Tese Lucena-Candéas

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE CINCIA POLTICA E RELAES INTERNACIONAIS

JUZES PARA O MERCADO?OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO MUNDIAL PARA O JUDICIRIO EM UM MUNDO GLOBALIZADO

ANA PAULA LUCENA SILVA CANDAS

BRASLIA 2003

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ORIENTADORAMARIA DAS GRAAS RUA DOUTORA EM CINCIA POLTICA PELO IUPERJ

COMISSO EXAMINADORA

MARIA DAS GRAAS RUA (ORIENTADORA) DOUTORA EM CINCIA POLTICA PELO IUPERJ

EDUARDO VIOLA (MEMBRO) DOUTOR EM CINCIA POLTICA PELA USP

JOS RENATO NALINI (MEMBRO) DOUTOR EM DIREITO PELA USP

CARLOS PIO (SUPLENTE) DOUTOR EM CINCIA POLTICA PELO IUPERJ

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Ainda que eu fale as lnguas dos homens e dos anjos, se no tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o smbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conhea todos os mistrios e toda a cincia; ainda que eu tenha tamanha f ao ponto de transportar montes, se no tiver amor nada serei. (Trecho da Carta aos Corntios 13: 1-2)

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Ao Senhor Yeshua, amigo fiel, que me acompanhou nos meus vales sombrios, nos meus desertos e sempre me lembra o caminho para a Terra Prometida.

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AgradecimentosA Margarida e Maria, minhas me e av, que compreenderam desde cedo e me ensinaram que a educao o melhor caminho para a libertao das mulheres em uma regio dominada por mentalidades oligrquicas. A Alessandro, meu amado, companheiro fiel e conselheiro, por tudo que representa para a minha vida. Prof. Graa Rua, por ter acreditado na minha pesquisa, pelo exemplo de mulher e de intelectual, e por ter cuidado de mim quando mais precisava. Aos magistrados que colaboraram comigo, especialmente o juiz Flvio Dino de Castro e Costa, por sua generosidade e amizade. Aos professores do mestrado Eduardo Viola e Carlos Pio, pelo incentivo e pelos conselhos. Aos professores, amigos da internet, Armando Castelar, Rick Messik e Renato Nalini. Aos meus amigos Patrcia e Luis Guilherme Nascentes, por cuidarem com tanto zelo dos detalhes administrativos no perodo de minha licena. querida Christiane Bernardes, por me ajudar na aplicao dos questionrios. Muito obrigado tambm a Marcia Hoffmann por me auxiliar nessa tarefa. Ao querido amigo Rodrigo Mello, pelas crticas e sugestes ao texto. A Mrcia Mazo, por nunca ter deixado sem resposta minhas perguntas. amiga Eunice Alencar, por me ouvir e ajudar. A Neide De Sordi, pelas oportunidades que me concedeu. Aos meus braos e pernas argentinos, Eliana Murer e Mabel Maita, pela ajuda com a casa e com minha filhinha Catarina. s mdicas brasileiras Zaly Neves e Edna Salazar, e s argentinas Ana Kohl, Luisa Paramidani e Susana Mandel, pelos cuidados comigo. A Celina Rojas e a Rosngela. s funcionrias do Mestrado Odalva e Celi, por me ajudarem sempre. Aos meus amigos do mestrado Francisco, Fulvio, Susan, Young-Soon, Juliana, Marija, Gabrielle. Aos amigos argentinos da comunidade e fora dela, que, mesmo passando por momentos difceis, me ajudaram e tiveram pacincia comigo. A Myriam, com carinho. Por fim, a minha filhinha Catarina, que tem me ensinado a ser menos machista e ter maior respeito s grvidas.

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SUMRIORESUMO ................................................................................. 8 INTRODUO ................................................................................................................... 9 CAPTULO 1 O Banco Mundial como agente de governana global e o Judicirio no contexto de globalizao econmica ........................................................................ 18 1 Ordem mundial e globalizao ....................................................................................... 18 2 Governana, governo e o papel do Banco Mundial ........................................................ 26 3 O Banco Mundial como agente da governana global .................................................... 30 4 O Judicirio e os juzes no contexto da globalizao ...................................................... 36

CAPTULO 2 Os valores recomendados pelo Banco Mundial para o Judicirio ..... 44 1 O mercado e a reforma do Judicirio segundo o Banco Mundial ................................... 48 2 Os valores recomendados pelo Banco Mundial .............................................................. 58 a) b) c) d) e) f) g) Acesso justia (acessibilidade) ........................................................................... 59 Credibilidade ......................................................................................................... 60 Eficincia ............................................................................................................... 61 Transparncia ............................................................................................ 64 Independncia ........................................................................................................ 65 Previsibilidade ................................................................................................... 67 Proteo propriedade privada e respeito aos contratos ....................................... 69

3 Consideraes finais .................................................................................................... 70

CAPTULO 3 Absoro e rejeio de valores pelos magistrados ............................... 73 1 A construo do consenso internacional sobre a reforma do Judicirio ......................... 74 2 Os dissensos internos sobre a reforma do Judicirio ...................................................... 76 3 Os valores ligados ao funcionamento do Judicirio ........................................................ 80 a) Eficincia ................................................................................................................... 81 b) Transparncia ............................................................................................................. 86 c) Acessibilidade ............................................................................................................ 87

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4 As influncias valorativas no processo decisrio dos magistrados ................................. 90 a) O contrato no processo decisrio ............................................................................... 94 b) Independncia, imparcialidade e neutralidade ........................................................... 97 c) A previsibilidade e o mercado no processo decisrio .............................................. 103 5 Consideraes finais: absoro ou rejeio dos valores do Banco Mundial .................. 111

CAPTULO 4 O caso do leasing e da variao cambial. Imprevisibilidade, segundo o mercado; justia, segundo os magistrados ..................... 115 1 O respeito aos contratos: teses em discusso .................................................................. 116 2 Os julgamentos e as divergncias nas instncias inferiores ao STJ ................................ 121 3 Do julgamento do STJ: um tema, trs correntes interpretativas ..................................... 124 a) b) c) d) Os debates na 3. Turma ............................................................................................ 125 Repercusso na mdia: crticos versus defensores da deciso do STJ ....................... 128 Os debates na 4. Turma ............................................................................................ 132 A unificao interpretativa na 2. Seo do STJ ........................................................ 137

4 Aproximao e afastamento das teses do Banco Mundial .............................................. 138

CONCLUSO ..................................................................................................................... 142 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 150 ANEXO 1 (Questionrio submetido aos Ministros do STJ) ................................................ 159 ANEXO 2 (Teses em discusso sobre leasing e variao cambial) ..................................... 164 ANEXO 3 (Votos dos Ministros da 2 Seo do STJ) .......................................................... 166 ANEXO 4 (Conferncias do BID sobre Judicirio) ............................................................. 172 PALAVRAS-CHAVE: juzes, mercado, valores, Banco Mundial, Judicirio, globalizao, governana global, reforma do Judicirio, previsibilidade, independncia, contratos, propriedade privada, leasing (arrendamento mercantil), variao cambial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Superior Tribunal de Justia KEY WORDS: Judges, market, values, World Bank, Judiciary, globalization, global governance, Judiciary reform, previsibility, independence, contracts, private property, leasing, currency fluctuation, Inter-American Development Bank, High Court of Justice

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RESUMOEsta dissertao analisa o Judicirio como objeto de estudo das Relaes Internacionais. Seu objetivo examinar, no contexto da globalizao, as relaes entre os valores propostos pelo Banco Mundial (como agncia de governana global) em seu esforo de formao de consensos para a reforma dos sistemas jurdicos (como parte da reforma do Estado) e os valores defendidos pelos juzes brasileiros. As publicaes do Banco e o processo decisrio no mbito do Superior Tribunal de Justia (STJ) sobre reviso contratual (caso do leasing e da variao cambial) conformam o material mais importante da pesquisa. Distinguiram-se duas categorias de valores: os ligados ao funcionamento do sistema Judicirio e os subjacentes produo de sentenas. Especial destaque dado aos valores previsibilidade e independncia, conforme as concepes divergentes do mundo econmico e do mundo jurdico. Nessa perspectiva, no obstante a relativa convergncia entre propostas e valores do Banco Mundial e as adotadas pelo Judicirio brasileiro, as prioridades dos juzes no se alinham integralmente s desse organismo internacional, cuja ao visa a facilitar a expanso dos mercados globais.

ABSTRACTThe thesis views the Judiciary system as subject matter of international relations. It aims at analysing, in the globalization context, the relationship between the values proposed by the World Bank (as global governance agency) in its endeavor of consensus building directed at judicial reform (as part of State reform) and those followed by Brazilian judges. Wold Bank publications and the decision making process within the High Court of Justice on contract revision (leasing and currency fluctuation case) provide key research material. Two value categories are considered: those related to the functioning of the judicial system and those underlying sentence production. Special place is given to the values predictability and independence, according to the diverging views of the economic and legal worlds. In this connection, in spite of the relative convergence between proposals and values of the World Bank and of the Brazilian Judiciary, the priorities of judges do not align fully with those of the international organization, whose action aims at expanding global markets.

RSUMCette dissertation analyse le Judiciaire comme objet dtude des Relations Internationales. Son objectif consiste examiner, dans le contexte de la mondialisation, les rapports entre les valeurs proposes par la Banque Mondiale (agence de gouvernance mondiale) dans son effort de construction de consensus autour de la rforme des systmes juridiques (comme partie de la rforme de ltat) et les valeurs suivies par les juges brsiliens. Les publications de la Banque et le processus de prise de dcision au sein du Suprieur Tribunal de Justice en matire de rvision de contracts (cas leasing et variation de taux dchange) fournissent le matriel de base pour la recherche. On distingue deux catgories de valeurs: celles lies au fonctionnement du systme Judiciaire et celles sous-jacentes la production darrts. Une place spciale est accorde aux valeurs prvisibilit et indpendence, selon les conceptions divergeantes des mondes conomique et juridique. Dans cette perspective, en dpit de la relative convergence entre les propositions et valeurs de la Banque Mondiale et celles adoptes par le Judiciaire brsilien, les priorits des juges ne salignent pas totalement celles de cette organisation internationale, dont laction vise faciliter lexpansion des marchs mondiaux.

