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Tese Flávio Chedid Henriques_Versão Final
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FLVIO CHEDID HENRIQUES
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL E NA ARGENTINA
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadores: Ana Clara Torres Ribeiro (in memorian) Laura Tavares Ribeiro Soares Michel Jean-Marie Thiollent
Rio de Janeiro
2013
FLVIO CHEDID HENRIQUES
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL E NA ARGENTINA
Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro IPPUR/UFRJ, como parte dos requisitos
necessrios obteno do grau de Doutor em
Planejamento Urbano e Regional.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA __________________________________ Prof. Dra. Laura Tavares Ribeiro Soares
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ
__________________________________ Prof. Dr. Michel Jean-Marie Thiollent
Faculdade de Administrao - UNIGRANRIO
__________________________________
Prof. Dra. Luciana Corra do Lago
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ
__________________________________
Prof. Dr. Sidney Lianza
Escola Politcnica Departamento de Engenharia Industrial -UFRJ
__________________________________
Prof. Dr. Paul Israel Singer
Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade - USP
Secretaria Nacional de Economia Solidria - MTE
__________________________________
Prof. Dr. Maurcio Sard de Faria
Centro de Tecnologia e Desenvolvimento Regional - Departamento de Tecnologia e Gesto - UFPB
AGRADECIMENTOS
Sabendo ser essa uma das partes mais lidas da tese, tenho aqui muita responsabilidade no pouco
tempo que me resta, pois nos cinco anos em que estive envolvido com a elaborao deste trabalho,
foram muitas as pessoas que me ajudaram acadmica e emocionalmente a conclu-lo.
Inicialmente, gostaria de agradecer minha me Leila Chedid Henriques, que tem um papel
definitivamente fundamental na minha existncia, seja com os carinhos cuidadosos do cotidiano, seja
pela generosidade de sempre, que s quem a conhece pode entender o que estou falando.
minha companheira de vida, Fernanda Freitas, minha doce F, que me ajuda diariamente a
ressignificar o amor e que de forma muito gentil e dedicada revisou o texto desta tese.
Completando a trade de mulheres espetaculares, Ana Clara Torres Ribeiro, que me acompanhou
durante quase 4 anos nesta empreitada e com quem ainda consigo dialogar nos dias de inspirao.
Volta e meia cruzo com seus e-mails afetuosos e artesanais que me fizeram viver a vida um pouco
melhor.
Aos familiares, que sempre me dedicaram muito afeto: Janete Chedid; Jorge Chedid, que inclusive
me ajudou com a impresso deste trabalho; Ivanice Chedid; Dona Uda; Ftima Henriques, Ana Maria
Henriques, Nilce Henriques; Carmem Henriques; aos sobrinhos que meu quarteto de irms me deu; e
aos familiares que minha querida F me proporcionou ter: Sandra Pereira, Vov Erondina, Tnia
Trvia, Rafael Pereira, Tatiana Pereira, Thiago Pereira, Luiz Trvia e Fernando Erthal.
Aos amigos de Pedro II, que me ensinam como nico e especial manter as bases afetivas de longa
data: Vitor Banana, Luiz Felipe Freitas, Leonardo Bastos, Bruno Melo, Flvio Lacerda, Pablo Barros,
Eduardo Miguez, ngelo Vimeney e Ramon Dicovo.
Aos irmos que a vida me trouxe e que so responsveis por meus momentos mais bonitos: Csar
Chevrand, Felipe Addor, Vicente Nepomuceno, Maurcio Nepomuceno, Wendell Ficher e Marcelo
Ribeiro, um dos maiores amigos que algum pode ter. Ao lado de vocs tenho sempre a sensao de
que a revoluo possvel.
Aos que transfomam o mundo numa festa deliciosa quando se encontram: Olvia Fava, Butter, Josa
Barroso, Fernanda Salvador, Michele Nobre, Paulo Sabino, Leile Silvia, Omar Uran e Ana Paula.
Aos companheiros do SOLTEC, que h 9 anos me convenceram a ser engenheiro, sem que para isso
tivesse que abdicar de meus sonhos, em especial: Vera Maciel, Cludio Dimande, Alan Tygel, Celso
Alexandre, Regina Carvalho, Jair Nastalino, Marlia Gonalves, Fernanda Santos, Antnio Cludio,
Walter Suemitsu, Sandra Mayrink, Helosa Borges, Diana Helene e Ricardo Mello. E, claro, Sidney
Lianza, o Sido, que com toda sua ternura e afeto transformou minha vida profissional e pessoal.
Aos amigos de longa distncia, que esto sempre por perto ajudando a repensar a tecnologia e as
formas de transformao: Henrique Novaes, Rodrigo Fonseca, Maurcio Sard, Las Fraga, Bruna
Vasconcelos, Janana Macruz e Cinthia Versiani.
equipe do mapeamento nacional de empresas recuperadas, que tem uma contribuio
fundamental neste trabalho. Gostaria de dedicar agradecimentos especiais aos que compartilharam
as visitas de campo, as anlises e todas as angstias comuns a um trabalho que busca compreender
um fenmeno social: Vanessa Sgolo, Sandra Rufino, Mariana Girotto, Mara Rocha, Thiago Nogueira,
Thiago Schmidt, Rodrigo Taufic, Sabrina Abro, Tamara Melo, Fernanda Helena e Alejandra Paulucci,
que ainda me ajudou na redao em espanhol do resumo. E ainda, ao professor Renato Dagnino, que
foi muito generoso ao confiar nesta pesquisa, e ao CNPq, que financiou a visita a 52 empresas
recuperadas por trabalhadores espalhadas pelo Brasil.
Aos professores que tiveram importncia fundamental em minha formao: Thales Paradela, Flvio
Bruno, Jos Ricardo Tauile, Carlos Vainer e Hermes Tavares, que deu contribuio importante no
exame de qualificao desta tese.
Aos tcnicos do IPPUR, que fazem um trabalho alegre e competente. Em especial: Zuleika, Andr,
Bel, Dona Maria Jos, sempre muito doce ao me encontrar e Dona Maria, cujo sorriso encantador
no mais se pode ver pelos corredores do IPPUR.
Ao Andres Ruggeri, que teve papel de apoio fundamental na minha estadia na Argentina, tendo
acompanhado passo a passo as visitas de campo que fiz neste pas e estando sempre disposto a
dialogar a distncia sobre as minhas dvidas relacionadas aos fenmenos das ERTs.
equipe do Programa Facultad Abierta, que cumpre um papel fundamental no registro de um
importante captulo da luta operria: Natalia Polti, Paloma Elena, Javier Antivero, Daniel Zazuski,
Carlos Martinez e Fernando Garcia, que ainda compartilhou comigo alguns tragos de rum no
Malecn. Em especial, ao Gabriel Damill, que fez um trabalho de transcrio espetacular para auxiliar
esta tese.
Ainda na Argentina, Alexia e ao Mariano, que alm de terem alugado seu aconchegante
apartamento, foram sempre solcitos para que tivesse a melhor adaptao possvel em Buenos Aires.
Ao Martin Scarpacci, que me recebeu na belssima Rosrio com muita hospitalidade e festa. E ao
Ramon Ramalho, mineiro guerreiro, que conseguiu fechar ao menos uns 3 bares em minha
despedida da capital argentina.
A todos os trabalhadores e militantes, que disponibilizaram seus tempos de trabalho para contribuir
com esta pesquisa. Em especial: Placido Pearrieta, que foi sempre de uma generosidade peculiar
comigo e ainda me proporcionou uma linda festa de despedida nas dependncias da grfica
Chilavert; Ernesto Gonzlez da Chilavert; Cristian Mellado, que me acompanhou durante os cinco
dias em que estive em Neuqun e ainda pde trazer a rica experincia da Zann para o Rio de
Janeiro; Mario Barrios, Federico Courty e Javier Lopez, da UST, que me acompanharam durante um
dia inteiro para conhecer a riqueza de suas experincias; Hugo Cabrera e Salvador Angel, que me
proporcionaram momentos especiais na grfica Campichuelo; Eduardo Oliveria e Zulema Vargas, da
Grfica El Sol; Julio Lpez, que me atendeu com a generosidade mendocina na Grfica Asociados;
Pedro Santinho, Batata, Alexandre Mandl, Josiane Lombardi, Manu, Caverna, Shaolin e Bruno
Rampone, todos da Flask, tendo este ltimo gentilmente me alojado em sua casa para que pudesse
realizar o trabalho de campo; a Lenivaldo Andrade, que na visita Usina Catende nos acompanhou
pelos canaviais e pelas escolas da Zona da Mata Pernambucana; e a todos os trabalhadores da
COOPARJ, em especial, Jairo, Willian e Josi, que abriram suas portas desde 2006 para que pudesse
compartilhar com eles a aventura de conduo de uma gesto operria.
Laura Tavares, por ter gentilmente me acolhido em um momento delicado e aceitado orientar este
trabalho.
Ao Michel Thiollent, por ter ajudado na orientao desta tese mesmo antes de ser oficializado como
orientador. Mestre, sua dedicao pela construo do conhecimento emocionante.
Por fim, FAPERJ, que durante os 4 meses em que estive na Argentina, financiou minha estadia por
meio de uma bolsa de doutorado sanduche.
A Flor e a Nusea
Preso minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir at o enjo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relgio da torre: no, o tempo no chegou de completa justia.
O tempo ainda de fezes, maus poemas, alucinaes e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.
Em vo me tento explicar, os muros so
surdos. Sob a pele das palavras h cifras e cdigos. O sol consola os doentes e no os renova.
As coisas. Que tristes so as coisas, consideradas sem nfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tdio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa. Esto menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdo-los? Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver.
Rao diria de erro, distribuda em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal.
Pr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porm meu dio o melhor de mim.
Com ele me salvo e dou a poucos uma esperana mnima.
