Tese Marcelo

Embed Size (px)

Citation preview

MARCELO MACIEL RAMOS

A INVENO DO DIREITO PELO OCIDENTEUMA INVESTIGAO FACE EXPERINCIA NORMATIVA DA CHINA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DA UFMG DEZEMBRO DE 2010

MARCELO MACIEL RAMOS

A INVENO DO DIREITO PELO OCIDENTEUMA INVESTIGAO FACE EXPERINCIA NORMATIVA DA CHINA

Tese de doutorado apresentada, sob a orientao do Prof. Dr. Jos Luiz Borges Horta, ao PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DA UFMG.Pesquisa desenvolvida junto UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS e UNIVERSIT PARIS VII com financiamento integral da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES).

BELO HORIZONTE DEZEMBRO DE 2010

Ao Pedro, testemunha e parceiro incondicional dessa aventura intelectual.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos, em primeiro lugar, ao PROF. DR. JOS LUIZ BORGES HORTA, cuja ousadia intelectual e esprito inovador criaram condies para que essa pesquisa pudesse ser realizada. certamente o zelo com o qual nos formou e com o qual nos garantiu o mais amplo acesso aos materiais e suportes necessrios para a consecuo desse trabalho que o tornou possvel. A ele, a nossa mais profunda gratido! Ao PROF. DR. FRANOIS JULLIEN, que gentilmente nos acolheu no instituto de pesquisa sobre a civilizao chinesa que dirige, o Institut Marcel Granet da Universit Paris 7, pelo suporte inestimvel nesta nossa primeira incurso no pensamento chins e pelas preciosas lies que inspiraram fortemente o nosso trabalho. Ao PROF. DR. JOAQUIM CARLOS SALGADO, norte intelectual de toda uma gerao de pesquisadores, pelo exemplo que sua trajetria nos inspira e pelos densos ensinamentos que forneceram um slido ponto de partida para as reflexes que aqui apresentamos. PROFA. DRA. MARI BROCHADO, cuja interlocuo nos foi sempre to cara e instigante e cujas pesquisas marcaram profundamente a nossa formao. PROFA. KARINE SALGADO, pela gentileza e pela confiana com as quais sempre nos abriu importantes oportunidades de dilogo e trabalho conjuntos. A G ABRIEL LAGO DE SOUSA BARROSO e a JOO PAULO MEDEIROS ARAJO , pelos ricos debates de nosso grupo de pesquisas sobre a Filosofia Grega Clssica, os quais inspiraram de modo especial os momentos finais dessa pesquisa. A FELIPE MAGALHES BAMBIRRA, a PAULO ROBERTO CARDOSO e a JOS DE MAGALHES CAMPOS AMBRSIO, nossos irmos acadmicos, pelo apoio integral s nossas empreitadas, pela cumplicidade sincera e pelo dilogo sempre to enriquecedor. A PEDRO AUGUSTO GRAVAT NICOLI, por ter, de tantos modos, feito desse longo processo de pesquisas e de elaborao de tese concretamente

possvel. No saberei jamais agradecer suficientemente por cada uma das inumerveis contribuies a este trabalho, desde a reviso cuidadosa do texto e do debate de suas idias at a generosidade inesgotvel com a qual amparou todo o processo espiritual e intelectual que o produziu. A MARINA MENNUCCI, a primeira leitora dessa tese, quando suas idias e pginas no passavam de modestos esboos, pelo carinho e cuidados maternais que mantiveram vivo o seu autor durante o seu exlio francs. s minhas carssimas ANGLICA MLLER e SOLVEIG GRAM JENSEN por terem compartilhado desse momento intenso de pesquisa e criao e tornado a distncia e o trabalho suportveis. Aos meus pais, ELIANE e MRIO, s minhas irms, CRISTIANE e ANA PAULA, aos meus irmos extensivos, JOO GUSTAVO e ANDREZA, a GLAUCIA DELBONI , a LETCIA, RENATA e FERNANDO NICOLI, a THIAGO FIGUEIREDO, a MARIA CLARA SANTOS e a CRISTIAN PDUA, pelo aconchego afetivo e pelo apoio incondicional nesses quatro anos em que essa tese foi produzida. Agradecemos, por fim, ao PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITODA

UFMG por ter nos proporcionado as condies materiais e espirituais de

realizao desse projeto e ao governo brasileiro que, por intermdio da CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), financiou integralmente as pesquisas realizadas para essa tese, tanto no pas quanto no exterior.

SUMRIO

INTRODUO ..................................................................................................... 01 PRIMEIRA PARTECONSIDERAES PRELIMINARES

1. O DIREITO UMA INVENO DO OCIDENTE ..........................................................18 2. DO DILOGO CULTURAL ..................................................................................... 26

SEGUNDA PARTEDUAS TRADIES INTELECTUAIS: OCIDENTE E CHINA

3. ENTRE O CHINS E O OCIDENTAL: OS CONDICIONAMENTOS LINGSTICOS ............ 39 4. A RAZO DO OCIDENTE4.1. A EMANCIPAO: O LIVRE QUESTIONAMENTO E INVENO DO DISCURSO LGICO ... 50 4.2. A CISO: A NEGAO DA REALIDADE CONCRETA PELO INTELECTO ........................ 54

5. A RAZO DA CHINA5.1. O DISTANCIAMENTO NECESSRIO .................................................................... 63 5.2. A TOTALIDADE ORGNICA E ESPONTNEA DO MUNDO: A IMANNCIA DA RAZO ......67 5.3. O ENSINO SEM PALAVRAS: A PRTICA COMO SUBSTITUTA DO DISCURSO ................... 78 5.4. A LGICA DA EVOCAO PELOS NOMES, NMEROS E SMBOLOS .......................... 90 5.5. O DO: A ORDEM TOTAL E REGULAR DO MUNDO ......................................... 104 5.6. O YN E O YNG: A ALTERNNCIA E A COMPLEMENTARIDADE ..................... 109

TERCEIRA PARTEOS FUNDAMENTOS TICOS DO OCIDENTE E DA CHINA

6. OS PRESSUPOSTOS TICOS DO OCIDENTE6.1. O 2(ETHOS) DA LIBERDADE ..................................................................... 115 6.2. OS CAMINHOS DA LIBERDADE .......................................................................... 119 6.3. A CONCRETIZAO DA LIBERDADE NA HISTRIA ............................................... 126 6.4. A CONSCINCIA DA INDIVIDUALIDADE ............................................................136 6.5. A LIBERDADE TOTAL: A RECONCILIAO DO PARTICULAR COM O COLETIVO .......... 140

