Kaiowa Bonifácio considera que a reserva é o lugar onde eles podem esconder-se

do fazendeiro, confirmando a existência das relações conflituosas com os fazendeiros na

região, de forma expressiva com o proprietário de uma porção da área reivindicada por eles.

Nas relações com a reserva, estes buscam alguns recursos que possa permitir o

estabelecimento no acampamento, como as relações com os parentes que estão na reserva, às

crianças terem acesso à escola e assistência à saúde e, também, fazer alianças políticas com

outras famílias que estão retomando Tekoha, e que constroem suas lutas a partir da reserva.

Nesta relação interdependente entre a reserva e o acampamento, especificamente na

realidade do Pacurity, há também uma mobilidade de ida e volta do acampamento à reserva, e

vice versa, de gentes que não necessariamente estão reivindicando o Pacurity, e que, por

alguns momentos, tornam-se parceiros de lutas. É comum alguns indígenas dirigirem-se a este

acampamento por terem algum tipo de desentendimento com a família na reserva, buscando

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alianças de amigos e/ou parentes que estão no acampamento e reconstruírem suas vidas em

outras relações socioterritoriais.

Apontamos estas questões porque acreditamos ser necessário demonstrar que os

acampamentos são dinâmicos, principalmente no que concerne a mobilidade de pessoas

transitando entre um território e outro estabelecendo relações de alianças. Pretendemos

apontar, assim, que a construção da luta de retorno ao Tekoha, também se dá nos

tensionamentos dentro das famílias e entre famílias, o que mereceria melhores

aprofundamentos de estudos, mas, mesmo que superficialmente, são necessários serem

pontuados para melhor entendermos a dinamicidade dos acampamentos e, consequentemente,

a dinamicidade da reserva.

Neste contexto de tensões, podemos citar o caso de um jovem Kaiowa pertencente a

uma família extensa da RID que se fez presente no Pacurity. A presença do mesmo no

acampamento se deu por meio de tensões com a esposa, que após a separação do casal o

mesmo muda-se para o acampamento. Contudo, posteriormente o mesmo retoma o casamento

com a esposa, retornando a reserva.

Estas situações nos mostram que as redes sociais são amplas, havendo interações

sociais entre-lugares, na perspectiva de que algumas relações podem enfraquecer e/ou

fortalecer-se, de modo que estas interagem nas estratégias de luta dos grupos familiares que

estão retomando Tekoha, sejam estes: a partir da reserva, entre reserva e acampamento, entre

reservas, entre acampamentos, entre fazendas e no/pelo acampamento.

No tocante às dualidades entre reserva e acampamento, e para além delas nas

estratégias de lutas, o Pacurity demonstra a necessidade dos parentes ocuparem vários pontos

do Tekoha, sendo um importante mecanismo de luta para continuarem a permanecer em suas

proximidades, algumas vezes dentro deles. Nas palavras de Bonifácio (2010):

[...] tem que escondê, é bom escondê, né. Para esconder do fazendeiro. [...].

Num pode sabe onde tá, ai fica em um lugar... cada um. Tem parente nosso

lá no Ofaié, isso ai. Vai vim pra cá pra retomá no nosso Tekoha [...]. O

fazendeiro é bravo, ai tem que rezá... [...] tem que escondê do fazendeiro. A

nossa família tá cada um num lugar, e retomá o Tekoha Pacurity.

A multiterritorialidade vivida por Bonifácio no tocante às retomadas territoriais são

marcas da construção de multiterritorialidades de resistência, tendo como mecanismo central

a necessidade de haver rotatividade entre os lugares transitados e vividos. No viver em entre-

lugares para continuar a ter acesso ao Tekoha, Bonifácio demonstra que a reserva não é o

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único meio de criar condições para permanecerem no acampamento, mas, também, a cidade,

as Terras Indígenas, as fazendas são importantes mecanismos de resistência.

Deste modo, a família de Bonifácio vive uma multiterritorialidade que permite

conectar em torno do acampamento diversas estratégias de lutas, ligadas com outras

realidades territoriais vividas pelos seus parentes após o esparramo, e, também, com os

aliados de lutas e os que se colocam contra a demarcação, principalmente, nos conflitos com

os fazendeiros. Segundo sua narrativa há parentes na Terra Indígena Ofaié, e que lá eles

também estão se organizando para retomar o Pacurity175. Ainda, a cidade apresenta-se como

um importante elemento para a ampliação das lutas pelo retorno, sendo um espaço propício

para viabilizar a compra de alimentação e bens necessários para a manutenção no

acampamento. Mas, é fundamentalmente um espaço de estabelecer parcerias com não

indígenas, principalmente com o CIMI, FUNAI e MPF (Ministério Público Federal).

Também, há uma mobilidade em torno das fazendas, pois podem, em alguns momentos,

empregarem-se nelas para conseguirem dinheiro e terem melhores condições de vida no

acampamento, principalmente envolvendo a compra de alimentos para continuarem no

Tekoha.

175

Segundo algumas narrativas, alguns Kaiowa foram levados para a TI Ofaié, localizado no município de

Brasilândia, para ―ensinarem‖ os Ofaié a trabalhar com a agricultura. Esta relação aproxima do mito de que os

Terena vieram para a RID para ensinar os Guarani e Kaiowa a trabalhar. Há necessidade de melhor compreender

esta relação, assim, como, a presença dos Kaiowa na TI Ofaié.

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Figura XIX - Localização do acampamento Pacurity

Fonte: Aline Castilho Crespe Lutti (2009, p.68). Figura modificada pela autora.

O acampamento Pacurity, assim como o acampamento Apyka‘y, têm características

muito peculiares, já que neles envolvem o viver entre a cerca e o afasto, trazendo, muitas

vezes, um ―mal estar‖ por estarem nesta condição. Há reclamações sobre os barulhos de

caminhões e carros que transitam pela rodovia que liga o município de Dourados a Ponta

Porã. A rodovia representa no acampamento o ―mundo dos brancos‖, considerado ser um

mundo barulhento, e que a rodovia invadiu o Tekoha, sendo comum reclamarem que muitos

buzinam, gritam em frente do acampamento, muitas vezes com xingamentos e ameaças de

violência, estão sempre temendo o atropelamento de crianças e animais de estimação.

Podemos dizer que a rodovia representa para os Guarani e Kaiowa que estão

acampados, uma relação de meio, de viver em entre-lugares, é a fronteira entre o ―mundo dos

brancos‖ e o ―mundo dos ìndios‖, no sentido de que o primeiro liga-se a imposição do Teko

Vai e o segundo, a busca pelo Teko Porã, representado pela necessidade de retorno ao

Tekoha. Segundo Damiani (2010), ―no acampamento Apyka‘y a gente espera, fica

esperando... tem que voltá pro nosso lugar [...]. Tem que vigiá o fazendero... (risos), é o

nosso lugar o Apyka‘y, minha tia tá enterrada lá...‖.

