João Guimarães Rosa e os maçaricos: do maçarico-de …medicina.ufmg.br/cememor/arquivos/guimaraesMacaricos.pdf · João Guimarães Rosa e os maçaricos: do maçarico-de-coleira

  • Upload
    hadang

  • View
    221

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

  • Joo Guimares Rosa e os maaricos:do maarico-de-coleira (Charadrius collaris)ao maarico-esquim (Numenius borealis)

    Luiz Otvio Savassi Rocha

    Professor Adjunto do Departamento de Clnica Mdica da FM-UFMG

    "Amar os animais aprendizado de humanidade."

    (Frase inscrita no prtico do Zoolgico de Hamburgo,

    citada por J. Guimares Rosa em AVE, PALAVRA)

    "O saber que o artista gera tem a mesma importncia

    que o saber que o artista produz."

    Arlindo Daibert (1952 - 1993)

    Joo Guimares Rosa deixa transparecer, em sua obra, um sentimento verdadeiramente religioso

    pela Natureza, includos as plantas, os animais e, em particular, as aves. Alis, na novela O recado

    do morro (NO URUBQUAQU, NO PINHM), passada, toda ela, em Cordisburgo e

    arredores, o escritor, ao criar a figura mpar de "Seu Alquiste" "espigo, alemo-rana, com raro

    cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada" , presta uma carinhosa homenagem aos

    naturalistas europeus que, sobretudo no sculo passado, a partir da abertura dos portos, em 1808,

    percorreram o Brasil, imbudos, muitas vezes, do mesmo sentimento, e o redescobriram.(1) A

    reao de Seu Alquiste (por quem Guimares Rosa parecia nutrir forte simpatia) diante da

    prosaica viso da cauda de um galinceo, d a medida exata de seu deslumbramento frente

    exuberante natureza tropical:

    "Uma hora, revirou a correr atrs, agachado, feito pegador de galinha, tropeando no bamburral e espichando tombo, s por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orob de um nhambu."

    Embora partindo, quase sempre, da realidade objetiva sua matria-prima , Guimares Rosa procura, ao se referir s aves como a tudo mais em sua obra , privilegiar a dimenso potica. Ademais, na dependncia do contexto e/ou do clima que pretende criar, ele o faz ora de forma descritiva, analtica, ora de forma sinttica. Assim, por exemplo, quando o tema o vo do pica-pau, a opo, em Buriti (NOITES DO SERTO), pela primeira alternativa:

    "Como Miguel e nh Gualberto Gaspar ficavam a ver, quando passava um

  • picapau-da-cabea-vermelha, em seu vo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo, com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se d novo mpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma distole e uma sstole um corao na mo ; j atravessou o mundo."

    J em GRANDE SERTO: VEREDAS, a opo recai na segunda alternativa: "Picapau voa duvidando do ar" tudo resumindo, em frase lapidar.

    Como o ttulo do presente ensaio procura estabelecer uma relao entre Guimares Rosa e os maaricos (designao comum a diversas aves limcolas pertencentes s famlias Charadriidae e Scolopacidae),(2) importa, preliminarmente, situar tais aves no contexto das aves em geral para, em seguida, focalizar as duas espcies Charadrius collaris e Numenius borealis destacadas entre parnteses.

    O conjunto das aves constitui a classe, dividida em duas subclasses: Archaeornithes (aves

    ancestrais) e Neornithes (aves verdadeiras). A subclasse Archaeornithes representada por

    Archaeopteryx lithographica, que viveu no Jurssico Superior, h cerca de 150 milhes de anos, e que

    testemunha a evoluo das aves a partir dos rpteis, de modo que se no fosse pela presena de

    penas, identificar-se-ia com um pequeno celurossauro.(3) A subclasse Neornithes inclui alguns

    representantes fsseis, do cretceo (como Hesperornis e Ichthyornis) e todas as aves atuais, divididas,

    por sua vez, em numerosas ordens (perto de trs dezenas). Costuma-se separar a grande ordem

    Passeriformes (Passeres), qual pertencem cerca de 60% das aves existentes (em geral de pequeno

    porte), das aves restantes, cujos representantes (em geral de mdio e grande porte) recebem, em

    conjunto, o nome de no-Passeriformes. No presente ensaio, merecero destaque especial os no-

    Passeriformes da ordem Charadriiformes, particularmente aqueles pertencentes subordem

    Charadrii, que engloba nove famlias, includas as j citadas acima Scolopacidae e Charadriidae.

    Da famlia Scolopacidae existem, no Brasil, apenas duas espcies residentes (as demais so visitantes): (4) a narceja (Gallinago gallinago) e o narcejo (Gallinago undulata), conhecido, em Minas Gerais, por gua-s; ambas as espcies so paludcolas e famosas pelo rudo que produzem ("msica instrumental") durante seus vos nupciais crepusculares (no caso de Gallinago gallinago, o rudo, semelhante a um "balido caprino", produzido pelas rijas retrizes externas, que permanecem esticadas lateralmente, e modulado por meio de curtos movimentos das asas). Entre os representantes da famlia Charadriidae, h trs espcies residentes no Brasil: o maarico-de-esporo (Hoploxypterus cayanus), o quero-quero (Vanellus chilensis) e o maarico-de-coleira (Charadrius collaris). As duas primeiras so providas de um esporo vermelho que permanece oculto sob a plumagem, sendo exibido a rivais ou inimigos com um alar de asa ou em pleno vo, durante os confrontos ligados defesa do territrio ou das crias.(5) O maarico-de-coleira (Charadrius collaris) conhecido, tambm, por agachada, agachadeira, itu-tu, batu-tu e batura-de-coleira (do tupi mba = coisa, bicho + tuira = pardo, cinzento), sem falar nas variantes "sassarico" e "d-d" (denominao indgena), recentemente garimpadas por Jos Carlos Savassi Rocha (comunicao pessoal) em viagem ao Rio Araguaia (regio da Ilha do Bananal). Curiosamente, porm, os tratados de Ornitologia e, at mesmo, uma obra que registra cerca de 7.000 nomes utilizados pelo povo brasileiro para identificar cerca de 2.800 formas diferentes de aves nacionais j classificadas,(6) no menciona uma alcunha pela qual a referida espcie , ainda hoje, conhecida na Regio Norte de Minas Gerais, ao longo da

  • bacia do Rio So Francisco. Trata-se da denominao "manuelzinho-da-croa", utilizada por Guimares Rosa em GRANDE SERTO: VEREDAS (publicado em 1956),(7) para referir-se quele que , no entendimento de Reinaldo (Diadorim), "o passarim mais bonito e engraadinho de rio-abaixo e rio-acima". Tanto assim que o velho Riobaldo, aposentado, convertido em homo cogitandi e entregue "ao gosto de especular idia", inclui a graciosa ave ribeirinha (que aprendera a admirar com o prprio Diadorim) ao evocar, a certa altura da narrativa, as lembranas que lhe so mais caras:

    "Somente que me valessem, indas que s em breves e poucos, na idia do sentir, uns lembrares e substncias. Os que, por exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigri minha me me ralhando; os buritis dos buritis assim aos cachos; o existir de Diadorim, a bizarrice daquele pssaro galante: o manuelzinho-da-croa; a imagem de minha Nossa Senhora da Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos no so, atrs das mulheres mes deles, que iam apanhar gua na praia do Rio de So Francisco, com bilhas na rodilha, na cabea, sem tempo para grandes tristezas; e a minha Otaclia."

