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Terror - Prólogo

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Após 13 anos de exílio na Rússia, o vice-almirante Carl Hamilton está de volta à Suécia para o julgamento em que é acusado de assassinato. Ao ser inocentado, acontece, porém, uma tragédia: a filha de seus amigos Pierre e Eva Tanguy, a pequena Nathalie, de 5 anos, é raptada. A partir daí, tem início uma caçada impiedosa à identidade do sequestrador. Quando fica claro quem cometeu o crime, Hamilton, Pierre e um grupo de legionários tentarão fazer um resgate heroico.

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Do autor:

SérieOS DESAFIOS DE HAMILTON

Madame Terror

Terror

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SérieAS CRUZADAS

Livro 1 – A Caminho de Jerusalém

Livro 2 – O Cavaleiro Templário

Livro 3 – O Novo Reino

Livro Final – O Legado de Arn

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JANGUILLOU

Tradução do original sueco

JAIME BERNARDES

Os desafios de hamilton

TERROR

Rio de Janeiro | 2013

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Prólogo

Ele amava cavalos, mas não foi por isso que morreu. Todos na sua fa-

mília amavam cavalos, a maioria com certa sinceridade, alguns apenas

por se tratar de uma necessidade social. Gostar de cavalgadas rápidas

pelo deserto era quase uma imposição nacional. Da mesma forma que,

embora num plano inferior e mais infantil, era obrigatório elogiar a

torta de maçã da mamãe em sua outra pátria.

Caso tivesse ficado mais atento ao que se passava no mundo um

mês antes, seria muito provável que ainda estivesse vivo. Não lhe fal-

tavam recursos. Como príncipe da Arábia Saudita, recebia uma

pensão de 100 milhões de dólares por ano sem trabalhar, e somente

com a compra de cavalos de corrida nos últimos anos — sempre ca-

valos de trote atrelado, uma perversidade ocidental — ganhara mais

127 milhões.

No entanto, um mês atrás, em abril de 2002, apesar dos fracassos

anteriores, ele ficara entusiasmado com a ideia de ganhar o Kentucky

Derby, a corrida de cavalos que ele e muitos outros consideravam a

mais importante do mundo. Já nutrira grandes esperanças de ganhar no

ano anterior com seu Point Given, de 3 anos de idade, que vencera

praticamente todas as corridas até a famosa decisão. Ao sofrer a

grande desilusão de vê-lo chegar apenas em quinto lugar, foram neces-

sários meses para sair da depressão.

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Porém, grandes esperanças renasceram. Ele estava em casa, emRiad, e assistia na televisão a uma cena do dia anterior do Derby deIllinois, em que um cavalo desconhecido, de nome War Emblem, che-gara em primeiro lugar, seis corpos à frente do segundo colocado. O Derby de Illinois era, comparativamente, uma corrida sem impor-tância, mas todo mundo podia ver que War Emblem tinha capacidadepara vencer também no Kentucky. Portanto, era hora de agir.

Em casos normais, o dono de um cavalo como aquele não estariadisposto a vendê-lo, não se importaria com quanto dinheiro lhe fosseoferecido. Também estaria sonhando em vencer o Kentucky Derby. Já devia ser muito rico, e, por isso, dinheiro não era problema.Qualquer pessoa que lhe telefonasse para tentar comprar o WarEmblem estaria arriscada a escutar uma grande risada do outro ladoda linha.

Mas Sua Alteza Real, o príncipe Ahmed bin Salman bin AbdulAziz, não era uma pessoa qualquer. O negócio não levou mais do quecinco minutos para ser concluído por telefone. E, quando o vendedor,surpreso e em estado de choque, desligou, logo lamentou não terpedido o dobro do preço, já uma verdadeira fortuna.