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INTRODUO

A hegemonia do sistema econmico capitalista no meio internacional se manifesta na construo de consensos quanto a valores ligados economia de mercado tanto no plano mundial quanto nos diversos planos nacionais. O discurso predominante, em grande parte produzido por organizaes econmicas e financeiras multilaterais, prope que as instituies polticas e jurdicas nacionais operem em favor da economia global. O Banco Mundial, enquanto organismo internacional especializado do sistema das Naes Unidas, atua como elemento facilitador da economia de mercado, na medida em que promove o debate em torno da reforma do Estado, em particular do Judicirio em especial, capaz de favorecer a constituio de um ambiente propcio para os investimentos. O Banco prope que o Judicirio combata a sndrome da ilegalidade, proteja a propriedade privada, garanta o cumprimento dos contratos e seja previsvel em suas decises. Com esse fim, produz pesquisas e publicaes, promove conferncias e financia projetos na Amrica Latina e em outros continentes sobre o papel dos tribunais nacionais. Esse esforo reflete uma atividade paranormativa (Dupuy, 1995) que visa a influenciar os Judicirios em seus valores e seu modus operandi com vistas a adapt-los economia globalizada. Uma leitura dos documentos do Banco Mundial evidencia a proposio de uma srie de valores destinados a aprimorar o funcionamento dos sistemas judiciais: previsibilidade nas decises, independncia, eficincia, transparncia, credibilidade (combate corrupo), proteo propriedade privada, acessibilidade (adoo de mtodos alternativos de resoluo de controvrsias) e respeito aos contratos. Assim, o Banco busca fazer com que o consenso deixe de ser apenas internacional e seja internalizado pelos Judicirios nacionais. Muitos desses valores, tais como independncia, eficincia, transparncia e acessibilidade j esto incorporados nos discursos e na prtica dos magistrados brasileiros, que tm buscado aprimoramento institucional. Por outro lado, entretanto, os magistrados em geral parecem refratrios ao valor previsibilidade das decises judiciais. Com efeito, duas percepes se opem ao que seja previsibilidade: a percepo dos economistas e a dos magistrados. A preocupao de alguns economistas e investidores, refletida nos documentos do Banco Mundial, a de que o

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Judicirio seja previsvel e eficiente, reduzindo a margem de risco, garantindo o cumprimento dos contratos, proferindo decises no-politizadas nem desestabilizadoras da confiana dos investidores. Por sua vez, os magistrados esto impregnados dos valores do Estado, valores democrticos sob uma perspectiva de justia: no processo de formao de seu convencimento, o juiz busca restabelecer o equilbrio das partes, em particular usando o princpio da eqidade no julgamento sobre contratos. Esta pesquisa traz o Judicirio nacional como objeto de discusso das Relaes Internacionais, tendo como ponto de partida a proposio de que as aes do Poder Judicirio constituem um tema de interesse internacional, sendo objeto da agenda de muitas agncias internacionais, especialmente do Banco Mundial. Seu objetivo examinar as relaes entre os valores propostos Banco Mundial para a reforma dos sistemas jurdicos e os valores defendidos pelos juzes brasileiros, especialmente os do Superior Tribunal de Justia STJ. Est implcito, nesse percurso, o entendimento de que a governana global (em particular na rea econmica) depende de instituies e valores compartilhados no apenas pelos atores internacionais (Leis, 1995: 56), mas tambm por atores nacionais. Problematizar o Judicirio nacional no campo das Relaes Internacionais traz uma abordagem inovadora. Como se ver ao longo deste trabalho, com exceo dos documentos sobre o Banco Mundial, no h praticamente literatura sobre o papel dos sistemas judiciais no plano da governana mundial e da globalizao. Por outro lado, so abundantes as pesquisas e referncias bibliogrficas sobre os reflexos nas Relaes Internacionais da economia, da cincia poltica e da sociologia internas dos pases. possvel, porm, identificar pontos de contato entre estudos jurdicos e de Relaes Internacionais, mas, para isso, necessrio transpor as barreiras disciplinares e auxiliar-se de conceitos, categorias e mtodos de campos epistemolgicos como Direito e Sociologia Jurdica. A reforma do Estado, em suas diversas modalidades, tem-se mostrado recorrente em todo o mundo ocidental, pelo menos desde a dcada de 1980, apresentando-se como uma condio necessria ao desenvolvimento do capitalismo global. As propostas do Banco Mundial para a reforma do Judicirio juntamente com as recomendaes de medidas de ajuste fiscal e privatizao e de reformas institucionais, como a administrativa e a previdenciria compem o receiturio dos organismos internacionais para a reforma do Estado.

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Este estudo trabalha com o pressuposto de que o Banco Mundial, como um dos agentes da governana global, reconhece que os Judicirios nacionais podem exercer o papel de facilitadores ou representarem bices da expanso da economia de mercado em escala mundial. A estratgia do Banco de construir consensos internacionais em torno de alguns valores ligados expanso do capitalismo global visa a influenciar os Judicirios nacionais em dois nveis: o institucional e o individual (juzes). No primeiro, a adeso a esses valores engajaria os Judicirios em um processo de modernizao, adaptando-os s demandas da nova economia globalizada. No nvel individual, a convergncia de valores tornaria os prprios juzes agentes da construo desse consenso no interior de sua corporao, impulsionando a reforma do Judicirio (Dakolias, 1997: 72). Estes atores estatais assumiriam, dessa forma, o papel de guardies de um ambiente propcio aos investimentos, assegurando judicialmente o respeito propriedade privada e aos contratos. Conforme o relatrio de 1997 do Banco Mundial, intitulado O Estado num mundo em transformao, os fatores que contriburam para a prioridade acordada reforma legal e judicial do Estado na agenda do desenvolvimento foram: a desintegrao das economias planejadas da exUnio Sovitica e da Europa Oriental, a crise fiscal do Estado previdencirio, a desintegrao de Estados e a exploso de emergncias humanitrias (Banco Mundial, 1997: 1). Segundo a AJURIS, o fator que motivou a nfase do Banco Mundial foi a influncia do Consenso de Washington sobre a agenda dos Estados e organismos internacionais, no sentido de introduzir reformas estruturais (AJURIS: 2001). Tais reformas impunham uma reduo do papel do Estado, com base no argumento da abertura ao comrcio e s finanas internacionais. Nesse sentido, o Estado, considerado como organizador ou regulador das instncias sociais, compelido progressivamente a ceder lugar ao mercado. Nesse contexto, o Banco Mundial enfatiza o setor privado como o motor do crescimento (Banco Mundial, 1998: 10). Como um ambiente propcio para os investimentos privados necessita de um clima de estabilidade e previsibilidade para os negcios, o Banco passa a impulsionar a reforma do Estado e, em particular, do Judicirio para garantir essa previsibilidade, sobretudo em matria contratual1. Desse modo, na viso do Banco Mundial, os Judicirios nacionais no1

A assistncia tcnica e financeira do Banco Mundial visa a estabelecer um bom clima para negcio (good business climate) por meio dos seguintes instrumentos: estabelecimento de leis, regulamentos e agncias governamentais necessrios para a garantia de investimentos privados; investimento em infraestrutura (transportes e comunicaes); capacitao de governos; privatizao de empresas estatais e desmantelamento de monoplios; reduo dos riscos polticos do investimento (com o crescimento da confiana do setor privado, haveria investimentos em empreendimentos que, de outra forma, pareceriam arriscados); estmulo maior

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constituiriam fator de risco para os investidores privados. Quando o Judicirio no constitui um fator de risco? Quando previsvel, eficiente e transparente. O Banco, trabalhando no que Rosenau (2000: 33) considera nvel ideacional ou intersubjetivo, busca, portanto, modernizar os Judicirios nacionais por meio de um sistema de valores ligados globalizao. Esta dissertao investiga o impacto de determinadas premissas ideacionais (recomendaes do Banco) em modelos especficos de conduta (relativos aos magistrados no processo decisrio baseado em valores). Utilizei o critrio da localizao poltica das relaes e dos fluxos sociais empregado por Max Gounelle para identificar se um dado fenmeno diz respeito ou no s relaes internacionais:

Au stade actuel des connaissances et des traditions universitaires, on peut dfinir les relations internationales comme les rapports et les flux sociaux de toute nature qui traversent les frontires, chappant ainsi lmprise dun pouvoir tatique unique ou auxquels participent des acteurs qui se rattachent des societs tatiques diffrentes (Gounelle, 1993: 1) 2.

A partir do critrio de localizao poltica, considero que o Banco Mundial, por ser um ator que opera em escala global, est situado na esfera externa, por lidar com fluxos econmicos e relaes sociais e institucionais que atravessam as fronteiras e afetam vrios Estados. Ao impulsionar, a partir da esfera externa, a reforma do Judicirio, o Banco procura influenciar atores estatais da esfera interna (Judicirio e juzes). Contudo, tanto o conceito de Relaes Internacionais acima esboado quanto a categoria de localizao poltica dos fluxos sociais apresentam limites. Isso porque a ordem internacional est marcada pelo processo de globalizao (Held, 2002: XLIII), que torna cada vez mais complexos os fluxos sociais dessa ordem mundial e exige um esforo de redefinies tericas e conceituais. A globalizao um processo altamente diferenciado que se manifesta em todos os principais campos da atividade social poltica, militar, jurdica, ecolgica e criminal , no sendoeficincia e competio e menor vulnerabilidade corrupo; e atrao de capital privado externo (Banco Mundial, 1998: 10 e 14). 2 Traduo: No estado atual do conhecimento e das tradies universitrias, pode-se definir relaes internacionais como relaes e fluxos sociais de toda a natureza que atravessam as fronteiras, escapando assim da influncia de um poder estatal nico ou dos quais participam atores que se ligam a sociedades estatais diferentes.

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um fenmeno nem exclusivamente cultural, nem estritamente ecnomico (Idem: LXIV). A esses fluxos agrega-se uma multiplicidade de novos atores, inclusive os Judicirios nacionais e os juzes, tradicionalmente circunscritos s esferas territoriais dos Estados nacionais. O critrio de localizao poltica de um ator na esfera externa (Banco Mundial) em relao a outros na esfera interna (Judicirio e juzes) tem apenas carter metodolgico, j que as fronteiras entre assuntos internos e temas globais esto cada vez mais indefinidas. Isto se explica pela intensificao das interaes e processos globais, que ocorre medida que os sistemas mundiais de transportes e comunicao aumentam a velocidade potencial da difuso global de idias, bens, informao, capitais e pessoas (Idem: XLIX). O estudo de caso julgamento sobre leasing e variao cambial no STJ , que servir para o teste das hipteses deste trabalho envolve, no plano dos atores, empresas e agncias financeiras multinacionais; no plano dos fluxos transnacionais, trata da captao de recursos no exterior para contratos nacionais; e na rea da permeabilidade entre o externo e o interno e da chamada ao distncia, saliente-se que problemas econmicos iniciados na sia se repercutiram em contratos firmados no Brasil por causa da alterao do regime cambial, gerando, segundo alguns, desconfianas nos investidores estrangeiros. Tendo em mente os elementos acima, a pergunta norteadora da pesquisa que buscou problematizar a questo dos valores aplicados ao Judicirio nacional em um contexto de globalizao tal como vista pelo Banco Mundial (preocupado com a previsibilidade com vistas ao fortalecimento do mercado e garantia dos contratos) e pelo Superior Tribunal de Justia STJ (guardio da inteireza positiva do ordenamento jurdico, preocupado com o valor independncia, com vistas a assegurar a justia e o imprio da lei) pode ser assim sintetizada:

Qual a relao entre os valores propostos pelo Banco Mundial para o Judicirio na Amrica Latina, em um contexto de incertezas caracterstico da globalizao, e os valores dos Ministros do Superior Tribunal de Justia, responsveis por decidir matrias relativas a reviso do contrato, em especial, o valor da previsibilidade no processo decisrio judicial ?