O acampamento localizado entre a cerca e o asfalto é a possibilidade de estar perto

do Tekoha, sendo o território de socialização Guarani e Kaiowa que possibilita ―vigiar‖ o

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fazendeiro, como considera a Kaiowa Damiana (2010): ―sabê o que fazendero tá fazendo no

nosso lugar, daqui a gente vê tudo...‖.

Foto IX - Acampamento Apyka’y: entre a cerca e o afasto

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2011.

A Foto IX é a exemplificação do viver nos limites da fazenda, da rodovia e do

Tekoha, no caso do acampamento Apyka‘y, demonstrando a precariedade do viver no

acampamento, muitas vezes, sem condições mínimas de saneamento básico, assistência a

saúde, acesso a escola, entre outros problemas.

Além dos conflitos diretos com os fazendeiros, demonstrado na narrativa de Kaiowa

Nivaldo do acampamento Apyka‘y, este coloca em sua narrativa que a condição de

acampamento é ―perigosa‖ devido aos conflitos com os fazendeiros. Durante uma breve fala,

este salienta que ―[...] tem que prestá atenção... tem que sabê quem chega aqui, fazendeiro

manda pistolero vim aqui [...]‖.

Podemos considerar que os acampamentos são modalidades territoriais de viver no

limite da precariedade, entre a precariedade e a esperança de outras formas de viver bem. A

precariedade nos acampamentos coloca aos indígenas necessidades de recriarem

territorialidades que, minimamente, possibilitem vivenciar, mesmo que distantes, os

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territórios tradicionalmente ocupados, sonhando com o retorno. Logo, nesta relação que

envolve a necessidade de estar perto, torna-se um elemento fundamental o exercício de

acionarem multiterritorialidades exercidas pelo ato de lembrar o passado vivendo o presente.

Nestas relações, envolvendo os acampamentos Apyka‘y, Pacurity e Ñu Porã,

podemos dizer que há entre eles, e para além deles, territórios-redes que articulam e interagem

com as cidades, as fazendas, os acampamentos de retomadas e os acampamentos de Reforma

Agrária. Por isso, elencamos que a RID, no que concerne ao processo de desterritorialização

dos territórios tradicionalmente ocupados e a imposição da reterritorialização nas reservas,

estão relacionados ao processo de constituição dos acampamentos indígenas. Portanto, os

acampamentos, assim como a reserva, estão vinculados às relações socioterritoriais do viver

entre-lugares, no confronto com a desterritorialização que sofreram e as novas

territorialidades recriadas para acessarem e estarem no e/ou perto do Tekoha.

Neste contexto, a territorialidade da esperança e do sonho de retorno aos territórios

tradicionalmente ocupados, tem a religiosidade Guarani e Kaiowa como um elemento

fundamental, pois, como advertem estas sociedades, é pela reza que se amansa o fazendeiro e

também é por meio dela que se tem força para retomar os Tekoha. Sendo assim, na maioria

dos acampamentos, há sempre a representatividade do Yvyra Marangatu (representado pela

Foto X).

Nas palavras de Damiana (2010), frente ao poder da reza, esta salienta que ―[...] tem

que rezar. Rezá, todo dia tem que rezar. A gente faz o milho [Jerosy], grupo sábado,

domingo, né, não pode [...] índio tem que ser assim [...]. É fazendeiro, muita violência

demais, né, investiga muito, né. [...]‖.

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Foto X – Acampamento Apyka’y: Reza em torno do Yvyra Marangatu

Fonte: Trabalho de campo realizado pela autora, 2009.

Portanto, a reza é, fundamentalmente, um mecanismo de luta, um dos principais

meios que os Guarani e Kaiowa conseguem estabelecer relações com o sobrenatural. É pela

reza que se abrem as possibilidades de retorno, fazendo da esperança e do sonho

multiterritorialidades de resistências, implicando em um modo de re-existir, logo, um modo

de estar no mundo e fazer-se Guarani e Kaiowa, movida pela saudade do modo de vida dos

antigos – Tekoyma, fazendo-se pelo/no novo modo de viver – Tekopyahu. A saudade, salienta

a Kaiowa Ñandesy Floriza (2009), ―move nossa vontade de voltá pra nosso lugar‖.

A reza é, fundamentalmente, um mecanismo de luta, um dos principais meios dos

quais os Guarani e Kaiowa conseguem estabelecer relações com o sobrenatural. É pela reza

que se abrem as possibilidades de retorno, fazendo da esperança e do sonho

multiterritorialidades de resistências e de re-existências, do modo de estar no mundo e fazer-

se gentes Guarani e Kaiowa. Junto à reza, a saudade move o modo de vida dos antigos

(Tekoyma) que também se faz pelo novo modo de viver (Tekopyahu). É a saudade – esse

sentimento profundo que se sente, mas que não se explica – que ―move nossa vontade de voltá

pro nosso lugar‖, como nos disse a Ñandesy Floriza (2009).

Dessa maneira, esse é ―o nosso lugar de origem‖, como pontua Floriza, fazendo-se

em um modo distinto de ser Kaiowa, sendo uma forma específica de ser gente, de participar

do mundo buscando o reconhecimento da sociedade, de forma que as retomadas dos

Yvyra Maranguatu

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territórios tradicionalmente ocupados – o Tekoha sejam, fundamentalmente, lutas em parceria

com toda a sociedade, havendo garantias de direitos iguais, na diferença.

O Kaiowa Zezinho, do acampamento Laranjeira Ñanderu, localizado no município

de Rio Brilhante, liderança indígena e um dos representantes da Aty Guasu (grande reunião

Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul) ressalta fazer valer o direito à vida nas disputas

territoriais pela apropriação das riquezas naturais.

Os índios sempre faz retomadas [...]. Os índio faz retomadas na terra, eles,

eles sabem muito bem aonde é... eles sabem muito bem, então vai direto ali.

Mas só que, tá na lei também. Se muitos indígenas fazem a retomada, é uma

luta fundamental. Isso aí é o que tá na lei, mas só que não tá respeitados.

Então isso... pra vocês, porque isso é muito importante. E também a força de

vocês ao lado dos povo brasileiro, porque é todo mundo brasileiros. Vamos

ajudar um ou outros, nós vamos conseguir, nós vamos chegá lá, porque

assim nós vamos construir o Brasil melhor. Ou, então, aqui nos estados,

assim vamos construir nos estados melhor [...].

Porque eu vou falar pra vocês, uma barco redondo, nunca não chega do

outro lado do rio. Agora o barco tem que ser... Não, precisa ter todos, mas

tem que ser tudo juntos ali, tem que trabalhar, remar, pra chegar até o outro

lado. É assim que nós tamo agora, todo mundo tem que querer entrar tudo

nesse barco pra nós levar esse barco pra chegar até o outro lado. Então eu,

vocês viram nos vídeos como é que é a vida [...] isso é uma história. [...].