Em 7 de maio de 2002 fazia um tempo maravilhoso sobre o Hipódromo Churchill Downs, em Louisville, Kentucky, anunciando

o verão que chegava. Seria, como sempre, uma festa grandiosa, perante

um público de 145 mil espectadores, todos muito bem-vestidos, vindos de todos os lugares do mundo. Mas, em maio de 2002, nadaainda era normal nos Estados Unidos. O 11 de Setembro aconteceraapenas oito meses antes. Ainda assim, uma hora antes de a corrida co-

meçar, deu-se início às cerimônias tradicionais.Os fuzileiros navais tocaram suas cornetas. Os bombeiros da

terceira companhia, vindos da East Twenty-Ninth Street, entraram

pelo círculo dos vencedores, marchando a um ritmo extralento, todosem uniforme de gala e exibindo medalhas. Doze dos seus colegas

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haviam morrido para salvar vidas americanas no ataque terrorista ao World Trade Center. Os bombeiros foram aplaudidos. Houve umminuto de silêncio. O público ficou quieto e respeitoso. Para o prín-cipe Ahmed, o tempo escorria lentamente.

A largada foi às 18h04. Nas apostas, o War Emblem dava vintepara um. O príncipe Ahmed, por princípio, não apostou mais de 1 milhão de dólares no próprio cavalo.

O jóquei Victor Espinoza nunca tinha visto o cavalo War Embleme recebera instruções surpreendentes do treinador. Em resumo, deviase manter na briga, mas só avançar para a ponta no último minuto.

— Ele me disse isso pelo menos umas cem vezes, até que, final-mente, respondi ok.

War Emblem liderou a corrida de ponta a ponta e venceu comnada menos do que quatro corpos de vantagem.

Alguns espectadores torceram o nariz quando o príncipe Ahmedabriu caminho em direção ao círculo dos vencedores, mas isso nãopareceu incomodá-lo nem um pouco, já que aquele era um dos diasmais felizes da sua vida.

— Aqui sou respeitado por todos — disse ele. — Todos aqui con-tribuem para o meu bom humor, de uma forma que quase me cons-trange. O público americano me trata muito melhor do que o público

saudita.

E acrescentou:— Esta é uma vitória decisiva na minha vida. Para mim é uma

honra enorme ser o primeiro árabe a vencer o Kentucky Derby.Não se podia dizer que fosse um vencedor querido. Em sua euforia,

porém, jamais poderia sentir essa contrariedade. O conhecido colu-nista Jimmy Breslin, entretanto, não deixou de tomar nota da situaçãoao escrever no Newsday:

“O príncipe Ahmed bin Salman, da Arábia Saudita, acenava segu-rando a taça da vitória, certamente satisfeito com os muitos milhões

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que ganhou. E tudo isso bem perto dos bombeiros da terceira com-panhia [...] e eu tive logo a ideia de perguntar se ele teria algo a dizer,se lamentava ou se havia alguma coisa que pudesse fazer em relação aoque Osama bin Laden e outros dos seus compatriotas causaram emNova York. Mas o homem não reagiu, não disse nada.”

Duas semanas mais tarde, War Emblem venceu a segunda corridamais importante dos Estados Unidos, o Preakness Stakes, em Baltimore.Então surgiu uma fantástica possibilidade. Desde 1977, quandoSeattle Slew concretizou a façanha, nenhum animal vencera as trêsmaiores corridas dos Estados Unidos no mesmo ano: o KentuckyDerby, o Preakness Stakes e o Belmont Stakes.

O príncipe Ahmed, é claro, respondeu a uma quantidade enormede perguntas dos jornalistas a respeito dessa possibilidade única eexplicou que, se ganhasse a tríplice coroa, isso significaria tanto quan-to um casamento feliz para seu filho e sua filha. Seria a realização deum sonho quase impossível.

Mas, quando a corrida decisiva ocorreu, em 8 de junho, o príncipeAhmed não estava presente em Belmont Stakes. Seu treinador, BobBaffert, declarou que “problemas familiares” haviam impedido avinda de Sua Alteza Real. War Emblem largou mal e não conseguiunada além do oitavo lugar.

Depois disso, não se ouviu falar mais do príncipe Ahmed. Seis

semanas depois, em 22 de julho, saiu a notícia de que ele morrera.Segundo informações da Arábia Saudita, o 43.º sobrinho do rei Fahdteria falecido, durante a noite, de ataque cardíaco. Um pouco maistarde, a versão de sua morte foi modificada. Teria sido consequência

de uma trombose.

