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FLÁVIO CHEDID HENRIQUES EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL E NA ARGENTINA Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós- Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadores: Ana Clara Torres Ribeiro (in memorian) Laura Tavares Ribeiro Soares Michel Jean-Marie Thiollent Rio de Janeiro 2013

Tese Flávio Chedid Henriques_Versão Final

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Tese Flávio Chedid Henriques_Versão Final

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  • FLVIO CHEDID HENRIQUES

    EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL E NA ARGENTINA

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadores: Ana Clara Torres Ribeiro (in memorian) Laura Tavares Ribeiro Soares Michel Jean-Marie Thiollent

    Rio de Janeiro

    2013

  • FLVIO CHEDID HENRIQUES

    EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL E NA ARGENTINA

    Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa

    e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro IPPUR/UFRJ, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do grau de Doutor em

    Planejamento Urbano e Regional.

    Aprovado em:

    BANCA EXAMINADORA __________________________________ Prof. Dra. Laura Tavares Ribeiro Soares

    Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ

    __________________________________ Prof. Dr. Michel Jean-Marie Thiollent

    Faculdade de Administrao - UNIGRANRIO

    __________________________________

    Prof. Dra. Luciana Corra do Lago

    Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ

    __________________________________

    Prof. Dr. Sidney Lianza

    Escola Politcnica Departamento de Engenharia Industrial -UFRJ

    __________________________________

    Prof. Dr. Paul Israel Singer

    Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade - USP

    Secretaria Nacional de Economia Solidria - MTE

    __________________________________

    Prof. Dr. Maurcio Sard de Faria

    Centro de Tecnologia e Desenvolvimento Regional - Departamento de Tecnologia e Gesto - UFPB

  • AGRADECIMENTOS

    Sabendo ser essa uma das partes mais lidas da tese, tenho aqui muita responsabilidade no pouco

    tempo que me resta, pois nos cinco anos em que estive envolvido com a elaborao deste trabalho,

    foram muitas as pessoas que me ajudaram acadmica e emocionalmente a conclu-lo.

    Inicialmente, gostaria de agradecer minha me Leila Chedid Henriques, que tem um papel

    definitivamente fundamental na minha existncia, seja com os carinhos cuidadosos do cotidiano, seja

    pela generosidade de sempre, que s quem a conhece pode entender o que estou falando.

    minha companheira de vida, Fernanda Freitas, minha doce F, que me ajuda diariamente a

    ressignificar o amor e que de forma muito gentil e dedicada revisou o texto desta tese.

    Completando a trade de mulheres espetaculares, Ana Clara Torres Ribeiro, que me acompanhou

    durante quase 4 anos nesta empreitada e com quem ainda consigo dialogar nos dias de inspirao.

    Volta e meia cruzo com seus e-mails afetuosos e artesanais que me fizeram viver a vida um pouco

    melhor.

    Aos familiares, que sempre me dedicaram muito afeto: Janete Chedid; Jorge Chedid, que inclusive

    me ajudou com a impresso deste trabalho; Ivanice Chedid; Dona Uda; Ftima Henriques, Ana Maria

    Henriques, Nilce Henriques; Carmem Henriques; aos sobrinhos que meu quarteto de irms me deu; e

    aos familiares que minha querida F me proporcionou ter: Sandra Pereira, Vov Erondina, Tnia

    Trvia, Rafael Pereira, Tatiana Pereira, Thiago Pereira, Luiz Trvia e Fernando Erthal.

    Aos amigos de Pedro II, que me ensinam como nico e especial manter as bases afetivas de longa

    data: Vitor Banana, Luiz Felipe Freitas, Leonardo Bastos, Bruno Melo, Flvio Lacerda, Pablo Barros,

    Eduardo Miguez, ngelo Vimeney e Ramon Dicovo.

    Aos irmos que a vida me trouxe e que so responsveis por meus momentos mais bonitos: Csar

    Chevrand, Felipe Addor, Vicente Nepomuceno, Maurcio Nepomuceno, Wendell Ficher e Marcelo

    Ribeiro, um dos maiores amigos que algum pode ter. Ao lado de vocs tenho sempre a sensao de

    que a revoluo possvel.

    Aos que transfomam o mundo numa festa deliciosa quando se encontram: Olvia Fava, Butter, Josa

    Barroso, Fernanda Salvador, Michele Nobre, Paulo Sabino, Leile Silvia, Omar Uran e Ana Paula.

    Aos companheiros do SOLTEC, que h 9 anos me convenceram a ser engenheiro, sem que para isso

    tivesse que abdicar de meus sonhos, em especial: Vera Maciel, Cludio Dimande, Alan Tygel, Celso

    Alexandre, Regina Carvalho, Jair Nastalino, Marlia Gonalves, Fernanda Santos, Antnio Cludio,

  • Walter Suemitsu, Sandra Mayrink, Helosa Borges, Diana Helene e Ricardo Mello. E, claro, Sidney

    Lianza, o Sido, que com toda sua ternura e afeto transformou minha vida profissional e pessoal.

    Aos amigos de longa distncia, que esto sempre por perto ajudando a repensar a tecnologia e as

    formas de transformao: Henrique Novaes, Rodrigo Fonseca, Maurcio Sard, Las Fraga, Bruna

    Vasconcelos, Janana Macruz e Cinthia Versiani.

    equipe do mapeamento nacional de empresas recuperadas, que tem uma contribuio

    fundamental neste trabalho. Gostaria de dedicar agradecimentos especiais aos que compartilharam

    as visitas de campo, as anlises e todas as angstias comuns a um trabalho que busca compreender

    um fenmeno social: Vanessa Sgolo, Sandra Rufino, Mariana Girotto, Mara Rocha, Thiago Nogueira,

    Thiago Schmidt, Rodrigo Taufic, Sabrina Abro, Tamara Melo, Fernanda Helena e Alejandra Paulucci,

    que ainda me ajudou na redao em espanhol do resumo. E ainda, ao professor Renato Dagnino, que

    foi muito generoso ao confiar nesta pesquisa, e ao CNPq, que financiou a visita a 52 empresas

    recuperadas por trabalhadores espalhadas pelo Brasil.

    Aos professores que tiveram importncia fundamental em minha formao: Thales Paradela, Flvio

    Bruno, Jos Ricardo Tauile, Carlos Vainer e Hermes Tavares, que deu contribuio importante no

    exame de qualificao desta tese.

    Aos tcnicos do IPPUR, que fazem um trabalho alegre e competente. Em especial: Zuleika, Andr,

    Bel, Dona Maria Jos, sempre muito doce ao me encontrar e Dona Maria, cujo sorriso encantador

    no mais se pode ver pelos corredores do IPPUR.

    Ao Andres Ruggeri, que teve papel de apoio fundamental na minha estadia na Argentina, tendo

    acompanhado passo a passo as visitas de campo que fiz neste pas e estando sempre disposto a

    dialogar a distncia sobre as minhas dvidas relacionadas aos fenmenos das ERTs.

    equipe do Programa Facultad Abierta, que cumpre um papel fundamental no registro de um

    importante captulo da luta operria: Natalia Polti, Paloma Elena, Javier Antivero, Daniel Zazuski,

    Carlos Martinez e Fernando Garcia, que ainda compartilhou comigo alguns tragos de rum no

    Malecn. Em especial, ao Gabriel Damill, que fez um trabalho de transcrio espetacular para auxiliar

    esta tese.

    Ainda na Argentina, Alexia e ao Mariano, que alm de terem alugado seu aconchegante

    apartamento, foram sempre solcitos para que tivesse a melhor adaptao possvel em Buenos Aires.

    Ao Martin Scarpacci, que me recebeu na belssima Rosrio com muita hospitalidade e festa. E ao

    Ramon Ramalho, mineiro guerreiro, que conseguiu fechar ao menos uns 3 bares em minha

    despedida da capital argentina.

  • A todos os trabalhadores e militantes, que disponibilizaram seus tempos de trabalho para contribuir

    com esta pesquisa. Em especial: Placido Pearrieta, que foi sempre de uma generosidade peculiar

    comigo e ainda me proporcionou uma linda festa de despedida nas dependncias da grfica

    Chilavert; Ernesto Gonzlez da Chilavert; Cristian Mellado, que me acompanhou durante os cinco

    dias em que estive em Neuqun e ainda pde trazer a rica experincia da Zann para o Rio de

    Janeiro; Mario Barrios, Federico Courty e Javier Lopez, da UST, que me acompanharam durante um

    dia inteiro para conhecer a riqueza de suas experincias; Hugo Cabrera e Salvador Angel, que me

    proporcionaram momentos especiais na grfica Campichuelo; Eduardo Oliveria e Zulema Vargas, da

    Grfica El Sol; Julio Lpez, que me atendeu com a generosidade mendocina na Grfica Asociados;

    Pedro Santinho, Batata, Alexandre Mandl, Josiane Lombardi, Manu, Caverna, Shaolin e Bruno

    Rampone, todos da Flask, tendo este ltimo gentilmente me alojado em sua casa para que pudesse

    realizar o trabalho de campo; a Lenivaldo Andrade, que na visita Usina Catende nos acompanhou

    pelos canaviais e pelas escolas da Zona da Mata Pernambucana; e a todos os trabalhadores da

    COOPARJ, em especial, Jairo, Willian e Josi, que abriram suas portas desde 2006 para que pudesse

    compartilhar com eles a aventura de conduo de uma gesto operria.

    Laura Tavares, por ter gentilmente me acolhido em um momento delicado e aceitado orientar este

    trabalho.

    Ao Michel Thiollent, por ter ajudado na orientao desta tese mesmo antes de ser oficializado como

    orientador. Mestre, sua dedicao pela construo do conhecimento emocionante.

    Por fim, FAPERJ, que durante os 4 meses em que estive na Argentina, financiou minha estadia por

    meio de uma bolsa de doutorado sanduche.

  • A Flor e a Nusea

    Preso minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.

    Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir at o enjo?

    Posso, sem armas, revoltar-me?

    Olhos sujos no relgio da torre: no, o tempo no chegou de completa justia.

    O tempo ainda de fezes, maus poemas, alucinaes e espera.

    O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.

    Em vo me tento explicar, os muros so

    surdos. Sob a pele das palavras h cifras e cdigos. O sol consola os doentes e no os renova.