7. OS PRESSUPOSTOS TICOS DA CHINA7.1. O HOMEM ENQUANTO FATOR: O INDIVDUO NA CHINA .................................. 143 7.2. A TICA DA CONFORMAO: A IMITAO E O EXEMPLO ................................... 158 7.3. O D: A VIRTUDE ENQUANTO EXPRESSO DA POSIO E DA HIERARQUIA ........... 166 7.4. A VONTADE DO CU ( TIN) E O BOM GOVERNO ....................................... 171

QUARTA PARTEO DIREITO OCIDENTAL E A EXPERINCIA NORMATIVA CHINESA

8. O SENTIDO HISTRICO-CULTURAL DO DIREITO8.1. O UNIVERSAL OCIDENTAL E O DIREITO ............................................................ 179 8.2. O MODELO RACIONAL E A PRIORI DO DIREITO ..................................................187 8.3. A COMPREENSO GREGA DE LEI ................................................................... 193 8.4. A INVENO DO DIREITO EM ROMA .............................................................. 223 8.5. O APANGIO DO ETHOS OCIDENTAL: O ESTADO DE DIREITO ............................... 242

9. O SENTIDO HISTRICO-CULTURAL DA EXPERINCIA NORMATIVA CHINESA9.1. O NATURALISMO COSMOLGICO E A EXPERINCIA NORMATIVA DA CHINA ........... 259 9.2. O RITO NA CHINA .........................................................................................265 9.3. A LEI E A POLTICA CHINESAS ........................................................................... 277 9.4. DA INEXISTNCIA DE UM DIREITO CHINS ......................................................... 288

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 298REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 307

s vezes tenho a impresso de que escrevo por simples curiosidade intensa. que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes no sabia que sabia. Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.

INTRODUO

O Direito uma inveno genuinamente ocidental, inveno essa que encarna um modo bastante peculiar de ordenao da vida social e que no encontra equivalentes originriamente estabelecidos por outras culturas ou civilizaes. Tal afirmao fica ainda mais evidente se explorada face singular experincia normativa da China que, at h pouqussimo tempo, se desenvolveu completamente alheia a qualquer influncia ocidental. O que distingue o Direito fundamentalmente o universalismo racional sobre o qual ele foi constitudo, o qual lhe emancipou, em suas justificativas intelectuais, dos seus pertencimentos locais das ligaes concretas com a comunidade , ao ponto de ele ser percebido e afirmado como ordem normativa edificada sobre a prpria essncia universal do homem, necessrio, pois, para a sua justa realizao e, portanto, atribuvel a todos indistintamente. Porm, o prprio Ocidente tem dificuldades em perceber que a pretenso universalista a partir da qual fundou seus pressupostos intelectuais e seus produtos culturais, dentre os quais se inclui o Direito, to peculiar ao seu contexto civilizacional quanto o a experincia normativa da China ou de outras culturas, produzidas a partir de perspectivas prprias, igualmente singulares. O problema est em perceber que, embora as categorias e valores ocidentais tenham se estabelecido sob uma genuna pretenso de universalidade, tal pretenso to estranha a outras culturas, quanto o o Direito. Desse modo, o carter singular e original dessa experincia normativa universalista do Ocidente normalmente negligenciado pelo olhar ocidental, que tende a projetar nas realizaes de outros povos suas prprias categorias, lendo-as luz de suas expectativas racionais. Com isso, forjam-se correspondentes culturais onde no h e o Direito passa a ser

2

identificado com formulaes ticas que se baseiam em princpios muitas vezes a ele incompatveis. Contudo, visto de fora do Ocidente, o Direito1 e todos os princpios que lhe conferem sentido apresentam-se normalmente como elementos estrangeiros, que contrastam com os valores ticos e, mesmo, com as categorias racionais a partir das quais se pensa o mundo em outras tradies culturais. Enquanto dentro do mbito da civilizao ocidental clama-se orgulhosamente pela universalizao dos direitos fundamentais do homem e do Estado de Direito os primeiros vistos como a expresso mxima do ethos humano, o segundo como o ambiente poltico fora do qual a liberdade e a justia no poderiam se realizar2 , fora do Ocidente, tais percepes, impostas ao mundo como conquistas de toda a humanidade, so vistas como uma intromisso desmedida em face dos valores e princpios culturais prprios a cada povo. Alm disso, o argumento emprico que constata a presena expressiva de um suposto Direito nos mais diferentes pases do mundo atual, inclusive na China, acaba por conduzir concluso apressada e superficial de que o Direito uma experincia concretamente comum a todos os povos. Todavia, essa percepo, to recorrente nos dias de hoje, no se d conta de que o Direito ocidental que se v difundido por boa parte do planeta, seja por imposio do Ocidente, seja por um processo de assimilao cultural facilitado por uma normatividade que se funda em critrios gerais e abstratos (nos termos de sua racionalidade universal). Ademais, a tal tipo de argumento escapa o aspecto substancial do prprio Direito, o qual no se efetiva pela simples imposio formal de leis (mesmo que essas leis tenham sido forjadas imagem das legislaes ocidentais), mas por uma complexa organizao normativa comprometida com a preciso, de incio, no confundir o sentido de Direito com o de norma ou, mesmo, com o de lei. Conforme veremos oportunamente, enquanto essas ltimas podem ser encontradas em outras culturas, o Direito, ao contrrio, funda-se em categorias e valores prprios do Ocidente.1 2

HORTA, Jos Luiz Borges. Histria do Estado de Direito. So Paulo: Alameda, 2010, p. 23.

3

realizao material de direitos estabelecidos sobre um critrio abstrato de justia, a declarar a liberdade e a igualdade como pressupostos essenciais para a justa realizao do homem em sua vida social. Por isso, a reflexo sobre o Ocidente e seus feitos se enriquece exponencialmente se feita a partir do contraste com outras perspectivas culturais. E, de todas as grandes tradies civilizacionais, a China a que nos permite o contraste mais radical e, portanto, mais produtivo. Entre as civilizaes e culturas mundiais, a civilizao chinesa a nica que se constituiu e se desenvolveu, ao menos at o sculo XIX, com muito pouca ou quase nenhuma influncia do Ocidente. Uma das mais antigas civilizaes, detentora de uma cultura altamente sofisticada, ela apresenta uma viso de mundo inquestionavelmente peculiar e original, o que nos permite um contraponto significativo em relao civilizao ocidental. Conforme Franois Jullien:A China apresenta, logo de entrada, a maior distncia. Porque ela no pertence ao mesmo quadro lingstico que o nosso (o da grande famlia indo-europia), porque no conheceu a Revelao religiosa nem fez da interrogao do Ser o objeto de sua especulao, porque, enfim, esta civilizao desenvolveu-se na maior parte do tempo fora de qualquer relao conosco, ela representa o caso mais radical de uma alteridade possvel3.