Passem de longe, bondes, nibus, rio de ao
do trfego. Uma flor ainda desbotada
Ilude a polcia, rompe o asfalto. Faam completo silncio, paralisem os
negcios garanto que uma flor nasceu.
Sua cor no se percebe.
Suas ptalas no se abrem. Seu nome no est nos livros.
feia. Mas realmente uma flor.
Sento-me no cho da capital do pas s cinco horas da tarde
e lentamente passo a mo nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pnico.
feia. Mas uma flor. Furou o asfalto, o tdio, o nojo e o dio.
(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 2008)
RESUMO
Esta tese tem como objeto de pesquisa a organizao do trabalho de empresas que
passaram por processos de falncia e foram reativadas por seus trabalhadores. Essas
experincias, conhecidas como Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs),
representaram a manuteno de milhares de postos de trabalho no Brasil e na Argentina
desde a dcada de 1980, sobretudo no setor industrial. O objetivo desta pesquisa
caracterizar a prtica da recuperao de empresas nesses dois pases, por meio de dados
gerais obtidos em levantamentos, e identificar a potencialidade que tem algumas de suas
iniciativas mais avanadas politicamente para questionar a organizao capitalista do
trabalho, por meio de estudos de caso. Embora tenha sido evidenciada a influncia exercida
pelo modo de produo capitalista na estruturao das ERTs, os resultados da pesquisa
apontam para a existncia de rupturas parciais em diversos aspectos caractersticos da
organizao capitalista do trabalho, quais sejam: o controle externo da atividade de
trabalho, que d lugar ao controle exercido pelo prprio operador, regulado por um
coordenador de produo ou lder de setor; a expropriao do saber do trabalhador, que
passa a ter maior conhecimento da totalidade do processo produtivo; a intensificao do
ritmo de trabalho, uma vez que este definido pelo prprio operador, o que tambm resulta
em um menor ndice de acidentes; e a instrumentalizao do conceito de trabalho, que se
amplia para atividades que esto para alm das produtivas, simbolizadas nos casos
estudados por alteraes no espao fsico e vinculaes com movimentos sociais.
Palavras-chave: Empresas Recuperadas por Trabalhadores. Organizao do Trabalho.
Autogesto. Economia Solidria.
RESUMEN
La siguiente tesis tiene como objeto de investigacin la organizacin del trabajo de las
empresas que atravesaron um proceso de quiebra y fueron reactivadas por sus trabajadores.
A partir de la dcada de 1980, tanto en Brasil como en Argentina, estas experiencias,
conocidas como Empresas Recuperadas por los Trabajadores (ERTs), mantuvieron miles de
puestos de trabajo, principalmente en el sector industrial. El objetivo de esta investigacin
es caracterizar la prctica de recuperacin de empresas en Brasil y en Argentina, mediante
relevamientos de datos generales obtenidos en ambos pases, e identificar, por medio de
estudios de casos, el potencial que tienen algunas de sus iniciativas ms avanzadas
polticamente para cuestionar la organizacin capitalista del trabajo. Apesar de la influencia
explcita del modo de produccin capitalista en la estructura de las ERTs, los resultados de la
investigacin apuntan a la presencia de una ruptura parcial de varias caractersticas de la
organizacin capitalista del trabajo como por ejemplo: el control externo de la actividad
laboral, sustituido por una funcin de regulacin; la expropiacin del saber del trabajador,
que obtiene un mayor conocimiento del proceso de produccin; la intensificacin del ritmo
de trabajo, porque pasa a ser definido por el operador, lo cual tambin se traduce en um
menor nmero de acidentes; y la instrumentalizacin del concepto de trabajo, que se
extiende a las actividades que estn ms all de lo productivo, representado en los casos
estudiados por las mudanzas en el espacio fsico y las relaciones establecidas con los
movimientos sociales.
Palabras-clave: Empresas Recuperadas por los Trabajadores. Organizacin del Trabajo.
Autogestin. Economa Solidaria.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 - Atores da Economia Solidria no Brasil p.57
Figura 2 - Entrada da IMPA p.126
Figura 3 - Entrada da IMPA aps mobilizaes p.126
Figura 4 Universidade dos Trabalhadores P.126
Figura 5 Evento cultural pela expropriao do hotel P.127
Figura 6 - A fbrica de mulheres p.128
Figura 7 - Ramo das Atividades das ERTs p.150
Figura 8 - Incio da Recuperao p.151
Figura 9 - Itens recebidos como passivo trabalhista p.153
Figura 10 - Tamanho das ERTs visto atravs do nmero de trabalhadores p.155
Figura 11 Diviso por gnero p.156
Figura 12 - Percentual de scios e contratados nas ERTs. p.157
Figura 13 - Diviso etria por grupos de trabalhadores das ERTs. p.158
Figura 14 - Percentual da diviso etria geral dos trabalhadores. p.158
Figura 15 - Grau de escolaridade dos trabalhadores p.159
Figura 16 - Distribuio dos trabalhadores por setor de produo, gnero e classe p.160
Figura 17 - Diviso percentual de trabalhadores por setor de produo p.160
Figura 18 - Permanncia de diretores e gerentes. p.162
Figura 19 Motivos para sada dos trabalhadores. p.162
Figura 20 Motivo principal para sada dos trabalhadores. p.163
Figura 21 - Incorporao de scios. p.163
Figura 22 - Principais formas de contratao das ERTs. p.164
Figura 23 - Frequncia de empreendimentos por classes de produo instalada. p.164
Figura 24 - Motivos da baixa produtividade relativa capacidade. p.165
Figura 25 - Relato do estado geral das instalaes. p.166
Figura 26 - Tipo de recurso com o qual se realizaram os investimentos. p.166
Figura 27 - Mudanas promovidas no processo produtivo. p.167
Figura 28 - Qual o papel destes supervisores/coordenadores? p.169
Figura 29 - Processos Formativos p.171
Figura 30 Perodo de Mandato do CA p.173
Figura 31 - Quais so os benefcios de estar nesta organizao? p.184
Figura 32 - Qual tipo de vnculo estabelece com outra ERT ou EES? p.185
Figura 33 - Tipo de apoio estatal na recuperao p.186
Figura 34 - Avaliao negativa do Estado - motivaes p.187
Figura 35 - A stima integrante. p.195
Figura 36 - A nova unio. p.196
Figura 37 - Uma nova recuperada. p.197
Figura 38 - Artes Graficas El Sol p.199
Figura 39 - Entrada da Grafica El Sol p.199
Figura 40 - Impresiones Barracas. p.203
Figura 41 - Mural da Grafica Patrcios. p.204
Figura 42 Plcido no Centro Cultural p.207
Figura 43 - Centro Cultural Chilavert Recupera p.207
Figura 44 - Apresentao artstica em Chilavert p.207
Figura 45 - Festa em Chilavert p.207
Figura 46 - Centro de Documentao p.208
Figura 47 - Visita de crianas fbrica p.208
Figura 48 - Bachillerato Popular. p.208
Figura 49 - Foto assinada pelo subcomandante Marcos, do Exrcito Zapatista de Libertao
Nacional, para os trabalhadores de Chilavert. p.209
Figura 50 - Cooperativa UST. p.221
Figura 51 - Centro Polidesportivo da UST p.222
Figura 52 - Entrada do Centro p.222
Figura 53 - Complexo Agroecolgico da UST p.222
Figura 54 - Mural do Complexo p.222
Figura 55 - Programa El Temblor. p.223
Figura 56 - Habitaes construdas pela UST. p.223
Figura 57 - Sementes Criolas p.225
Figura 58 - Plantao agroecolgica p.225
Figura 59 - Cermica com smbolos mapuches p.234
Figura 60 - Nuestra Lucha Radial. p.235
Figura 61 - Local onde acontecem os shows na fbrica. p.235
Figura 62 - Visita de crianas fbrica p.236
Figura 63 - Visita de adolescentes fbrica p.236
Figura 64 - Entrada da fbrica p.237
Figura 65 - Chuveiro do quarto de visitantes p.237
Figura 66 - Comisso de Mulheres da Zann. p.241
Figura 67 - Entrada da Flask. p.251
Figura 68 - Mobilizao diante do Frum. p.252
Figura 69 - Fbrica de Cultura. p.253
Figura 70 - Setor de Mobilizao p.253
Figura 71 - Bandeira do MST p.253
Figura 72 - Mini-fbrica de tijolos. p.254
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Distribuio por estado p.150
Tabela 2 - Nmero de empresas por nmero de trabalhadores p.154
Tabela 3 - Nmero de trabalhadores desta anlise p.156
Tabela 4 - Tabela de faixa etria dos trabalhadores por grupos de pessoas p.157
Tabela 5 - Nvel de escolaridade dos contratados e scios das ERTs p.158
Tabela 6 - Distribuio dos trabalhadores por setor de produo p.159
Tabela 7 - Tipos de mudanas ocorridas nas ERTs p.168
Tabela 8 - Dinmica de rodzios nas ERTs p.168
Tabela 9 - Participao das mulheres nas ERTs p.170
Tabela 10 - Frequncia das AGs p.172
Tabela 11 - Nmero de empresas por diferena de retiradas p.176
Tabela 12 - Valores de retiradas p.176
Tabela 13 - Fornecedores das ERTs p.178
Tabela 14 - Consumidores das ERTs p.179
Tabela 15 - Percentual de vendas das ERTs p.180
Tabela 16 Demandas ao Estado p.187
SUMRIO INTRODUO .................................................................................................................... 15
Motivao para a Pesquisa ............................................................................................. 15
Contexto ........................................................................................................................ 16
Percurso Metodolgico .................................................................................................. 24
CAPTULO 1 AUTOGESTO E TECNOLOGIA SOCIAL .............................................................. 28
1.1 Experincias Histricas de Autogesto ...................................................................... 28
1.2 O Conceito de Autogesto ........................................................................................ 47
1.3 Conceitos e prticas de Economia Solidria ............................................................... 54
1.3.1 A construo do projeto poltico da Economia Solidria ........................................... 55
1.3.2 As experincias concretas de Economia Solidria ..................................................... 61
1.3.3 A desconstruo do projeto poltico da Economia Solidria ..................................... 68
1.3.4 As Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs) ................................................ 72
1.4 Conceito de Tecnologia Social ................................................................................... 74
1.4.1 Conceitos de Tcnica e Tecnologia ............................................................................ 74
1.4.2 A construo do conceito de Tecnologia Social ......................................................... 76
1.4.3 Divergncias no campo da Tecnologia Social no Brasil .............................................. 78
1.4.4 A questo da tecnologia nas Empresas Recuperadas por Trabalhadores ................. 79
1.5 Concluso do Captulo .............................................................................................. 80
CAPTULO 2 CARACTERSTICAS CENTRAIS DA ORGANIZAO CAPITALISTA DO TRABALHO .. 82
2.1 Algumas consideraes sobre o conceito de trabalho ................................................ 82
2.2 As Escolas de Organizao do Trabalho ..................................................................... 84
2.2.1 Administrao Cientfica ............................................................................................ 85
2.2.2 Produo Flexvel ....................................................................................................... 94
