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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO TESE DE DOUTORADO EDUCAÇÃO SOMÁTICA: Diálogos e ntr e e du c a ç ão, saúd e e art e no cont e xto da propos ta da R eorganiza ç ão Postural Dinâmi c a 2010

Tese J.A.Lima EDUC A Ç Ã O SOMÁ T IC A: Diálogos entre educação, saúde e arte no contexto da proposta da Reorganização Postural Dinâmica

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EDUC A Ç Ã O SOMÁ T IC A:Diálogos entre educação, saúde e arte no contexto da proposta daReorganização Postural Dinâmica

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    UNI V E RSID A D E EST A DU A L D E C A MPIN AS F A C U L D A D E D E E DU C A O

    T ESE D E D O U T O R A D O

    E DU C A O SO M T IC A : Dilogos entre educao, sade e arte no contexto da proposta da

    Reorganizao Postural Dinmica

    2010

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    UNI V E RSID A D E EST A DU A L D E C A MPI N AS F A C U L D A D E D E E DU C A O

    T ESE D E D O U T O R A D O

    Educao Somtica: dilogos entre educao, sade e arte

    no contexto da proposta de Reorganizao Postural Dinmica

    Autor: JOS ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA Orientadora: Profa. Dra. ELIANA AYOUB

    Este exemplar corresponde redao final da Tese defendida por JOS ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: 23 de fevereiro de 2010.

    Assinatura:................................................................................

    Orientadora

    COMISSO JULGADORA:

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    2010

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    Agradecimentos

    So tantos, eternos, que no vou cit-los nominalmente.

    Agradeo aos meus pais, pelo que plantaram, campo do qual pouco colhi.

    Agradeo aos meus filhos, e minha esposa, pela fora, pela constncia, pelo afeto.

    Agradeo aos meus pacientes, por terem me ajudado no pouco de sabedoria que tenho.

    Agradeo aos meus alunos, principalmente aqueles que, prximos, trilharam comigo uma boa

    parte do caminho, e que continuam a me dar incentivo, com o seu carinho e torcida.

    Agradeo aos meus mestres,de quem bebi a gua que me foi oferecida e de quem furtei o vinho

    cuidadosamente guardado.

    Agradeo aos amigos que, mesmo sem entender do que eu estava falando, ouviam atentamente.

    Agradeo minha orientadora que, com pacincia ouviu meus desatinos e transformou-os em

    cuidados passos.

    Agradeo aos funcionrios da ps-graduao pela gentil ateno, meu calendrio e memria.

    Que o construdo esteja altura do que recebi.

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    Resumo

    Trata-se da apresentao e descrio de uma tcnica de trabalho corporal inscrita no

    universo da educao somtica, na qual se discute a concepo que hoje atribuda a este

    conhecimento, inclusive no que concerne ao resgate do indivduo como ser social.

    O desenvolvimento do discurso, explora informaes que transitam neste universo,

    tratadas sob o olhar das cincias da sade e da pedagogia

    (VWD GLVFXVVmR WHP FRPR VXSRUWH D UHDOLGDGH GR FRUSR VXEPHWLGR D XP SURFHVVRanatmico, fsico e, principalmente, histrico que determinam seu movimento como indivduo,

    partindo daquilo que possvel resgatar destas totalidades na construo de um conjunto de

    propostas de aes corporais que se renem em uma tcnica que foi denominada: Reorganizao

    Postural Dinmica.

    Abstract

    This is a presentation and description of a corporal work technique which is entered in the

    universe of the somatic education in which the current conception is discussed, including that

    which concerns the rescue of the individual as a social being.

    ThHVSHHFKVGHYHORSPHQW explores information in this universe, from the perspective of health sciences and pedagogical knowledge.

    This discussion is based on the ERG\V reality undergone an anatomical, physical, and

    historical process that determine their movement as an individual, based on what is possible to

    rescue from these wholes in construction of proposed actions that are in a body technique called:

    Dynamic Postural Reorganization.

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    Sumrio Resumo ............................................................................................................................................ 4 Abstract ............................................................................................................................................ 4 ndice de ilustraes ........................................................................................................................ 7 Introduo ........................................................................................................................................ 9!!"#$%&'()*)Educao Somtica .......................................................................................................... 41!

    !"#$%&'()**)A Tcnica: Propostas e Processos ................................................................................... 65!

    2.1 H istr ico do processo inicial .......................................................................................... 67!Agosto de 1986 a julho de 1987........................................................................................... 68!Agosto de 1987 a Dezembro de 1987 .................................................................................. 70!Jane iro e Fevereiro de 1988 ................................................................................................ 71!M aro e Abril de 1988 ......................................................................................................... 74!M aio e Junho de 1988 .......................................................................................................... 75!Julho e Agosto de 1988 ........................................................................................................ 77!Setembro e Outubro de 1988 .............................................................................................. 78!Novembro de 1988 a M aio de 1989 .................................................................................... 78!

    2.2 Componentes do Movimento ......................................................................................... 80!Componentes fsicas: ........................................................................................................... 80!Espaos de interao (distnc ia) corporal: ....................................................................... 82!T rabalhos musculares: ........................................................................................................ 83!Cadeias musculares antagnicas: ....................................................................................... 84!E ixos de movimento: ........................................................................................................... 84!Associao a sons: ................................................................................................................ 84!

    !"#$%&'()***)Reorganizao Postural Dinmica: a tcnica ................................................................. 86!

    3.1 - Aquecimento .................................................................................................................... 87!3.2 - Sequncia de Fora.......................................................................................................... 88!3.3 - Sequncia de alongamento.............................................................................................. 98!3.4 - Exerccios de base observao ................................................................................... 104!

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    3.5 - Exerccios de base alinhamento ................................................................................ 106!3.5.1 -Ps e tornoze los ........................................................................................................ 107! 3.5.1.1 - Exerccios estticos: ps e tornozelos .............................................................. 117! 3.5.1.2 - Exerccios dinmicos: ps e tornozelos ........................................................... 119!3.5.2 - Pernas (joelho e coxofemoral) ............................................................................... 120! 3.5.2.1 - Exerccios estticos: pernas ............................................................................. 125! 3.5.2.2 - Exerccios dinmicos: pernas .......................................................................... 125!3.5.3 C intura plvica e tronco (bacia e coluna) ............................................................ 128! 3.5.3.1 - Exerccios estticos: cintura plvica e tronco ................................................. 136!3.5.4 Cabea e Pescoo ................................................................................................... 136! 3.5.4.1 - Exerccios: cintura plvica, tronco, cabea e pescoo .................................... 141!3.5.5 C intura escapular e braos ................................................................................... 145! 3.5.5.1 - Exerccios: cintura escapular e braos............................................................ 152!

    3.6 A tenso lenta como estratgia .................................................................................... 153!3.6.1 A compreenso corporal da tenso lenta ............................................................. 154!3.6.2 T rabalho com bloquinhos e bastes ..................................................................... 159!3.6.3 Bancos ..................................................................................................................... 160!

    !"#$%&'()*+)Consideraes finais: o movimento superior ............................................................... 161!

    Referncias Bibliogrficas ........................................................................................................... 166!Anexo I ........................................................................................................................................ 171!Anexo II ....................................................................................................................................... 174!

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    ndice de I lustraes F igura 1: Abdominal - posio inicial 89 F igura 2: Abdominal - posio intermedir ia 89 F igura 3: Abdominal - final de movimento 90 F igura 4: Abdominal - retorno posio inicial 90 F igura 5: E levao M I - posio inicial 91 F igura 6: M I em elevao anter ior 91 F igura 7: Abduo de M I 91 F igura 8: Aduo de M I 91 F igura 9: F lexo perna posio inicial 92 F igura 10: F lexo perna final 92 F igura 11: Isomtr ico final 92 F igura 12: M I elevao poster ior final 92 F igura 13: F lexo braos - posio inicial 93 F igura 14: F lexo braos posio inicial 93 F igura 15: F lexo M M II ps paralelos - posio inicial 93 F igura 16: F lexo M M II 93 F igura 17: F lexo M M II em R E- posio inicial 94 F igura 18: F lexo de M M II em R E - posio final 94 F igura 19: F lexo M M em R E calcanhares afastados posio inic ial 95 F igura 20: F lexo M M em R E calcanhares afastados. final 95 F igura 21: F lexo M M ps paralelos afastados posio inicial 95 F igura 22: F lexo M M II ps paralelos afastados final 95 F igura 23: F lexo braos final (face anter ior 96 F igura 24: F lexo M I unilateral 96 F igura 25: F lexo M I - final 96 F igura 26: F lexo plantar dos ps 97 F igura 27: F lexo plantar dos ps (detalhe) 97 F igura 28: C ircunduo braos (3 momentos) 97 F igura 29: Exerccio 1 (quatro momentos) 99 F igura 30: Posio final do exerccio 3 99 F igura 31: Posio final do exerccio 4 99 F igura 32: Posio final do exerccio 5 100 F igura 33: Posio intermedir ia e final do exerccio 6 100 F igura 34: Posio final do exerccio 7 100 F igura 35: Posio final do exerccio 8 101 F igura 36: Posio final do exerccio 9 101 F igura 37: Posio inic ial e final do exerccio 10 101

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    F igura 38: Posio final e posio de retorno do exerccio 11 102 F igura 39: Posio intermedir ia e posio final do exerccio 12 103 F igura 40: Posies intermedir ias e posio final do exerccio 13 103 F igura 41: Abboda Plantar 109 F igura 42: Tendes musculares da rdea plantar 109 F igura 43: Vetores de absoro de peso e dos eixos dinmicos do p 111 F igura 44: Apoios do p descalo durante a marcha 112 F igura 45: E ixo longitudinal do p 113 F igura 46: Posio de meia ponta no bal 114 F igura 47: Pontos de apoio do p 117 F igura 48: Radiografias do p E em situao passiva (E) e dinmica (D) 118 F igura 49: Esquema dos ossos do p E na viso poster ior 118 F igura 50: Movimento do ligamento intersseo 122 F igura 51: Rotao da tbia e do e ixo de sustentao do joelho E 123 F igura 52: Esquema da transmisso do peso para os apoios 128 F igura 53: M anuteno da estrutura da coluna 128 F igura 54: G raus de flexo e extenso da pelve 140 F igura 55: G raus de flexo e extenso da coluna vertebral 140 F igura 56: G raus de flexo lateral da coluna 140 F igura 57: G raus de rotao axial da coluna 140 F igura 58: F lexo, extenso, flexo lateral e rotao axial de coluna cervical e

    cabea 141 F igura 59: Ossos da cintura escapular 145 F igura 60: C intura escapular (vista super ior) 148

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    Introduo

    Meu primeiro experimento nDVDUWHVGRHVSHWiFXORYLYRPRADIER, 1997) e, visto por

    outra tica, meu primeiro momento de crtica ao fazer corporal deu-se h cerca de 40 anos,

    inicialmente pela minha participao no teatro universitrio, como ator e diretor, numa poca em

    que este tipo de teatro era acima de tudo um teatro de resistncia ao regime ditatorial e repressivo

    que imperava no Brasil nos idos dos anos 1960 e 1970 e, a partir do incio dos anos 1980, na

    minha relao com o mundo da dana H GR TXH DOJXQV GLVWLQJXHP FRPR VHQGR WHDWUR GH

    PRYLPHQWR RXGDQoD-WHDWUR!.