A demarcação das terras aqui no nosso Estado foi publicado que o governo,

o governo André, ele publicou que se sair a demarcação das nossas terra

aqui no nosso estado vai prejudicar o estado, né. Só que isso foi mentira

dele, porque nós não vamos prejudicar o estado, nós queremos apenas um

pedaço onde a gente [...] onde a gente possa sustentar nossas família,

sustentar nossos ancião, as crianças. Nós não queremos toda a terra não, a

terra nossa. Só que foi publicado que nós vamos prejudicar o Estado de

Mato Grosso do Sul. Nós não vamos prejudicar não [...]. E nós não

queremos prejudicar não, nós queremos apenas onde nós vamos se

sustentar, com a nossa família. É isso que o Estado não entende, não qué

entendê ainda. O porquê eu falo o estado? Porque é nosso governo. Nós

somos Guarani, nós somos Guarani, nós somos e nós vamos continuar sendo

Guarani, e eu tenho muito orgulho porque eu sou Guarani, vou ser sempre

Guarani, e as minha família vai ser sempre Guarani, e os meus filho vai ser

sempre Guarani. Aqui no Estado nós vamos existir... é isso que quero deixar

aqui‖.

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Foto XI - Acampamentos Apyka’y, Pacurity e Ñu Porã

Fonte: Trabalhos de campo realizados pela autora.

Acampamento Apyka‘y, 2010.

Acampamento Pacurity, 2010.

Acampamento Ñu Porã, 2010.

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A partir da narrativa do Kaiowa Zezinho e da foto XI, representando os

acampamentos Apika‘y, Pacurity e Ñu Porã, podemos dizer que os Guarani e Kaiowa se

multiterritorializam na busca pelo seu lugar no mundo, o Tekoha. Os acampamentos, no caso

do Apyka‘y, Pacurity e Ñu Porã se colocam como uma condição passageira, mas é um

importante espaço para que os mesmos possam minimamente reproduzir o modo de vida dos

antigos, enquanto esperam pelo retorno ao Tekoha. Embora, sejam espaços de precariedade,

de viver em lugares movidos por tensionamentos no entorno das disputas territoriais com os

não indígenas que envolvem a demarcação de seus territórios, os acampamentos são o lugar

onde se pode estar junto da família, onde não há imposição do compartilhamento territorial

com aqueles que buscam manter relações distanciamento, assim, o acampamento é, sobretudo,

o lugar da espera e da esperança pelo retorno.

Os Guarani e Kaiowa estão traçando suas estratégias de lutas entre reservas,

acampamentos, cidades, fazendas, em suma, criando multiterritorialidades de resistência,

movidos pelo sonho e esperança pelo retorno. Como nos diz a Kaiowa Ñandesy Floriza

(2010) ―pra retomá nosso lugar‖, pois para algumas famìlias, retomarem os Tekoha é a

possibilidade de novamente viverem o Teko Porã, nos preceitos do modo de viver dos antigos

(Tekoyma).

O que é possível dizer, diante das diversas estratégias de resistir e re-existir e a

partir das palavras indìgenas que emanam sonho e esperança, é que ―Cada um tem o lugar

dele‖, explica a Kaiowa Damiana (2010), pois ―É lá onde os antigos vivia que a gente vai

regatá a cultura‖, salienta o Kaiowa Jorge (2010).

Portanto, nos permitimos dizer que as lutas Guarani e Kaiowa estão construindo

espaços de esperança, pois, como elenca Oscar Wilde, ―um mapa do mundo que não inclua

Utopia não merece nem mesmo uma espiada‖ (apud HARVEY, 2004, p.181 – grifo nosso).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

SEM TEKO NÃO HÁ TEKOHA E SEM TEKOHA NÃO HÁ TEKO

"Eu vou dar a despedida, como deu o bem-te-vi...‖.

João Guimarães Rosa

Sagarana (1946), 1984.

―O Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as

pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que

elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a

vida me ensinou‖.

João Guimarães Rosa

Grandes Sertões Veredas (1956), 2006.

Tudo que se vê não é

Igual ao que a gente

Viu há um segundo

Tudo muda o tempo todo

No mundo...

Lulu Santos e Nelson Motta

Música: Como uma onda

As histórias-trajetórias das gentes são, fundamentalmente, uma ―simultaneidade de

estórias-até-agora‖, por isso, longe de estarem acabadas, estão em contìnuo fazer-se, de

modo que nossa análise em torno das sociedades indígenas Guarani e Kaiowa da RID nos

proporciona pensar a abrangência do que consideramos ser as relações socioterritoriais destas

sociedades, marcadas por multiterritorialidades e multitemporalidades, fazendo-se nas

relações entre os modos de vida do passado e do presente. A multiterritorialidade vivida no

Tekoha se faz em referência ao modo de vida dos antigos - Tekoyma, e as novas formas de

territorialização imbricadas nos novos modos de viver - Tekopyahu, tendo como marca crucial

o contato com a sociedade não indígena construída, fundamentalmente, após os processos de

desterritorialização de seus territórios tradicionalmente ocupados.

Para os Guarani e Kaiowa o movimento de territorialização e/ou reterritorialização

passa a realizar-se nas relações e interconexões entre o Tekoyma e o Tekopyahu.

Constituindo-se, assim, nas várias dimensionalidades de viver e ocupar territórios múltiplos.

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Destes múltiplos territórios ocupados pelos Guarani e Kaiowa podemos mencionar: a reserva,

as cidades, os acampamentos de retomadas territoriais, os fundos de fazendas e as fazendas,

os acampamentos e assentamentos de reforma agrária, de modo que estas múltiplas e novas

formas de territorialização possibilitam o fazer-se Guarani e Kaiowa.

Entender o movimento de des-re-territorialização Guarani e Kaiowa é pensá-lo de

forma não dissociada de outras sociedades, pois, fundamentalmente, o que está em construção

são as múltiplas formas de ser indígena, a partir do contato com sociedades não indígenas e

com indígenas de outras etnias. Esta relação de viver na fronteira com outras sociedades e,

assim, ter identidades múltiplas, deve ser considerada nos encontros e desencontros com o

outro, e no caso da RID, estas relações se fazem na complexidade do compartilhamento

territorial entre Guarani, Kaiowa e Terena.

Estar na reserva significa, também, participar de outras territorialidades, bem como

disputar territórios e entrar em confronto com outras famílias e etnias, na medida em que se

busca exclusividade territorial. Ainda, é confrontar-se com o poder dos capitães, com

autoridades tradicionais como os Ñanderu e Ñandesy, territorialidades que adentram o

território. Contudo, é, um modo de criar estratégias de lutas, de buscar apoio político, de

fazer-se indígena a partir das relações socioterritoriais presentes em condição de reserva. É

confrontar-se com as relações entre passado e presente, fazendo-se um sujeito multiterritorial-

multitemporal que ao trazer pela memória o modo de vida dos antigos, têm a possibilidade de

viver a complexidade do novo com os modos de vida dos antigos inter-relacionados entre si.