    O ponto de vista de que o nome popular "manuelzinho-da-croa" refere-se espcie Charadrius collaris defendido, h mais de uma dcada comunicao pessoal , pelo Prof. Ney Carnevalli, docente (aposentado) do Departamento de Zoologia do Instituto de Cincias Biolgicas da UFMG, com a autoridade de quem , sem favor algum, um dos mais importantes ornitlogos brasileiros, tendo estudado exaustivamente, in loco, a avifauna nacional, em particular no Estado de Minas Gerais (569 municpios percorridos em 28 anos de atividades).(8) Tal ponto de vista privilegiado neste ensaio parece irrefutvel, sendo reafirmado, recentemente, pelo respeitado professor, aps uma viagem ao municpio de Manga (MG), situado junto divisa com a Bahia (microrregio So-franciscana de Januria). No obstante, nunca demais assinalar a confuso reinante quando o assunto em pauta a identificao precisa das numerosas espcies de aves brasileiras a partir dos nomes populares pelos quais so conhecidas de norte a sul do pas. O estudioso defronta-se, nesse caso, com, pelo menos, dois tipos de dificuldade. De um lado, o mesmo nome vulgar utilizado para identificar representantes de espcies (e at gneros) diferentes. Assim, o anu-branco (Guira guira), ave no-Passeriforme, cuculiforme (famlia Cuculidae), provida, segundo Eurico Santos,(9) de um "topete, pardo-amarelado, arrepiado quase sempre, e maiormente quando solta o seu aflautado e melanclico apelo", conhecido, no Rio Grande do Sul, por alma-de-gato, nome usualmente utilizado, em outras regies do pas, para identificar a espcie Piaya cayana, ave vistosa, da mesma famlia, que lembra um caxinguel, quando desliza pela ramagem, e que imita, sua maneira, a voz das outras aves.(10) Por outro lado, nomes distintos so amide utilizados para identificar a mesma ave, como ficou claro no caso da espcie Charadrius collaris (ver acima). o caso, tambm, dos caprimulgiformes da famlia Nyctibiidae, gnero Nyctibius (espcie mais comum: Nyctibius griseus), conhecidos por me-da-lua ou urutau (do tupi, uir-tau- = ave fantasma).(11)

    Em meados do sculo passado bem antes, portanto, de Guimares Rosa , um outro autor faz referncia, ainda que de passagem, ao manuelzinho-da-croa (ou manuelzinho-da-coroa), numa prova de que tal denominao no foi cunhada pelo escritor cordisburguense : trata-se do diplomata e explorador ingls Sir Richard Francis Burton, em seu livro EXPLORATIONS OF THE HIGHLANDS OF THE BRAZIL; with a full account of the gold and diamond mines. Also, canoeing down 1.500 miles of the great river So Francisco, from Sabar to the sea (London: Tinsley Brothers, 1869), no qual registra a memorvel viagem que realizou, de canoa, de Sabar (MG) ao Oceano Atlntico, em 1867.(12) Burton teria avistado a ave, tomando conhecimento do nome utilizado pela

  • populao ribeirinha para design-la, no dia 14 de setembro, por volta das 17 horas, quando ainda navegava pelo Rio das Velhas, mas j ao final deste, bem prximo sua confluncia com o So Francisco (Barra do Guaicu), que seria atingido no dia seguinte:

    "Pela primeira vez, encontramos grande quantidade de aves na coroa.(13) O necrfago urubu, indiferente s carabinas, abre as asas ao sol e parece ter as costas prateadas. Pequenas Charadriadae saltitavam alegres na areia, juntamente com o manuelzinho-da-coroa (Scolopax), de pernas vermelhas, muito parecido com o nosso maarico."

    A julgar pelo trecho acima, o manuelzinho-da-croa ("de pernas vermelhas") pertenceria, segundo o explorador ingls, famlia Scolopacidae (14) e no famlia Charadriidae (Burton, indevidamente, escreve, no mesmo trecho, Charadriadae). Ora, como j se viu, existem, na condio de aves residentes, apenas dois representantes dos escolopacdeos no Brasil: a narceja e o narcejo (gua-s). Quanto aos maaricos da mesma famlia, so, todos eles, visitantes e, morfologicamente, distintos do manuelzinho-da-croa, a comear pela colorao das pernas, que so (obviamente) amarelas no caso do maarico-de-perna-amarela (Tringa flavipes), verde-amareladas no caso do maariquinho (Calidris minutilla) e negras no caso do maarico-rasteirinho (Calidris pusilla). No que concerne ao gnero Scolopax, citado de forma explcita, torna-se difcil dar razo ao explorador ingls, pelo menos luz da moderna taxonomia. Isso porque os representantes de tal gnero conhecidos, em lngua inglesa, por american woodcock (Scolopax minor) e eurasian woodcock (Scolopax rusticola) , alm de no fazerem parte da avifauna nacional (includas as aves visitantes), assemelham-se mais a uma narceja (gnero Gallinago) do que propriamente a um maarico.

    Assim sendo, parece inegvel que o capito Sir Richard F. Burton se equivocou na tentativa de identificao do manuelzinho-da-croa; no entanto, por insuficincia de dados, evitar-se-o, neste ensaio, digresses a respeito das possveis causas de seu equvoco.

    Mencionado por Guimares Rosa em GRANDE SERTO: VEREDAS, exatamente 87 anos

    depois da publicao de EXPLORATIONS OF THE HIGHLANDS OF THE BRAZIL, o

    manuelzinho-da-croa "o mimoso pssaro que ensina carinhos" tem desafiado a argcia

    daqueles empenhados em identific-lo, de modo a ensejar interpretaes totalmente

    equivocadas.(15) De acordo com o j citado parecer do Prof. Ney Carnevalli, trata-se do chamado

    maarico-de-coleira collared plover, em ingls , correspondendo, por conseguinte, espcie Charadrius collaris (Vieillot, 1818),(16) encontrada do sul do Mxico Argentina, includo todo o

    territrio brasileiro.(17) Representante da famlia Charadriidae, a ave, assim entendida, mede cerca

    de 15 cm de comprimento, tem o bico preto, as pernas rosadas e, a justificar a denominao

    maarico-de-coleira, exibe uma faixa preta no peito;(18) a parte superior do corpo castanho-

    acinzentada, mais ou menos marchetada de canela (em especial ao nvel do vrtice e da nuca) e a

    parte inferior branca (fig 1 e 2).

  • Fig. 1 - Charadrius collaris (adulto): chama a ateno a faixa preta no peito, de modo a justificar a denominao "maarico-de-coleira" ou "batura-

    de-coleira".

    Foto batida no Pantanal mato-grossense por Haroldo Palo Jnior,

    renomado fotgrafo naturalista radicado em So Carlos, SP.

    Fig. 2 - Charadrius collaris (adulto): esta fotografia acha-se reproduzida, tambm, no livro AVES SILVESTRES: MINAS GERAIS (Belo Horizonte: Conselho Internacional para a Preservao das Aves, 1992), de autoria de Marco Antnio de Andrade.'

    Foto batida no Pantanal mato-grossense por Haroldo Palo Jnior, renomado fotgrafo naturalista radicado em So Carlos, SP.

    Habita as praias costeiras, as savanas arenosas e as margens dos rios e lagoas do interior,

    alimentando-se, principalmente, de insetos e crustceos.(19) Como ensina o Prof. Helmut

    Sick,(20) costuma andar "aos casais durante todo o ano", demonstrando seu nervosismo "por

    uma genuflexo". Na viso bem-humorada de Eurico Santos:(21) "Muito curiosa a atividade

  • deste praieiro. Vive s carreiras, mas, de contnuo, faz sbitas paradas e l vai de novo correndo e

    parando, como se tivesse o intento de nos divertir. Na realidade, est granjeando a vida na farta

    mesa que a praia lhe oferece." Ademais, a exemplo do que acontece com outros caradrideos,

    bastante singular o comportamento dos adultos quando so ameaados no ninho: fingem-se de

    feridos, na tentativa de desviar dali o inimigo. Na verdade, no h um ninho propriamente dito:

    os ovos, semelhantes a uma pra configurao que lhes possibilita rolar em torno do prprio

    eixo , so depositados diretamente numa cavidade esgravatada no solo arenoso, confundindo-se

    com o mesmo devido sua peculiar colorao (presena, na superfcie, de manchas pardo-

    amarronzadas, sobre um fundo castanho-claro). (Figs 3, 4 e 5).

    Fig. 3 - Charadrius collaris: filhotes no ninho.Foto batida no Pantanal mato-grossense por Haroldo Palo Jnior,

    renomado fotgrafo naturalista radicado em So Carlos, SP.

    Fig. 4 - Charadrius collaris: ovos de aspecto piriforme depositados em ninho rudimentar

  • (cavidade esgravatada no solo arenoso).Foto batida no Pantanal mato-grossense por Haroldo

    Palo Jnior, renomado fotgrafo naturalista radicado em

    So Carlos, SP.