    Seja como ator no Grupo Teatral Medicina (GTM) e no Grupo de Teatro Jornal da USP,

    seja como diretor teatral no GTM, autor de peas por ele encenadas, ou adaptando filmes e textos

    para o teatro como: Deus e o Diabo na Terra do Sol2 e A Hora e a Vez de Augusto Matraga3,

    tive nesta poca a oportunidade de absorver indiretamente os ensinamentos para o teatro de

    Alberto DAversa4, por meio de seu pupilo Gelson Reicher, ambos lastimavelmente mortos, e

    1 Dana-Teatro (expresso traduzida do alemo TanzTheater) conhecida, sobretudo pela obra de Pina BAUSCH, porm tem sua origem no Folkwang Tanz-Studio, criado em 1928 por Kurt JOOSS que foi professor de BAUSCH e , ele prprio, originrio da Ausdruckstanz, a dana expressionista alem. (PAVIS, 1996, p.77) (La danse-thtre (expression qui traduit ODOOHPDQGTanztheater) HVWVXUWRXWFRQQXHjWUDYHUVORXYUHGH3%$86+mais elle trouve son origine dans le Folkwang Tanz-Studio cre en 1928 par K. JOOS qui fut le professeur de BAUSH et est, lui-PrPHLVVXGHOAusdruckstanz, la danse expressionniste allemande.) 2 Filme nacional de 1964, escrito e dirigido por Glauber Rocha (1938-1981), considerado um marco do cinema novo. Indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes (1964), Frana. 3 Narrativa de Joo Guimares Rosa (1908-1967) que integrava seu primeiro volume de contos: Sagarana, publicado em 1946. 4 $OEHUWR'$YHUVD&DVDUDQR,WiOLD So Paulo, SP 1969). Diretor italiano que atuou no Teatro Brasileiro de Comdia tendo se distinguido na atividade didtica em diversas escolas de teatro e reconhecido pela crtica

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    direta e indiretamente os de Augusto Boal5, falecido recentemente, em contatos pessoais, pela

    participao na leitura pblica da pea Arena Conta Bolvar6, e pela ntima relao que, por meio

    do Teatro Jornal, mantinha com os integrantes do Teatro Areninha, que mantinha-se como um

    agregado do Arena.

    Paralelamente a estas atividades dedicava-me ao atletismo, sob a orientao de Valdir

    Barbanti7, ao basquete e ao carat, sob orientao de Matsuda Sama8 e Ito Sama.

    Se as atividades citadas proporcionavam-me experincias corporais de cunho artstico e

    esportivo, o conhecimento mdico, em formao, com a participao em grupos de estudo em

    Medicina Esportiva e Cinesiologia, com integrantes do Departamento de Ortopedia e da

    Faculdade de Fisioterapia da USP e atividades de campo, em sade comunitria, assessorados

    pelo Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, proporcionaram-me conhecimentos

    sobre as razes fisiolgicas do corpo que se move e tornaram concreta sua insero social, to

    amplamente discutida nas lides polticas do centro acadmico e de organizaes que se

    posicionavam contra o regime instalado.

    jornalstica de espetculos (MERCADO NETO, 1980, p.42). Em 1968, encena com o Grupo Teatral Medicina a pea Noite de Guerra no Museu do Prado, de Rafael Alberti. 5 Augusto Pinto Boal (Rio de Janeiro, RJ 1931 idem 2009). Diretor, autor e terico. Por ser um dos nicos homens de teatro a escrever sobre sua prtica, formulando teorias a respeito de seu trabalho, torna-se uma referncia do teatro brasileiro. Principal liderana do Teatro de Arena de So Paulo nos anos 1960. Criador do teatro do oprimido, metodologia internacionalmente conhecida que alia teatro ao social. Com a decretao do AI5, viaja para fora do pas. Em seu retorno, com uma equipe de jovens recm sados de um curso no Arena, cria o Teatro Jornal 1 Edio, experincia que aproveita tcnicas do agit-prop e do Living Newspaper, grupo norte-americano dos anos 30 (MICHALSKI, 1989). 6 Pea escrita por Augusto Boal e proibida de ir a cartaz. 7 Futuro diretor Escola Educao Fsica da USP Campus So Paulo (1998-2002) e diretor da Escola de Educao Fsica USP - Campus Ribeiro Preto (2008-at o momento) 8 Sama Expresso japonesa. Ttulo de respeito usado para um superior ou mestre.

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    Perodo riqussimo em experincias corporais forneceu-me os subsdios iniciais, no que

    concerne s teses aqui desenvolvidas, sobre a arte, a arte do espetculo vivo, o movimento

    corporal, o corpo na sociedade, posteriormente recuperados no desenvolvimento de meu trabalho.

    A colao de grau em medicina em 1974, a especializao em cirurgia, a especializao

    em medicina do trabalho e a participao no Centro de Educao em Sade do Instituto Sedes

    Sapientiae9, em So Paulo, com atividades de assessoria desenvolvidas, principalmente, junto s

    comunidades eclesiais de base, sindicatos e partidos polticos, vieram consolidar e adicionar

    novos argumentos s experincias anteriores.

    Neste perodo, enquanto exercia funo ambulatorial na Eletropaulo, fui protagonista de

    uma experincia que, atualmente, tenho oportunidade de traduzir na forma de reflexo

    amadurecida e qual reputo estar profundamente enraizada na concepo pedaggica na qual,

    hoje, me vejo inscrito.

    Exercia ento as funes de mdico ambulatorista em especialidades que mantinham

    relaes de proximidade entre si: clnica cirrgica, clnica gastroenterolgica e endoscopia do

    aparelho digestivo, alm da medicina do trabalho, propriamente dita.

    Para melhor visualizao do ambiente em que se dava este trabalho, vale a pena esclarecer

    que a empresa tinha 23.000 empregados e centenas de profisses. A Diviso de Sade, contava

    com 150 funcionrios, dentre os quais cerca de 50 mdicos de vrias especialidades e titulaes.

    A diviso contava com 49 postos mdicos para atendimento, distribudos por uma rea que se

    estendia do litoral cidade de Jundia. Contava com laboratrio clnico prprio na qual se fazia,

    9 Instituio filantrpica vinculada Associao Instrutora da Juventude Feminina, criada por Madre Cristina Sodr Doria (1916-1997) em 1975, com o intuito de criar um espao de encontro entre pensamento, atuao e trabalho junto sociedade, comprometido com a defesa dos direitos humanos e da liberdade de expresso.

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    inclusive, eletroforese de protenas10 e um centro radiolgico no qual eram processados todos os

    exames da rea, incluindo os de contraste tanto injetvel, quanto gastroentrico.

    Era, enfim, um ambiente de alto padro, para a poca; paralelo a isto os funcionrios

    contavam com o convnio mdico da Braslight, fundao federal que atendia a todas as empresas

    de energia eltrica do pas, que permitia o atendimento em praticamente qualquer hospital e com

    qualquer mdico que o empregado procurasse.

    Neste contexto, os encaminhamentos feitos pelos colegas relativos a queixas

    gastroenterolgicas eram, na grande maioria, dirigidas ao consultrio sob minha tutela. Eu tinha a

    possibilidade de receber o funcionrio com uma queixa especfica, solicitar-lhe os exames

    necessrios, fazer a investigao endoscpica e finalmente encaminh-lo para cirurgia, detalhe

    importante, pois eu no tinha o direito de oper-lo eu mesmo.

    Sem que me desse conta, o processo de atendimento foi se automatizando, principalmente

    no que se referia aos portadores de queixas gstricas, que o que me interessa comentar.

    O empregado-paciente era atendido por mim, o diagnstico era feito, havia uma tentativa

    de tratamento de, em mdia, trs ou quatro meses e, em se tratando de processo ulceroso, caso

    no houvesse melhoras evidentes ou se constatasse uma recidiva, o indivduo era encaminhado

    para tratamento cirrgico. Ocorre que houve um momento em que eu estava encaminhando para

    procedimento cirrgico vrios ps-adolescentes que, recm entrados nos seus vinte anos ou

    pouco mais, invariavelmente, perdiam uma parte de seu estomago sem que isto representasse cura

    definitiva, at pelo fato de ainda serem muito jovens. Abandonados pelos colegas em seu perodo

    ps- cirrgico, eu acabava fazendo o seguimento de seus casos. 10 Tcnica de separao das protenas do soro.

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    Ora, minha formao em cirurgia, concluda havia poucos anos, havia me ensinado outros

    processos cirrgicos mais conservadores que possibilitavam maior sobrevida aos rgos afetados

    com remisso completa dos sintomas e poucas recidivas. Eu no podia, entretanto, intervir no

    modelo que se havia estabelecido, uma vez que eu no tinha possibilidade de dar

    encaminhamento ao tratamento cirrgico.

    Paradoxal era o fato de que um dos responsveis por estes procedimentos cirrgicos,

    tambm funcionrio da Eletropaulo, tinha sido meu professor em cirurgia gastroenterolgica,

    tanto no internato, quanto na residncia cirrgica.

    Esta resistncia pessoal ao tratamento de continuidade que estava sendo proposto queles

    pacientes provocou uma mudana em meu processo de atendimento inicial e vi-me mantendo o

    tratamento clnico por mais tempo com maior nmero de retornos de cada paciente e maior

    nmero de coleta de informaes no seguimento de suas histrias.

    Percebi que uma quantidade importante deles era originria das regies norte, nordeste e

    do noroeste do pas e geralmente moravam sozinhos na cidade de So Paulo, alguns abandonaram

    esposa e filhos, alm de pais e irmos e ansiavam pelo retorno sua cidade de origem nos

    perodos de frias e licenas mdicas prolongadas.

    A histria particular deste contingente levou-me a observar que suas queixas gstricas,

    tanto no caso de lcera gstrica ou duodenal, quanto no caso de gastrite ou esofagite tinham o

    seguinte componente de repetio: vrios me afirmavam que quando o nibus, nos quais

    retornavam s suas cidades natais, entrava na Dutra, "tudo o que era dor sumia", afirmavam

    inclusive que a partir da podiam comer pimenta e outros condimentos aos quais estavam

    acostumados sem que nada lhes sobreviesse. Acrescentavam ainda que quando se aproximava a

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    poca do retorno, a comida ia se tornando mais pesada e que, j no nibus de volta, as dores

    manifestavam-se, s vezes de forma intensa e no cessavam mais at que iniciassem a medicao.

    Esta singularidade de fatores no me fora apresentada deste modo no aprendizado mdico,

    no com esta riqueza, no com esta concomitncia, no com esta clareza de observaes pessoais.

    No tenho dvidas que esta percepo s me foi possvel, porque houve um momento na

    minha relao com estes pacientes em que levado por uma motivao claramente secundria,

    passei a solicitar-lhes a presena mais amide para conversarmos sobre suas queixas. A idia

    inicial era colher deles o que eles pensavam de sua doena, o que conheciam dela, o que na

    regio em que eles haviam morado era feito como tratamento para o tipo de afeco que eles

    imaginavam que tinham e, principalmente, como seus sintomas tinham se manifestado durante a

    semana, o que os havia precedido etc. Pedi que fizessem um dirio com suas observaes e que

    comeassem a associar, por si prprios, os sintomas ao que lhes precedia, insisti em que

    tentassem equacionar o que esta descoberta lhes causava. Passei a lhes fornecer maiores

    informaes sobre o que portavam, sob o ponto de vista de diagnstico epidemiolgico, atravs

    de desenhos, fotos, explicaes simples e comparaes com outras experincias mais concretas,

    por exemplo: a comparao de uma lcera a uma ferida na pele ou a uma afta, ou da gastrite a

    uma rea de atrito. Comecei a passar a informao que um me fornecia ao outro e a passar suas

    experincias pessoais do que tinham feito para contornar seus problemas aos outros queixosos.

