Tese de Doutorado - Biblioteca Digital Curt Nimuendajúetnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese:cunha-2004... · Gravei com dois inforrnaotes (João Maçarico, que na época

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  • Tese de Doutorado

    Um estudo de fonologia da lngua Makuxi (karib):

    inter-relaes das teorias fonolgicas

    Universidade Estadual de Campinas

    2004

    tH~lC,

  • Carla Maria Cunha

    Um estudo de fonologia da lngua Makuxi (karib):

    inter-relaes das teorias fonolgicas

    Tese apresentada ao Curso de Lingstica do

    Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade

    Estadual de Campinas, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Doutor em Lingstica.

    Orientador: Prof Dr. Wilmar da Rocha D' Angelis

    Banca Examinadora:

    Prof" Dr" Maria Bernadete Abaurre (UNICAMP)

    Prof" Dr" Adair Pimentel Palcio (UF AL)

    Prof Dr. Aryon Dall'Igna Rodrigues (UNB)

    Prof" Dr" Adelaide Herclia Pescatori Silva (UFPR)

  • ___ Ex __ .~-

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    11

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA IEL - UNICAMP

    C914e Cunha, Carla Maria.

    Um estudo de fonologia da lngua Makux:i (Karib) : inter-relaes das teorias fonolgicas I Carla Maria Cunha. - Campinas, SP : [s.n.], 2004.

    Orientador : Prof'. Dr. Wilmar da Rocha D' Angelis. Tese (doutorado)- Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

    Estudos da Linguagem.

    1. Lngua Makux:i - Fonologia. 2. Fonologia no-linear. 3. Geometria de traos. 4. Famlia Karib. L D' Angelis, Wilmar da Rocha. ll. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. Ill. Ttulo.

  • lll

    A Celino Alexandre Raposo que

    generosa e pacientemente contribuiu,

    com seu conhecimento da lngua

    Makuxi, na formao do corpus desta

    pesqmsa.

    Ao Professor Dr. Wilmar da Rocha

    D'Angelis, cuja parceria acadmica

    viabilizou a escrita deste trabalho.

    A mame e papai, Gilda Maria

    Carneiro da Cunha e Luiz

    Gonzaga Cunha.

    A Galvo Vitor Corra, pela vida

  • IV

    AGRADECIMENTOS

    Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) pela bolsa de estudo concedida.

    Ao Fundo de Apoio ao Ensino e a Pesquisa (FAEP) que concedeu recursos para

    minhas viagens de campo.

    Ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) pela estrutura fisica e humana que

    oferece aos seus alunos e, em particular, pelo apoio dado minha pesquisa de campo.

    Ao Conselho Indgena de Roraima (CIR) por permitir minha entrada na rea da

    Maloca da Raposa I.

    Ao Professor Dr. Wilmar da Rocha D' Angelis pelo trabalho de orientao que deu

    curso e suporte escrita desta tese.

    Professora Dr". Adair Pimentel Palcio, minha orientadora no curso de Mestrado,

    pessoa e profissional inesquecvel.

    Aos professores do IEL que trabalham conosco em sala de aula e em nossas

    pesquisas, de modo muito especial, Prol" Dr" Maria Bemadete Marques Abaurre.

    A Joo Maarico, Ldia da Silva Raposo, Celino Alexandre Raposo, Arissdina

    Fidlis da Silva, falantes Makuxi que participaram de minha pesquisa de campo.

    Joana e D. Zilda, ndias Makuxi que me trataram como parente.

    Rosely de Souza Lacerda (in memoriam) participante do Ncleo de Estudos

    Indigenistas (NEI) da Universidade Federal de Pernambuco.

    Aos amigos: Marianne Carvalho, Dborah Freitas, Ana Maria e Aldir Santos de Paula

    e Margarete Fernandes de Souza.

    famlia Souza, tomando aqui duas referncias: Mateus, que escuta meu silncio e

    Helena, que me convida para a vida em sociedade.

    minha famlia numerosa, barulhenta e amada.

    Ao bem querer de Vitor.

  • v

    RESUMO

    A presente tese uma nova abordagem da fonologia da lngua Makuxi (Karib),

    falada por uma populao indgena de cerca de dezoito mil pessoas no estado brasileiro de

    Roraima e na Guiana.

    A busca de uma anlise mais profunda, para alm dos marcos da Fonmica, inspira-

    se na tradio fonolgica do Circulo Lingstico de Praga e apia-se no modelo representacional

    da Geometria de Traos. Disso resultam as "inter-relaes das teorias fonolgicas", pela

    correspondncia que traa entre conceitos adotados nas teorias fonolgicas clssica e auto-

    segmenta! (geometria de traos).

    Na busca de urna explicao para o fenmeno existente na lngua Makuxi, que at

    ento era interpretado como um vozeamento que atinge os segmentos obstruintes aps vogal

    longa, segmento nasal ou glotal, estabelecemos uma correspondncia entre os conceitos

    'lenis/fortis', da fonologia clssica, ao que constitui o trao SV (Vozeamento Espontneo), do

    modelo auto-segmenta!.

    Em nossa anlise, o trao SV mostra-se essencial para aclarar o que entendemos

    como um processo de lenio. Consideramos fundamental a participao deste trao na

    geometria dos arquifonemas soantes oral 17'/ e nasal /N/, de maneira a sobrepor a interpretao

    de lenio de vozeamento das consoantes em foco.

    As observaes e o raciocnio que nos fizeram descartar a idia de um processo de

    vozeamento nos levaram a reconhecer a existncia fonolgica de uma consoante 17'1,

    caracterizada pelos traos [+aprox] e [SV] - distinta da obstruinte glotal marcada pelos traos

    [-aprox] e [-voz] (laringeo)- cuja presena revelada justamente pela lenio das consoantes

    'fortis' /p, t, k, s/ que passam a 'lenis' [b, d, g, z].

  • VI

    ABSTRACT

    The present thesis is a new approach of the Makuxi (Karib) language phonology,

    spoken by an Indian population of about eighteen thousand people in the Brazilian state of

    Roraima and in the neighbor territory of Guyana.

    Searching for a deeper analysis, beyond Phonemics, this study is inspired in the

    phonological tradition of the School of Prague and adopts the representational model of the

    Features Geometry. The result is the "inter-relations of the phonological theories", by the

    correspondence that it establishes between the concepts adopted by the classical phonological

    theories and the auto-segmental model (features geometry). Looking for an explanation for the

    existing phenomenon in the Makuxi language, which has been interpreted as a voicing

    implementation ( that reaches the obstruent segments after long vowel, nasal or glottal segments ),

    this thesis establishes a correspondence between Ienes/fortes concepts o f the classical phonology

    to which constitutes the SV (Spontaneous Voicing) node ofthe auto-segmental model.

    In our analysis, SV reveals to be essential to explain what we understand as a

    lenition process justitying the participation of this feature node in the geometry of the sonorant

    archi-phonemes oral /?'/ and nasal /N/, allowing to change the interpretation of lenition to the

    one o f voicing implementation of the consonants in focus.

    The reasoning that made us discard the idea o f a process of voicing, had led us to

    recognize the phonological existence of a consonant !?'!, characterized by the features [ +aprox]

    and [ SV ]- distinct fi:om the glottal obstruent specified by [- approx] and [-voice] (Laryngeal)

    - whose presence is disclosed by the lenition of fortes consonants /p, t, k, s/, that become Ienes

    [ b, d, g, z l

  • VII

    SUMRIO

    O. Apresentao 09

    L Etnografia dos Makuxi 15

    L 1 Abordagem histrica 19

    L2 Residncias e fanlia 28

    L3 Meio ambiente e atividades de subsistncia 29

    L4 O sentido de propriedade para os Makuxi 30

    L 5 A mulher Makuxi 31

    L6 Educao escolar indgena 32

    II. A geometria de traos das consoantes 35

    m Realidade fontica e aproximao ao sistema fonolgico 47

    III.1 Estudo fonolgico das obstruintes 48

    IILL1 Consoantes [ -cont] orais 48

    IILL2 Consoantes [ -cont] nasais 62

    III.1.2.a A nasalizao voclica sinalizando carter 'lenis' 73

    de consoantes nasais

    III.U Os fonemas n1 e n'l 78

    III.L4 Consoantes [ +cont] 98

    IIL1.5 A relao dos sons [ +cont] e os aproximantes 107

  • Vlll

    III.1.5.a Cotejo entre a aproximante palatal, OJ, e a [+cont], [coronal], 107 [+distribuda], []

    III.L5.b Confronto entre a aproximante [labial], [ w ], e a obstruinte [ +cont ], 120

    [labial], [J3]

    III.1.6 O segmento flap, [r] 125

    III.2 Quadro fonolgico das consoantes 127

    IV. As vogais 129

    IV.1 As vogais: altura e nasalidade 129

    IV.2 Segmento longo ou alongado e o acento 151

    IV.2.1 Segmento longo ou alongado 151

    IV.2.2 Alongamento voclico e acento 154

    v. Slaba 161

    VI. Processos fonolgicos 177

    VII. guisa de concluso 185

    Bibliografia 187

  • O. Apresentao.

    A tese 'Um estudo de fonologia da lngua Makuxi (Karib ): inter-relaes das teorias

    fonolgicas' 1 tem por objetivo principal produzir uma aolise mais profunda desse componente

    da lngua Makuxi, adotaodo modelos tericos recentes. No percurso de sua elaborao,

    evidenciou-se o papel crucial de um determinado processo fonolgico para a compreenso das

    principais oposies (correlaes) no sistema da lngua: o processo que envolve um tipo de

    vozeamento concernente aos segmentos obstruintes.

    Os dados utilizados neste trabalho so registros que obtive com quatro falaotes

    nativos da lngua Makuxi: dois homens e duas mulheres, todos adultos. As gravaes esto

    registradas, parte em fita cassete, e parte em mini-disk. Foram realizadas duas viagens de campo,

    uma entre setembro/outubro de 1998, na qual fiquei na Maloca da Raposa2 e a segunda em 2002,

    entre os meses de junho/julho, em que perrnaoeci na capital de Roraima, Boa Vista, por dois

    motivos: dois dos meus colaboradores (que j me conheciam e com os quais eu tinha trabalhado)

    encontravam-se moraodo em Boa Vista; e a dificuldade de entrar em rea indgena.

    Na primeira ida ao campo, no havia a presena forte de nenhuma entidade

    organizada na regio, nem uma poltica que dificultasse a entrada de pesquisadores em rea,

    razo pela qual fui diretamente aldeia e apresentei-me ao tuxaua (cacique), da poca, Sr.

    Delmiro. Falei-lhe do trabalho que pretendia fazer e entreguei-lhe uma carta de apresentao da

    professora Dborah Freitas, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), que j fazia um

    trabalho de pesquisa naquela rea.

    A primeira ida ao campo durou cerca de um ms, deste tempo passei quinze dias na

    Maloca da Raposa. Gravei com dois inforrnaotes (Joo Maarico, que na poca era diretor da

    escola, e Ldia Raposo, esposa do ento tuxaua da maloca) um questionrio previamente

    elaborado. O trabalho com Ldia foi de gravao direta dos dados; com Joo consegui fazer,

    1 A grafia das palavras Makuxi e Karib segue a conveno promovida pela Associao Brasileira de Antropologia (1953 apud Rodrigues, 1986). ' comum na regio chamar as aldeias de malocas. Historicamente, os Makuxi viviam em casa plurinuclear. provavelmente, este costume levou correspondncia do termo maloca aldeia.