    Fig. 5 - Marca do p direito de Haroldo Palo Jnior em banco de areia do Rio Taquari: na depresso correspondente ao calcanhar - convertida numa espcie de ninho improvisado -, foram depositados dois ovos de Charadrius collaris.

    Foto batida no Pantanal mato-grossense por Haroldo Palo Jnior, renomado fotgrafo naturalista radicado em So Carlos, SP.

    Partindo-se do pressuposto de que a designao popular "manuelzinho-da-croa" refere-se espcie Charadrius collaris, a descrio (sumria) que Guimares Rosa faz da ave, em seu famoso romance (ver adiante), merece uma pequena ressalva no que concerne cor das pernas, que se aproxima mais do rseo-claro do que, propriamente, do vermelho; quanto ao posicionamento das mesmas "esteiadas muito atrs traseiras" , no h o que contestar, valendo lembrar que essa caracterstica compartilhada por outros caradriiformes, tanto da famlia Charadriidae (p. ex. Charadrius semipalmatus), quanto da famlia Scolopacidae (p. ex. Calidris alba).

    Estando em companhia de Diadorim, s margens do Rio das Velhas, afluente da margem direita do So Francisco, assim se expressa Riobaldo, protagonista de GRANDE SERTO: VEREDAS:

  • "O rio, objeto assim a gente observou, com uma croa de areia amarela, e uma praia larga: manhzando, ali estava recheio em instncia de pssaros. O Reinaldo mesmo chamou minha ateno. O comum: essas garas, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dansantes; martim-pescador; mergulho; e at uns urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos conforme o Reinaldo disse o que o passarim mais bonito e engraadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-croa.

    At aquela ocasio, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pssaros, em seu comear e descomear dos vos e pousao.(22) Aquilo era para se pegar a espingarda e caar. Mas o Reinaldo gostava: formoso prprio... ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. Pra e pra, os bandos de patos se cruzavam. Vigia como so esses... Eu olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras. aquele l: lindo! Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrs traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentao. Machozinho e fmea s vezes davam beijos de biquinquim a galinholagem deles. preciso olhar para esses com um todo carinho... o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propsito, o caprichado ser e tudo num homem darmas, brabo bem jaguno eu no entendia!"

    No decorrer do romance, Riobaldo refere-se outras vezes ao manuelzinho-da-croa, sendo que, j quase ao final do mesmo, ele o faz evocando as "belas croas de areia" do Rio Urucuia, afluente da margem esquerda do So Francisco:

    "O Urucuia, perto da barra, tambm tem belas croas de areia, e ilhas que for-ma, com verdes rvores debruadas. E a l se do os pssaros: de todos os mes-mos prazentes pssaros do Rio das Velhas, da saudade jaburu e galinhol e gara-branca, a gara rosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha to catita o manuelzinho no mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?..."

    Vivendo "sempre em casal", o manuelzinho-da-croa poderia ser visto, de acordo com o saudoso artista plstico Arlindo Daibert (23) (comunicao pessoal), como o "animal totmico da fidelidade conjugal". Com efeito, no contexto do romance GRANDE SERTO: VEREDAS, a relao entre o jaguno Riobaldo e a "donzela-guerreira" Diadorim ("aquela que s depois de morta foi mulher") marcada, entre outras coisas e a exemplo do que si acontecer numa relao conjugal , pela exigncia de exclusividade por parte de Diadorim. Alis, nunca demais lembrar que, na obra rosiana, os menores detalhes so, quase sempre, fortemente carregados de significao, como adverte o prprio Riobaldo em seu longo monlogo-dilogo: "No esperdio palavras. Macaco meu veste roupa."

    No livro ANDORINHA, ANDORINHA, de Manuel Bandeira, publicado em 1966, so

    reproduzidas, sob o ttulo Rosa em trs tempos, trs crnicas escritas pelo poeta pernambucano

  • entre julho de 1958 e junho de 1961. Na primeira delas, datada de 30/VII/1958, Manuel Bandeira

    acusa a oferta que lhe fizera Guimares Rosa de sua primorosa traduo de O LTIMO DOS

    MAARICOS (Last of the curlews), romance condensado de Fred Bodsworth (um dos diretores da Fundao de Naturalistas de Ontrio, Canad), includo no volume VI (1958) da

    Biblioteca de Selees do Readers Digest (publicado, no Brasil, pela Editora Ypiranga S. A., Rio de Janeiro). Em agradecimento, Manuel Bandeira dedica uns versos ao autor de GRANDE

    SERTO: VEREDAS, enaltecendo-o e, na condio de membro da Academia Brasileira de

    Letras desde 1940, dizendo de seu desejo de sab-lo candidato a uma vaga na Casa de Machado

    de Assis, para que pudesse lhe dar seu voto:

    "No permita Deus que eu morra Rosa dos seus e dos outros,Sem que ainda vote em voc; Rosa da gente e do mundo,Sem que, Rosa amigo, toda Rosa de intensa poesia,Quinta-feira que Deus d, De fino olor sem segundo;Tome ch na Academia Rosa do Rio e da Rua,Ao lado de vosmec, Rosa do serto profundo!"

    Guimares Rosa retruca com versos rimados, tentando esquivar-se e dizendo, entre outras coisas:

    "Eleio espanta a gente;E s penso nisso a custo:Constrange-me o aurisplendenteE o processus me d susto."

    Com o que no concorda o bardo pernambucano, invocando a intermediao do prprio maarico (!) e do menino-poeta Miguilim, figuras to caras ao escritor cordisburguense:

    "Respondo a Guimares RosaEm p de romance assim:Vou pedir ao Maarico,Vou pedir a MiguilimQue ao mano Rosa eles digam: Rosa, no seja ruim.Faa a vontade do bardo,Ainda que bardo chinfrim!E eu secundo: Mano Rosa,Rosa, rosai, rosae, rosae,Vou aos meus dias pr um fim.Antes, porm, me prometa,Pelo Senhor do Bonfim, Que minha futura vagaVoc se apresenta, sim?Muito saudar a Riobaldo,Igualmente a Diadorim!"

    Na segunda crnica, datada de 22/I/1961, Manuel Bandeira d conta da forte tendncia

    perfeccionista de Guimares Rosa (e da angstia da decorrente), reproduzindo o que este lhe

  • confidenciara ao se referir ao compromisso recm-assumido de enviar, semanalmente, uma

    colaborao para o jornal O GLOBO:

    "Nunca se acaba de corrigir. O meu desejo ento continuar a corrigir at o fim da minha vida. Mas h que entregar os originais. E no dia seguinte recomear coisa nova."(24)

    Pois bem, essa forte tendncia perfeccionista, como no poderia deixar de ser, manifestou-se, com a intensidade de sempre, no caso da traduo para o portugus de O LTIMO DOS MAARICOS. Nas palavras de Manuel Bandeira:

    "Eu sabia que era assim com Rosa. Sabia do que se passou com ele quando foi convidado a traduzir para Selees um romance condensado. Era a histria de um pssaro. Rosa mandou vir dos Estados Unidos o romance completo. Mandou vir tambm tratados de Ornitologia. Fez a traduo, reescreveu-a cinco vezes. No fim saiu obra perfeita, coisa que no era no original. Mas Rosa gastou muito mais do que ganhou.

    No caso de O GLOBO deve estar sucedendo o mesmo. Escrever para jornal como escrever na areia. Rosa no escreve na areia: Rosa grava na pedra. Para a eternidade. Assim, o que Rosa est fazendo em O GLOBO , captulo a captulo, mais um livro, digno de ficar junto de SAGARANA, CORPO DE BAILE e GRANDE SERTO: VEREDAS."

    O protagonista do romance de Fred Bodsworth o maarico-esquim (Numenius borealis), espcie canadense da famlia Scolopacidae, em processo de extino desde o final do sculo passado (segundo o Prof. Helmut Sick, os ltimos registros da espcie remontariam dcada de 70), (25) mas que, antigamente, na condio de migrante setentrional, era observada comumente no interior do Brasil, tendo sido documentada, entre setembro e novembro, no Amazonas, em Mato Grosso e em So Paulo.