    As coisas. Que tristes so as coisas, consideradas sem nfase.

    Uma flor nasceu na rua!

    Vomitar esse tdio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema

    resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida.

    Todos os homens voltam para casa. Esto menos livres mas levam jornais

    e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

    Crimes da terra, como perdo-los? Tomei parte em muitos, outros escondi.

    Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver.

    Rao diria de erro, distribuda em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal.

    Pr fogo em tudo, inclusive em mim.

    Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porm meu dio o melhor de mim.

    Com ele me salvo e dou a poucos uma esperana mnima.

    Passem de longe, bondes, nibus, rio de ao

    do trfego. Uma flor ainda desbotada

    Ilude a polcia, rompe o asfalto. Faam completo silncio, paralisem os

    negcios garanto que uma flor nasceu.

    Sua cor no se percebe.

    Suas ptalas no se abrem. Seu nome no est nos livros.

    feia. Mas realmente uma flor.

    Sento-me no cho da capital do pas s cinco horas da tarde

    e lentamente passo a mo nessa forma insegura.

    Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.

    Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pnico.

    feia. Mas uma flor. Furou o asfalto, o tdio, o nojo e o dio.

    (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 2008)

  • RESUMO

    Esta tese tem como objeto de pesquisa a organizao do trabalho de empresas que

    passaram por processos de falncia e foram reativadas por seus trabalhadores. Essas

    experincias, conhecidas como Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs),

    representaram a manuteno de milhares de postos de trabalho no Brasil e na Argentina

    desde a dcada de 1980, sobretudo no setor industrial. O objetivo desta pesquisa

    caracterizar a prtica da recuperao de empresas nesses dois pases, por meio de dados

    gerais obtidos em levantamentos, e identificar a potencialidade que tem algumas de suas

    iniciativas mais avanadas politicamente para questionar a organizao capitalista do

    trabalho, por meio de estudos de caso. Embora tenha sido evidenciada a influncia exercida

    pelo modo de produo capitalista na estruturao das ERTs, os resultados da pesquisa

    apontam para a existncia de rupturas parciais em diversos aspectos caractersticos da

    organizao capitalista do trabalho, quais sejam: o controle externo da atividade de

    trabalho, que d lugar ao controle exercido pelo prprio operador, regulado por um

    coordenador de produo ou lder de setor; a expropriao do saber do trabalhador, que

    passa a ter maior conhecimento da totalidade do processo produtivo; a intensificao do

    ritmo de trabalho, uma vez que este definido pelo prprio operador, o que tambm resulta

    em um menor ndice de acidentes; e a instrumentalizao do conceito de trabalho, que se

    amplia para atividades que esto para alm das produtivas, simbolizadas nos casos

    estudados por alteraes no espao fsico e vinculaes com movimentos sociais.

    Palavras-chave: Empresas Recuperadas por Trabalhadores. Organizao do Trabalho.

    Autogesto. Economia Solidria.

  • RESUMEN

    La siguiente tesis tiene como objeto de investigacin la organizacin del trabajo de las

    empresas que atravesaron um proceso de quiebra y fueron reactivadas por sus trabajadores.

    A partir de la dcada de 1980, tanto en Brasil como en Argentina, estas experiencias,

    conocidas como Empresas Recuperadas por los Trabajadores (ERTs), mantuvieron miles de

    puestos de trabajo, principalmente en el sector industrial. El objetivo de esta investigacin

    es caracterizar la prctica de recuperacin de empresas en Brasil y en Argentina, mediante

    relevamientos de datos generales obtenidos en ambos pases, e identificar, por medio de

    estudios de casos, el potencial que tienen algunas de sus iniciativas ms avanzadas

    polticamente para cuestionar la organizacin capitalista del trabajo. Apesar de la influencia

    explcita del modo de produccin capitalista en la estructura de las ERTs, los resultados de la

    investigacin apuntan a la presencia de una ruptura parcial de varias caractersticas de la

    organizacin capitalista del trabajo como por ejemplo: el control externo de la actividad

    laboral, sustituido por una funcin de regulacin; la expropiacin del saber del trabajador,

    que obtiene un mayor conocimiento del proceso de produccin; la intensificacin del ritmo

    de trabajo, porque pasa a ser definido por el operador, lo cual tambin se traduce en um

    menor nmero de acidentes; y la instrumentalizacin del concepto de trabajo, que se

    extiende a las actividades que estn ms all de lo productivo, representado en los casos

    estudiados por las mudanzas en el espacio fsico y las relaciones establecidas con los

    movimientos sociales.

    Palabras-clave: Empresas Recuperadas por los Trabajadores. Organizacin del Trabajo.

    Autogestin. Economa Solidaria.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 - Atores da Economia Solidria no Brasil p.57

    Figura 2 - Entrada da IMPA p.126

    Figura 3 - Entrada da IMPA aps mobilizaes p.126

    Figura 4 Universidade dos Trabalhadores P.126

    Figura 5 Evento cultural pela expropriao do hotel P.127

    Figura 6 - A fbrica de mulheres p.128

    Figura 7 - Ramo das Atividades das ERTs p.150

    Figura 8 - Incio da Recuperao p.151

    Figura 9 - Itens recebidos como passivo trabalhista p.153

    Figura 10 - Tamanho das ERTs visto atravs do nmero de trabalhadores p.155

    Figura 11 Diviso por gnero p.156

    Figura 12 - Percentual de scios e contratados nas ERTs. p.157

    Figura 13 - Diviso etria por grupos de trabalhadores das ERTs. p.158

    Figura 14 - Percentual da diviso etria geral dos trabalhadores. p.158

    Figura 15 - Grau de escolaridade dos trabalhadores p.159

    Figura 16 - Distribuio dos trabalhadores por setor de produo, gnero e classe p.160

    Figura 17 - Diviso percentual de trabalhadores por setor de produo p.160

    Figura 18 - Permanncia de diretores e gerentes. p.162

    Figura 19 Motivos para sada dos trabalhadores. p.162

    Figura 20 Motivo principal para sada dos trabalhadores. p.163

    Figura 21 - Incorporao de scios. p.163

    Figura 22 - Principais formas de contratao das ERTs. p.164

    Figura 23 - Frequncia de empreendimentos por classes de produo instalada. p.164

    Figura 24 - Motivos da baixa produtividade relativa capacidade. p.165

    Figura 25 - Relato do estado geral das instalaes. p.166

    Figura 26 - Tipo de recurso com o qual se realizaram os investimentos. p.166

    Figura 27 - Mudanas promovidas no processo produtivo. p.167

    Figura 28 - Qual o papel destes supervisores/coordenadores? p.169

    Figura 29 - Processos Formativos p.171

    Figura 30 Perodo de Mandato do CA p.173

    Figura 31 - Quais so os benefcios de estar nesta organizao? p.184

    Figura 32 - Qual tipo de vnculo estabelece com outra ERT ou EES? p.185

    Figura 33 - Tipo de apoio estatal na recuperao p.186

    Figura 34 - Avaliao negativa do Estado - motivaes p.187

    Figura 35 - A stima integrante. p.195

    Figura 36 - A nova unio. p.196

  • Figura 37 - Uma nova recuperada. p.197

    Figura 38 - Artes Graficas El Sol p.199

    Figura 39 - Entrada da Grafica El Sol p.199

    Figura 40 - Impresiones Barracas. p.203

    Figura 41 - Mural da Grafica Patrcios. p.204

    Figura 42 Plcido no Centro Cultural p.207

    Figura 43 - Centro Cultural Chilavert Recupera p.207

    Figura 44 - Apresentao artstica em Chilavert p.207

    Figura 45 - Festa em Chilavert p.207

    Figura 46 - Centro de Documentao p.208

    Figura 47 - Visita de crianas fbrica p.208

    Figura 48 - Bachillerato Popular. p.208

    Figura 49 - Foto assinada pelo subcomandante Marcos, do Exrcito Zapatista de Libertao

    Nacional, para os trabalhadores de Chilavert. p.209

    Figura 50 - Cooperativa UST. p.221

    Figura 51 - Centro Polidesportivo da UST p.222

    Figura 52 - Entrada do Centro p.222

    Figura 53 - Complexo Agroecolgico da UST p.222

    Figura 54 - Mural do Complexo p.222

    Figura 55 - Programa El Temblor. p.223

    Figura 56 - Habitaes construdas pela UST. p.223

    Figura 57 - Sementes Criolas p.225

    Figura 58 - Plantao agroecolgica p.225

    Figura 59 - Cermica com smbolos mapuches p.234

    Figura 60 - Nuestra Lucha Radial. p.235

    Figura 61 - Local onde acontecem os shows na fbrica. p.235

    Figura 62 - Visita de crianas fbrica p.236

    Figura 63 - Visita de adolescentes fbrica p.236

    Figura 64 - Entrada da fbrica p.237

    Figura 65 - Chuveiro do quarto de visitantes p.237

    Figura 66 - Comisso de Mulheres da Zann. p.241

    Figura 67 - Entrada da Flask. p.251

    Figura 68 - Mobilizao diante do Frum. p.252

    Figura 69 - Fbrica de Cultura. p.253

    Figura 70 - Setor de Mobilizao p.253

    Figura 71 - Bandeira do MST p.253

    Figura 72 - Mini-fbrica de tijolos. p.254

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Distribuio por estado p.150

    Tabela 2 - Nmero de empresas por nmero de trabalhadores p.154

    Tabela 3 - Nmero de trabalhadores desta anlise p.156

    Tabela 4 - Tabela de faixa etria dos trabalhadores por grupos de pessoas p.157

    Tabela 5 - Nvel de escolaridade dos contratados e scios das ERTs p.158

    Tabela 6 - Distribuio dos trabalhadores por setor de produo p.159

    Tabela 7 - Tipos de mudanas ocorridas nas ERTs p.168

    Tabela 8 - Dinmica de rodzios nas ERTs p.168

    Tabela 9 - Participao das mulheres nas ERTs p.170

    Tabela 10 - Frequncia das AGs p.172

    Tabela 11 - Nmero de empresas por diferena de retiradas p.176

    Tabela 12 - Valores de retiradas p.176

    Tabela 13 - Fornecedores das ERTs p.178

    Tabela 14 - Consumidores das ERTs p.179

    Tabela 15 - Percentual de vendas das ERTs p.180

    Tabela 16 Demandas ao Estado p.187

  • SUMRIO INTRODUO .................................................................................................................... 15