Diante do encontro com este outro que a China, por tanto tempo ignorado pela civilizao ocidental e no qual o seu imperialismo cultural tem profundas dificuldades de penetrar , o Ocidente se vJULLIEN, Franois. Fundar a Moral: dilogo de Mncio com um filsofo das Luzes. Trad. Maria das Graas de Souza. So Paulo: Discurso, 2001, p. 23. Vale registrar que a afirmao da China enquanto alteridade em relao ao Ocidente no uma tese consensual. H quem defenda, como Jean Franois Billeter, professor emrito da Universidade de Genebra, que a alteridade chinesa no passa de um mito que encontra sua origem na ao dos primeiros missionrios jesutas que desembarcaram na China, levando para a Europa uma viso do pas que se resumia viso de mundo dos seus nicos interlocutores: os altos funcionrios letrados. Tomar o confucionismo imperial como sendo todo o pensamento chins produziria um falso sentido de alteridade. Cf. BILLETER, Jean Franois. Contre Franois Jullien. Paris: Allia, 2007, p. 13-15.3

4

obrigado,

como

nunca,

a

situar

culturalmente

a

pretenso

de

universalidade de suas realizaes. O seu direito, tido como a forma irrenuncivel de organizao do poder e dos interesses da coletividade, bem como de proteo do indivduo, v-se desprezado por uma perspectiva cultural que lhe completamente alheia. Os direitos fundamentais do homem e o Estado de Direito, vistos por ocidentais como realizaes universais, como conquistas de toda a humanidade, parecem ser vistos por chineses como prticas ocidentais. A abertura da China ao mundo nas ltimas dcadas revela ainda mais essa contraposio. Se o seu nvel de sofisticao cultural e sua longevidade equiparam-se, como os de nenhuma outra civilizao mundial, aos do Ocidente, seu longo isolamento promove um estranhamento radical entre a cultura ocidental e a chinesa. No nos deixemos enganar pela aparente ocidentalizao da China. Vista do Ocidente, a acelerada adoo pelo gigante chins da economia de mercado e a gradual incorporao de hbitos de consumo ocidentais nos faz crer numa aproximao extraordinria. Todavia, essa ocidentalizao econmica no vem acompanhada de uma ocidentalizao tica. Convencida de sua prpria tradio e de seus valores milenares, a China no parece disposta a adotar a via tica ocidental, incluindo-se a, naturalmente, o Estado de Direito e os direitos humanos. A ocidentalizao da China superficial; ela no atinge os fundamentos basilares da cultura. Entre ela e o Ocidente ainda se interpe um abismo cultural que se revela, por exemplo, na perplexidade causada aos ocidentais em vista do desrespeito aos direitos humanos por parte do governo chins. Admira-se sua grandeza econmica e militar e sua rpida modernizao estas nos moldes ocidentais , mas critica-se duramente seu regime poltico e sua ausncia de liberdade.

5

Mas, o que pensa a China sobre a liberdade? E mais: o que ela pensa dos nossos princpios ticos? Estamos to convencidos da superioridade de nossos valores que nem mesmo nos damos ao trabalho de promover um verdadeiro dilogo que coloque em perspectiva as diferenas e as potencialidades de cada um dos lados do embate, e nos permita compreender verdadeiramente o outro e, sobretudo, a ns mesmos. Afinal, conforme ensina Jullien, somente saindo da nossa prpria cultura que ns nos damos conta do quanto ns ignoramos a cultura que ns dizemos to peremptoriamente (possessivamente) ser a nossa4. A China aqui apresentada, portanto, como uma possibilidade de distanciamento e de contraste, um exterior de onde nos colocamos a refletir. Mais do que um objeto de estudo, ela nos aparece como um mtodo produtivo, que nos permite cotejar comparativamente as caractersticas e vocaes de tradies culturais to distintas, lanando luz sobre o carter singular e original do Direito, bem como sobre as categorias racionais peculiares a partir das quais o seu desenvolvimento foi possvel. Tal como prope Franois Jullien, a China no uma grande gaveta a mais a ser inventariada, mas torna-se um instrumento terico (e, de objeto, a sinologia se transforma em mtodo)5. A escolha da China como essa exterioridade a partir da qual nos colocamos a repensar as categorias ocidentais, em especial as jurdicas, nada tem a ver com o modismo que a coloca no centro das atenes mundiais. Embora tenhamos conscincia de que tal tendncia beneficia o interesse pelo tema aqui tratado, o que alimentou a nossa curiosidade,

JULLIEN, Franois. De lUniversel, de lUniforme, du Commun et du Dialogue entre les Cultures. Paris: Fayard, 2008, p. 224. No texto original: cest seulement en sortant de sa propre culture quon se rend compte combien on ignore la culture quon dit si premptoirement (possessivement) tre la sienne . Em sua recente edio brasileira, o texto recebeu o ttulo de O Dilogo entre as Culturas: JULLIEN, Franois. O Dilogo entre as Culturas: do universal ao multiculturalismo. Trad. Andr Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.4 5

JULLIEN, Fundar a Moral, cit., p. 8.

6

desde o incio, foi esta possibilidade inigualvel de pensarmos sobre ns mesmos a partir dessa alteridade radical que ela representa. Nesse sentido, esclarecedor o comentrio de Simon Leys:Do ponto de vista ocidental, a China to simplesmente o outro plo da experincia humana. Todas as outras grandes civilizaes esto quer mortas (Egito, Mesopotmia, Amrica pr-colombiana), quer to exclusivamente absorvidas pelos problemas de sobrevivncia em condies extremas (culturas primitivas), quer demasiadamente prximas de ns (culturas islmica, ndia) para poder oferecer um contraste to total, uma alteridade to completa, uma originalidade to radical e esclarecedora quanto a China. somente quando ns consideramos a China que podemos enfim ter uma medida mais exata de nossa prpria identidade e que comeamos a perceber que parte da nossa herana provm da humanidade universal e que parte no seno reflexos de simples idiossincrasias indo-europias. A China este Outro fundamental sem o encontro do qual o Ocidente no poder tornar-se verdadeiramente consciente dos contornos e limites de seu Si cultural6.