    Capazes de atingir a velocidade de 50 milhas por hora, os representantes da espcie medem cerca de 33 cm (o dobro do manuelzinho-da-croa) e tm o bico recurvo para baixo, como se fosse uma pequena foice. Como ensina o prprio Fred Bodsworth, os caadores da Nova Inglaterra costumavam apelid-los de "pssaros massa-de-po" pela impresso que transmitiam, no outono, com os peitos gordos e macios.(26)

    Embora menor, o maarico-esquim muito parecido com o chamado maarico ou maarico-do-bico-torto (Numenius phaeopus), de 42 cm de comprimento, conhecido nos Estados Unidos por whimbrel ou hudsonian curlew; (27) visitante do rtico, relativamente abundante no norte do Brasil (subespcie Numenius phaeopus hudsonicus), sendo que, em Fernando de Noronha, foi encontrado, de acordo com o Prof. Helmut Sick,(28) associado a representantes europeus (subespcie Numenius phaeopus phaeopus), de uropgio branco.

    Em O LTIMO DOS MAARICOS, o autor registra a dramtica reao do maarico-esquim,

    num dia do ms de junho, em pleno perodo reprodutivo, ao se defrontar com uma fmea de

    Numenius phaeopus que, num primeiro momento, excitadssimo, julgara pertencer sua prpria

    espcie:

    "De perto, o maarico reconhecera a plumagem mais escura e a feio

  • diferente, de uma espcie que no era a sua, se bem que parente prxima: a hudsnica, dos maaricos-do-bico-torto, a que ela pertencia, fazendo parte, como ele, da grande famlia praieira das baturas, areeiros e tarambolas. Mas o maarico-esquim sabia, mediante a intuio criada pela natureza, a fim de evitar cruzamentos estreis, que essa no era a companheira esperada. Escorraou-a, por um quarto de milha, com fria to arrebatada quanto o fora o amor de pouco antes. Depois, voltou ao territrio."

    Somente no incio do ano seguinte, o maarico-esquim, procedente do rtico, encontraria, em seu quartel-de-inverno, na longnqua Patagnia, a to esperada companheira de sua prpria espcie. Pouco depois, o casal inicia o retorno para o norte, de volta ao rtico, onde deveria chegar junto com o vero, poca do acasalamento. Porm, em meados de maio, j em plena pradaria do Canad, recm-lavrada, a fmea, contendo em seu aparelho reprodutor um vulo j apto para a fecundao, atingida por um raio, em dia de sol forte, e, minutos depois, morre. Atnito, diante do inesperado acontecimento, o maarico-esquim, derradeiro de uma espcie quase extinta, tenta, em vo, por meio de desvairados pios, despertar a companheira; chegada a noite, exausto, adormece a seu lado. De madrugada, ainda procura, mais uma vez, cham-la "seus pulmes se dilatando, no entoar o canto nupcial". Sem obter resposta, v-se forado a prosseguir a viagem, "em silncio, sozinho".

    Se, porventura, tivesse assistido ao trgico desfecho, o velho Riobaldo, nostlgico, decerto diria, espera de um gesto de aprovao de seu mudo interlocutor: "O pssaro que se separa do outro, vai voando adeus o tempo todo."

    guisa de arremate vale dizer que, se Joo Guimares Rosa emociona o leitor ao descrever poeticamente, em GRANDE SERTO: VEREDAS, o maarico-de-coleira (Charadrius collaris), sob a carinhosa alcunha de manuelzinho-da-croa, o escritor-naturalista no faz por menos ao oferecer, a esse mesmo leitor, a traduo da comovente saga do maarico-esquim (Numenius borealis), na qual a verdade cientfica, tambm carregada de poesia, mostra-se mais estranha que a prpria fico.

    Notas

    (1) Esse sentimento religioso pela Natureza evoca a extraordinria figura de So Francisco, o poverello de Assis, que chamava todas as criaturas de "irmo" ou "irm". A propsito, o zologo Eurico Santos fonte obrigatria de consulta ao se escrever um ensaio como este faz questo de dedicar seu livro DA EMA AO BEIJA-FLOR (Belo Horizonte: Livraria Itatiaia Editora Ltda,1979) aos que "amam a Natureza, lhe sentem os encantos e, como So Francisco de Assis, conversam com a irm andorinha, o irmo lobo, na linguagem universal da bondade um esperanto que seria capaz de fazer at com que os prprios homens se entendessem".

    (2) Em seu precioso DICIONRIO ETIMOLGICO DA LNGUA PORTUGUESA (Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1932), o Prof. Antenor Nascentes trata da etimologia da palavra maarico, mencionando a origem remota (cltica) e a lngua que serviu de veculo (espanhol), de acordo com o parecer de A. A. Corteso, cuja obra SUBSDIOS PARA UM DICIONRIO COMPLETO (HISTRICO-ETIMOLGICO) DA LNGUA PORTUGUESA (Coimbra: Frana Amado, 1900-1) aparece na bibliografia:

  • "Corteso deriva do esp. moracico (do clt. mrbik, ave marinha; de mor, mar, e pik, bico), donde maracico e por mettese do r e do c () maarico."

    A mettese (ou comutao) consiste na transposio de fonemas dentro de um mesmo vocbulo, a exemplo do que aconteceu com semper (latim), que originou sempre (italiano e portugus).

    (3) A denominao Archaeopteryx lithographica, aplicada representante das aves ancestrais ("paleoave"), significa, literalmente, "a pena antiga gravada na pedra" e foi cunhada, na segunda metade do sculo passado, por Hermann von Meyer, a partir de observaes feitas na Alemanha, no calcrio litogrfico de Solenhofen (rocha formada na laguna de um antigo atol, cuja fina textura propiciou a fossilizao das penas).

    (4) Em seu notvel livro ORNITOLOGIA BRASILEIRA, UMA INTRODUO (Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1984), o Prof. Helmut Sick (alemo naturalizado brasileiro, falecido em 1991) divide as aves de seu pas adotivo em dois grupos: aves residentes (1.465 espcies) e aves visitantes (123 espcies). Os nmeros entre parnteses referem-se ao recenseamento feito em 1981, abarcando 24 ordens e mais de 80 famlias. Segundo o saudoso professor, na verso em ingls, ampliada e atualizada, da obra acima referida (Sick, H. BIRDS IN BRAZIL: A NATURAL HISTORY. Princeton University Press, 1993), o nmero total de espcies identificadas teria passado de 1.588 para 1.635 (sendo 1.492 residentes e 143 visitantes). Mais recentemente, Marco Antnio de Andrade coligiu um total de 1.676 espcies (LISTA DE CAMPO DAS AVES NO BRASIL. Belo Horizonte: Fundao Acanga, 1995); porm, de acordo com o prprio autor (comunicao pessoal), esse nmero j foi superado, para o que tm concorrido as pesquisas realizadas em reas at pouco tempo inexploradas.

    As espcies residentes reproduzem-se no Brasil; as visitantes aqui chegam, peridica ou acidentalmente, vindas de outros pases (aves migratrias), mas se reproduzem alhures. Durante suas migraes latitudinais, as espcies visitantes que provm do norte (at do rtico) so encontradas, no Brasil, entre setembro e abril, ao passo que as que provm do sul (at do Antrtico) so aqui encontradas entre maro e outubro. Chegam mais visitantes do norte, sendo que algumas espcies so capazes de percorrer 25 mil quilmetros desde o rtico at a Terra do Fogo, ponto mais meridional da Argentina, onde pousam para invernada: o caso do maarico-branco (Calidris alba), o mais encontradio dos maaricos rticos que freqentam as praias brasileiras. Outro migrante setentrional, o vira-pedras (Arenaria interpres), pode cobrir 800 quilmetros em um s dia, vencendo a maior parte do percurso no perodo noturno.

    Os fatores responsveis pela orientao das aves visitantes em suas longas migraes so ainda mal conhecidos, acreditando-se na participao de uma disposio hereditria ou instinto; da memria da ave, associada experincia individual; da "bssola solar"; da "bssola das estrelas"e da "bssola magntica".