    Os perodos de consulta passaram de 15 minutos a um tempo normalmente superior a 50

    minutos. E alguns passaram a ser atendidos at duas vezes ou mais por semana.

    No final, passvamos a maior parte do tempo conversando sobre suas escolhas e opes e

    no mais sobre a afeco, vrios afirmavam que apresentavam melhora s de vir ao ambulatrio.

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    As medicaes que faziam parte de meu receiturio davam-me inicialmente duas opes:

    os anticidos e a cimetidina, droga de recente sntese que vinha apresentando timos resultados; a

    estas e a partir de minha vivncia com os pacientes, associei o ch de couve, que muitos referiam

    como bom para o que estavam sentindo e a respeito do qual acabei tendo referncias em artigos

    sobre medicina natural. Melhor seria dizer o suco coado da couve moda e espremida.

    Em comum estes medicamentos apresentavam os seguintes resultados: se bem

    assimilados e com as orientaes adequadamente seguidas, a remisso dos sintomas era

    consequente e em cerca de trs meses a endoscopia mostrava sinais de que tinha havido remisso

    das leses, embora nem sempre houvesse a remisso completa dos sintomas. Outro fato comum

    era que a recidiva no respeitava nem o tipo de medicamento nem perodos diferenciados em

    relao a estes. Na poca, no era voga investigar-se o helicobacter11 como agente afeccioso.

    A resposta sintomtica era sim diferente: o anticido provocava resposta imediata, mas

    necessitava mais de uma semana para modificar o quadro doloroso geral. A cimetidina no

    provocava resposta imediata, mas em cerca de quatro dias abolia significava e intensamente os

    sintomas, o ch de couve necessitava de cerca de quinze dias para influir na sintomatologia.

    Diante deste quadro alterei minha postura com relao doena.

    Primeiro comecei a dar aos prprios pacientes a deciso sobre qual medicamento usar,

    explicando-lhes tudo o que eu tinha de experincia com os resultados, a nica coisa que lhes era

    solicitado era que o mtodo no poderia ser alterado aps ter-se iniciado. Isto foi complementar

    ao fato deles j estarem sob a proposta de apropriao da doena que tinham e seus modos de

    11 O Helicobacter pylori (Hp) uma bactria que vive no muco que cobre a superfcie do estmago. Evidncias apontam que esta bactria pode estar associada s leses gastrojejunais.

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    agir, ao mesmo tempo em que suas anotaes sistemticas acabavam por detectar sinais que a

    literatura no comentava ou ainda sequncias de eventos onde a literatura apresentava apenas

    uma coleo de sintomas sem encadeamento.

    Depois comecei a trabalhar com eles os motivos de sua vinda a So Paulo, o quanto isto

    tinha sido positivo, o quanto a famlia lhes fazia falta, como era seu cotidiano, se tinham amigos,

    o que no seu local de origem lhes dava saudades, o que lhes fazia falta intensa, que hbitos foram

    obrigados a mudar, como se sentiam com relao s outras pessoas que o cercavam: no trabalho,

    onde moravam, nas ruas.

    Fazia-os comparar seu cotidiano antes e agora, o que era possvel modificar neste

    contexto. Como eram seus finais de semana antes e depois da mudana. Suas expectativas com

    relao vida, se o que sonhara estava se realizando, se havia possibilidade de se realizar. Se

    tinha valido pena.

    Falvamos dos prazeres, sejam alimentares, sejam sociais, sejam emocionais, que tiveram

    de ser adiados, esquecidos, substitudos neste processo. Lembro-me de usar a analogia de que

    tudo era alimento, que ns nos alimentvamos pela boca, pelos olhos, pelos ouvidos, pelo tato,

    pelo sexo e que este processo, alm de ser o que nos mantinha vivos, era o que definia o modo de

    como isto se daria a cada momento.

    No tenho os nmeros referentes aos que fizeram parte desta experincia, quantos no a

    iniciaram e quantos dela desistiram, no tenho anotado seus perodos de melhora e recidivas, no

    tenho anotado os que forosamente acabaram dirigindo-se cirurgia, no tenho dados sobre

    quantos optaram por outro mtodo; mas tenho a experincia de que aquela vivncia foi inusitada,

    para mim e para eles, lembro a luz em suas faces quando percebiam que tinham adquirido um

  • 17

    modo de explicar a afeco que portavam, quando percebiam a relao de seus sintomas com

    algum acontecimento, algum fato, alguma lembrana ou alguma emoo, quando percebiam que,

    de algum modo o controle era deles, que suas opes definiam a continuidade ou o encerramento

    de acontecimentos, que aquele processo que se iniciara por causa de uma queixa tinha assumido

    dimenses que extrapolavam as queixas, os sintomas e mesmo sua remisso, que eles tinham

    escolha, enfim e que ao fim e ao cabo tudo se resumia a isto.

    Vrios a abandonaram e, neste caso, invariavelmente, porque queriam que eu tomasse

    todas as decises, s se sentiam bem se fossem medicados, no tinham muito interesse em saber

    de sua doena ou simplesmente se desinteressavam pelo que se passava. Nestes casos eu lhes

    fazia a medicao e orientao inicial e inclua a sugesto para que procurassem outro

    profissional.

    Outros se definiam pelo tratamento cirrgico, no tinham condies de estender o perodo

    de opo, como se o fato de fazerem uma escolha j fosse suficiente para se livrarem de suas

    consequncias. Alguns retornavam parabenizando-se por terem optado pelo caminho adotado,

    no raramente se encontrando, no corredor ou na sala de espera, com aqueles cujos resultados os

    traziam de volta ao incio de nosso jogo de buscar saber o que fazer.

    Outros permaneciam num eterno retorno no sabendo como responder s questes que

    estavam lhes sendo impostas pela vida, pelas suas escolhas.

    Alguns, um nmero significante, voltaram para sua regio de origem, todos vinham e me

    contavam sua deciso, nesta conversa acabavam confessando terem entendido que isto no era

    garantia de nada quanto s suas queixas, era apenas uma escolha, que haveria outras, surpreendi-

    me com o entendimento que tinham a respeito.

  • 18

    Lembro-me de que o primeiro que me procurou me assustou: havia o fato social concreto

    de que sua vinda a So Paulo tinha sido em busca de condies melhores de vida, sob o ponto de

    vista financeiro; havia o fato concreto de que seu salrio era superior mdia nacional e muito

    superior ao que receberia na sua regio como ajudante de servios gerais que era. Senti-me

    responsvel por isto e temi pelas consequncias, mais do que temi por qualquer opo de outros

    pacientes.

    Felizmente contive-me e dei-lhe tempo para falar. Mesmo que no tenha sido longa, sua

    fala, tendo sido a primeira foi, tambm, a mais completa sobre a questo que eu jamais ouviria.

    Eu a recitei para outros como prosa, como poesia, como receita, como descoberta, como verdade.

    Caiu-me como ensinamento e incentivo e eu a tenho como fiel da experincia que vivi no

    perodo citado frente quela comunidade.

    Embora tenham se passado vrios anos e eu no tenha a integra de seu discurso, vou

    tentar reproduzi-lo no que me possibilita a memria:

    - Doutor a gente tem conversado bastante, eu estou quase doutor tambm na minha

    doena, mas eu estou resolvido, vou voltar pro norte (no me lembro da cidade), eu deixei minha

    famlia e vim pra ganhar dinhe iro aqui em So Paulo, acabei ficando doente, vivendo uma vida

    que eu no tinha idia que ia enfrentar, ganho mais do que l, mas valho menos do que l valho.

    Eu percebi que tudo que eu decido t ligado a outras coisas que eu no decido , mesmo que eu

    no perceba a ligao, como esta doena. Eu percebi que o que importa ser inteiro e inte iro

    com tudo minha volta e eu posso escolher embora eu no saiba aonde minha escolha vai me

    levar, se o que me fez mudar de lugar foi a necessidade de encontrar em outro lugar o que eu

  • 19

    precisava, agora eu vou ver se eu posso mudar o lugar em que eu estou para encontrar o que eu

    preciso ali mesmo e meu lugar l.

    Houve referncias ao modo como ele se sentiu tratado e respeitado, que ele se sentia leve

    com a deciso e, como se me isentasse, que a escolha tinha sido dele.

    Os sublinhados referem-se s frases que permaneceram claras porque foram anotadas na

    ficha de atendimento, s quais recorria pela beleza que ali se encerrava e para meu prprio

    deleite.

    No tive outras declaraes to maravilhosas, to impares, de outros pacientes, mas de

    algum modo elas eram correspondentes em todos que voltavam.

    Na despedida ele me afirmou que manteria contato, que escreveria contando sobre seus

    sintomas, que no tinham mais nenhuma importncia para ele. Nunca mais o vi ou tive notcias e,

    a bem da verdade, sequer me lembro de seu nome.

    No tenho dvidas quanto a importncia desta experincia na formulao do raciocnio

    que desenvolvi em minha dissertao de mestrado, assim como no que hoje trao com relao ao

    processo pedaggico de modo geral e ao processo pedaggico corporal em senso estrito. A

    juno destas duas formulaes resumindo-se nas consideraes e no mtodo de trabalho

    corporal que sero expostos mais frente.

    Foi apenas em 1983, entretanto, que todas estas experincias e conhecimentos tiveram

    oportunidade de serem unificados numa questo central a qual desemboca na tese que ora

    desenvolvo.

  • 20

    Ansioso por retomar um movimento corporal no esportivo, e sem dvida em resposta

    onda de cultivo ao corpo que j havia se arraigado na classe mdia, iniciei atividade prtica em

    dana, na Escola de Dana Rene Gumiel, sob a orientao de Klauss Vianna. 12

    Para mim, na poca, um ilustre desconhecido, embora badalado e festejado por atores,

    danarinos e aqueles que curtiam a febre do corpo, seu trabalho, ento chamado de Dana

    Espontnea ou Dana Livre, no tinha uma codificao especfica (MILLER, 2005, p.26)13 para

    os movimentos e seus encadeamentos e, sob o meu ponto de vista, se reportava essencialmente ao

    modo como o corpo se apresentava, quanto sua postura e dinmica.

    Algumas de suas colocaes prticas resultavam, entretanto, em estados francamente

    positivos naqueles que assimilavam suas orientaes.

    Objetivamente observei-me numa outra atitude, num outro dinamismo, que poderia ser

    descrito por um alinhamento da coluna, maior sustentao de meus ombros, aumento de 1,5 cm

    em minha altura medida, maior capacitao no uso de meu joelho esquerdo, no qual tinha, e

    tenho, rupturas ligamentares que causavam impedimentos e instabilidades, e, subjetivamente,

    numa sensao de bem estar e de conscincia da ao corporal14.