    Motivao para a Pesquisa ............................................................................................. 15

    Contexto ........................................................................................................................ 16

    Percurso Metodolgico .................................................................................................. 24

    CAPTULO 1 AUTOGESTO E TECNOLOGIA SOCIAL .............................................................. 28

    1.1 Experincias Histricas de Autogesto ...................................................................... 28

    1.2 O Conceito de Autogesto ........................................................................................ 47

    1.3 Conceitos e prticas de Economia Solidria ............................................................... 54

    1.3.1 A construo do projeto poltico da Economia Solidria ........................................... 55

    1.3.2 As experincias concretas de Economia Solidria ..................................................... 61

    1.3.3 A desconstruo do projeto poltico da Economia Solidria ..................................... 68

    1.3.4 As Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs) ................................................ 72

    1.4 Conceito de Tecnologia Social ................................................................................... 74

    1.4.1 Conceitos de Tcnica e Tecnologia ............................................................................ 74

    1.4.2 A construo do conceito de Tecnologia Social ......................................................... 76

    1.4.3 Divergncias no campo da Tecnologia Social no Brasil .............................................. 78

    1.4.4 A questo da tecnologia nas Empresas Recuperadas por Trabalhadores ................. 79

    1.5 Concluso do Captulo .............................................................................................. 80

    CAPTULO 2 CARACTERSTICAS CENTRAIS DA ORGANIZAO CAPITALISTA DO TRABALHO .. 82

    2.1 Algumas consideraes sobre o conceito de trabalho ................................................ 82

    2.2 As Escolas de Organizao do Trabalho ..................................................................... 84

    2.2.1 Administrao Cientfica ............................................................................................ 85

    2.2.2 Produo Flexvel ....................................................................................................... 94

    2.3 A racionalidade das teorias de organizao capitalista do trabalho ............................ 99

    2.4 Concluso do Captulo ............................................................................................ 101

    CAPTULO 3 EXPERINCIAS DE LUTAS OPERRIAS NO BRASIL E NA ARGENTINA................. 104

    3.1 Do Sindicalismo de Estado ao Novo Sindicalismo no Brasil ....................................... 104

    3.1.1 Breve sntese dos primeiros 50 anos de sindicalismo no Brasil ............................... 104

    3.1.2 O surgimento do Sindicalismo de Estado ................................................................. 106

    3.1.3 O Golpe de Estado, as Comisses de Fbrica, as Oposies Sindicais e o Novo

    Sindicalismo ....................................................................................................................... 108

    3.2 Do anarco-sindicalismo s greves de massa na Argentina ........................................ 113

    3.2.1 Das origens at Pern .............................................................................................. 113

    3.2.2 Os Rosariazos, o Cordobazo e a nova central .......................................................... 115

  • 3.3 Concluso do Captulo ............................................................................................ 118

    CAPTULO 4 EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NA ARGENTINA E NO BRASIL 120

    4.1 Os significados e a legitimidade das ERTs na Argentina ............................................ 120

    4.1.1 Trs casos ilustrativos do apoio popular .................................................................. 125

    4.1.2 Conquistando legitimidade em outros espaos ....................................................... 129

    4.1.3 Qual a potencialidade dessas experincias? ............................................................ 132

    4.1.4 As entidades de representao das ERTs na Argentina ........................................... 135

    4.2 A experincia brasileira de ERTs .............................................................................. 143

    4.2.1 As pesquisas sobre autogesto industrial ................................................................ 144

    4.2.2 Mapeamento das ERTs no Brasil .............................................................................. 148

    4.2.3 A invisibilidade das ERTs brasileiras ......................................................................... 188

    4.3 Concluso do Captulo ............................................................................................ 190

    CAPTULO 5 ESTUDOS DE CASO NA ARGENTINA E NO BRASIL ............................................ 192

    5.1 Red Grafica Cooperativa ......................................................................................... 193

    5.1.1 Descrio da Rede .................................................................................................... 194

    5.1.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 199

    5.2 Imprenta Chilavert ................................................................................................. 204

    5.2.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 205

    5.2.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 206

    5.3 Unin Solidaria de Trabajadores ............................................................................. 220

    5.3.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 220

    5.3.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 224

    5.4 FaSinPat Zann....................................................................................................... 230

    5.4.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 232

    5.4.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 236

    5.5 Flask .................................................................................................................... 249

    5.5.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 250

    5.5.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 254

    5.6 Concluso do Captulo ............................................................................................ 261

    CAPTULO 6 ELEMENTOS DE RUPTURA POR UMA NOVA FORMA DE ORGANIZAO DO

    TRABALHO ...................................................................................................................... 262

    6.1 A jornada e o ritmo de trabalho e a segurana do trabalhador ................................. 265

    6.2 A diferenciao salarial ........................................................................................... 266

    6.3 Novos significados do espao de trabalho ............................................................... 268

    6.4 Para alm dos muros das fbricas ........................................................................... 269

  • 6.5 Relaes entre os trabalhadores ............................................................................. 270

    6.6 A resistncia s crises: por uma nova teoria de viabilidade econmica ..................... 271

    6.7 Mudanas no processo produtivo, no produto e no maquinrio .............................. 272

    6.8 A diviso de tarefas e o papel da mulher ................................................................. 274

    6.9 A radicalizao da democracia no interior das empresas ......................................... 275

    CONCLUSO .................................................................................................................... 278

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 282

    APNDICES ...................................................................................................................... 298

    APNDICE A - Roteiro de Entrevistas para Assessorias de ERTs .......................................... 298

    APNDICE B - Roteiro de Entrevistas para Red Grfica Cooperativa ................................... 299

    APNDICE C - Roteiro de Entrevistas para Trabalhadores das ERTs .................................... 300

    ANEXOS........................................................................................................................... 303

    ANEXO A Questionrio para Mapeamento de ERTs no Brasil .......................................... 303

    ANEXO B - Lista das ERTs no Brasil.................................................................................... 323

    ANEXO C - Lista das ERTs com processos de recuperao finalizados no Brasil ................... 327

    ANEXO D - Lista das ERTs Argentinas ................................................................................ 330

  • 15

    INTRODUO

    Motivao para a Pesquisa

    A escolha das fbricas recuperadas por trabalhadores como tema de pesquisa tem forte

    relao com minha trajetria profissional. Ao longo da formao que tive como engenheiro de

    produo sempre questionei a parca presena de matrias que tratassem de temas vinculados

    ao cho de fbrica. No incio dos anos 2000, o modismo da qualidade total aliado forte

    investida do mercado financeiro nos cursos de engenharia, em especial no de produo,

    contriburam para que as disciplinas relacionadas produo industrial se tornassem

    secundrias nos departamentos que, curiosamente, ainda so denominados de engenharia

    industrial.

    No fim da graduao, pude estagiar numa pequena fbrica metalrgica. Nos trs meses em

    que estive na empresa, vivenciei conflitos resultantes do antagonismo de interesses existentes

    entre os detentores do capital e os operrios, que me trouxeram questionamentos sobre a

    formao dos engenheiros e os modelos de gesto tradicionais.

    Por que ao longo de quase cinco anos de curso no foram debatidas as relaes sociais que

    so estabelecidas no mbito da produo? Por que tive um acesso restrito vasta literatura

    que trata do funcionamento da indstria capitalista? Por que os modelos de gesto foram

    ensinados sem qualquer viso crtica acerca das relaes de poder que engendram? Havia

    possibilidades de organizar a produo de tal forma que as decises estratgicas no

    estivessem restritas queles que so os donos do meio de produo?

    Certamente no foram essas as questes que formulei naquela poca, mas estava latente a

    necessidade de atuar na engenharia com uma perspectiva mais crtica do que as apresentadas

    pelos gurus da qualidade total. Foi nesse perodo que passei a ler sobre autogesto e a

    procurar grupos de pesquisa em que poderia trabalhar.

    Sem espao de atuao na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde finalizava

    minha graduao, foi na Universidade Federal Fluminense (UFF), na Faculdade de Sociologia,

    que tive o primeiro contato com experincias de economia solidria, na Incubadora de

    Cooperativas da UFF, coordenada pela professora Brbara Frana. No mesmo perodo, cursei a

    disciplina Economia Solidria e Autogesto no Instituto de Economia da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o professor Jos Ricardo Tauile.

    Poucos meses depois, em junho de 2004, conheci e integrei, na Escola Politcnica da UFRJ, o

    Ncleo de Solidariedade Tcnica (SOLTEC), coordenado pelo professor Sidney Lianza do

  • 16

    Departamento de Engenharia Industrial. No espao em que encontrei estudantes com as

    angstias similares s minhas, pude desenvolver pesquisas e atividades de extenso com

    pescadores, moradores de favelas, comunidades caiaras e operrios que voltaram a produzir

    depois de decretada a falncia da empresa em que trabalhavam. Nesta tese, estes

    empreendimentos so denominados de Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs).

    O projeto de pesquisa e extenso sobre empresas recuperadas em que pude trabalhar se

    iniciou em 2005 com uma parceria entre o SOLTEC e o professor Jos Ricardo Tauile, que

    meses depois faleceu prematuramente. A proposta era a criao de um Centro de Referncia

    em Iniciativas Autogestionrias. Como consequncia dessa aproximao, atuei por dois anos

    prestando assessoria a uma cooperativa de parafusos, o que possibilitou que desenvolvesse

    minha dissertao de mestrado sobre as diferentes prticas de assessoria que eram realizadas

    junto a grupos de trabalhadores associados no estado do Rio de Janeiro. Pude vivenciar, nesse

    perodo, as dificuldades e xitos que os operrios tm na gesto coletiva do empreendimento,

    assim como as contradies existentes em uma experincia que para se concretizar depende

    do rompimento de enormes barreiras culturais.

    Nesta tese de doutorado, trabalho com as questes que tive durante a graduao e foram

    aprofundadas no perodo seguinte. Meu objeto de pesquisa a organizao do trabalho das

    empresas recuperadas, numa tentativa de compreender as mudanas resultantes da

    experincia de trabalhadores, que inovaram em um contexto de crise, ao negarem entregar

    seus postos de trabalho sem resistncia. Busco identificar os fatores que interferem na

    democratizao da gesto em dois diferentes pases e como essas novas prticas podem

    contribuir para a construo de uma nova teoria de organizao do trabalho ao expor conflitos

    e relaes de poder atreladas aos modelos de gesto. Com esta abordagem, procuro

    elementos que ajudem a repensar o ensino da engenharia de produo, e outros cursos que se

    encontram no campo da administrao, numa perspectiva de emancipao do trabalho.