  • 10

    alm das gravaes, transcrio fontica direta. Em Boa Vista, fiz levantamento lingstico com

    Celino Alexandre Raposo (professor do curso de extenso em Makuxi-UFRR).

    Da segunda vez, no entanto, como a Organizao dos Professores ndios de

    Roraima (OPIR) est atuando fortemente na rea dos Makuxi, fui pedir-lhe apoio/autorizao

    para entrar na Maloca da Raposa. Fui orientada, no dia 07-06, pelo presidente da entidade, Sr.

    Enilton Andr da Silva, a participar de uma reunio que ocorreria no dia 10-06, na qual estariam

    coordenadores de vrias reas indgenas. No final desta reunio, que durou todo o dia, foi

    abordado meu pedido, expliquei-lhes meu trabalho; falei que j tinha estado na maloca em

    questo em 1998; disse-lhes com quem tinha trabalhado l. Mesmo assim nenhuma posio foi

    definida pelos integrantes desta reunio, e o presidente, ento, decidiu dividir a responsabilidade

    com o Conselho Indgena de Roraima (CIR).

    No dia 11-06, oficializei o pedido de entrada em rea, junto OPIR e ao CIR,

    entregando-lhes: carta de apresentao de meu orientador; projeto de pesquisa; uma carta pessoal

    na qual me dispunha a dar retomo comunidade, com relao minha pesquisa. Dai em diante,

    procurei diversas vezes os responsveis para obter resposta de meu pedido, o que s consegui,

    pelo C IR, no dia 03-07.

    No impedimento de ir Maloca, contactei professores Makuxi j conhecidos,

    Celino e Joo Maarico, que agora est lotado na sede da Secretaria de Educao do Estado.

    Com Joo s foi possvel realizar uma nica sesso de trabalho, pois ele sentiu-se

    constrangido a colaborar numa pesquisa que ainda no tinha recebido a liberao da OPIR.

    Nessa oportunidade, passei-lhe dados em portugus para que ele me repassasse os

    correspondentes na lngua Makuxi, numa gravao direta.

    necessrio esclarecer que a OPIR est fazendo uso de uma poltica que no

    favorece o trabalho de pesquisa de pessoas 'de fora'; alm disso, seus integrantes se mostraram

    muito ansiosos pela colaborao imediata do pesquisador junto s necessidades da comunidade;

    muitos de seus participantes acreditam que as lnguas indgenas devem ser estudadas e analisadas

    pelos prprios ndios. Corrobora para essa atitude a criao de um curso universitrio, para uma

    clientela exclusivamente indgena, que pretende formar pesquisadores.

    Diante da situao que se apresentou, s foi possvel trabalhar, sistematicamente,

    com Celino Raposo. Nossa primeira sesso ocorreu no dia 12-06. No total foram dezenove

    sesses de trabalho, com durao mda de duas horas cada.

  • 11

    O trabalho com o professor Celino foi muito proveitoso: foi possvel fazer

    transcrio direta; gravar dados lingsticos; fazer traduo de textos e discutir questes

    lingsticas do Mak:uxi.

    No dia 03-07, que era a data prevista para meu retorno a So Paulo, foi que o CIR

    autorizou minha entrada na Maloca da Raposa. Como no havia concludo o trabalho com

    Celino, resolvi no arriscar uma ida rea (onde teria ainda que contactar novos colaboradores),

    optando por permanecer em Boa Vista e finalizar o levantamento de dados em curso.

    Com a liberao em mos, tentei um novo contato com Joo Maarico, mas ele

    disse que no momento no tinha tempo, s a partir do dia 25-07 (poca em que eu no mais

    estaria em Boa Vista). Ento no tive mais a oportunidade de trabalhar com ele.

    Atravs de Celino, obtive o registro da fala de uma ndia Makuxi. Repassei para ele

    um questionrio, fita cassete e gravador e ele fez a gravao com Arissdina Fidlis Silva, sua

    esposa, que mora na Maloca Campo Alegre.

    Este segundo perodo de pesquisa, com permanncia em Boa Vista, encerrou-se em

    19 de julho de 2002, somando um total de quarenta e quatro dias.

    O presente trabalho subdivide-se em seis captulos, comeando por uma

    apresentao dos Mak:uxi. A anlise propriamente lingstica inicia-se com a abordagem da

    geometria dos traos relacionada aos segmentos consonantais. Nesta parte j aproveitamos para

    inserir noes trabalhadas na fonologia clssica, fazendo assim uma inter-relao das teorias

    fonolgicas.

    Em seguida, expomos as realizaes fonticas consonantais, buscando a

    constituio do tipo de variao que a lingua manifesta, o estabelecimento fonolgico das

    consoantes, e as oposies fonolgicas que definem o agrupamento das consoantes. Embora a

    princpio parea deslocada, participa dessa parte a nasalizao voclica, dada a sua importncia

    no processo de 'vozeamento' que queremos deslindar.

    Na seqncia, abordamos as vogais com suas realizaes simples e alongadas.

    Observamos que o processo de nasalizao voclica fundamental para determinar a altura

    fonolgica das vogais mdias na lngua Mak:uxi.

    Os captulos finais abordam a slaba e os processos fonolgicos. O tipo de formao

    silbica que certos segmentos integram vai determinar processos fonolgicos especficos, tais

    como o de lenio consonantal, criao de consoantes e vogais alongadas; e o de nasalizao.

  • 12

    Antes de comearmos a desenvolver nossa anlise, achamos conveniente fazer um

    breve panorama bibliogrfico de estudos lingsticos sobre o sistema Makuxi.

    Abbot (1976) levanta dados (em sua maioria, textos e conversas) tanto do Makux:i

    falado no Brasil quanto do falado na Guiana. Direciona sua anlise tagmmica para a descrio

    estrutural da gramtica, mais especificamente, para os tipos oracionais.

    Em outro trabalho, Abbot ( 1991) retoma os tipos oracionais e acrescenta

    discusso a relao entre oraes, encerrando o trabalho com sua apresentao da fonologia do

    Makuxi.

    Hodsdon (1976) apresenta uma anlise semntica da clusula em Makuxi. Em sua

    interpretao, os verbos dessa lngua descrevem um dos trs processos: o ativo, o mental, e o

    relacional. Cada um, por sua vez, se divide ainda em sub-classes verbais, por suas caractersticas

    semnticas.

    O trabalho de Amodio e Pira (1996) objetiva o ensino da lngua Makuxi, com

    referncia s informaes lingsticas bsicas. Sendo assim, seu formato de um livro didtico,

    uma gramtica pedaggica. Encontram-se nele vrias lies compostas por dilogos com

    temticas variadas (cumprimentos; instrumentos de trabalho; parentes; partes do corpo; animais e

    alimentos). Ainda seguindo o objetivo de ensinar Makuxi, h narrativas de mitos de diversas

    malocas Makuxi e a preocupao de narr-los tanto na lngua indgena como no portugus, a

    exemplo da Histria da Maloca da Raposa (Maikan Pisi Pantoni). O trabalho de Amodio e Pira

    tambm aborda a fontica e o tratamento dos grafemas correspondentes aos sons existentes na

    lngua.

    Derbyshire (199li trata da mudana do sistema ergativo para o nominativo ou

    mesmo para um sistema misto, nas lnguas amaznicas, mais especificamente das lnguas da

    Farnilia Karib: Makuxi, Hixkaryana, e Panare. Este autor interpreta o Makuxi como um exemplo

    de lngua cujo sistema ergativo "Macushi is one of the most purely and comprehensively

    ergative systems I have seen reported anywhere in the world" (op. cit.: 5).

    Segundo Derbyshire, a fora do sistema ergativo do Makuxi provm das seguintes

    caractersticas:

    3 Nesse panorama dos trabalhos feitos com a lngua Makuxi, detenho-me um pouco mais sobre o de Derbyshire (1991) por conta da importncia do assunto 'ergatividade' na constituio do sistema lingstico Makuxi. E ainda por que faremos, no desenvolver do trabalho, meno ergatividade desta lngua.

  • 13

    -O sujeito de um verbo intransitivo (S) e o objeto de um transitivo (O) no recebem

    marca de caso e ocorrem imediatamente antes do verbo.

    -Sujeito de transitiva (A) recebe a marca do sufixo -ya 'erg', qualquer que seja sua

    posio e forma do nome, incluindo-se aqui os pronomes. A posio normal para o (A) ps-

    verbal, no entanto, ele pode preceder a seqncia O V.

    - Quando os nomes no vm em suas formas expressas, ento (S) e o (O) so

    marcados nos prefixos de marca de pessoa no verbo, e o (A) tem sua marca de pessoa no sufixo

    da palavra verbal.

    - Se (A) vem em forma de sufixo, ele tambm seguido imediatamente pelo sufixo

    ergativo -ya.

    - O sistema ergativo ocorre tambm em clusulas subordinadas no infinitivo.

    - H um conjunto simples de afixos de marca de pessoa que ocorrem tanto em

    posio de prefixo quanto de sufixo, com exceo para a 1 pessoa.

    Por fim, a rigidez da ergatividade no Makuxi demonstrada pela marca de caso,

    concordncia verbal, ordem de palavras e ordenamento dos afixos, com caso marcando nomes e

    pronomes, e em clusulas subordinadas e principais, considerando ainda as categorias de tempo,

    aspecto e modo (Derbyshire, 1991).

    A anlise de Gouva (1993) tambm discute a ergatividade na lngua Makuxi,

    tomando por referncia as abordagens tipo1gica e funcional, fazendo uso tambm de

    pressupostos tericos da teoria gerativa de Regncia e Ligao para respaldar o exame da

    ergatividade no Makuxi.

    O trabalho de Carson (1981}' compreende sua tese de Doutorado, que aborda a

    fonologia, a morfologia, e sintaxe da lngua Makuxi. No captulo de fontica e fonologia, ela

    trata da descrio aloronica das consoantes e vogais, descreve aplicaes de regras gerais para

    consoantes, discorre sobre o padro da slaba e os clusters consonantais. Com relao s vogais,

    discorre sobre as longas e sobre reduo de vogais e ditongos; e com relao ao pitch, trabalha o

    acento da palavra e o acento frasal. H, ainda, nesta parte de seu trabalho, meno a outros

    processos fonolgicos, tais como: assimlao, deleo, alongamento compensatrio, metteses e

    harmonia voclica.

    4 No decorrer de nossa anlise faremos sempre meno abordagem fonolgica desenvolvida por Carson.

  • 14

    No captulo que desenvolve a morfologia e a sintaxe, tem-se a morfologia do nome

    subdividida nos nomes compostos e derivados (a derivao trata de nomes originados de verbos,

    por meio dos sufixos nominalizadores {-to 7} e { -koi} ou ainda dos { n-eiJ} e { s -eiJ} \ Carson

    aborda tambm as frases nominais; os modificadores dos nomes; os numerais; os afixos

    gramaticais (nmero, gnero, caso) e ps-posies, alm de tratar do sistema pronominal.

    Quanto morfologia verbal, a autora descreve a mudana de transitividade,

    derivao, composio, discorre sobre verbos auxiliares e sobre a flexo verbal. Com respeito

    sintaxe, aborda as sentenas coordenadas e subordinadas; as marcas de predicativo e fala direta e

    indireta. Finaliza, detendo-se nos advrbios e nos quantificadores.