    12 Klauss Vianna, ao lado de poucos outros como Maria Duschenes e Angel Vianna, so pioneiros que transformaram os caminhos da dana e, de modo mais amplo, do fazer corporal no Brasil. Sobre Klauss escreve o FUtWLFR GR -RUQDO GR %UDVLO 0DFNVHQ /XL] (VVH PLQHLUR IRL R SLRQHLUR QD WUDQVSRVLomR GD GDna (movimento corporal) para a dramtica da cena (a palavra na raiz do movimento), e de certa maneira mostrou que o teatro poderia GDQoDUVROWDUDYR]MXQWRFRPDVLQXRVLGDGHGRPRYLPHQWR/8,=6REUH$QJHO9LDQQDFRQILGHQFLDYD-me o prprio Klauss que tudo que ele havia aprendido tinha sido com ela. 13 Miller (2005) refere-VHDRIDWRGHTXHTXHPYLYHQFLRXDVDXODVGH.ODXVV9LDQQDHQmRDVLVWHPDWL]DomRUHVLVWHPem reconhec-OD FRPR WpFQLFD Mi TXH HOH SUySULR QmR R IH] (IHWLYDPHQWH HVWD p D minha concepo, embora reconhea que o trabalho de sistematizao proposto por seu filho, Rainer Vianna e descrito na dissertao de mestrado da autora citada a sistematizao de uma tcnica, qual foi dada, com justeza, o nome de Tcnica Klauss Vianna. 14 Recentemente, num exame por imagem, descobri que o ligamento colateral interno de meu joelho esquerdo, que em 1972 mostrava-se com ruptura completa, sofrera recuperao com total cicatrizao de seus cotos, ou pelo menos sua ruptura no era visvel sob a tcnica diagnstica utilizada, moderna e totalmente confivel. Isto s poderia ter

  • 21

    Estas constataes no escondiam, porm, o fato de que algumas explicaes, utilizadas

    pelo mestre em sala de aula, para justificar as sensaes experimentadas, no estavam

    respaldadas num conhecimento objetivo, resultando em maneiras de interpretar nem sempre

    coerente com a provvel razo dos eventos, principalmente sob o ponto de vista fisiolgico.

    A associao destes motivos, quais sejam, uma vivncia corporal extremamente positiva

    seguida da apresentao de um insuficiente diagnstico, fez-me caminhar na busca de algumas

    razes que pudessem sustentar os fatos que experimentvamos.

    Este interesse permitiu-me intensa troca com Klauss Vianna, troca esta que se manteve

    por trs anos sob as mais diversas aparncias, desde orientaes em anatomia e cinesiologia aos

    alunos de seus cursos, ao seu curso de formao de assistentes, e ao grupo de pesquisas de

    movimento e performance que ento formara, at a interferncia prtica na correo dos

    movimentos destes indivduos durante suas aulas ou laboratrios.

    No decurso desta relao e das questes que me surgiram, em 1984, produzi um estudo

    radiolgico das vrias articulaes do corpo enquanto submetidas s solicitaes propostas no

    que eu tinha de leitura, compreenso e concordncia com o seu mtodo.

    Estas radiografias15 mostravam aspectos articulares e das relaes intersseas que, lidas

    luz das cincias do movimento, informavam-nos sobre ganhos posturais, mensurveis pelo

    alinhamento dos seguimentos corporais, quando comparados aos do corpo desatento e,

    provavelmente, aos do corpo carente de um trabalho de base.

    acontecido por um real aumento da estabilidade desta articulao, o que permitiu aos segmentos rotos, proximidade e imobilidade relativa suficientes para a cicatrizao. 15 Algumas destas imagens faro papel de prova em captulo especfico sobre a tcnica pessoal que ser apresentada.

  • 22

    Os conhecimentos que eu procurava transmitir em minhas interferncias, eram uma

    associao de vrios contedos apresentados de um modo cuja principal sistemtica era a

    tentativa de, a cada momento, buscar a explicao que faltava para completar a noo do todo.

    Neste sentido, retomei a leitura em anatomia e cinesiologia, em neurologia, e em embriologia, e

    fui buscar informaes em tratados antropolgicos, em zoologia, em um melhor entendimento

    das leis da fsica, das leis da dinmica e da cinemtica, e tambm numa tentativa de entendimento

    das diferenas que havia nos "mesmos" movimentos quando praticados por pessoas diferentes,

    por etnias diferentes ou por culturas diferentes.

    Este aprofundamento implicou em uma solicitao do meio artstico, para uma srie de

    cursos e oficinas em anatomia, cinesiologia, preparao corporal e de orientao ao movimento e

    ao esforo fsico, que ministrei em academias e espaos de ensino formais e livres. Estes cursos

    foram frequentados por bailarinos, atores, psiclogos, terapeutas-corporais, fisioterapeutas,

    mdicos, professores e alunos de educao fsica , pessoas que buscavam outras informaes na

    descoberta do movimento.

    Buscando agregar maior informao corporal sobre o movimento vivenciei aulas de

    dana moderna, dana clssica, danas regionais brasileiras e capoeira. Estas experincias

    mostraram-se importantes na formalizao de conceitos cinesiolgicos sobre as diferenas entre

    as vrias danas e os vrios modos de esforo que o corpo efetua em cada uma delas.

    Como vivncias corporais, estas apenas reforavam a internalizao e a conscincia dos

    modelos de movimento que havia adquirido com o atletismo, mas principalmente com o carat e

    com o trabalho de Klauss Vianna, que serviram para munir-me de parmetros comparativos do

    movimento corporal.

  • 23

    Minha atividade pedaggica acadmica propriamente dita, iniciou-se paralelamente em

    meio s experincias que acabei de referir quando aceitei convite para apresentar um projeto de

    trabalho no Departamento de Artes Corporais da UNICAMP, voltado para seu curso de

    graduao em dana e, mais recentemente, nas aulas ministradas na Universidade Anhembi-

    Morumbi, tanto no curso de graduao em dana quanto no curso de graduao em quiropraxia e

    na Pontifcia Universidade Catlica SP, no curso de graduao em artes do corpo.

    Estas atividades estenderam-se para cursos de extenso e na participao em cursos de

    ps-graduao, tanto na UNICAMP como em outras universidades.

    Partindo do princpio de que o movimento do indivduo encontrava-se cerceado por vrias

    condies de cunho social, que se transformavam em impedimento liberdade, propus-me a

    buscar sob quais bases anatmicas e funcionais se daria o movimento postural e dinmico do ser

    humano.

    Num primeiro momento desenvolvi ensaios sobre quatro temas que considero bsicos: o

    movimento sob o ponto de vista da evoluo fsica, o movimento sob o ponto de vista do

    desenvolvimento embrionrio, o movimento sob o ponto de vista das experincias

    psicosocioculturais e o movimento sob o ponto de vista da influncia da gravidade, esboos que

    nortearam a formatao de uma metodizao em preparao corporal.

    Em agosto de 1986, montei com alguns alunos um grupo de pesquisa prtica sobre o

    movimento. Este grupo de estudo foi redefinido em agosto de 1987, como sendo um grupo de

    pesquisa para a metodizao de uma tcnica de trabalho e condicionamento para artistas

    corporais e que na medida do possvel utilizaramos o cnico como uma das atividades finais na

    exposio da tcnica.

  • 24

    Dois espetculos cnicos foram embasados no desenvolvimento desta tcnica de

    preparao corporal: o espetculo Quadros em Exposio em 198916, e Pssaro do Paraso

    em 199217; ainda sob esta tcnica deu-se a direo corporal e cnica de diversos projetos de

    terceiros.

    Em agosto de 1987, um novo ensaio chamado: "Relaes Anatmicas do Movimento", e

    submetido a critica do Prof. Dr. Joo Augusto Novasky da Faculdade de Educao, evidenciou

    outro enfoque contido no projeto original: a discusso a respeito do Movimento Corporal do

    Homem Moderno e, sob este nome, e posteriormente com o auxilio do Prof. Dr. Jos Sanfelice,

    foi transformado em Dissertao de Mestrado em Filosofia da Educao na Faculdade de

    Educao da UNICAMP, apresentada publicamente em 1994 com o subttulo A Prxis da

    Corporalidade (LIMA, 1994).

    Imbudo do princpio de que o indivduo, como unidade somatopsquica, deve ser,

    sobretudo, preservado, independente da atividade para o qual esteja sendo preparado a

    desempenhar (a autopreservao devendo fazer parte deste aprendizado), foi constante, nestes

    anos, a frequncia com que tive de me posicionar frente a questes que eram interpostas tanto por

    professores, quanto por alunos de tcnicas corporais, sobre o quanto alguns procedimentos

    especficos das tcnicas ministradas ou do modo de aplicao pessoal do instrutor poderiam ser

    lesivos aos corpos dos praticantes.

    16 Baseada na sute para piano escrita por Modest Mussorgsky, que a escreveu em homenagem a Viktor Hartmann, pintor e arquiteto, grande amigo do msico que havia falecido. A composio faz referncia a 10 quadros do pintor HPH[SRVLomRHPXPDJDOHULDGH6mR3HWHVEXUJRHFDGDSDUWHpXQLGDDRXWUDSRUXPWHPDFRPXPD3URPHQDGH Para a pea coreogrfica foi escolhida a verso eletrnica de Isao Tomita. 17 %DVHDGDQRWH[WRKRP{QLPRGH5RQDOG/DLQJTXHVHJXQGRRSUySULRHUDXPMRUQDOGHERUGRGHXPDYLDJHPinterior, o relato de uma experincia vivida. Este texto parte integrante do livro do autor denominado A Poltica da Experincia. Ttulo original: The Politics of Experience and The Bird of Paradise.

  • 25

    Igualmente frequentes foram as ocasies em que esta questo via-se acompanhada de uma

    franca aceitao, pelos interlocutores da tese de que o sofrimento corporal tem caractersticas

    instrutivas especiais necessrias aprendizagem da arte. Tese que se ampara na contradio entre

    um discurso de respeito ao corpo e DSUiWLFDHPEDVDGDQRIDoDRTXHHXPDQGRURWLQHLUDQRV

    ambientes de treinamento corporal.

    Indagao nem indita, nem recente, sustenta-se na argumentao de que os artistas do

    espetculo vivo tm a tendncia a aceitar que, para seu aperfeioamento e crescimento na arte

    devem passar pelos sofrimentos corporais e psquicos inerentes jVERDVWpFQLFDVQRFDPLQKRGH

    sua formao.

    Sylvie Fortin (2009), talvez a expresso mais destacada no entrecruzamento da educao

    somtica e dana, nos gratifica com a seguinte exposio colhida de uma danarina profissional:

    6HHXWHQKRXPDOHVmRHXYRXIDODUGHODDRPHQRUQ~PHURGHSHVVRDVSRVVtYHO(XMiYLSHVVRDV

    perderem o emprego porque um risco lev-los em uma tourne18 (p.61).

    Um aluno de quarto semestre de um dos cursos de graduao em artes corporais no qual

    lecionei, colocou-me a seguinte questo que, a meu ver, desnuda importantes aspectos para a

    discusso da idia de sofrimento corporal que est presente na formao dos artistas:

    Durante as aulas de cinesiologia e outras aulas de contedo biolgico ns

    aprendemos a respeitar o corpo e a tentar perceber seus limites para que no venhamos a sofrer

    leses. Dentre estas informaes, aprendemos que devemos aquecer nossos corpos antes de

    exp-lo a uma carga de trabalho mais intensa. Ocorre que, numa determinada aula de tcnica, o

    18 6LMDLXQHEOHVVXUHMHYDLVHQSDUOHUjPRLQVGHSHUVRQQHVSRVVLEOHV-DLYXGHJHQVSHUGUHGHVHPSORLVSDUFHTXHFHVWXQULVTXHGHOHVDPHQHUHQWRXUQpH Nota do Autor: Todas as tradues para o portugus foram feitas por mim.