    (5) O maarico-de-esporo (Hoploxypterus cayanus), tambm conhecido por batura-de-esporo, mexeriqueira ou arengueiro, encontrado em quase todo o Brasil, exceo feita para o extremo sul do pas (Santa Catarina e Rio Grande

  • do Sul). Habita, sobretudo, as praias arenosas dos grandes rios da Amaznia e de Mato Grosso, no sendo muito comum em Minas Gerais. Mede cerca de 22 cm e sua identificao facilitada pela colorao das pernas (que varia do vermelho-alaranjado ao vermelho-salmo) e pelo aspecto variegado da plumagem (donde a expresso pied lapwing, em lngua inglesa), destacando-se a presena de uma faixa preta no peito e outra, da mesma cor, estendendo-se de um lado e do outro, ao longo do dorso pardo-acinzentado, de modo a formar um conspcuo V maisculo.

    Por sua vez, o quero-quero (Vanellus chilensis), tambm conhecido, particularmente em Minas Gerais, por espanta-boiada, vive em banhados e pastagens, sendo visto, tambm, nas estradas, no raro longe dgua. Como se fosse um "guerrilheiro alado", com "seu topete mbil, seu porte marcial e seu grito incessante", o quero-quero teria, segundo Zorrilha de San Martin (apud op. cit. nota 1), "a conscincia do seu direito e a iluso de sua fora, baseado nas duplas puas rosadas de suas asas". Toda essa valentia descrita por Guimares Rosa na reportagem potica Com o vaqueiro Mariano (ESTAS ESTRIAS):

    "E por susto se desferiram diante de ns, do solo, para todas as direes, os quero-queros de um ajuntamento. A ocela em cada asa seria alvo para um atirador. Foram-se, como bruxas. Dois deles, porm, mantiveram-se no lugar, tesos, juntinhos, e gritavam, com empinada resistncia. Paravam bem no nosso caminho, os cavalos iriam pis-los. No se arredaram, entanto; giravam e ralhavam com mais fora, numa valentia, num desespero.

    Eles tm ninho com ovos, por aqui... me ensinou Mariano.

    Vi que eram belos, pela primeira vez, com cores acesas. Longe de recuar, ousadssimos, arremeteram. E, para seu tamanho, cavalos e cavaleiros seriam seres desconformes, medonhas aparies.

    A casinha deles no cho. Tem uns, que, pra gente bulir no ninho, s lutando. Vamos procurar...

    A fria do par era soberba. Andaram roda, eriados, e, de repente, um abriu contra Rapirr um vo direto, de batalha; eram bem dois pequeninos punhais, enristados nas asas, os espores vermelhos. O outro, decerto a femeazinha, apoiava o ataque, vindo oblqua, de revo. Comovia a deciso deles, minsculos, reis de sua coragem, donos do campo todo.

    Melhor a gente dar volta e deixar passarinho em paz. No tm medo de nada! s vezes, com esse rompante doido, eles costumam fazer uma boiada destorcer pra um lado e quebrar rumo...

    Melhor, sim, Mariano.

    , sim senhor. O amor assim."

    (6) Trata-se do livro de Gabriel Augusto de Andrade intitulado NOMES POPULARES DAS AVES DO BRASIL (Belo Horizonte: SOM/IBDF, 1982). Como o nmero de espcies identificadas no Brasil, at 1982, no chegava a 1.600 (entre residentes e visitantes), o fato de o referido livro mencionar "cerca de 2.800 formas diferentes de aves nacionais j classificadas cientificamente"

  • explicado pela incluso de numerosas subespcies.

    Utiliza-se o termo subespcie (contestado por alguns ornitlogos, includo o Prof. Ney Carnevalli) ou a expresso raa geogrfica (aceita, em geral, sem restries) para identificar populaes que se distinguem pelo colorido e propores, desenvolvendo-se sob a influncia do clima e de outros fatores, ambientais e genticos. Assim, as populaes que vivem em clima mido e em mata densa (Amaznia) adquirem, geralmente, colorido mais escuro do que aquelas que vivem em clima seco, em formaes ralas (cerrado, caatinga), sendo que a atuam tambm as tendncias mimticas, ligadas sua sobrevivncia. Quando se menciona a subespcie, a denominao da ave (em latim) ao invs de binominal, torna-se trinominal. Assim, por exemplo, o bacurau-preto ou bacurauzinho (Chordeiles pusillus pusillus) deveria ser distinguido do bacurau-preto-do-Amazonas (Chordeiles pusillus septentrionalis), na medida em que cada qual, embora pertencendo mesma espcie, constitui uma subespcie ou raa geogrfica.

    Importa reconhecer, ao se tratar da classificao das aves, que o tema bastante polmico e que as controvrsias existentes refletem, em maior ou menor grau, duas atitudes bsicas assumidas pelos taxlogos, divididos, em literatura de lngua inglesa, em lumpers e splitters. Os lumpers, enfatizando as semelhanas entre as aves, tendem a agrup-las, ao passo que os splitters, enfatizando as diferenas, tendem a separ-las.

    (7) Tambm o NOVO DICIONRIO DA LNGUA PORTUGUESA, de Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, em sua 2a edio, revista e aumentada (1986), no reconhece a denominao manuelzinho-da-croa ao se referir ao maarico-de-coleira. Alis, no que concerne s aves, o citado dicionrio registra, com o antropnimo Manuel, apenas o manuel-de-barro ou casaca-de-couro-da-lama (Furnarius figulus), pertencente ao mesmo gnero do joo-de-barro (Furnarius rufus) e o manuel-vaqueiro (Certhiaxis cinnamomea), tambm chamado curuti, joo-tenenm-do-brejo ou, em Minas Gerais, xexeuzinho-do-brejo. Trata-se, porm, de aves inteiramente diversas, da famlia Furnariidae (ordem Passeriformes).

    (8) Nesses quase 30 anos dedicados Ornitologia, merecem destaque, entre outras, duas contribuies do Prof. Ney Carnevalli para o conhecimento da avifauna nacional: a identificao, em 1983, durante 55 dias de permanncia no Vale do Jequitinhonha, de 45 espcies que, embora conhecidas, ainda no tinham sido identificadas no Estado de Minas Gerais, e a classificao, juntamente com seu ex-aluno Dante Martins, de duas espcies novas, pertencentes s famlias Tyrannidae e Rhinocryptidae (ordem Passeriformes).

    (9) Op. cit. nota 1.

    (10) Guimares Rosa, com sua linguagem peculiar, refere-se s duas espcies. Ao anu-branco, em GRANDE SERTO: VEREDAS: "Essa Nhorinh tinha leno curto na cabea, feito crista de anu-branco"; alma-de-gato, em A estria do homem do pinguelo (ESTAS ESTRIAS): "O cochicho quase imitante, irnico da alma-de-gato, solloqua."

    (11) Os nictibideos so aves de hbitos noturnos, de vo silencioso como o das corujas (mais deslizam do que propriamente voam), dotadas de um "olho

  • mgico" (atravs de fendas nas plpebras superiores conseguem observar tudo ao redor, mesmo com os olhos, grandes e salientes, totalmente fechados) e de notvel capacidade de camuflagem ("mimetismo de galho"); seu canto, ouvido nas noites enluaradas (em geral a partir do ms de outubro), adquire entonaes macabras, como se fosse um lamento humano (cinco a sete gritos consecutivos, de incio roucos, numa seqncia descendente, amortecendo terminalmente). O urutau ou me-da-lua parecia exercer grande fascnio sobre Guimares Rosa que, utilizando indistintamente as duas denominaes, refere-se ave de forma iterativa em sua obra:

    "O urutau, que o canto dele encantado de gente, copiando: um homem ou mulher, que esto sendo matados, queixas extremas."/ "Mas a me-da-lua, se v mesmo uma estrela caindo com fogo rastro, ela esgrita:... Foi, foi, foi, foi!..." / "O urutau, em veludo."

    Buriti (NOITES DO SERTO)

    "De trs de l, no mato da grota, me-da-lua cantava: Floriano foi, foi, foi !..."

    Campo Geral (MANUELZO E MIGUILIM)

    "Por longe, a me-da-lua suspirou o grito: Floriano, foi, foi, foi... que gemia nas almas. Ento, era que em alguma parte a lua estava se saindo,a me-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada abobada."/ "Era da borda-do-campo que a me-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto de rvores da mata cerc."/ "O senhor no escutou, em cada anoitecer, a lugugem do canto da me-da-lua." / "... e carecia de se acender maiores fogueiras, porque, do cheio oco do escuro, podia vir cruzar permeio gente algum bicho estranho: formas de grandes onas, que rodeando esturravam, ou a me-da-lua, de vo no ouvido, corujante."/ "S o cachorro mateiro, que sai de debaixo dos silncios, e um -- de urutau, muito triste e muito alto."