    Essa rpida retrospectiva sobre alguns trabalhos em torno do Makuxi permite

    observar que, embora essa lngua tenha anlises com abordagem sinttica e mesmo semntica de

    seus elementos, ainda requer uma anlise aprofundada de sua fonologia. A pesquisa aqui

    apresentada aborda mais especificamente sua fonologia, seguindo o modelo da Geometria de

    Traos (Clements & Hume, 1995). Toma-se Carson (1981) como uma referncia importante

    neste trabalho, ao se considerar os registros dos fenmenos fonolgicos levantados por ela e

    ainda porque alguns pontos de sua anlise motivam a busca de uma interpretao que leve a uma

    compreenso mais ampla dos fenmenos fonolgicos da lngua Makuxi, sem esquecer, contudo,

    as especificidades que podem estar envolvidas em seus processos.

    5 O sufixo {-e~} um nominalizador que co-ocorre aos tambm sufixos {n-} e {s-} referentes, respectivamente, ao nominalizador agentivo e o reflexivo.

  • 15

    L Etnografia dos Makuxi.

    Os ndios Makuxi vivem no estado de Roraima (RR) e tambm na Guiana (Inglesa).

    A pesquisa lingstica em foco neste trabalho foi realizada na Maloca da Raposa6 localizada em

    territrio brasileiro.

    Em Roraima, as malocas Makuxi encontram-se na regio nordeste, onde so

    vizinhas aos grupos Ingaric e Taurepang, tambm falantes de lngua Karib, e aos Wapixana,

    que so de filiao Arawak.

    As terras Makuxi compreendem, em sua conformao geogrfica, dois tipos de

    reas: os campos, ao sul, mais comumente chamados de lavrado; e a regio das serras, ao norte,

    onde se encontram pores de floresta. A dimenso deste territrio pode ser estimada em torno

    de 3.000.000 a 4.000.000 ha.

    H estimativa de que a populao Makuxi do lado brasileiro, considerando-se os

    que vivem nas malocas, seja de 11.598 indivduos (levantamento feito em janeiro de 1984); se

    acrescentarmos os que vivem na Guiana, o nmero sobe para 18 mil pessoas (CIDR, 1989: 47).

    Alm destas, h outras estimativas envolvendo nmeros bem diversos: 3.100 indivduos

    (Migliazza, 1978) a 20.000 indivduos (Amodio, 1983) s do lado brasileiro. O nmero de

    malocas Makuxi em Roraima foi contabilizado em 100 pelo Conselho Indgena de Roraima

    (CIR), na segunda parte da dcada de 1980 (Santilli, 1989: 3). Dentre essas malocas encontram-

    se agrupamentos mistos, ou seja, a convivncia dos Makuxi junto a outros grupos tnicos: dez

    dessas, localizadas no extremo sul e sudeste de seu territrio, que abrangem os rios Tacutu e

    Iraricoera, fazem fronteira com reas Wapixana e algumas dentre estas chegam a ser mistas. Nos

    vales dos rios Surumu e Miang, no extremo noroeste, os Makuxi se avizinham aos Taurepang,

    chegando a formar trs aldeias mistas Makuxi-Taurepang; e na extremidade norte, so vizinhos

    dos Ingaric com os quais tambm formam trs aldeias mistas Makuxi-Ingaric, entre os rios

    Cotingo-Ma (Santilli, 1989: 3).

    6 A Maloca da Raposa fica a 178 km de Boa Vista, e tem trs vias de acesso, na poca do vero: pela estrada do Passaro. atravessando de balsa o rio Uraricoera; pela BR 401, passando por Normandia; e pelo municpio de Pacaraima, atravessando a Maloca do Conto.

  • 1- Roraima. v n

    2

    u

    I a

    Guiana Inglesa G u

    a n a

    n

    I a

    p

    a

    16

    2- Roraima e suas trs reas geogrficas: ao norte, regio montanhosa; ao sul, a floresta

    amaznica; e no centro, a savana.

  • 17

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    3 -rea indgena Raposa/ Serra do Sol7

    7 Fonte dos mapas l, 2 e 3 (Freitas, 2003).

  • RORAIMA: Agrupamento indgena

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    WAPIXANA-MACUXI

    MAIONGONG

  • 19

    No Brasil, atualmente, o territrio Makuxi divide-se formalmente em quinze reas.

    Estas reas embora sejam indgenas encontram-se invadidas por fazendeiros, pequenos posseiros

    e ainda garimpeiros. Mesmo as terras Makuxi j reconhecidas oficialmente sofrem invases. A

    rea indgena (AI) Raposa/Serra do Sol, rea mais extensa, que abrange cerca de 2.000.000 ha.,

    comporta aproximadamente trezentas e trinta fazendas e um nmero enorme de garimpeiros,

    segundo o levantamento realizado pelo Grupo de Trabalho Interministerial para Identificao da

    rea Indgena Raposa /Serra do Sol em 1988. Por isso a maioria das referidas reas tem o

    processo de regularizao paralisado por litgio judicial (Santilli, 1989:3-4).

    A rea indgena Raposa/Serra do Sol8 tem uma populao com cerca de 15.000

    ndios, dos 37.000 que vivem em todo o Estado (dados da Funai referentes ao censo de 1996

    apud Freitas, 2003: 20).

    No dia 06 de janeiro de 2004, protestos comearam a ocorrer em Roraima por causa

    do anncio (feito quinze dias antes pelo ministro da Justia, Mrcio Thomaz Bastos) de que ser

    realizada, ainda nesse ms, a homologao da rea indgena Raposa/Serra do Sol como contnua.

    O grupo de manifestantes contrrios homologao da rea j demarcada como continua9

    formado por fazendeiros, garimpeiros, comerciantes, e mesmo por alguns ndios. Os no-ndios

    que esto contra a homologao temem ser removidos, enquanto os ndios temem o isolamento.

    O chefe de diviso de assistncia da Funai em Boa Vista, Manuel Tavares, acredita, contudo, que

    esses ndios esto sendo manipulados pelos plantadores de arroz do Estado. O Conselho Indgena

    de Roraima (CIR), por sua vez, favorvel homologao das terras indgenas Raposa/Serra do

    Sol como rea contnua (Folha de So Paulo, 08. 01. 04).

    L I Abordagem histrica.

    Ainda persistentes em nossos dias, as invases das terras indgenas podem ser

    irrefletidamente interpretadas como um fato da atualidade, no entanto, elas fazem parte da

    histria de contato entre ndios e no-ndios. No caso das terras indgenas em Roraima a entrada

    8 "festa rea. demarcada de fonna continua, encontra-se localizado o municpio de Uiramut e grande parte do municpio de Normandia; uma das excees a sede deste ltimo (Freitas, 2003: 20). 9 A rea continua envolve em seus limites fazendas e municpios que, ao longo do tempo, foram estabelecidos em reas tradicionalmente indgenas.

  • 20

    invasiva dos 'brancos' foi promovida pela pecuria (principalmente na regio do lavrado) e pela

    minerao (mais forte na regio de serra). A constituio do estado de Roraima, no que diz

    respeito sua existncia e formalizao para os 'brancos', tem em sua origem o trabalho

    pecuarista: "(...)o prprio crescimento de Boa Vista , em si mesmo, um indicador do avano da

    ocupao pecuarista nos campos do rio Branco, na medida em que toda sua populao estaria

    exclusivamente voltada para atividades relacionadas criao, venda de gado para Manaus,

    e ao comrcio de gneros relativos s necessidades dos fazendeiros at meados do sculo XX

    Desde ento, com o surgimento dos garimpos na dcada de 30 e de novas jUnes

    administrativas a partir da criao do Territrio Federal de Roraima em 1944, ocorreria uma

    diversificao das atividades da populao de Boa Vistd' (Santilli, 1989:30-31).

    Para Santilli as relaes intertnicas em RR tm sua peculiaridade, tendo em vista

    que a expanso da pecuria no levou expulso e/ou extino dos ndios, ao contrrio, os

    criadores buscaram envolver os ndios, o que no significa a ausncia de prticas violentas ou

    mesmo o no extermnio de grupos indgenas. Como registra o etnlogo Koch-Grnberg ((1917)

    1928, I apud Santill~ 1989) as etnias Wayumar, Sapar e Purukoto estavam se extinguindo,

    poca de sua passagem. Apesar desses episdios, o comportamento mais geral foi o de atrair os

    ndios para a sociedade envolvente: "os fazendeiros prefeririam investir no clientelsmo,

    estabelecendo com os ndios relaes de compadrio e de aliana, atravs do casamento com

    ndias, e levando crianas indgenas para serem criadas nas fazendas. Estes laos, a meu ver,

    revelar-se-iam um meio muito mais eficaz e duradouro de dominao. Como hiptese correlata,

    diria que a intermediao poltica exercida pelas lideranas, os assim chamados tuxauas, foi um

    fator fUndamental neste processo" (Santilli, 1989:42). A escolha deste procedimento est

    relacionada com a forma de implantao da criao de gado e, por conseguinte, da posse de

    terras. medida que os rebanhos marcados se movimentavam, pois eram criados soltos,

    ocupavam uma certa rea, acabando por legitimar a posse dessas terras aos donos das criaes.

    Por outro lado, o isolamento geogrfico dos criatrios privava os criadores do convvio com

    outros 'brancos' e, por outro lado, os avizinhava das malocas; o que lhes parecia uma situao de

    perigo em potencial.

    O trabalho de Santilli (1989) intitulado 'Os Macuxi: histria e poltica no sculo

    XX', ao tratar dos Makuxi acaba reconstituindo a histria de colonizao da regio roraimense

    que, segundo ele, no foi estabelecida poca da ocupao colonial portuguesa na bacia do rio

  • 21

    Branco, evento do sculo XVIII, visto que no promoveu uma colonizao civil na regio. O

    incio da ocupao civil s chegou a ocorrer nas ltimas dcadas do sculo XIX, promovido pela

    expanso da pecuria na rea que compreende a regio baixa do rio Uraricoera e mdia do rio

    Branco. E no sculo XX soma-se ao movimento pecuarista o estabelecimento de duas agncias

    indigenstas que vo participar, at meados do sculo, do processo de contato com os grupos

    indgenas: a misso da Ordem de So Bento e o Servio de Proteo aos ndios (SPI).

    Um dos objetivos de Santilli mostrar particularmente a atuao desses dois

    organsmos indigenstas no sistema poltico dos Makuxi, para tanto o autor defende a hiptese de

    que as atividades destas agncias foram possibilitadas pelo intermdio das lideranas indgenas

    tradicionais. A citao de Santilli (1989: 42), j mencionada aqui (p.20), faz aluso ao papel de

    mediador das lideranas indgenas. A relao dos grupos indgenas (da populao) com a

    sociedade no-ndia foi promovida pela figura do tuxaua, que o representante de uma maloca.

    A escolha do tuxaua feita pelos prprios membros de uma maloca, e a permanncia de um

    individuo nesse cargo depende, na maior parte das vezes, da aprovao ou no de seus atos pela

    comunidade.