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Era uma composição estranha. Desde o início isso ficara claro, mas,

em meio a tudo, era também a única coisa que estava clara. Um pelo-

tão das forças de segurança do Paquistão, com suas boinas vermelhas,

incluía quatro homens anônimos das Forças Especiais dos Estados

Unidos, de uniformes paquistaneses, e outros tantos das equipes

Swat do FBI, vindos de Peshawar, também estranhamente anônimos,

a despeito das letras FBI em branco, apostas de forma indiscreta sobre

os coletes. Só podia ser um tipo de missão: capturar algum facínora, e,

quando a missão fosse cumprida, o prisioneiro acabaria nas mãos dos

americanos, não nas dos paquistaneses. Mas nada se disse sobre onde e

quando a missão seria realizada, o que, aliás, não era de se estranhar,

visto que as forças de segurança do Paquistão eram tão suspeitas que

não era possível diferenciá-las do inimigo. As experiências a esse res-

peito eram tão claras quanto sombrias. As unidades americanas, por

motivos burocráticos ou políticos inexplicáveis, não podiam atuar no

Paquistão, a não ser disfarçadas como soldados paquistaneses. Mas, se

o Exército local soubesse com antecedência onde e contra quem seria

realizada a ação, era garantido que o pássaro já teria voado há muito

na hora do bote.

Al Mansur, capitão das Forças Especiais dos Estados Unidos, não se

preocupava nem um pouco por não fazer a menor ideia da finalidade

da operação. Ou o homem seria encontrado rapidamente e logo

capturado vivo, desde que não cometesse suicídio, ou se trataria de

alarme falso. Poderia, ainda, ser mais um pássaro voando. Tudo podia

acontecer.

Eles subiram a bordo de quatro helicópteros numa base perto de

Rawalpindi, e os pilotos, então, informaram que seguiriam para

Sargodha, na província do Punjabi, num voo de mais ou menos uma

hora e meia. E foi tudo o que ficaram sabendo. Nem os pilotos sabiam

o que os esperaria em seguida.

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Al Mansur tentou se sentar ao lado do piloto. Gostava de voarbaixo sobre a bela paisagem primaveril, fantasiar e pensar em outracoisa além do trabalho. Era 28 de março de 2002, e Al realmentetinha muita coisa em que pensar, ou, melhor dizendo, a planejar.

Para um americano, o nome Al Mansur não representava nada emespecial, mas, pronunciado em árabe, era passível de provocar risa-dinhas ou gerar piadas. Al Mansur foi o lendário califa das Mil e umanoites e de outras histórias de Bagdá durante o primeiro grande períodoflorescente da cultura árabe.

No passado, Al nunca pensara muito em sua dupla identidade, se considerava um americano que também falava árabe. Era apenasuma faceta a mais em sua vida, uma vantagem social na escola e nauniversidade, até que, possivelmente por uma questão infantil deautoafirmação, procurou as Forças Especiais, os “boinas-verdes”, ondeseu incomum conhecimento do idioma árabe foi reconhecido comoum mérito extraordinário.

Na verdade, a aparência árabe foi o que mais pesou a seu favor,considerada um grande trunfo.

O avô por parte de pai abandonara a Arábia Saudita em 1932,exatamente no ano em que o país se definiu como Arábia Saudita e justamente por isso. A família era muçulmana, da seita shiah* e de

Najd, como então era chamada a região ao sul do Iraque e do Kuwait,

próxima ao Golfo Pérsico. Foi então que o clã beduíno wahhabita**Saud assassinou e saqueou pelo caminho até chegar a Meca e a Medina,lugares sagrados que eles também pilharam e arrasaram, decapitando

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* A palavra “shiah” significa “seguidores, membros de um partido”. Alá menciona no Alcorãoque alguns de Seus servos honrados eram Shi’ah de outros de Seus servos honrados.** O wahhabismo é um movimento religioso do islã criado na Arábia Central em meados do século XVIII, originalmente por Muhammad ibn Abd-al-Wahhâb. (Todas as notas são dotradutor.)

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quem encontravam pela frente. Muitos muçulmanos dali tiveram defugir. Os que ficaram passaram a ser considerados “seres não hu-manos”. O clã Saud proclamou-se dono da região e fundou o próprio“reino”. A cada julgamento era obrigação dos sauditas mandar mataresses “seres não humanos” diante de Deus, especialmente se fossemjudeus, cristãos ou shiahs. Como Abdullah ibn Anaza ibn Mansur, seuavô, era um dos poucos habitantes de Najd dotados de educação erecursos econômicos, ele se tornou refugiado político antes de essaexpressão fazer parte da linguagem cotidiana.