    GRANDE SERTO: VEREDAS

    "Nhor no. Isso zoeira de outros bichos, curiango, me-da-lua, corujo-do-mato, piando. Quem gritou foi lontra com fome. Gritou: Irra! Lontra vai nadando vereda-acima. Eh, ela sai de qualquer gua com o plo seco..."

    Meu Tio o Iauaret (ESTAS ESTRIAS)

    (12) Dotado de um esprito inquieto e uma personalidade marcante, movido por uma curiosidade inesgotvel e sempre disposto a experimentar as mais fortes sensaes, o capito ingls Sir Richard Francis Burton (1821-1890) teve uma vida rica e multifacetada: foi viajante contumaz (bastando dizer que passou cinco anos na frica, sendo trs no Egito, e oito anos na ndia), explorador, aventureiro, militar, agente secreto (no auge do avano imperialista da Gr-Bretanha), cientista, poliglota (consta que falava 29 lnguas, alm de alguns dialetos), membro da Royal Geographical Society, tradutor, escritor fecundo e diplomata de carreira, sendo que, nessa condio, veio para o Brasil (foi cnsul da Inglaterra em Santos), aqui permanecendo entre 1865 e 1869. Durante esse perodo, tornou-se amigo de D. Pedro II, acompanhou in loco a Guerra do Paraguai (travando conhecimento com Francisco Solano Lpez e Madame Lynch) e viajou pelo interior do pas, reunindo suas observaes

  • (sempre muito detalhadas) no j citado livro EXPLORATIONS OF THE HIGHLANDS OF THE BRAZIL; with a full account of the gold and diamond mines. Also, canoeing down 1.500 miles of the great river So Francisco, from Sabar to the sea (London: Tinsley Brothers, 1869), em dois volumes, traduzido para o portugus por David Jardim Jr. e publicado pela Livraria Itatiaia Editora Ltda /EDUSP, em 1976-1977, tambm em dois volumes, com os ttulos VIAGEM DO RIO DE JANEIRO A MORRO VELHO (contendo o captulo O mineiro) e VIAGEM DE CANOA DE SABAR AO OCEANO ATLNTICO (de onde foram extrados os trechos reproduzidos neste ensaio). Em sua verso original, em ingls, o notvel livro de Richard F. Burton pode ser encontrado em Sabar (MG), na antiga Casa da Intendncia (1730), hoje Museu do Ouro.

    No contente em publicar apenas obras originais (que atingem mais de trs dezenas), Burton traduziu para o ingls AS MIL E UMA NOITES (os clebres contos rabes, em 16 volumes), dois clssicos do erotismo indiano, o KAMA SUTRA e o ANANGA RANGA (Ars Amoris Indica), bem como OS LUSADAS e a lrica de Lus de Cames.

    Em 1991, foi publicada no Brasil, pela Companhia das Letras, sua biografia (SIR RICHARD FRANCIS BURTON o agente secreto que fez a peregrinao a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe As mil e uma noites para o Ocidente), de autoria de Edward Rice, com traduo de Denise Bottmann. Referindo-se ao explorador ingls (que terminou seus dias como cnsul em Trieste), assim se exprime Rice:

    "Se um autor vitoriano do mais romntico estofo tivesse criado o capito Sir Richard Francis Burton, o pblico e a crtica, naquela poca to racionalista, decerto criticariam o personagem como uma figura muito implausvel e radical demais."

    (13) Segundo o NOVO DICIONRIO AURLIO DA LNGUA PORTUGUESA, em sua 2a edio (1986), revista e aumentada, coroa (ou croa) significa "baixio, persistente ou temporrio, produzido por aluvies, no esturio e no baixo curso dos rios e lagoas". Quem o explica, de forma mais alentada, o prprio capito Sir Richard F. Burton (VIAGEM DE CANOA DE SABAR AO OCEANO ATLNTICO, captulo V, pg. 59), que observou tais formaes quando navegava pelo Rio das Velhas, afluente da margem direita do So Francisco:

    "A coroa a sand-bar (barra de areia) dos rios norte-americanos, uma ilha no rio, mas muito diferente de nossa holm ou ilhota. Ocorre, em sua maioria, como observei a respeito das cachoeiras, na foz de algum ribeiro ou crrego, onde o afluxo da gua fresca retarda a correnteza, e esta, muitas vezes, deixa acumular detritos sobre pedras soltas ou salincias rochosas. A correnteza se separa para cada lado, deixando no centro uma convexidade, nua como a cabea raspada de um ndio coroado, e de todos os tamanhos, desde jardas at acres. A gua rasa acima dela, profunda embaixo, em ambos os flancos e nas reentrncias e concavidades onde os peixes gostam de mergulhar e em cujas margens o gado gosta de tomar sol. Quando a formao muito lenta, os troncos flutuantes passam por cima dela; em caso contrrio, os troncos de rvores so, em geral, encontrados em ambas as margens, e deve-se ter cuidado com os troncos submersos, especialmente perto da cabea, isto , rio acima. Muitas vezes, a

  • coroa dupla, ou mesmo trplice; sempre alongada no sentido da correnteza do rio; jamais circular, como nas formaes lacustres, e as orlas ou se nivelam com a gua ou se erguem, como precipcios liliputianos.

    A superfcie coberta de cascalho, com pedras de todos os tamanhos, desde uma polegada at um p, que se destacam das margens e so arrastadas pelas cheias. O material , sua maior parte, constitudo de quartzo, em suas formas proticas, jaspe, pedra de toque, pingos dgua (quartzum nobile) cristalizado, estratificado e quase sempre vermelho ou cor de ferrugem, devido presena de ferro. H, tambm, muito arenito, pedra calcria e clorita, que podem ou no conter ouro, juntamente com bocados de canga ou conglomerado ferruginoso, ddiva da regio de rio acima. Em certos lugares, a areia muito solta, deixando-se penetrar pelo p ou pelo calcanhar. Nas depresses, onde se acumula a gua das chuvas, ficam grandes lenis de lama, com 7,5 a 10 centmetros de espessura, e, em todos os lugares por onde se estendem as guas, os seixos, na estiagem, apresentam-se cobertos de um limo seco, cuja base pode ser cascalho, areia macia ou lama endurecida. Essas coroas puras e simples so freqentadas por gaivotas e andorinhas do mar, gavies e martins-pescadores, patos e garas, mergulhes, maaricos e outras aves que sero mencionadas.

    Uma vegetao difusa de rvores enfezadas e capim de um verde acinzentado e arbustos forma-se, comeando, geralmente, na extremidade jusante e, assim, a barra de areia se veste de mato."

    Em nota parte, ao final do mesmo captulo (pg. 68), Richard F. Burton arremata, ainda se referindo "coroa":

    "Pronunciada croa ; o latim corona e, certamente, no pode ser escrita, como o Prncipe Max., corroa. Esse acidente geogrfico se ope a praia, um banco de areia ligado margem do rio. Os tupis chamam primeira ibi cui ou, coroa de areia e ltima ibi cui, praia; para eles, cua era a vrzea do rio, sujeita inundao, e coara, literalmente buraco, era uma enseada, onde as canoas podiam encostar."

    Nas edies alem (Colnia Berlim: Kiepenheuer & Witsch, 1964), espanhola (Barcelona: Editorial Seix Barral, 1967), italiana (Milo: Feltrinelli Editore, 1970) e holandesa (Amsterd: Meulenhoff, 1993) de GRANDE SERTO: VEREDAS, os tradutores Curt Meyer-Clason, Angel Crespo, Edoardo Bizzarri e August Willemsen referem-se coroa ou croa (e, por conseguinte, ao manuelzinho-da-croa), utilizando, respectivamente, os termos Sandbank (donde Der-kleine-Manuel-der-Sandbank), banco (donde manolito-del-banco), greto (donde manuelzinho-del-greto) e zandbank (donde manuelzinho-van-de-zandbank).