    Contexto

    A imagem que gostaria de apresentar inicialmente a dos guerrilheiros independentistas da

    ilha de Bouganville, relatados no documentrio A Revoluo dos Cocos, de 1999, feito pela

    National Geographic. A populao desta ilha, que at a dcada de 1990 pertencia Papua

    Nova Guin, foi gravemente afetada pelos resduos da maior mina de cobre a cu aberto do

    mundo, da empresa britnica Rio Tinto Zinc.

    Diante da guerra pela independncia, que no fim do sculo XX os isolava do mundo, a

    populao local passou a empreender uma srie de inovaes tecnolgicas a partir dos

    recursos naturais da ilha, sobretudo o coco. Passaram a fabricar suas prprias armas,

  • 17

    descobriram efeitos medicinais de suas plantas, inovaram na gerao de energia eltrica e

    conseguiram que o leo de coco servisse como combustvel para as caminhonetes, necessrias

    para o deslocamento na ilha.

    Apesar de todas as limitaes e dificuldades vividas pelos moradores da ilha, o filme

    demonstra a capacidade deles de reinventarem solues para a vida a partir de recursos da

    natureza diante de uma situao extrema. Traando um paralelo a esse caso, pergunto: que

    inovaes no campo do trabalho, em especial na Amrica Latina, aconteceram no contexto da

    aguda crise causada pelo modelo neoliberal?

    A partir da crise financeira pela qual passou o sistema capitalista na dcada de 1970, as

    propostas keynesianas, que garantiram os anos dourados do capitalismo com o Estado de

    bem-estar social, cederam espao para uma nova doutrina econmica, que desde a dcada de

    1940, como descreve Rosenmann (2006), aparecia como uma tentativa de renovao do

    liberalismo1.

    A doutrina neoliberal consiste, segundo Soares (2001), na aplicao de um receiturio de

    contrao da moeda, eliminao do Estado como agente econmico, reduo dos gastos com

    as polticas sociais e liberalizao do mercado. Segundo a autora, entre os interesses

    econmicos e polticos subjacentes a essa doutrina, est a formulao de um novo esquema

    de diviso internacional do trabalho, que responde a interesses dominantes nos pases do

    centro e nos da periferia.

    No mesmo ms em que ocorreu a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, um

    conjunto de medidas, que sintetizava as propostas neoliberais acima mencionadas, foi

    formulado por instituies financeiras, como o FMI e o Banco Mundial e recebeu o nome de

    Consenso de Washington. Impulsionados pela euforia causada pelo fim da Guerra Fria, como

    relata Rosenmann (2006), muitos pases seguiram risca a cartilha desenvolvida pelas

    instituies financeiras de Washington e vivenciaram o aumento da desigualdade social e da

    pobreza em seus territrios.

    Para Soares (2001), os problemas gerados por essa poltica foram agravados na Amrica Latina

    pelo peso do passado, referindo-se ao processo de formao histrica desse continente, cujo

    saque s suas riquezas naturais, muito bem detalhado por Eduardo Galeano (2008) em As

    Veias Abertas da Amrica Latina, impediu o pleno desenvolvimento da estrutura produtiva de

    1 O referido autor relata a formao do Centro Internacional de Estudos para Renovao do Liberalismo,

    surgido na Frana e que tambm deu nome sociedade criada na Suia, que tinha como participantes Milton Friedman e Friedrich Hayek, que durante a dcada de 1970 receberam o prmio Nobel de economia.

  • 18

    seus pases. Em 1990, 46% da populao latinoamericana2 se encontrava abaixo da linha da

    pobreza.

    O avano das polticas neoliberais na dcada de 1990 acentuou os problemas sociais na

    Amrica Latina, tendo sido os trabalhadores industriais duramente afetados3. As empresas de

    mdio e pequeno porte sofreram com a concorrncia externa e muitas decretaram falncia.

    No Brasil, segundo dados do SERASA4, a dcada de 1990 apresentou um altssimo ndice de

    requisies de falncias. No ano de 1996, foram 48.169 requisies de falncias5 no pas

    enquanto que, no ano de 1991, esse nmero foi de 12.847, quase quatro vezes menor. A partir

    de dados levantados por Verago (2011)6, entre os anos de 1999 e 2001, o nmero de

    requisies de falncia na Argentina ultrapassou a casa dos 10.000, enquanto que em um

    perodo de crescimento econmico, como em 2007, esse nmero no chegou a 3.000.

    Foi no perodo de maior crise dos dois pases (1995/1996 no Brasil e 2000/2001 na Argentina)

    que se intensificou a luta dos trabalhadores pela recuperao de seus postos de trabalho. Se as

    potncias mundiais souberam inventar novas estratgias de colonizao, os principais afetados

    pelas polticas neoliberais tambm deram respostas inesperadas s consequncias sociais

    desta fase do capitalismo.

    A Economia Solidria no Brasil

    Diante do quadro de falncias e do aumento da taxa de desemprego, o trabalho associado

    ressurgiu7 como alternativa de gerao de renda para milhares de trabalhadores. Com o nome

    de Economia Solidria, um movimento organizado por trabalhadores, militantes e

    pesquisadores ganhou fora no Brasil em meados da dcada de 1990.

    Foi nesse perodo que surgiram: a primeira Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares

    (ITCP), em 1995, na COPPE/UFRJ; a Rede Interuniversitria Unitrabalho que tambm

    desenvolve projetos de incubao -; e o Frum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro.

    Hoje, a rede de ITCPs engloba mais de 40 universidades; a Rede Unitrabalho cerca de 70; e

    todos os estados do Brasil e alguns municpios possuem fruns organizados para debater as

    2 Que correspondia a 196 milhes de pessoas, segundo dados da CEPAL apresentados por Soares (2001).

    3 Alm de muitas fbricas terem quebrado, as que sobreviveram competio com os produtos

    importados, como relata Verago (2011), tenderam a substituir trabalho por capital. Este processo ficou conhecido como reestruturao produtiva. 4

    Retirado do stio em 20.02.2010 5 Trabalho com os dados de requisies de falncias por considerar que estes refletem melhor o

    momento vivido pelo pas, uma vez que o tempo necessrio para decretar a falncia, por vezes, leva mais de um ano. 6 Fonte: Consultoria Fidelitas e Veraz

    7 Nesta tese, no item 1.1 apresentado um conjunto de lutas da classe trabalhadora pela autogesto,

    que ajudam a entender que a prtica do trabalho associado se deu em distintos momentos da histria.

  • 19

    questes da economia solidria. Em 2001, no I Frum Social Mundial de Porto Alegre foi

    institudo o Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidria, que teve papel importante na

    conquista, em 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidria (SENAES), ligada ao

    Ministrio do Trabalho e Emprego.

    O mapeamento da Economia Solidria8, realizado pela SENAES com apoio do Frum Brasileiro

    de Economia Solidria e dos Fruns Regionais, revelou, em 2007, a existncia de 21.859

    Empreendimentos de Economia Solidria (EES) 9 , dos quais 7.978 ainda so informais,

    envolvendo 1.687.496 trabalhadores.

    Apesar do nmero expressivo de iniciativas, importante frisar o seu grau de informalidade

    (36,5%) e a baixa remunerao gerada por essas atividades: 71,32% dos empreendimentos

    tm faturamento mensal inferior a R$ 5.000,00 e, destes, 30,89% revelaram estar sem renda,

    sendo alguns limitados a atividades de subsistncia. A luta pela sobrevivncia a caracterstica

    principal destas experincias, como se pode identificar na anlise do mapeamento. Apenas

    1.571 dos EES declararam que o motivo principal da formao do grupo foi o trabalho

    associado, ou seja, pouco mais de 8,8% dos que responderam. Enquanto isso, 6.746 EES

    (38,1%) disseram que se associaram, prioritariamente, como alternativa ao desemprego e

    outros 6.399 (36,2%) para obterem maior ganho ou complementarem renda.

    A exposio desse quadro no pretende desqualificar essas experincias, mesmo porque

    qualquer expectativa mais otimista desconsideraria que tais empreendimentos foram

    formados em condies completamente adversas. importante, entretanto, que se considere

    a situao real vivida por esses trabalhadores na tentativa de evitar uma idealizao das

    possibilidades de transformao social trazidas pela economia solidria.

    A recuperao de empresas

    Dentre as prticas da economia solidria, uma chama ateno pelo fato de no se tratar da

    formao de novos agrupamentos de trabalhadores. A recuperao de empresas uma prtica

    desenvolvida por trabalhadores que, na iminncia de ficarem desempregados, negociam ou

    lutam pelo acesso aos meios de produo de empresas falimentares10. Ruggeri (2009) define a

    8 Retirado do stio em 20.02.2010

    9 Segundo o stio da SENAES, o mapeamento identifica cooperativas, associaes, empresas de

    autogesto (que prefiro chamar de empresas recuperadas), grupos solidrios, redes solidrias e clubes de troca que realizam coletivamente a compra de insumos ou comercializao e processamento dos seus produtos. 10

    Na base conceitual do Sistema de Informaes da Economia Solidria (SIES), estes empreendimentos so denominados de empresas de autogesto. Uma vez que a definio do conceito de economia solidria abrange apenas iniciativas de autogesto, considero a limitao do nome autogesto s empresas recuperadas um equvoco conceitual, cujos motivos so expostos em Henriques (2007).

  • 20

    recuperao de empresas como um processo social e econmico que pressupe a existncia

    de uma empresa capitalista anterior cuja falncia ou inviabilidade econmica resultou na luta

    dos trabalhadores por autoger-las. As empresas recuperadas tambm se distinguem dos

    demais EES por gerarem rendas mais elevadas11.

    H vrios exemplos histricos de manuteno dos postos de trabalho por meio da ocupao

    das empresas, sendo alguns deles descritos nesta tese. A partir da dcada de 1990, essa

    prtica ressurge como alternativa para um contingente significativo de trabalhadores,

    sobretudo no Brasil e na Argentina.