  • 26

    professor j inic ia seu trabalho determinando aos alunos que dem fortes saltos de modo a

    cobrir tanto extenso, quanto altura e exige que desde o incio eles sejam feitos com toda a fora,

    rapidez e intensidade, acompanhados de quedas ao solo, mudanas de direo de movimento e

    tores do tronco. Quando este professor foi questionado a respeito dos perigos inerentes a este

    mtodo, sob o ponto de vista fisiolgico, ele respondeu que a aula era de tcnica e no de

    anatomia ou cinesiologia e que na aula dele a preocupao dos alunos deveria ser a de

    responder s suas solicitaes e no questes relativas a outras matrias.

    Ressalte-se que este mesmo procedimento era frequente em outras disciplinas ministradas

    por outros professores.

    A gnese deste processo que se instala entre mestre ou orientador e aluno ou orientado

    pode ser bem observada em outro depoimento que nos trs Fortin (2009), colhido, ele tambm em

    confisses de uma danarina experimentada:

    Faz nove meses. Eu tinha uma leso no p. O coregrafo, no incio, parecia aceitar a situao. No uma leso que se cura necessariamente em duas semanas, sobretudo quando se dana em cima dela. Aps duas semanas, ele estava bastante contrariDGR(OHIH]XPDFHQD(XOKHGLVVHHXWHQKR(XYRXVHUFDSD]GHID]r-lo, porque no momento devido [espetculo], eu deverei estar curada. Mas agora, neste momento, eu no posso faz-OR. Eu queria explicar que eu estava mal, eu queria explicar quais movimentos, em minha opinio, eram impossveis de fazer e o coregrafo no queria entender nada. [No dia seguinte] ele nos fez uma outra cena. Eu sentia que eu no podia nem mesmo dizer que era por causa de meu p. No havia espao para isso. Com este coregrafo, mas tambm com outros. (...) H o medo se ser colocada de lado, h o medo que me releguem coisas simples, muito simples. Eu luto constantemente para ter a liberdade de dizer, mas no sempre possvel porque eu sou colocada de lado. Mesmo com todos os anos de experincia que eu tenho...Emocionalmente, muito difcil (p.61).19

    19 ,O\DDQHXIPRLV-DYDLVXQHEOHVVXUHDXSLHG/HFKRUpRJUDSKHDXGpEXWDHXODLUGDFFHSWHUODVLWXDWLRQ&HQHVW SDV XQH EOHVVXUH TXL JXpULW QpFHVVDULHPHQW HQ GHX[ VHPDLQHV VXUWRXW TXDQG RQ GDQVH GHVVXV. Aprs deux VHPDLQHV LOpWDLW DVVL]H[FpGp ,O D IDLWXQHVFqQH -H OXL DLGLWMDL : -HYDLrWUHFDSDEOHGH OH IDLUHSDUFHTXDXPRPHQWGX>VSHWDFOH@MHGHYUDLrWUHJXpULH0DLVOjSRUOLQVWDQWMHQHSHX[SDVOHIDLUH Je voulais expliquer qu MDYDLV PDO MH YRXODLV H[SOLTXHU TXHOV PRXYHPHQW SRXU PRL pWDLHQW LPSRVVLEOHV j IDLUH HW OH FKRUpRJUDSKH QHvoulait rien entendre. [Le landemain] il nous a fait une autre scne. Je sentais que je ne pouvais mme pas dire que

  • 27

    1RILOPH)DUHZHOOP\&RQFXELQH$GHXV0LQKD&RQFXELQDXPILOPHGLULJLGR

    por Chen Kaige e ambientado na China no perodo que se estendeu do incio do sculo XIX at

    1977, passando pelo perodo mais intenso da Revoluo Cultural, ns pudemos observar a

    transformao de duas crianas em dois fenomenais atores da tradicional pera Chinesa. Esta

    transformao para, pelo menos um deles, foi, entretanto, mais do que uma passagem de criana

    aprendiz para ator respeitado, foi uma negao de si mesmo e a aceitao, no sem resistncia

    inicial e, sobretudo, no sem intenso sofrimento fsico e psquico, de uma personalidade que lhe

    foi imposta.

    Segundo os modelos aceitos pelo contexto em que se inseria seu aprendizado, o

    sofrimento era necessrio e imprescindvel para seu crescimento, para que ele se tornasse um ator

    de exceo.

    Em 1984, foi notcia na Folha de So Paulo a histria de um danarino que, tendo-se

    iniciado no bal tardiamente, em dois anos j estava sendo considerado um dos maiores

    bailarinos nacionais. Seu crescimento, todavia, tinha-se dado custa de um intenso treinamento

    de vrias horas dirias de atividade em tcnicas de dana, no lhe importava o cansao s a

    conquista. Junto fama e ao reconhecimento vieram a artrose aguda generalizada e leses

    tenosinoviais irreparveis , o que o obrigou a uma parada provavelmente definitiva naquilo que

    ele mais desejava fazer, antes que houvesse chegado ao topo.

    Questionado sobre se estava arrependido ele respondeu:

    FHWDLW j FDXVH GH PRQ SLHG ,O Q\ DYDLW SDV GH SODFH SRXU oD $YHF FH FKRUpRJUDSKH-Oj PDLV DYHF GDXWUHVFKRUpRJUDSKHVDXVVL,O\DODSHXUGrWUHPLVHGHF{WpLO\DODSHXUTXRQPHUHqJXHjGHVFKRVHVVLPSOHVWUqVsimples. Je lutte constamment por avoir la libert de GLUHPDLVFHQHVWSDVWRXMRXUpYLGHQWSDUFHTXHMHVXLVPLVHGHF{Wp0rPHDYHFWRXWHVOHVDQQpHVGH[SpULHQFHTXMDLePRWLYHPHQWFHVWWUqVGXU !.

  • 28

    No, se eu tivesse a possibilidade de voltar atrs eu faria tudo de novo.

    Conforta-nos Le Breton (2004, p.30):

    A percepo do risco no , de modo algum, uma apreciao objetiva dos perigos, a no ser nas abstraes das estatsticas, mas antes, a consequncia de uma projeo de sentido e de valor sobre alguns acontecimentos, algumas prticas, alguns objetos consagrados ao relato difuso da comunidade ou dos especialistas. Ela no um decalque na conscincia do indivduo do perigo incorrido ao perseverar numa conduta ou ao lanar-se em uma empreitada, ela se mistura sempre subjetividade das representaes sociais e culturais. As formas de perigo assinaladas retornam profundamente aos modos de vida, aos valores coletivos, elas refletem uma moral em ao, uma viso de mundo.20

    H pouco mais de 20 anos, as escolas de bal clssico tinham em seus quadros professores

    famosos que ainda usavam varas para bater nas pernas ou nas mos de seus alunos que no

    DFHUWDYDPRSDVVR

    Esses so alguns poucos exemplos dentre vrios, atuais e passados que poderiam ser

    citados a respeito do tema em questo. Enfim, tanto professores, instrutores, formadores, quanto

    alunos e aprendizes aceitam a dor fsica, o sacrifcio corporal e psquico como indispensveis

    para a sua formao.

    Ns encontramos esta mesma exigncia, ou esta mesma aceitao no rito, na devoo

    no sacrificaria Abrao seu filho em devoo a Deus, no se mutilam, homens e mulheres, por

    amor aos seus deuses"

    20 /D SHUFHSWLRQ GX ULVTXH QHVW QXOOHPHQW XQH DSSUpFLDWLRQ REMHFWLYH GHV GDQJHUV VLQRQ GDQV ODEVWUDWion des VWDWLVWLTXHV PDLV SOXW}W OD FRQVpTXHQFH GXQH SURMHFWLRQ GH VHQV HW GH YDOHXU VXU FHUWDLQV pYpQHPHQWV FHUWDLQHVSUDWLTXHVFHUWDLQVREMHWVYRXpVjOH[SHUWLVHGLIIXVHGHODFRPPXQDXWpRXGHVVSpFLDOLVWHV(OOHQHVWSDVXQGpFDOTXHdans la consciHQFHGHOXQGLYLGXGXSpULOHQFRXUXjSHUVpYpUHUGDQVWHOOHFRQGXLWHRXjVHODQFHUGDQVWHOOHHQWUHSULVHelle se mle toujours la subjectivit des reprsentatios sociales et culturelles. Les formes de dangers pointes renvoient en profondeur aux modes de vie, aux valeur collectives, elles refltent une morale en acte, une vision du monde.

  • 29

    E a arte no considerada, por muitos, como a maneira do indivduo experienciar-se em

    Deus"

    A arte corporal, a dana, o teatro no esto associados, no seu nascimento, ao rito, ao

    sacro"

    A dor fsica certamente dominada por um elemento moral, pela energia, pela vontade. Mas como se d sua interveno? Que fazem eles seno frear a expresso, a mmica da dor, ou so eles capazes de diminuir a acuidade destas percepes dolorosas? (LERICHE, 1949 apud LE BRETON, 1995, p. 107)21

    Complementando refere-se ao mesmo fato o prprio Le Breton (1995, p. 107):

    A busca de significao frente dor suportada vai alm do sofrimento imediato, ela interessa mais profundamente significao da existncia quando a investida do mal a coloca em situao de xeque com o mundo. Compreender o sentido de sua aflio outra maneira de compreender o sentido de sua vida.22

    Benoit Lesage (1998, p. 62, et seq.), expe uma tese que, embora se refira ao danarino,

    pode ser extrapolada s outras artes corporais, diz-nos:

    Ns temos chamado a ateno para o fato de, contrariamente ao pintor ou ao escultor, o danarino no pode se distanciar de sua obra, mesmo que seja para contempl-la. Ele esta submetido a um princpio de aderncia, que faz com que Mireille Argueil diga que o corpo do danarino marcado pela ambigidade, instrumento de uma criao e criao de um instrumento. Ele ao mesmo tempo: uma ferramenta, um instrumento, o corpo tecnificado, um artefato, um artifcio; um veculo, o corpo faz com que a dana exista em suas modalidades expressivas e comunicativas; ao corpo mensageiro de emoes, de sentimentos, de sensaes, de idias ...;

    21 /DGRXOHXUSK\VLTXHHVWFHUWDLQHPHQWGRPLQpHSDUXQpOpPHQWPRUDOSDUOpQHUJLHSDUODYRORQWp0DLVFRPPHQWinterviennent-ils? Ne font-LOVTXH IUHLQHU OH[SUHVVLon, la mimique de la douleur, ou sont-ils capables de diminuer ODFXLWpGHFHVSHUFHSWLRQVGRXORXUHXVHV" 22 La demande de signification face la douleur prouve va au-del de la souffrance immdiate, elle concerne plus SURIRQGpPHQW OD VLJQLILFDWLRQ GH OH[LVWHQFH TXDQG OLUUXSWLRQ GX PDO OD PHW HQ SRUWH--faux avec le monde. Comprendre le sens de sapeine est une autre manire de comprendre le sens de sa vie.