    O estabelecimento do contato entre grupos indgenas e sociedade envolvente, tendo

    por mediador um tuxaua, pode ser apreendido na figura do tuxaua Makux lldefonso, que

    tambm foi o representante indgena oficial perante o Estado, uma vez que era uma liderana

    reconhecida pelos ndios e que igualmente atendia aos desgnios do governo. O convivio com os

    'brancos', estabelecido nas relaes com funcionrios do governo e, posteriormente, com os

    religiosos, o fizera merecedor do ttulo, dado pelo governo, de Tuxaua Geral. Ildefonso liderava

    uma grande maloca localizada s margens do regato Ana-ute, tambm chamado do Milho

    (Koch-Grnberg, 1979 I: 83 apud Santilli, 1989: 104), nas proximidades da Fazenda So

    Marcos10 Posteriormente sua maloca passou para uma rea ao norte, junto confluncia dos rios

    Surumu e Cotingo, onde a encontraram os beneditinos em fins de 1909. Outros representantes

    indgenas tambm chegaram a receber o ttulo de Tuxaua Geral, a exemplo de Ber, da aldeia

    Conto, no rio Cotingo, e Melquior, da aldeia Maturuca, no rio Ma. A capacidade de liderana

    10 A fazenda So Marcos uma das trs fazendas nacionais pertencentes ao Estado (as outras duas denominam-se So Bento e So Jos) cuja criao foi de iniciativa do governo da capitania de So Jos do Rio Negro na administrao de Manuel da Gama Lobo D' Almada, no ano 80 do sculo XVIII (Farage 1986 apnd Santilli 1989). A pecnria na regio do rio Branco foi implementada por uma iniciativa oficial que para tanto criou as fazendas da Coroa, posteriormente conhecidas como nacionais (Santilli, p.l9). So Marcos tambm rea indigena e corresponde ao terceiro bloco do territrio Makuxi com uma rea de 654.110 ha. (Santilli, 1997: 54).

  • 22

    entre os ndios e o tipo de atitude frente aos nacionais compunham o perfil de uma liderana

    indgena cuja funo devia ser agraciada com a outorga de ttulos (Santilli, 1989: 104-1 05).

    A atuao da misso beneditina e do SPI, nas primeiras dcadas do sculo XX,

    tinha por objetivo promover e estabelecer sua influncia junto populao indgena. A

    preocupao do SPI era a de destacar as fronteiras nacionais em relao s tnicas; enquanto a

    misso dos religiosos era expandir as fronteiras do catolicismo at as fronteiras nacionais,

    tornando os ndios cristos (Santilli, 1989: 74).

    Em 1915 o SPI instala-se em Roraima em um posto localizado na Fazenda So

    Marcos. Esta instalao tinha duas razes, tal como se encontra em Santilli (1989): uma que diz

    respeito constituio do prprio rgo estatal que era a de proteger formalmente as terras

    indgenas e, por outro lado, disciplinar a questo fundiria no pas (Lima, 1985; Oliveira Filho,

    1986 apud Santilli, 1989). A razo peculiar regio do rio Branco est relacionada negociao

    diplomtica sobre a fronteira Brasil/Guiana Inglesa que trouxe discusso pesadas acusaes

    feitas pela Inglaterra sobre a escravizao de ndios, naquela rea, que ocorreria com a

    conivncia do Governo Federal. A implantao do SPI na rea foi uma forma de responder a tais

    acusaes. Em 1927, mais de duas dcadas depois do estabelecimento da fronteira Brasil/Guiana

    Inglesa ainda era comum a passagem de ndios da regio brasileira para a Guiana motivada pelas

    violncias cometidas por fuzendeiros, o que preocupava o Estado-Maior do Exrcito na figura do

    ento Gal. Cndido Mariano Rondon: "Que diferena entre os ingleses da Guiana e os

    brasileiros da fronteira. Aqueles procuram chamar para o seu territrio todos os ndios da

    regio; estes escorraam seus patrcios das suas prprias terras, obrigando-os a expatriarem-

    se!" (Santilli, 1989:45-46).

    A misso beneditina, embora no tivesse experincia com o trabalho missionrio

    indgena, assumiu essa tarefa com os ndios na regio do rio Branco. E por no concordar com

    trabalhos anteriores realizados por outras ordens religiosas, fundamentou seus esforos de

    conquistar os ndios pela educao das crianas. O bispo e prelado da misso beneditina no rio

    Branco, D. Geraldo van Caloen, em conferncia realizada em 1919 no Centro Catlico do Rio de

    Janeiro, com o objetivo de angariar recursos para a misso, afirmava: "o segredo para o sucesso

    da catequese o respeito liberdade individual de cada um dos ndios. Nada de

    constrangimentos, nada do que se assemelha escravidfio (. .. ) H um segundo systema de

    aldeamento melhor ainda que o primeiro e mais efficaz porque est baseado em razes mais

  • 23

    profundas: o systema de educao completa de meninos e de meninas ndios, em internatos

    agrcolas, educao coroada pelo matrimonio christo e a fundao de um lar civilizada (...)

    Isto basta para a primeira gerao de meninos, apanhados nas mattas, ns e vadios, e que tem

    ainda no sangue os instinctos da natureza no rejreada por tradio ou por autoridade

    alguma ... " (Santilli, 1989: 59-60). V-se, por estas palavras, que o objetivo da misso era

    destituir os grupos indgenas de suas culturas, focalizando a ateno para a educao de crianas,

    em regme de nternato, afastando-as assim do convvo dos parentes e de suas prticas culturais.

    A misso beneditina acabou instalada no vale do Surumu (rea montanhosa ao norte

    de Boa Vista cuja populao era predomnantemente ndgena), depois de ser hostilizada pela

    maonaria, que na poca formava o grupo dominante em Boa Vista. Foi com a ajuda dos ndios

    que os missionrios construiram trs barraces s margens do alto Surumu. Instalados, passaram

    ento ao trabalho de evangelizao, que compreendia a celebrao de ritos litrgicos nas aldeias

    e as ativdades da escola que criaram (em 1910). O ensno distribua-se nas reas de

    alfabetizao, carpntaria e jardnagem (Santilli, 1989: 66).

    Em 1912, por motivo de doena (febre amarela), os missionrios foram obrigados a

    deixar a misso do Surumu. Os seis fundadores da misso ficaram reduzidos a trs. Estes

    passaram a morar, entre 1913 e 1915, na Serra Grande (ao sul de Boa Vista), de onde partiam

    para vsitar as aldeias e fazendas mais prximas. Em 1921, teve incio outra fase da misso

    beneditna com o envo de novos missionrios que se fixaram em Boa Vista, pois o clima de

    hostilidade tinha sido superado, alm do que a misso vnha com mais recursos11 Entre outros

    empreendimentos (abertura de estrada e criao de empresa agro-ndustrial), fundaram escolas,

    em regime de internato, para crianas indgenas (mennos e meninas) que funcionou at 1945

    (Santilli, 1989: 68-69)

    Desta nova fase destaca-se o missionrio Dom Alcuno Meyer que fez, a partir de

    1926, um trabalho bem atuante junto s malocas Makuxi. O periodo mais longo desta misso (foi

    at 1947) proporcionou um avano no trabalho de catequese. Com relao aos Makuxi, foi a

    primeira vez que um monge dominou o sistema da lngua possibilitando a doutrinao nessa

    lngua ndgena (Santilli, 1989: 69-70). At hoje Dom Alcuno lembrado como um padre

    Makuxi, o que mostra o grau de intimidade que ele alcanou com os Makuxi.

    11 Com a promoo do monge Dom Pedro Eggerath para a direo da Abadia beneditina no Rio de Janeiro.

  • 24

    Em suas viagens pelas malocas, com o objetivo de apreender a lngua, Dom

    Alcuno acabou tambm colecionando cento e cinqenta contos mticos. Mesmo tendo a

    preocupao de aprender a lngua para melhor catequizar, ele sabia que no conseguiria, pelo

    menos com os adultos, obter converses embasadas nas convices doutrinrias. A fluncia na

    lngua Makuxi, no entanto, lhe dava condies de uma certa igualdade lingstica que facilitava a

    promoo dos costumes cristos entre os ndios. Dom Alcuno menciona, na parte introdutria de

    sua coletnea de mitos 'Lendas Macuxis' (1951), a dificuldade de elaborar uma mensagem

    evangelizadora, tendo em vista o imaginrio das narrativas mticas (Santilli, 1989: 71-73):

    "nascimento, vida, morte, ressurreio, toda e qualquer

    mudana de estado e situao, tudo varivel, tudo possveL Predominam a a imaginao

    frtil, viva, destituda de lgica e bom senso. Tudo parece natural e nada impossvel. Os

    milagres narrados na Santa Escritura parecem prodgios insignificantes comparados com as

    transformaes contadas nas lendas indgenas" (apud Santilli, p.73).

    Este discurso nos permte observar quanto esforo foi e empregado para destituir

    os ndios de sua vida cultural, mesmo reconhecendo a dimenso de seu universo, ou talvez por

    isso mesmo.

    O SPI tambm investiu em escolas indgenas, sobretudo, em reas Makuxi e

    Wapixana, onde se verificava uma aproximao aos costumes da sociedade envolvente. S no

    ano de 1924 foram criadas quatro. A finalidade ento era o oferecimento de conhecimentos

    necessrios vida na sociedade no-indgena, como o conhecimento da lngua portuguesa. Em

    1927, dizia o inspetor, "muito necessria se torna a criao de escolas primrias nas zonas

    habitadas pelos silvicolas que se vo adaptando aos costumes da civilizao ... para torn-los

    teis ao engrandecimento da Patria e ao bem dafamilia" (Relatrio da 1 Inspetoria Regional

    Diretoria do SPI, 1927, ms. Museu do ndio apud Santilli, 1989: 81 ).

    O SPI e a misso dos benedtinos, parte suas fundamentaes, convergiram no que

    diz respeito formao de crianas em um ambiente escolar voltado para a educao que

    privilegiava a cultura dos 'brancos'.

    Um costume comum s farnilias de vaqueiros e de fazendeiros pioneiras, por sua

    vez, era o de adotar crianas ndias que viviam em malocas prximas s terras que os no-ndios

    ocupavam. A adoo era vista pelos funcionrios do SPI e missionrios catlicos como um ato

  • 25

    de explorao. Os etngrafos dividiam-se em sua anlise, h quem a entendia como o

    estabelecimento de uma relao de servido e outros como o ato mesmo de perfilhar. Riviere

    (1972) e Diniz (1972), que fizeram pesquisa etnogrfica na dcada de 1960, referem-se adoo

    como um constituinte de mobilidade etno-social que possibilitava a criana ndia (geralmente de

    sexo masculino), criada no trabalho da pecuria, a assumir o status de 'civilizado', contanto que

    apagasse sua vida anterior (Santilli, 1989: 75).

    A histria do ndio Gabriel um registro de vida indgena entre dois

    universos: o indgena e o no-indgena

    Gabriel Viriato nasceu na aldeia Makuxi da Raposa na dcada de 1920. Desde a

    inf'ancia foi criado afastado de seus parentes mais prximos; alm destes, os laos familiares se

    estendiam a uma extensa parentela constituda pela maioria da populao da Maloca da Raposa.

    Apesar de seu distanciamento por um longo tempo (poca em que trabalhou em fazendas, em

    garimpos; em que se entregou bebida; e at prestou servio militar, em poca de guerra -1945-)

    e, graas, sobretudo, sua extensa parentela, ele chegou a ser a principal liderana poltica da

    Raposa. Isto ocorreu por volta de 194 7, pouco depois de sua volta aldeia.