A ausncia de um desenvolvimento original do Direito em uma civilizao to antiga e to sofisticada como o caso da civilizao chinesa nos pe a refletir sobre o seu status de fenmeno universal e necessrio. No se trata, todavia, de colocar em questo a legitimidade cultural do Estado de Direito e dos direitos humanos, produzidos a pena de sculos de reflexes e lutas pelo mundo ocidental. Tais realizaes so, sem sombra de dvida, as mais caras conquistas de uma cultura que elegeu a liberdade e a igualdade como seus valores primordiais para a construoLEYS, Simon. LHumeur, lHonneur, lHorreur. Essais sur la culture et la politique Chinoises. Paris: Robert Laffont, 1991, p. 60-61. No texto original: Du point de vue occidental, la Chine est tout simplement lautre ple de lexprience humaine. Toutes les autres grandes civilisations sont soit mortes (gypte, Msopotamie, Amrique prcolombienne), ou trop exclusivement absorbes par les problmes de survie dans des conditions extrmes (cultures primitives), ou trop proches de nous (cultures islamiques, Inde) pour pouvoir offrir un contraste aussi total, une altrit aussi complte, une originalit aussi radicale et clairante que la Chine. Cest seulement quand nous considrons la Chine que nous pouvons enfin prendre une plus exacte mesure de notre propre identit et que nous commenons percevoir quelle part de notre hritage relve de lhumanit universelle, et quelle part ne fait que reflter de simples idiosyncrasies indo-europennes. La Chine est cet Autre fondamental sans la rencontre duquel lOccident ne saurait devenir vraiment conscient des contours et des limites de son Moi culturel .6

7

de uma organizao social justa7. Trata-se, na verdade, de reinstaurar o debate filosfico sobre o fenmeno jurdico, a partir de um distanciamento que permita inserir na discusso novos elementos de reflexo, alm de atualiz-lo frente aos novos desafios civilizacionais que se apresentam no atual cenrio mundial. Insulados em nossas prprias perspectivas culturais,

continuaremos a realimentar os mesmos debates, a questionar os mesmos pressupostos a partir das mesmas vises de mundo que, embora se alternem e se critiquem, esto presas aos mesmos pontos de partida civilizacionais. H dois sculos, Hegel j denunciava a pobreza do debate filosfico, a renovao cclica dos mesmos discursos, do mesmo palavreado cozido e recozido: como se o que sempre tivesse faltado no mundo fossem esses zelosos propagadores de verdades, como se a velha sopa recozida trouxesse novas e inauditas verdades, como se fosse sempre precisamente agora a ocasio de as ouvir"8. O que se v o esvaziamento substancial dos discursos em face de um apego formalista ao mtodo cientfico. Diante da nossa inabilidade de nos afastar das nossas prprias perspectivas e de experimentar uma viso estrangeira, dissemina-se a descrena na possibilidade de se reconstruir um dilogo da diferena, que possa nos levar a um entendimento comum. Prefere-se o conforto dos limites arbitrrios impostos ao conhecimento, seja para justificar o relativismo exacerbado em relao humanidade e s culturas, seja para alimentar a defesa falsamente universalista das nossas prprias realizaes culturais. Esta clausura cultural nos impede de perceber com clareza as mudanas internas da nossa prpria civilizao e nos torna ainda mais

Vide SALGADO, Joaquim Carlos. A Idia de Justia em Kant. Seu fundamento na Liberdade e na Igualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.7

HEGEL, G.W.F. Princpios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXV.8

8

incapazes de gerir as mudanas exteriores de um mundo cujo embate de culturas to diversas torna-se cada vez mais dinmico. A Europa mal consegue perceber que h muitos sculos ela transps seus prprios limites geogrficos e que a civilizao ocidental (ou europia, como h quem prefira a chamar) se estende para alm das suas fronteiras polticas. Ainda surpreende a muitos europeus o fato de que quase todo o continente americano, alm do fato evidente de falar lnguas europias, descendente dos seus colonizadores, que ali desembarcaram levando consigo toda a sua herana filosfica, cientfica e religiosa. E mesmo que eles tenham ali se misturado com indgenas e africanos, as diferenas locais que produziram no so mais importantes do que aquelas que encontramos dentro da prpria Europa, para no falar da enorme diversidade com a qual nos deparamos dentro de um mesmo pas europeu. O Ocidente ampliou-se, revolucionou-se, exportou-se, alterou significativamente o seu modo de vida. Todavia, a compreenso que tem sobre si mesmo empobreceu-se em funo da incapacidade de exilar-se no outro, de onde poderia ter uma viso privilegiada de si mesmo. Somos demasiadamente pretensiosos para abandonar, mesmo que provisoriamente, nossos pressupostos cientficos, nossa razo infalvel. Mesmo os que atacam a razo ocidental no se do conta que dela que partem e nela que esto presos. Conforme denuncia Oswald Spengler:O pensamento ocidental carece do conhecimento dos inevitveis limites que restringem a validez das suas afirmaes. Ignora que suas verdades inabalveis e suas percepes eternas so verdadeiras s para ele e eternas unicamente do ponto de vista da sua viso do mundo. No se recorda do dever de sair da sua esfera, para procurar outras verdades, criadas com a mesma certeza por homens de culturas diferentes; o que seria

9

indispensvel para que uma filosofia do futuro se pudesse completar9.

Como

poderemos

a

partir

de

ns

mesmos

questionar

verdadeiramente as noes que tanto nos formaram? pergunta Franois Jullien, cuja proposta de colocar em perspectiva duas grandes civilizaes, a China e o Ocidente, para, a partir do distanciamento, renovar o debate filosfico, inspirou fortemente nosso trabalho. Afinal, conforme assevera o autor: verdade que a filosofia ocidental deu a si mesma, e desde o incio, a vocao de fazer do livre questionamento o princpio de sua atividade (tendo partido em busca de um pensamento sempre mais emancipado). Mas ns sabemos igualmente que, ao lado das questes que ns nos colocamos, que ns podemos nos colocar, h tambm todo este a partir de que ns nos questionamos e que, de l mesmo, ns no estamos em condies de interrogar10.

