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LUISA JUN NAGASHIMA OBSERVAÇÕES DO UNIVERSO INFANTIL: as crianças olham com as mãos, ouvem com os olhos... Monografia apresentado ao final do Curso de Pós-Graduação Lato sensu em “Educação Lúdica em contextos escolares, não formais e corporativos, no Instituto Superior de Educação Vera Cruz, como requisito parcial para obtenção de Certificado de Conclusão. ORIENTADOR: PROFª. DRª. ADRIANA FRIEDMANN

TESE LUISA NAGASHIMA

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LUISA JUN NAGASHIMA ORIENTADOR: PROFª. DRª. ADRIANA FRIEDMANN Monografia apresentado ao final do Curso de Pós-Graduação Lato sensu em “Educação Lúdica em contextos escolares, não formais e corporativos, no Instituto Superior de Educação Vera Cruz, como requisito parcial para obtenção de Certificado de Conclusão. as crianças olham com as mãos, ouvem com os olhos...

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LUISA JUN NAGASHIMA

OBSERVAÇÕES DO UNIVERSO INFANTIL:

as crianças olham com as mãos, ouvem com os olhos...

Monografia apresentado ao final do Curso de Pós-Graduação Lato sensu em “Educação Lúdica em contextos escolares, não formais e corporativos, no Instituto Superior de Educação Vera Cruz, como requisito parcial para obtenção de Certificado de Conclusão.

ORIENTADOR: PROFª. DRª. ADRIANA FRIEDMANN

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Autor: LUISA JUN NAGASHIMA Orientador: PROFª. DRª. ADRIANA FRIEDMANN Título da monografia: Observações do universo infantil

TERMO DE APROVAÇÃO Esta monografia foi considerada suficiente para a obtenção do Certificado de Conclusão da Pós-Graduação Latu Senso, em “Educação Lúdica em contextos escolares, não formais e corporativos” do Instituto Superior de Educação Vera Cruz de São Paulo. O examinado foi aprovado com a nota ___________________ .

BANCA EXAMINADORA NOME ASSINATURA

1.

2.

3.

São Paulo, ______ de __________________ de 2010.

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AGRADECIMENTOS

Eu sempre achei muito difícil escrever os agradecimentos... Não por falta do que

dizer ou pensar, mas por querer agradecer a muitas pessoas que de alguma maneira

foram importantes para mim e que guardo com enorme carinho em minhas

lembranças... Aqui vai uma tentativa de demonstrar a minha gratidão... Tenho todos

vocês aqui “dentro”!!!

COM AMOR

MEU PAI MIKIO MINHA MÃE NORIKO

MINHA IRMÃ IRENE MAMÃE, MEU IRMÃO JULINHO KEN,

MEU AMOR ALEX, CUNHADO JOÃO, SOBRINHO LINDO MAX, CI, KÁ,

MÁ, LU, AMIGAS DO QUINTETO FANTÁSTICO, ROSANE RODRIGUES,

ANA LEITE, ADRI FRIEDMANN, ZÉ E LÚ GRILO, REGINA E KIKA,

QUERIDOS AMIGOS LÚDICOS, AS CRIANÇAS, COM QUEM

ESTOU SEMPRE APRENDENDO, ELI, MÁ, MÁ, MÁ, TÊ,

ROSE, ADRI, NATI, SANDRINHA, SARA, RÔ, LU,

MÁRCIO, RI, JOÃO, ODILA, MAFALDA...

AGRADEÇO DE TODO O CORAÇÃO

PELA PACIÊNCIA, CARINHO,

APOIO, INSPIRAÇÃO,

COMPREENSÃO

AMOR

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS ................................................................................. 05 RESUMO .................................................................................................... 06 APRESENTAÇÃO ..................................................................................... 07 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................... 09 2. REVISÃO DE LITERATURA .............................................................. 11 2.1. Os encantos de ser criança .............................................................. 11 2.2. Os encantos da observação e do olhar ............................................ 13 2.3. Os encantos da exploração e da brincadeira ................................... 15 3. METODOLOGIA .................................................................................. 17 3.1. Características do grupo observado ................................................ 17 3.2. Características das aulas observadas ............................................... 17 3.3. Como as observações foram registradas ......................................... 18 3.4. Local ............................................................................................... 18 3.5. Sobre os circuitos ........................................................................... 19 4. REFLEXÕES ......................................................................................... 20 4.1. “Diário de bordo” – o processo inicial ........................................... 20 4.1.1. Exploração do bambolê ........................................................ 21 4.1.2. Exploração da corda ............................................................. 21 4.1.3. Exploração do pneu .............................................................. 24 4.2. E agora, com todos os materiais? ................................................... 26 4.2.1. Primeiras impressões ............................................................ 26 4.2.2. Construção e desconstrução de uma brincadeira .................. 30 4.2.3. O cone ................................................................................... 33 4.2.4. Brincadeiras “estrangeiras” .................................................. 35 4.2.5. “Teoria” da autopreservação do corpo ................................. 36 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 37 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................. 39

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 – Pátio ...................................................................................... 19 FIGURA 02 – Circuito do gigante ............................................................... 20 FIGURA 03 – Tarzan .................................................................................. 22 FIGURA 04 – Escalando montanhas .......................................................... 23 FIGURA 05 – Lago com monstro ............................................................... 24 FIGURA 06 – Barril de pneus ..................................................................... 25 FIGURA 07 – Batucando ............................................................................ 27 FIGURA 08 – Boa idéia? ............................................................................ 28 FIGURA 09 – Pneus recheados ................................................................... 29 FIGURA 10 – Mais pneus recheados .......................................................... 30 FIGURA 11 – “Campo” da segunda aula .................................................... 31 FIGURA 12 – “Campo” da terceira aula, pronto para brincar! ................... 33 FIGURA 13 – Concentração ....................................................................... 34 FIGURA 14 – Muitas descobertas com o cone ........................................... 35

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RESUMO

Este trabalho foi escrito com a intenção de mostrar um pouco do que

aprendi com as crianças em sua espontaneidade e curiosidade. Para tentar

compreender um pouco mais do mundo infantil com o qual estava lidando, observei

crianças de 4 e 5 anos em uma escola particular da cidade de Osasco, onde atuo

como professora de educação física. As observações foram realizadas durante aulas

em que a proposta era a exploração de materiais como corda, bambolê e pneu.

Através das observações foi possível investigar as peculiaridades dessas crianças,

suas ações, reações e diferentes formas de expressão, além de verificar a importância

da observação para uma maior compreensão do universo lúdico infantil.

ABSTRACT

This study was written with the objective of showing what I have learnt with

children and their spontaneity and curiosity. To understand a little bit more of the

child’s universe that I was dealing with, I observed children from 4 to 5 years old of

a private school in the city of Osasco, where I work as a Physical Education teacher.

The observations were made during classes in which the proposal was to explore

materials such as ropes, hoops and tires. It was possible to investigate the

peculiarities of those children, their actions, reactions, different forms of expression

and also to verify the importance of observation to a better understanding of the

child’s playful universe.

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APRESENTAÇÃO

Caminhos tortuosos. Assim definiria minha vida e descobri que gosto que

seja desse jeito, nesse vai e vem que desde adolescente me fez buscar o que eu

realmente gostava e admirava. Quando precisei decidir o que iria estudar na

faculdade, eu me perdi na psicologia, para me encontrar na educação física, onde,

novamente, perdi o rumo e encontrei a educação. Comecei a me localizar melhor

entre a escola e as crianças, mas faltava encontrar pessoas, livros e um espaço para

reflexões mais aprofundadas sobre o que eu estava vivendo na educação. Foi quando

encontrei a Educação Lúdica. Foram meses de estudo, discussões, encontro com

pessoas brilhantes, novas redes de conhecimento e... Eu me perdi de novo! Sobre o

que iria escrever na monografia? Sobre o que estava vivendo, é claro! Mas como

fazer isso? Da maneira que gosto, observando!