    Os representantes do SPI nomearam Gabriel para desempenhar duas funes:

    tuxaua da Raposa e delegado dos ndios para toda a regio do vale do Tacutu. Seu conhecimento

    da cultura regional, conseqente de sua longa vivncia fora da aldeia, aliado sua rede de

    parentesco foi relevante na deciso dos funcionrios do SPI em relao sua escolha para chefe.

    O cargo de tuxaua tinha um elo mais direto com o sistema poltico Makuxi,

    enquanto o de delegado de ndios, que tinha um alcance supra-aldeo, no lhes era

    compreensvel. Estes cargos, assumidos por uma mesma pessoa, acabavam agregando funes

    dspares, contraditrias, no caso, para a cabea de um lder como Gabriel Raposo: "A funo de

    delegado aquele de capturar quem malfeitor, quem criminoso, quem rouba e come animais

    dos brancos ... Vi que no era uma boa coisa, que me causava muitas inimizades com os parentes

    e com os brancos e ento apresentei a minha demisso ao chefe da inspetoria e retomei o cargo

    de tuxaua (G. V. Raposo, 1972: 39 apud Santilli, 1989: 135).

    O papel de tuxaua, que poca era o intermedirio poltico institucionalizado,

    apresentava tambm contradies quando comparado chefia tradicional. Contradies que se

    mostram transparentes, ao considerarmos, por exemplo, os casos de invases das terras indgenas

    e as agresses fisicas, morais sofiidas pelos ndios. "As contradies inerentes intermediao

  • 26

    poltica se acirram na razo direta do avano sobre as terras indgenas em Roraima, processo que

    se intensifica a partir dos anos quarenta" (Santilli, 1989: 136-137).

    Um relato de Gabriel sintetiza bem os apuros que os ndios passam em

    conseqncia das relaes que estabelecem com os no-ndios e das expectativas que nutrem

    com base no sinal de amizade feito pelos 'brancos'.

    "Meu pai, que era tuxaua, consentiu que o branco entrasse nas terras da maloca da

    Raposa.

    O branco chegou e disse:

    - Compadre, eu farei minha prpria casa ali. Eu no tomarei a sua terra,

    compadre; eu no quero terra mas trazer e colocar aqui o meu rebanho. Mas fique tranqilo, eu

    no tomarei a sua terra. Ocuparei somente o tempo necessrio para tratar o meu rebanho que

    est disperso nos campos, mas durante o tempo que estiver aqui, serei muito gentil com todos

    vocs : a haver carne, haver leite, ser muito bom para vocs.

    Papai disse:

    - Est bem, compadre. Se como voc fala, pode ficar aqui.

    Ento o branco construiu a sua casa, levantou o curral para os animais e prometeu

    dar um quarto da carne. Papai ficou animado, porque a fome no brincadeira. A primeira vez

    que o branco abateu um animal, deu o quarto prometido e papai disse:

    -Por Deus! Que patro bom.

    Quando o branco abateu o segundo animal, disse:

    - Olha, compadre, a carne est ficando muito cara. No posso mais dar-lhe um

    quarto, no posso mesmo. Toma um talho.

    Da terceira vez disse:

    - Compadre, carne mesmo eu no posso dar-lhe. Contente-se com o bucho, os ossos

    e a cabea do animal.

    Da quarta vez disse:

    Veja bem compadre. Eu no posso mais dar-lhe coisa alguma, sabe. Nem o bucho e

    nem as vsceras. Voc bem sabe que seno no teremos sabo: minha esposa no far sabo ... E

    passou um, dois, trs, quatro anos e o branco no deu mais nada. Passaram-se muitos anos e

  • 27

    quando se foi, em vez de deixar tudo como quando havia chegado, vendeu a terra para !saias

    Madeira ... o preo foi um cavalo. E Raposa passou a !saias Madeird' (G. V. Raposo).

    S muitos anos depois, e de vrios repasses em mos no-ndias, poca da

    liderana de Gabriel, mais precisamente em 1963, essas terras voltaram a ser, via negociao

    comercial, dos Makuxi.

    Conflitos entre ndios e no-ndios continuam a ocorrer atualmente e so

    evidenciados pelas invases de terras indgenas e mortes de ndios. A Fundao Nacional do

    ndio (Funai) tinha registro de dezesseis mortes violentas em meados de 2003, o que mostra,

    segundo o Conselho Indigenista Missionrio (Cirni), o dobro de mortes comparando ao ano

    anterior (Folha de So Paulo, 28.07.03). A homologao, que a ltima fase do reconhecimento

    das terras indgenas, ao no ser concluda, acaba gerando mais conflitos entre ndios que

    solicitam reintegrao de posse e 'brancos' que querem subtrair das terras indgenas as cidades e

    plantaes que se encontram nestes territrios.

    Um desses conflitos acabou na morte do ndio Makuxi Aldo da Silva Mota, de 52

    anos, cujo corpo foi encontrado no inicio de janeiro na Fazenda Retiro, rea que pertence

    reserva Raposa/Serra do Soe2 (RR), que est para ser homologada. De acordo com o Conselho

    Indgena de Roraima (CIR), Aldo foi atrado fazenda, que pertence a um vereador, com um

    recado de um empregado para ir resgatar, na propriedade, um gado da Maloca. Sete dias depois

    da ida de Aldo fazenda, depois de buscas feitas para encontr-lo, o sobrevo de urubus na

    referida fazenda levou descoberta do corpo. O legista do Instituto Mdico Legal de Roraima

    concluiu ser a causa da morte "natural e indeterminada". A pedido do CIR e do procurador da

    Repblica em RR o corpo foi levado para exame em Braslia, e os legistas constataram que a

    morte de Aldo foi provocada por um ferimento a bala, nas costas. Quer dizer, enquanto o legista

    de RR registrou no ter observado "macroscopicamente leses viscerais ou hemorragias difusas

    ou localizadas", os mdicos em Braslia concluram que "os achados necroscpicos indicam

    inequivocamente disparo de arma de fogo no trax". Sua morte ocorreu no mesmo dia de seu

    desaparecimento, ou mais claramente, de sua ida fazenda Retiro, em 02 de janeiro de 2003

    (Folha de So Paulo, 23. 03. 03).

    12 A rea calculada da reserva de 1.75 milho de hectares (Folha de So Paulo, 28.07.03). Tambm h o registro de que seja 1.678.800 ha. (Sautilli, 1997:53).

  • 28

    I. 2 Residncias e famlia.

    Fontes do sculo XIX fazem referncias a casas Makuxi do tipo casas comunais.

    Em cada uma delas habitavam de trinta a sessenta pessoas (Schomburgk, 1922-1923;

    Schomburgk, 1903 apud Santilli, 1997: 56). Atualmente as malocas so compostas

    de casas pequenas ocupadas, em sua maioria, por familias nucleares; no entanto, no h

    impedimentos formao de famlias extensas, que compreendem, alm do ncleo famliar,

    outros parentes agregados. O nmero de casas por Maloca abrange uma faixa de vinte (as

    menores) podendo chegar at setecentas (as maiores). A conformao das malocas no

    demonstra de imediato sua morfologia social. As casas parecem estar distribudas de modo

    aleatrio, mais comumente s margens dos igaraps ou ao longo das vertentes das serras, o olhar

    mais atento perceber que conjuntos ou agrupamentos de casas correspondem a parentelas

    (Santilli: 1997: 56); a disposio das casas toma a forma de ruas, ou seja, tem um formato linear.

    Ao longo do sculo XX, houve conformaes diversas das malocas Makuxi: umas

    apresentando uma grande casa comunal, de base circular ou ovalada, que so as ocupadas por

    vrios grupos domsticos (Farabee, 1924 apud Santilli, 1989: 95), ou ainda malocas que

    integram pequenas casas de forma retangular13 (estas comportam as familias nucleares); h ainda

    maloca constituda por apenas um ncleo domstico. Santilli (1989: 95-96) infere de registro de

    cronistas (de D. Alcuno Meyer ao Arquiabade do Mosteiro de So Bento, 10-01-1940, ms) que

    o uso de moradias menores foi intensificado com o estreitamento do contato com os no-ndios.

    A populao na Maloca da Raposa de aproximadamente 600 pessoas, distribudas

    em 100 famlias nucleares. Sua densidade demogrfica a maior da rea indgena Raposa/Serra

    do Sol (Freitas, 2003: 22).

    13 Empregam madeiras e argila na armao e nas paredes laterais das casas e folhas de palmeiras, especialmente as do buriti, na confeco da cobertnra (Santilli, 1997: 60).

  • 29

    I. 3 Meio ambiente e atividades de subsistncia.

    Os nos nas terras Makuxi apresentam cursos fonnados ora por trechos

    encachoeirados na regio das serras, ora por extenses de profundidade pequena, no lavrado. Por

    isso a navegao no uma prtica caracterstica do grupo.

    O clima marcado por duas estaes bem ntidas: o perodo das chuvas que

    abrange os meses de maio a setembro14; e o do vero, em que a estiagem se apresenta, nos meses

    de novembro a maro. Nos meses de vero, a vegetao dos campos vai ficando seca e

    esturrcada, e as folhagens verdes ficam restritas s partes de terras prximas s margens dos rios

    e igaraps que, em sua maioria, por serem interrntentes (deixam de verter gua), acabam por

    secar no auge da estiagem. Quando isso ocorre os ndios ainda tm como recurso hdrico os

    poos nos leitos secos e os lagos naturais da regio (Santilli, 1997: 59).

    na estao seca que os Makuxi mais pescam. So diversos os recursos utilizados

    na pescaria: com flecha, lanas, arpes, fisgas, jiquis, anzis e redes. Costumam pescar em grupo

    ou isoladamente. Quando esto em grande nmero de pessoas, costumam usar timb e bordes

    na pescaria, cercando os peixes nos lagos ou em cursos de gua represados (Santilli, 1997: 60).

    A agricultura dos Makuxi a chamada de coivara, ou seja, suas atividades so

    regidas por um ritmo cclico anual15 Cultivam mandioca, milho, car, inhame, batata doce,

    banana, melancia, entre outros cultivos em menores propores, que variam por malocas.

    Prximo ao final do perodo de estiagem (nos meses de janeiro e fevereiro) os

    Makuxi preparam a rea de cultivo com a derrubada das rvores. Na seqncia, deixam os

    troncos e galhos derrubados secarem por algumas semanas e a (aos primeiros sinais de chuva)

    queimam a vegetao. Com a terra limpa, eles comeam o plantio no ms de abriL Estas tarefas

    so realizadas pelos homens. a partir do plantio que as mulheres assumem as roas.

    Os ndios Makuxi tambm se dedicam, em coletividade, criao de pequenos

    rebanhos de gado, resultado de projetos inciados pela Diocese de Roraima e o Governo do

    14 H uns trs anos um nibus comeou a fazer viagens semanais de Boa Vista Maloca da Raposa, pela estrada do Passaro; o tempo em mdia dessa viagem de seis horas. Na poca das chuvas a Maloca da Raposa tende a ficar isolada por via terrestre. 15 "O territrio Macuxi compreende mna pequena pane do macio das Guianas - mna das formaes geolgicas mais antigas do continente sul-ameriacano -, onde os solos enconmun-se em estado avanado de laterizao, apresentando afloramentos predontinantemente grauiticos e arenosos, extremamente pobres em matria orgnica e imprprios para a agricultura intensiva" (Santilli, 1997: 58).