No que concerne às reservas indígenas criadas pelo SPI, estas foram

redimensionadas nas prerrogativas de ser o único caminho possível a ser seguido pelas

sociedades indígenas no processo de espoliação dos territórios tradicionalmente ocupados

Guarani e Kaiowa. Desta forma, a RID apresenta-se como um território em tensão, marcado

por múltiplas formas de viver, de modo que se torna ―retalhada‖ por multiterritorialidades. A

mesma está se fazendo na construção de territórios, identidades, fronteiras... Está se fazendo

pelo viver em entre-lugares/entre-temporalidades do Tekoyma e Tekopyahu.

Podemos considerar que os Guarani e Kaiowa são guiados pela necessidade de

territorializarem-se e/ou mesmo participar de multiterritorialidades, sendo esta a expressão do

estar em contato com o outro, ―dentro‖ e ―fora‖ das reservas indígenas, pois estas reservas

foram criadas para estas sociedades como sendo o único caminho possível de viver, com o

objetivo de ser um mecanismo de desintegração socioterritorial, na prerrogativa de que

futuramente deixariam de ser indígenas. No entanto, o que estas sociedades nos demonstram é

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que recriaram possibilidades múltiplas de ser Guarani e Kaiowa, e não deixaram, por conta

disso, de serem indígenas.

Nos redimensionamentos entre o Tekoyma e o Tekopyahu, os Guarani e Kaiowa

traçam suas histórias-trajetórias de vida, e mesmo diante de condições precárias buscam

reorganizar-se em busca do Teko Porã, marcados por uma multiplicidade de ações para re-

existir. Nestas re-existências, nas estratégias de estar e ser no mundo, é necessário reconhecê-

los como demasiadamente humanos, fundamentalmente no que a Ñandesy Floriza sinaliza ao

referenciar os distintos modos de viver o mundo, a partir da RID e das multiterritorialidades

vividas por ela e sua família: ―Na reserva, na cidade, o branco, é... é gente diferente. Cada

um tem o jeito dele. Eu penso assim memo, é tudo gente, né? Aquilo que a gente tá falando,

tem o brancu, cada um, Kaiowa e Guarani, cada um do jeito dele...‖.

Os Guarani e Kaiowa sempre viveram multiterritorialidades, seja no Tekoyma como

no Tekopyahu, marcadas pelos caminhos transitados que os possibilitam vivenciar múltiplas

formas de ser e estar no mundo, de dialogar com homens e mulheres, com a natureza, com

todo o arcabouço mitológico que os envolve. Mitológico? O que seria isso? Maciel diz que

muitas coisas contadas pelos antigos são verdades, a diferença é que muita coisa mudou, ―a

gente vive outra realidade‖. Desta forma, podemos dizer que o mito é a representação da

verdade construída pelas gentes, modos de explicar a si mesmo e aos outros, portanto, o mito

é uma verdade, um modo de olhar o outro e a si mesmo.

Mas, recorrendo aos encontros e desencontros entre antigo e novo, é que tanto lá, no

passado, quanto no presente, os Guarani e Kaiowa procuram pelo Teko Porã. O mesmo pode

ser vivido de distintas formas: entre aqueles que querem continuar nas reservas, buscando

melhores condições de vida, entre aqueles que estão nas cidades e entre outros que querem

retomar Tekoha. Todos procuram de alguma forma o Teko Porã, sem, necessariamente,

deixarem seus laços com o modo de vida dos antigos, marcados nos lugares vividos e

transitados pelos antepassados.

Consideramos, sobretudo, que os lugares-territórios transitados pelas gentes são

vividos na multidimensionalidade do fazer-se humano. Todas as sociedades expressam de

alguma forma as representações sobre os lugares onde viveram, vivem e continuam a

estabelecer laços de pertencimento. Para os Yanomami este lugar é expresso pela palavra

Urihi; para os Terena é marcado pela palavra Oneó, e entre os Guarani, Kaiowa e Mbya, este

lugar é representado pela palavra Tekoha, no qual estes modos de regerenciar os lugares de

morada, de vida e de reprodução de um modo de vida expressam, fundamentalmente, os

vínculos que as sociedades estabelecem com os lugares, em sentido amplo, lugares estes em

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que as gentes querem estar, buscam estar próximo, ao redor e mesmo nas margens destes, já

que estes são a expressão de um modo de viver, logo, de ser e estar no mundo.

É notório que as sociedades não indígenas também criam e recriam diversas formas

de denominar os lugares de morada, de reprodução de um modo de vida. Nos territórios

camponeses, é comum a nomeação dos lugares, como o Sítio do Chico, Recanto Feliz, Sítio

Realengo, Chácara Santo Antônio, Assentamento Che Guevara, entre outros. Ainda, nos

centros urbanos, alguns homens e mulheres denominam a casa-lugar, de modo que a casa tem

a representatividade do lugar onde se vive e se tem aconchego, expressando, também, lugar de

segurança em contraposição à rua, marcado pela insegurança, como considera José de Souza

Martins (1996). Estas nomeações são, fundamentalmente, lugares de reprodução de um modo

de viver, pois sem as gentes não há relações de apropriação e identificação dos lugares.

Portanto, estes lugares de referência, com diversas dimensionalidades e

representatividades, se expressam no sentido de que há uma multiplicidade de modos de ser e

estar no mundo a partir dos lugares vividos, considerando as identificações que os homens e

mulheres criam sobre si mesmo e sobre os outros e, simultaneamente, como os mesmos estão

se fazendo gentes a partir dos lugares. Para os Guarani e Kaiowa o fazer-se gente está

expresso no significado da palavra Avá, marcada pelas relações com os lugares vividos e

fazendo-se nas interlocuções com o modo de vida dos antigos - Tekoyma. Logo, o Tekoha,

assim como o Oneó, o Urihi, a casa, a Chácara Santo Antônio, o Assentamento Che Guevara

podem ser recriados em outros lugares e com outras dimensões espaciais, talvez, ausente de

toda complexidade social, natural, cosmológica necessária para fazer-se. Mas, de algum

modo, estes lugares são e poderão ser recriados.

Nesta relação com os lugares, as gentes não se fazem sem as referências que os

possibilitam explicar quem são e o porquê estão no mundo. Os laços com o passado se fazem

presentes nestas representações, fundamentalmente, porque é pelo passado que há, também, a

garantia de futuro. Os lugares-territórios vividos pelos Guarani e Kaiowa não estão fora da

procura do Teko Porã, mas estão imbricados nela, recriando no presente formas espaciais que

os ligam ao passado, seja na condição de reserva e/ou em outras modalidades territoriais,

muitas vezes, colocando a condição de reserva como o modo mais cruel de ser e estar no

mundo. Assim, muitas famílias buscaram não viver nas reservas criadas pelo SPI, e ainda,

muitas delas estão lutando, seja a partir da reserva, fora da reserva, entre a reserva e outras

modalidades territoriais, pelo retorno aos territórios tradicionalmente ocupados.

Aqueles que querem retomar Tekoha, nas bases que os levam a retomarem o modo

de vida dos antigos a partir dos lugares por eles vividos, estão orientados pela certeza de que

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―sem Teko não há Tekoha‖. Mas, também, dialeticamente, que ―sem Tekoha não há Teko‖.