Após definir o tema e a metodologia, num momento de flashback, surgiu

a lembrança do dia da entrevista com a diretora da escola na qual atuo. Ela me

perguntou: “Para você, o que é mais importante para se trabalhar com crianças?”.

Depois de alguns segundos pensando, respondi: “Eu acho importante olhar para as

crianças, perceber o que está acontecendo, blá, blá, blá”. Bom, a resposta esperada

pela diretora não era exatamente essa, mas para mim, o olhar já era importante

(mesmo sem saber que levaria esse “princípio” adiante)!

De volta aos dias da monografia, eu precisei de pelo menos um mês para

conseguir escolher uma entre dezesseis turmas para ser observada, mas cada turma

tinha o seu “brilho”, suas brincadeiras, curiosidades e peculiaridades! Queria

registrar tudo de todas, mas o tempo (e a capacidade de observar tanto) era

insuficiente. Quando, finalmente, consegui escolher apenas uma turma, eu precisei

de mais um mês para “aprimorar” minhas técnicas de filmagem. Eu queria andar com

a câmera, passear entre as brincadeiras e os diálogos das crianças, mas como em todo

espaço com mais de vinte crianças juntas, o ruído era enorme e as imagens trêmulas

deixavam qualquer um com náuseas de balanço do mar. Tentei o tripé, mas as

crianças tropeçavam nos pés do apoio ao tentar olhar o que se passava pelo visor da

câmera. Resolvi deixá-la apoiada em bancos e mesas, assim eu poderia manuseá-la

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com mais “liberdade” (eu e as crianças, também, apesar de terem sido orientadas a

não mexer na câmera).

Ao final das filmagens, eu tinha mais de duas horas de gravações, que

precisariam se transformar em alguns minutos para viabilizar a análise. A riqueza de

informações naquelas imagens era enorme, impossível descrever tudo nesta

monografia. As perguntas que eu tinha no começo da pesquisa se transformaram em

outras e multiplicaram-se. Ainda quero aprimorar minhas técnicas de registro da ação

das crianças para mostrar ao “mundo” os encantos de ser criança.

Mafalda, de Quino, v. 1, 1982.

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1. INTRODUÇÃO

As crianças andam pelo corredor da escola, repleto de murais com

produções artísticas de outras crianças. Pinturas com guache, com tinta acrílica,

desenhos com massinha, com palitos de sorvete... São obras de arte tão bonitas! Tão

interessantes! Tão vivas! Uma das primeiras reações das crianças que passam: tocar!

Uma das primeiras reações dos adultos: proibir! Tocar naqueles desenhos poderia

estragar o trabalho do colega! No entanto, a criança, na primeira oportunidade, volta

a tocar nos desenhos, a “olhar” com os dedos as formas, a textura. Será que é liso?

Será que é macio? Será que “gruda”? Chega mais perto para sentir o cheiro.

No caminho para o espaço da aula de educação física, as crianças

brincam: “não pode pisar nas linhas!”. Sobem e descem do banco, degrau ou

qualquer elevação que surgir, falam alto, dão risada, tentam passar o colega que está

na sua frente. Chegando ao pátio, encontram o espaço repleto de bambolês coloridos,

que deveriam ficar no chão, conforme a aula planejada. Primeira reação dos alunos:

pegar os bambolês e tirá-los do chão. A professora explica que antes de mexerem nos

materiais, as crianças devem ouvir as orientações. No momento “crucial” da

explicação, uma menina levanta a mão e pergunta: “Amarra o meu tênis?” ou “Posso

beber água?”. Enfim, as regras da brincadeira foram ditas, os bambolês deveriam

ficar no chão, mas... Em vão, as crianças queriam mexer, tocar, rolar e descobrir o

que era possível fazer com aquele material redondo, colorido. De nada adiantou dizer

“não mexam nos bambolês”. A palavra “mexer” se sobressai ao “não”. “Não

corram!”, eles correm. “Não gritem!”, eles gritam. É como falar para alguém “Não

sorria!” e sorrir se torna irresistível! Situações como essas são comuns no cotidiano

de quem lida com crianças e não percebe suas nuances. No entanto, muitos não

enxergam na criança esse pequeno “ser” curioso, espontâneo, muitas vezes

desastrado e que não é regido pelas mesmas convenções adultas. O adulto, muito

ingênuo, nem sempre compreende a criança, espera dela determinadas atitudes mais

coerentes... Coerentes para os adultos.

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As crianças demonstram uma ansiedade e uma vivacidade para descobrir,

com todos os seus sentidos, um novo material, um novo lugar. A ansiedade diminui

quando proporcionamos tempo para que elas explorem o novo. As crianças são

tesouros a descobrir, parafraseando o livro “Educação: um tesouro a descobrir”

(Jacques Delors, 1996). É inesgotável a sua riqueza de linguagens, de expressões,

teorias sobre a vida e o mundo elaboradas a partir de sua curiosidade.

Refletindo sobre as situações descritas acima, foi observada a

importância do olhar atento. A partir do conhecimento proveniente do olhar sobre as

crianças, atividades mais adequadas poderão ser propostas, a mediação de conflitos

será mais eficiente e ao que é chamado de “teimosia”, “birra” ou “desobediência”

poderá ser melhor compreendido.

No cotidiano do meu trabalho comecei a observar a beleza da imaginação

das crianças, principalmente, em situações livres, quando havia espontaneidade no

uso de materiais da aula. O que me incomodava, porém, eram algumas crianças que

demonstravam falta de interesse por determinados materiais. Reparei que o problema

era a falta de repertório dessas crianças para brincadeiras com aquele material. Elas

simplesmente não sabiam o que fazer. O pouco que sabiam tornava-se chato e

desestimulante. Enquanto isso, outras crianças imaginavam diferentes formas de

escalar e ser o Tarzan!

Algumas questões foram levantadas. O que as crianças, após um ano de

aulas com materiais como corda, pneu e bambolê, fizeram com esses materiais

quando os mesmos foram disponibilizados para uso livre? Do que brincaram essas

crianças? Que “sutilezas infantis” são possíveis de olhar nos momentos observados?

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2. REVISÃO DE LITERATURA 2.1. Os encantos de ser criança

As teorias que estudam a criança abrangem áreas de conhecimentos

diversas como a psicologia, com Piaget, Vygotsky, Luria, Leontiev, a pedagogia,

com Bourdieu, Passeron, Establet, os estudos da linguagem, com Lacan, Bakhtin,

Foulcalt, entre outros pesquisadores (KRAMER, 2008). No entanto, a criança que

vamos observar neste estudo é a criança que extrapola a teoria, é a criança “real”,

aquela que enxerga nas luzes de Natal, vagalumes coloridos e que tece teorias acerca

do seu mundo, como as descritas a seguir, ouvidas diretamente das crianças:

“Conversa entre crianças:

- Mas você sabe de onde vem o açúcar?

- Da formiga, ué?

Faz sentido, não? O açucareiro vive cheio de formigas!”

“-Prô, você nasceu com o olho puxado?

- Sim! Você achava que eu tinha nascido com o olho redondo?

- É!

- Mas... E aí? O olho vai puxando?

- É!