  • 30

    enfim uma materia, o suporte material e tcnico da dana que lhe d existncia e densidade. Em outros termos, o danarino representa ao seu corpo, se apresenta corporalmente e representado pelo seu corpo.23

    A perspectiva da abordagem proposta por Lesage (1998) a de perceber-se o corpo do

    ator corporal com uma unicidade de compromissos, poderamos, no entanto, acenar para a

    suposio de que esta unicidade s ser mantida enquanto o indivduo comportar-se como

    unitrio, atitude que, a princpio no aceitaria a idia de treinamentos corporais nos quais a

    inteno a ascese, a transcendncia, a busca da essncia, uma vez que esta traz embutida a

    proposta do corpo como DOJRDVHUHVTXHFLGRQRWUDQVHGRPRYLPHQWR.

    Esta hiptese foi, de certa maneira, explicitada pelo prprio Lesage (1998, p.64-69),

    quando, no mesmo ensaio faz a apresentao dos resultados de uma enquete, parte de sua tese de

    doutorado, efetuada junto a uma trintena de danarinos profissionais, dos quais alguns tambm

    coregrafos, a partir da anlise de contedo das entrevistas centradas sobre sete questes abertas

    que versavam sobre: quais palavras seriam associadas palavra dana, auto situar-se com relao

    a outras correntes de dana, situaes de grande prazer ou satisfao ao danar, conselhos a

    serem dados a quem gostaria de tornar-se GDQoDULQRRVLJQLILFDGRGDH[SUHVVmRFRQKHFLPHQWR

    GRFRUSR24, distino entre as grandes fases do prySULRWUDEDOKRFRUSRUDOYLYrQFLDGHXPHVWDGR

    GHJUDoDHQTXDQWRGDQoDYD

    23 On a souvent soulign que, contrairement au peintre ou au sculpteur, le danseur ne peut se dcoller de son ouvre, ne serait-FHTXHSRXUODFRQWHPSOHU,OHVWVRXPLVjXPSUtQFLSHGDGKpUHQFHTXLIDLWGLUHj0LUHLOOH$UJXHLOTXHOHFRUSVGXGDQVHXUHVWPDUTXpSDUODPELJXwWpLQVWUXPHQWGXQHFUpDWLRQHWFUpDWLRQGXQLQVWUXPHQW,OHVWjODIRLV un outil, un instrument, le corps technicis, un artefact, un artifice; un vhicule, le corps fait exister la danse dans ses modalits expressives et communicatives; le corps messager GpPRWLRQVGHVHQWLPHQWVGHVHQVDWLRQVGLGpHV ...; enfin, une matire, le support matriel et techinique de la danse qui lui donne existence et densit. (QGDXWUHVWHUPHVOHGDQVHXUVVHUHSUpVHQWHVRQFRUSVVHSUpVHQWHFRUSRUHOOHPHQWHWHVWUHSUpVHQWpSDUVRQFRUSV. 24 Connaissance du corps. Tem sentido duplo podendo VLJQLILFDUWDPEpPFRQVFLrQFLDFRUSRUDO

  • 31

    O mapeamento e a anlise dos dados permitiram-lhe propor a existncia de trs categorias

    principais de modelos corporais, quais sejam:

    O corpo que possumos aquele que trabalhado como um instrumento. Neste caso o

    trabalho tem, pela vontade do autor, o andamento de uma ascese do tipo mortificadora, marcado

    SHORYROXQWDULVPR"#. Ele chama este corpo de disjuntivo porque ele supe uma dualidade, uma

    separao entre o sujeito e seu corpo.

    A sensao do corpo se quebra nestes momentos embriagantes de esquecimento de sua

    contingncia, que mascara at mesmo a dor [...]"$,

    O corpo vivido aquele que conhecido pela prtica, emprico, que respeita seus

    limites atravs das sensaes emanadas da prtica. 2SULQFLSLRFKDYHpTXHpdanando que ns

    nos tornamos danarinos"% . Ele chama este modelo de aderncia ao fsico. A princpio Lesage o

    considera um modelo de integrao psicossomtica, diverso, portanto do anterior em que a

    ruptura esta exposta.

    O corpo que somos que ele chama ainda de corpo consciente. Neste modelo o

    WUDEDOKRFRUSRUDOpYLYLGRFRPRXPWUDEDOKRGRHXcom a aguada conscincia de uma conexo

    psicossomtica, associada a uma aventura subjetiva de natureza espiritual"&. Ele chama este

    modelo de holstico.

    25 /HWUDYDLOSUHQGVLFLYRORQWLHUVDOOXUHGDVFse de type mortificatoire, marque par le voluntarisme. 26 /D VHQVDWLRQ GX FRUSV VHVWRPSH GDQV FH PRPHQWV HQLYUDQWV GRXEOL GH VD FRQWLJHQFH TXL JRPPH MXVTXj ODdouleur [...]. 27 Le principe-FOpHVWTXHFHVWHQGDQVDQWTXRQGHYLHQWGDQVHXU 28 [...]DYHF OD FRQVFLHQFH DLJXs GXQH FRQQH[LRQ SV\FKRVRPDWLTXH UHOLpH j XQH DYHQWXUH VXEMHFWLYH GH QDWXUHspirituelle.

  • 32

    interessante a possibilidade que temos de formular uma hiptese que aproxime a

    tendncia a aceitar prticas de dano corporal a uma idia de corpo que, adotando provisoriamente

    a terminologia apresentada, chamaramos de disjuntivo. Sua plausibilidade resta a ser

    comprovada ou no mnimo explorada.

    e Sreciso sofrer para estar bonito"', frase constante no cotidiano daqueles que

    cumpriam treinamento com Decroux (STRAZZACAPPA, 2000, p. 129) ou: para chegar

    Frana necessrio passar pelo sofrimento() (LEABHART, 1998 apud STRAZZACAPPA,

    2000, p. 130), jogo de palavras que faz sentido em francs pela aproximao sonora entre os

    verbetes France e souffrance.

    De fato, o questionamento respeito do sofrimento no aprendizado tcnico das artes do

    espetculo vivo frequentemente trazido tona por pensadores do corpo.

    Sobre a dana, Bouchon (1998, p.99), dirigia a seus leitores o seguinte discurso:

    O estudo da dana , no somente intenso, mas igualmente penoso e, por vezes doloroso. Ns temos visto o quanto, desde Noverre, disseminada a coao a qual o corpo submetido para adquirir um en-dehors, considerado por unanimidade tanto como uma necessidade absoluta, quanto como contrrio s disposies naturais do corpo31. Ele evoca a penosidade do trabalho e as mquinas de forar o alongamento, e consagra duas pginas s leses dos danarinos e suas causas. Adice32, as faz um dos temas principais de seu texto e consagra um tero de sua obra s leses dos danarinos. Ele o nico a afrontar esta realidade, todos os

    29 Il faut souffrir pour tre beau. 30 Pour arriver la France, il faut passer par la souffrance. 31 Embora concorde com Bouchon no que concerne disseminao de solicitaes que coagem o corpo a atitudes contrrias sua natureza, discordo que o en-dehors se enquadre nesta categoria. Esta posio de bal nada alm de uma rotao externa limite da perna, ou das pernas em posio ortosttica. Sob o ponto de vista anatmico h espao e estruturas de movimento que permitem esta posio, entretanto por no ser uma posio corporal de nosso cotidiano normalmente estas estruturas esto ou encurtadas no que se refere aos msculos que impedem esta posio ou atrofiadas, no que concerne aos msculos que a possibilitam. A conquista daquela atitude requer um trabalho paciente e demorado, o que nem sempre seguido ou estimulado pelos instrutores resultando em leses por trabalho inadequado. (MOLNAR, 1987, p. 221) 32 G. Leopolde Adice: Terico da ginstica e da dana teatral (1859). Conforme referncia de Bouchon.

  • 33

    outros a evitam, e os tratados atuais no mencionam as leses seno para dizer que elas resultam de um trabalho mau feito. Embora seja verdade que atualmente elas so tratadas em obras especializadas (BOUCHON, 1998, p.99).33

    Ainda que, tanto no treinamento corporal dos artistas do teatro, quanto nos de dana,

    existam referncias aos momentos de sofrimento, dor e danos corporais, mais comum que seja o

    indivduo oriundo da dana que escancare a porta destes acontecimentos. Esta afirmao encontra

    subsdio quando observamos a quantidade de tcnicas que se inserem entre aquelas reconhecidas

    como tcnicas de educao somtica que foram iniciadas ou modificadas por representantes do

    mundo da dana.

    Qual ser o parmetro, utilizado por aquele que orienta o treinamento, que definir o

    limite deste experimento"

    Para isto seria necessrio que o orientador fosse possuidor de conhecimento minimamente

    necessrio para manifestar-se sobre os assuntos que veicula e modstia para reconhecer que

    aquilo que no faz parte de sua rea de conhecimento no dever ser veiculado como estatuto de

    verdade.

    Nos exemplos de experincias corporais, apresentados nos primeiros pargrafos deste

    texto, temos pelo menos trs modelos de promoo de aprendizagem da arte corporal: a

    aprendizagem promovida nas companhias artsticas, voltadas essencialmente formao de

    material humano para a continuidade de seus trabalhos; a aprendizagem que ocorre nas escolas 33 L'tude de la danse est non seulement intense, mais galement pnible, voire douloureuse. Nous avons vu combien, ds Noverre, est mise em avant la contrainte laquelle le corps est soumis pour acqurir um en-dehors FRQVLGHUp j OXQDQLPLWp FRPPHXQH QHFHVVLWH DEVROXH HW FRPPH FRQWUDLUH DX[GLVSRVLWLRQV QDWXUHOOH du corps. Il evoque la pnibilit du travail et les machines de forage, et consacre deux pages aux blessure des danseurs et leurs causes. Adice, lui, en fait un des thmes principaux de son texte, et consacre le tiers de son ouvrage aux blessures de danseurs. Il est le sel affronter cette ralit, tous les autres ludent le sujet, et les traits actuels ne mentionnent les EOHVVXUHVTXHSRXUGLUHTXHOOHVUpVXOWHQWGXQPDXYDLVWUDYDLO,OHVWYUDLTXDXMRXUGKXLHOOHVVRQWWUDLWpHVGDQVGHVouvrages spcialiss.

  • 34

    livres de ensino de artes corporais, como as academias de dana, os cursos livres de teatro etc.

    que, embora possam estar associados a companhias artsticas, tm um interesse mais amplo na

    formao de seus alunos no somente para a manuteno do quadro de seus artistas, mas,

    principalmente, para atender uma populao genrica com interesses diversos; e, finalmente, os

    cursos oficiais de artes representados pelos conservatrios, pelas escolas tcnicas de segundo

    grau e pelos cursos de graduao de nvel superior, que esto voltados para a formao, no

    necessariamente tcnica, em arte para indivduos que participaro seja em companhias, seja na

    formao de outrm, seja em atividades relacionadas arte, embora no necessariamente como

    intrpretes cnicos.

    Esta diviso no totalmente estanque, podemos citar a Escola do Ballet Bolshoi, em seus

    vrios ncleos, como exemplo, que estaria relacionada primeira e terceira categorias acima

    descritas.

    Se razovel supor-se que uma companhia, que professa um modo especfico de exercer

    a arte corporal, tem todo direito de exigir daqueles que nela adentram, que se submetam aos seus

    mtodos de aprendizado, independentes de quais sejam estes e de quanto de sofrimento ser

    necessrio para suplant-los este aprendizado contnuo ou temporrio est associado

    normalmHQWH j FRQFHSomR DUWtVWLFD GH VHX GLUHWRU RX HTXLYDOHQWH esta perspectiva deveria

    inverter-se quando o que se tem mo so alunos de cursos regulares oficiais.