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Delimitou-se o universo de investigao3 aos Ministros da 2 Seo do Superior Tribunal de Justia4 incumbidos de julgar processos relativos ao Direito Privado5, ou seja, matrias ligadas a contratos, mercado de capitais, e investimentos, temas importantes para os agentes do mercado. Para responder a essa pergunta, o trabalho foi norteado pelos seguintes objetivos: Comparar os valores contidos nos documentos tcnicos, relatrios e conferncias patrocinadas pelo Banco Mundial para os sistemas judiciais da Amrica Latina no perodo de 1995 a 2001 considerados elementos da governana mundial em um contexto de globalizao, a partir do esforo de formao de consensos , e os valores dos Ministros do Superior Tribunal de Justia contidos em seus acrdos (incluindo votos individuais de juzes) e manifestados atravs da imprensa. Identificar que valores, entre os propostos pelo Banco Mundial para o bom funcionamento dos sistemas judiciais, so introjetados pelos Ministros do STJ em suas preocupaes relativas ao aprimoramento institucional.

Investigar como o STJ decide as demandas judiciais relativas a reviso do contrato, tomando como referncia os valores de previsibilidade e independncia, conforme as concepes divergentes do mundo econmico e do mundo jurdico.

O STJ constitui um rgo do vrtice do sistema (ltima instncia da justia ordinria, antes da instncia recursal do Supremo Tribunal Federal) responsvel por julgar matrias infraconstitucionais, orientando a interpretao das demais jurisdies6. Sua importncia est em ser o

A Justia brasileira uma figura multiforme, com sofisticada diviso de competncias entre 2 Justias Comuns (Federal e Estadual) e 3 Justias Especiais (Trabalhista, Eleitoral e Militar). Nesse contexto, foi necessrio, no processo de investigao, delimitar o alcance da dissertao sobre um segmento do Judicirio adequado anlise dos efeitos da globalizao, tanto por sua competncia temtica quanto por sua relevncia hierrquica: a 2. Seo do STJ. 4 Esse universo de magistrados est composto por nove homens e uma mulher, com mdia de idade de 60 anos. Todos so bacharis em Direito, sendo 2 doutores e 2 mestres. A maioria dos Ministros da regio Sul ou Sudeste, sendo trs do Rio Grande do Sul, trs de Minas Gerais, um do Par, um de So Paulo, um do Rio de Janeiro e um do Cear. Para a metade de seus componentes, o local de exerccio das atividades antes de integrarem o STJ no coincide com seu lugar de nascimento, formao ou atividade profissional, o que sugere uma certa mobilidade espacial dos magistrados (http://www.stj.gov.br., acesso em 20/03/2003). 5 Dispe o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justia sobre as atribuies decisrias de suas Sees: Art. 9 A competncia das Sees e das respectivas Turmas fixada em funo da natureza da relao jurdica litigiosa () 2 Segunda Seo cabe processar e julgar os feitos relativos a: () II - obrigaes em geral de direito privado, mesmo quando o Estado participar do contrato; () VIII - comrcio em geral, () bolsas de valores, instituies financeiras e mercado de capitais. 6 O Superior Tribunal de Justia, instalado em 1989 (Lei n 7.746/89), foi uma das inovaes introduzidas pela Constituio de 1988 no que concerne organizao judiciria.

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locus de convergncia de matrias de todas as vertentes jurisdicionais no-especializadas7. Suas decises so importantes por uniformizarem o direito nacional, causando impacto na interpretao do direito. O STJ o tutor da inteireza positiva, da autoridade e da uniformidade interpretativa da lei federal e guardio das liberdades8. O que caracteriza o STJ a tutela do princpio da incolumidade do Direito objetivo pela uniformidade das interpretaes dos magistrados, constituindo um valor jurdico que resume certeza, garantia e ordem (Silva, 1997: 532-533). A escolha investigativa recai sobre esse Tribunal Superior por ser um rgo do sistema que inspira uma seleo de seus quadros com maior nfase no critrio tcnico, em oposio ao Supremo Tribunal Federal, cujas nomeaes tm um forte componente poltico. Por ser tutor da uniformidade interpretativa da lei, sua jurisprudncia influencia decisivamente todas as demandas nascidas na base do sistema, e componente do processo decisrio dos juzes estaduais ou federais, gerando, em princpio, uma unidade no sistema. A fim de desenvolver a pesquisa, foram levantadas as seguintes hipteses: Os Ministros do Superior Tribunal de Justia, enquanto atores do Estado, tm dificuldade em incorporar integralmente o sistema de valores proposto pelo Banco Mundial para o bom funcionamento do sistema judicial num contexto de globalizao em virtude de: a) Desejarem preservar o monoplio do juris dictio por parte do Estado, que sofre concorrncia da multiplicao dos mecanismos de resoluo privada de controvrsias e de mecanismos alternativos de soluo de disputas recomendados pelo Banco Mundial; e b) Acreditarem que os fatores econmicos no devem ser considerados imperativos no processo decisrio judicial, em detrimento do papel clssico de fazer cumprir a lei e realizar justia por intermdio do arcabouo jurdico-formal vigente. O valor da independncia judicial, basilar para o funcionamento judicial conforme os relatrios do Banco Mundial, , na opinio dos Ministros do STJ, mais importante para orientar a ao dos magistrados do que o valor da previsibilidade, desejado pelo agentes econmicos.

As matrias especializadas so apreciadas pelas Justias do Trabalho, Eleitoral e Militar. Site internet do STJ: http://www.stj.gov.br. O STJ compe-se de, no mnimo, trinta e trs Ministros, nomeados pelo Presidente da Repblica depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, sendo um tero dentre juzes dos Tribunais Regionais Federais, um tero dentre desembargadores dos Tribunais de Justia e um tero em partes iguais dentre advogados e membros do Ministrio Pblico Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territrios, alternadamente (artigos 94, 128, I, a, e 104 da Constituio Federal) (Silva, Jos Afonso da 1997: 531).8

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As hipteses foram examinadas com base nas seguintes fontes de informao: relatrios do Banco Mundial sobre reforma do Estado e modernizao do Judicirio na Amrica Latina9; pesquisas empricas desenvolvidas pelo IDESP (Instituto de Estudos Econmicos, Sociais e Polticos de So Paulo)10 e IUPERJ (Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro)11; jurisprudncia do STJ sobre reviso de contrato12; questionrio aplicado junto aos Ministros que compem a 2a. Seo do STJ; matrias da imprensa; e literatura de Relaes Internacionais, Cincia Poltica e Sociologia Jurdica.

O questionrio foi elaborado como instrumento de observao primria. As perguntas nele contidas so relativas a valores, aos impactos da globalizao e da oposio (ou no) entre Estado e Mercado13. Esse intrumento seria o que poderia melhor viabilizar o teste das hipteses que orientam este estudo. Apesar da previsvel dificuldade em entrevistar magistrados, principalmente de Tribunais Superiores, esse recurso pareceu importante para detectar alguns valores que norteavam a ao dos magistrados, sua viso de mundo e a importncia que do ao debate entre as vises do Judicirio e da economia no contexto da globalizao. Cumpre assinalar o relativo insucesso na devoluo dos questionrios dirigidos aos Ministros do STJ: dos 10 componentes da 2 Seo, apenas 2 responderam14. Isso no permitiu9

Relatrios sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997 (O Estado num mundo em transformao) e 2002 (Instituciones para los Mercados); documento nmero 319 S (El sector judicial en Amrica Latina y el Caribe: Elementos de Reforma); Conferncia Comprehensive Legal and Judicial Development Towards an Agenda for a just and equitable society in the 21st. Century. 10 Estudos coordenados por Armando Castelar Pinheiro: Judicirio e Economia no Brasil; Mercado de Crdito no Brasil: O Papel do Judicirio e Outras Instituies; Judicial System Performance and Economic Development; e A Viso dos Juzes sobre as Relaes entre o Judicirio e a Economia. 11 Perfil do Magistrado Brasileiro e Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, pesquisas realizadas em colaborao com a Associao dos Magistrados do Brasil (AMB). 12 Pesquisa feita no sistema de busca na web do STJ (http://www.stj.gov.br), complementada pelo acompanhamento das notcias do mundo jurdico na mdia. 13 O questionrio (anexo 1) continha as seguintes questes: quais os impactos da globalizao no Judicirio, se o Judicirio fator de desenvolvimento dos mercados, qual o grau de importncia dado aos valores propostos pelo Banco, qual a importncia da independncia judicial e previsibilidade das decises, qual a importncia dada ao monoplio do juris dictio (concorrncia ou complementaridade entre mercado e Judicirio) e quais os valores dominantes no processo decisrio do juiz e no funcionamento do sistema judicirio. As perguntas serviriam para medir o grau de permeabilidade dos Ministros do STJ aos valores recomendados pelo Banco Mundial. 14 A justificativa para a no-colaborao foram falta de tempo, acmulo de trabalho, doena etc. Pesquisadores como Sadek e Junqueira j advertiam sobre os problemas de um questionrio. Sadek previne: o juiz sofre um processo de socializao interna corporis que o coloca em uma posio de inquiridor e no de entrevistado, de