Coloca-se como uma necessidade humana ―regatá o nosso lugar‖, sinalizado pelo Kaiowa

Ñanderu Jorge. Retomar os territórios tradicionalmente ocupados está sendo redefinido na

busca pelo retorno ao modo de vida dos antigos, sem, necessariamente, perder de vista que os

antigos são parte das novas formas territoriais que os Guarani e Kaiowa estão no mundo. Em

muitas narrativas, retomar os territórios tradicionalmente ocupados é a necessidade da

recomposição das áreas de mata, da diversidade de animais e vegetais, em suma, marcada

pelo retorno a toda multidimensionalidade dos seus territórios, que envolve todo arcabouço

cosmológico que os permite fazer-se plenamente Guarani e Kaiowa. É, assim, a esperança

pelo retorno dos Jará.

Neste contexto, pode-se dizer que para a cosmologia Guarani e Kaiowa, os Jará

mudam de lugar, e ao retornarem aos territórios tradicionalmente ocupados toda a natureza irá

recompor-se, pois os poderes dos Jará a trará de volta, já que são parte da natureza. Assim, é

necessário considerar que algumas formas de apropriação da natureza, principalmente,

aquelas onde o negócio é a regra - o agronegócio, estão fundamentalmente relacionadas com a

mudança de lugar dos Jará. Logo, na mesma proporção em que o agronegócio avança sobre a

terra-mato, esta relação tem como consequência a mudança dos Jará.

Deste modo, é o mesmo processo que ocorreu com o movimento das frentes de

expansão e pioneira, o processo de esbulho dos territórios tradicionalmente ocupados que os

Guarani e Kaiowa tiveram que sair. E, juntamente, a eles, a partir de suas narrativas, parece-

nos que todo o arcabouço cosmológico, também, migrou na busca de lugares propícios para

reproduzirem-se enquanto tal, fazendo com que as retomadas dos territórios tradicionalmente

ocupados tornam-se uma necessidade humana para as famílias Guarani e Kaiowa que buscam

o retorno, buscando, também, o retorno de alguns Jará, como os donos do mato - ka‘aguy

jará.

Nos campos sul-matogrossenses se delineia o avanço cada vez mais intenso do

agronegócio, que também muda de lugar, muda de forma e formato, de acordo com os

mandos e desmandos da lógica capitalista no sistema-mundo moderno-colonial. Adentram

ainda mais intensamente os territórios Guarani e Kaiowa e de tantas outras sociedades

indígenas, transformando a terra-mato em monocultivos e commodities de terra-soja, terra-

cana, terra-eucalipto...

A atual situação de conflito e violência nos campos sul-matogrossenses, fomentados

por aqueles que se colocam contra a demarcação de territórios indígenas, mostram o retrato de

uma elite que busca manter o status quo, pautado no modelo agrário-agrícola de produção,

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que tem como elementos constitutivos o latifúndio, os monocultivos agrícolas e a produção de

commodities. Todavia, esta relação conflituosa mostra, fundamentalmente, que as lutas pelo

retorno aos Tekoha se colocam contra o agronegócio, nas premissas de desterritorializar o

modelo agrário-agrícola vigente.

No contexto da necessidade de retorno aos Tekoha, os Guarani e Kaiowa vivem uma

multiterritorialidade marcada, também, pela esperança, pelo sonho e pela saudade, e pela

condição de viverem ―exilados‖, muitas vezes, em seus territórios, pois mesmo estando neles,

não tem sobre eles o controle territorial. Em condição de exílio travam suas lutas territoriais

nos caminhos percorridos cotidianamente. Recriam modos de vida, buscando novamente

reterritorializar-se, exclusivamente, nos preceitos do modo de vida dos antigos - Tekoyma.

A memória coletiva que se remete ao lugar de origem, lugar dos antepassados, se

redefine no pertencer e ser parte de uma comunidade, de uma sociedade, de uma gente que se

é e se faz diferente de todas as gentes. Exilados de suas terras tradicionalmente ocupadas, o

retorno está visivelmente presente nas lutas pelo retorno ao território que reluz nos sonhos,

cantos, rezas e nas lutas de retomadas de territoriais. Pertencer a um determinado lugar, e

sentir-se pertencente a uma dada comunidade, faz com que a identidade ultrapasse o âmbito

do ―eu‖ e chegue ao ―nós‖. Nessas lutas de ―todos os dias‖, a identidade preexiste, existe, cria

e recria, a partir do contato, normas e formas individuais e coletivas de ser Guarani e Kaiowa.

Em conversas com os Guarani e Kaiowa, pudemos compreender que o modo de vida

destas sociedades, do passado e do presente, estão sempre relacionadas a um lugar onde

possam recriar o Tekoyma. No movimento de des-re-territorialização se entrelaçam aos

lugares de partida e de chegada, pois não há sociedade humana sem território. O Tekoha pode

ser recriado, já que há sempre a necessidade dos homens e mulheres territorializarem-se.

Desta forma, ao indagarmos que ―sem Teko não há Tekoha‖, é fundamental que se perceba

que ―sem Tekoha não há Teko‖, pois é necessário recriar os modos de vida dos antigos, e

ainda, para muitas famílias, buscar estar nas proximidades e do lado de dentro dos Tekoha.

Também, criar formas de não sair, como fizeram os indígenas de fundos de fazendas e, ainda,

aqueles que estão nas fazendas. Esta relação interdependente nos mostra que é necessário ter o

território para a reprodução de um modo de viver, e em casos extremos de precariedade,

buscar reinventar o Teko, reinventando e revivendo o Tekoha a partir dos novos

reordenamentos territoriais.

Um lugar onde os parentes possam estar próximos, e possa apropriar da natureza a

partir do seu campo cosmológico, em suma, um lugar onde possam estar no mundo. Esta

condição está sendo construída a partir das disputas territoriais que envolvem aqueles que

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anseiam pela demarcação de territórios indígenas e aqueles que se opõem. Para os Guarani e

Kaiowa, resgatar o modo de vida dos antigos passa pelo resgate dos territórios

tradicionalmente ocupados. Entretanto, é necessário dizer que estes territórios já não são mais

os mesmos, mas, também, que os Guarani e Kaiowa também não o são.

É neste contexto, que torna imprescindível reconhecermos que as lutas em torno das

retomadas dos territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowa têm no passado

o semblante do retorno, sendo que o modo de vida dos antigos se traduz na melhor e

verdadeira forma de viver, de modo que passado e presente se confundem, tornando-se um só.

A cosmologia indígena tem como cerne de sua existência presente, o passado. É pelo

passado que os Guarani e Kaiowa criam e recriam seus modos de viver no presente e buscam

possibilidades de futuro, marcados pela necessidade de conseguirem reproduzir o Teko Porã.