    No Brasil, h experincias de empresas recuperadas desde a dcada de 1980, como

    exemplifica o caso da empresa de extrao de carvo mineral em Cricima (Cooperminas).

    Mas, a partir da dcada de 1990, com o apoio da Associao Nacional dos Trabalhadores de

    Empresas de Autogesto e Participao Acionria (ANTEAG), que acontece o crescimento e a

    consolidao destas experincias no pas. A partir de 1999, a Central nica de Trabalhadores

    (CUT) passou a apoiar a recuperao de fbricas por meio da Central de Cooperativas e

    Empreendimentos Solidrios (UNISOL), transformando a recuperao numa das possibilidades

    da luta sindical. Em 2002, surgiu o Movimento de Fbricas Ocupadas diante da falncia das

    empresas do grupo CIPLA de Joinville. Este movimento tem como bandeira principal a

    estatizao de empresas sob controle operrio, refutando a proposta de construo de

    cooperativas como sada.

    Em uma pesquisa realizada no Brasil, cuja parte dos resultados ser apresentada nesta tese,

    foram identificados 67 casos de ERTs12 em funcionamento e 78 casos13 de recuperao que j

    foram encerrados14. Na Argentina, embora tambm existam experincias da dcada de 1990, a

    exploso do fenmeno se deu com a crise de 200115. Ocupar fbricas tornou-se uma

    alternativa concreta para 205 empresas16, segundo dados do levantamento, feito em 2010, por

    pesquisadores da Universidade de Buenos Aires (RUGGERI ET AL., 2011)17.

    tambm na Argentina que pode ser encontrado, atualmente, o maior esforo de

    sistematizao dos dados referentes s empresas recuperadas e de conceituao deste

    11

    A mdia de retirada mnima das ERTs brasileiras, segundo dados da pesquisa apresentada nesta tese, de R$ 1.063,05, enquanto a mdia de retirada mxima de R$ 4.998,46. 12

    A listagem desses casos encontra-se no ANEXO B desta tese 13

    A listagem desses casos encontra-se no ANEXO C desta tese 14

    Seja porque a empresa voltou a funcionar sob gesto patronal, seja porque faliu novamente. 15

    A luta das fbricas argentinas nesse perodo foi registrada no documentrio La Toma de Avi Lewis e Naomi Klein. 16

    Com a crise de 2010 novas fbricas foram recuperadas e estima-se que ao menos cerca de 20 novas empresas foram recuperadas. 17

    A listagem das ERTs argentinas mapeadas nessa pesquisa encontram-se no ANEXO D desta tese.

  • 21

    fenmeno. Este esforo se d por conta da necessidade de demarcao de um campo distinto

    daquele da Economia Social18. A principal razo deste intuito de diferenciao a necessidade

    de polticas pblicas, que so intrinsecamente diferentes das que atendem aos

    empreendimentos da Economia Social, como, por exemplo, o microcrdito, que no

    suficiente para as fbricas adquirirem novos maquinrios e matria prima.

    Na Argentina, tambm existem diferentes entidades representativas dos segmentos das

    empresas recuperadas: Movimento Nacional de Empresas Recuperadas (MNER), Movimento

    Nacional de Fbricas Recuperadas por Trabalhadores (MNFRT), Federao de Cooperativas de

    Trabalhadores Autogestionrios (FACTA), Unio Produtiva de Empresas Autogestionadas

    (UPEA), alm dos apoios relacionados aos sindicatos como Associao Nacional dos

    Trabalhadores de Autogesto (ANTA) e Unio Operria Metalrgica (UOM) de Quilmes.

    As iniciativas relatadas nesta sesso, algumas j consolidadas h cerca de 20 anos, revelam a

    capacidade de operrios recuperarem empreendimentos produtivos sem a presena de um

    patro, apesar de todas as dificuldades que enfrentam. Este fato gera expectativas sobre as

    potencialidades de transformao social advindas de uma eventual proliferao destes casos.

    Nesta direo, Ruggeri (2009) lembra que a maioria das empresas recuperadas surge a partir

    da necessidade extrema vivida pelos trabalhadores de lutar pela manuteno dos seus postos

    de trabalho e, no, como uma luta poltica conduzida pelo iderio anticapitalista. No significa

    que seja impossvel identificar nestas experincias questes inovadoras quanto ao conflito

    entre capital e trabalho; mas esta considerao ajuda a ter uma postura crtica com relao

    aos estudos que conferem aos seus objetos de pesquisa caractersticas idealizadas pelo

    pesquisador.

    Os diversos estudos sobre as empresas recuperadas tentam, em geral, responder a dois

    desafios: o primeiro, registrar as diferentes experincias e suas prticas, relacionando-as com

    os contextos em que esto inseridas e os movimentos sociais que as acompanham. O segundo,

    analisar as inovaes que decorrem dessas iniciativas que, em geral, situam-se no mbito das

    relaes sociais de produo.

    A primeira inovao a prpria sada encontrada para responder falncia ou ao

    sucateamento das unidades produtivas. A recuperao de fbricas, sem a presena do

    capitalista, em si, uma inovao do ponto de vista da luta dos trabalhadores num contexto

    18

    Conceito mais utilizado pelos argentinos para designar experincias de trabalho associado. Entretanto, nos ltimos tempos possvel encontrar estas prticas agrupadas no conceito de Economia Social e Solidria.

  • 22

    de crise, o que no significa que o rumo inexorvel dessas iniciativas seja a construo de um

    novo modelo de sociedade.

    Para identificar contribuies dessas experincias constituio de novas relaes sociais de

    produo, faz-se necessrio analisar as reformulaes realizadas no processo de trabalho,

    desde solues encontradas na produo quanto na gesto administrativa e estratgica das

    empresas. O intuito desta pesquisa identificar fatores que apontam para a radicalizao da

    democracia nas unidades produtivas. Para isto parte da seguinte questo norteadora: Que

    inovaes no campo da organizao do trabalho produziram as empresas recuperadas por

    trabalhadores no Brasil e na Argentina?

    A tese central a de que as limitaes impostas pela hegemonia do modo de produo

    capitalista no encerram a possibilidade de construo de novas relaes sociais de produo.

    As inovaes que busco fotografar nesta tese se assemelham descrio de Carlos Drummond

    de Andrade (2008) da flor que rompeu o asfalto:

    Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, nibus, rio de ao do trfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polcia, rompe o asfalto. Faam completo silncio, paralisem os negcios, garanto que uma flor nasceu.

    Sua cor no se percebe. Suas ptalas no se abrem. Seu nome no est nos livros. feia. Mas realmente uma flor.

    (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 2008)

    A flor, rodeada pelo asfalto, sem dvidas limitada pelas condies do entorno, que dificultam

    sua nutrio e crescimento. Todavia ela existe e rompe o asfalto de forma desobediente. Antes

    da flor, h o broto, que o olhar mope do pensamento ortodoxo no permite enxergar. As

    experincias de luta pela autogesto so, para mim, brotos de flor em meio ao asfalto. Como o

    broto depende de cuidado e nutrientes para se desenvolver, h na crtica descompromissada

    consequncias srias, por mais que se pretendam progressistas, pois dificultam que as

    experincias germinem19. Coaduna-se com esse pensamento o que Boaventura de Sousa

    Santos (2007) chama de crtica razo indolente, que denuncia o desperdcio das experincias

    sociais existentes.

    19

    Para Ana Clara Torres Ribeiro (2012), leituras equivocadas do contemporneo so parcialmente

    responsveis pelo fracasso de experincias sociais inicialmente revoluncionrias.

  • 23

    As iniciativas concretas de autogesto, ou mesmo as que assim no se intitulam, mas que em

    seu contedo apresentam caractersticas do que nesta tese chamo de autogesto, apresentam

    elementos de ruptura com a organizao capitalista do trabalho, que se concretizam em

    experimentos de novas relaes sociais de produo. Tais rupturas so limitadas e a

    organizao do trabalho das ERTs fortemente influenciada pela forma hegemnica de se

    estruturar a atividade de trabalho. Entretanto, sem um olhar atento para as experincias no

    se pode enxergar os brotos.

    O que proponho nesta tese tampouco que esse olhar para alguns casos pr-selecionados

    desconsidere o conjunto das experincias. preciso ter a dimenso de que no s tais

    iniciativas tm uma participao pequena na economia dos dois pases estudados, como se

    diferenciam em muitos aspectos das questes analisadas nos casos escolhidos, que j

    apresentavam previamente sinais de maiores avanos com relao construo de novas

    relaes sociais de produo.

    Este olhar mais amplo me faz concluir que no possvel falar ainda no surgimento de uma

    nova escola de organizao do trabalho autogestionria. Os elementos que configuram a

    estrutura da atividade de trabalho dessas experincias esto dispersos e ainda fortemente

    influenciados pela lgica da organizao capitalista do trabalho.

    Minha tese a de que os brotos existentes fornecem elementos que permitem a

    problematizao em vrios aspectos da organizao capitalista do trabalho e, por meio de uma

    crtica prtica, como sugere Rebn (2007), propiciam a reflexo sobre a possibilidade de

    superao do modelo hegemnico.

    Defendo, portanto, que as experincias de autogesto e controle operrio descritas e

    analisadas nesta tese so contribuies pedaggicas ao processo de reinveno da

    emancipao social, como prope Boaventura de Sousa Santos (2007).

    As experincias pretritas de tentativa de construo do socialismo demonstraram que a falta

    de acmulo sobre novas formas de organizao do trabalho representou uma limitao

    histrica construo de novas relaes sociais de produo20. em busca desta contribuio

    que enxergo nas empresas recuperadas por trabalhadores experimentos reais emancipatrios

    que exigem a criao e o fortalecimento de um campo de pesquisas, estudos e formao que

    propicie anlises crticas, dialgicas e transformadoras.

    Para dar conta da questo proposta, o primeiro captulo apresenta uma reflexo sobre os

    conceitos de Autogesto e Tecnologia Social. Alm de relatar alguns dos antecedentes

    20

    Como quando Lenin optou pelo taylorismo como modelo de produo das fbricas soviticas.

  • 24

    histricos das atuais experincias de recuperao de fbricas, busca-se refletir sobre o

    conceito de Autogesto, que central para qualificao das prticas estudadas, e de

    Tecnologia Social, que o marco terico a partir do qual se debate sobre a necessidade de

    construo de novos paradigmas tecnolgicos para a prtica da autogesto.