  • 30

    Estado de Roraima16 Tanto a criao de bovino quanto a de suno (esta feita pelas famlias

    individuais) so indispensveis atualmente nas malocas devido escassez de animais de caa. No

    entanto, a carne bovna ainda no faz parte da alimentao diria dos Makuxi. O abate feito

    geralmente em ocasies festivas (Santilli, 1997: 61).

    Os Makuxi da Maloca da Raposa criam animais de pequeno porte como galinhas e

    porcos; cultivam rnlho, feijo, batata, arroz, mandioca e frutas como banana, laranja, melancia,

    abacaxi e manga. Entretanto, so poucos os que se dedicam ao plantio; menor ainda o grupo

    dos que possuem retiros (reas distantes das casas nas quais so feitos os roados ou em que fica

    o gado). H anda, numa rea alagada prxima aos buritizais, e afastada das casas, uma plantao

    de melancia de responsabilidade de uma associao comunitria de plantio de melancia (Freitas,

    2003: 23).

    O fato dos Makuxi viverem em regio de lavrado, com sua vegetao rasteira, que

    habitat de animais de pequeno porte, provavelmente no os estimulou a serem por tradio

    caadores. Sendo assim, mesmo antigamente, davam preferncia pesca e coleta de frutos

    silvestres como caju, buriti, murici, bacaba e tucum. Freitas (2003: 23) ainda afirma que "todas

    essas prticas de aquisio de alimento esto muito abandonadas, vndo a ser substitudas pela

    compra ou at ganho e, como isso no constante, as necessidades so muitas".

    I. 4 O sentido de propriedade para os Makuxi.

    A concepo de bens pessoais ou familiares para os Makuxi est relacionada ao

    resultado de seu trabalho. Desta forma, a apropriao pessoal ou familiar envolve suas casas, os

    roados cultivados, os objetos de uso pessoal e/ou familiar, nstrumentos agrcolas, de caa e

    pesca. exceo dos objetos pessoais confeccionados ou adquiridos pela prpria pessoa, no

    mais no se estende a concepo de propriedade particular ou restrita a um grupo e

    conseqentemente sua hereditariedade. Quer dizer, enquanto um individuo usufrui de um bem,

    ele tem a garantia de sua posse. Por exemplo, uma casa, ao ser abandonada, tem a possibilidade

    de ser ocupada por outro ndio, independentemente de sua ligao com o morador anterior.

    16 Na dcada de 1960, o ento tuxana da maloca da Raposa, Gabriel Viriato Raposo, depois de muitos problemas com fazendeiros donos de rebanbo, incentiva os ndios criao do prprio gado (Santilli, 1989:141).

  • 31

    A concepo de propriedade que os Makuxi desenvolveram est muito ligada de

    cuidado, de ateno, de usufiuir e no destruir, como se a posse 'real' estivesse no plano

    mtico: "As terras, as guas, os minerais, como a fauna e a flora existentes alm do domnio

    estrito da aldeia e dos terrenos cultivados, no so concebidos como bens passveis de serem

    convertidos em propriedade pessoal, sequer coletiva, dos ndios. So concebidos como domnios

    no humanos, de outras espcies de seres vivos que habitam o nosso mundo. Assim, as guas e

    os seres aquticos pertencem ao domnio prprio ordenado pela me das guas; as matas, as

    serras so domnios diferenciados de outras tantas espcies que nelas residem e gerem as

    respectivas foras vitais dos seres animais e sobrenaturais, enfim, seres que podem adquirir

    mltiplas formas, mas que, via de regra, apenas podem ser vistos pelos pajs" (Santilli, 1997:

    62). Talvez esse desprendimento seja um dos facilitadores da entrada e permanncia dos no-

    ndios em suas terras, que, por sua vez, tm uma viso de posse bem distnta da dos Makuxi.

    L 5 A mulher Makuxi.

    As mulheres Makuxi usam seu tempo no cuidado dos filhos, na manuteno da

    limpeza da casa e das roupas, no preparo de alimentos, no cuidado das roas e, anda, muitas

    delas trabalham na confeco de panelas de barro. Inclusive, na maloca da Raposa, elas

    fundaram um clube17 que tem como uma de suas finalidades criar um espao no qual as mulheres

    possam produzir e comercializar suas panelas de barro.

    O Clube de Mes 'Vov Damana' um espao onde so fabricadas panelas de

    barro; onde so feitos trabalhos de corte e costura, e onde tambm eventualmente ocorrem cursos

    de artesanato, promovidos por rgos do governo. O trabalho com palha mais tarefa dos

    1' O Clube de Mes foi criado em 1984. a partir da necessidade de se costurar os uniformes dos alunos da escola (na

    poca, de 1' grau). O tecido foi doado pela Secretaria de Educao; uma professora conseguiu uma mquina de cosmra na Legio Brasileira de Assistncia - LBA e a ela se juntaram outras mes, uma ou outra levando suas prprias mquinas (Freitas, 2003: 35).

  • 32

    homens18, mesmo assim algumas mulheres tranam palha de buriti, produzindo pequenos objetos

    como bonequinhas e adornos (colares, chapus e pulseiras).

    A mulher que ocupa a presidncia do clube uma figura feminina de grande

    destaque na Maloca da Raposa, pois o cargo a toma interlocutora da comunidade junto aos

    rgos do governo responsveis pelos cursos oferecidos comunidade e pelas feiras, na capital

    como em outros estados do Brasil, de produtos manufaturados pelo Estado. Essa comunicao

    tem permitido a divulgao do artesanato Makuxi, sobretudo de suas panelas. Com isso as

    panelas Makuxi esto se tomando referncia tnica do grupo e, em especial, da Maloca da

    Raposa (Freitas, 2003: 35).

    L 6 Educao escolar indgena.

    A presena do ensmo formal nas aldeias conseqncia da intensificao das

    relaes entre os ndios e a sociedade envolvente.

    Freitas (2003), fazendo uma retrospectiva da educao escolar indgena no Brasil e,

    ma1s especificamente, em Roraima, lembra que, na dcada de 1950, as lnguas nativas dos

    diversos grupos eram subtradas, pois a alfabetizao era feita apenas em portugus. Por volta do

    final dos anos 60, a Funa e lingistas do SIL19 j manifestavam ateno alfabetizao nas

    lnguas indgenas, contudo, esta era feita apenas como um meio para se chegar ao ensino da

    lngua portuguesa. A educao indgena era ento "o principal instrumento de integrao

    sociedade nacional e/ou de catequizao" (Freitas, 2003: 42).

    A chamada 'educao indgena', nos anos 80, vem como um contraponto

    'educao para o ndio' que tinha em seu bojo um processo formal distanciado da natureza da

    aprendizagem tradicional indgena. Kalm (1994 apud Freitas 2003: 42) mesmo assim

    18 As peas confeccionadas pelos homens so o 'jamaxim' (tipo de cesto que usado nas costas para carregar alimento colhido ou coletado), vassoura, chapu, cesta, bolsa, peneira e 'tipiti' (tranado comprido utilizado para espremer a massa de mandioca no preparo da farinha); usam nesse trabalho palhas de huriti, jacitara, inaj e arum (Freitas: 2003:35). 19 Summer Institute ofLinguistics.

  • 33

    desconsidera a aplicao da expresso 'educao indgena' ao modelo de escola, considerando

    que os programas educacionais que implementam os processos de ensino-aprendizagem tm por

    parmetro a escola formal dos no-ndios.

    Atualmente a concepo que melhor se aplica ao ensino implementado nas aldeias

    a de 'educao escolar indgena'. A introduo do termo 'escolar' terminologia da educao

    indgena distingue o ensino formal do informal ou, mais precisamente, do referente s tradies

    culturais indgenas (Freitas, 2003: 43).

    A igreja catlica foi a primeira instituio social a se dedicar educao formal dos

    ndios, claro que sua preocupao primeira era a catequese. Em Roraima, afora a igreja catlica,

    antes mesmo que o MEC substitusse a Funai no que diz respeito educao formal, o governo

    estadual procurou assum-la, isso por volta dos anos 70.

    O 'Centro de Formao de Lderes indgenas', criado em Roraima ainda no final da

    dcada de 70, como o prprio nome anuncia tinha por objetivo preparar lideranas indgenas. Em

    1981 esta escola passou a funcionar na vila Surumu que pertence ao municpio de Uiramut que,

    por sua vez, est inserido na rea indgena Raposa/Serra do Sol. Esta transferncia foi

    reivindicada pelos ndios que queriam as escolas atendendo s comunidades nas prprias reas.

    Por solicitao do MEC, em 1985, houve o 'Dia D da Educao', evento que reuniu

    professores, lideranas, tcnicos em educao e religiosos na Fazenda So Marcos, local que

    rene tradicionalmente os ndios da regio20 A questo que norteou esse encontro foi 'Que

    escola temos, que escola queremos?'. A partir dela vieram as reivindicaes. No ano seguinte, a

    Secretaria de Educao criou o Ncleo de Educao Indgena -NEI- (posteriormente passou a

    ser DEI, uma dviso) com o objetivo de coordenar os trabalhos e as atividades educacionais nas

    escolas em reas indgenas (Freitas, 2003: 43).

    A escola indgena passou a ter uma constituio voltada para o auto-gerenciamento

    de seu curriculo e materiais ddticos, com isso ela garante uma educao que contempla a

    realidade de cada grupo. Freitas (p.46) ressalta, no entanto, que o termo 'realidade' aplicado

    lngua e cultura tradicional pode ser uma simplificao do que se mostra complexo em relao

    a lnguas e culturas existentes.

    Os eventos que envolvem os ndios, em Roraima, so, na mawna das vezes,

    norteados e representados por lideranas e/ou professores de malocas diversas. Acredita-se que

    2 Como est dito acima, Fazenda So Marcos nome de uma terra indigena.

  • 34

    os representantes tomam suas posies em consonncia com as decises de sua comunidade

    (decises das reunies chegam maloca e vice-versa). " um processo extremamente dinmico,

    muito di:ficil precisar quem exatamente levanta as "bandeiras", ou quem as segue

    verdadeiramente na prtica do dia a dia dentro de cada comunidade ou, mais especificamente,

    dentro de cada sala de aula" (Freitas, 2003: 46).

    No dia-a-dia as escolas indgenas trabalham com um contedo muito prximo do

    veiculado pelo ensino formal nacional. A diferena maior est nas aulas de lnguas indgenas

    ministradas em algumas escolas (o ensino nas malocas Y anomami diferenciado porque todos

    os contedos so repassados na lngua nativa).

    O corpo de professores que atende as escolas indgenas em Roraima formado por

    cerca de 680 ndios21, destes 470 tm titulao em magistrio. A maioria da etnia Makuxi e em

    nmero menor h os professores de etnia Wapixana. So atendidos aproximadamente 11.000

    alunos (Freitas, 2003: 50).