2.3 A racionalidade das teorias de organizao capitalista do trabalho ............................ 99
2.4 Concluso do Captulo ............................................................................................ 101
CAPTULO 3 EXPERINCIAS DE LUTAS OPERRIAS NO BRASIL E NA ARGENTINA................. 104
3.1 Do Sindicalismo de Estado ao Novo Sindicalismo no Brasil ....................................... 104
3.1.1 Breve sntese dos primeiros 50 anos de sindicalismo no Brasil ............................... 104
3.1.2 O surgimento do Sindicalismo de Estado ................................................................. 106
3.1.3 O Golpe de Estado, as Comisses de Fbrica, as Oposies Sindicais e o Novo
Sindicalismo ....................................................................................................................... 108
3.2 Do anarco-sindicalismo s greves de massa na Argentina ........................................ 113
3.2.1 Das origens at Pern .............................................................................................. 113
3.2.2 Os Rosariazos, o Cordobazo e a nova central .......................................................... 115
3.3 Concluso do Captulo ............................................................................................ 118
CAPTULO 4 EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NA ARGENTINA E NO BRASIL 120
4.1 Os significados e a legitimidade das ERTs na Argentina ............................................ 120
4.1.1 Trs casos ilustrativos do apoio popular .................................................................. 125
4.1.2 Conquistando legitimidade em outros espaos ....................................................... 129
4.1.3 Qual a potencialidade dessas experincias? ............................................................ 132
4.1.4 As entidades de representao das ERTs na Argentina ........................................... 135
4.2 A experincia brasileira de ERTs .............................................................................. 143
4.2.1 As pesquisas sobre autogesto industrial ................................................................ 144
4.2.2 Mapeamento das ERTs no Brasil .............................................................................. 148
4.2.3 A invisibilidade das ERTs brasileiras ......................................................................... 188
4.3 Concluso do Captulo ............................................................................................ 190
CAPTULO 5 ESTUDOS DE CASO NA ARGENTINA E NO BRASIL ............................................ 192
5.1 Red Grafica Cooperativa ......................................................................................... 193
5.1.1 Descrio da Rede .................................................................................................... 194
5.1.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 199
5.2 Imprenta Chilavert ................................................................................................. 204
5.2.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 205
5.2.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 206
5.3 Unin Solidaria de Trabajadores ............................................................................. 220
5.3.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 220
5.3.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 224
5.4 FaSinPat Zann....................................................................................................... 230
5.4.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 232
5.4.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 236
5.5 Flask .................................................................................................................... 249
5.5.1 Descrio da ERT ...................................................................................................... 250
5.5.2 Anlise do caso ......................................................................................................... 254
5.6 Concluso do Captulo ............................................................................................ 261
CAPTULO 6 ELEMENTOS DE RUPTURA POR UMA NOVA FORMA DE ORGANIZAO DO
TRABALHO ...................................................................................................................... 262
6.1 A jornada e o ritmo de trabalho e a segurana do trabalhador ................................. 265
6.2 A diferenciao salarial ........................................................................................... 266
6.3 Novos significados do espao de trabalho ............................................................... 268
6.4 Para alm dos muros das fbricas ........................................................................... 269
6.5 Relaes entre os trabalhadores ............................................................................. 270
6.6 A resistncia s crises: por uma nova teoria de viabilidade econmica ..................... 271
6.7 Mudanas no processo produtivo, no produto e no maquinrio .............................. 272
6.8 A diviso de tarefas e o papel da mulher ................................................................. 274
6.9 A radicalizao da democracia no interior das empresas ......................................... 275
CONCLUSO .................................................................................................................... 278
REFERNCIAS ................................................................................................................... 282
APNDICES ...................................................................................................................... 298
APNDICE A - Roteiro de Entrevistas para Assessorias de ERTs .......................................... 298
APNDICE B - Roteiro de Entrevistas para Red Grfica Cooperativa ................................... 299
APNDICE C - Roteiro de Entrevistas para Trabalhadores das ERTs .................................... 300
ANEXOS........................................................................................................................... 303
ANEXO A Questionrio para Mapeamento de ERTs no Brasil .......................................... 303
ANEXO B - Lista das ERTs no Brasil.................................................................................... 323
ANEXO C - Lista das ERTs com processos de recuperao finalizados no Brasil ................... 327
ANEXO D - Lista das ERTs Argentinas ................................................................................ 330
15
INTRODUO
Motivao para a Pesquisa
A escolha das fbricas recuperadas por trabalhadores como tema de pesquisa tem forte
relao com minha trajetria profissional. Ao longo da formao que tive como engenheiro de
produo sempre questionei a parca presena de matrias que tratassem de temas vinculados
ao cho de fbrica. No incio dos anos 2000, o modismo da qualidade total aliado forte
investida do mercado financeiro nos cursos de engenharia, em especial no de produo,
contriburam para que as disciplinas relacionadas produo industrial se tornassem
secundrias nos departamentos que, curiosamente, ainda so denominados de engenharia
industrial.
No fim da graduao, pude estagiar numa pequena fbrica metalrgica. Nos trs meses em
que estive na empresa, vivenciei conflitos resultantes do antagonismo de interesses existentes
entre os detentores do capital e os operrios, que me trouxeram questionamentos sobre a
formao dos engenheiros e os modelos de gesto tradicionais.
Por que ao longo de quase cinco anos de curso no foram debatidas as relaes sociais que
so estabelecidas no mbito da produo? Por que tive um acesso restrito vasta literatura
que trata do funcionamento da indstria capitalista? Por que os modelos de gesto foram
ensinados sem qualquer viso crtica acerca das relaes de poder que engendram? Havia
possibilidades de organizar a produo de tal forma que as decises estratgicas no
estivessem restritas queles que so os donos do meio de produo?
Certamente no foram essas as questes que formulei naquela poca, mas estava latente a
necessidade de atuar na engenharia com uma perspectiva mais crtica do que as apresentadas
pelos gurus da qualidade total. Foi nesse perodo que passei a ler sobre autogesto e a
procurar grupos de pesquisa em que poderia trabalhar.
Sem espao de atuao na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde finalizava
minha graduao, foi na Universidade Federal Fluminense (UFF), na Faculdade de Sociologia,
que tive o primeiro contato com experincias de economia solidria, na Incubadora de
Cooperativas da UFF, coordenada pela professora Brbara Frana. No mesmo perodo, cursei a
disciplina Economia Solidria e Autogesto no Instituto de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o professor Jos Ricardo Tauile.
Poucos meses depois, em junho de 2004, conheci e integrei, na Escola Politcnica da UFRJ, o
Ncleo de Solidariedade Tcnica (SOLTEC), coordenado pelo professor Sidney Lianza do
16
Departamento de Engenharia Industrial. No espao em que encontrei estudantes com as
angstias similares s minhas, pude desenvolver pesquisas e atividades de extenso com
pescadores, moradores de favelas, comunidades caiaras e operrios que voltaram a produzir
depois de decretada a falncia da empresa em que trabalhavam. Nesta tese, estes
empreendimentos so denominados de Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs).
O projeto de pesquisa e extenso sobre empresas recuperadas em que pude trabalhar se
iniciou em 2005 com uma parceria entre o SOLTEC e o professor Jos Ricardo Tauile, que
meses depois faleceu prematuramente. A proposta era a criao de um Centro de Referncia
em Iniciativas Autogestionrias. Como consequncia dessa aproximao, atuei por dois anos
prestando assessoria a uma cooperativa de parafusos, o que possibilitou que desenvolvesse
minha dissertao de mestrado sobre as diferentes prticas de assessoria que eram realizadas
junto a grupos de trabalhadores associados no estado do Rio de Janeiro. Pude vivenciar, nesse
perodo, as dificuldades e xitos que os operrios tm na gesto coletiva do empreendimento,
assim como as contradies existentes em uma experincia que para se concretizar depende
do rompimento de enormes barreiras culturais.
Nesta tese de doutorado, trabalho com as questes que tive durante a graduao e foram
aprofundadas no perodo seguinte. Meu objeto de pesquisa a organizao do trabalho das
empresas recuperadas, numa tentativa de compreender as mudanas resultantes da
experincia de trabalhadores, que inovaram em um contexto de crise, ao negarem entregar
seus postos de trabalho sem resistncia. Busco identificar os fatores que interferem na
democratizao da gesto em dois diferentes pases e como essas novas prticas podem
contribuir para a construo de uma nova teoria de organizao do trabalho ao expor conflitos
e relaes de poder atreladas aos modelos de gesto. Com esta abordagem, procuro
elementos que ajudem a repensar o ensino da engenharia de produo, e outros cursos que se
encontram no campo da administrao, numa perspectiva de emancipao do trabalho.