    Sob este princpio, pouco admissvel que um professor universitrio ou de um curso

    secundrio promova, durante suas aulas de atividade fsica, aes que provoquem dor, dano ou

    evento assemelhado aos seus alunos, ou ainda que professe como corretas, informaes, de

  • 35

    carter subjetivo, travestidas de dados de cunho cientfico. Esta conduta contraditria com o

    papel da universidade ou de cursos regulares oficiais.

    O ser cumpre na sua existncia um ciclo. Este ciclo caracterizado pelo princpio de que

    a todo corpo biolgico dada a possibilidade de ser portador de uma alta efetividade por um

    longo tempo, desde que ele aprenda a utilizar de modo timo suas capacidades. Esta otimizao

    surge na relao adequada entre: o cio, a atividade, o acmulo de energia e o desgaste

    energtico. Todas estas categorias devem constantemente apresentar-se num equilbrio dinmico

    sob o risco de, no excesso de uma delas, o corpo vivo ver-se desprovido de defesa, temporria ou

    definitivamente debilitado, inclusive com a possibilidade de diminuio de seu tempo de vida. A

    exposio do corpo a situaes de danos mesmo potenciais uma quebra deste equilbrio.

    A defesa deste princpio, um princpio biolgico, deveria ser papel de todo agente

    pedaggico, assim como faz parte de seus papis a defesa de princpios sociais, morais, polticos,

    ticos etc.

    Por que persiste ento, nos ambientes de cursos oficiais, mtodos semelhantes aos

    utilizados nas companhias e escolas abertas em arte"

    Podemos aventar que a persistncia deste comportamento deve-se ao fato de que:

    os professores de tcnica destes cursos so oriundos de meios artsticos e de formao

    que estimulam procedimentos no ortodoxos, seno esotricos, tidos como verdades

    inquestionveis;

    estes professores no tm pleno conhecimento do papel da universidade, dos cursos

    regulares e de seu prprio papel neste contexto;

  • 36

    estes professores no tm formao em conhecimentos sobre o corpo (anatomia,

    fisiologia, cinesiologia, entre outros) que lhes permitiriam ter uma idia dos limites e processos

    caractersticos da matria (corpo) com o qual trabalham.

    Estas afirmaes, entretanto, no abrangem toda a realidade destas relaes de ensino.

    Vrias escolas reconhecidas no universo artstico tm na sua estrutura de aprendizado vrias

    horas semanais destinadas ao conhecimento cientfico do corpo que no sobrevivem s

    afirmaes subsequentes das prticas cotidianas.

    Outra questo interessante perceber a proximidade que o artista ou seu aprendiz tem na

    aceitao inconteste de verdades alternativas, mesmo que no cientficas ou passveis de

    verificao.

    O uso inadequado do conhecimento biolgico, a minorao de sua importncia ou a

    ausncia de formao deste conhecimento no caracterstica especfica dos formadores ou

    agentes na rea de arte corporais, ns podemos encontrar fatos semelhantes na rea de educao

    fsica, terapias corporais e mesmo na medicina, fato tanto mais importante por serem reas

    imediatamente reconhecidas como da sade nas quais a permanncia de tais conhecimentos

    contedo bsico da prtica destes profissionais.

    O que torna inusitada, nos ambientes de formao oficiais em artes do espetculo vivo, a

    prtica acima relatada?

    O Brasil tinha em 2008, 25 cursos superiores em dana, 44% destes cursos foram

    iniciados na ltima dcada, embora o primeiro deles tenha mais de cinquenta anos de existncia.

  • 37

    A expectativa que o nmero destes cursos cresa na mesma proporo nos prximos anos.

    (RIZ, 2009, p. 19; 21)

    Dentre os cursos superiores de arte ou de artes cnicas, 21 apresentam habilitao para a

    rea da dana.

    Com relao formao em teatro e artes afins havia, no final da dcada de 1990, 41

    cursos superiores (SANTANA, 2000, p. 128). Seu universo de instrutores e formadores , ainda

    hoje, oriundo de um setor no qual o conhecimento biolgico sobre o corpo no a tnica, onde

    persistem crenas alternativas sobre a realidade corporal e onde frequente a manipulao de

    informaes pseudocientficas em substituio quelas originrias das cincias que as investigam,

    talvez por serem mais fceis de serem apreendidas.

    Em trs cursos de dana e arte corporais de trs destacadas universidades paulistas, dos 31

    professores que aplicavam tcnicas corporais a seus alunos, no perodo de 2005 a 2009, apenas 4

    tinham formao em tcnicas de educao somtica e outros dois apresentavam formao

    universitria em cincias biolgicas.34

    Embora, da totalidade dos cursos tcnicos, seja mais difcil obter-se informaes oficiais,

    sabe-se que seu crescimento paralelo, associado necessidade de resoluo de uma oferta de

    trabalho ou como solicitao de preparao para os cursos de graduao. notvel a tendncia a

    que os orientadores e formadores dos cursos tcnicos e escolas livres tenham no currculo o fato

    de terem tido sua formao em ambiente universitrio.

    34 Informaes colhidas pelo autor.

  • 38

    As outras reas citadas, de sade, nas quais desvios de conhecimento ou de atuao

    possam ocorrer com dano aos seus participantes, possuem j, plenamente estabelecidos,

    mecanismos e instituies de vigilncia, correo e punio aos promotores destas aes, ainda

    que seja discutvel seu modus operandi, fato que no ocorre no ambiente da arte, at pelo fato de

    no se encontrar plenamente estabelecido qual o campo de atuao de seus agentes e, portanto,

    quais aes fazem parte de suas responsabilidades profissionais.

    com o pensamento voltado para a preservao da sade do corpo nos ambientes de

    formao do aprendiz das artes do espetculo que, na Frana, foi criada uma lei que obriga a todo

    professor de dana em cursos de preparao a possuir um Diploma de Estado(#, com a carga

    horria mnima de 40 horas de conhecimentos anatomofisiolgicos e 80 horas de conhecimentos

    cinesiolgicos (ARGUEIL, 1998, p. 55), esta carga horria maior que a exigida para muitos de

    nossos alunos em curso de graduao em dana ou outras artes do corpo e maior tambm do que

    a carga horria de alguns cursos de formao em educao somtica.

    Esta atitude do legislativo no consegue impedir, todavia, TXHos formadores em dana

    se dividissem segundo trs atitudes diante do dueto sade/desempenho: sade de acordo, mas

    desempenho antes; sade antes, o desempenho vir; dvida: sade e desempenho: possvel

    conciliar os dois e de que maneira SRU PHLR GD DSUHQGL]DJHP WpFQLFD"($ (ARGUEIL, 1998,

    p.56)

    Embora seguramente no seja a nica resposta, nem a panacia que resolver os

    problemas relatados, cada vez mais a educao somtica se faz presente na tentativa de resolver

    35 'LSO{PHG(WDW. Diploma emitido por um estabelecimento de ensino superior pblico. 36[...] les formateurs en danse se rpartissent selon trois attitudes face au couple sant eSHUIRUPDQFHVDQWpGDFFRUGmais SHUIRUPDQFHGDEERUGVDQWpGDEERUGSHUIRUPDQFHVXLYUDOHGRXWHVDQWpHWSHUIRUPDQFHSHXW-on concilier les deux et comment travers les apprentissages techniques"

  • 39

    estes senes da formao do aprendiz das artes do espetculo e de seus instrutores. Isto pode ser

    afirmado pela gradativa presena em currculos de cursos de formao em artes corporais de

    matrias com o seu contedo, tanto no Brasil quanto no exterior.

    So as questes, as dvidas e as contradies levantadas nesta introduo que vo nutrir a

    apresentao, nas pginas e captulos que se seguem, de uma proposta de trabalho corporal,

    objeto de investigao nascido da prtica pedaggica e cnica aliada ao conhecimento anatmico

    e fisiolgico GHQRPLQDGD 5HRUJDQL]DomR 3RVWXUDO 'LQkPLFD e que conta com depoimentos

    suficientes para habitar o universo no qual se encontram as propostas da educao somtica.

    Nesta apresentao propor-se- ainda a abordagem da educao somtica como algo que

    se estende alm das tcnicas especficas, para se comportar como um mtodo de trabalho que

    pode intermediar a relao aprendizado-ensino em qualquer circunstncia do fazer corporal.

    Estes aspectos sero explorados em quatro captulos que sero apresentados como se

    segue:

    - Captulo I: Educao Somtica, no qual se desenvolve uma discusso sobre o que penso

    a respeito deste campo de conhecimento tomando como referncia sua inter-relao entre a

    educao, a sade e a arte.

    - Captulo II: A Tcnica: Propostas e Processos, no qual so expostos quais princpios

    foram adotados no que concerne minha interpretao particular do movimento corporal humano

    e quais processos resultaram no atual momento da tcnica ora apresentada.

    - Captulo III: Reorganizao Postural Dinmica: a tcnica, no qual se descreve a tcnica

    propriamente dita.

  • 40

    - Captulo IV: Consideraes F inais:o movimento superior , no qual o autor se atreve a

    apontar para a possibilidade de um movimento inerente a cada um de ns, que se expressa

    concretamente em momentos especficos, cujas caractersticas demonstram-se de uma qualidade

    cabalmente superior ao movimento rotineiro, inclusive aquele de ordem tcnica, mas cuja

    reproduo ainda permanece inalcanvel pela tcnica. Um sonho a ser realizado.

  • 41

    !"#$%&'() *)

    Educao Somtica

    Por mais facetadas que apresentem-se como universos de conhecimento no mundo

    acadmico e por mais resistentes que possamos ser s relaes que existem entre as reas de

    educao, sade e arte, no poderamos deixar de admitir pelo menos uma continuidade: o corpo

    que por elas transita.

    Quando focamos nossa ateno DRVUHODWRVGDHGXFDomRVRPiWLFDYHULILFDPRVTXHHVWHV

    ocorrem propondo, por vrias razes, uma nova continuidade entre elas, tambm manifesta sobre

    o corpo.

    Recentemente, Michle Mangione (1993) distinguiu trs perodos no desenvolvimento da educao somtica: da virada do sculo aos anos 30, quando os pioneiros desenvolviam seus mtodos, geralmente a partir de uma questo de auto cura; 1930 1970, perodo que conheceu uma disseminao dos mtodos graas aos estudantes formados por estes pioneiros; e dos anos 70 at hoje onde vemos diferentes aplicaes se integrarem s prticas e estudos teraputicos, psicolgicos, educativos e artsticos (FORTIN, 1999, p.41)

    Sua delimitao como campo de interveno junto ao indivduo, j com caractersticas

    definidas e fins especficos, relativamente recentes, FRLQFLGH FRP D FUHVFHQWH YDORUL]DomR H

    H[SRVLomRGDWHPiWLFDFRUSRUDOQDVRFLHGDGHRFLGHQWDO

    Thomas Hanna (1928-1990), a quem se deve o termo, criado em 1976 e a criao da

    UHYLVWD 6RPDWLFV GHILQH D HGXFDomR VRPiWLFD FRPR VHQGR D DUWH H D FLrQFLD GH XP SURFHVVR

  • 42

    relacional interno entre a conscincia, o biolgico e o meio ambiente, estes trs fatores sendo

    vistos como um todo agindo HPVLQHUJLD)257,1S40).