    21 Alm deles. h ainda 63 professores no-ndios lecionando em escolas que funcionam em reas indigenas.

  • 35

    II. A Geometria de Traos das Consoantes.

    A noo de traos distintivos j est presente nos trabalhos do Crculo Lingstico

    de Praga nos anos 30. a idia subjacente noo de correlaes opositivas, formalizada por

    Troubetzkoy. Posteriormente foi explicitada e desenvolvida na teoria de traos distintivos de

    Jakobson, segundo a qual "todas as distines de todos os fonemas de todas as lnguas ( ... ) se

    decompem indefectivelmente em oposies binrias simples. De maneira geral, todos os

    fonemas de todas as lnguas - quer vogais, quer consoantes - se resolvem fatalmente em

    qualidades distintivas irredutveis e de larga amplitude. No so os fonemas, mas essas

    qualidades distintivas, que vm a ser os elementos primrios da fonologia lxica" (Jakobson

    1939 apud D'Angelis 1998: 34).

    Para D' Angelis (1998: 35) "foi a fonologia gerativa, inaugurada por Chomsky &

    Halle (1968), que deu teoria dos traos distintivos os instrumentos para produzir a expresso

    formal conseqente de seus princpios tericos". E foram estes autores que primeiro apontaram

    para uma hierarquizao dos traos quando, comentando a prpria classificao dos traos

    distintivos em SPE ("Major Class Features", "Cavity Features", "Manner of Articulation

    Features", etc.), sugeriram: "It seems likely, however, that ultimately the features themselves

    will be seen to be organized in a hierarchical structure ... " (Chomsky & Halle, 1968: 300).

    Essa hierarquizao efetivamente encontraria amparo e expresso na vertente ou

    mdulo da fonologia auto-segmenta! denominada Geometria de Traos, inaugurada por

    Mohanan (1983) e desenvolvida, entre outros, por Clements (cf D'Angelis 1998: 74 ss). Muitas

    foram as propostas de "configurao" de geometrias de traos, sobretudo nos primeiros dez anos

    de desenvolvimento da teoria.

    No presente trabalho sigo a configurao proposta por Clements & Hume (1995),

    seja por sua ampla aceitao (no isenta de crticas), seja pelo papel central de Clements no

    desenvolvimento das geometrias.

  • 36

    Para Clements & Hume (1995), a geometria de traos dos segmentos

    consonantais tem a seguinte configurao:

    rsonorant ~ approximan r o -vocoid stricted oral cavity

    [ voice]

    [cont]

    C-place

    [anterior [ distributed]

    A anlise fonolgica da lngua Makuxi a que nos propomos toma como referncia

    principal o trabalho de Clements & Hume ( 1995), sem deixar, contudo, de lanar mo de

    algumas importantes elaboraes de Troubetzkol2 na formalizao da teoria fonolgica.

    Nos primeiros contatos com a manifestao fontico-fonolgica da lngua Makuxi

    chama ateno um possvel 'vozeamento ' 23 de consoantes obstruintes [ cont] diante de

    alongamento voclico, ou de segmento [-cont] glotal24, ou ainda frente consoante nasal ou

    02 Participante do Crculo Lingstico de Praga, que teve seu incio em 1926. Antor do livro 'Grundzge der phonologie' (Princpios de fonologia), escrito na dcada de 1930, no qnal h referncia a aproximadamente duzentos sistemas fonolgicos. Farei meno deste livro pela publicao francesa de 1948. 23 As aspas na palavra 'vozeamento' quer significar a primeira impresso que se tem da relao entre pares homorgnicos dos segmentos [cont], ou seja, uma meno ainda desprovida de anlise. 24 A anlise adiante mostrar que o segmento [-cont] [7], ao contrrio do que registram outras anlises da lngua

    Makuxi, no glotal, e sim um segmento destitndo de ponto de articulao ( debucalizado) que, na implementao

  • 37

    vogal nasalizada. A discusso central deste trabalho est pautada nos traos fonticos e

    processos fonolgicos que podem ser os responsveis pelo chamado 'vozeamento' dos

    segmentos obstruintes, nos ambientes j especificados.

    Tomando como ponto de partida a geometria de traos das consoantes formulada

    por Clements & Hume (1995) e pensando no componente fontico-fonolgico da lngua em

    estudo, assumiremos outras formalizaes da geometria de traos consonantais s quando a

    organizada por Clements & Hume no abranger os fenmenos focalizados.

    Um reparo que pode ser feito disposio dos traos na geometria formulada por

    Clements & Hume diz respeito localizao do trao [cont] sob o n Cavidade Oral. Diante da

    ocorrncia de um som [ -cont] cuja obstruo se faz na regio glotal, no faz sentido localz-lo

    na rvore sob o n Cavidade Oral. D' Angelis (1988: 1 05) faz uma apreciao sobre a alocao de

    [cont]: "Em muitas lnguas, o que toma uma consoante descontnua uma obstruo na regio

    glotal ou faringea. No parece fazer sentido anotar, a tais segmentos, um carter [-contnuo] sob

    um n que no rene a constrio responsvel pela presena daquele trao". Por isso assumimos

    a alocao do trao [cont] sob o n Raiz como prope Sagey (1986), para quem os traos

    alocados diretamente ao n Raiz atribuem o grau de constrio articulatria dos sons. Alm do

    que, ainda segundo Sagey, o fato de estarem ligados diretamente ao n Raiz proporciona sua

    aplicao a qualquer articulador, justamente pela ausncia de ligao com qualquer articulador

    em particular:

    cont cons

    Outra anotao a ser feita geometria de traos proposta por Clements & Hume diz

    respeito monovalncia dos traos terminais sob o articulador [ coronal].

    Troubetzkoy (1948:76-80), tratando da classificao lgica das oposies

    distintivas, menciona, entre os tipos de relaes existentes entre os membros de uma oposio

    fontica, produzido com ponto de articulao [glotal]. Alm do que, tambm mostraremos que, ao invs de apenas um segmento [-cont] debucalizado, a lngua apresenta dois, sendo distintos qnanto ao trao [aprox]. O [-aprox] ser

    conhecido pela representao!?!, enquanto o [+aprox], por n'l.

  • 38

    fonolgica, a oposio privativa25 na qual um membro caracterizado pela presena de uma

    marca, enquanto o outro por sua ausncia. Usa para tanto as noes de marcado e no-marcado

    que determinam, respectivamente, um membro da oposio que identificado pela presena de

    certa marca (ou trao); enquanto o no-marcado no apresenta essa marca. E acrescenta que, de

    todas as possveis relaes entre dois fonemas, a relao privativa a que mostra com evidncia

    a presena ou ausncia de certas propriedades desses fonemas.

    Wilmar D' Angelis, em comunicao pessoal (2002), prope que os traos [anterior]

    e [distribudo] sejam privativos, sendo marcados os valores [-anterior] e [+distribudo ]26 Esta

    proposta diferencia-se da configurao que se encontra em Clements & Hume. Essa alternativa

    justifica-se pela possibilidade de simplificar, por exemplo, a explicao do processo de

    assimilao que resulta em palatalizao. Os grupos de segmentos consonantais [s, z; n]; [, J, 3,

    Jl] recebem, respectivamente, com o trao privativo a atribuio de [ coronal], enquanto o

    segundo grupo ser especificado pelos traos [ coronal], [ -ant] e [+distribudo].

    Assim, a consoante nasal /n/, de acordo com Clements & Hume (1995),

    caracterizada pelos traos [ coronal], [+anterior] e [-distribudo], enquanto a vogal // e a

    consoante palatal [Jl] so reconhecidas pelos traos [-anterior], [+distribudo], alocados sob

    [coro na!]. Com a noo de monovalncia dos traos passam a ter a seguinte identificao: /n/

    passa a ser reconhecida apenas pelo trao [coronal] e a consoante palatal [Jl] e a vogal // pelos

    traos [coronal], [-ant] e [+distribudo]. Assim o processo de palatalizao, por exemplo, da

    consoante [ n] junto vogal // envolver unicamente o espraiamento dos traos [ -ant] e

    [+distribudo], sem que seja necessrio um prvio desligamento de traos.

    25 Troubetzkoy trata, alm da oposio privativa, das oposies gradual e equipoleute. A oposio fonolgica gradual envolve oposies nas quais os membros so caracterizados por gradaes de mna mesma propriedade. A oposio eqipolente, por sua vez, envolve oposies entre segmentos que so equivalentes, ou seja, no resultam nem de gradaes de mna propriedade, nem da presena ou ausncia de mna propriedade. 26 Ou seja, [+anterior] e no-distribuido so valores no-marcados.

  • In! I

    R

    co

    I c

    [coronal]

    li! => [Jl] I R

    co

    I r Voclico

    I PV

    I [ coronal]

    [ -~istribudo]

    39

    Por fim, a participao do trao [ soante] no n Raiz implica, no caso de ocorrer um

    espraiamento de trao relacionado soanticidade, no custo de acabar copiando toda a

    configurao de um segmento, gerando inclusive segmentos geminados, sem contudo explicar o

    processo do espraiamento que eventualmente compreende apenas soanticidade. Como h indcio

    de que o trao [ soante] esteja envolvido no processo de 'vozeamento' que queremos explorar na

    lngua Makuxi e em conseqncia de no termos notado a participao concomitante do

    espraiamento dos demais traos de um segmento [+soante] nesse processo, no assumiremos a

    alocao desse trao no n Raiz da geometria de traos de um segmento consonantaL

    Piggott (1992) desenvolveu uma anlise alternativa voltada a processos de

    harmonia nasal com o emprego de dois outros ns: Soft Palate (SP) e Spontaneous Voicing (SV).

    O primeiro ter sua representao na geometria dos traos de uma dada lngua se esta estabelecer

    a oposio fonolgica entre os sons orais e nasais. Quanto ao n SV, sua presena sempre certa

    nas linguas naturais, considerando que qualquer sistema fonolgico diferencia segmentos

    voclicos dos consonantais, ou seja, o n SV corresponde soanticidade. No caso desse n ser

  • 4U

    pertinente para as consoantes, ele ser o responsvel pela distino entre segmentos soantes e

    obstruintes.

    A relao surdo versus sonoro dos componentes fonolgicos numa lngua conduz

    participao do trao [voz], sob o n Laringeo, na formao de sua geometria de traos. No

    entanto, se o 'vozeamento' observado decorre da oposio entre o modo obstruinte e o soante, o

    n SV o que respalda essa composio de sons.

    Troubetzkoy (1948:159), reportando-se ao grau de obstruo que distingue os sons

    obstruintes dos soantes, dispe as consoantes obstruintes [ -cont] em um ponto extremo s

    soantes, e em posio intermediria localiza as consoantes [ +cont]: "La classification usuelle des

    cosonnes en occlusives, fricatives et sonantes doit tre considre comme une classification

    d' apres les degrs d' obstacle. Le plus haut degr d' obstacle existe dans les occlusives, !e degr

    moyen dans les fricatives, et !e degr !e plus faible dans les sonantes (qui peuvent se rapprocher

    de I' "absence d' obstacle" qui constitue I' essence des voyelles, sans toutefois parvenir

    l'atteindre)". Tal classificao focaliza-se no grau de constrio de realizao de um segmento e

    mostra que consoantes soantes tm uma produo articulatria que as aproxima das vogais.

    Entretanto, as consoantes, mesmo que sejam classificadas como soantes, no se igualam s

    vogais quanto ausncia de obstculo em sua produo. O que queremos ressaltar dessa

    classificao que a formao de um obstculo no momento de realizao de uma consoante no

    a impede de ser soante.