Contraditoriamente a esta necessidade de estar ―entrelaçado pelo passado‖, o discurso do

agronegócio traz na sua lógica o imediatismo como parte do discurso fomentado pela não

demarcação. O des-envolvimento, como única possibilidade de futuro, coloca-se para o agro-

negócio como palavra-chave, tendo em vista que não está em pauta o envolvimento das gentes

entre si e com a natureza construindo significados para viver no mundo a partir do encontro

com os outros.

O futuro em torno da necessidade de ―regatá nosso Tekoha‖, demonstrado por Jorge,

Floriza, Antônia, Admiro, Damiana, Bonifácio, entre tantos outros Guarani e Kaiowa, passa,

fundamentalmente, pela necessidade de ter um lugar onde possam viver como queiram.

Entender a complexidade de um modo de ser e estar no mundo, nos apegando a literatura

poética de José Saramago (2002, p. 35-36), a partir da frase insurgente do Subcomandante

Marcos, principal porta-voz do Exercito Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ao dizer

que: ―[...] ―um mundo onde caibam muitos mundos, um mundo que seja uno e diverso‖, um

mundo, permito-me eu acrescentar, que, para todo o sempre, declara-se intocável o direito de

cada qual a ser ―persa‖ pelo tempo que quiser e não obedecendo a nada mais que às suas

próprias razões...‖.

Neste sentido, o que este trabalho buscou revelar é que os Guarani e Kaiowa estão

mudando, mudando... Nestas mudanças há grandes transformações socioculturais, assim,

paralelamente, socioterritoriais, ao modo que tais mudanças permitem continuidades de

modos de vida. Nada no mundo está imóvel, mais sim, está em um contínuo vir a ser. Assim,

o que este trabalho acadêmico aponta e diz sobre os Guarani e Kaiowa, são fragmentos de

histórias-trajetórias que não estão desvinculadas de outras formas de ser e estar no mundo,

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parte das relações sociais vividas também com a pesquisadora, e que agora, estas já não são as

mesmas do espaço-tempo em que foram vividas, contadas e escritas.

Na dualidade do campo narrativa, os Guarani e Kaiowa viveram entre passado-

presente, mostrando que o retornar ao passado, trazer o passado para o presente e a partir dele,

buscarem melhores condições de vida futura, foi e é sempre uma forma de resistir e re-existir.

Pode-se dizer que as relações que estendem aos modos de vida no Tekoyma, no Tekopyahu, é

que os mesmos se constroem pela busca incessante do Teko Porã. Assim, consideramos que a

construção de outras possibilidades de viver passa pela necessidade de envolver-se com/no

outro, com/na natureza, criando e recriando distintas e diversas formas de ser/estar no mundo,

ou seja, um conjunto de saberes que possam ser compartilhados, um conjunto de direitos que

possam ser garantidos a todos de acordo com os diferentes modos de ser/estar no mundo.

A partir do pensamento de Doreen Massey (2008), elencamos que há uma

multiplicidade de histórias-trajetórias fazendo-se e desfazendo-se. Desta forma, embasados

pelos olhares indígenas e pelas palavras de Milton Santos (2001, p. 147), acreditamos que

―[...] devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe (aqui, ali, em

toda parte), mas pelo que pode efetivamente existir (aqui, ali, em toda a parte) [...]‖.

É pela possibilidade da existência de outras formas de viver, de outras histórias-

trajetórias que estão em construção no ―aqui e agora‖, que o municìpio de Dourados no mês

de junho deste ano (2011) ganha mais um acampamento indígena, denominado de Ñu Verá. O

nome do acampamento significa Campo Brilhante e ou Iluminado, fica localizado nas

proximidades da RID, nas margens da aldeia Bororó. Assim, o município de Dourados ganha

seu sexto acampamento e o nome do mesmo nos possibilita dizer que os Guarani e Kaiowa

estão buscando nas retomadas dos territórios tradicionalmente ocupados, brilhar na ―cena da

história‖, nos dizendo expressivamente que é pelo presente, entrelaçado ao passado, que o

futuro está sendo construído, está sendo geografado no espaço-tempo do fazer-se gentes.

Portanto, a construção de futuro das sociedades Guarani e Kaiowa passa pelos laços

simbólicos com o passado, com o Tekoha, e só poderá ser entendido se compreendermos os

espaços de encontros e desencontros de gentes e de construção e desconstrução de territórios

pelo/no caminhar - Oguata. Substancialmente, é o que Kaiowa Ñanderu Admiro (2011), da

RID, compreende fazer parte da construção de saberes e de outras possibilidades de viver a

partir dos lugares vividos, transitados e sonhados, de modo que ―Todo mundo que anda

conhece. Quem não anda, não conhece‖.

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Fontes orais

Admiro Arce. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Bororó, 2010.

Alzira Fernandes. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2010.

Antônia Arce. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Bororó, 2010.

Bonifácio. Conversas no acampamento Pacurity, 2010.

Damiana Cavanha. Conversas no acampamento Apyka‘y, 2009.

Damiana Cavanha. Conversas no acampamento Apyka‘y, 2010.

Fátima. Feira de Juti. Terra Indígena Jarará, 2009.

Floriza de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2010.

Floriza de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2011.

Francisco. Conversas na Feira da Rua Cuiabá. Morador da RID, 2009.

Geraldo Fernandes. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2010.

João Machado. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Bororó, 2010.

Jorge de Souza e Floriza de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú,

2009.

Jorge de Souza e Floriza de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú,

2010.

Jorge de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2009.

Jorge de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2010.

Jorge de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2010a.

Jorge de Souza. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2011.

Maciel Fernandes. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2009.

Maria. Conversas no comércio douradense. Moradora da cidade de Dourados, 2009.

Nivaldo Cavanha. Conversas no acampamento Apyka‘y, 2010.

Odália Fernandes . Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2009.

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Odália Fernandes. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Jaguapirú, 2010.

Silvia. Conversas comércio douradense. Moradora da cidade de Dourados, 2009.

Vilson Matos. Conversas na Reserva Indígena de Dourados – Bororó, 2010.

Zezinho. Vídeo Índio Brasil - 2010. Dourados, Anfiteatro da UFGD, unidade II, 2010.

Documentos de Jornais

Jornal Diário MS, 10 de novembro de 2009.

Jornal Diário MS, 21 de maio de 2009.

Jornal Diário MS, 15 de abril de 2009.

Jornal O Progresso, 04 de agosto de 2008.

Jornal O Progresso, 30 de abril de 2008.

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ANEXOS

Anexo I – MPF arrendamentos na Reserva Indígena de Dourados

MPF „barra‟ arrendamento na Reserva Indígena O MPF (Ministério Público Federal) em Mato Grosso do Sul firmou um acordo com os índios das aldeias Bororó

e Jaguapiru, em Dourados, para acabar com o plantio de soja transgênica e o arrendamento de terras na Reserva

Indígena. O TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) foi assinado por 31 índios, totalizando 568 hectares

regularizados. As áreas de lavoura e os responsáveis pelo cultivo foram identificados em inspeção realizada pelo

MPF em janeiro deste ano. No acordo, os índios afirmam não arrendar terras e assumem a responsabilidade de

comprovar as condições financeiras para o plantio, colheita e comercialização dos produtos. Para tanto, os

agricultores devem apresentar documentos que comprovem as operações de venda após cada safra e, ainda,

comunicar ao MPF a área e a cultura a ser plantada, com antecedência mínima de 30 dias.