    (14) Isso porque, alm de referir-se, de forma explcita, ao gnero Scolopax (pertencente famlia Scolopacidae), Burton utiliza, ao comparar o manuelzinho-da-croa (ou manuelzinho-da-coroa) com o que ele chama de "nosso maarico", a expresso "our sandpiper", como se pode ver no mesmo trecho, em sua verso original, em ingls (EXPLORATIONS OF THE HIGHLANDS OF THE BRAZIL, vol. II, captulo XII, pg. 179):

    "For the first time we found the Cora well stocked with birds. The Urub scavenger,

  • regardless of the rifle, expanded his wings to the sun, and looked as if it wore a silver back. Small Charadriadae hopped gleesomely about the sands, together with Manuelsinho da Cora little Emanuel of the Sandbar a Scolopax with red-stockinged stilts, much resembling our sandpiper."

    Em lngua inglesa, as aves limcolas da famlia Charadriidae so conhecidas por lapwings (p. ex. Vanellus chilensis) ou plovers (p. ex. Charadrius collaris), ao passo que aquelas da famlia Scolopacidae so conhecidas por snipes (p. ex. Gallinago gallinago) ou sandpipers (p. ex. Numenius borealis).

    Deve ser ressaltado que Guimares Rosa conhecia o livro de Burton a ponto de citar, na ntegra, o trecho acima reproduzido, em carta datada de 28/VI/1963, enviada ao tradutor Curt Meyer-Clason. Na referida carta (cuja cpia pode ser encontrada no Arquivo Joo Guimares Rosa do INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS da Universidade de So Paulo), o escritor mineiro chega at mesmo a sugerir a incluso das palavras do explorador ingls a respeito do manuelzinho-da-croa dando a entender que as endossava no glossrio da edio alem de GRANDE SERTO: VEREDAS; ademais, faz questo de chamar a ateno para o carter simblico da ave, no contexto do romance, elegendo-a como um de seus "motivos" ("...porque o manuelzinho-da-croa, no livro, representa um dos motivos, tomado como smbolo...").

    (15) Comprova-o a cena final (captulo XXV) do seriado GRANDE SERTO: VEREDAS, levado ao ar, em 1985, pela Rede Globo de Televiso, com direo de Walter Avancini: coincidindo com a referncia ao manuelzinho-da-croa, aparece a atriz Bruna Lombardi (no papel de Diadorim) dando liberdade a uma ave inteiramente diversa, da ordem Passeriformes.

    (16) Em 1816, chegou ao Rio de Janeiro o botnico francs Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), juntamente com o zologo Antoine Delalande. Acompanhado, inicialmente, do Baro de Langsdorff, da Academia de Cincias de So Petersburgo o homem "mais ativo e infatigvel" que encontrara at ento , Saint-Hilaire viajou pelo Brasil at 1822, tendo colecionado mais de 7.000 espcies de plantas, das quais umas 4.500 eram desconhecidas dos cientistas; alm disso, capturou numerosos exemplares de aves. Delalande, mais interessado em beija-flores, foi forado a antecipar seu retorno Europa, no podendo levar suas investigaes alm dos arredores da cidade do Rio de Janeiro. Coube a Louis J. P. Vieillot, a partir de 1818, a classificao das espcies novas capturadas pelos naturalistas franceses, includos o beija-flor-de-topete, batizado, em homenagem ao prprio Delalande, de Stephanoxis lalandi, e o maarico-de-coleira, batizado de Charadrius collaris.

    (17) A respeito da distribuio geogrfica da espcie Charadrius collaris, veja-se o vo-lume 1 SPHENISCIDAE (Penguins) TO LARIDAE (Gulls and allies) do notvel MANUAL OF NEOTROPICAL BIRDS (Chicago and London: The University of Chicago Press, 1977). Fruto de 48 anos de pesquisas no campo e no laboratrio, o livro de autoria de Emmet Reid Blake, Emeritus Curator of Birds at the Field Museum of Natural History, USA.

    (18) O manuelzinho-da-croa (Charadrius collaris) assemelha-se bastante ao chamado common ringed plover (Charadrius hiaticula), j que este exibe, a exemplo daquele, uma faixa preta no peito, embora seja um pouco maior

  • (mede cerca de 19cm) e tenha as pernas alaranjadas, e no rosadas, como, alis, acontece tambm com a chamada batura-de-bando (Charadrius semipalmatus), visitante norte-americana encontrada em todo o litoral brasileiro e em quase tudo semelhante (a ponto de serem considerados coespecficos). A respeito da distribuio de Charadrius hiaticula na Europa (includa a Inglaterra, pas de origem do capito Richard F. Burton), veja-se o livro AVES ACUTICAS (ttulo do original alemo: WASSERVGEL), de Frieder Sauer (Barcelona: Editorial Blume, 1984). Veja-se, tambm, o volume 3 (Somormujos, garzas, antidas, grullas, limcolas, gaviotas y otros) do notvel GUA DE AVES (ttulo do original alemo: VGEL Band 3: Taucher, Entenvgel, Reiher, Watvgel, Mwen u. a.), de Einhard Bezzel (Madrid: Ediciones Pirmide, S. A., 1988). Pelo que foi dito acima, se Burton tivesse realmente avistado, quando navegava pelo Rio das Velhas, exemplares da espcie Charadrius collaris, no lhe teria sido difcil lembrar-se da espcie Charadrius hiaticula, encontrada em sua terra natal; nesse caso, porm, ao invs de escrever "much resembling our sandpiper", esperar-se-ia que ele escrevesse "much resembling our plover".

    (19) A exemplo do que acontece com os demais caradrideos, as presas so localizadas visual ou acusticamente, sendo apanhadas flor das guas rasas ou da lama; no caso dos escolopacdeos (exceo feita para os gneros Arenaria, Tringa e Actitis) as presas (em parte de hbitos subterrneos) so localizadas, sobretudo, pelo tato, j que a ponta do bico dotada de grande sensibilidade.

    A respeito das preferncias alimentares da espcie Charadrius collaris (estudadas comparativamente com as preferncias alimentares das espcies Charadrius semipalmatus e Charadrius wilsonia), veja-se: Strauch, Jr., J. G. & Abele, L. G. Feeding ecology of three species of plovers wintering on the bay of Panama,Central America. STUDIES IN AVIAN BIOLOGY (A publication of the Cooper Ornithological Society) 2:217-30, 1979. Pela anlise do contedo estomacal, concluiu-se que as presas ingeridas por representantes das trs espcies consistiam, predominantemente, de crustceos (96%) no caso de Charadrius wilsonia, de vermes do filo Annelida, classe Polychaeta (82%) no caso de Charadrius semipalmatus e de insetos (50%) e crustceos (27%) no caso de Charadrius collaris.

    (20) Op. cit. nota 4.

    (21) Op. cit. nota 1.

    (22) Referindo-se a esse trecho de GRANDE SERTO: VEREDAS, afirmou o Prof. ngelo B. M. Machado (da UFMG) em discurso proferido por ocasio da abertura da XXVII Reunio Anual da SBPC (Belo Horizonte, 9 de julho de 1975):

    "Senhores, o dia em que a maioria dos brasileiros, como Diadorim, aprender a apreciar, por prazer de enfeite, a vida mera dos pssaros, ento a nossa natureza estar salva do mesmo modo que os amigos dos pssaros da Audubon Society salvaram o parque de Everglades na Flrida, uma das regies do mundo onde a vida selvagem mais exuberante."

    O discurso do Prof ngelo Machado foi publicado no peridico CINCIA E CULTURA (27:935-7, 1975), sob o sugestivo ttulo Mentalidade conservacionista. Alis, o emblema da XXVII Reunio Anual da SBPC

  • mostrava, em consonncia com o tema abordado pelo eminente professor, a figura de um pssaro morto acompanhada de um angustiante Por qu?