O distanciamento em relao s nossas prprias referncias e possibilidade de refletir sobre ns mesmos a partir de novas perspectivas culturais nos permitem questionar verdadeiramente as noes que nos conformam. De todo modo, o grande desafio deste trabalho o de refletir sobre o bvio e, ao mesmo tempo, o de enfrentar uma srie de tabus culturais e acadmicos. Trazer tona o bvio inaudito, evitado seja pelas perspectivas universalistas (perigosamente etnocntricas), seja pelas relativistas (perigosamente superficiais), nos coloca em campo aberto de ataques. Porm, se o verdadeiro esprito da cincia o de lanar-se naSPENGLER, Oswald. A Decadncia do Ocidente. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Zahar, 1964, p. 41.9

JULLIEN, Franois. La Propension des Choses: Pour une histoire de lefficacit en Chine. Paris: Seuil, 1992, p. 16. No original: Certes, la philosophie occidentale sest donn ellemme, et ds le dpart, pour vocation de faire son libre questionnement le principe de son activit (partie, comme elle lest, en qute dune pense toujours plus mancipe). Mais nous savons galement que, ct des questions que nous nous posons, que nous pouvons nous poser, il y a aussi tout ce partir de quoi nous nous interrogeons et que, par l mme, nous ne sommes pas en mesure dinterroger .10

10

aventura arriscada do conhecimento e do debate, eis o nosso propsito: abrir caminho para a reflexo. No mais para a reflexo inerte ou para a renovao do palavreado requentado, e sim para o debate que se prope a distanciar-se de si e a voltar o olhar sobre si mesmo a partir de uma perspectiva verdadeiramente estrangeira, renovando-se a partir de novos elementos. Conforme anota Arnold Toynbee:O paradoxo de nossa gerao que o mundo inteiro se beneficia com uma educao ministrada pelo Ocidente, exceo, como j observamos, do prprio Ocidente que ainda hoje continua encarando a histria, do velho ponto de vista egocntrico que as outras sociedades vivas foram obrigadas a transcender. Ainda mais, o Ocidente ser obrigado a receber, por sua vez, mais cedo ou mais tarde, a reeducao que as outras civilizaes j tiverem obtido em virtude da unificao do mundo pela ao do prprio Ocidente11.

O problema fundamental sobre o qual se assenta este trabalho consiste em compreender por que o Ocidente desenvolveu uma noo de Direito to peculiar que no encontra correspondente em nenhuma outra cultura ou civilizao. Partimos de duas questes capitais: 1) Quais so as razes culturais pelas quais foi possvel civilizao ocidental a inveno do Direito como meio irrenuncivel de ordenao da vida social? Ou seja: Quais seriam as condies culturais que concorreram no Ocidente para o desenvolvimento do Direito? 2) Por que a China, por outro lado, do alto de sua expressiva riqueza e longevidade culturais e a despeito de uma exaustiva reflexo sobre o poltico, nunca promoveu, a partir dos seus prprios elementos intelectuais, uma ordem social fundada sobre uma perspectiva jurdica? Ou ainda: Quais seriam os elementos culturais que teriam afastado a China das preocupaes prprias ao Direito?TOYNBEE, Arnold J. Estudos de Histria Contempornea: A civilizao posta prova; O Mundo e o Ocidente. Trad. Brenno Silveira e Luiz de Sena. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1961, p. 71.11

11

Diante do contraste entre estas duas grandes civilizaes, somos reencaminhados inevitavelmente ao velho problema da universalidade: seria, pois, o Direito um caminho necessrio e indispensvel para a organizao da vida social? Seriam os direitos fundamentais do homem, de fato, a maior conquista tica da humanidade? Invertendo a questo: no seria o Direito apenas uma opo cultural no que tange a um determinado modo de regulao da vida em comum? E, particularmente, uma escolha peculiar do Ocidente, em funo de condies culturais prprias? Tal problema, embora possa parecer demasiadamente

elementar em face da sua repetio insistente em nossos dias, carece, todavia, de uma tentativa de resposta que no se contente com a legitimao lgica e, sobretudo, histrico-cultural da qual o Ocidente parece no conseguir sair. Visto que ele se encontra excessivamente preso s suas prprias categorias, seus questionamentos e suas respostas esto viciados por uma perspectiva que s sua. preciso ir alm, para, a partir de um contexto cultural dentro do qual o Direito no se fez necessrio de preferncia a partir de um contexto cultural que tenha se produzido completamente alheio ao Ocidente , repensar, atravs de novos elementos, as categorias sobre as quais o Direito se funda. E, neste caso, a China se apresenta como o outro cultural mais distante da tradio ocidental, a nos fornecer, a partir do seu contraste inigualvel, ricos elementos de reflexo. Estas so, portanto, as questes centrais que guiaram este trabalho, sem que, todavia, tenhamos nos ocupado em apresentar respostas definitivas. Nosso objetivo nunca foi o de oferecer, sozinhos, as solues para questes que, por sua obviedade, so questes por demais sensveis para concluses peremptrias. Alm disso, vale dizer que no postulamos aqui um

distanciamento e um contraste imunes s categorias ocidentais, pois no

12

podemos faz-lo sem carregar conosco esses princpios fundamentais que condicionam nossa maneira de pensar e questionar o mundo. Porm, a abertura honesta para a diferena nos leva interessante experincia de entender, mesmo que com alguma distoro, a viso de mundo alheia. E, do contraste, evidenciam-se os elementos racionais cujos papis no nosso modo de pensar e ordena a vida social nos so to difceis de inquirir e perceber com clareza, j que nos conformam to profundamente. Portanto, nosso objetivo primordial foi o de colocar em perspectiva as categorias culturais que constituram as diferentes experincias normativas da China e do Ocidente e as condies que deram ensejo aos seus desenvolvimentos. Mas como estudar, afinal, esse gigante desconhecido que a China? No se trata apenas de repetir aqui aquelas formulas que fizeram fama no Ocidente (o do, o yn, o yng12 etc.) e a partir das quais se fazem normalmente as aproximaes mais superficiais, desprovidas de todo o sentido original. Ao contrrio, trata-se justamente de tentar compreender a viso de mundo chinesa e o significado dos seus produtos culturais dentro do contexto civilizacional que os produziu. A maior dificuldade a superar, segundo Franois Jullien, entre duas culturas que durante tanto tempo se ignoraram, no nem tanto a diferena, mas a indiferena13. No h entre China e Ocidente uma medida comum de onde partir e sim uma longa ausncia de dilogo que no faz mais que multiplicar as incompreenses recprocas. Alm disso, a diferena lingstica um fator complicador. A lngua chinesa uma verdadeira armadilha para o pesquisador ocidental acostumado s tradues mais ou menos precisas dos textos escritos emEm ideogramas simplificados tem-se: yn, yng. Mais frente, cuidaremos da interessante questo da linguagem e dos ideogramas chineses.12