De qualquer maneira, não existia problema algum em ser árabe nadécada de 1930. Antes era até elegante e romântico. Eles eram conside-rados “os nobres selvagens que vinham do deserto”, como foi o caso deRodolfo Valentino,* transformado num símbolo sexual da época. Na verdade, o avô Abdullah detestava todos os beduínos. Ele os con-siderava parasitas sanguinários que não gostavam de trabalhar, desdeque sua verdadeira profissão de pilhar e matar os vizinhos não fosseconsiderada trabalho. Mas com o tempo o avô acabou por ser chamado,respeitosamente, de “xeque” ou “beduíno” por seus novos vizinhosnum lugar nada surpreendente: Portland, Maine, nos Estados Unidos.Afinal, Abdullah fora dono de uma das maiores empresas de pesca delagosta e camarão no Golfo Pérsico e com espantosa rapidez estabe-

lecera-se como empresário na mesma atividade nas águas frias do

Atlântico Norte. Seus seis filhos receberam uma boa educação ameri-cana. Os três rapazes concluíram a universidade. As três filhas casarambem. Tudo graças ao avô Ab, como ele acabou por ser tratado.

Na grande e barulhenta família do vovô Ab, todos falavam os dois

idiomas pelo fato de a avó materna, chamada Taifa, nunca ter idoalém do inglês rudimentar. Na geração seguinte, nem todos seguiram

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* Ator italiano da virada do século XIX para o XX considerado o primeiro símbolo sexual docinema e protótipo do “amante latino” fabricado por Hollywood.

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essa norma, mas o pai de Al, Hamid, ao contrário dos irmãos, casoucom uma árabe, uma palestina vinda de Al-Khalil, na Cisjordânia. Ale seus cinco irmãos e irmãs foram, portanto, o último braço da famí-lia Mansur a falar ambos os idiomas.

Todos levavam uma vida sem problemas, quase bucólica. A ter-ceira geração da família Mansur era tão americana quanto todas asoutras famílias americanas; porém, por continuar a cultivar o idiomade seus ancestrais, era quase motivo de inveja numa nação formadapraticamente por imigrantes. Quem não gostaria de dominar oidioma de suas origens, quer fosse russo, polonês, alemão, italiano,sueco ou espanhol?

Entretanto, após o 11 de Setembro, tudo mudou. Ao contrário doque aconteceu com os idiomas de todos os imigrantes de outras origens, o árabe foi estigmatizado, quase uma demonstração de antia-mericanismo ou, pior ainda, de hostilidade.

Se tentasse entrar para as Forças Especiais àquela altura, não seriaaceito, com uma discreta menção a razões médicas. Era uma conclu-são amarga e, possivelmente, injusta, mas era assim que a situação seapresentava. Al começou a se perguntar se era um árabe que falava uminglês perfeito ou um americano que falava fluentemente o árabe, coisaque antes do 11 de Setembro parecia uma questão idiota, sem sentido.

Agora, apresentava-se como um problema que o consumia pouco a

pouco, todos os dias.A última vez que a família se reuniu foi no aniversário de 60

anos da mamãe Leyla, e todos os irmãos e irmãs disseram estar pas-sando pelas mesmas atribulações. O escritório de advocacia de

Omar começava a perder clientes. Wal, o principal dono da firma dedi-cada à pesca de lagosta, sofria diante de sucessivas greves e estranhas cartas dirigidas a seus clientes. Susana, que era dentista, recebia um bom-

bardeio tenaz de mensagens racistas e processos indenizatórios. Abrahamestava sendo pressionado a vender sua participação numa empreiteira,

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“visto que, na situação atual, isso seria o melhor para a empresa”, e omarido de Nadia queria o divórcio, embora por motivos absoluta-mente comuns, como era fácil perceber.

Não foi uma festa familiar normal, alegre, de conversas triviais. O único fato que trouxe alguma alegria foi saber que o irmão maisnovo, Al, passaria a visitá-los com mais frequência — não como civil,mas de uniforme e de boina verde.