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alcanar o segundo objetivo da pesquisa descobrir quais valores propostos pelo Banco Mundial so assimilados pelo STJ. Por causa disso, as notcias coletadas nos jornais, as entrevistas com juzes e as pesquisas do IDESP e do IUPERJ cuja abordagem vai muito alm do STJ, tratando dos magistrados em geral assumiram maior importncia nesta pesquisa. Esta dissertao se compe de quatro captulos, aos quais se segue uma concluso. O primeiro captulo concentra a discusso terica que sustenta a anlise realizada na dissertao. Definem-se os conceitos centrais da tese (ordem mundial, globalizao, governana global, Estado, governo, Judicirio) e situa-se o papel do Banco Mundial. O segundo captulo visa a comparar os valores contidos nos documentos do Banco Mundial para os Judicirios nacionais e os valores dos Ministros do STJ. Com esse fim, examinam-se os valores compartilhados pelo esforo de formao de consensos globais decorrentes dos relatrios e documentos tcnicos do Banco Mundial, com nfase no conceito de atividade paranormativa. Com base na difuso desses valores, o Banco procura fazer com que os Judicirios contribuam para a governana econmica global. O captulo 3 est voltado para investigar quais valores propostos pelo Banco para os Judicirios so introjetados pelos Ministros do STJ em suas preocupaes relativas ao aprimoramento institucional. No captulo 4, examinado o caso do leasing e da variao cambial a partir da jurisprudncia do STJ com vistas a investigar como o STJ decide as demandas judiciais relativas a reviso contratual, observando o valor previsibilidade, assinalando-se as concepes divergentes do mundo econmico e do mundo jurdico.

julgador e no de algum a ser avaliado, de algum que decide face aos outros, que tem respostas nos cdigos. (Sadek apud Faria, 1995: 39). Junqueira j recomendava, depois de sucessivas pesquisas com questionrios, que seria importante repensar os instrumentos de pesquisa mais adequados para se analisar os atores do Poder Judicirio (Junqueira et alii, 1997:15). Concordo com Junqueira sobre o tema, mas suas investigaes, as de Sadek e as de Werneck Vianna adotaram com relativo sucesso esse tipo de instrumento. Neste estudo, avaliei que seria importante conhecer a viso dos Ministros sobre os valores difundidos pelo Banco Mundial em seus documentos. Como no havia levantamentos anteriores sobre o assunto examinado nesta dissertao, insisti na aplicao do questionrio.

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CAPTULO 1 O BANCO MUNDIAL COMO AGENTE DE GOVERNANA GLOBAL E O JUDICIRIO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAO

Este estudo tem como ponto de partida a proposio de que, em virtude de seu decisivo impacto nas mais diversas reas da vida das sociedades contemporneas, as aes do Poder Judicirio acabam produzindo conseqncias que no se restringem s fronteiras nacionais e constituem tema de interesse internacional, sendo objeto da agenda de organismos internacionais, especialmente do Banco Mundial. Este captulo concentra a anlise conceitual e terica da dissertao. Cumpre definir ordem mundial, globalizao, governana global e governo para o melhor enquadramento do problema a ser investigado por este trabalho. Ser destacado o papel do Banco Mundial e ser investigado o lugar do Judicirio o impacto que sofre da globalizao e as possveis influncias que recebe desse organismo internacional.

1 - Ordem mundial e globalizao

A ordem mundial no conta com uma autoridade central acima dos governos nacionais capaz de ordenar condutas com uso da fora, como acontece no mbito interno; a autoridade se apresenta de forma difusa15. Os adeptos da corrente transformacionista em matria de globalizao consideram que a ordem mundial no est centrada exclusivamente no Estado; a autoridade cada vez mais difundida entre agncias pblicas e privadas, governamentais e no-governamentais, em nvel local, nacional, regional e global (Held et allii, 2002: XL). Isso levou ao crescimento de

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Esta dissertao pressupe a existncia de uma ordem mundial, no considerando aceitvel a tese de uma sociedade internacional anrquica e anmica: a existncia do direito internacional e de organismos intergovernamentais a exemplo do Banco Mundial so prova de que possvel uma governana global mesmo na ausncia de um governo mundial (Rosenau, 2000).

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instituies, organizaes e regimes que assentaram as bases da organizao de assuntos globais, isto , uma governana global o que no significa a emergncia de um governo mundial integrado. Para Held, por exemplo, a nova poltica global implica processos de tomada de deciso entre e dentro das burocracias governamentais e internacionais, no mbito de polticas induzidas por agncias internacionais (Held, 1997: 119-120). Apesar da ausncia de uma autoridade central, sob essa perspectiva, o mundo no vive uma anarquia, no sentido de ausncia de uma estrutura de ordenao. Como demonstra Rosenau, a falta dessa estrutura compensada pela conduta dos atores da ordem mundial, que respeitam princpios e regras, entendimentos e arranjos (Rosenau, 2000: 19-20). Na acepo desse autor, ordem mundial concebida como uma srie de entendimentos por meio dos quais flui a poltica (Idem: 16-17). Por isso, a ordem mundial tambm chamada por Rosenau de poltica mundial, pois envolve todos os relacionamentos entre regies, pases, movimentos sociais e organizaes privadas que se dedicam a atividades atravs das fronteiras nacionais (Idem: 26). Esses arranjos e entendimentos so conscientes, alguns baseados na soma das decises individuais, outros que decorrem de atividades planejadas para manter essa ordem. Os arranjos podem ser fundamentais ou rotineiros; os primeiros so relativos disperso do poder entre os atores, s diferenas de hierarquia entre eles baseadas no uso da fora, cooperao e conflito; os rotineiros so procedimentos relativos ao comrcio e correios, por exemplo (Idem: 17). Rosenau afirma que as numerosas estruturas que sustentam a ordem mundial desenvolvem-se em trs nveis fundamentais de atividade: o ideacional ou intersubjetivo, o objetivo ou comportamental e o poltico (Idem: 28-29, 31 e 33). O nvel ideacional ou intersubjetivo envolve os sistemas de crena, os contextos mentais e os valores compartilhados pela formao de consensos, que se manifestam nos temas decorrentes dos discursos, dos documentos e de todos os meios pelos quais indivduos e instituies ventilam sua compreenso da ordem mundial. Esses temas formam um consenso intersubjetivo que uniformiza os atores, prendendo-os aos mesmos entendimentos sobre os quais baseiam sua conduta. O nvel objetivo ou comportamental exprime a compreenso ideacional e se manifesta no que os atores fazem, muitas vezes de forma inconsciente, para manter os arranjos globais prevalecentes: tornando rotina valores compartilhados, sistemas de crena e contextos mentais. J o nvel poltico envolve as dimenses formal e institucional que do expresso e direo aos consensos ideacionais e s rotinas comportamentais dos indivduos.

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Este trabalho toma como pano de fundo o processo de globalizao16 tal como entendido por Held um processo no linear e pluricausal (Held, 2002: XLIII-XLIV) , processo esse que permeia o plano da ordem global tal como conceituada por Rosenau uma srie de entendimentos que decorrem de atividades planejadas conscientemente, em especial por meio de consensos sobre valores, destacando seus vnculos com a governana (Rosenau, 2000: 16-18). Por isso, esta dissertao privilegia a interpretao de David Held como marco terico para globalizao e James Rosenau para ordem e governana. Held constri uma classificao para as diversas perspectivas sobre a globalizao, classificando os autores em hiperglobalistas17, cticos18 e transformacionistas. O argumento hiperglobalista de que a globalizao econmica suplanta os Estados-nao como unidades econmicas e polticas primrias da sociedade mundial no ser aceito no mbito deste estudo. O esforo do Banco Mundial em estabelecer consensos internacionais e apoiar projetos de modernizao do Estado, em especial do Judicirio, indica que os Estados no so meras cadeias de transmisso da economia de mercado global. Ao contrrio, o Judicirio considerado fator de resistncia ao suposto fenmeno de suplantao dos Estados-nao como unidade primria da sociedade internacional. Esta pesquisa no tem por objetivo fazer comparaes sobre o nvel de integrao da economia internacional a partir de uma observao histrica, nem quantificar se essa integrao aumentou ou diminuiu as desigualdades entre as economias centrais e perifricas. Por isso, tampouco caberia empregar a viso ctica. Apesar de enfatizar o papel do Estado (o que tambmEsta tese no pretende repertoriar conceitos ou estabelecer uma interconexo entre as diversas teorias ou leituras da globalizao. Alis, no existe uma teoria unificada, abrangente e obrigatria sobre globalizao; ao contrrio, h um desacordo substancial sobre como melhor conceitu-la, como pensar sua dinmica causal e como caracterizar suas conseqncias estruturais (Held et allii, 2002: XXX). Held adverte que as generalizaes causais definitivas sobre os processos socio-histricos so problemticos, visto que a globalizao no se pode reduzir a um nico processo causal; ao contrrio, nela interferem fatores econmicos, polticos, militares, migratrios, culturais e ecolgicos (Idem: 544-545). 17 Os hiperglobalistas (Ohmae e Cox, entre outros) privilegiam a lgica econmica e celebram a emergncia de um mercado global e o princpio da competio como fatores do progresso. Questionam a concepo tradicional do Estado como unidade bsica da ordem mundial: o Estado se teria transformado numa arena fragmentada, permeada por redes transnacionais. O vnculo exclusivo entre territrio e poder poltico se rompe, e a soberania se teria transformado num exerccio compartilhado do poder. (Held et allii, 2002: XXXII-XXXIV). 18 Os cticos (Hirst e Thompson, entre outros) consideram a globalizao um mito, negando-a como estado final e irreversvel. Contestam a integrao econmica global, a reduo do papel do Estado e a diminuio das desigualdades entre Norte e Sul. Os autores argumentam que em outros momentos histricos a integrao dos mercados aconteceu com maior intensidade, como no final do sculo XIX. A internacionalizao da economia, causada pela interao de economias nacionais, depende do poder regulatrio dos governos, os quais asseguram em16

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fazem os cticos), este estudo considera que o Estado est sujeito aos constrangimentos da modernidade tecnolgica, da informao em tempo real, das redes, das agendas das organizaes internacionais e da economia de mercado, e sofre presso tendente liberalizao da economia (contrariamente ao que pensam os cticos). Nesta pesquisa, o Estado ser, por intermdio dos magistrados, um ator privilegiado no contexto de transio de uma economia fechada para uma economia aberta, como o caso do Brasil. Neste estudo admite-se que o Estado, avaliado a partir do universo dos magistrados, busca adaptar-se aos novos contextos do capitalismo globalizado para fazer face s demandas de eficincia e transparncia, a fim de conservar suas fontes e esferas de poder19 (poder regulatrio) no caso do Judicirio, o monoplio do juris dictio, que sofre concorrncia da multiplicao dos mecanismos de resoluo privada de controvrsias. A terceira tese, nomeada por Held de transformacionista, admite que os processos de globalizao no tm precedentes histricos; sociedades e governos esto tendo de ajustar-se a um mundo no qual no h mais distino entre internacional e domstico, externo e interno (Held et allii, 2002: XXXVII e ss.). Esta perspectiva mostra-se consistente com a abordagem adotada neste trabalho, ainda que a distino entre interno e internacional seja tnue. Apesar disso, o dualismo jurdico ainda permanece como referncia para os magistrados brasileiros, que concebem as ordens interna e internacional como dois campos estanques e compartimentalizados20. Segundo os transformacionistas, a globalizao um processo histrico de longo prazo, repleto de contradies e muito dependente de fatores conjunturais (Idem: XXXVIII). A existncia de um nico sistema global o capitalismo informacional como sistema hegemnico no tida como evidncia de uma convergncia global, ou do surgimento de uma nica sociedade mundial. Isso devido estratificao entre Estados, sociedades e comunidades, uns integrados nessa ordem global e outros marginalizados.