- Nossa, então quando eu estiver velhinha, meu olho vai estar fechado,

de tão puxado!

- Não, né! Uma hora para de esticar!

Como não pensei nisso! A gente para de crescer e o olho para de puxar!!!

Claro!

(Trechos extraídos do blog “Sabedoria Infantil”1)

1 Disponível no endereço eletrônico http://luisanagashima.blogspot.com , acessado em 10/01/2010).

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A criança que neste estudo os leitores encontrarão será como Milena,

filha de Walter Omar Kohan, que para ilustrar seus pensamentos sobre infância e

filosofia, escreveu:

(...) Um dia, enquanto estávamos fazendo qualquer outra coisa, Milena me disse: “ ‘Tia’ em português se diz ‘tía’ em espanhol.” A pronúncia era precisa, em uma e outra língua.(...) Sorri, com bastante alegria. Devo ter soltado duas ou três expressões de admiração, do tipo: “Bravo, Milena, é isso aí! Muito bem!!!”. E logo a seguir, sem nos dar descanso, minha deformação profissional me levou a replicar a Milena com uma nova pergunta: “Milena, se ‘tia’ em português se diz ‘tía’, então como se diz em espanhol o que em português se diz ‘tio’? Já me preparava para uma alegria pedagógica sem par. (...) Olhei para Milena. Devo ter repetido uma ou duas vezes a mesma pergunta. Milena já tinha demorado muito mais do esperável – do que eu podia esperar, certamente – quando olhou para mim sorridente e, sem deixar de sorrir, disse fresca e tranquilamente: “ ‘tio’ em português é... ‘amigo’ em espanhol.”2

Assim como Milena, as demais crianças têm sua lógica, suas idéias,

conceitos e explicações sobre a vida em sua volta que muitas vezes foge às

expectativas adultas. Segundo Clarice Cohn (2005), a criança não sabe menos, sabe

outra coisa (p.33). Sabe de coisas que os adultos já se esqueceram ou não

(re)conhecem.

Com o presente estudo a perspectiva do olhar adulto será deslocado para

o da criança, assim como aponta Delahaie-Pouderoux (1996), ao contar sobre as

lembranças de uma mulher que perdeu a mãe aos três anos e dela apenas se lembra

das (...)canelas finas e a vassoura que dançava cadenciadamente sobre o ladrilho

marrom de sua casa (...), afinal as crianças pequenas não apenas vêem o mundo de

baixo (as pernas e a vassoura), como também vivem diferentemente de nós (...).

Em texto sobre a importância de descobrir sobre a criança, com a criança,

Maria Manuela Ferreira diz:

2 Walter Omar KOHAN, Infância e filosofia, em SARMENTO & GOUVÊA Estudos da infância: educação e práticas sociais, 2008, p. 55.

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(...) Trata-se de levar a sério a voz das crianças, reconhecendo-as como seres dotados de inteligência, capazes de produzir sentido e com o direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento ainda que possam expressar diferentemente de nós, adultos; trata-se de assumir como legítimas as suas formas de comunicação e relação, mesmo que os significados que as crianças atribuem às suas experiências possam não ser aqueles que os adultos que convivem com elas lhes atribuem.”3

De maneira bastante clara e relevante, Clarice Cohn expõe a importância

de considerar a criança como um ser cultural ativo, no sentido de não apenas ser

“moldado” por uma cultura, pelos costumes e crenças de seu meio, mas produtor de

uma cultura própria, também. Segundo a pesquisadora, as crianças elaboram sentidos

para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses

sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos

àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural em relação ao

adulto (COHN, 2005, p. 35).

Quem é essa criança, produtora de cultura, que se expressa em uma

linguagem própria, age e reage, constroi e desconstroi, de maneira particular? É o

que será investigado neste estudo.

r e o olho para de puxar!!! Claro!

2.2. Os encantos da observação e do olhar

Dia desses, em uma palestra sobre os Doutores da Alegria4, uma pessoa

perguntou ao Wellington Nogueira, fundador e coordenador geral da organização, se

havia um tempo determinado para os palhaços ficarem em cada quarto de hospital,

entretendo a criança acamada e se havia algo planejado antes de entrarem no recinto.

Dúvida que pode ocorrer com freqüência na mente de educadores acostumados com

planejamento, objetivos e conteúdos. Não, não havia nada pré-determinado. Claro,

algumas “cartas na manga”, mas sem roteiro fixo. Tudo dependia da reação da

criança naquele momento. É uma questão de OLHAR para a criança. Nogueira

3 Maria Manuela Martinho FERREIRA, “Branco demasiado” ou... Reflexões epistemológicas, metodológicas e éticas acerca da pesquisa com crianças, em SARMENTO & GOUVÊA Estudos da infância: educação e práticas sociais, 2008, p. 143. 4 Organização proeminentemente dedicada a levar alegria a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde, através da arte do palhaço, nutrindo esta forma de expressão como meio de enriquecimento da experiência humana. (Disponível no endereço eletrônico http://www.doutoresdaalegria.org.br , acessado em 08/01/2010)

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escreveu em seu livro: Se eu tivesse que resumir em uma palavra a essência do que a

gente faz, eu diria que é o olhar! (...) Porque os fios, as ataduras, a enfermidade,

tudo isso a gente já viu, é o externo, agora buscar o que está bom, que está lá dentro,

e trazer para fora, isso é a essência do que a gente faz (NOGUEIRA, p. 75).

Qual é a importância desse olhar para a criança? Pode parecer óbvio para

quem lida com crianças que o olhar é importante, mas nem sempre é o que acontece

no cotidiano escolar e familiar, além de ser uma tarefa complexa e que exige prática

constante. É necessário OLHAR para aquela criança que está a nossa frente. A fonte

mais segura é a observação que cada um faz da(s) criança(s) (FRIEDMANN, 2005,

p. 18). A criança real, assim como todo ser humano real, extravasa os limites da

teoria.

O olhar que aqui se refere é o olhar com a inteireza, a presença, os olhos,

os ouvidos, o coração (Idem, p. 32), o que significa olhar com o corpo inteiro,

aprofundar nas imagens além do que os olhos apenas vêem e sentir as emoções da

criança que está “fora” e a que está “dentro” de cada um, observado e observador.

Seguindo na construção da idéia do olhar, Friedmann cita Dennis Klocek

e os três estágios do olhar: o olhar fixo, quando observamos e registramos

exatamente o que vemos, o olhar fluido, quando há uma participação de quem olha

no “tornar-se” do objeto ou da pessoa olhada e o olhar aberto, um nível elevado de

percepção, quando recebemos, não uma resposta, mas uma pergunta (Ibdem, p. 33).

Neste estudo pretende-se alcançar, ao menos, o olhar fluido,

aprofundando a análise para além do que é apenas uma imagem e tentando penetrar

no universo da criança através da observação de seus gestos, olhares, palavras e

brincadeiras.

A importância do olhar é compartilhada por Maria Isabel Leite, que

afirma que a partir da observação é possível penetrar na subjetividade humana, ao

estar atenta, com olhos e ouvidos abertos para ler, ver e escutar tudo, para captar os

não-ditos, as múltiplas vozes, para estranhar o diferente de mim (LEITE, 2008, p.

78).

Alguns objetivos possíveis da observação são obter um diagnóstico do

comportamento geral do grupo e do comportamento individual de seus alunos.