    Rice (1993), tratando do trao SV, admite sua aplicao, alm das soantes, a

    segmentos que na maior parte das vezes so interpretados como obstruintes27 A essas

    consoantes obstruintes que recebem o trao SV, Rice as denomina 'obstruintes soantes'28 Estas

    consoantes assumem o lugar de soantes no sistema que integram, ou so obstruintes que recebem

    vozeamento de soantes, ou ainda obstruintes que alternam com soantes ou assumem sua funo.

    Embora D' Angelis avalie as 'obstruintes soantes' como falsas obstruintes, uma vez que

    funcionalmente so soantes, o importante dessa discusso a percepo de que segmentos que

    27 Rice (1993: 308), tratando dos tipos de vozeamento, menciona o trao [voz] e o 'spontaneous or sonorant voice (SV)': "The first type ofvoicing is found only in obstruents, while lhe second type is found in sonorants (including vowels) and may under certain circumstances, be found in sounds that are generally lhought o f as obstruents. It occurs in obstruents lhat I term 'sonorant obstruents'. namely, obstruents that take lhe place o f sonorant in a system, obstruents lhat receive voicing from sonorants, and obstruents lhat altemate wilh sonorants -in short, obstruents lhat pattern togelher wilh sonorants or function as sonorants in a language". 28 D'Angelis (1998: 227) discorda do tratamento dessa autora (1993) para as 'obstruintes soantes': "No me parece ter sentido falar em "soantes obstrnintes" (como Rice 1993) pois, no caso, no passam de falsas obstrnintes'.

  • 41

    geralmente so reconhecidos como obstruintes [+voz] podem tambm receber o tratamento de

    soantes, a depender da relao que estabelecem com os demais segmentos soantes da lngua, e

    tambm da relao das soantes com os segmentos obstruintes do mesmo sistema fonolgico.

    O trao SV no binrio, nem representa um n articulatrio. Quando o trao

    [nasal] alocado sob SV, este recebe o tratamento de n; no caso de no apresentar ramificao,

    tratado como um trao.

    Vejamos as configuraes fonticas que indicam a presena de SV:

    -Se [nasal] est presente em consoantes com SV, h indcio de que as consoantes

    foram produzidas com vozeamento espontneo advindo da abertura do canal nasal, ou seja,

    houve na produo dessas consoantes um fechamento maior na regio oral.

    -Na representao na qual SV no tenha dependente, significa que houve um

    vozeamento espontneo circunstanciado pela falta de obstruo necessria no trato oral que

    pudesse evit-lo.

    Rice (1993: 314) faz equivaler o trao SV ao tradicional [ sonorante]. Respaldada

    em outros autores, assegura que SV est presente nas obstruintes vozeadas que tenham o status

    de soantes na lngua em que 'obstruintes' e soantes participam de uma classe natural29 : "Piggott

    1992 and Rice & Avery 1989 argue that SV and [sonorant] differ fundamentally in that, unlike

    [sonorant], SV can be present in voiced obstruents- it is found in voiced obstruents just in case

    they function as sonorants in the system or pattern with sonorants in the system with respect to

    voicing. In such languages, obstruents and sonorants forro a natural class with respect to rules

    involving voicing; in languages in which obstruents are marked by the feature Voice, however,

    voiced obstruents and sonorants do not pattern as a natural class". Esta concepo de SV

    aplicvel relao dos segmentos [cont] em Makuxi e pode corresponder ao trao 'lenis' da

    fonologia clssica. Lembrando que SV caracteriza o vozeamento dos segmentos soantes,

    enquanto [voz] no pertinente para as soantes.

    29 Classes naturais determinam sons indiidnais que tendem a se agrupar com outros sons, no sistema total de nma dada lngua (Kenstowicz, 1994: 18). Caso, por exemplo, das consoantes coronais e vogais anteriores que formam nma classe natural chamada [coronal]. Vemos, ento, que em um processo envolvendo consoante coronal [+anterior] juntamente com segmento voclico [-anterior], essa consoante passa a ser produzida [-anterior], por espraiamento de trao da vogal (Clements & Hume, 1995: 277-278).

  • 42

    O trao SV pode ser reportado noo de consoantes 'lenis', que se contrape a

    'fortis'. Em Troubetzkoy (1948:165) encontramos uma explicao que distingue esses dois tipos

    de tenso no momento de realizao de uma consoante: "La corrlation de tension, c'est--dire

    I' opposition entre des "fortes" et des "douces". Dans cette opposition la force de I' obstacle e

    celle du moyen employ pour !e franchir (pression de l'air) se proportionnent !'une l'autre: si

    1' obstacle est renforc par la tension de la musculature buccale, la pression de I' air devient em

    mme temps plus forte, par contre si les muscles des organes buccaux se relchent, la pression de

    I' air devient galement plus faible".

    Ladefoged & Maddieson (1996: 95) tambm tratam da tenso 'fortis' e 'lenis' das

    consoantes obstruintes tanto em relao energia espiratria quanto articulatria: " ( ... )in one

    of these uses the term 'fortis' indicates increased respiratory energy applied in the production of

    a segment, in the other 'fortis' indicates greater articulatory energy. In both cases, 'lenis'

    indicates less energy". Em nossa anlise, a meno aos termos 'fortis' e 'lenis' reporta-se tanto

    energia articulatria quanto espiratria.

    Se for o trao SV que participa do 'vozeamento' dos segmentos obstruintes em

    Makuxi, por que este 'vozeamento' realiza-se sistematicamente diante de vogal alongada,

    consoante obstruinte [ -cont] destituda de ponto de articulao, e consoante nasal ou vogal

    nasalizada? Por que no se realiza diante de vogais simples ou de outras consoantes cuja

    geometria, a princpio, apresenta o trao SV?

    Uma das hipteses para o 'vozeamento' dos segmentos [cont] que o trao SV

    esteja presente na geometria de traos desses segmentos apenas na implementao fontica

    (tratamento diferente dos segmentos consonantais fonologicamente soantes). O trao SV

    espraiado para esses segmentos resultaria de sua presena na geometria de traos fonolgicos de

    um segmento que participa da posio de coda silbica que antecede a realizao de cada um dos

    segmentos [cont]. Ento, pelo espraiamento de SV, essas consoantes passam a ser realizadas

    'vozeadas'.

    Sabemos que os segmentos obstruintes 'vozeados' que apresentam sua contraparte

    'desvozeada'30 s se realizam, na lngua, em onset de slaba no-inicial de palavra. H indcio

    assim que se trata de uma variao condicionada pela estrutura, pois sua ocorrncia est

    30 A lngua apresenta outros segmentos [cont], tanto 'vozeados' quanto 'desvozeados' que no participam desse tipo de variao, provavelmente porque no possuem sua contraparte.

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    submetida ao lugar, posio que o segmento ocupa na palavra, no caso especfico, posio de

    onset silbico no-inicial de palavra (Troubetzkoy, 1948: 247).

    A ocorrncia de segmentos [cont] 'vozeados', em onset silbico no-inicial de

    palavra, em ambiente antecedido pelas consoantes em cada, debucalizadas, n'P1 e !N/

    (arquifonemas), e/ou por vogal alongada, chama anlise a participao da slaba em geral e, em

    particular, a slaba fechada (ou, pode ser ainda, a slaba pesada, noo esta que envolve o

    conceito de quantidade e possibilita o envolvimento do alongamento voclico tambm).

    O tipo de formao silbica que antecede a realizao das consoantes [ cont]

    'vozeadas' (tomando como referncia a participao efetiva das slabas C(C)VC e C(C)VV, ou

    seja, slabas pesadas) sugere o envolvimento da slaba na produo dessas consoantes. Por isso,

    faremos algumas consideraes referentes aos tipos de slaba, ao peso silbico e seus

    desdobramentos.

    Hayes (1995:120), ao abordar a questo da quantidade na slaba sob a perspectiva

    dos universais lingsticos, considera a slaba CVV sempre pesada, enquanto a slaba C(C)VC

    ora interpretada como leve ora como pesada, a depender da lngua: " Universally, CV counts

    as a light syllable. It is probable that long-voweled syllables universally count as heavy; ( ... ).

    But CVC syllables vary: in some languages they are heavy, in others lght. ( ... ), these patterns

    are predicted by the morai c theory of syllable structure, in which CV: must be represented as

    bimoraic, CV as monomoraic, but CVC has both monomoraic and bmoraic representations".

    Sendo assim a representao dessas slabas com base no peso ser:

    c v CV: cvc ou cvc

    a a a a

    1\ (\ A IJ !te Al

    31 No decorrer da anlise, veremos que a consoante [-cout], oral, destituda de ponto que participa do 'vozeamento'

    das [cont] a [+aprox] n'J e no a [-aprox] m.

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    A vogal marcada pelo trao [nasal] em Makuxi produzida pelo espraiamento

    desse trao, que provm das consoantes nasais, quer estas estejam em onset, quer participem de

    coda silbica. Quando o espraiamento de nasalidade vem de uma consoante nasal em coda (que

    fonologicamente destituda de ponto de articulao), esse ambiente integra o tipo silbico CVC e

    pode ser interpretado como pesado. Caso o espraiamento de [nasal] venba de uma consoante

    nasal em onset (ou seja, a vogal nasalizada no participa de uma possvel slaba pesada), mesmo

    assim avaliamos que uma vogal nasalizada toma a produo silbica mais longa ( semelhana

    das vogais longas ou alongadas) do que a que tem um ncleo preenchido por uma vogal oral

    simples32 Uma explicao articulatria para a durao maior das vogais com o trao [nasal]

    encontra-se em Moraes & Wetzels (1992:158i3, quando levantam a hiptese de que a durao

    da produo de vogais nasais superior a de suas correspondentes orais em conseqncia do

    gesto articulatrio suplementar (abaixamento I elevao do vu palatino i 4 Ainda segundo esses autores, com base numa explicao fonolgica, a consoante nasal, necessria na base para a

    nasalidade contrastiva e, na seqncia, suprimida da representao fontica, ao transferir seu

    trao [+nasal] para a vogal precedente, continua a ocupar uma posio na camada temporal cujo

    vestgio na superfcie um alongamento compensatrio da vogal alvo do espraiamento. E

    nesse caso que eles entendem que as vogais nasais podem ter uma durao maior que as orais e

    as nasalizadas. De qualquer modo, com respeito ao foco de nossa anlise, a nasalidade voclica

    frente s consoantes [cont] 'vozeadas' promovida pelo trao [nasal] de uma consoante nasal

    em coda.

    Suspeitamos que a postao de coda silbica (como a slaba em geral) tem uma

    funo no processo de 'vozeamento' abordado. A fonologia CV (Clements & Keyser, 1981) com

    sua representao silbica que compreende uma estrutura arbrea em trs camadas:

    32 A discusso sobre o peso de uma vogal nasalizada em decorrncia de sua vizinhana com uma consoante nasal que ocupa a posio silbica de onset ou de coda feita sob a perspectiva de que o peso silbico ou o tempo de produo de um segmento possam atuar no processo de 'vozeamento' que queremos esclarecer. 33 O trabalho de Moraes & Wetzels ocupa-se de distinguir dois tipos de nasalizao em portugus: a fontica ou alofnica e a foumica, esta ltima vis4 como sugeriu Ctuara Jr., como resultado de uma seqncia Vogai+Consoante NasaL Neste contexto, alongamento compensatrio visto como evidncia da consoante nasal em coda. 34 A expresso "gesto articulatrio" foi usada pelos autores citados e no se relaciona, neste caso, com os marcos tericos da Fonologia Articulatria.