Contexto
A imagem que gostaria de apresentar inicialmente a dos guerrilheiros independentistas da
ilha de Bouganville, relatados no documentrio A Revoluo dos Cocos, de 1999, feito pela
National Geographic. A populao desta ilha, que at a dcada de 1990 pertencia Papua
Nova Guin, foi gravemente afetada pelos resduos da maior mina de cobre a cu aberto do
mundo, da empresa britnica Rio Tinto Zinc.
Diante da guerra pela independncia, que no fim do sculo XX os isolava do mundo, a
populao local passou a empreender uma srie de inovaes tecnolgicas a partir dos
recursos naturais da ilha, sobretudo o coco. Passaram a fabricar suas prprias armas,
17
descobriram efeitos medicinais de suas plantas, inovaram na gerao de energia eltrica e
conseguiram que o leo de coco servisse como combustvel para as caminhonetes, necessrias
para o deslocamento na ilha.
Apesar de todas as limitaes e dificuldades vividas pelos moradores da ilha, o filme
demonstra a capacidade deles de reinventarem solues para a vida a partir de recursos da
natureza diante de uma situao extrema. Traando um paralelo a esse caso, pergunto: que
inovaes no campo do trabalho, em especial na Amrica Latina, aconteceram no contexto da
aguda crise causada pelo modelo neoliberal?
A partir da crise financeira pela qual passou o sistema capitalista na dcada de 1970, as
propostas keynesianas, que garantiram os anos dourados do capitalismo com o Estado de
bem-estar social, cederam espao para uma nova doutrina econmica, que desde a dcada de
1940, como descreve Rosenmann (2006), aparecia como uma tentativa de renovao do
liberalismo1.
A doutrina neoliberal consiste, segundo Soares (2001), na aplicao de um receiturio de
contrao da moeda, eliminao do Estado como agente econmico, reduo dos gastos com
as polticas sociais e liberalizao do mercado. Segundo a autora, entre os interesses
econmicos e polticos subjacentes a essa doutrina, est a formulao de um novo esquema
de diviso internacional do trabalho, que responde a interesses dominantes nos pases do
centro e nos da periferia.
No mesmo ms em que ocorreu a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, um
conjunto de medidas, que sintetizava as propostas neoliberais acima mencionadas, foi
formulado por instituies financeiras, como o FMI e o Banco Mundial e recebeu o nome de
Consenso de Washington. Impulsionados pela euforia causada pelo fim da Guerra Fria, como
relata Rosenmann (2006), muitos pases seguiram risca a cartilha desenvolvida pelas
instituies financeiras de Washington e vivenciaram o aumento da desigualdade social e da
pobreza em seus territrios.
Para Soares (2001), os problemas gerados por essa poltica foram agravados na Amrica Latina
pelo peso do passado, referindo-se ao processo de formao histrica desse continente, cujo
saque s suas riquezas naturais, muito bem detalhado por Eduardo Galeano (2008) em As
Veias Abertas da Amrica Latina, impediu o pleno desenvolvimento da estrutura produtiva de
1 O referido autor relata a formao do Centro Internacional de Estudos para Renovao do Liberalismo,
surgido na Frana e que tambm deu nome sociedade criada na Suia, que tinha como participantes Milton Friedman e Friedrich Hayek, que durante a dcada de 1970 receberam o prmio Nobel de economia.
18
seus pases. Em 1990, 46% da populao latinoamericana2 se encontrava abaixo da linha da
pobreza.
O avano das polticas neoliberais na dcada de 1990 acentuou os problemas sociais na
Amrica Latina, tendo sido os trabalhadores industriais duramente afetados3. As empresas de
mdio e pequeno porte sofreram com a concorrncia externa e muitas decretaram falncia.
No Brasil, segundo dados do SERASA4, a dcada de 1990 apresentou um altssimo ndice de
requisies de falncias. No ano de 1996, foram 48.169 requisies de falncias5 no pas
enquanto que, no ano de 1991, esse nmero foi de 12.847, quase quatro vezes menor. A partir
de dados levantados por Verago (2011)6, entre os anos de 1999 e 2001, o nmero de
requisies de falncia na Argentina ultrapassou a casa dos 10.000, enquanto que em um
perodo de crescimento econmico, como em 2007, esse nmero no chegou a 3.000.
Foi no perodo de maior crise dos dois pases (1995/1996 no Brasil e 2000/2001 na Argentina)
que se intensificou a luta dos trabalhadores pela recuperao de seus postos de trabalho. Se as
potncias mundiais souberam inventar novas estratgias de colonizao, os principais afetados
pelas polticas neoliberais tambm deram respostas inesperadas s consequncias sociais
desta fase do capitalismo.
A Economia Solidria no Brasil
Diante do quadro de falncias e do aumento da taxa de desemprego, o trabalho associado
ressurgiu7 como alternativa de gerao de renda para milhares de trabalhadores. Com o nome
de Economia Solidria, um movimento organizado por trabalhadores, militantes e
pesquisadores ganhou fora no Brasil em meados da dcada de 1990.
Foi nesse perodo que surgiram: a primeira Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares
(ITCP), em 1995, na COPPE/UFRJ; a Rede Interuniversitria Unitrabalho que tambm
desenvolve projetos de incubao -; e o Frum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro.
Hoje, a rede de ITCPs engloba mais de 40 universidades; a Rede Unitrabalho cerca de 70; e
todos os estados do Brasil e alguns municpios possuem fruns organizados para debater as
2 Que correspondia a 196 milhes de pessoas, segundo dados da CEPAL apresentados por Soares (2001).
3 Alm de muitas fbricas terem quebrado, as que sobreviveram competio com os produtos
importados, como relata Verago (2011), tenderam a substituir trabalho por capital. Este processo ficou conhecido como reestruturao produtiva. 4
Retirado do stio em 20.02.2010 5 Trabalho com os dados de requisies de falncias por considerar que estes refletem melhor o
momento vivido pelo pas, uma vez que o tempo necessrio para decretar a falncia, por vezes, leva mais de um ano. 6 Fonte: Consultoria Fidelitas e Veraz
7 Nesta tese, no item 1.1 apresentado um conjunto de lutas da classe trabalhadora pela autogesto,
que ajudam a entender que a prtica do trabalho associado se deu em distintos momentos da histria.
19
questes da economia solidria. Em 2001, no I Frum Social Mundial de Porto Alegre foi
institudo o Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidria, que teve papel importante na
conquista, em 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidria (SENAES), ligada ao
Ministrio do Trabalho e Emprego.
O mapeamento da Economia Solidria8, realizado pela SENAES com apoio do Frum Brasileiro
de Economia Solidria e dos Fruns Regionais, revelou, em 2007, a existncia de 21.859
Empreendimentos de Economia Solidria (EES) 9 , dos quais 7.978 ainda so informais,
envolvendo 1.687.496 trabalhadores.
Apesar do nmero expressivo de iniciativas, importante frisar o seu grau de informalidade
(36,5%) e a baixa remunerao gerada por essas atividades: 71,32% dos empreendimentos
tm faturamento mensal inferior a R$ 5.000,00 e, destes, 30,89% revelaram estar sem renda,
sendo alguns limitados a atividades de subsistncia. A luta pela sobrevivncia a caracterstica
principal destas experincias, como se pode identificar na anlise do mapeamento. Apenas
1.571 dos EES declararam que o motivo principal da formao do grupo foi o trabalho
associado, ou seja, pouco mais de 8,8% dos que responderam. Enquanto isso, 6.746 EES
(38,1%) disseram que se associaram, prioritariamente, como alternativa ao desemprego e
outros 6.399 (36,2%) para obterem maior ganho ou complementarem renda.
A exposio desse quadro no pretende desqualificar essas experincias, mesmo porque
qualquer expectativa mais otimista desconsideraria que tais empreendimentos foram
formados em condies completamente adversas. importante, entretanto, que se considere
a situao real vivida por esses trabalhadores na tentativa de evitar uma idealizao das
possibilidades de transformao social trazidas pela economia solidria.
A recuperao de empresas
Dentre as prticas da economia solidria, uma chama ateno pelo fato de no se tratar da
formao de novos agrupamentos de trabalhadores. A recuperao de empresas uma prtica
desenvolvida por trabalhadores que, na iminncia de ficarem desempregados, negociam ou
lutam pelo acesso aos meios de produo de empresas falimentares10. Ruggeri (2009) define a
8 Retirado do stio em 20.02.2010
9 Segundo o stio da SENAES, o mapeamento identifica cooperativas, associaes, empresas de
autogesto (que prefiro chamar de empresas recuperadas), grupos solidrios, redes solidrias e clubes de troca que realizam coletivamente a compra de insumos ou comercializao e processamento dos seus produtos. 10
Na base conceitual do Sistema de Informaes da Economia Solidria (SIES), estes empreendimentos so denominados de empresas de autogesto. Uma vez que a definio do conceito de economia solidria abrange apenas iniciativas de autogesto, considero a limitao do nome autogesto s empresas recuperadas um equvoco conceitual, cujos motivos so expostos em Henriques (2007).
20
recuperao de empresas como um processo social e econmico que pressupe a existncia
de uma empresa capitalista anterior cuja falncia ou inviabilidade econmica resultou na luta
dos trabalhadores por autoger-las. As empresas recuperadas tambm se distinguem dos
demais EES por gerarem rendas mais elevadas11.
H vrios exemplos histricos de manuteno dos postos de trabalho por meio da ocupao
das empresas, sendo alguns deles descritos nesta tese. A partir da dcada de 1990, essa
prtica ressurge como alternativa para um contingente significativo de trabalhadores,
sobretudo no Brasil e na Argentina.
No Brasil, h experincias de empresas recuperadas desde a dcada de 1980, como
exemplifica o caso da empresa de extrao de carvo mineral em Cricima (Cooperminas).