Outra possibilidade é descobrir em qual estágio de desenvolvimento encontram-se

essas crianças; conhecer os valores, as idéias, os interesses e as necessidades desse

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grupo, conflitos, problemas e potenciais (FRIEDMANN, 2006, p. 37). Ao observar e

conhecer melhor o grupo com o qual se está lidando é possível propor atividades

mais adequadas às necessidades e características desse grupo.

2.3. Os encantos da exploração e da brincadeira

A exploração foi vista como sinônimo de brincadeira ou como uma

categoria da brincadeira por muitos autores (Welker e Thorpe, citados por HUTT,

1978). Porém, a própria Corinne Hutt define a exploração e a brincadeira como

situações diferentes. Em seu estudo, crianças de 3 a 5 anos encontravam em um

ambiente familiar a elas um objeto desconhecido: uma caixa vermelha, com quatro

botões e uma alavanca. Observando a reação das crianças, a pesquisadora verificou

que, inicialmente, as crianças demonstravam uma ação de exploração, no sentido de

investigar as propriedades daquele objeto novo. Após apertar todos os botões, mexer

na alavanca e explorar o objeto diversas vezes (essas ações, no estudo, duraram em

média, cinco sessões), as crianças começaram a apresentar ações que Hutt

denominou como brincadeira. Para diferenciar a exploração da brincadeira, a

pesquisadora comparou as duas ações às perguntas: “o que este objeto faz?”

(exploração) e “o que eu posso fazer com este objeto?” (brincadeira).

Neste estudo, o termo “exploração de materiais” foi utilizado como termo

“técnico” de uma estratégia de ensino na qual a criança pode utilizar o material livre

e espontaneamente. Apesar da escolha do material não ser totalmente livre, a criança

decide como e com quem vai utilizar o material. Desta forma, as aulas de exploração

serão consideradas como momentos de exploração e de brincadeira, tendo em vista a

contextualização dos termos utilizados na pesquisa de Hutt (1978).

No entanto, a própria definição de brincadeira varia muito e pode haver

uma confusão, principalmente, entre os termos jogo e brincadeira. Em nota do

tradutor do livro Homo ludens, de Huizinga, é possível verificar um dos motivos para

tal confusão: a diferença entre as principais línguas europeias (onde spielen, to play,

jouer, jugar significam tanto jogar como brincar) (HUIZINGA, 2001, p. 3),

provocando diferentes interpretações e definições dos termos.

Neste estudo será utilizado apenas o termo brincadeira, no sentido de

atividade lúdica espontânea. Gilles Brougère estimula a reflexão sobre uma possível

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definição do termo ao se questionar: o que é a brincadeira, senão a associação entre

uma ação e uma ficção, ou seja, o sentido dado à ação lúdica? (BROUGÈRE, 2008,

p. 14). Para o autor, a brincadeira não possui uma função precisa ou resultados

esperados, o que caracteriza a brincadeira é que ela pode fabricar seus objetos, em

especial, desviando de seu uso habitual os objetos que cercam a criança; (...) é uma

atividade livre, que não pode ser delimitada (Idem, p. 13).

A importância da brincadeira nas aulas de educação física nesta escola

onde se desenvolveu o estudo é (re)conhecer as técnicas corporais5 das crianças e

estimular a sua ampliação, no sentido de proporcionar momentos nos quais as

crianças podem expressar-se espontaneamente e aprender novas maneiras de brincar.

Na realidade atual dos grandes centros urbanos, (...) há uma diminuição

do espaço e do tempo para a criança brincar, e este é um problema que requer nossa

atenção, pois sem brincar o desenvolvimento da criança fica prejudicado. (LIMA,

2006, p. 26), portanto, os momentos de exploração são importantes para contribuir na

ampliação do repertório de brincadeiras com materiais de “fácil” acesso, como corda,

bambolê e pneu. Além disso, na situação de brincadeira, a criança tem a

possibilidade de criar, expressar-se e experimentar a realidade sem medo de errar,

por ser um contexto imaginário, simbólico e lúdico.

Brincar não é uma dinâmica interna ou natural (BROUGÈRE, 2008) da

criança e, sim, socialmente aprendido, culturalmente caracterizado. Só reconhece as

expressões da brincadeira aquele que está inserido na cultura lúdica6 do meio no qual

interage.

Outro motivo para a exploração de materiais nas aulas de educação física

é satisfazer a curiosidade da criança por qualquer material novo e, dessa forma,

facilitar a condução de demais atividades com o mesmo material utilizado pelo

educador.

5 Termo de Marcel Mauss (1974) utilizado por Jocimar Daólio (1995) para designar os gestos e os movimentos corporais como técnicas criadas pela cultura, passíveis de transmissão através das gerações e imbuídas de significados específicos. 6 O termo cultura lúdica é utilizado por Gilles BROUGÈRE em O brincar e suas teorias, organizado por Tizuko Morchida KISHIMOTO (2008), como um certo número de referências que permitem interpretar como jogo atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas. Assim é que são raras as crianças que se enganam quando se trata de discriminar no recreio uma briga de verdade e uma briga de brincadeira. O termo jogo utilizado neste trecho refere-se a brincadeira, também. No presente estudo será utilizado apenas o termo brincadeira.

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3. METODOLOGIA

Para tentar esclarecer as perguntas deste estudo, foram realizadas

observações de aulas através de fotos e filmagens para análise qualitativa da ação das

crianças. A metodologia adotada neste trabalho aproxima-se da observação

participante descrita por Sara Delamont (2007), porém não foram realizadas

entrevistas com as crianças observadas. Os registros foram realizados durante as

aulas de educação física do ano letivo de 2009.

3.1. Características do grupo observado

Participaram do estudo 28 crianças entre idades 4 e 5 anos que

frequentavam a mesma turma de educação infantil de uma escola particular de

Osasco, São Paulo. Na escola, eu atuava como professora de educação física

juntamente ao grupo observado neste estudo.

3.2. Características das aulas observadas

Ao longo do ano, as crianças participaram de aulas de exploração de

materiais, isto é, elas tinham a possibilidade de brincar de forma livre e espontânea,

apesar de o material ter sido previamente escolhido por mim. As aulas ocorriam duas

vezes por semana, com duração de 50 minutos cada aula. Os materiais usados na

exploração foram corda, bambolê e pneu, pois seriam bastante utilizados ao longo do

ano em diversas atividades. A exploração permitia que as crianças conhecessem o

material com todos os seus sentidos (olhando, tocando, cheirando, brincando),

saciava a sua curiosidade por tudo o que era novo. A quantidade de material era a

mesma do número de crianças.

Inicialmente, as crianças realizaram duas aulas de “exploração simples”,

pois havia apenas um “tipo” de material em cada aula. Ao final do ano, as crianças

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tiveram três aulas de “exploração combinada”, assim denominadas pois foram

disponibilizados todos os materiais de exploração, além de cones, que foram

“apresentados” em outras aulas para que as crianças realizassem deslocamentos em

zigue-zague ou para delimitar espaços.

3.3. Como as observações foram registradas

As aulas de exploração com um material foram registradas em foto para

compor o diário de bordo deste estudo, como uma forma de conhecer brevemente o

percurso da turma com os materiais. As três últimas aulas, nas quais as crianças

utilizavam todos os materiais, foram filmadas para que fosse possível uma

observação mais aprofundada.

Nas aulas registradas para este estudo, as crianças já haviam se

familiarizado com o material de registro (câmera fotográfica), pois em aulas

anteriores eu havia utilizado a câmera e explicado às crianças que usaria para

fotografá-las e filmar a aula, assim poderia conhecê-las melhor.