    (23) Natural de Juiz de Fora, o premiado artista plstico Arlindo Daibert (1952-1993) era um apaixonado pela cultura brasileira e, em particular, pela obra rosiana. Ademais, acreditava firmemente nas imensas possibilidades interativas entre as artes plsticas e a literatura, demonstrando-o, saciedade, na exposio GRANDE SERTO: VEREDAS, constituda de 50 desenhos e 20 xilogravuras, na qual, em vez de limitar-se ilustrao pura e simples, prope uma leitura visual instigante, criativa e, at mesmo, transgressora no bom sentido do romance de Guimares Rosa. A mostra foi promovida pela UFJF/PROEP e contou com o apoio da FAPEMIG, sendo aberta ao pblico em 30/IX/1993, no Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte), cerca de um ms aps a morte prematura do artista. Entre os desenhos, pde-se ver, acompanhada da sugestiva legenda, em alemo, "Inneres und usseres sind nicht mehr zu trennen", a representao do manuelzinho-da-croa (Charadrius collaris), concebida a partir da cpia de uma figura do MANUAL OF NEOTROPICAL BIRDS (Vol. 1), de Emmet R. Blake, que lhe fora enviada, em 1985, pelo autor deste ensaio, devidamente orientado pelo Prof. Ney Carnevalli. Extrada do livro DER WEST-STLICHE DIWAN, do poeta alemo Goethe, a expresso "Inneres und usseres sind nicht mehr zu trennen" foi citada por Guimares Rosa durante o importante dilogo que manteve com Gnter Lorenz por ocasio do Congresso de Escritores Latino-Americanos realizado em Gnova, em l965.

    Importa ainda assinalar que, a exemplo de Arlindo Daibert, um outro artista mineiro, tambm versado na obra rosiana, rendeu-se aos encantos da graciosa ave ribeirinha. Trata-se do instrumentista, cantor e compositor Tavinho Moura que, no CD intitulado CABOCLO DGUA (Velas Produes Artsticas Musicais e Comerciais Ltda), interpreta a msica (de sua autoria) Manoelzim da Croa (solo de viola com acompanhamento, ao violo, de Beto Lopes). Nada mais pertinente, pois a viola, trazida pelos portugueses e j referida por Ferno Cardim nos primrdios da colonizao brasileira (sc. XVI), o nico instrumento musical mencionado em GRANDE SERTO: VEREDAS e aquele que melhor reflete a alma sertaneja, como ensina Riobaldo: "Eu queria estar-estncias: dos violeiros, que tocavam sentimento geral." Veja-se, a propsito, o livro de Leonardo Arroyo intitulado A CULTURA POPULAR EM GRANDE SERTO: VEREDAS (Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1984).

    (24) Ao afirmar que seu desejo seria continuar a corrigir at o fim de sua vida, Guimares Rosa parece dar razo a Thomas Mann (1875-1955), autor de A MONTANHA MGICA e DOUTOR FAUSTO, quando diz: "Um escritor algum para quem escrever mais difcil do que para as outras pessoas"; ao que se poderia acrescentar: "no obstante, ele no consegue deixar de faz-lo." Isso porque, a despeito do quanto lhe possa custar, o que conta, para o esprito criador, , sobretudo, o fazer, a busca, o percurso no o ter feito, o achado, o ponto final. Diante da obra acabada, todo grande artista, dotado de uma sensibilidade aguada, sempre flor da pele, costuma experimentar uma certa insatisfao, fruto da incmoda sensao de ter ficado aqum de sua prpria expectativa. Alis, no discurso que pronunciou, em 1937, na Academia Brasileira de Letras, em agradecimento ao prmio que lhe fora concedido pelo livro de poemas MAGMA, no outro o tom do escritor cordisburguense:

  • "E o incontentamento o seu clima, porque o artista no passa de um mstico retardado, sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do stimo dia. No tem o direito de se voltar para o j feito, ainda que mais nada tenha por fazer.

    A satisfao proporcionada pela obra de arte quele que a revela dolorosamente efmera: relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para a exteriorizao do seu magma ntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela, cega-se para ela, e passa adiante."(Revista da Academia Brasileira de Letras 53:261-3, 1937. Apud JORNAL DO BRASIL, caderno B. Domingo, 7 de janeiro de 1996).

    (25) Referindo-se ao maarico-esquim (Numenius borealis), afirma o ilustre professor em seu livro ORNITOLOGIA BRASILEIRA, UMA INTRODUO, publicado em 1984: "Entre os ltimos registros da espcie esto um de Louisiana e outro de Massachusetts, ambos durante a migrao do ano de 1970; em 1976 em James Bay, Ontrio, Canad." J no livro THE AUDUBON SOCIETY FIELD GUIDE TO NORTH AMERICAN BIRDS (Eastern Region), publicado por Alfred A. Knopf, em 1977, os autores, John Bull e John Farrand Jr. (Ornithology Department of The American Museum of Natural History) consideram a espcie "virtually extinct". Por outro lado, no notvel THE AUDUBON SOCIETY MASTER GUIDE TO BIRDING (Vol.1: Loons to sandpipers), tambm publicado por Alfred A. Knopf, em 1983 (Editor: John Farrand, Jr.), a colaboradora Claudia Wilds denuncia a chacina de que foi vtima a espcie ("This species was once extremely abundant, but was slaughtered by the thousands both along its migration routes in North America and on its wintering grounds in South America. Since the end of the 19th century it has hovered near extinction"); mas, em seguida, acena com um pouco de otimismo ("Recently, however, there has been evidence of birds nesting in the Northwest Territories, and well documented sightings every few years along the traditional migration routes, especially on the Texas coast in spring and on the Atlantic coast in summer and fall").

    (26) O acmulo de tecido adiposo fornece aos maaricos o combustvel necessrio para executar as longas migraes. Em palestra (MIGRAES DE AVES) proferida durante o I Encontro Nacional de Anilhadores de Aves, no Campus da Universidade Federal de Viosa (MG), em janeiro de 1985, o Prof. Helmut Sick fez referncia a esse fenmeno, mencionando, de passagem, o maarico-esquim:

    "Quando examinamos, p.ex., maaricos migrantes, verificamos que eles quase pingam de gordura. A gurizada do Nordeste, p. ex. no Cear, aproveita-se dessa fonte fcil de protenas: eles apanham os maaricos, como Calidris e Tringa, com anzol na praia. Uma dessas presas cobiadas neste continente, tambm no Brasil, era o maarico-esquim, Numenius borealis, hoje praticamente extinto." Apud Andrade, M. A. A VIDA DAS AVES (Introduo biologia e conservao). Belo Horizonte: Editora Littera Maciel, 1993, pg. 69.

    Natural de Leipzig, o Prof. Helmut Sick, tantas vezes citado neste ensaio, era dotado de um extraordinrio esprito cientfico. Para demonstr-lo, basta reproduzir um trecho da apresentao de seu livro ORNITOLOGIA BRASILEIRA, UMA INTRODUO, de autoria do poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade:

  • "Recm-casado, teve a m sorte de embarcar para o Brasil s vsperas da Segunda Guerra Mundial. Deixou a esposa na Alemanha e veio embrenhar-se nas matas do Rio Doce, no desempenho de misso cientfica resultante de convnio internacional. O Brasil entra na guerra, e todo alemo passa a ser considerado espio perigoso, mesmo em potencial; pelo sim pelo no, internado na Ilha Grande. A, no podendo estudar aves em sua cela, estuda mseros companheiros de solido: pulgas, percevejos, cupins s destes ltimos, identifica onze espcies desconhecidas."

    (27) A respeito da denominao hudsonian curlew aplicada, em ingls, ao maarico-do-bico-torto (Numenius phaeopus), veja-se: Bull, J.& Farrand, Jr., J. op. cit. nota 25, pg. 398.

    (28) Op. cit. nota 4.

    Agradecimentos

    A Acir Pimenta Madeira Filho, Ana Maria Lages Rocha, Carlos Alberto Franco Faria, Haroldo de Almeida Marques, Haroldo Palo Jnior, In Valria Rodrigues Verlangieri, Jacques Vielliard, Jos Carlos Savassi Rocha, Maria Aparecida Faria Marcondes Bussolotti, Maria Neuma Cavalcante, Mnica Meyer, Ney Carnevalli, Olavo Romano, Paulo Roberto Savassi Rocha, Pedro Paulo Moreira, Virglio Augusto Fernandes de Almeida e Vivaldi Moreira, pela inestimvel colaborao. Aos funcionrios do Museu Casa Guimares Rosa, sediado em Cordisburgo, e do Museu do Ouro (antiga Casa da Intendncia), sediado em Sabar, pela ateno dispensada.