Lá embaixo via-se a paisagem primaveril paquistanesa, sempre verde.A curva de um rio onde mulheres vestidas de cores fortes lavavamroupa, um rebanho de vacas rodeadas de crianças munidas de longasvaras, uma aldeia de casas espremidas, tetos de argila seca pelo sol,uma escola, sim, devia ser uma escola. Ele ainda teve tempo de verlongas filas de garotos vestidos de branco e agachados. Não porque, à velocidade que iam, pudesse ver que eram garotos, mas porque conhecia e detestava o que vira. A posição corporal das crianças explicavatudo. Era uma madrasa, exercício em que os garotos, alinhados lateral-mente, dobravam o corpo para frente e para trás, atividade feita durantealguns anos, ao mesmo tempo que repetiam o Alcorão até a loucura,

chegando a decorá-lo, o que representava a aprovação final da sua edu-cação no plano puramente intelectual. Terminavam o curso sem sequersaber contar. Depois, seguia-se uma instrução de caráter prático e

militar que os conduziria para o paraíso.

Os números eram fáceis de lembrar. Em 1950, existiam duzentasescolas voltadas para o treinamento de extremistas religiosos em todo oPaquistão. Hoje, após algumas décadas de pesados investimentos por

parte da Arábia Saudita, esse número subira para vinte mil. O sistemaescolar normal no Paquistão quase esteve a ponto de acabar por falta dealunos do sexo masculino. E, evidentemente, por causa do crescentepreconceito de que as meninas não precisavam ser alfabetizadas.

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Tudo isso era financiado pelo regime que o vovô Ab odiava de tal

maneira que resolveu se mudar para o outro lado do mundo, um regi-

me que Al também odiava como se esse sentimento fosse hereditário.

Mas também não era por falta de motivos recentes e racionais.

Apenas duas semanas antes, ocorrera um forte incêndio num

internato saudita para meninas. Quando os bombeiros paquistaneses

chegaram — quase todos voluntários —, a polícia religiosa já estava lá

com seus chicotes e porretes, caçando todas as garotas vestidas de

forma irregular e obrigando-as a voltar para as chamas. Nos casos em

que as jovens conseguiram se salvar do incêndio, era porque tinham o

rosto e o corpo escondidos por tecido preto. Houve conflito entre

os bombeiros e a polícia religiosa, o que proporcionou a salvação de

muitas jovens com vestimentas impróprias e queimaduras de primeiro

grau. Contudo, o número de mortes em consequência das chicotadas

e porretadas da moral niilista da polícia religiosa jamais foi anunciado.

Em contrapartida, cerca de dez bombeiros foram acusados de conduta

imoral, condenados a cem chibatadas em público e expulsos da corpo-

ração, com retenção dos salários.

Al Mansur, capitão das Forças Especiais, continuava voando para

o Sul de helicóptero, a baixa altitude e a 350 km/h, com o alvo ainda

desconhecido. Até então, nada de novo, tudo rotina, tendo em vista

que o trabalho a realizar possivelmente seria o de costume. Podia ser,

do mesmo modo, alguma missão no Iraque ou no Afeganistão, caso lá

embaixo não se vissem apenas paisagens verdejantes. De novo, apenas

a questão permanente que se transformara numa espécie de pensa-

mento obrigatório: seria ele um americano que falava perfeitamente

o árabe ou um árabe com inglês fluente?

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Sua missão era uma operação rotineira. Assim que o helicóptero ater-

rissou, perto de Sargodha, um grupo de quatro homens das Forças

Especiais já estava no local, sob o comando do chefe de operações da

região, o coronel Triantafellu, embora na companhia de dois outros

coronéis paquistaneses usados como disfarce. Foi incompreensível a

simplicidade com que Triantafellu montou toda a operação sem vaza-

mentos.