Inicialmente, muitas crianças quiseram olhar o que estava sendo filmado,

o que foi possível, pois a câmera ficou posicionada ao alcance delas. Apesar de ser

um local interessante de se posicionar a câmera, por captar imagens do ponto de vista

da criança, em alguns momentos as imagens ficaram um pouco prejudicadas quando

alguma criança ficava em frente à câmera, impossibilitando a imagem do pátio ou

quando alguma criança mexia no instrumento de registro. Outra restrição das

filmagens foi a baixa qualidade do som, com muitos ruídos. Nesse caso, foi

necessário recorrer aos registros escritos e à memória do que acontecia no momento.

3.4. Local

O local onde foram realizadas as aulas era um pátio coberto, com dois

espaços. Um de aproximadamente 5m X 5m e outro com 6m X 15m, no qual havia

um palco. Neste espaço ainda havia a sala de educação física, onde ficavam

guardados todos os materiais, e uma rampa de acesso ao andar superior. Em duas

paredes laterais havia janelas e portas que davam acesso a um parque.

Page 19: TESE LUISA NAGASHIMA

19

Figura 01 – Pátio

3.5. Sobre os circuitos

Além da exploração de materiais, outra estratégia de aula utilizada foram

os circuitos. Nessas aulas os materiais ficavam dispostos em uma sequência na qual

as crianças deveriam realizar tarefas motoras específicas e dirigidas. Cada circuito

continha uma história ou um contexto lúdico, como o exemplo dos cones, banco

sueco, pneus e bambolês que formavam a figura de um gigante, sobre o qual as

crianças, que eram as formigas, deveriam percorrer, realizando habilidades motoras

de equilíbrio, saltos e corrida em zigue-zague (FIGURA 02).

SALA DE ED. FÍSICA

PALCO

PÁTIO

PÁTIO

RAMPA

ENTRADA

JANELAS E PORTAS

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20

Figura 02 – Circuito do gigante

4. REFLEXÕES 4.1. “Diário de bordo” – o processo inicial

Neste capítulo estão descritas as descobertas mais interessantes

observadas nas aulas de “exploração simples”. São descrições e reflexões sobre o que

observei (olhei, ouvi, senti) e questionei (“olhei” com o cérebro e a emoção) sobre as

falas, atitudes e expressões das crianças . Este capítulo é importante para melhor

analisar as filmagens das aulas de exploração “combinada”, com todos os materiais.

Nas instruções iniciais das aulas de exploração foi explicado às crianças

que elas poderiam brincar com o material da maneira que quisessem, poderiam

Barriga do gigante: bancos suecos para

andar, equilibrando-se

Cabeça do gigante:

bambolês para saltar

Braços do gigante: cones para correr em zigue-zague

Perna do gigante: pneus

para andar, equilibrando-se

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21

descobrir novas formas de brincar e que atividade poderia ser individual ou em grupo.

Foram esclarecidos alguns cuidados que as crianças deveriam ter ao brincar. As

intervenções eram realizadas quando alguma criança demonstrava falta de interesse

pelo material (geralmente, por falta de repertório para brincar com aquele material).

As intervenções eram importantes, também, para garantir a segurança das crianças e

evitar acidentes, além de proporcionar momentos para sugestões de novas

brincadeiras, que eram dadas por mim e pelas crianças.

4.1.1. Exploração do bambolê

Logo ao chegar no pátio, quando as crianças viram os bambolês no palco,

foi possível observar o fascínio que o material exerce sobre elas. Ouviam-se várias

exclamações como: “Uau! Bambolê!”, “Ebaaa!”, e uma “vibração” corporal, visível

nas pernas saltitantes e braços inquietos. Com essa reação e com as brincadeiras

observadas no início da aula, percebi que muitas crianças já conheciam o material.

As brincadeiras eram as mais “conhecidas” entre as crianças, como girar o bambolê

em partes variadas do corpo (cintura, braço, pescoço e pé). Muitos brincaram de rolar

o bambolê no chão. Algumas intervenções foram realizadas para que descobrissem

novas formas de brincar com o material. Perguntei se alguma criança gostaria de

mostrar como brincou com o bambolê. Todas quiseram mostrar, mesmo quando era

algo repetido, como se o jeito dela fosse “igual, mas diferente”. Algumas

brincadeiras que surgiram: girar o bambolê no próprio eixo, como se fosse um pião,

algumas meninas brincaram de colocar os bambolês no chão, em sequência e saltar

(já tinham brincado dessa forma nos circuitos dirigidos), além daquelas já

mencionadas.

4.1.2. Exploração da corda

Nesta aula, as crianças surpreenderam com suas brincadeiras. Elas foram

muito além da “utilidade mais comum” da corda, o pular corda. Nesta faixa etária,

pular corda, individualmente, é uma tarefa um pouco complexa e nem sempre

motivadora. As crianças demonstraram muitas outras possibilidades lúdicas com o

material.

Page 22: TESE LUISA NAGASHIMA

22

No caminho para o espaço de aula, uma criança perguntou se poderia

brincar de “Tarzan”. Respondi que sim e perguntei como faria isso. “Ah, não sei!”,

respondeu. Fiquei tentando imaginar como ele faria isso. Após alguns minutos de

aula, a criança “Tarzan” mostrava suas habilidades, subindo no espaldar e amarrando

a corda numa das barras (FIGURA 03). Estava pronto o “cipó”! É claro que as

crianças não se balançavam naquele “cipó”, mas gostavam de subir no alto e segurar

a corda, como se estivessem pendurados nas árvores do “Tarzan”. Outras crianças

começaram a amarrar a corda no outro espaldar, mas nem tão alto. Brincavam de

puxar a corda, como no “cabo de guerra”, mas seu oponente era o espaldar

parafusado na parede. Era como se estivessem puxando um caminhão!

Figura 03 – Tarzan

Enquanto isso, na parede oposta, observei alguns meninos enrolando a

corda no “batente” da janela para brincar de puxar. O que começou como uma

brincadeira de puxar, aos poucos, após tentativas e erros, transformou-se em outra de

escalar, bastante desafiadora. Parecia uma escalada na íngreme parede rochosa de

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uma montanha (FIGURA 04). Nova inspiração para outras crianças, que tentavam

imitar.

Figura 04 – Escalando montanhas

Brincadeiras de puxar ocorreram com bastante frequência,

principalmente, para puxar o colega, “arrastando-o” pelo pátio de chão liso. Outra

brincadeira de puxar foi o “cabo de guerra”, no entanto, solicitei às crianças que não

brincassem disso, pois aquela corda, muito curta e com cabo de madeira, era perigosa

para essa função. Aqui fica a dúvida se era realmente uma brincadeira que oferecia

riscos, se era necessário proibir a brincadeira ou apenas orientar as crianças sobre os

riscos. Este assunto será discutido no capítulo sobre os medos do adulto e da criança.

Alguns alunos brincaram de montar lagos com as cordas. A idéia inicial

talvez tenha sido da minha sugestão de montar um rio com duas cordas para saltarem

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e aumentarem o tamanho do rio a cada salto. Porém, algumas crianças foram além.

Inventaram um monstro que ficava dentro do lago e as crianças não podiam entrar no

seu território. A brincadeira era passar pelo lago sem deixar o monstro pegá-las

(FIGURA 05).

Figura 05 – Lago com monstro

Dentre os materiais, as crianças fizeram mais brincadeiras simbólicas

com a corda. Seria por causa de sua maleabilidade e, portanto, maior possibilidade de

“desenhos” e funções variáveis?