    No segundo captulo, busca-se compreender as caractersticas centrais da organizao

    capitalista do trabalho e para tanto se discute o conceito de trabalho, perpassando pelas

    principais escolas que influenciaram a estruturao da atividade industrial no modo de

    produo capitalista.

    No terceiro captulo so aprofundadas algumas das lutas operrias dos dois pases a serem

    analisados Brasil e Argentina. Foi dada nfase especial ao Cordobazo e Rosariazo na

    Argentina e ao surgimento do novo sindicalismo no Brasil, dado que registram o ressurgimento

    do sindicalismo de base nesses dois pases, enquanto vivenciavam perodos ditatoriais.

    No quarto captulo so descritas as caractersticas gerais, por meio de dados agregados, das

    empresas recuperadas por trabalhadores na Argentina e no Brasil. Enquanto no primeiro pas

    so enfatizadas as anlises j realizadas acerca do fenmeno de empresas recuperadas, no

    Brasil apresentado um primeiro mapeamento que buscou englobar a totalidade das

    experincias existentes.

    No quinto captulo so analisados cinco casos, sendo um deles de uma rede que compe 19

    ERTs. Os quatro demais se referem a trs ERTs argentinas e uma brasileira, que atenderam aos

    requisitos previamente definidos para escolha dos casos.

    Para finalizar a tese, o sexto captulo traz uma sntese das inovaes identificadas nas

    experincias estudadas, dando nfase aos elementos de ruptura com a organizao capitalista

    do trabalho.

    Percurso Metodolgico

    Pela estrutura apresentada, pode-se perceber que a tese tanto descritiva como analtica. A

    parte em que sero descritos os contextos das experincias brasileiras e argentinas est

    ancorada em levantamentos realizados nos dois pases por equipes de pesquisa com

    questionrios similares, porm adequados a cada contexto.

    Na Argentina, o Programa de Extenso Facultad Abierta da Faculdade de Filosofia e Letras da

    Universidade de Buenos Aires (UBA) foi responsvel pela realizao de trs levantamentos nos

    anos de 2004, 2007 e 2010. Este grupo me recebeu por quatro meses durante o perodo de

    estgio doutoral.

  • 25

    Com total influncia desse intercmbio, foi organizado um grupo de pesquisa21, envolvendo

    dez universidades no Brasil22 para realizar um mapeamento similar, com objetivo de conhecer

    a totalidade de experincias de empresas recuperadas no pas. Desde a formulao do projeto,

    passando pela elaborao do questionrio, at as discusses conceituais, foi estabelecido o

    dilogo com a equipe argentina.

    A apresentao dos dados dessa pesquisa coletiva, da qual fao parte, fundamental para

    situar o objeto de pesquisa, fornecendo um panorama geral dos casos, traado por meio da

    aplicao em 58 empresas23 de um questionrio com doze eixos24: dados gerais da empresa e

    dos entrevistados; processo de recuperao; marco legal; estrutura ocupacional e perfil dos

    trabalhadores; produo e tecnologia; relaes de trabalho e educao; perfil organizacional;

    comercializao e relao com mercados; seguridade social e segurana do trabalho; relao

    com a sociedade, movimentos sociais e sindicatos; relao com estado; autoavaliao e

    perspectivas.

    A parte analtica da tese consiste na realizao de estudos de caso no Brasil e na Argentina25.

    Inicialmente, estava programada a realizao de ao menos um estudo de caso na Venezuela,

    que no foi possvel por limitaes oramentrias e de tempo. Foi realizada uma visita a uma

    fbrica na Venezuela, assim como a duas fbricas uruguaias, mas no com a imerso

    necessria para realizao de um estudo de caso. Essas visitas serviram para gerar novas

    hipteses e desejos de pesquisas futuras. De qualquer forma, Brasil e Argentina concentram a

    maior parte dos casos e so responsveis pelo espao que o tema alcanou no mbito das

    lutas atuais dos trabalhadores.

    A escolha dos casos levou em considerao a potencialidade de serem encontrados elementos

    de ruptura na forma de gesto dos empreendimentos. A deciso foi tomada com base em

    leituras prvias, pesquisa documental e informaes de pesquisadores que conheciam os

    21

    Para consolidao desse grupo e realizao da pesquisa contou-se com apoio financeiro do CNPq 22

    Grupo de Anlise de Poltica de Inovao (GAPI/UNICAMP), Ncleo de Solidariedade Tcnica (SOLTEC/UFRJ), Ncleo de Apoio s Atividades de Extenso em Economia Solidria (NESOL/USP), Incubadora de Empreendimentos Sociais e Solidrios da Universidade Federal de Ouro Preto (INCOP/UFOP), CEFET-RJ/Nova Iguau, Organizaes & Democracia (Org & Demo) UNESP-Marlia, Ncleo de Estudos em Tecnologias Sociais (NETS/UFVJM), Incubadora de Empreendimentos Solidrios da Universidade Federal da Paraba (INCUBES/UFPB), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ncleo de Estudo, Pesquisa e Extenso em Projetos de Engenharia e Gesto Aplicados ao Desenvolvimento Ambiental e Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PEGADAS-UFRN). 23

    Dessas 58 aplicaes, seis no foram consideradas ERTs e pude participar de 30 entrevistas das 52 ERTs que foram visitadas e inseridas no estudo. 24

    Que so muito similares aos eixos dos levantamentos argentinos. 25

    Foram entrevistados 36 trabalhadores de 4 ERTs e 15 trabalhadores das 11 grficas visitadas pertencentes Red Grafica Cooperativa. Alm disso, foram entrevistados 7 lideranas e pesquisadores ligados ao movimento de empresas recuperadas na Argentina.

  • 26

    casos. Como se pode perceber, a maneira com que os casos foram escolhidos no permite

    uma generalizao das caractersticas encontradas para o conjunto das empresas recuperadas,

    que no era a inteno.

    Durante a imerso no campo foi observado que as tarefas que os trabalhadores tinham que

    gerir no eram as mesmas das empresas tradicionais e a elaborao do roteiro teve que

    considerar esses fatores. Os itens analisados foram os seguintes: hierarquizao dos salrios;

    estimulantes do trabalho; significado do ambiente de trabalho; relao com os demais

    trabalhadores; diviso de tarefas e o conhecimento do processo produtivo; tomada de

    deciso; intensidade do trabalho; layout das fbricas; alteraes no processo produtivo e no

    maquinrio; relao com movimentos sociais; segurana do trabalho; questo legal; e

    operacionalizao do conceito de autogesto.

    Para os estudos de caso foram elaborados dois roteiros semiestruturados. Um com os eixos

    acima referidos, aplicados com diferentes trabalhadores de distintos setores26. O outro

    necessitou ser adaptado, pois um dos casos escolhidos foi de uma rede do setor grfico que

    envolvia 19 empresas argentinas dispersas no territrio. Foram visitadas 11 empresas dessas

    19 e como o foco era o funcionamento da rede e no das grficas individualmente, o roteiro27

    foi aplicado apenas uma vez em cada caso, necessitando, portanto, de uma adaptao.

    Foram ainda elaborados outros dois roteiros de pesquisa: um para as assessorias de empresas

    recuperadas argentinas28, que permitiu compreender as diferentes vises dos movimentos

    nesse pas e outro para pesquisadores que participaram do mapeamento argentino, que

    auxiliou na construo da pesquisa no Brasil.

    Com relao a este mapeamento, cabe reforar que se trata de um trabalho coletivo, que

    envolveu inmeros pesquisadores e que fortaleceu a criao de um campo de pesquisa

    vinculado s empresas recuperadas no pas. Algumas das escolhas, como a adoo do conceito

    Empresas Recuperadas por Trabalhadores, se deram no mbito do projeto, por meio de

    discusses amplas, em que tambm foi consultada a equipe argentina. Nesse sentido, um dos

    grandes desafios da redao desta tese o de conseguir distinguir as anlises individuais das

    decises tomadas pela equipe de pesquisa.

    Apesar de o estudo apresentar a realidade de dois pases e em alguns momentos traar

    paralelos entre as experincias, no tem o intuito de ser um estudo comparativo, mesmo

    26

    Este roteiro encontra-se no APNDICE C desta tese. 27

    Este roteiro encontra-se no APNDICE B desta tese. 28

    Este roteiro encontra-se no APNDICE A desta tese.

  • 27

    porque h diferenas considerveis na anlise dos dois casos, que se devem aos distintos

    avanos tericos alcanados em cada pas.

    Por fim, e no menos importante, faz-se necessrio dizer que a perspectiva adotada nesta tese

    baseia-se na proposta de Boaventura de Sousa Santos (2005) que, na coletnea Reinventar a

    Emancipao Social, descreve em diversos campos, inclusive o da produo, prticas

    alternativas em seis diferentes pases, tentando compreender as solues encontradas pelos

    que sofrem os principais efeitos das medidas neoliberais. Na elaborao das descries o autor

    adota o que chamou de Sociologia das Emergncias que, ao reconhecer a fragilidade e

    incipincia das iniciativas, preocupa-se em ampliar e desenvolver suas caractersticas

    emancipatrias.

    Dessa forma, contrape-se a correntes da esquerda que tm a tendncia a oferecer variaes

    j conhecidas para os problemas causados pelo capitalismo, desperdiando as experincias

    sociais pelas fragilidades que apresentam. A flor no asfalto descrita por Drummond uma

    forma insegura, desbotada e feia, que ainda no est nos livros. Reconhecer essa fragilidade

    tambm objetivo desta pesquisa, mas na perspectiva de potencializar as prticas.

    Inspirado por Ernst Bloch, Boaventura de Sousa Santos (2007) disse que entre o nada e o tudo

    que uma maneira muito esttica de pensar a realidade eu lhes proponho o ainda no.

    (p.37). Concordando que as experincias descritas nesta tese ainda no ameaam a

    hegemonia do modo de produo capitalista, tenho como preocupao identificar as aes

    que permitem desconstruir a ideia de unidimensionalidade do modelo atual.

    Parto, assim, do pressuposto de que num contexto de crise, em que a luta pela transformao

    social no o objetivo primeiro dos trabalhadores, a tendncia que se reproduzam

    caractersticas dos sistemas tradicionais de organizao do trabalho, o que no encerra a

    possibilidade de identificao de inovaes emancipadoras.