JULLIEN, De lUniversel, de lUniforme, du Commun et du Dialogue entre les Cultures, cit., p. 140.13

13

lnguas europias ou, mesmo, a uma estrutura do pensar e a uma maneira de representar lingisticamente a realidade que se assemelham. Ela distancia-se dos nossos esquemas lingsticos em todos os seus aspectos, desde o seu registro pictogrfico, passando por sua ausncia de flexo verbal ou nominal, at a sua intrigante indistino entre sujeito, verbo e predicado. Portanto, procuramos explicar cuidadosamente os elementos matriciais da lngua, da razo e da tica chinesas. No tivemos, todavia, a pretenso de apresentar um resumo sistemtico do pensamento chins, o que extrapolaria em muito os objetivos j audaciosos da empreitada. Para o leitor que queira se aprofundar no tema, apresentamos ao longo do texto as indicaes detalhadas das obras utilizadas, as quais foram selecionadas aps uma extensiva e cuidadosa pesquisa bibliogrfica. No itinerrio do presente trabalho, comeamos sempre pelo Ocidente, onde nos situamos racionalmente, passando em seguida para a China, a fim de, em vista das suas peculiaridades, poder repensar as categorias ocidentais, tanto as racionais, quanto as normativas que delas decorrem. Na primeira parte do trabalho Consideraes Preliminares , postulamos as hipteses das quais partimos e desenvolvemos a abordagem que permeou nossas consideraes. Na segunda parte Duas tradies intelectuais: Ocidente e China apresentamos os distanciamentos lingsticos e os elementos racionais que constituram os fundamentos prevalescentes de suas tradies intelectuais. Na terceira parte Os Fundamentos ticos do Ocidente e da China passamos a confrontar os pressupostos sobre os quais a experincia normativa de cada um desses plos se fundou. Por fim, na quarta parte O Direito Ocidental e a Experincia Normativa Chinesa procuramos sintetizar os elementos e os contextos culturais que condicionaram o aparecimento da experincia jurdica ocidental e, em seguida, confront-los com os elementos da experincia normativa da China.

14

Tivemos o cuidado de consultar sempre que possvel os textos originais que trabalhamos, seja nas lnguas ocidentais, seja no chins, traduzindo-as no corpo do texto e reproduzindo-as conforme o original nas notas de rodap. Os textos chineses foram por ns traduzidos apenas na medida em que nos foram inteligveis e que pudemos agregar-lhes uma melhor compreenso, no sem o respaldo, registrado sempre em nota, de outras tradues. Por fim, importante registrar que as filosofias ou os pensamentos a partir dos quais nos colocamos a refletir so aqueles que, tanto na tradio ocidental quanto na tradio chinesa, tiveram uma repercusso efetiva na percepo e na organizao da vida social (ou poltica). De todo modo, tendo em vista que nosso objeto o sistema normativo que se efetivou historicamente, tanto na China quanto no Ocidente, do lado chins, sobretudo a partir do confucionismo que pensamos, visto que foi ele que conferiu, durante mais de dois mil anos, o contedo central das vrias dinastias que se sucederam na China; do lado ocidental, partimos das filosofias cujos desdobramentos apresentam um impacto evidente na formao original do Direito, dando especial relevo quelas concepes pr-socrticas que contriburam para o desenvolvimento peculiar de uma razo universalista, bem como s filosofias de Plato, de Aristteles e do estoicismo. Porm, mais do que um inventrio de pensadores, procuramos trabalhar as suas idias e refletir sobre o impacto que promoveram sobre a compreenso das experincias normativas no Ocidente e na China.

15

PRIMEIRA PARTECONSIDERAES PRELIMINARES

1. O DIREITO UMA INVENO DO OCIDENTE

No h duvidas de que toda comunidade humana estabelece para si normas de comportamento. A capacidade do homem, ou melhor, a sua necessidade de estabelecer regras que possibilitem a vida em comum pode ser verificada em qualquer poca e em qualquer contexto cultural. Portanto, quando afirmamos que o Direito um produto cultural14 prprio da civilizao ocidental no estamos nos referindo a uma originalidade no que diz respeito simples elaborao de normas de comportamento. Esta justamente a caracterstica mais universal do homem e da vida social, visto que presente em qualquer contexto cultural, do mais simples ao mais sofisticado. Todavia, a noo de que as normas so produtos da vontade da prpria comunidade e de que elas so garantidas atravs de mecanismos sociais acessveis universalmente a todos e, ainda, de que elas servem proteo no s do todo social (do interesse comum), mas tambm de uma individualidade abstrata, isto , de uma humanidade pretensamente universal que se expressa atravs de cada indivduo concreto, eis uma inveno originalmente ocidental. De modo geral, afirma-se que toda norma de conduta estabelece deveres, ou seja, prescreve diretrizes para a ao humana15.

interessante observar, desde j, que o Direito no s um produto da cultura, como ele acaba assumindo um papel central na constituio da cultura. Conforme Jos Luiz Borges Horta: O Direito a expresso mxima da cultura. Aquilo que h de mais importante em uma determinada cultura consagrado nas suas leis. HORTA, Histria do Estado de Direito, cit., p. 249.14

Vide BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurdica. Trad. Fernando P. Baptista e Ariani B. Sudatti. So Paulo: Edipro, 2001. Em outra ocasio, dissertamos longamente sobre as caractersticas da norma jurdica e suas distines: RAMOS, Marcelo Maciel. tica Grega e Cristianismo na Cultura Jurdica do Ocidente. Belo Horizonte: Programa de Ps-Graduao em Direito da UFMG, 2007, p. 116 et seq. (Dissertao, Mestrado em Filosofia do Direito). O referido trabalho ser, em breve, publicado pela editora Alameda, sob o ttulo Os Fundamentos ticos da Cultura Jurdica Ocidental: RAMOS, Marcelo Maciel. Os15