4.1.3. Exploração do pneu

Inicialmente, na aula com os pneus foi possível observar um repertório

de brincadeiras um pouco mais restrito e semelhante entre as crianças. A maioria

começou brincando de rolar o pneu. Este era um material que poucas crianças

conheciam como brinquedo.

Page 25: TESE LUISA NAGASHIMA

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Ao longo das aulas, as crianças descobriram novas maneiras de brincar

com o pneu, como colocar um sobre o outro e entrar nele, como se fosse um barril.

As meninas da figura 06 aproveitaram o palco para facilitar a entrada no “barril”.

FIGURA 06 – Barril de pneus

Algumas crianças resgataram aulas realizadas anteriormente, na qual os

pneus formavam caminhos de pedras no rio de jacarés ou qualquer outra coisa que a

imaginação permitisse e novas crianças agregavam seus pneus para aumentar o

desafio. Esta brincadeira foi a mais próxima do que era realizado nas aulas de

circuito.

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26

4.2. E agora, com todos os materiais?

Após as aulas de exploração simples e circuito, as crianças tiveram a

oportunidade de brincar com todos os materiais que foram utilizados nessas aulas, de

maneira livre. Nas orientações iniciais foram lembradas algumas possibilidades de

circuito e alguns cuidados para brincar com aqueles materiais.

4.2.1. Primeiras impressões

A expectativa inicial era de que as crianças combinassem os materiais

para montar seus circuitos, seus caminhos, contar suas histórias. No entanto, foi

possível observar que no primeiro momento, a maioria das crianças brincou com

apenas um material, como faziam na exploração “simples”.

As crianças levaram o tempo de quase uma aula para começar a criar

novas brincadeiras. Uma possível explicação para que ocorresse a mesma reação,

apesar da quantidade maior de materiais e de possibilidades, é que a exploração

“simples” ainda não havia se esgotado. As crianças ainda queriam explorar e

descobrir mais do mesmo material.

Uma das brincadeiras “novas” observadas foi criada por um grupo de

meninas que montou “casinhas” com pneus e com uma corda enrolada em volta do

cone construíram árvores de Natal. Uma brincadeira de faz-de-conta inspirada pela

data comemorativa que se aproximava. Era final de novembro.

Nos últimos minutos da primeira aula, uma das meninas da brincadeira

de casinha pediu de volta o cone que havia emprestado ao colega, porém este ainda

estava brincando com o material. Na tentativa de não parar a brincadeira do colega,

perguntei a ela se não havia outro material que pudesse substituir o cone. Ela queria

algo para fazer a estrela da árvore de Natal. Deixei que ela procurasse algum material

dentro da sala de educação física que pudesse ser a estrela. Ela encontrou uma bola e

deixou que o colega continuasse a sua brincadeira.

A partir do fato “a estrela da árvore de Natal”, outras crianças quiseram

entrar naquela sala, que sempre foi um mistério para elas. Começaram a descobrir

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novos materiais, alguns nunca utilizados em aula. Cada um que entrava na sala, saía

de lá com um material novo, um olhar misto de entusiasmo com curiosidade e uma

pergunta: “Luisa, posso usar isso?”. O caos se instalava no final da primeira aula. No

entanto, precisei “podar” a alegria da descoberta por causa do tempo. Disse que

poderiam continuar a exploração na aula seguinte.

No início da segunda aula houve o caos, continuação do final da aula

anterior, por causa da euforia criada pelos materiais novos. As crianças descobriram

um material que chamaram de “marreta”. Eram as maças (materiais da “ginástica

rítmica desportiva, feito de madeira ou de material sintético e que tem a aparência

de uma garrafa7), que tinham perdido sua utilidade nas aulas das turmas de educação

infantil e estavam guardadas. As crianças descobriram inúmeras brincadeiras com

elas. As “marretas” se transformaram em baquetas para batucar nos pneus e cones

(FIGURA 07), em taco de baseball, enfeite da “árvore de Natal”.

Figura 07 – Batucando

7 Definição encontrada no endereço virtual http://olimpiadas.uol.com.br/2008/modalidades-olimpicas/ginastica-ritmica/?aba=glossario, acessado em 20/01/2010.

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A maioria das crianças retomou a brincadeira que estava fazendo na aula

anterior. Um grupo de meninos, que havia criado uma brincadeira de arremesso (este

será mais detalhado no próximo capítulo), retomou a brincadeira e as meninas da

casinha montaram suas casinhas, novamente com as árvores de Natal.

Um grupo de quatro meninas retomou sua brincadeira, porém

“aprimorada”. Na primeira aula, elas haviam reunido seus materiais, um pneu e três

cordas para brincarem juntas. Enquanto três meninas puxavam o pneu com as cordas,

a outra sentava no pneu para ser puxada. Na segunda aula, decidiram pegar dois

pneus e duas cordas. Assim, duas meninas poderiam ser puxadas (FIGURA 08).

Imagino que tenham pensado que a parte legal da brincadeira era ser puxada no pneu,

como em um trenó. Com dois pneus poderiam aumentar para dois o número de

meninas a andar de trenó! Porém, logo perceberam que a idéia não funcionou, pois

puxar uma criança sozinha, sem a ajuda de outras, era muito difícil. Enquanto

sopravam as mãos para aliviar a dor de puxar a corda, decidiram brincar de outra

coisa.

Figura 08 – Boa idéia?

Apesar de a terceira aula ter ocorrido quase duas semanas depois,

algumas brincadeiras foram retomadas, como a brincadeira de arremesso. A

brincadeira de casinha se transformou em uma brincadeira de cachorrinhos. É

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29

possível observar uma mudança, também, na “composição” do grupo. A menina que

liderava a brincadeira da casinha havia faltado neste dia, o que pode ser um motivo

para a brincadeira ter mudado e novas meninas terem se juntado ao grupo.

Uma diferença da terceira aula para as demais foi uma menor “disputa”

pelos pneus, inclusive sendo observados alguns que não foram utilizados, o que não

ocorria em aulas anteriores. Provavelmente, a exploração do pneu já havia se

esgotado e as crianças começaram novas brincadeiras.

Outra observação interessante desta aula foi uma forma de brincar de

guardar objetos dentro do pneu que foi imitada por diferentes grupos em situações

variadas. As meninas da brincadeira de “cachorrinho” guardavam “marretas” dentro

do seu “ninho”, o pneu. Outras duas meninas guardavam de forma bastante

organizada, bolinhas de tênis e cordas dentro da sua “casa”, o pneu (FIGURA 09).

Dois meninos brincavam de rolar o pneu cheio de materiais, “marretas”, bolinhas,

pequenos bastões, sem deixar que caíssem para fora (FIGURA 10). Não foi possível

observar quem começou a “moda do pneu recheado”, mas foi apreciada em

diferentes brincadeiras.

Figura 09 – Pneus recheados

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Figura 10 – Mais pneus recheados

Até este ponto foram feitas observações gerais das aulas, para

contextualizar as próximas observações. Muitas outras anotações poderiam ser feitas

nestas aulas, porém o foco será em alguns fatos que chamaram mais a atenção e que

serão analisadas nos próximos capítulos.

4.2.2. Construção e desconstrução de uma brincadeira

Ao longo das três aulas de exploração com materiais variados foi

possível observar a construção de uma brincadeira criada por dois meninos, G. e V.

Eles montaram um “campo” de cones entre dois grandes bancos

afastados paralelamente a uma distância de dois metros. Com a bolinha de tênis eles

tentavam derrubar os cones. Havia apenas um cone sobre o pneu, como se aquele

valesse mais pontos ao ser derrubado.