A fiscalização do cumprimento das cláusulas do TAC será feita pelo Ministério Público Federal. A quebra do

acordo acarretará em sanções penais, cíveis e administrativas. As lavouras onde for comprovado o arrendamento

irregular ou cujos responsáveis se recusarem a assinar o TAC poderão ser destruídas, mediante ordem judicial.

PLANTAÇÃO DE SOJA

No termo, os indígenas também se comprometem a não plantar sementes transgênicas a partir da próxima safra

(2011/2012) e a sempre buscar autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai) para suas plantações. Além

disso, o cultivo deve ser acompanhado de receituário agronômico e obedecer o vazio sanitário, que consiste na

eliminação de todas as plantas de soja entre 1º de julho e 30 de setembro, para evitar que o fungo causador da

ferrugem da soja se multiplique durante o final da entressafra.

Os agricultores deverão, ainda, observar os parâmetros sanitários e ambientais definidos pela legislação

brasileira, inclusive quanto ao recolhimento de embalagens de agrotóxicos e produtos químicos.

HISTÓRICO

O Ministério Público Federal trabalha com o ajustamento do TAC desde janeiro de 2011, quando realizou

medições das terras agricultáveis na Reserva Indígena de Dourados para identificar as áreas de lavoura e os

responsáveis pelo cultivo.

O Termo originou de ação civil pública ajuizada pelo MPF na Justiça Federal de Dourados em outubro de 2009.

Segundo investigações, de 1996 a 2008, 400 dos 1,2 mil hectares da área cultivável da reserva indígena tinham

sido arrendados. Pelo uso das terras, produtores pagavam valores irrisórios aos índios. Em alguns casos, os

indígenas receberiam cem reais por alqueire; em outros, o pagamento seria feito por colheita, cerca de dois mil

reais por safra. Há casos, ainda, em que o pagamento pelo uso de sete hectares de terra seria de três mil reais ao

ano.

Fonte: Diário MS, 18/03/2011, 09h40.

http://www.gdnews.com.br/noticia/cidade/7,1892,mpf-%E2%80%98barra%E2%80%99-

arrendamento-na-reserva-indigena,

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Anexo II – A Reserva Indígena de Dourados e a Missão Caiuá

Fonte: Relatório da Missão, 1951 apud Carlos Barros Gonçalves (2009, p. 194).

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Anexo III - Índios: mão de obra no canavial

Todos os dias, no fim da tarde, o movimento na estrada de acesso às Aldeias Jaguapiru e Bororó, na

periferia de Dourados, em Mato Grosso do Sul, aumenta. É quando chegam os ônibus de trabalhadores rurais,

após mais uma jornada nas usinas de açúcar e álcool da região. Vêm lotados de índios. Nestes dias eles estão

trabalhando no plantio da cana. Mais tarde serão mobilizados para o corte, numa rotina que constitui hoje a

principal fonte de renda nas duas aldeias, onde moram 12 mil índios guaranis.

Com a chegada de novas usinas na região, a mão-de-obra guarani tem sido cada vez mais requisitada.

De acordo com cálculos do Ministério Público do Trabalho, já chega a 13 mil o número de índios nas usinas

Esse movimento preocupa autoridades trabalhistas e organizações não-governamentais de apoio aos índios. Na

opinião do procurador Cícero Pereira, que até o ano passado chefiava a Procuradoria-Geral do Trabalho no

Estado, a busca da mão-de-obra indígena deve-se sobretudo ao desinteresse de outros grupos: "Os não-indígenas

não querem saber do trabalho dos canaviais, que é pesado e considerado de segunda categoria." A alternativa dos

usineiros seria importar mão-de-obra do Nordeste ou de Minas. "Mas eles evitam isso, por causa do custo do

transporte e porque os trabalhadores daquelas regiões são mais organizados e se mobilizam em casos de

superexploração", continua o procurador. "Os índios suportam melhor as pesadas jornadas nos canaviais e são

tidos como trabalhadores menos exigentes."

TRABALHO ESCRAVO Para combater a superexploração foi organizada uma comissão permanente de investigação das

condições de trabalho, que reúne 32 instituições, de sindicatos a universidades. No ano passado, essa comissão e

os fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 1.568 pessoas que se encontravam em condições análogas à

escravidão. A maioria era de índios. Só numa usina foram resgatados 820 guaranis.

As autoridades também procuram os donos de usina para a assinatura dos chamados termos de ajuste

de conduta, com o objetivo de respeitar as tradições indígenas no local de trabalho. Um exemplo: anteriormente,

os índios ficavam confinados nos canaviais, longe das famílias, por períodos de até 70 dias. Hoje, a cada 45 dias

devem ser levados para as aldeias, de onde retornam quatro dias depois. Mesmo assim, os índios preferem

trabalhar em usinas próximas de suas casas - o que permite ir e voltar no mesmo dia.

Outra norma da região: como os guaranis não gostam de permanecer longos períodos no mesmo local,

podem pedir a rescisão do contrato de trabalho a cada final de temporada no canavial. Nestes casos, são

demitidos sem justa causa, com liberação do FGTS e pagamento de uma multa de 40% sobre seu valor total.

Além disso, os índios podem requerer, em anos alternados, o seguro-desemprego. Nas ONGs, a preocupação é

outra: com mais empregos, cai o nível de mobilização e de reivindicação dos índios por mais terras.

De acordo com o historiador Antonio Brand, coordenador do Programa Guarani-Caiuá da

Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, a maior parte dos problemas sociais que eles enfrentam

em Mato Grosso do Sul está relacionada à falta de terras. "Desde o início do século 20, eles estão sendo

confinados à força em pequenas reservas. Isso inviabilizou sua estrutura social, organizada por laços de

parentesco, e deu origem aos conflitos internos, alcoolismo, violência, uso de drogas, suicídios", diz o

historiador. "Agora, no momento em que esse grupo se encontra tão debilitado, lhe oferecem a possibilidade de

trabalho nos canaviais, o que pode enfraquecer a luta pela demarcação de novas terras." Para os índios, que na

maioria dos casos vivem dos programas públicos de distribuição de renda, as usinas são vistas como alternativa

para melhorar seu padrão de vida. Muitos trabalham um período no canavial, retornam à aldeia, para tocar

lavouras de subsistência, e depois pedem a recontratação.