18

Desse modo, so normas as regras de etiqueta, o costume social, a lei, a deciso do juiz etc. A lei apenas uma forma particular de expresso normativa: a norma estabelecida sob a autoridade de uma organizao poltica e imposta pela fora. nesse sentido que podemos falar em leis do Egito, da Prsia, da China, dos mayas, de determinada tribo africana ou indgena. O Direito, por sua vez, abrange um tipo singular de norma de comportamento desenvolvido pelo Ocidente. A sua peculiaridade no reside, todavia, apenas em sua forma, visto que o Direito tambm se expressa atravs de leis, de decises de tribunais, de contratos etc. e no que tange a essas formas normativas, todas elas podem ser encontradas em diferentes tradies culturais. Tampouco, ela reside simplesmente em seu contedo, uma vez que uma norma de conduta se alimenta do teor das normas sociais, dos usos e costumes, da religio, enfim, do conjunto das normas culturais, as quais, como em toda parte, vinculam-se aos valores particulares do grupo e ao pertencimento concreto a ele. Porm, o que atribui o status de jurdico a uma norma de conduta uma compreenso cultural que se estabeleceu no decorrer da histria do Ocidente de que a lei, a deciso judicial ou mesmo um pacto privado ou um costume precisam se fundar em princpios racionais, estabelecidos sobre uma pretenso peculiar de universalidade, para poderem se impor legitimamente conduta humana. Alm disso, em funo de seus fundamentos racionais (universais), o Direito passou a ser compreendido como um sistema de normas que, em face da generalidade abstrata de seus preceitos, representaria a forma essencial de tutela da conduta humana e da vida social e, portanto, ele seria

Fundamentos ticos da Cultura Jurdica Ocidental: dos gregos aos cristos. So Paulo: Alameda, 2011 (no prelo).

19

comum a todos os homens, a despeito do pertencimento concreto a um grupo determinado16. A concepo e a experincia histrica do Direito so tributrias de categorias racionais e de valores desenvolvidos de modo peculiar pela tradio ocidental. Tais categorias e valores constituem a prpria condio do aparecimento dessa experincia normativa absolutamente original, alm de terem sido convertidos, na Contemporaneidade, na prpria finalidade do Estado de Direito. A primeira dessas categorias, da qual derivam todas as demais, consiste em uma razo discursiva de pretenses universais, inveno da civilizao grega, a qual no encontra qualquer equivalente em outras culturas. Em sua busca filosfica pela essncia universal de todas as coisas, os gregos antigos acabaram por desenvolver uma noo abstrata de homem, descobrindo a sua autonomia (sua liberdade) em face da natureza e do divino (e, mais tarde, do poltico), bem como o seu carter abstratamente igual, fundado nessa descoberta de sua essncia racional e tica. Enquanto todos os outros povos que conhecemos retiram exclusivamente das relaes concretas com a comunidade e dos papeis sociais o valor de cada um de seus membros, distinguindo-os e atribuindolhes prerrogativas e dignidades conforme essas relaes e esses papeis, o Ocidente, desde sua ancestralidade greco-romana, havia descoberto um valor humano abstrato e universal (retirado de sua prpria essncia), sobre o qual os romanos desenvolveram uma noo de direito das gentes (ius gentium), extraordinariamente original, o qual seria atribuvel a todos os homens, a despeito de seus pertencimentos comunitrios e locais. Alm disso, em funo do desenvolvimento dessa racionalidade discursiva e universal, os gregos, em sua precoce experincia democrtica, descobriram o aspecto poltico da liberdade, o qual logo passaria a serO aparecimento histrico dessas idias e seus desenvolvimentos sero tratados no captulo 8.16

20

percebido como exigncia fundamental da prpria realizao humana, nos termos de sua mpar capacidade racional, libertadora por essncia. Em seguida, j nos tempos do helenismo que perpassa a civilizao romana, descobrir-se-ia o aspecto interior da liberdade (o livre pensar e querer) e o carter cosmolgico e abstrato do homem, que o libertara de seus pertencimentos polticos e promovera a conscincia do seu valor universalmente igual. em tenso com essas idias que o Direito construdo definitivamente em Roma como ordem normativa destinada a tutelar todos os homens, inclusive e esta sem dvida sua inovao mais formidvel os estrangeiros, as mulheres, os menores, os escravos, no apenas atravs da imposio de deveres como o caso daquelas experincias normativas que se distinguem do Direito , mas atribuindolhes prerrogativas, protegendo-lhes em seus mbitos particulares, atravs do estabelecimento de limites cada vez mais racionais para o exerccio do poder (seja o privado, seja o pblico)17. Portanto, a razo discursiva (como promotora do aspecto universal de tudo e de cada coisa), a liberdade e a igualdade (descobertas enquanto carter essencial do humano), o consenso (como exigncia racional da efetivao da liberdade poltica), a considerao abstrata do indivduo (como fundamento do seu valor universalmente igual) e a proteo do indivduo atravs da limitao racional do exerccio do poder (como exigncia da efetivao da liberdade individual) so os elementos essenciais sobre os quais o Direito se estabeleceu no Ocidente. Entretanto, conforme j afirmamos, a paternidade ocidental de uma vida propriamente jurdica no evidente nem mesmo para ocidentais. Estamos to convencidos da universalidade de nossas

Conforme veremos no captulo 8, a progressiva ampliao da capacidade de direitos e a extenso da cidadania romana um captulo absolutamente original da histria das civilizaes.17

21

realizaes que tendemos a ver o Direito no como um conjunto de regras de conduta conectado necessariamente a uma comunidade em particular ou a determinada organizao poltica, mas como um sistema de normas que, embora se adapte s particularidades da comunidade a qual se destina, tira sua validade de princpios abstratos que transcendem a localidade na qual atua e repousa suas justificativas em modelos ideais de conduta humana e organizao social. Com isso, o sistema normativo desenvolvido no Ocidente se funda num ideal de universalidade que faz com que percebamos o Direito enquanto produto do prprio sentido de humanidade que seria comum a todos os homens e, portanto, aplicvel a todo gnero humano. Por outro lado, temos dificuldades em perceber, justamente em funo dessa pretenso de universalidade que perpassa a tradio ocidental e que constitui o sentido de sua experincia normativa mais sofisticada a jurdica , que ela s pde ser considerada enquanto um universal dentro do mbito do modelo de razo produzido no contexto cultural do Ocidente. Alm disso, embora a estrutura do Direito ocidental tenha se exportado, constituindo o modelo adotado nos fruns mundiais de deciso os quais congregam organizaes polticas das mais diferentes culturas e civilizaes , preciso perceber que os seus princpios e categorias fundamentais so muitas vezes ignorados ou distorcidos, seja por sua incompatibilidade com a cultura e com o modelo de razo local, seja por serem vistos como elementos estrangeiros, impostos pelo imperialismo econmico e cultural do Ocidente. Com isso queremos dizer que a dificuldade em se compreender o Direito como um fenmeno que, em sua origem, especificamente ocidental advm, alm do fato de ele ser percebido como um universal, da sua prpria difuso por outras culturas, o que nos leva a imaginar tratarse de um fenmeno que podemos encontrar por toda parte, embora se