  • 28

    CAPTULO 1 AUTOGESTO E TECNOLOGIA SOCIAL

    A escolha deste captulo para iniciar a tese deve-se centralidade destes dois conceitos para

    responder ao problema de pesquisa: que inovaes no campo da organizao do trabalho se

    produziram nas experincias de empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil e na

    Argentina?

    A inspirao para essa busca est na histria de lutas da classe trabalhadora pela maior

    democratizao do ambiente de trabalho, que Nascimento (2005) chama de lutas pela

    autogesto. Ao tentar identificar inovaes empreendidas pelos protagonistas dessas lutas,

    situo-me no campo do que se convencionou chamar nos ltimos anos de tecnologia social.

    1.1 Experincias Histricas de Autogesto

    No objetivo desta seo apresentar todas as experincias de luta pela autogesto nem

    pormenorizar as que aqui forem descritas. Mas, alm de evidenciar que o fenmeno estudado

    nesta tese tem antecedentes histricos em diversos pases da Europa, da Amrica Latina e

    tambm da frica e da sia, preciso distinguir algumas caractersticas que so prprias do

    perodo e local em que aconteceram. Os registros de histrias de autogesto so evidncias da

    no neutralidade da cincia. No caso, das cincias administrativas, que em suas grades

    curriculares ignoram prticas histricas de luta dos trabalhadores por um novo modelo de

    gesto.

    Na reviso bibliogrfica sobre o conceito de gesto, nota-se que o mesmo no considera

    sistemas de auto-organizao dos trabalhadores. Dias (2002), ao discorrer sobre as

    semelhanas e diferenas entre os conceitos de gesto e administrao, identifica em autores

    clssicos como Peter Drucker, Henry Fayol e Frederick Taylor, que a principal convergncia

    reside na necessidade de influncia sobre terceiros, ou seja, tanto a gesto quanto a

    administrao so exercidas sobre outro indivduo, para coorden-lo, orient-lo e dirig-lo

    (p.6).

    Tal postura ancora-se numa viso que eterniza as formas de gesto capitalistas,

    desconsiderando histricas experincias de auto-organizao da classe operria. Marcuse

    (1997) em Cultura e Sociedade fala da reduo do conceito de trabalho ao de trabalho

    econmico. Para o autor, o trabalho econmico tal qual o conhecemos hoje, direcionado para

    os interesses de uma classe especfica, se restringe progressivamente atividade dirigida, no

    livre (p.8). Numa perspectiva de superao da alienao do trabalho e de resgate de sua

    essncia que conceituou como a realizao efetiva plena e livre do homem como um todo em

    seu mundo histrico (p.44), Marcuse (1997) aponta para o trabalho controlado pelos

  • 29

    produtores associados, realizando-o com o menor dispndio de fora e sob as condies mais

    dignas e adequadas a sua natureza humana (p.45).

    Prximos a essa definio de Marcuse, Guillerm e Bourdet (1976) ao descreverem o que

    chamaram de pr-histria da autogesto, retomam o modo de produzir das sociedades

    primitivas europias, mais especificamente, de gauleses e germanos que tinham para eles

    caractersticas similares s sociedades primitivas da Amaznia, frica e Polinsia. Estas teriam

    sido as nicas sociedades da abundncia que a humanidade conheceu em que se podia

    produzir, com um trabalho mnimo e com um sistema ecologicamente equilibrado, o dobro da

    necessidade de consumo, sendo o excedente estocado para momentos de catstrofes e festas.

    Para os autores, no h na descrio dessas sociedades traos de explorao da mulher pelo

    homem ou do homem pelo homem, j que os chefes, designados assim pelos etnlogos, no

    chegam a se fazer obedecer seno quando seus compatriotas assim o querem (GUILLERM;

    BOURDET, 1976, p.99).

    provvel que se encontre em diversos momentos da histria da humanidade o controle do

    trabalho pelos produtores associados, como descrito acima, exercido enquanto prtica comum

    dos povos. Mas a partir da revoluo burguesa, quando os meios de produo no mais

    pertenciam aos produtores diretos, que se pde verificar intensas lutas pela autonomia no

    ambiente de trabalho, que Nascimento (2005) chama de lutas pela autogesto. O mrito deste

    autor est em unificar em um nico estudo experincias que costumam aparecer em pesquisas

    distintas. Em geral, quem tem como nfase o conceito de cooperativismo, relata que as

    prticas se originaram com as ideias de Roberto Owen, no incio do sculo XIX. Quem enfatiza

    o conceito de autogesto ou controle operrio costuma iniciar o relato histrico pela

    Comuna de Paris, j em 1871. Nascimento (2005) que utiliza a autogesto como conceito

    central, compreende que a luta por autonomia no ambiente de trabalho unifica bandeiras

    ideolgicas distintas. Com base na periodizao feita por este autor, so apresentadas, com

    algumas modificaes, as diferentes etapas das lutas pela autogesto:

    a. Incio do sculo XIX com as ideias de Robert Owen at os teceles de Rochdale na

    Inglaterra (1820-1870);

    b. A partir da Comuna de Paris, passando pela Revoluo Russa at dois anos depois do

    fim da Primeira Guerra Mundial, que revelou casos em contextos revolucionrios

    (1871 1920);

    c. Desde a consolidao da Revoluo Russa at o fim da guerra civil espanhola, que

    apresentou experincias combatidas pelo governo sovitico (1917-1939);

  • 30

    d. Desde o fim da Segundo Guerra, passando pelo maio de 1968 na Frana at o incio da

    dcada de 1980, que apresentou casos heterogneos entre si (1946 1982);

    e. Um novo perodo iniciado em novas condies estruturais do capitalismo globalizado

    iniciado no final de dcada de 1980 que segue at os dias de hoje (1982 2013).

    Como se pode observar, desde os primrdios da Revoluo Industrial at hoje, de maneira

    quase ininterrupta, pode-se encontrar experincias de lutas pela autogesto na histria.

    Certamente em alguns momentos essas lutas foram mais intensas, em geral, em momentos de

    profunda crise do sistema capitalista e de contextos revolucionrios.

    As primeiras lutas da classe operria, entre meados do sculo XVIII e as primeiras duas dcadas

    do sculo XIX, tiveram como estratgia central a destruio de mquinas, matrias-primas e

    produtos acabados. Embora tenha sido largamente utilizada durante esse perodo, ficou

    conhecida pelo Movimento Luddista, cujo estopim foi em 1811 na Inglaterra. No senso comum

    e mesmo no meio acadmico, os quebradores de mquinas ficaram estigmatizados pela

    resistncia ao progresso tecnolgico. Hobsbawn (2000), em contraposio a essa ideia,

    demonstra que a destruio era simplesmente uma tcnica de sindicalismo num perodo

    anterior (p.21). Uma maneira de gerar presso intermitente nos patres quando ainda no

    havia uma classe trabalhadora organizada e quando as relaes sociais de produo sofriam

    mudanas profundas. No se pode, entretanto, qualificar essas manifestaes como lutas pela

    autogesto, assim como o importante movimento pela Carta do Povo cartismo - pois no so

    encontrados elementos reivindicatrios por autonomia no espao de trabalho29.

    a. Do Owenismo a Rochdale (1820 - 1870)

    Embora haja registros de experimentos cooperativos na Inglaterra desde 1769, Singer (1998)

    relata que a partir de 1820 que a classe operria britnica passa a se engajar em uma outra

    utopia, a da construo de um novo mundo base das novas foras produtivas mas em que a

    cooperao e a igualdade tomem o lugar da explorao e da competio (p.73). O autor est

    se referindo formao do movimento cooperativista: a difuso inicial das cooperativas

    coincide com a revoluo industrial, o que dificilmente ter sido por acaso (SINGER, 1998,

    p.91).

    A grande maioria das cooperativas que surgiram at 1820 so de consumo, embora tenham

    existido cooperativas de produo ainda no sculo XVIII, como uma de alfaiates em

    Birmingham em 1777. A diferena das experincias que surgiram a partir da dcada de 1820

    29

    Apesar do movimento cartista ter lutado pelo sufrgio universal, que representa a luta pela democracia poltica.

  • 31

    reside no fato de terem sofrido influncia direta das ideias de Robert Owen, um empresrio

    que no incio do sculo XIX apresentou um plano ao governo britnico para que recursos

    pblicos, que eram gastos como fundo de sustento dos pobres, fossem utilizados na

    construo de Aldeias Cooperativas ao invs de serem distribudos. Nessas aldeias, os

    trabalhadores produziriam sua prpria subsistncia e trocariam com outros os excedentes de

    produo. A proposta foi recusada pelo governo e Owen seguiu para os Estados Unidos, em

    1825, onde implementou com pouco sucesso uma Aldeia Cooperativa (SINGER, 2002).

    Suas ideias, entretanto, influenciaram inmeras experincias. Singer (2002) relata algumas

    delas, como a primeira cooperativa owenista formada por jornalistas e grficos em Londres, e

    a da Comunidade de Orbiston, de 1826, que iniciou experimentos em educao e repartio

    equitativa das sobras. Alm dessas, algumas Aldeias Cooperativas tambm foram

    experimentadas na Inglaterra, como a Associao Cooperativa de Troca de Brighton. Entre

    1826 e 1835, para Singer (1998), mximo perodo de florescimento do owenismo, surgiram

    pelo menos 250 sociedades cooperativas em todas as zonas industriais do pas, com exceo

    do Pas de Gales.

    Mas no foi apenas na Inglaterra que a luta dos trabalhadores do incio do sculo XIX

    desembocou em uma auto-organizao visando a melhores condies de trabalho. Em 1831 na

    Frana, os teceles de Lyon, conhecidos como Canuts, iniciaram reivindicaes pela

    estipulao de uma tarifa mnima para as peas que produziam. Com o lema Preferimos

    tombar por uma bala a morrer de fome, a mobilizao em torno desta luta, que gerou

    centenas de mortos, permitiu que os trabalhadores controlassem a cidade por dez dias e

    criassem seus prprios instrumentos de informao e cultura, alm de associaes que

    reuniam diversas profisses (SARD DE FARIA, 2011).