Aos poucos, outros meninos agregaram-se à brincadeira, respeitando a

fila que fora organizada para o arremesso. G. e V. queriam acrescentar novos

elementos à brincadeira, colocando mais pneus e no final da primeira aula, V.

encontrou uma corda elástica dentro da sala de educação física e pediu para usá-la.

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Queria fazer como nas aulas de circuito, quando eu amarrava e entrelaçava as cordas

nos bancos, formando “teias de aranha”. V. queria as “teias” antes dos cones, porém

esta nova “etapa” da brincadeira teve que ficar para a segunda aula.

Assim que começou a segunda aula, V. e G. começaram a montar sua

brincadeira. Os materiais eram os mesmos, cones e pneus, mas a configuração do

“campo” era outra, formando um desenho mais elaborado, com o cone sobre o pneu

protegido por outros cones (FIGURA 11). V. pediu novamente as cordas elásticas e

começou a colocar as cordas, no entanto, não conseguiu prendê-las nos bancos. G.

tentou resolver o problema, enrolando as cordas nos cones, porém estes caíam por

serem muito leves ou as cordas ficavam muito frouxas. Foi quando fiz a primeira

intervenção, perguntando se queriam ajuda para amarrar as cordas nos bancos.

Ficaram entusiasmados com a ajuda, mas enquanto prendia as cordas, percebi que

seria ainda mais interessante se eu os orientasse em como amarrar as cordas, para que

não precisassem da minha ajuda numa próxima vez.

Figura 11 – “Campo” da segunda aula.

Outros meninos ajudavam na montagem, mas eram G. e V. quem

comandavam o grupo. Não era uma liderança conjunta, mas cada um tinha a sua

preocupação na construção da brincadeira: G. montava a parte dos cones e V. estava

mais entusiasmado com as cordas elásticas. Um dos meninos colocou bolinhas de

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tênis sobre a ponta de cada cone e G. descobriu que poderia brincar de rebater a

bolinha que estava sobre o cone. Tentou negociar um bastão com a colega em troca

de uma marreta. Interessante observar que G. usou um argumento para convencê-la a

trocar de material. Ele percebeu que ela usava a marreta para batucar nos cones e

pneus. O bastão que ele tinha em mãos, também, poderia ser utilizado para batucar,

mas ela não cedeu e mostrou a ele onde encontrar uma marreta.

Problema da marreta resolvido, cordas amarradas... Tudo pronto para

começar a brincadeira? Não. Resolveram colocar os cones entre as cordas, montaram

um novo campo e G. acrescentou pranchas (de natação) no chão, aparentemente, para

representar algum obstáculo. Para alguns meninos, a diversão já havia começado.

Eles estavam derrubando os cones, quando V. veio reclamar: “Eles estão acabando

com o nosso jogo!”. Não esperou resposta e logo voltou à brincadeira. Observando a

dinâmica confusa e caótica, resolvi intervir e perguntei ao grupo como “funcionava”

a brincadeira. Cada um dizia uma coisa diferente e comentei que deveriam tentar

conversar para resolver como seria a brincadeira. No entanto, quando retomei a cena

nas filmagens, percebi que a brincadeira, caótica, ainda estava fluindo quando

interrompi, precocemente, para fazer “ajustes”. Não sei se os meninos iriam

conseguir resolver o problema, mas sei que minha ansiedade em ver a brincadeira

organizada precipitou a intervenção, sem deixar o tempo necessário para as crianças

tentarem se organizar da sua maneira.

Alguns minutos após a intervenção, G. veio pedir para que eu

conversasse com os outros, porque eles continuavam brincando “de qualquer jeito”.

Ficou nítido o papel que acabou se construindo sobre mim, a professora. Não

consegui ajudar as crianças a descobrir como resolver um problema, mas a ser a

“solucionadora” do problema. Isso, também, requer tempo de aprendizagem.

Nova intervenção para perguntar ao grupo como eles iriam brincar. Ao

final da segunda aula, eles ainda estavam discutindo sobre como brincar. Até

sentaram no banco, recolheram os cones e era possível observar que estavam numa

“reunião” para resolver o que fazer com a brincadeira.

Terceira aula, G. e V. correm para pegar os materiais e montar o seu

“campo”. Além dos pneus e cones, G. colocou bambolês e V. tentou amarrar uma

corda. Foi quando me dei conta de que a brincadeira já havia começado. Construir a

brincadeira era (sempre foi) uma brincadeira. Isso ficou ainda mais claro quando

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observei os dois meninos à espreita no palco, esperando alguém deixar de usar algum

material para que eles pudessem acrescentar um novo objeto na sua brincadeira.

Figura 12 - “Campo” da terceira aula, pronto para brincar!

Brincadeira pronta, organizada, três “jogadores” posicionados cada um

sobre um pneu, começaram a brincar de arremessar a bolinha de tênis nos cones

(FIGURA 12). Não durou nem dez minutos para começarem a desmontar e pensar

em um novo campo. Essa brincadeira de construção e desconstrução durou até o final

da aula.

Eu demorei três aulas para perceber o prazer de montar a brincadeira e

lembrei de minha infância, quando eu ficava horas montando a casinha de boneca,

que era tão divertido quanto a própria brincadeira de boneca.

4.2.3. O cone

O cone foi logo “descoberto” na primeira aula de exploração

“combinada” e uma reação inesperada em relação a esse material foi observada. Em

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nenhuma outra aula o cone havia sido disponibilizado, pois eu imaginava ser um

material que não precisasse de exploração. Esperava que as crianças utilizassem os

cones da forma que conheceram nas aulas de circuito, mas foram muito além da

minha imaginação. As crianças descobriram que os cones poderiam ser chapéus,

braços de robôs e alguns meninos perceberam o quão interessante era olhar pelo

buraco do cone, como se fosse uma luneta.

Um dos meninos brincou com o cone quase o tempo todo da primeira

aula. Começou com o cone na cabeça, que se transformou em braços, que passou a

ser alvo para arremessar o bambolê, como nas brincadeiras de arremesso de argolas e

tentou equilibrar um cone invertido sobre outro em pé, no chão (FIGURA 13). Eu,

com meu pensamento adulto, nunca imaginaria tantas brincadeiras com apenas o

cone!

Figura 13 - Concentração

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Figura 14 – Muitas descobertas com o cone

Foi possível acompanhar um grupo de quatro meninas que brincava de

“bruxinhas” com o cone na cabeça e tinham até o que parecia um “grito de guerra”.

Ao longo das três aulas, o cone obteve novas funções para as meninas, que

continuaram a brincar com o material, porém em brincadeiras diferentes, como a do

cachorrinho.

Assim como o cone, muitos outros materiais podem ter o rico repertório

de brincadeiras que nós, adultos, não percebemos. “O brinquedo (...) não parece

definido por uma função precisa: trata-se, antes de tudo, de um objeto que a criança

manipula livremente, sem estar condicionado às regras ou a princípios de utilização

de outra maneira”8.

4.2.4. Brincadeiras “estrangeiras”

Na segunda aula, duas brincadeiras “estrangeiras” surgiram. Um grupo

de três meninos brincou do que chamaram de futebol americano. Os pontos eram

8 Gilles BROUGÈRE, Brinquedo e cultura, 2008, p. 13

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feitos ao acertar a cesta de basquete. Pensei: “por que os meninos não chamaram de

basquete?”. Talvez, porque no basquete não se “arranca” a bola da mão do

adversário e nem se corre com a bola na mão, por isso a brincadeira desses meninos

era mais próximo do futebol americano. Observando bem a brincadeira, era uma

criação própria daquele grupo de meninos, uma combinação de brincadeiras.