Mas, a partir da dcada de 1990, com o apoio da Associao Nacional dos Trabalhadores de
Empresas de Autogesto e Participao Acionria (ANTEAG), que acontece o crescimento e a
consolidao destas experincias no pas. A partir de 1999, a Central nica de Trabalhadores
(CUT) passou a apoiar a recuperao de fbricas por meio da Central de Cooperativas e
Empreendimentos Solidrios (UNISOL), transformando a recuperao numa das possibilidades
da luta sindical. Em 2002, surgiu o Movimento de Fbricas Ocupadas diante da falncia das
empresas do grupo CIPLA de Joinville. Este movimento tem como bandeira principal a
estatizao de empresas sob controle operrio, refutando a proposta de construo de
cooperativas como sada.
Em uma pesquisa realizada no Brasil, cuja parte dos resultados ser apresentada nesta tese,
foram identificados 67 casos de ERTs12 em funcionamento e 78 casos13 de recuperao que j
foram encerrados14. Na Argentina, embora tambm existam experincias da dcada de 1990, a
exploso do fenmeno se deu com a crise de 200115. Ocupar fbricas tornou-se uma
alternativa concreta para 205 empresas16, segundo dados do levantamento, feito em 2010, por
pesquisadores da Universidade de Buenos Aires (RUGGERI ET AL., 2011)17.
tambm na Argentina que pode ser encontrado, atualmente, o maior esforo de
sistematizao dos dados referentes s empresas recuperadas e de conceituao deste
11
A mdia de retirada mnima das ERTs brasileiras, segundo dados da pesquisa apresentada nesta tese, de R$ 1.063,05, enquanto a mdia de retirada mxima de R$ 4.998,46. 12
A listagem desses casos encontra-se no ANEXO B desta tese 13
A listagem desses casos encontra-se no ANEXO C desta tese 14
Seja porque a empresa voltou a funcionar sob gesto patronal, seja porque faliu novamente. 15
A luta das fbricas argentinas nesse perodo foi registrada no documentrio La Toma de Avi Lewis e Naomi Klein. 16
Com a crise de 2010 novas fbricas foram recuperadas e estima-se que ao menos cerca de 20 novas empresas foram recuperadas. 17
A listagem das ERTs argentinas mapeadas nessa pesquisa encontram-se no ANEXO D desta tese.
21
fenmeno. Este esforo se d por conta da necessidade de demarcao de um campo distinto
daquele da Economia Social18. A principal razo deste intuito de diferenciao a necessidade
de polticas pblicas, que so intrinsecamente diferentes das que atendem aos
empreendimentos da Economia Social, como, por exemplo, o microcrdito, que no
suficiente para as fbricas adquirirem novos maquinrios e matria prima.
Na Argentina, tambm existem diferentes entidades representativas dos segmentos das
empresas recuperadas: Movimento Nacional de Empresas Recuperadas (MNER), Movimento
Nacional de Fbricas Recuperadas por Trabalhadores (MNFRT), Federao de Cooperativas de
Trabalhadores Autogestionrios (FACTA), Unio Produtiva de Empresas Autogestionadas
(UPEA), alm dos apoios relacionados aos sindicatos como Associao Nacional dos
Trabalhadores de Autogesto (ANTA) e Unio Operria Metalrgica (UOM) de Quilmes.
As iniciativas relatadas nesta sesso, algumas j consolidadas h cerca de 20 anos, revelam a
capacidade de operrios recuperarem empreendimentos produtivos sem a presena de um
patro, apesar de todas as dificuldades que enfrentam. Este fato gera expectativas sobre as
potencialidades de transformao social advindas de uma eventual proliferao destes casos.
Nesta direo, Ruggeri (2009) lembra que a maioria das empresas recuperadas surge a partir
da necessidade extrema vivida pelos trabalhadores de lutar pela manuteno dos seus postos
de trabalho e, no, como uma luta poltica conduzida pelo iderio anticapitalista. No significa
que seja impossvel identificar nestas experincias questes inovadoras quanto ao conflito
entre capital e trabalho; mas esta considerao ajuda a ter uma postura crtica com relao
aos estudos que conferem aos seus objetos de pesquisa caractersticas idealizadas pelo
pesquisador.
Os diversos estudos sobre as empresas recuperadas tentam, em geral, responder a dois
desafios: o primeiro, registrar as diferentes experincias e suas prticas, relacionando-as com
os contextos em que esto inseridas e os movimentos sociais que as acompanham. O segundo,
analisar as inovaes que decorrem dessas iniciativas que, em geral, situam-se no mbito das
relaes sociais de produo.
A primeira inovao a prpria sada encontrada para responder falncia ou ao
sucateamento das unidades produtivas. A recuperao de fbricas, sem a presena do
capitalista, em si, uma inovao do ponto de vista da luta dos trabalhadores num contexto
18
Conceito mais utilizado pelos argentinos para designar experincias de trabalho associado. Entretanto, nos ltimos tempos possvel encontrar estas prticas agrupadas no conceito de Economia Social e Solidria.
22
de crise, o que no significa que o rumo inexorvel dessas iniciativas seja a construo de um
novo modelo de sociedade.
Para identificar contribuies dessas experincias constituio de novas relaes sociais de
produo, faz-se necessrio analisar as reformulaes realizadas no processo de trabalho,
desde solues encontradas na produo quanto na gesto administrativa e estratgica das
empresas. O intuito desta pesquisa identificar fatores que apontam para a radicalizao da
democracia nas unidades produtivas. Para isto parte da seguinte questo norteadora: Que
inovaes no campo da organizao do trabalho produziram as empresas recuperadas por
trabalhadores no Brasil e na Argentina?
A tese central a de que as limitaes impostas pela hegemonia do modo de produo
capitalista no encerram a possibilidade de construo de novas relaes sociais de produo.
As inovaes que busco fotografar nesta tese se assemelham descrio de Carlos Drummond
de Andrade (2008) da flor que rompeu o asfalto:
Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, nibus, rio de ao do trfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polcia, rompe o asfalto. Faam completo silncio, paralisem os negcios, garanto que uma flor nasceu.
Sua cor no se percebe. Suas ptalas no se abrem. Seu nome no est nos livros. feia. Mas realmente uma flor.
(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 2008)
A flor, rodeada pelo asfalto, sem dvidas limitada pelas condies do entorno, que dificultam
sua nutrio e crescimento. Todavia ela existe e rompe o asfalto de forma desobediente. Antes
da flor, h o broto, que o olhar mope do pensamento ortodoxo no permite enxergar. As
experincias de luta pela autogesto so, para mim, brotos de flor em meio ao asfalto. Como o
broto depende de cuidado e nutrientes para se desenvolver, h na crtica descompromissada
consequncias srias, por mais que se pretendam progressistas, pois dificultam que as
experincias germinem19. Coaduna-se com esse pensamento o que Boaventura de Sousa
Santos (2007) chama de crtica razo indolente, que denuncia o desperdcio das experincias
sociais existentes.
19
Para Ana Clara Torres Ribeiro (2012), leituras equivocadas do contemporneo so parcialmente
responsveis pelo fracasso de experincias sociais inicialmente revoluncionrias.
23
As iniciativas concretas de autogesto, ou mesmo as que assim no se intitulam, mas que em
seu contedo apresentam caractersticas do que nesta tese chamo de autogesto, apresentam
elementos de ruptura com a organizao capitalista do trabalho, que se concretizam em
experimentos de novas relaes sociais de produo. Tais rupturas so limitadas e a
organizao do trabalho das ERTs fortemente influenciada pela forma hegemnica de se
estruturar a atividade de trabalho. Entretanto, sem um olhar atento para as experincias no
se pode enxergar os brotos.
O que proponho nesta tese tampouco que esse olhar para alguns casos pr-selecionados
desconsidere o conjunto das experincias. preciso ter a dimenso de que no s tais
iniciativas tm uma participao pequena na economia dos dois pases estudados, como se
diferenciam em muitos aspectos das questes analisadas nos casos escolhidos, que j
apresentavam previamente sinais de maiores avanos com relao construo de novas
relaes sociais de produo.
Este olhar mais amplo me faz concluir que no possvel falar ainda no surgimento de uma
nova escola de organizao do trabalho autogestionria. Os elementos que configuram a
estrutura da atividade de trabalho dessas experincias esto dispersos e ainda fortemente
influenciados pela lgica da organizao capitalista do trabalho.
Minha tese a de que os brotos existentes fornecem elementos que permitem a
problematizao em vrios aspectos da organizao capitalista do trabalho e, por meio de uma
crtica prtica, como sugere Rebn (2007), propiciam a reflexo sobre a possibilidade de
superao do modelo hegemnico.
Defendo, portanto, que as experincias de autogesto e controle operrio descritas e
analisadas nesta tese so contribuies pedaggicas ao processo de reinveno da
emancipao social, como prope Boaventura de Sousa Santos (2007).
As experincias pretritas de tentativa de construo do socialismo demonstraram que a falta
de acmulo sobre novas formas de organizao do trabalho representou uma limitao
histrica construo de novas relaes sociais de produo20. em busca desta contribuio
que enxergo nas empresas recuperadas por trabalhadores experimentos reais emancipatrios
que exigem a criao e o fortalecimento de um campo de pesquisas, estudos e formao que
propicie anlises crticas, dialgicas e transformadoras.
Para dar conta da questo proposta, o primeiro captulo apresenta uma reflexo sobre os
conceitos de Autogesto e Tecnologia Social. Alm de relatar alguns dos antecedentes
20
Como quando Lenin optou pelo taylorismo como modelo de produo das fbricas soviticas.
24
histricos das atuais experincias de recuperao de fbricas, busca-se refletir sobre o
conceito de Autogesto, que central para qualificao das prticas estudadas, e de
Tecnologia Social, que o marco terico a partir do qual se debate sobre a necessidade de
construo de novos paradigmas tecnolgicos para a prtica da autogesto.
No segundo captulo, busca-se compreender as caractersticas centrais da organizao
capitalista do trabalho e para tanto se discute o conceito de trabalho, perpassando pelas
principais escolas que influenciaram a estruturao da atividade industrial no modo de
produo capitalista.