    Segundo Sard de Faria (2011), as estruturas criadas pelos Canuts tinham como primeiro

    horizonte gerar independncia com relao aos fabricantes-negociantes, que embora ainda

    no controlassem os meios de produo, tinham na subcontratao dos teceles o poder de

    definir o que produzir, com que ritmo produzir e a que preo vender. A mobilizao que durou

    de 1831 at 1834 influenciou o surgimento de inmeras associaes e cooperativas na Frana.

    Gueslin (apud SARD DE FARIA, 2011) identificou em 1912 a existncia de 476 cooperativas de

    produo na Frana.

    Apesar da existncia de experincias pretritas, muitos estudos conferem Sociedade dos

    Pioneiros Equitativos de Rochdale, o ttulo de primeira cooperativa da histria. Fundada por 28

    teceles da cidade de Manchester e influenciada por owenistas e cartistas, esta, que nasce

    como uma cooperativa de consumo em 1844, teve o mrito de redigir oito regras que at hoje

  • 32

    servem de base para o movimento cooperativo no mundo. Entre estas, podem ser destacadas:

    a democracia na gesto, em que cada scio teria direito a apenas um voto; a livre associao

    de trabalhadores; e a destinao de parte do excedente para a educao dos scios (SINGER,

    1998).

    Em 1850, foi criada a primeira cooperativa de produo do grupo, o Moinho Cooperativo de

    Rochdale, e em 1854, o segundo, uma tecelagem com 96 teares. Ao longo dos anos foram

    criados jornais, uma escola e uma biblioteca, atestando a preocupao com a educao dos

    scios. Como relata Singer (1998), em 1879 a cooperativa possua 10.427 scios.

    Mas podem ser encontrados relatos de que antes disso o processo de gesto coletiva em

    Rochdale j havia perdido fora. Em 1862, como consequncia da Guerra Civil nos Estados

    Unidos, a crise do algodo gerou um conflito entre os operrios de uma cooperativa de

    produo do grupo e os acionistas, relacionado ao pagamento de bnus aos trabalhadores.

    Estes venceram em primeira instncia, mas em um segundo momento, em deciso tomada

    apenas pelos acionistas, perderam o direito. A existncia de acionistas em um

    empreendimento cooperativo j denota a existncia de uma contradio, que agravada pelo

    fato dos ltimos, que representavam apenas 10% dos membros da cooperativa, possurem

    maior poder de deciso. Embora o empreendimento de Rochdale tenha sobrevivido at o

    incio do sculo XX, o corte temporal feito at o ano de 1870 est relacionado importncia da

    experincia da Comuna de Paris de 1871 e perda de flego na manuteno das regras

    redigidas pelos Pioneiros de Rochdale durante esse perodo.

    Embora uma parcela dos tericos da autogesto no entenda essa parte da histria como

    importante na luta para a transio socialista30, a perspectiva metodolgica adotada nesta tese

    no permite que sejam ignorados os primeiros intentos de conduo da produo pela classe

    operria. certo que algumas das crticas direcionadas a Owen so bem fundamentadas, como

    a no considerao da luta de classes em sua anlise da sociedade. De acordo com Sard de

    Faria (2011), havia em seu pensamento inicial uma averso ao conflito entre trabalhadores e

    capitalistas, o que parece ter sido compreendido por Marx e Engels pelo fato das foras

    produtivas no terem sido plenamente desenvolvidas at ento:

    Para Marx e Engels, os primeiros tericos do socialismo e do

    cooperativismo no poderiam ter ido alm do que o estgio do

    desenvolvimento do capitalismo possibilitava. A introduo das mquinas e

    a grande indstria davam seus primeiros passos, as classes sociais e seus

    antagonismos encontravam-se em formao. A obra da revoluo social

    capitalista, nos termos de Singer, ainda no estava completa. Da que esses

    30

    Muito pelo fato de tericos como Owen terem recebido de Marx e Engels a designao de socialistas utpicos.

  • 33

    primeiros reformadores sociais erguessem suas teorias sob uma base

    material que no correspondia ao sentido do desenvolvimento do modo de

    produo em que estavam enredados. E o termo utpico foi-lhes dedicado

    por esse anacronismo que se fazia inevitvel (SARD DE FARIA, p.71, 2011).

    Adoto, entretanto, a perspectiva de Singer (1998) que enxerga o potencial anticapitalista nas

    experincias cooperativas do comeo do sculo XIX. Para este autor, o conceito de Revoluo

    Social designa o processo de transformao de um sistema socioeconmico e significa a

    alterao nas relaes sociais de produo. Difere-se, portanto, do conceito de Revoluo

    Poltica, que est relacionado s mudanas nas relaes de poder entre autoridades e

    cidados.

    Uma Revoluo Poltica e a consequente refundao das instituies podem ser muito

    importantes para o aprofundamento de uma Revoluo Social, como foi para a Revoluo

    Social Capitalista. Entretanto, experincias que buscam alterar as relaes sociais de produo

    convivem com os modos de produo hegemnicos muito antes de se tornarem hegemnicas.

    Como demonstra Singer (1998), em todos os pases, relaes de produo capitalistas foram

    se expandindo paulatinamente, nos poros do modo de produo precedente (p.27).

    Da mesma forma, o modo de produo capitalista apresenta brechas que podem ser

    aproveitadas para organizar atividades econmicas por princpios totalmente diferentes dos

    capitalistas (SINGER, p.112, 1998). As experincias que nesta tese so chamadas de lutas pela

    autogesto so entendidas, utilizando a categoria de Singer, como Revolues Sociais em

    Potencial. No se sabe se podero ou no desembocar em uma Revoluo Social Socialista,

    mas por buscarem alterar parte das relaes sociais capitalistas, por meio da coletivizao dos

    meios de produo, representam espaos de esperana, que Singer (1998) chama de

    implantes socialistas.

    O principal argumento de Singer que me faz adotar esta ideia est relacionado tentao de

    parte da esquerda de entender que muitas experincias que nascem dentro do sistema de

    produo capitalista so necessariamente capitalistas. Isto se d por confundirem as

    experincias com as contratendncias que surgem como reao a elas (SINGER, p.112,

    1998). Isto faz, por exemplo, com que no se compreenda a importncia da conquista do

    sufrgio universal, impulsionada inicialmente pelo movimento cartista. certo que como

    reao a essa conquista, os capitalistas encontraram formas de minimizar essa vitria, mas

    esta nunca deixou de ser uma arma poderosa que a classe trabalhadora tem em mos. O

    sufrgio universal, assim como a seguridade social, o sindicalismo e o cooperativismo so, na

    viso de Singer (1998), implantes socialistas. Todos sofreram investidas da classe dominante,

    como a formao dos sindicatos patronais e a utilizao da forma cooperativa para burlar leis

  • 34

    trabalhistas31. Mesmo sem sair da legislao vigente, a forma cooperativa foi utilizada sem

    qualquer carter contestatrio 32 , o que justifica as acertadas crticas que recebem o

    movimento cooperativo. Entretanto, considero importante saber diferenciar o que funcional

    ao sistema capitalista do que assimilvel por ele, sob o risco de desperdiar um conjunto de

    prticas que tiveram sua importncia histrica, como o movimento cooperativo do sculo XIX.

    b. As Experincias em Contextos Revolucionrios (1871 1919)

    Em 1871, em decorrncia da guerra franco-prussiana, a Guarda Nacional francesa esteve sob o

    poder da classe trabalhadora na cidade de Paris. Nesse contexto teve incio uma das

    experincias mais emblemticas de autogesto na histria. A Comuna de Paris eleita em 26

    de maro por sufrgio universal e majoritariamente formada por trabalhadores da produo,

    tomou um conjunto de decises tendentes a destruir o Estado burgus e edificar (...) uma

    sociedade socialista autogestionria (NASCIMENTO, 2005, p.13).

    Segundo Guillerm e Bourdet (1976), o proletariado parisiense ocupou antes de tudo as fbricas

    e toda organizao capitalista. Substituram-na pelo que os autores chamaram de modelo de

    democracia proletria, em que os operrios nomeavam seus gerentes, seus chefes de oficina e

    chefes de equipe com direito de revog-los.

    Marx (1999) em A Guerra Civil na Frana descreve as principais aes da Comuna em pouco

    mais de dois meses com o poder sob Paris, que foram muito alm da retomada das fbricas:

    substituio do exrcito permanente pelo povo armado, por meio de milcias populares;

    equiparao de salrios dos funcionrios pblicos aos dos operrios; separao da Igreja do

    Estado; abertura de todas as instituies de ensino para o povo; interferncia na eleio e

    demisso de membros do poder judicirio; implementao de elementos de democracia direta

    mediante um regime comunal. Em suas palavras: A comuna era, essencialmente, um governo

    da classe operria, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma

    poltica afinal descoberta para levar a cabo a emancipao econmica do trabalho (MARX,

    1999, p.95-96).

    Ao analisar o programa da Comuna de Paris, Nascimento (2005) ainda apresenta significativos

    avanos no mbito da poltica de habitao, por meio da requisio dos imveis secundrios

    ou parcialmente ocupados; no uso dos transportes pblicos, que se tornaram gratuitos; na

    gratuidade dos servios mdicos; na abolio da pena de morte; nos direitos das mulheres; e

    nas atividades produtivas, em que o programa previa a expropriao das empresas privadas,

    31

    Que so conhecidas como coopergatos ou cooperfraudes. 32

    Dentre as diretrizes da Organizao de Cooperativas do Brasil (OCB), so mais claras as caractersticas capitalistas de produo do que as socialistas.

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    que deveriam ser administradas pelos trabalhadores e a realizao de trabalhos manuais pelos

    que praticavam essencialmente trabalhos intelectuais por meio da rotatividade de cargos.

    Em 28 de maio de 1871, terminou a experincia da Comuna num banho de sangue com cerca

    de 20.000 mortos. Em texto escrito dois dias aps o massacre, Marx diz que:

    A Comuna aspirava expropriao dos expropriadores. Queria fazer da

    propriedade individual uma realidade, transformando os meios de

    produo, a terra e o capital, que hoje so meios de escravizao e

    explorao do trabalho, em simples instrumentos de trabalho livre e

    associado (MARX, 1999, p.97).

    Por fim, cabe salientar que a experincia da Comuna fez com que Marx alterasse o prefcio do

    Manifesto Comunista em 1872. Curiosamente ressaltado por Lnin (1917) em O Estado e a

    Revoluo, Marx percebeu algo que