O alvo encontrava-se no segundo andar de um prédio de dois

andares nos arredores de Faisalabad e era de alto escalão na hierarquia

da al-Qaeda. Considerava-se que fosse muito próximo de Osama bin

Laden, funcionando quase como uma espécie de chefe de operações

militares. Segundo informações recolhidas, foi desempenhando essa

função que ele organizou o ataque terrorista contra o navio USS Cole,

em 12 de outubro de 2000. Quando o cruzador estava prestes a

ancorar no porto de Áden, no Iêmen, foi atacado por um pequeno

barco motorizado. O ataque suicida resultou na morte de dezessete

americanos. Por isso, os Estados Unidos tinham um acerto de contas

especial a fazer com esse homem, não esquecendo, ainda, a hipótese

de ele conhecer o possível paradeiro de Osama bin Laden. Foi para

prender o sr. Osama que os Estados Unidos entraram em guerra com

o Afeganistão. Era vital, portanto, apanhar esse bandido vivo.

A invasão do prédio seria realizada pelos oito homens das Forças

Especiais, sob o comando de Al Mansur. As forças de segurança do

Paquistão ficariam na retaguarda, a uma distância mínima de dois

quarteirões. Os agentes civis não participariam da invasão em si. Era

apenas uma questão de segurança e nada tinha a ver com prestígio.

Bem, é claro que tinha, pensou Al Mansur, enquanto ouvia, comexpressão imutável, as explicações do coronel. Os “agentes civis” nãoeram outros senão membros da Swat aliados ao FBI, e não pareciam

muito satisfeitos. De fato, seu chefe tentou fazer algumas objeções.

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Mas o coronel Triantafellu nem sequer quis ouvi-las, acrescentandoque o alvo deveria ser preso e, em segurança, entregue ao FBI. Era oque já fora decidido pelos superiores. A operação era vista como deextrema importância e, por isso, seria realizada tendo em consideração,principalmente, a competência e a segurança. Em última instância, senecessário, seria levado em conta o louvável orgulho de qualquer orga-nização americana.

As fotos do alvo com sua aparência atual foram distribuídas apenas aos oito membros das Forças Especiais. O nome estava atrásdas fotos, mas não devia ser revelado a ninguém — e a ordem forarepetida à exaustão: a absolutamente ninguém — antes de a operaçãoterminar.

O restante do dia foi dedicado ao transporte em caminhões doExército paquistanês, totalmente cobertos, para a área do alvo onde jáse encontravam uma van paquistanesa e um automóvel sucateado deplaca civil, para não levantar suspeitas de que Al e seus sete homens seaproximariam do prédio.

Assim que as forças paquistanesas se espalharam pelos quarteirõesmais próximos do alvo e Al e seus homens estudaram os mapas da áreae as plantas do prédio onde se daria a invasão, não restava nada a fazer,senão esperar pelo crepúsculo e a hora das orações. E foi exatamente

quando os homens começaram a gritar dos minaretes mais próximos,

conclamando os fiéis para as orações vespertinas, que os dois carros deplacas frias avançaram em direção ao portão da casa, com os invasoresagora disfarçados com vestimentas afegãs. Ao chegar, saíram dos carros e ficaram olhando em volta como se decidissem que caminho

seguir. Depois, dirigiram-se ao guarda do portão, que começara adesenrolar seu tapete para orar. Mataram-no e subiram em silênciopara o segundo andar.

Tudo aconteceu conforme o planejado. Entre os dez homensque estavam no apartamento, o alvo foi logo identificado, um tal de

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Abu Zubaydah. Algemaram-no e eliminaram todos os outros. Infeliz-mente, o sr. Abu Zubaydah também fora atingido duas vezes duranteo curto embate no interior do apartamento. Ninguém sabia como issofora possível. Al Mansur resolveu interromper a retirada para prestaros primeiros socorros e, ao mesmo tempo, usou o rádio para pedirreforços e uma ambulância.

Houve uma longa discussão sobre o acontecido, mas tudo acabou

bem. O terrorista estava fora de perigo. Meia hora mais tarde, todos

os americanos se encontravam em segurança dentro dos helicópteros,

voando em direção ao Norte e a Rawalpindi. Os homens do FBI rece-

beram o terrorista, felizes como crianças na noite de Natal.

Para o capitão Al Mansur, a operação estava terminada, um tipo

de missão considerada de rotina. Normalmente não fazia ideia a res-

peito das razões que motivavam a prisão desse ou daquele elemento,

nem por que era preciso apanhá-los vivos. Sabia que uma boa quanti-

dade de operações semelhantes o esperava. E a sorte de Abu Zubaydah

não lhe interessava mais.