Tentei imaginar como os meninos conheciam o futebol americano. Nos

dias atuais, com canais de TV a cabo, é possível conhecer jogos de culturas variadas.

O interessante é que o futebol, o popular aqui no Brasil, não foi a brincadeira

escolhida pelas crianças. Um dos motivos poderia ser o fato de que a manipulação

com os pés neste grupo não era ainda tão “desenvolvida”. As mãos ainda eram

prioritariamente usadas. Um ponto a ser investigado em análises futuras seriam as

brincadeiras e o espaço para brincar dessas crianças fora da escola. Uma hipótese

para o uso preferencial das mãos seria a restrição de espaço físico para as crianças

fazerem brincadeiras de chutar.

A outra brincadeira “estrangeira” foi o baseball. Não havia as bases e a

brincadeira consistia em um dos meninos arremessar a bola (de tênis), outro rebater e

o terceiro ser o catcher, jogador que fica atrás do rebatedor para pegar as bolas que

este não rebater. O mais impressionante era que conseguiam acertar a bola de tênis

com a “marreta” (maça), relativamente pequena e pesada. Atualmente, é possível

encontrar com freqüência entre os brinquedos vendidos nas lojas, tacos, raquetes e

outros materiais para brincadeiras de rebater, o que pode ser uma possível explicação

para a habilidade demonstrada pelas crianças do baseball. Não só entre os

brinquedos, como na televisão e no esporte, atualmente, estão mais presentes jogos

de rebater, como o tênis.

4.2.5. “Teoria” da autopreservação do corpo

No espaço de aula havia um material utilizado pelas crianças para escalar,

o espaldar, o mesmo utilizado na brincadeira do Tarzan. As crianças já haviam

realizado outras atividades naquele material, porém sempre havia um colchão para a

segurança delas. No dia da exploração de todos os materiais, um dos meninos

começou a escalar o espaldar. Apenas observei para ver o que ele iria fazer. Nas

aulas, eu apenas solicitava que escalassem o mais alto que conseguissem e descessem.

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Quando se percebeu “livre”, o menino não só escalou, como soltou uma das mãos e

ficou pendurado no alto do espaldar, além de outras “macaquices”. A destreza

demonstrada por algumas crianças no material ia além do que era solicitado por mim,

mesmo sem o colchão para protegê-las.

Através da observação das crianças brincando e das lembranças de minha

infância, quando brincava e arriscava-me em brincadeiras que hoje considero

perigosas, perguntei-me: “será que o meu medo de vê-las se machucarem é o medo

necessário ao adulto, cujo corpo já não resiste às quedas da mesma forma que o

corpo de uma criança, mais flexível e que se recupera mais rapidamente?”.

O medo das crianças pode ser diferente do medo do adulto por falta de

maturação, por terem vivido menos experiências em situações variadas; é o medo do

desconhecido.

O medo pode ocorrer, também, por falta ou excesso de estimulação em

situações que provocam a dor, como cair e se machucar. Evitar o tempo todo que a

criança caia ou se machuque não proporciona a maturação sugerida acima. Assim

como o extremo oposto, uma criança que passa por excessivas situações de dor,

poderá ficar com medo de sentir mais dor, em qualquer situação, sem conseguir

distinguir o que é perigoso ou não. Ambos os casos foram estudados por Hinde9. De

uma forma ou de outra, muitos adultos proíbem as crianças de rolarem, escalarem,

pularem e protegem-nas de seus medos.

O medo é necessário para preservação do corpo, mas o medo de um

adulto pode limitar o potencial das crianças, que devem ter outros medos. São apenas

suposições, especulações a respeito do assunto, pois não é objetivo deste estudo

esclarecer estas dúvidas, mas uma possibilidade para estudos futuros.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao observar as brincadeiras das aulas iniciais, com apenas um material, e

comparar às explorações com vários materiais, ficou reforçada a idéia de que é 9 Robert HINDE, citado por Jeffrey GRAY, A psicologia do medo e do “stress”, 1976, p. 15

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imprevisível e infinita a imaginação da criança, caso seja proporcionado espaço,

tempo e material para que ela explore e aprenda a brincar. Uma dúvida foi crescendo

ao longo das observações: será que as crianças que tinham mais idéias para brincar e

eram mais “criativas” (no sentido de demonstrarem um repertório de brincadeiras

mais variado em relação às outras crianças) nos momentos livres, brincavam mais

quando estavam fora do período escolar? Quais eram o espaço e os brinquedos que

tinham para brincar em casa, do que e com quem brincavam?

Neste estudo as crianças foram apenas observadas, porém para uma

análise mais completa e aprofundada, até para tentar responder às perguntas

anteriores, seria interessante realizar entrevistas com as crianças, conversar e ouvir

mais o que elas têm a dizer.

Com este trabalho, além de observar a riqueza de possibilidades lúdicas

que materiais variados oferecem, foi possível verificar a importância da observação

para melhor conhecer a criança e o quão difícil é sair do olhar sobre o mundo a partir

do ponto de vista adulto e olhar sob o ponto de vista de cada criança.

As minhas ações como educadora, apesar de não terem sido o foco neste

estudo, foram inevitavelmente analisadas na relação com as crianças. Verificou-se

um adultocentrismo10, tanto na maneira de conduzir as atividades, intervir nos

conflitos e nas ações das crianças, quanto ao observar e analisá-las. Talvez, um

resquício da educação “tradicional” pela qual passei a minha infância...

Apesar de achar não ter conseguido alcançar, plenamente, o estágio do

olhar fluido, por falta de experiência, acredito que é de extrema importância a

observação das crianças com quem os adultos estão lidando. Será que nós, adultos,

estamos realmente nos preocupando com esse olhar para as crianças? Acredito que,

ainda, não! As crianças têm muito a nos dizer e com elas poderemos adequar melhor

as atividades propostas, sejam na escola, em casa, na criação de brinquedos, nas

produções teatrais, enfim, proporcionar PARA as crianças aquilo que é DAS crianças!

10 Termo utilizado por Maria Manuela Martinho FERREIRA, “Branco demasiado” ou... Reflexões epistemológicas, metodológicas e éticas acerca da pesquisa com crianças, em SARMENTO & GOUVÊA (orgs.), Estudos da infância: educação e práticas sociais (2008) e, também, por Clarice COHN, Antropologia da criança (2005).

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39

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e cultura São Paulo: Cortez, 2008.

__________ A criança e a cultura lúdica, em KISHIMOTO, Tizuko Morchida (org.)

O brincar e suas teorias São Paulo: Cengage, 2008.

COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005,

57p.

DAÓLIO, Jocimar. Da cultura do corpo Campinas, SP: Papirus, 1995.

DELAHAIE-POUDEROUX, Patricia. A criança no mundo dos adultos. São Paulo:

Augustus, 1996, 139p.

DELAMONT, Sara. Etnography and participant observation. Em SEALE, Clive;

GOBO, Giampietro; GUBRIUM, J. Gubrium. & SILVERMAN, David (eds.)

Qualitative researche practice. London: SAGE Publications, 2007, p. 205 – 217.

FERREIRA, Maria Manuela Martinho. “Branco demasiado” ou... Reflexões

epistemológicas, metodológicas e éticas acerca da pesquisa com crianças. Em

SARMENTO, M. & GOUVEA, M. C. S. (orgs.) Estudos da infância: educação e

práticas sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 143-162.

FRIEDMANN, Adriana. O universo simbólico da criança. Petrópolis, RJ: Vozes,

2005, 119p.

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