Maciel Spindola, guarani-caiuá de 18 anos, conta que foi registrado pela usina. "Com horas extras,

ganho entre R$ 600 e R$ 700 por mês", diz o rapaz. Ele sai de casa às 6 horas da manhã e volta no início da

noite. "Eles dão café da manhã, almoço e janta", enfatiza. Maciel conta que o trabalho é exaustivo e que os mais

fracos costumam ser afastados das equipes de trabalho. Essas equipes são formadas e dirigidas por um

"cabeçante" - que também é índio e tem salários maiores que os demais Juvenal Lederme, guarani-nhandeva de

24 anos, é um desses cabeçantes. Conta que nos períodos de pico do corte da cana, à frente de uma equipe de 11

cortadores, já chegou a ganhar R$ 2.900 por mês. "A pior parte do trabalho é ficar longe da família. Mas fazer o

quê?", diz o índio, pai de um garoto de 2 anos.

Fonte: O Estado de S. Paulo, 2011.

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Anexo IV – Famasul sugere segurança armada contra as invasões

Fonte: Diário MS, 23 de março de 2009.

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Anexo V- Conflitos entre camponeses sem terra e indígenas

Fonte: Diário MS, 20 de maio de 2009.

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Anexo VI – Índio é baleado em ataque a acampamento

Fonte: Diário MS, 22 de setembro de 2009.

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Anexo VII – Tekoha Pindorocá (Representação elaborada pelo Kaiowa Ñanderu Jorge)

Fonte: Desenhado por Kaiowa Ñanderu Jorge – Trabalho de campo na Reserva Indígena de

Dourados.

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Anexo VIII – Tekoha Iguarusu (Representação elaborada pelo Kaiowa Ñanderu Jorge)

Fonte: Desenhado por Kaiowa Ñanderu Jorge – Trabalho de campo na Reserva Indígena de

Dourados.

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Anexo IX - Tem pão velho? - (Emmanuel Marinho)

Não, criança

Tem o pão que o diabo amassou

Tem sangue de índios nas ruas

E quando é noite

A lua geme aflita

Por seus filhos mortos

Tem pão velho?

Não, criança

Temos comida farta em nossas mesas

Abençoada de toalhas de linho, talhares

Temos mulheres servis, geladeiras

Automóveis, fogão

Mas não temos pão

Tem pão?

Pão não!

Tem pão velho?

Não criança

Temos asfalto, água encanada

Supermercados, edifícios

Temos pátria, pinga, prisões

Armas e ofícios

Mas não temos pão

Tem pão velho?

Não, criança

Temos tudo, mas não temos nada

que se pareça com pão

Tem pão velho?

Não, criança

Temos mísseis, satélites

Computadores, radares

Temos canhões, navios e usinas nucleares

Mas não temos pão

Tem pão velho?

Não, criança

Tem o pão que o diabo amassou

Tem sangue de índio nas ruas

E quando é noite

A lua geme aflita

Por seus filhos mortos

Tem pão?

Pão não!

Tem pão velho?

Tem sua fome travestida de trapos

Nas calçadas

Que tragam seus pezinhos

De anjo faminto e frágil

Pedindo pão velho pela vida

Temos luzes em óperas avenidas

Temos índias suicidas

Mas não temos pão.

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Anexo X – Representação socioterritorial da família de Ladeci (Cedido pela professora do Projovem

Roseline Mezacasa)

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Anexo XI – Representação do Kaiowa Ñanderu Jorge sobre a organização socioterritorial na RID

Fonte: Desenhado por Kaiowa Ñanderu Jorge – Trabalho de campo na Reserva Indígena de Dourados.

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Anexo XII – Questionário estruturado trabalhado com alguns Terena, Guarani e Kaiowa

1– Nome, idade, profissão, cônjuge, filhas e filhos, netos, pais ou avó e avô (Quantas pessoas moram com

eles no ―terreno‖). (O que representa a famìlia para os Guarani e Kaiowa? – caso a entrevista for para um

deles).

2- Grupo étnico?

3 – Escolaridade? Porque decidiu estudar?

4 - Há quanto tempo estão na aldeia de Dourados ou se ali nasceram?

5- De onde eram?

6 – Como foi chegar à aldeia de Dourados ou o que contam sobre a aldeia de Dourados?

7 – Porque a aldeia de Dourados é também chamada Jaguapirú e Bororo? O que significa estes nomes?

Quando foi criada a Jaguapirú? E quando foi criada a Bororo?

8 – Qual a população da aldeia de Dourados? Nascem muitas por ano na aldeia?

9 – Na aldeia de Dourados tem córregos?

10 – Como é dividida a aldeia de Dourados?

11- Quando (ano ou período) os Terena chegaram a aldeia de Dourados?

12 – O porquê os Terena vieram para a aldeia de Dourados?

13 – (Pergunta para o Terena) Qual a diferença dos Guarani/Kaiowa referente aos Terena?

14 – Quais são as principais atividades desenvolvidas na terra?

15 – Qual o significado da terra para o Guarani e o Kaiowa (caso esteja conversando com um Terena.

Qual o significado da terra para o Terena)?

16 – Qual é a relação entre os grupos Terena, Guarani e Kaiowa na aldeia de Dourados?

17 – Quais são as relações com o vizinho de vocês? Vocês têm relações de amizade (festividade,

religiosidade, entre outros)?

18- Quais são as dificuldades/problemas encontradas na aldeia de Dourados?

19- problemas: água, alimentação, terra, violências entre outros.

20 – Se eles são alguma representação política ou religiosa dentro da aldeia? (cacique ou capitão).

21 – Se participam de alguma religião? Quanto tempo e qual o nome da religião?

22 – O que acham do trabalho da Missão Kaiowa e outras entidades que atuam dentro da aldeia?

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23 – Qual a principal fonte de renda na aldeia?

24 –Trabalha com artesanato?

25 – Já trabalho no corte da cana, fazendas ou outras atividades?

26 – É aposentado?

27- Quanto às cestas básicas do Estado?

28 – O que vocês acham do trabalho da FUNAI?

29 – Vocês conhecem o trabalho do CIMI (Conselho Indigenista Missionário)?

30 – O que você acha dos caciques e dos capitães? Quem tem os principais cargos de capitães? Como

alguém pode ser um cacique?

31 – Qual a diferença entre cacique e capitão? A maioria é Terena?

32 – Qual o papel do capitão hoje na aldeia? É ele quem ajuda a contratar indígenas para o corte da cana?

33 – O que você acha dos indígenas que estão retomando territórios tradicionais?

34 - Aponte quais melhorias deveria haver na reserva?

35 – Gostaria de realizar algum sonho?

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Anexo XIII – Questionário estruturado trabalhado com alguns não indígenas

1 – Nome, idade, profissão, cônjuge, filhas e filhos, netos, pais ou avó e avô (Quantas pessoas moram com

eles no ―terreno‖).

2 – Onde nasceu?

3 – Como chegou em Dourados?

4 – Onde mora?

5 – O que acha das sociedades indígenas?

6 – Conhece a Reserva Indígena de Dourados?

7 – Já tiveram alguma relação com indígenas?

8 – O que acha sobre a demarcação de territórios indígenas?

9 – Quais são os principais problemas que você acredita existir na reserva?

10 – Como você pensa a participação do indígena na sociedade douradense?

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Anexo XIV

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Anexo XV