ltima instncia a liberalizao econmica. Acreditam que a globalizao um subproduto da ordem mundial inaugurada pelos Estados Unidos aps a Segunda Guerra (Held et allii, 2002: XXXV-XXXVII). 19 Held utiliza o conceito de esfera de poder para designar um contexto de interao ou meio institucional atravs do qual o poder d forma s capacidades das pessoas, moldando e limitando suas perspectivas de vida e sua participao efetiva na elaborao das decises pblicas. J por fonte de poder o autor entende os fatores que iniciam, mantm e transformam a produo e distribuio do poder dentro das esferas distintas, por meio da organizao e o controle de certas regras. O autor inclui, entre as esferas de poder, instituies regulatrias e legais (Held 1997: 212, 216 e ss). 20 verdade, por outro lado, que outra pesquisa demonstrou, a partir da jurisprudncia do STF e do STJ, que os magistrados admitem graus variados de permeabilidade entre o interno e o internacional grau que varia de acordo com a matria considerada, o tempo e o tribunal (Couto, 2001: 149).

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A interpretao transformacionista considera que a globalizao instaura uma nova diviso do trabalho no mais de cunho geogrfico, como centro-periferia ou norte-sul e proporciona uma crescente desterritorializao da atividade econmica, o espao econmico no mais coincidindo com as fronteiras territoriais do Estado (Idem). Os transformacionistas no questionam a supremacia jurdica efetiva dos Estados sobre seus territrios, mas consideram que h uma justaposio da expanso das jurisdies de governana institucional como a Organizao Mundial do Comrcio (Idem: XXXIX). Nesta pesquisa, ter-se- em conta a supremacia do Judicirio enquanto poder do Estado para ditar o direito vigente e formal no territrio do Estado. Essa interpretao considera ainda que a globalizao est transformando e reconstituindo e no erodindo o poder, as funes e a autoridade dos Estados (Idem: XXXVIII e 544). A globalizao contempornea se destaca pela magnitude e institucionalizao da regulamentao poltica nos planos econmico, poltico, cultural e ecolgico (Idem: 548). Por isso, no necessariamente limita o alcance da ao poltica e da iniciativa do Estado, ao contrrio do que acreditam os hiperglobalizadores pode ampli-la consideravelmente. Nesse contexto, Held prefere falar de alteraes na eficcia e na viabilidade do Estado, ao invs de eroso (Held, 1997: 127). A soberania somente se v erodida quando deslocada por formas de autoridade mais elevadas e independentes (Idem: 129). Segundo essa viso, o Estado moderno se encontra preso em uma extensa rede de interdependncia complexa, que requer cooperao em escala global (Idem: 48). Tal interdependncia implica vulnerabilidade e sensibilidade aos processos externos, comprometendo a independncia dos Estados. Com efeito, o crescimento das organizaes e coletividades internacionais e transnacionais alterou a forma e a dinmica do Estado (Held, 1997: 118). Considero a viso transformacionista a mais adequada para o exame dos impactos da globalizao sobre o Judicirio porque no concorda com a tese hiperglobalista do fim do Estadonao, com a eroso definitiva de seu poder, de suas funes e de sua autoridade territorial, e tambm rejeita a viso dos cticos de que a atual ordem seria mera reproduo de fenmenos j verificados em outros perodos histricos21. Ao contrrio, os transformacionistas admitem a reconstituio do poder do Estado e de suas funes justamente o que ocorre com o Judicirio.Para Held, entretanto, a literatura transformacionista est longe de oferecer uma explicao persuasiva ou coerente do Estado moderno, no sentido de que o incremento da interconexo global reduz a eficcia dos instrumentos polticos disposio dos governos, alterando os custos de diversas opes polticas (Held, 1997:21

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Essa viso no questiona a supremacia jurdica dos Estados, mas ao mesmo tempo considera a expanso das jurisdies de governana mundial. Por isso, o transformacionismo se adequa melhor anlise da influncia de organizaes internacionais como o Banco Mundial nas iniciativas de cooperao e estabelecimento de consensos sobre reforma judicial com vistas a uniformizar o padro de atuao dos Judicirios na globalizao da economia de mercado. A perspectiva transformacionista, por observar movimentos de cooperao e conflito, fundamenta as observaes de adeso e rejeio s atividades paranormativas (abaixo definidas) do Banco Mundial na tentativa de construir consensos em torno de valores norteadores dos Judicirios. Held interpreta a globalizao como um processo no linear, definindo-a como um

processo (ou conjunto de processos) que compreende uma transformao na organizao espacial das relaes sociais e transaes sociais, avaliada em funo de seu alcance, intensidade, velocidade e repercusso, e que gera fluxos e redes transcontinentais ou interregionais de atividade, de interao e de exerccio de poder. (Held et allii, 2002: XLIX)

O autor explica que fluxos se referem a movimentos de artefatos fsicos, pessoas, smbolos, signos e informao no espao e no tempo, enquanto redes se referem a interaes regulares ou que seguem uma pauta entre agentes independentes, centros de atividade ou locais de poder (Castells apud Held, 2002: XLIX). Portanto, a ao do Banco Mundial se desenvolve em um fluxo que engloba a disseminao de informao por maio de seus relatrios, documentos tcnicos, publicaes derivadas do encontro de operadores do direito de diversos continentes e tambm pelo apoio a redes de atividades. Admito que a circulao de valores se d tanto no plano dos fluxos quanto por meio das redes22.48, 118 e 124). Mais grave ainda, no reconhece a relevncia do Estado moderno, como idia e como complexo institucional, na definio dos rumos das polticas interna e internacional. Subestima-se, assim, o nvel de autonomia ainda existente em mos do Estado. 22 No curso desta investigao detectei a existncia de uma rede de atividades que j compartilha o pressuposto da necessidade de reforma do Judicirio na Amrica Latina: a Rede Latino-americana de Reformas Judiciais, criada em 1998, em Santiago, por ocasio da Cpula das Amricas. Os organismos que apoiam essa rede so o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Agncia Internacional dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a Oficina das Naes Unidas para Apoio a Projetos (UNOPS). Essa rede procura partilhar conhecimentos entre as faculdades de direito e as instituies de justia da sociedade civil, em coordenao com os Estados da Amrica Latina. Seu objetivo ser um ponto de unio e de conexo com outras redes onde os defensores das reformas judiciais de todos os pases que dela fazem parte possam compartilhar informao sobre o progresso das reformas e participar de discusses de problemas e

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David Held destaca quatro dimenses da globalizao: ao distncia (quando os atos dos agentes sociais de um pas tm conseqncias significativas para terceiros distantes); compresso espao-temporal (a comunicao eletrnica instantnea reduz as limitaes da distncia e do tempo na interao social, num processo de encolhimento do mundo, com a eroso de fronteiras e das barreiras geogrficas); interdependncia interna e externa acelerada (intensificao do entrelaamento entre as economias e sociedades nacionais, sobretudo no setor financeiro); e reordenao das relaes de poder inter-regionais (Held et allii, 2002: XLVIIXLIX). Held tambm distingue quatro tipos de impactos da globalizao (Idem: LI-LIII): 1) Decisrio: medida pela qual os custos e benefcios das escolhas polticas so influenciados por foras globais. A globalizao condiciona o resultado do processo decisrio, modificando as preferncias e escolhas dos decision-makers; 2) Institucional: as agendas das organizaes e coletividades refletem as mudanas na gama de escolhas causada pela globalizao; 3) Distributivo: distribuio de poder entre atores internacionais; e 4) Estrutural: mudana na organizao e no comportamento dos atores. Exemplo: a expanso das concepes ocidentais de Estado moderno e mercados capitalistas condicionaram ou foraram a adaptao de padres tradicionais de poder e autoridade. O autor nota que a acomodao dos atores internacionais e internos a tais impactos no automtica; a globalizao mediada, contestada e resistida por Estados e sociedades, que mostram graus variados de sensibilidade ou vulnerabilidade aos processos globais (Idem). Cabe, aqui, sublinhar de forma sucinta as relaes entre Estado23 e mercado24 no processo de globalizao. Os impactos decisrios, estruturais e institucionais no relacionamento entre essas

estratgias, oferecendo uma base de dados para iniciativas de reformas judiciais, compartilhando experincias e conhecimentos e organizando fruns de discusses. Essa Rede Latino-americana de Reformas Judiciais refora o argumento de que o Judicirio um tema de preocupao internacional e que a globalizao dilui a fronteira entre o interno e o internacional, fazendo com que os fluxos e redes de atividade sejam processos para fazer circular valores, idias e princpios (http://www.oas.org/Juridico/spanish/adjust26.htm, acesso em 22/1/2003). 23 Esta dissertao adota a definio abrangente de Kelsen: O Estado uma sociedade politicamente organizada porque uma comunidade constituda por uma ordem coercitiva O Estado descrito como o poder que se encontra por trs do Direito, que impe o Direito (Kelsen, 1990: 191). 24 Em seu sentido genrico, mercado um lugar pblico (fsico ou terico) de encontro de agentes econmicos para negociao da troca de bens e servios. A economia de mercado, prpria do sistema capitalista, distingue-se da economia dirigida pelo fato de que as decises econmicas e a determinao dos preos obedecem lei da oferta e da demanda, que resulta da ao livre dos interesses privados o laisser faire.