    Outra definio, tambm referida como de Hanna, e que poderamos assumir como

    complementar anterior, define a educamR VRPiWLFD FRPR >@ R FDPSRGH HVWXGR TXH OLGD

    com o fenmeno somtico, i.e., o ser humano como experenciado por ele mesmo (ou ela mesma)

    GHVHXLQWHULRU(HANNA, 1999, p.1)37

    Facilmente aceita por aqueles que so prximos do fazer cnico ou das artes do corpo,

    DVVLP FRPR GRV TXH DGRWDP DV VROXo}HV DOWHUQDWLYDV FRPR DERUGDJHP DRV VHXV PDOHV HP

    contraposio s propostas francamente positivistas to familiares aos profissionais da sade, que

    tambm se incomodam com o corpo em movimento, sofre a tendncia a ter sua solidez

    conceitual, cientfica e filosfica, tornada nebulosa, em troca do convencimento e da aceitao.

    Embora esteja em busca de um espao especfico, apresenta-se disputando espao com as

    JLQiVWLFDVGHDFDGHPLDDH[SORVmRGDDGRomRGDV tcnicas orientais de meditao, do ioga, do

    step, do tai chi chuan, do lian kung, do body building e, se como estes, apresenta limites

    precisos de aplicao, correu e corre o risco de, assim como eles, ser vendida como a panacia

    que tornar a vedar a caixa de Pandora.

    Esta situao no , todavia, seu privilgio. Em 1973, Al Huang fazia, em livro recm

    lanado, a seguinte queixa:

    $WXDOPHQWHXPDFRTXHOXFKHGH WDLFKLSDUHFHHVWDU WRPDQGRFRQWDUDSLGDPHQWHGH WRGDV DV JUDQGHV FLGDGHV 7RGR PXQGR ID] WDi chi e recebe diplomas at certificados para principiantes e adiantados. Estou contente que haja tanta gente

    37 [...] the field of study dealing with somatic phenomena, i.e., the human being as experienced by himself (or herself) from the inside.

  • 43

    interessada nesta bela prtica, mas ao mesmo tempo fico um pouco preocupado FRPDGHJHQHUDomRGRWDLFKL+8$1*S.

    Situada na confluncia de vrias reas de conhecimento vem sendo tratada com uma

    enorme carga de simplificao e modismo.

    No escapam desta armadilha, na disputa do mercado de trabalho, nem mesmo os

    SURILVVLRQDLVTXHVHDSUHVHQWDPFRPRIRUPDGRVQDVGLWDVWpFQLFDVGHHGucao somtica, uma

    vez que a tratam como se, ao indivduo, fosse suficiente a prtica de um receiturio de

    movimentos e o exerccio de um punhado de pensamentos para que se modificasse sua relao

    com seu prprio corpo e seu estar no mundo, tarefa j sufLFLHQWHPHQWH FXPSULGD SHOR WDL FKL

    FKXDQ SHOR OLDQ NXQJ H RXWUDV SURSRVWDV VHPHOKDQWHV QDV TXDLV R HVRWHULVPRGR GLVFXUVR QmR

    compromete sua eficcia e resultado, principalmente quando conduzidos por mestres capazes na

    execuo de sua tcnica. No nos esqueamos, entretanto, de propsitos bem menos nobres tais

    como: sua utilizao no papel de coadjuvante em propostas de emagrecimento, modelagem

    corporal, rejuvenescimento e fins curativos para leses steoarticulares e msculotendneas.

    Num folder do Departamento de Dana de uma universidade brasileira, podia-se ler que

    uma de suas professoras iria ministrar uma oficina na qual seriam utilizados elementos de

    educao somtica, muito embora a ministrante no tivesse formao em nenhuma rea que

    pudesse lhe conceder tal competncia. Aps uma descrio simplria, na qual se inclua a

    GHILQLomRGHTXHVH WUDWDYDGHXPDDERUGDJHPFRUSRUDODOWHUQDWLYDDILUPDYDTXHDHGXFDomR

    VRPiWLFD HUD FRQVLGHUDGD XPD SURSRVWD WHUDSrXWLFD GH VD~GH H SRGLD VHU XWLOL]DGD HP vrias

    reas.

  • 44

    Ouamos o que tem a dizer Marcia Strazzacappa (2009) a respeito dos assuntos tratados

    acima:

    Embora trabalhos srios de Educao somtica j sejam realizados no Brasil h mais de quatro dcadas por inmeros profissionais formados em diferentes linhas, a Educao Somtica, vitimada por um modismo (como tantos outros que j SUHVHQFLDPRV QR SDtV SDVVRX D VHU YLVWD FRPR XP VHOR GH JDUDQWLD RX XPFHUWLILFDGR GH TXDOLGDGH GDV WpFQLFDV FRUSRUDLV ,VVR OHYRX D XPD WHQWDWLYDdesenfreada de intitular trabalhos corporais como pertencentes gama de tcnicas de Educao Somtica. Sob esse ponto de vista, professores das mais variadas tcnicas corporais se auto-intitularam educadores somticos ou, ainda, passaram a chamar e divulgar suas atividades como Educao Somtica, no intuito de aumentar a clientela e o valor bruto de sua hora de trabalho (p.52)

    Ainda que os preceitos da educao somtica tenham fundao em preceitos cientficos

    que norteiam os conhecimentos da rea das cincias da sade, a educao somtica no terapia.

    Esta afirmao encontra eco nos prembulos do Cdigo Deontolgico do R.E.S. 38 em verso

    adotada em outubro de 2003 e revista em novembro de 2004.

    Mesmo admitindo que haja benefcios que se manifestam em sensaes de bem estar no

    plano fsico ou psicolgico o posicionamento do grupo muito claro:

    A educao somtica no em si uma terapia. Ainda que possa claramente haver benefcios no plano teraputico, ela no pertence ao campo mdico. Ela no detm o discurso sobre a patologia, no estabelece o diagnstico, no faz tratamento nem mesmo prognstico de resultado seja no plano fsico, psicolgico ou comportamental. Alias, a educao somtica no substitui nenhuma forma de aproximao centrada diretamente sobre o diagnstico, o tratamento e a cura, seja em se tratando da fisioterapia, da psicoterapia, da massoterapia, da ergoterapia at mesmo da osteopatia e de toda outra forma de tratamento de sintomas e de doenas. Os mediadores em educao somtica respeitam os limites de seu

    38 5(6/H5HJURXSHPHQWSRXUOpGXFDWLRQVRPDWLTXH5HDJUXSDPHQWRSHODHGXFDomRVRPiWLFDRUJDnismo sem fins lucrativos fundado em 1995 em Quebec, Canad. Lugar de troca, de pesquisa e de aes pelo avano e a prtica da educao somtica. Reconhece como mtodos de educao somtica: a Tcnica de Alexander, o Mtodo de Feldenkrais, a Aproximao Global do Corpo e Mtodo de Liberao das Couraas e a Ginstica Holstica da Dra. Ehrenfried.

  • 45

    trabalho no envolvendo seus alunos em investigaes do tipo mdico ou teraputico. (R.E.S., 2004).39

    Posicionamento semelhante tem, nos Estados Unidos, o ISMETA40, que prev em seu

    &yGLJR GHeWLFD TXH 2SURILVVLRQDO ILOLDGR DR ,60(7$ QmR SRGH GLDJQRVWLFDr ou prescrever

    SDUDFRQGLo}HVGHFXQKRPpGLFR 41(ISMETA, 1990).

    Terapia, do latim therapia, derivado do grego therapeia, em qualquer dicionrio, leigo

    ou especializado, do ocidente: o exerccio da teraputica que significa a parte da medicina que se

    ocupa da descoberta e da aplicao de mtodos adequados na cura ou no alvio das doenas.

    H, portanto, por trs deste conceito, a necessidade de que a atividade, dita teraputica,

    relacione-se obrigatoriamente a uma afeco cujo diagnstico, uma vez estabelecido ou suspeito,

    associe-se a um mtodo cientifico e eficaz de abordagem do mal com a inteno de cura ou de

    minimizao de seus sintomas.

    S as cincias da sade, como rea de conhecimento, e especificamente a medicina, como

    sub rea, tem competncia de definir propostas teraputicas de sade.

    Ainda que a educao somtica venha a ser conceituada, aps um longo caminho de

    reconhecimento internacional, que est apenas se iniciando, como um integrante da grande rea

    das cincias da sade, esta no sua tarefa.

    39 /pGXFDWLRQVRPDWLTXHQHVWSDVHPVRLXQHWKpUDSLH4XRLTXHOOHSXLVVHFODLUHPHQWDYRLUGHVEHQHILFHVDXSODQWKpUDSHXWLTXHHOOHQDULHQGHPHGLFDO(OOHQHWLHQWSDVGHGLVFRXUVVXUODSKDWRORJLHQHWDEOLWSDVGHGLDJQRVWLFQHfait pas de traitement ni meme de prognostic de rsultat et ce la fois au plan physique, psychologique ou FRPSRUWHPHQWDO'DLOOHXUV OHGXFDWLRQVVRPDWLTXHQH UHPSODFHDXFXQH IRUPHGDSSURFKHD[pHGLUHFWHPHQWVXU OHGLDJQRVWLFOHWUDLWHPHQWHWODJXpULVRQTXLOVDJLVVHGHODSK\VLRWKpUDpie, de la psycothrapie, de la massothrapie, GH OHUJRWKpUDSLH YRLUH GH ORVWpRSKDWLH HW GH WRXWH DXWUH IRUPH GH WUDLWHPHQW GH V\PSW{PHV HW GHPDODGLHV /HVintervenants em ducation somathique respectent leVOLPLWHVGHOHXUWUDYDLOHPQHQJDJHDQWSiVOHurs eleves dans ds dmarches de type medical ou thrapeutique. 40 ISMETA: International Somatic Movement Education and Therapy Association. 41 ISMETA practitioners may not diagnose or prescribe for medical conditions.

  • 46

    A simples associao da vivncia em propostas de educao somtica com a

    experienciao de sensaes que possam ser definidas como positivas no a torna uma proposta

    teraputica. Felizmente.

    Trat-la com esta superficialidade desrespeito queles que procuram aprofundar-se em

    seus propsitos e desrespeito queles que buscam, inocentemente, nestes arremedos a resposta

    aos seus incmodos.

    Por outro lado, no obstante tenha sido introduzida, disseminada, cultivada e apresentada

    como base para tcnicas relacionadas s artes do corpo, tambm no arte.

    Antes por no ter a inteno de s-la (BEST, 1974) e, ainda, por no se apresentar ou

    tornar-se substncia como produto do movimento corporal e, sim, como reflexo sobre este

    movimento, dirigindo-se ao indivduo mesmo e tornando-se, de imediato, seu aspecto.

    Pedro de Alcntara (1997), em seu livro sobre a Tcnica de Alexander, revela que

    $OH[DQGHU VXSXQKD LQLFLDOPHQWH TXH FRUSR H PHQWH IRVVHP SDUWHV VHSDUDGDV GR PHVPR

    organismo, s tendo mudado de opinio durante suas experincias no desenvolvimento de uma

    tcnica de trabalho pedaggico. Preferindo falar da totalidade do organismo psicofsico humano

    XWLOL]DYDRWHUPRRHX

    M. Alexander achava que todo mal advinha da m uti