No terceiro captulo so aprofundadas algumas das lutas operrias dos dois pases a serem
analisados Brasil e Argentina. Foi dada nfase especial ao Cordobazo e Rosariazo na
Argentina e ao surgimento do novo sindicalismo no Brasil, dado que registram o ressurgimento
do sindicalismo de base nesses dois pases, enquanto vivenciavam perodos ditatoriais.
No quarto captulo so descritas as caractersticas gerais, por meio de dados agregados, das
empresas recuperadas por trabalhadores na Argentina e no Brasil. Enquanto no primeiro pas
so enfatizadas as anlises j realizadas acerca do fenmeno de empresas recuperadas, no
Brasil apresentado um primeiro mapeamento que buscou englobar a totalidade das
experincias existentes.
No quinto captulo so analisados cinco casos, sendo um deles de uma rede que compe 19
ERTs. Os quatro demais se referem a trs ERTs argentinas e uma brasileira, que atenderam aos
requisitos previamente definidos para escolha dos casos.
Para finalizar a tese, o sexto captulo traz uma sntese das inovaes identificadas nas
experincias estudadas, dando nfase aos elementos de ruptura com a organizao capitalista
do trabalho.
Percurso Metodolgico
Pela estrutura apresentada, pode-se perceber que a tese tanto descritiva como analtica. A
parte em que sero descritos os contextos das experincias brasileiras e argentinas est
ancorada em levantamentos realizados nos dois pases por equipes de pesquisa com
questionrios similares, porm adequados a cada contexto.
Na Argentina, o Programa de Extenso Facultad Abierta da Faculdade de Filosofia e Letras da
Universidade de Buenos Aires (UBA) foi responsvel pela realizao de trs levantamentos nos
anos de 2004, 2007 e 2010. Este grupo me recebeu por quatro meses durante o perodo de
estgio doutoral.
25
Com total influncia desse intercmbio, foi organizado um grupo de pesquisa21, envolvendo
dez universidades no Brasil22 para realizar um mapeamento similar, com objetivo de conhecer
a totalidade de experincias de empresas recuperadas no pas. Desde a formulao do projeto,
passando pela elaborao do questionrio, at as discusses conceituais, foi estabelecido o
dilogo com a equipe argentina.
A apresentao dos dados dessa pesquisa coletiva, da qual fao parte, fundamental para
situar o objeto de pesquisa, fornecendo um panorama geral dos casos, traado por meio da
aplicao em 58 empresas23 de um questionrio com doze eixos24: dados gerais da empresa e
dos entrevistados; processo de recuperao; marco legal; estrutura ocupacional e perfil dos
trabalhadores; produo e tecnologia; relaes de trabalho e educao; perfil organizacional;
comercializao e relao com mercados; seguridade social e segurana do trabalho; relao
com a sociedade, movimentos sociais e sindicatos; relao com estado; autoavaliao e
perspectivas.
A parte analtica da tese consiste na realizao de estudos de caso no Brasil e na Argentina25.
Inicialmente, estava programada a realizao de ao menos um estudo de caso na Venezuela,
que no foi possvel por limitaes oramentrias e de tempo. Foi realizada uma visita a uma
fbrica na Venezuela, assim como a duas fbricas uruguaias, mas no com a imerso
necessria para realizao de um estudo de caso. Essas visitas serviram para gerar novas
hipteses e desejos de pesquisas futuras. De qualquer forma, Brasil e Argentina concentram a
maior parte dos casos e so responsveis pelo espao que o tema alcanou no mbito das
lutas atuais dos trabalhadores.
A escolha dos casos levou em considerao a potencialidade de serem encontrados elementos
de ruptura na forma de gesto dos empreendimentos. A deciso foi tomada com base em
leituras prvias, pesquisa documental e informaes de pesquisadores que conheciam os
21
Para consolidao desse grupo e realizao da pesquisa contou-se com apoio financeiro do CNPq 22
Grupo de Anlise de Poltica de Inovao (GAPI/UNICAMP), Ncleo de Solidariedade Tcnica (SOLTEC/UFRJ), Ncleo de Apoio s Atividades de Extenso em Economia Solidria (NESOL/USP), Incubadora de Empreendimentos Sociais e Solidrios da Universidade Federal de Ouro Preto (INCOP/UFOP), CEFET-RJ/Nova Iguau, Organizaes & Democracia (Org & Demo) UNESP-Marlia, Ncleo de Estudos em Tecnologias Sociais (NETS/UFVJM), Incubadora de Empreendimentos Solidrios da Universidade Federal da Paraba (INCUBES/UFPB), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ncleo de Estudo, Pesquisa e Extenso em Projetos de Engenharia e Gesto Aplicados ao Desenvolvimento Ambiental e Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PEGADAS-UFRN). 23
Dessas 58 aplicaes, seis no foram consideradas ERTs e pude participar de 30 entrevistas das 52 ERTs que foram visitadas e inseridas no estudo. 24
Que so muito similares aos eixos dos levantamentos argentinos. 25
Foram entrevistados 36 trabalhadores de 4 ERTs e 15 trabalhadores das 11 grficas visitadas pertencentes Red Grafica Cooperativa. Alm disso, foram entrevistados 7 lideranas e pesquisadores ligados ao movimento de empresas recuperadas na Argentina.
26
casos. Como se pode perceber, a maneira com que os casos foram escolhidos no permite
uma generalizao das caractersticas encontradas para o conjunto das empresas recuperadas,
que no era a inteno.
Durante a imerso no campo foi observado que as tarefas que os trabalhadores tinham que
gerir no eram as mesmas das empresas tradicionais e a elaborao do roteiro teve que
considerar esses fatores. Os itens analisados foram os seguintes: hierarquizao dos salrios;
estimulantes do trabalho; significado do ambiente de trabalho; relao com os demais
trabalhadores; diviso de tarefas e o conhecimento do processo produtivo; tomada de
deciso; intensidade do trabalho; layout das fbricas; alteraes no processo produtivo e no
maquinrio; relao com movimentos sociais; segurana do trabalho; questo legal; e
operacionalizao do conceito de autogesto.
Para os estudos de caso foram elaborados dois roteiros semiestruturados. Um com os eixos
acima referidos, aplicados com diferentes trabalhadores de distintos setores26. O outro
necessitou ser adaptado, pois um dos casos escolhidos foi de uma rede do setor grfico que
envolvia 19 empresas argentinas dispersas no territrio. Foram visitadas 11 empresas dessas
19 e como o foco era o funcionamento da rede e no das grficas individualmente, o roteiro27
foi aplicado apenas uma vez em cada caso, necessitando, portanto, de uma adaptao.
Foram ainda elaborados outros dois roteiros de pesquisa: um para as assessorias de empresas
recuperadas argentinas28, que permitiu compreender as diferentes vises dos movimentos
nesse pas e outro para pesquisadores que participaram do mapeamento argentino, que
auxiliou na construo da pesquisa no Brasil.
Com relao a este mapeamento, cabe reforar que se trata de um trabalho coletivo, que
envolveu inmeros pesquisadores e que fortaleceu a criao de um campo de pesquisa
vinculado s empresas recuperadas no pas. Algumas das escolhas, como a adoo do conceito
Empresas Recuperadas por Trabalhadores, se deram no mbito do projeto, por meio de
discusses amplas, em que tambm foi consultada a equipe argentina. Nesse sentido, um dos
grandes desafios da redao desta tese o de conseguir distinguir as anlises individuais das
decises tomadas pela equipe de pesquisa.
Apesar de o estudo apresentar a realidade de dois pases e em alguns momentos traar
paralelos entre as experincias, no tem o intuito de ser um estudo comparativo, mesmo
26
Este roteiro encontra-se no APNDICE C desta tese. 27
Este roteiro encontra-se no APNDICE B desta tese. 28
Este roteiro encontra-se no APNDICE A desta tese.
27
porque h diferenas considerveis na anlise dos dois casos, que se devem aos distintos
avanos tericos alcanados em cada pas.
Por fim, e no menos importante, faz-se necessrio dizer que a perspectiva adotada nesta tese
baseia-se na proposta de Boaventura de Sousa Santos (2005) que, na coletnea Reinventar a
Emancipao Social, descreve em diversos campos, inclusive o da produo, prticas
alternativas em seis diferentes pases, tentando compreender as solues encontradas pelos
que sofrem os principais efeitos das medidas neoliberais. Na elaborao das descries o autor
adota o que chamou de Sociologia das Emergncias que, ao reconhecer a fragilidade e
incipincia das iniciativas, preocupa-se em ampliar e desenvolver suas caractersticas
emancipatrias.
Dessa forma, contrape-se a correntes da esquerda que tm a tendncia a oferecer variaes
j conhecidas para os problemas causados pelo capitalismo, desperdiando as experincias
sociais pelas fragilidades que apresentam. A flor no asfalto descrita por Drummond uma
forma insegura, desbotada e feia, que ainda no est nos livros. Reconhecer essa fragilidade
tambm objetivo desta pesquisa, mas na perspectiva de potencializar as prticas.
Inspirado por Ernst Bloch, Boaventura de Sousa Santos (2007) disse que entre o nada e o tudo
que uma maneira muito esttica de pensar a realidade eu lhes proponho o ainda no.
(p.37). Concordando que as experincias descritas nesta tese ainda no ameaam a
hegemonia do modo de produo capitalista, tenho como preocupao identificar as aes
que permitem desconstruir a ideia de unidimensionalidade do modelo atual.
Parto, assim, do pressuposto de que num contexto de crise, em que a luta pela transformao
social no o objetivo primeiro dos trabalhadores, a tendncia que se reproduzam
caractersticas dos sistemas tradicionais de organizao do trabalho, o que no encerra a
possibilidade de identificao de inovaes emancipadoras.