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duas instituies so resultantes fundamentais da globalizao, que tenderia a transferir parcelas de poder do Estado para o mercado25. Held considera que a globalizao fora homogeneizadora que reduz a diferena poltica e as capacidades dos Estados-nao para atuar de forma independente para a realizao de seus objetivos de poltica domstica e internacional (Held, 1997: 120). Mas, segundo o mesmo autor, os que pressagiam o fim do Estado pressupem, com excessiva rapidez, a eroso do poder estatal diante das presses da globalizao, deixando de reconhecer a persistente capacidade do aparelho estatal para moldar a direo da poltica interna e internacional. O grau de autonomia26 de que goza o Estado continua vlido em diversos aspectos. Alm disso, o impacto do processo global varia sob diferentes condies internacionais e nacionais (Idem: 124). ODonnell subinha que no sistema capitalista, sobretudo no contexto de globalizao, o Estado tem uma relao contraditria com o mercado (ODonnell, 2001: 106). Assinala, por outro lado, que uma efetiva legalidade estatal e polticas governamentais ss so componentes necessrios do bom funcionamento dos mercados. O Estado moderno, sobretudo democrtico, deve ser tambm um Estado de direito, isto , deve resguardar um conjunto de regras e de prticas que fazem efetivos e previsveis os direitos de seus habitantes, inclusive quando praticam atividades econmicas. Ademais, para o autor, os governos promovem o bem comum quando apoiam mercados mais geis e eficientes e mantm certos equilbrios macroeconmicos bsicos. Ao afirmar que Estado e mercado so entidades contraditrias, ODonnell entende que incumbe ao Estado, para o bem pblico, controlar e inclusive cancelar alguns efeitos do mercado com relao aos setores mais fracos ou vulnerveis de sua populao. Ora, de um lado, o segredo da eficincia do mercado , precisamente, premiar os fortes e eficientes e eliminar os mais dbeis; por outro lado, parte fundamental da legitimidade do Estado, no regime democrtico, proteger os mais fracos do excesso de autoridade privada (Idem: 107). ODonnell v, nisso, um paradoxo: ao mesmo tempo que tende a erodir a autoridade do Estado, a globalizao funciona mediante a expanso dos mercados, que, por sua vez, necessitam25

Por se concentrar na anlise dos valores que orientam o processo decisrio judicial, esta dissertao no aborda a questo das relaes entre Estado e mercado a partir de categorias econmicas, tais como o percentual da carga tributria sobre o PIB, o volume de emprego pblico em relao ao emprego geral ou a capacidade regulatria do Estado. Tampouco se discute a eficcia do Estado brasileiro, adotando classificaes como strong state, weak state ou failed state. 26 Segundo Held, autonomia a capacidade do Estado para articular e lograr de forma independente metas polticas. Soberania o controle supremo sobre uma sociedade e o poder de ltima instncia sobre um territrio (Held, 1997:130).

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de Estados dotados de autoridade para manter a eficcia do imprio da lei, incluindo um Poder Judicial eficiente e honesto (Idem: 107). Neste sentido, para esse autor, defender um Estado forte uma atitude que tambm favorece o mercado (market friendly). Isso mostra a dificuldade da tarefa de governo de buscar o ponto de equilbrio entre fomentar e controlar mltiplos mercados, reconhecendo que muitos deles escapam ao poder do Estado nacional, e tentar digerir algumas de suas conseqncias. O eixo central desse argumento , portanto, o jogo complexo e contraditrio entre, por um lado, o dinamismo da globalizao e, por outro, a necessidade de um Estado forte e amplo, firmado na cidadania e na democracia, capaz de sustentar um sistema legal justo e efetivo, de promover mercados e ao mesmo tempo domesticar suas conseqncias socialmente daninhas (Idem: 107-109). O Banco Mundial tentar resolver essa contradio colocando o Estado como parceiro dos mercados. O organismo recomenda que o Estado deve reformar-se em funo da globalizao dos mercados. Ao considerar a economia de mercado como pressuposto do desenvolvimento, prope a construo de instituies para mercados com o objetivo de construir um ambiente propcio aos investimentos e ao crescimento do setor privado.

2 - Governana, governo e o papel do Banco MundialO maior desafio para a governabilidade em escala mundial e nacional governar a globalizao, sublinha o Relatrio sobre Os princpios democrticos e a governabilidade da Cpula Regional para o Desenvolvimento Poltico e os princpios democrticos (UNESCO, 1997: 78-79). Segundo o documento, a ausncia do domnio da humanidade sobre questes globais como o aumento dos intercmbios mundiais, a abertura aos fluxos de comrcio e investimentos, o papel das novas tecnologias, a multipolarizao do sistema de produo, o meio-ambiente, a segurana, as migraes, a pobreza e a excluso pode fazer com que a globalizao se transforme no principal fator de ingovernabilidade e de desumanizao do mundo. Para evitar isso, o Relatrio prope a constituio de um sistema auto-regulado e uma ao concertada em valores globais. Governar a globalizao requer um Estado vigoroso, capaz de inovar, adaptar-se e aprender, orientando estrategicamente a atividade econmica (Idem, p. 83). Segundo o Consenso de Braslia, governar a globalizao responsabilidade compartilhada por pases do Norte e do Sul, governos, organizaes no-governamentais e organizaes

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internacionais (Idem: 232). Para ser vivel, a governana necessita do envolvimento direto do Executivo, Legislativo e Judicirio para os Estados que adotam o sistema de separao de poderes. Cabe, aqui, conceituar governana. O uso preciso do termo traz dificuldades por ser um conceito que abarca muitas vises27, e pela dificuldade engendrada pela origem histrica do termo. De fato, como assinala Milani, o debate sobre reestruturao da governana mundial est estreitamente ligado ao contexto ideolgico da globalizao e a seu impacto sobre a renovao dos modelos de desenvolvimento (Milani, 2003). Esse debate serve, segundo o autor, a objetivos estratgicos de expanso e regulao do mercado global freqentemente no enunciados. Essa noo estratgica acompanhada de adjetivos como boa ou democrtica. nessa perspectiva que as instituies multilaterais de gesto econmica global adotam programas que aprofundam o controle das foras do mercado global sobre a vida econmica nacional, como agentes da governana global para muitos, como agentes do capital global e dos pases do G7. O termo governana tomado emprestado do mundo das corporaes privadas para ser aplicado ao mundo do poder, das agncias nacionais e das organizaes internacionais. Originado na dcada de 1930 e discutido durante a dcada de 197028, o vocbulo governance ressurge, no final dos anos 80, dessa vez empregado pelo Banco Mundial. No se tratava mais de indicar os limites da ao dos Estados desenvolvidos em atender s demandas de suas sociedades, mas de responsabilizar os Estados em desenvolvimento pela incompetncia institucional. Para corrigi-la, seriam necessrios programas de ajuste estrutural, ou seja, um conjunto de reformas macroeconmicas e setoriais julgadas indispensveis para a expanso e abertura dos mercadosCarlos Milani aponta seis vises distintas de governana (Milani, 2003): 1) enquanto Estado mnimo, referindo-se a uma nova forma de interveno pblica e ao papel dos mercados; 2) corporativa (corporate governance), importado do mundo empresarial, origina-se das teorias de management, acentuando a necessidade de eficcia e de accountability na gesto dos bens pblicos; 3) enquanto new public management, que prega novos mecanismos institucionais em economia baseados nos mtodos de gesto do setor privado; 4) boa governana, utilizada originalmente pelo Banco Mundial com referncia a suas polticas de emprstimos, que impem a eficcia dos servios pblicos, a privatizao das empresas estatais, o rigor oramentrio e a descentralizao administrativa; 5) enquanto sistema sociociberntico, entendido como o padro de comportamento de um sistema sociopoltico, como resultado da interao dos atores; baseia-se na dinmica de redes e na complexidade dos atores; nesse plano que Rosenau faz a distino entre governana (baseada em objetivos comuns) e governo (baseado em autoridade formal); e 6) enquanto conjunto de redes organizadas, que envolvem atores diversificados como Estados, ONGs, redes profissionais e cientficas e meios de comunicao. 28 Em 1937, Ronald Coase publicou artigo intitulado The Nature of the Firm, cujas idias foram retomadas em1970 por Oliver Wiliamson. A governana designaria dispositivos operacionalizados pelas empresas para conduzir coordenaes eficazes tanto em termos de protocolos, redes e hierarquias internas quanto em relao a contratos e a normas. Em 1975, o tema da governabilidade das democracias foi objeto de um relatrio da Comisso Trilateral preparado por Crozier, Huntington e Watanuki, que tratou de problemas na Europa Ocidental, no Japo e nos Estados Unidos causados pelo contraste entre o aumento das demandas sociais e a limitao de recursos do Estado (Milani, 2003).27

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nacionais. Aspectos importantes so a tecnicizao dos modelos e a reforma do Estado. Nessa lgica, conforme o relatrio do Banco Mundial de 1994, a razo dos fracassos dos programas de ajuste estrutural no seria devida ao do sistema de Bretton Woods, mas m governana dos Estados em desenvolvimento (Milani, 2003). A noo de governana boa ou saudvel (sound), tal como empregada pelo Banco Mundial, implica a viabilizao do bom funcionamento do mercado, a proteo propriedade privada e segurana dos investimentos, a abertura comercial e a livre concorrncia29. O Banco Mundial passa a ter crescente influncia nos pases em desenvolvimento por meio de estmulos que induzem mudanas de poltica econmica, recompensando os que aplicam reformas e punindo os que se recusam a aplic-las. Outorgam emprstimos condicionados para forar mudanas nas polticas econmicas dos pases devedores. Entretanto, conforme assinalarei, no apenas por condicionalidades que atua o Banco Mundial, e seus objetivos no se limitam modificao das polticas econmicas: o organismo tambm atua por meio de atividades paranormativas e busca modificar as prticas judicirias. nesse contexto que surgem as chamadas reformas de segunda gerao. As de primeira foram os ajustes estruturais, ao passo que as de segunda so a reforma do Estado com vistas boa governana. Surge, assim, uma srie de programas na Amrica Latina, frica e sia que enfatizam temas como a reforma poltico-institucional, a transparncia, a construo de um Estado eficiente e sem corrupo e os controles do sistema democrtico (accountability) nos planos fiscal, poltico e judicial. Rosenau nota que a influncia do Ocidente na construo da governana global invadiu no s as relaes entre os Estados, mas tambm os sistemas jurdicos nacionais (Rosenau, 2000: 135), especialmente a partir do trabalho de organismos internacionais como o Banco Mundial. Nesta dissertao, ser adotado o conceito abrangente de governana, como o conjunto de funes que precisam ser executadas para dar viabilidade a qualquer sistema humano, atividades apoiadas em objetivos comuns. Como sublinha Rosenau, a governana tem um propsito consciente, de natureza poltica ou econmica, por exemplo, embora no necessariamente tenha origem em diretrizes governamentais formalmente prescritas (Rosenau, 2000: 14-16).

O Presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, prope que os pases sejam avaliados pela qualidade de sua governana, em particular pelo desempenho do sistema judicial, dos procedimentos de soluo de conflitos, da rede de segurana social, do imprio da lei e do sistema operacional representado pelas polticas econmicas (Friedman, 1999:185-186).