Dois dias depois, porém, aquela operação que parecera cor-

riqueira transformara-se no acontecimento mais estranho nos oito

longos anos de Al Mansur nas Forças Especiais.

Chamado com urgência ao quartel-general, perto de Peshawar,

viajando num helicóptero Black Hawk colocado especialmente à sua

disposição, dois minutos depois de aterrissar na base já se encontrava

diante do coronel Triantafellu, em seu gabinete mobiliado de modo a

lembrar Esparta. Mas os dois não estavam sozinhos. No gabinete

estavam também dois elementos do FBI e um homem que se apre-

sentou murmurando o nome “Gus”, que poderia ser qualquer outro.

Cheirava a CIA até de longe.

Al Mansur fez as saudações de praxe, que foram correspondidas e

seguidas de um convite para que se sentasse, convite dirigido também

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aos outros presentes, inclusive ao tal “Gus”. Após as apresentações

feitas pelo coronel Triantafellu, houve um momento de estranho

silêncio no gabinete.— Muito bem, capitão — disse finalmente o coronel —, nós nos

conhecemos o suficiente para você saber que eu gosto de ir direto aoassunto, não é verdade?

— Sim, senhor. Sem dúvida, senhor — respondeu Al Mansur deforma mecânica.

— Well, vou lhe fazer uma única pergunta, que poderá parecerestranha. O que espero é que a resposta seja absolutamente verda-deira. E, se a resposta for negativa, nada de mais, nada de que vocêprecise sentir vergonha. Mas, nesse caso, os nossos caminhos prosse-guirão em separado. Compreendeu?

— Sim, senhor.— Muito bem. Vamos então à pergunta, que é muito simples: até

que ponto vai o seu conhecimento do idioma árabe?— Sou bilíngue, senhor. Os meus avós falavam árabe, e toda a

família sempre falou árabe em casa.— Ótimo. Que espécie de língua árabe você fala?— Os parentes do meu pai vieram do Leste da Arábia Saudita.

Minha mãe é palestina. A diferença entre os dois idiomas não é muitogrande, mas eu falo mais como o meu pai.

— Ótimo, capitão. Nesse caso, vou fazer mais algumas perguntas.O capitão poderia passar por saudita, nascido na Arábia Saudita, entreos sauditas?

— Sem dúvida, senhor.

— É o que consta no seu histórico. Mas as pessoas sempre tendem

a exagerar quanto aos idiomas falados. Minha esposa afirmava saber

falar fluentemente o francês, mas, quando chegamos a Paris, na nossa

viagem de núpcias, era como se falasse grego. O capitão certamente

entende o que quero dizer.

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— Com certeza, senhor. Meu francês também se mostrou com-pletamente inútil quando estive lá. Mas, com todo o respeito, esse nãoé o caso do meu árabe. Falo o idioma como qualquer saudita bem-educado, se é que posso ser mais preciso.

O coronel mostrou-se satisfeito com as respostas e fez um gestodivertido na direção de “Gus”.

— E que espécie de árabe você acha que eu falo? — perguntou emárabe o homem da CIA, perfeitamente compreensível. — E prefiroque me responda também em árabe, capitão.

— O senhor fala árabe como um americano originário de algumlugar do Sul, eu diria, talvez do Texas. Desculpe, o senhor fala bem,mas com sotaque americano, a que eu chamaria de dixie.

— Muito bem, capitão — continuou o homem da CIA, emárabe. — E, esquecendo que venho do Texas, o que é tão verdadeiroquanto embaraçoso quando você consegue descobrir com tanta facili-dade, me diga: onde acha que aprendi o meu árabe?

— É difícil dizer, senhor. Mas eu diria que foi durante um longoperíodo de serviço em Beirute. Posso estar errado, mas há um sotaquepalestino-libanês em tudo o que diz, e alguma coisa também que me fazpensar na Síria. No entanto, devo acrescentar, claro, que o senhor falaum excelente árabe, considerando, especialmente, ter vindo do Texas.

O homem da CIA ficou olhando para ele, pensativo, balançando

a cabeça e, de repente, soltou uma gargalhada. Por sua vez, todos osoutros no gabinete ficaram com cara de idiotas.