28
CAPTULO 1 AUTOGESTO E TECNOLOGIA SOCIAL
A escolha deste captulo para iniciar a tese deve-se centralidade destes dois conceitos para
responder ao problema de pesquisa: que inovaes no campo da organizao do trabalho se
produziram nas experincias de empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil e na
Argentina?
A inspirao para essa busca est na histria de lutas da classe trabalhadora pela maior
democratizao do ambiente de trabalho, que Nascimento (2005) chama de lutas pela
autogesto. Ao tentar identificar inovaes empreendidas pelos protagonistas dessas lutas,
situo-me no campo do que se convencionou chamar nos ltimos anos de tecnologia social.
1.1 Experincias Histricas de Autogesto
No objetivo desta seo apresentar todas as experincias de luta pela autogesto nem
pormenorizar as que aqui forem descritas. Mas, alm de evidenciar que o fenmeno estudado
nesta tese tem antecedentes histricos em diversos pases da Europa, da Amrica Latina e
tambm da frica e da sia, preciso distinguir algumas caractersticas que so prprias do
perodo e local em que aconteceram. Os registros de histrias de autogesto so evidncias da
no neutralidade da cincia. No caso, das cincias administrativas, que em suas grades
curriculares ignoram prticas histricas de luta dos trabalhadores por um novo modelo de
gesto.
Na reviso bibliogrfica sobre o conceito de gesto, nota-se que o mesmo no considera
sistemas de auto-organizao dos trabalhadores. Dias (2002), ao discorrer sobre as
semelhanas e diferenas entre os conceitos de gesto e administrao, identifica em autores
clssicos como Peter Drucker, Henry Fayol e Frederick Taylor, que a principal convergncia
reside na necessidade de influncia sobre terceiros, ou seja, tanto a gesto quanto a
administrao so exercidas sobre outro indivduo, para coorden-lo, orient-lo e dirig-lo
(p.6).
Tal postura ancora-se numa viso que eterniza as formas de gesto capitalistas,
desconsiderando histricas experincias de auto-organizao da classe operria. Marcuse
(1997) em Cultura e Sociedade fala da reduo do conceito de trabalho ao de trabalho
econmico. Para o autor, o trabalho econmico tal qual o conhecemos hoje, direcionado para
os interesses de uma classe especfica, se restringe progressivamente atividade dirigida, no
livre (p.8). Numa perspectiva de superao da alienao do trabalho e de resgate de sua
essncia que conceituou como a realizao efetiva plena e livre do homem como um todo em
seu mundo histrico (p.44), Marcuse (1997) aponta para o trabalho controlado pelos
29
produtores associados, realizando-o com o menor dispndio de fora e sob as condies mais
dignas e adequadas a sua natureza humana (p.45).
Prximos a essa definio de Marcuse, Guillerm e Bourdet (1976) ao descreverem o que
chamaram de pr-histria da autogesto, retomam o modo de produzir das sociedades
primitivas europias, mais especificamente, de gauleses e germanos que tinham para eles
caractersticas similares s sociedades primitivas da Amaznia, frica e Polinsia. Estas teriam
sido as nicas sociedades da abundncia que a humanidade conheceu em que se podia
produzir, com um trabalho mnimo e com um sistema ecologicamente equilibrado, o dobro da
necessidade de consumo, sendo o excedente estocado para momentos de catstrofes e festas.
Para os autores, no h na descrio dessas sociedades traos de explorao da mulher pelo
homem ou do homem pelo homem, j que os chefes, designados assim pelos etnlogos, no
chegam a se fazer obedecer seno quando seus compatriotas assim o querem (GUILLERM;
BOURDET, 1976, p.99).
provvel que se encontre em diversos momentos da histria da humanidade o controle do
trabalho pelos produtores associados, como descrito acima, exercido enquanto prtica comum
dos povos. Mas a partir da revoluo burguesa, quando os meios de produo no mais
pertenciam aos produtores diretos, que se pde verificar intensas lutas pela autonomia no
ambiente de trabalho, que Nascimento (2005) chama de lutas pela autogesto. O mrito deste
autor est em unificar em um nico estudo experincias que costumam aparecer em pesquisas
distintas. Em geral, quem tem como nfase o conceito de cooperativismo, relata que as
prticas se originaram com as ideias de Roberto Owen, no incio do sculo XIX. Quem enfatiza
o conceito de autogesto ou controle operrio costuma iniciar o relato histrico pela
Comuna de Paris, j em 1871. Nascimento (2005) que utiliza a autogesto como conceito
central, compreende que a luta por autonomia no ambiente de trabalho unifica bandeiras
ideolgicas distintas. Com base na periodizao feita por este autor, so apresentadas, com
algumas modificaes, as diferentes etapas das lutas pela autogesto:
a. Incio do sculo XIX com as ideias de Robert Owen at os teceles de Rochdale na
Inglaterra (1820-1870);
b. A partir da Comuna de Paris, passando pela Revoluo Russa at dois anos depois do
fim da Primeira Guerra Mundial, que revelou casos em contextos revolucionrios
(1871 1920);
c. Desde a consolidao da Revoluo Russa at o fim da guerra civil espanhola, que
apresentou experincias combatidas pelo governo sovitico (1917-1939);
30
d. Desde o fim da Segundo Guerra, passando pelo maio de 1968 na Frana at o incio da
dcada de 1980, que apresentou casos heterogneos entre si (1946 1982);
e. Um novo perodo iniciado em novas condies estruturais do capitalismo globalizado
iniciado no final de dcada de 1980 que segue at os dias de hoje (1982 2013).
Como se pode observar, desde os primrdios da Revoluo Industrial at hoje, de maneira
quase ininterrupta, pode-se encontrar experincias de lutas pela autogesto na histria.
Certamente em alguns momentos essas lutas foram mais intensas, em geral, em momentos de
profunda crise do sistema capitalista e de contextos revolucionrios.
As primeiras lutas da classe operria, entre meados do sculo XVIII e as primeiras duas dcadas
do sculo XIX, tiveram como estratgia central a destruio de mquinas, matrias-primas e
produtos acabados. Embora tenha sido largamente utilizada durante esse perodo, ficou
conhecida pelo Movimento Luddista, cujo estopim foi em 1811 na Inglaterra. No senso comum
e mesmo no meio acadmico, os quebradores de mquinas ficaram estigmatizados pela
resistncia ao progresso tecnolgico. Hobsbawn (2000), em contraposio a essa ideia,
demonstra que a destruio era simplesmente uma tcnica de sindicalismo num perodo
anterior (p.21). Uma maneira de gerar presso intermitente nos patres quando ainda no
havia uma classe trabalhadora organizada e quando as relaes sociais de produo sofriam
mudanas profundas. No se pode, entretanto, qualificar essas manifestaes como lutas pela
autogesto, assim como o importante movimento pela Carta do Povo cartismo - pois no so
encontrados elementos reivindicatrios por autonomia no espao de trabalho29.
a. Do Owenismo a Rochdale (1820 - 1870)
Embora haja registros de experimentos cooperativos na Inglaterra desde 1769, Singer (1998)
relata que a partir de 1820 que a classe operria britnica passa a se engajar em uma outra
utopia, a da construo de um novo mundo base das novas foras produtivas mas em que a
cooperao e a igualdade tomem o lugar da explorao e da competio (p.73). O autor est
se referindo formao do movimento cooperativista: a difuso inicial das cooperativas
coincide com a revoluo industrial, o que dificilmente ter sido por acaso (SINGER, 1998,
p.91).
A grande maioria das cooperativas que surgiram at 1820 so de consumo, embora tenham
existido cooperativas de produo ainda no sculo XVIII, como uma de alfaiates em
Birmingham em 1777. A diferena das experincias que surgiram a partir da dcada de 1820
29
Apesar do movimento cartista ter lutado pelo sufrgio universal, que representa a luta pela democracia poltica.
31
reside no fato de terem sofrido influncia direta das ideias de Robert Owen, um empresrio
que no incio do sculo XIX apresentou um plano ao governo britnico para que recursos
pblicos, que eram gastos como fundo de sustento dos pobres, fossem utilizados na
construo de Aldeias Cooperativas ao invs de serem distribudos. Nessas aldeias, os
trabalhadores produziriam sua prpria subsistncia e trocariam com outros os excedentes de
produo. A proposta foi recusada pelo governo e Owen seguiu para os Estados Unidos, em
1825, onde implementou com pouco sucesso uma Aldeia Cooperativa (SINGER, 2002).
Suas ideias, entretanto, influenciaram inmeras experincias. Singer (2002) relata algumas
delas, como a primeira cooperativa owenista formada por jornalistas e grficos em Londres, e
a da Comunidade de Orbiston, de 1826, que iniciou experimentos em educao e repartio
equitativa das sobras. Alm dessas, algumas Aldeias Cooperativas tambm foram
experimentadas na Inglaterra, como a Associao Cooperativa de Troca de Brighton. Entre
1826 e 1835, para Singer (1998), mximo perodo de florescimento do owenismo, surgiram
pelo menos 250 sociedades cooperativas em todas as zonas industriais do pas, com exceo
do Pas de Gales.
Mas no foi apenas na Inglaterra que a luta dos trabalhadores do incio do sculo XIX
desembocou em uma auto-organizao visando a melhores condies de trabalho. Em 1831 na
Frana, os teceles de Lyon, conhecidos como Canuts, iniciaram reivindicaes pela
estipulao de uma tarifa mnima para as peas que produziam. Com o lema Preferimos
tombar por uma bala a morrer de fome, a mobilizao em torno desta luta, que gerou
centenas de mortos, permitiu que os trabalhadores controlassem a cidade por dez dias e
criassem seus prprios instrumentos de informao e cultura, alm de associaes que
reuniam diversas profisses (SARD DE FARIA, 2011).
Segundo Sard de Faria (2011), as estruturas criadas pelos Canuts tinham como primeiro
horizonte gerar independncia com relao aos fabricantes-negociantes, que embora ainda
no controlassem os meios de produo, tinham na subcontratao dos teceles o poder de
definir o que produzir, com que ritmo produzir e a que preo vender. A mobilizao que durou
de 1831 at 1834 influenciou o surgimento de inmeras associaes e cooperativas na Frana.