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Ordem mundial, como visto acima, consiste para Rosenau nos entendimentos rotineiros dos quais flui a poltica mundial, e sua anttese o caos; j a governana corresponde a ordem mais intencionalidade, que manifestada atravs de instituies e normas (Idem: 16-17). Por fora dessa intencionalidade, a governana modela a natureza da ordem mundial; ao mesmo tempo, claro, a existncia de uma ordem pr-condio da governana. Rosenau assinala que a governana est associada a quatro aspectos: funes, regulamentao, poder e valores (Idem: 18). Conceber a governana em termos funcionais significa enfatizar as tarefas que precisam ser executadas para manter a vida social na ordem prevalecente: so funes essenciais como fluxos de comrcio ou existncia de mercados. Associar governana capacidade de regulamentao das atividades sociais para que, conforme diz Rosenau, os entendimentos sociais sejam rotinizados: por exemplo, quando os fluxos de comrcio ou a manuteno dos mercados deixam de ser mais ou menos espontneos e passam a ser normatizados (contratos, tratados). Por fim, a governana tambm interpretada como forma de distribuio de valores, que tenderiam tambm, por exemplo, a auxiliar a expanso dos mercados, como proteo propriedade privada e o respeito aos contratos. O conceito de valor ser empregado em seu sentido antropolgico e sociolgico: normas amplas que servem para guiar e canalizar as atividades organizadas dos membros de uma sociedade; padres culturais (sistemas simblicos) compartilhados por meio dos quais se compara ou se julga uma relao moral, esttica ou cognitiva entre objetos. A definio comporta um elemento de normatividade e influencia a seleo de modos, meios e fins da conduta humana, que se torna objeto de valorao (aceitao, rejeio, elogio, censura) (Silva, Benedicto, 1987: 1288). Uma leitura sobre os valores do mercado dada por Robert Zoellick, representante comercial dos Estados Unidos (USTR), que afirma que comrcio significa mais do que eficincia econmica; reflete um sistema de valores como abertura, comrcio pacfico, oportunidade, incluso, integrao, ganhos mtuos por meio do intercmbio, liberdade de escolha, apreo pelas diferenas, governabilidade por meio da aceitao de regras e esperana de melhores condies para os povos e territrios30. A assimetria de poder internacional tem como um de seus efeitos a criao de valores hegemnicos, defendidos pelos Estados que concentram maior parcela de poder econmico, cultural e militar os Estados que fazem parte da OCDE, chamados pases ricos ou30

Folha de So Paulo, 11/11/2001.

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desenvolvidos. Valores nascidos no seio dessas sociedades tendem a se estender a todo o mundo, tornando-se globalizados: liberdade, abertura ao exterior, competio, respeito propriedade privada, etc. A aceitao desses valores pelos Estados em desenvolvimento (ou economias emergentes) ocorre em funo da busca de viabilizao de sua insero no sistema internacional. Segundo Vigevani (1999: 31)31, a emergncia de regimes internacionais como os de direitos humanos e de comrcio internacional so o resultado da hegemonia de valores universais, que se apresentam como bens morais de conotao positiva, correspondendo a anseios humanos historicamente construdos. So tambm, acrescenta o autor, resultado do ativismo de instituies internacionais (como o Banco Mundial).

3 - O Banco Mundial como agente da governana globalComo situar, a partir desses pressupostos tericos sobre ordem e governana, o Banco Mundial32? Este organismo um ator da ordem mundial que concorre para o estabelecimento de arranjos fundamentais que dizem respeito a atividades de cooperao33. Como ator da ordem, contribui para a governana global, sobretudo em matria econmica.

O autor assinala que o valor do livre comrcio se universalizou, mas no o do desenvolvimento (Idem: 33). O Banco Mundial uma organizao especializada do sistema das Naes Unidas. As relaes entre o Banco Mundial e as Naes Unidas so regidas por um acordo aprovado pelo Conselho de Governadores do Banco Mundial e pela Assemblia-Geral da ONU (1947), em virtude do qual o Banco adquiriu o carter de organismo especializado das Naes Unidas. Sua existncia, entretanto, anterior da ONU, pois surgiu na Conferncia de Bretton Woods, em 1944, que tambm criou o Fundo Monetrio Internacional. Essas duas instituies tinham objetivos conexos: o FMI se ocuparia de temas monetrios e o Banco Mundial, de temas relativos ao desenvolvimento econmico. 33 A misso inicial do Banco Mundial era favorecer a reconstruo dos pases destrudos pela guerra. Em seguida, orientou sua ao para a assistncia aos pases em desenvolvimento. Lavalle nota que o fato de o estatuto do Banco somente conferir de forma explcita instituio misses de natureza rigorosamente financeira no a impediu de ultrapassar largamente esse quadro estreito e exercer atividades de promoo de desenvolvimento. Sustenta Lavalle que o alargamento dessas funes reflete a adaptao do Banco a formas novas de cooperao internacional no existentes poca de sua fundao (Lavalle:1972: 21, 27, 30). Em direito internacional, Pierre-Marie Dupuy descreve esse fenmeno como phnomnes de rtroaction. Ele define o fenmeno da seguinte maneira: Les organisations internationales sont pousses par la dynamique de leur fonctionnement saffranchir de la tutelle de leurs membres constitutifs. On observe ainsi en pratique des phnomnes frquents de rtroaction, selon lesquels, constitues par les tats pour raliser ce que ces derniers poursuivent, les institutions, par le fait mme de leur existence et de leur fonctionnement mais aussi de laffirmation dune personalit juridique autonome, conditionnent leur tour le comportement de leurs crateurs traduo: As organizaes internacionais so levadas, pela dinmica de seu funcionamento, a se libertar da tutela de seus membros constitutivos. Observam-se na prtica, assim, fenmenos freqentes de retroao segundo os quais, constitudos pelos Estados para realizar objetivos por estes desejados, as instituies, pelo prprio fato de sua existncia e de seu funcionamento, mas tambm pela afirmao de sua personalidade jurdica autnoma, condicionam por seu turno o comportamento de seus criadores (Dupuy, 1995: 109).32

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O Banco Mundial34 nasceu com uma ordem que se constituiu no ps Segunda Guerra Mundial. Dcadas se passaram, com novas ordens Guerra Fria, ps-Guerra Fria e vises poltico-econmicas desenvolvimentismo, neoliberalismo etc. Nesse processo, a atuao do Banco teve que adaptar-se s novas formas de cooperao, principalmente para adequar-se ao novo contexto de globalizao, dentro de seu papel de agncia de governana (Camargo, 1999: 3-13) em uma ordem mundial em transformao. Nos anos recentes, as idias hegemnicas sobre a conduo econmica dos pases baseiam-se no projeto neoliberal consagrado no Consenso de Washington de 1990 (Corbaln, 2002: 14). Esse consenso se baseia em dez reas prioritrias: disciplina fiscal, controle dos gastos pblicos, reforma tributria, liberalizao financeira, regime cambial livre, liberalizao comercial, abertura ao investimento direto estrangeiro, privatizaes, desregulao e defesa da propriedade (AJURIS, 2001). O Consenso de Washington privilegia a expanso dos mercados globais. Segundo Friedman, quando o pas enverga a camisa de fora dourada35, duas coisas tendem a acontecer: a economia cresce e a poltica encolhe medida que a globalizao gera a integrao dos mercados (Friedman, 1999: 125). O Banco Mundial, por conseguinte, como agncia de governana dentro da ordem mundial, busca contribuir para a expanso dos mercados, trazendo discusso como o Estado deve adequar-se s mudanas: tanto em seu relatrio de 1997 quanto no de 2002, as instituies so vistas em funo do mercado.

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O ato constitutivo e a base jurdica do Banco Mundial esto firmados nos Articles of Agreement elaborado em Bretton Woods (1944). Os delegados quela Conferncia se limitaram a adotar o ato e a autenticar o texto assinando a Ata Final da Conferncia, qual os Acordos relativos ao FMI e ao Banco Mundial figuravam como anexos. Esses e outros detalhes de aceitao (no-ratificao) refletem a preocupao da delegao norte-americana de considerar os atos constitutivos no como tratados, mas como Agreements, ou seja, acordos concludos por governos e no por Estados. Segundo a doutrina jurdica norte-americana, esses acordos, diferentemente dos tratados celebrados por Estados, no necessitam do consentimento do Senado. 35 Friedman usa a metfora da camisa de fora dourada para designar regras que comearam a popularizar-se na poca Thatcher-Reagan: transformar o setor privado no principal motor do crescimento econmico; manter baixas as taxas de inflao e preservar a estabilidade dos preos; encolher a burocracia estatal; permanecer to prximo quanto possvel do equilbrio oramentrio, seno do supervit; eliminar e reduzir tarifas sobre as importaes; remover as restries aos investimentos estrangeiros; libertar-se de quotas e monoplios domsticos; aumentar as exportaes; privatizar os setores e as empresas estatais de servios pblicos; desregulamentar os mercados de capitais; tornar a moeda conversvel; abrir os setores de atividades, o mercado acionrio e os mercados de ttulos propriedade e aos investimentos estrangeiros diretos; liberar a economia e promover o mximo de cooperao interna; eliminar a corrupo governamental, os subsdios e o suborno; abrir os sistemas bancrio e de telecomunicaes propriedade privada e concorrncia; e assegurar aos cidados o direito de escolha entre um conjunto de esquemas previdncirios concorrentes, inclusive fundos mtuos de origem externa. Friedman, autor hiperglobalista, afirma que a idia que d impulso globalizao o capitalismo de livre mercado, e o significado de globalizao a difuso desse sistema econmico a todos os pases do mundo (Friedman, 1999: 124-125).