— Muito bem, coronel Triantafellu — disse ele. — Este aqui é onosso homem! Nunca vi coisa igual. Com uma túnica e uma toalha na

cabeça do capitão Mansur, vocês verão um saudita legítimo na suafrente. Só lhe faltam um olhar mortiço, uma barriga protuberante euma musculatura flácida.

O ambiente tenso no gabinete mudou rapidamente, e os doishomens do FBI exprimiram seus sentimentos elevando os polegares.

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Al Mansur compreendeu então que lhe estavam preparando algumamissão secreta em território saudita, totalmente em desacordo com osregulamentos.

Logo soube que a coisa era mais complicada do que parecia, nãosomente quanto à natureza da missão, mas também em termos delegalidade.

— Tenho ainda uma última pergunta antes de começarmos anegociar — retomou o coronel, parecendo muito satisfeito. — O queé necessário para que o capitão possa se passar por agente da políciasecreta e interrogador numa prisão da Arábia Saudita?

Al Mansur precisou se concentrar.— O senhor quer dizer além do uniforme correto e seus comple-

mentos? — retrucou ele para ganhar tempo. Possivelmente essa era apergunta mais estranha que havia recebido em toda a sua vida.

— O uniforme já está pronto! — O coronel sorriu. — E além disso?— Algumas gravações com rotinas sauditas de interrogatório.

Frases especiais, modus operandi, palavrões normalmente usados nessas situações e assim por diante... — respondeu ele, dando ideia dobásico necessário.

— Isso também já foi requerido, capitão. Portanto, já podemoscomeçar a agir!

A operação estava conectada com o alvo que eles haviam captu-

rado em Punjabi, nos arredores de Faisalabad, onde nunca se poderiapensar em encontrar qualquer chefe da al-Qaeda. No entanto, encon-tram um, Abu Zubaydah.

Uma vez que o terrorista continuava na cama do hospital, era um

pouco difícil, no momento, torturá-lo com o intuito de obter infor-mações que pudessem servir para instruir Al Mansur e prepará-lo paraa operação em vista.

No primeiro interrogatório com Abu Zubaydah, realizado pelo

FBI, não se conseguiu nada de importante. O homem teve até

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terror 1 01.03.13 10:45 Page 20

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o desplante de citar a democracia americana e os direitos humanos

assim que se sentiu mais pressionado. Além disso, estava ferido e no

soro. Como todos os sauditas, era ainda extremamente arrogante e

tinha a infeliz tendência a começar a predicar sobre Deus e política.

Apesar dos ferimentos, estava de bom humor e chegou a fazer piada a

respeito do que aconteceria se sofresse aqueles poucos métodos de

tortura permitidos aos americanos, como afundar sua cabeça num

balde cheio d’água. Das duas, uma: ou seria blefe, ou eles, sem querer,

conseguiriam afogá-lo. Em qualquer caso, ele não diria nada que não

pudesse ser revelado. E, se morresse, seria considerado mártir e rece-

beria a compensação correta de Deus.

Enfim, havia apenas uma única maneira de resolver o problema de

um terrorista que não tinha medo da tortura americana: era preciso

fazer o homem falar. Abu Zubaydah era o homem mais importante na

hierarquia da al-Qaeda a cair nas mãos dos americanos, e havia a pos-

sibilidade de obter novas pistas do terrorista mais procurado do mundo,

o próprio Osama bin Laden. Sem dúvida, Abu Zubaydah representava

uma mina de ouro de informações em potencial. A questão era apenas

saber como fazê-lo abrir o bico.

Em primeiro lugar, era preciso levá-lo para dar uma voltinha de

carro, expressão que, na realidade, significava dar uma volta de avião.

Claro que ele seria dopado para não saber o quanto voara, e muito

menos para onde. E, então, acordariam o arrogante poço de merda

num verdadeiro centro saudita de tortura. Para isso, já estavam cons-

truindo uma réplica na base americana. Os estimados aliados sauditas

na guerra contra o terrorismo se mostraram muito prestativos, arran-

jando não somente as fotos, como também fornecendo operários

paquistaneses. Não era o ideal, mas o que tinham à disposição. Como

se sabia, nenhum saudita executava trabalhos manuais de natureza

pesada, digamos assim.

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