Gueslin (apud SARD DE FARIA, 2011) identificou em 1912 a existncia de 476 cooperativas de
produo na Frana.
Apesar da existncia de experincias pretritas, muitos estudos conferem Sociedade dos
Pioneiros Equitativos de Rochdale, o ttulo de primeira cooperativa da histria. Fundada por 28
teceles da cidade de Manchester e influenciada por owenistas e cartistas, esta, que nasce
como uma cooperativa de consumo em 1844, teve o mrito de redigir oito regras que at hoje
32
servem de base para o movimento cooperativo no mundo. Entre estas, podem ser destacadas:
a democracia na gesto, em que cada scio teria direito a apenas um voto; a livre associao
de trabalhadores; e a destinao de parte do excedente para a educao dos scios (SINGER,
1998).
Em 1850, foi criada a primeira cooperativa de produo do grupo, o Moinho Cooperativo de
Rochdale, e em 1854, o segundo, uma tecelagem com 96 teares. Ao longo dos anos foram
criados jornais, uma escola e uma biblioteca, atestando a preocupao com a educao dos
scios. Como relata Singer (1998), em 1879 a cooperativa possua 10.427 scios.
Mas podem ser encontrados relatos de que antes disso o processo de gesto coletiva em
Rochdale j havia perdido fora. Em 1862, como consequncia da Guerra Civil nos Estados
Unidos, a crise do algodo gerou um conflito entre os operrios de uma cooperativa de
produo do grupo e os acionistas, relacionado ao pagamento de bnus aos trabalhadores.
Estes venceram em primeira instncia, mas em um segundo momento, em deciso tomada
apenas pelos acionistas, perderam o direito. A existncia de acionistas em um
empreendimento cooperativo j denota a existncia de uma contradio, que agravada pelo
fato dos ltimos, que representavam apenas 10% dos membros da cooperativa, possurem
maior poder de deciso. Embora o empreendimento de Rochdale tenha sobrevivido at o
incio do sculo XX, o corte temporal feito at o ano de 1870 est relacionado importncia da
experincia da Comuna de Paris de 1871 e perda de flego na manuteno das regras
redigidas pelos Pioneiros de Rochdale durante esse perodo.
Embora uma parcela dos tericos da autogesto no entenda essa parte da histria como
importante na luta para a transio socialista30, a perspectiva metodolgica adotada nesta tese
no permite que sejam ignorados os primeiros intentos de conduo da produo pela classe
operria. certo que algumas das crticas direcionadas a Owen so bem fundamentadas, como
a no considerao da luta de classes em sua anlise da sociedade. De acordo com Sard de
Faria (2011), havia em seu pensamento inicial uma averso ao conflito entre trabalhadores e
capitalistas, o que parece ter sido compreendido por Marx e Engels pelo fato das foras
produtivas no terem sido plenamente desenvolvidas at ento:
Para Marx e Engels, os primeiros tericos do socialismo e do
cooperativismo no poderiam ter ido alm do que o estgio do
desenvolvimento do capitalismo possibilitava. A introduo das mquinas e
a grande indstria davam seus primeiros passos, as classes sociais e seus
antagonismos encontravam-se em formao. A obra da revoluo social
capitalista, nos termos de Singer, ainda no estava completa. Da que esses
30
Muito pelo fato de tericos como Owen terem recebido de Marx e Engels a designao de socialistas utpicos.
33
primeiros reformadores sociais erguessem suas teorias sob uma base
material que no correspondia ao sentido do desenvolvimento do modo de
produo em que estavam enredados. E o termo utpico foi-lhes dedicado
por esse anacronismo que se fazia inevitvel (SARD DE FARIA, p.71, 2011).
Adoto, entretanto, a perspectiva de Singer (1998) que enxerga o potencial anticapitalista nas
experincias cooperativas do comeo do sculo XIX. Para este autor, o conceito de Revoluo
Social designa o processo de transformao de um sistema socioeconmico e significa a
alterao nas relaes sociais de produo. Difere-se, portanto, do conceito de Revoluo
Poltica, que est relacionado s mudanas nas relaes de poder entre autoridades e
cidados.
Uma Revoluo Poltica e a consequente refundao das instituies podem ser muito
importantes para o aprofundamento de uma Revoluo Social, como foi para a Revoluo
Social Capitalista. Entretanto, experincias que buscam alterar as relaes sociais de produo
convivem com os modos de produo hegemnicos muito antes de se tornarem hegemnicas.
Como demonstra Singer (1998), em todos os pases, relaes de produo capitalistas foram
se expandindo paulatinamente, nos poros do modo de produo precedente (p.27).
Da mesma forma, o modo de produo capitalista apresenta brechas que podem ser
aproveitadas para organizar atividades econmicas por princpios totalmente diferentes dos
capitalistas (SINGER, p.112, 1998). As experincias que nesta tese so chamadas de lutas pela
autogesto so entendidas, utilizando a categoria de Singer, como Revolues Sociais em
Potencial. No se sabe se podero ou no desembocar em uma Revoluo Social Socialista,
mas por buscarem alterar parte das relaes sociais capitalistas, por meio da coletivizao dos
meios de produo, representam espaos de esperana, que Singer (1998) chama de
implantes socialistas.
O principal argumento de Singer que me faz adotar esta ideia est relacionado tentao de
parte da esquerda de entender que muitas experincias que nascem dentro do sistema de
produo capitalista so necessariamente capitalistas. Isto se d por confundirem as
experincias com as contratendncias que surgem como reao a elas (SINGER, p.112,
1998). Isto faz, por exemplo, com que no se compreenda a importncia da conquista do
sufrgio universal, impulsionada inicialmente pelo movimento cartista. certo que como
reao a essa conquista, os capitalistas encontraram formas de minimizar essa vitria, mas
esta nunca deixou de ser uma arma poderosa que a classe trabalhadora tem em mos. O
sufrgio universal, assim como a seguridade social, o sindicalismo e o cooperativismo so, na
viso de Singer (1998), implantes socialistas. Todos sofreram investidas da classe dominante,
como a formao dos sindicatos patronais e a utilizao da forma cooperativa para burlar leis
34
trabalhistas31. Mesmo sem sair da legislao vigente, a forma cooperativa foi utilizada sem
qualquer carter contestatrio 32 , o que justifica as acertadas crticas que recebem o
movimento cooperativo. Entretanto, considero importante saber diferenciar o que funcional
ao sistema capitalista do que assimilvel por ele, sob o risco de desperdiar um conjunto de
prticas que tiveram sua importncia histrica, como o movimento cooperativo do sculo XIX.
b. As Experincias em Contextos Revolucionrios (1871 1919)
Em 1871, em decorrncia da guerra franco-prussiana, a Guarda Nacional francesa esteve sob o
poder da classe trabalhadora na cidade de Paris. Nesse contexto teve incio uma das
experincias mais emblemticas de autogesto na histria. A Comuna de Paris eleita em 26
de maro por sufrgio universal e majoritariamente formada por trabalhadores da produo,
tomou um conjunto de decises tendentes a destruir o Estado burgus e edificar (...) uma
sociedade socialista autogestionria (NASCIMENTO, 2005, p.13).
Segundo Guillerm e Bourdet (1976), o proletariado parisiense ocupou antes de tudo as fbricas
e toda organizao capitalista. Substituram-na pelo que os autores chamaram de modelo de
democracia proletria, em que os operrios nomeavam seus gerentes, seus chefes de oficina e
chefes de equipe com direito de revog-los.
Marx (1999) em A Guerra Civil na Frana descreve as principais aes da Comuna em pouco
mais de dois meses com o poder sob Paris, que foram muito alm da retomada das fbricas:
substituio do exrcito permanente pelo povo armado, por meio de milcias populares;
equiparao de salrios dos funcionrios pblicos aos dos operrios; separao da Igreja do
Estado; abertura de todas as instituies de ensino para o povo; interferncia na eleio e
demisso de membros do poder judicirio; implementao de elementos de democracia direta
mediante um regime comunal. Em suas palavras: A comuna era, essencialmente, um governo
da classe operria, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma
poltica afinal descoberta para levar a cabo a emancipao econmica do trabalho (MARX,
1999, p.95-96).
Ao analisar o programa da Comuna de Paris, Nascimento (2005) ainda apresenta significativos
avanos no mbito da poltica de habitao, por meio da requisio dos imveis secundrios
ou parcialmente ocupados; no uso dos transportes pblicos, que se tornaram gratuitos; na
gratuidade dos servios mdicos; na abolio da pena de morte; nos direitos das mulheres; e
nas atividades produtivas, em que o programa previa a expropriao das empresas privadas,
31
Que so conhecidas como coopergatos ou cooperfraudes. 32
Dentre as diretrizes da Organizao de Cooperativas do Brasil (OCB), so mais claras as caractersticas capitalistas de produo do que as socialistas.
35
que deveriam ser administradas pelos trabalhadores e a realizao de trabalhos manuais pelos
que praticavam essencialmente trabalhos intelectuais por meio da rotatividade de cargos.
Em 28 de maio de 1871, terminou a experincia da Comuna num banho de sangue com cerca
de 20.000 mortos. Em texto escrito dois dias aps o massacre, Marx diz que:
A Comuna aspirava expropriao dos expropriadores. Queria fazer da
propriedade individual uma realidade, transformando os meios de
produo, a terra e o capital, que hoje so meios de escravizao e
explorao do trabalho, em simples instrumentos de trabalho livre e
associado (MARX, 1999, p.97).
Por fim, cabe salientar que a experincia da Comuna fez com que Marx alterasse o prefcio do
Manifesto Comunista em 1872. Curiosamente ressaltado por Lnin (1917) em O Estado e a
Revoluo, Marx percebeu algo que