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Rosenau observa que as incertezas na ordem mundial geram preocupaes normativas ligadas governana (Rosenau 2000: 23). Considero que essas preocupaes esto presentes na agenda do Banco Mundial, quando este faz recomendaes para a reforma do Judicirio em seus relatrios de desenvolvimento mundial (1997 e 2002) e no documento 319 S (1997). O objetivo a atingir um padro timo para o Judicirio em geral, baseado na adeso a valores instrumentais para a expanso do mercado como motor do desenvolvimento. Esclarece Rosenau que ao se deslocar do campo das avaliaes empiricamente sadias para o das recomendaes penetra-se no plano das normas, das ordens que so institudas ou reforadas para valorizar ou reduzir o estabelecimento de valores especficos (Rosenau, 2000: 24-25). O Banco Mundial faz esse caminho da avaliao emprica s recomendaes normativas36. A ao normativa do Banco Mundial, a rigor, diferente da realizada por outras instituies de governana global, pois no dispe de mecanismos de coero. Tomando emprestado um conceito do direito internacional, possvel afirmar que o Banco Mundial desenvolve uma atividade paranormativa das organizaes internacionais, assim definida por Dupuy:

Gnralement mconnues para la doctrine, parce quelles ne correspondent pas une catgorie juridique homogne, mais dotes en pratique dune grande importance pour lharmonisation progressive des comportements, et surtout, des lgislations nationales des tats membres dans les domaines techniques les plus varis, les activits paranormatives des organisations internationales, notamment des institutions spcialises des Nations Unies, se traduisent par une production aussi abondante que varie: standards de refrences, nomenclatures, lignes directrices, lgislations types, codes divers, mis la disposition des tats titre purement indicatif, soit par voie de

A organizao tem desenvolvido estudos sobre os Judicirios na Amrica Latina e em outras partes do mundo, realizando avaliaes empricas sobre problemas relativos a acesso, eficcia, transparncia e credibilidade da instituio. Alguns desses estudos sobre os seguintes pases so relativos a reforma do Judicirio: El Salvador, Mxico, Peru, Repblica Dominicana, Colombia, Bolvia, Trinidad e Tobago, Venezuela, Equador, Argentina, Filipinas, Monglia, Crocia, Bangladesh, Camboja, Armnia, Sri-Lanka, Georgia, Marrocos, Albnia, Imen, Cazaquisto, Serra Leoa, Polnia. Fonte: http://www-wds.worldbank.org. Link: Documents and Reports, acesso em 22/11/2002. Os seguintes estudos fundamentam recomendaes contidas nos documentos analisados neste estudo: Relatrios de Desenvolvimento Mundial de 1997 (O Estado num Mundo em Transformao) e de 2002 (Instituies para os Mercados) e o Documento Tcnico 319S (O Setor Judicial na Amrica Latina e Caribe: Elementos de Reforma) documentos a serem analisados no prximo captulo.

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rsolutions, soit mme simplement par publications directes manant du secretariat des organizations. 37(Dupuy:1995: 146)

Essa definio nos auxilia a compreender como o Banco procura interferir na ordem normativa mundial, tentando estabelecer um padro para os Judicirios nacionais. Se o Banco no atua de maneira mais direta como outras instituies do sistema das Naes Unidas (OMS, OIT, ou FAO), que, por sua autoridade tcnica, tm muitas de suas recomendaes incorporadas a legislaes nacionais, procura padronizar as concepes de Judicirio e de sistemas de justia de forma indireta, meramente indicativa, como diz Dupuy. As atividades paranormativas buscam a harmonizao de comportamentos dos atores sociais. Essa harmonizao de comportamentos no se daria pela adeso a uma norma, cujo descumprimento acarretaria uma sano, mas a valores ou a idias, que moldam os contextos mentais, criando consensos para que se tornem um entendimento rotineiro, como diz Rosenau. O conceito de atividade paranormativa de Dupuy menciona como instrumento publicaes diretas. As publicaes a respeito do Judicirio selecionadas para esta pesquisa so significativas justamente por se basearem em estudos empricos sobre sistemas judiciais de diversos pases-alvo da ao do Banco Mundial, exemplos ilustrativos que fundamentam as recomendaes dos seus documentos. A atividade paranormativa do Banco Mundial busca influenciar o universo dos juzes. Sob o critrio da localizao poltica (Gounelle, 1993: 1), os magistrados so atores internos; porm, por suas decises (sentenas ou acrdos), podem influenciar outros atores no contexto mundial (pela fora da ao distncia e da compresso espao-temporal), tornando-se, portanto, relevantes para as relaes internacionais. Como visto acima, Rosenau assinala trs nveis de atividades de sustento da ordem mundial: o ideacional ou intersubjetivo, o objetivo ou comportamental e o poltico (Rosenau 2000: 28-29, 31 e 33). Combinando essa viso com o conceito de atividade paranormativa, considero que37

Traduo: Geralmente desconhecidas pela doutrina, porque no correspondem a uma categoria jurdica homognea, mas na prtica dotada de grande importncia para a harmonizao progressiva dos comportamentos, e sobretudo das legislaes nacionais dos Estados membros nos domnios tcnicos mais variados, as atividades paranormativas das organizaes internacionais, principalmente das instituies especializadas das Naes Unidas, se traduzem por uma produo to abundante quanto variada: uniformizao de referncias, nomenclaturas, linhas diretoras, legislaes-tipo, cdigos diversos, colocados disposio dos Estados a ttulo puramente indicativo, seja pela via de resolues, seja mesmo simplesmente por publicaes diretas provenientes do secretariado das organizaes.

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o Banco Mundial, atravs de suas recomendaes, atua no nvel ideacional ou intersubjetivo no sentido de unificar a idia de que os Judicirios nacionais precisam modernizar-se para serem atores coadjuvantes da expanso dos mercados globais. Essa modernizao estaria calcada em valores como acessibilidade, credibilidade, eficincia, respeito aos contratos, independncia, previsibilidade, proteo propriedade privada e transparncia. Como se daria essa atividade do Banco? Pelo patrocnio sistemtico de encontros para a formao de consensos com os operadores dos sistemas judiciais nacionais (em todos os nveis hierrquicos do aparelho judicial, inclusive advogados e pesquisadores dos sistemas de justia) e pela publicao de documentos tcnicos resultantes desses encontros38. No nvel objetivo ou comportamental, o Banco age para que o sistema de valores voltados para a modernizao do Judicirio seja adotado pela rotina das burocracias judiciais nacionais e pelos juzes. Um exemplo da implementao desses valores na rotina a modernizao da administrao do processo com novas tecnologias, simplificao de procedimentos. Outros, como a previsibilidade das decises, proteo propriedade privada e respeito aos contratos, se concretizam no processo decisrio dos juzes pelas sentenas ou acrdos. J o nvel poltico ou agregado de governana se refere implementao de polticas inerentes aos dois primeiros nveis. A reforma do Judicirio claramente uma poltica de governana do Banco Mundial, porque sistematiza a formao de consensos no mbito dos Judicirios (nvel ideacional) e estimula a modernizao da rotina das burocracias judiciais (nvel comportamental). Isso se traduz, por exemplo, nos projetos de reforma judicial em diversos pases da Amrica Latina e em outras regies por meio de emprstimos e assistncia tcnica em parceria com os governos nacionais. O Banco admite no seu documento tcnico 319 S a necessidade de coerncia da linha diretiva da poltica de reforma dos Judicirios:

es importante que el Banco desarrolle un enfoque coherente hacia los proyectos del sector judicial dado que los gobiernos de todo el mundo le estn solicitando cada vez ms ayuda en relacin al proceso de reforma judicial. (Dakolias, 1997: 75)

Alguns exemplos de encontros so: The World Bank Conference on Judicial Reform in Latin America and Caribbean (Washington, 1994), The Second Ibero-American Summit of Supreme Courts and Tribunals of Justice Judicial Challenges in the New Millenium (Caracas, 1999) e a Conferncia Comprehensive legal and judicial development and equitable society in the 21 st. Century (Washington, 2000).

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Tanto governana quanto governo referem-se, para Rosenau, a um comportamento visando a um objetivo, a atividades orientadas para metas, a sistemas de ordenao (Rosenau 2000: 15). A diferena entre os dois conceitos se baseia justamente em que o governo est sustentado por uma autoridade formal (Estado) e pelo poder de polcia que garante a implementao das polticas devidamente institudas39. Governana , como nota Rosenau, fenmeno mais amplo do que governo (Rosenau, 2000: 14-16). Quando o sistema poltico ou econmico produz organizaes e instituies incumbidas de maneira formal e explcita de exercer autoridade pblica de maneira centralizada, passa-se do plano amplo da governana para o plano mais estrito do governo. possvel haver governana sem governo (ttulo do livro de Rosenau): pode haver funes sociais exercidas na ausncia de instituies, mecanismos regulatrios ou endosso de uma autoridade formal40. O autor vai mais longe: em algumas situaes, seria prefervel ter governana sem governo41. Os documentos do Banco Mundial usam os termos Governo e Estado em alguns momentos de maneira intercambivel: Governo como aspecto do Estado, no sentido corrente de Executivo ou Administrao, ou no sentido de todas as instituies imbudas na tarefa de governar, o que inclui tambm o Legislativo e o Judicirio noo anglo-saxnica de government, referindo-se ao conjunto das instituies e valores do jogo poltico. O Banco, quando recomenda que o Governo deve cooperar com os mercados e propiciar um ambiente estvel e previsvel para os negcios, adota o entendimento anglo-saxo. Conforme James Wolfensohn, Presidente do Banco Mundial, no prefcio de Instituciones para los mercados,

sem instituies formais que garantam os ttulos de propriedade da terra ou sem instituies judiciais slidas que obriguem a cumprir os contratos, os empresriosSegundo Bobbio, existem duas compreenses sobre o contedo do termo governo: i) conjunto de pessoas que exercem o poder poltico, determinando assim a orientao poltica de uma sociedade; ii) complexo dos rgos que institucionalmente exercem o poder. Nesta acepo, o Governo constitui um aspecto do Estado. Correntemente, usamos o termo Governo no sentido americano de administration (Bobbio et alli, 1989:553). 40 Entre as funes necessrias, Rosenau cita interagir com o mundo exterior, evitar conflitos internos, alocar recursos para o bem-estar e definir objetivos e mtodos. O autor nota deslocamentos nos centros de autoridade: uma parte da autoridade dos governos foi transferida para entidades subnacionais. Como resultado, certas funes de governana esto sendo executadas mediante atividades que no tm origem nos governos. 41 Governana, para Rosenau, a anttese da anarquia e do caos; no contexto da globalizao, a autoridade sofre deslocamento contnuo e escapa do governo, tanto externamente, no sentido da supranacionalidade, quanto internamente, em benefcio de grupos subnacionais. A existncia de governana sem governo significa a existncia de funes que viabilizem a vida social mesmo na ausncia de instituies centralizadas. Por causa disso, arremata: levando em conta a natureza nociva de alguns governos, poder-se- mesmo argumentar que a governana sem um governo de certo modo prefervel (Rosenau 2000: 12-16).39

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consideram que muitas atividades resultaram demasiadamente arriscadas. (Banco Mundial, 2002: III)

4 - Judicirio e juzes no contexto da globalizaoUma das instituies do governo que ala elevado grau de importncia na perspectiva do Banco Mundial, em um contexto de globalizao econmica, o Judicirio em particular, a ao de seus membros, os juzes, vistos como guardies dos direitos de propriedade e do cumprimento dos contratos, pilares da expanso dos mercados globais. Vale, aqui, ressaltar que o Banco Mundial adota o conceito anglo-saxnico de