22

trate mais da difuso da estrutura formal do Direito ocidental, a qual no acompanha necessariamente os pressupostos e os princpios que lhe conferem sentido, nos termos em que o Ocidente o estabeleceu. Outro grande problema na identificao do sentido do Direito reside na dificuldade por parte do prprio Ocidente de pensar a sua identidade, isto , de perceber que existe, no fundo das suas interminveis diversidades locais, determinadas categorias a partir das quais ele pensa o mundo e princpios sobre os quais ele procura organizar, sob a forma de diferentes organizaes polticas, a sua vida social. Por essa razo, o Direito, resultado daquelas categorias e princpios que mencionamos anteriormente, sofre de uma crise de identidade, o que nos leva a confundi-lo facilmente com elaboraes normativas que, embora possuam uma estrutura formal assemelhada, no esto comprometidas com os fundamentos culturais que lhe fornecem sentido e acabam no se prestando realizao dos mesmos fins. Ademais, a dificuldade em se compreender o sentido do Direito reside, ainda, no fato de que ele, enquanto produto cultural, apresenta, assim como todos os elementos de uma cultura, um contedo extremamente complexo e dinmico. Ele retira seu sentido de uma tradio historicamente construda que tende a fix-lo a fim de estabelecer o seu significado. Porm, ao mesmo tempo, ele consiste num contedo em constante transformao, que se modifica na histria, na medida em que a prpria tradio cultural que o produz transforma-se. Visto que o Direito se expressa atravs de normas de comportamento que visam garantir a coeso e a estabilidade social, ele incorpora sempre um sentido de perenidade, que refora sua tendncia de acomodao e que se contrape transformao da cultura como um todo, resistindo mudana dela decorrente. No bastasse, a experincia normativa ocidental, isto , o Direito, esfora-se por fundar-se em princpios racionais,

23

que postulam a universalidade de alguns de seus pressupostos e vinculam toda transformao ao enquadramento em suas categorias fundamentais. Afirma-se com freqncia que o Direito est sempre um passo atrs das transformaes sociais, sem que se perceba que tal descompasso uma exigncia do prprio Direito, que se funda em princpios complexos, os quais precisam ser constantemente equilibrados para a realizao dos seus fins primordiais: a regulao equnime das liberdades e dos interesses (da justia) e a promoo de uma certa constncia das relaes reguladas (da segurana jurdica). Eis o grande complicador: ao mesmo tempo em que o Direito precisa estar aberto para a transformao, adaptando-se conjuntura concreta das relaes e incorporando novos princpios e valores, necessrio que a mudana se realize de modo ordenado e previsvel, a fim de no abalar de modo abrupto as estruturas j estabelecidas da vida social e nem abandonar aquelas categorias e princpios racionalmente estabelecidos, considerados essencialmente necessrios a uma ordem normativa justa. O ethos social que confere validade ao Direito, isto , o contedo cultural das normas de comportamento e organizao social que lhe fornecem sentido, est em constante evoluo e ao Direito, enquanto momento resultante desse processo normativo scio-cultural, cabe a difcil tarefa de atualiz-lo cautelosamente. E isto feito atravs de processos ordenados de deciso (legislativos, judiciais ou polticos) que precisam refletir a mudana sem comprometer aqueles princpios e valores tomados como irrenunciveis e que formam o sentido basilar daquilo que se entende no Ocidente por Direito: a igual e livre participao do cidado no processo de elaborao das normas que o submetem, a fim de compatibilizar interesses individuais e coletivos; a garantia dessa igualdade e liberdade atravs de mecanismos previamente estabelecidos (pelos processos democrticos de elaborao das normas), por meio dos quais se equalizam as diferenas e se protege a individualidade (a

24

dignidade humana), a exemplo do direito de postular perante um juiz o cumprimento das prerrogativas reconhecidas pela coletividade (conforme estabelecidas pelo ordenamento normativo vigente); o direito de defesa e uma srie de critrios de julgamento que procuram conduzir racionalmente um processo de soluo de conflitos etc. esse sentido fundamental do Direito que tentaremos colocar em foco neste trabalho, procurando trazer luz os elementos que no Ocidente conformaram a sua compreenso e a sua experincia concreta. Mas, tendo em vista que o conceito e a experincia do Direito foram sendo construdos lentamente pela tradio ocidental, so principalmente os elementos culturais que tornaram possvel o seu desenvolvimento que pretendemos revelar, demonstrando que o seu sentido resultante, isto , o sentido elaborado ao longo de sculos de reflexo e vivncia, em seu estado atual, depende de categorias que so eminentemente ocidentais, como a razo, enquanto modo discursivo de estabelecer o conhecimento e ordenar a vida social, a liberdade, enquanto emancipao do homem em face do sobrenatural e da natureza, e a igualdade universal individualmente coletividade. constituda, enquanto valor a ser protegido pela

25

2. DO DILOGO CULTURAL

O problema a trabalhar , principalmente, o da incapacidade do Ocidente de sair de si mesmo e perceber que as realizaes que toma como se universais fossem s o so dentro do mbito cultural de sua civilizao. preciso atentar para o fato de que a compreenso e a experincia do direito so o resultado de um determinado modelo de razo e, ainda, de categorias e princpios que dele derivam. Embora a afirmao possa parecer evidente, no demais lembrar que o que ainda no est claro para o esprito ocidental que ele no todo o Esprito do mundo18; que sua razo no a razo de toda a humanidade; e, finalmente, que as categorias e princpios a partir dos quais ele pensa o mundo e justifica o seu sistema de organizao social s so verdadeiros dentro do modelo racional que ele estabeleceu. Se verdade que a civilizao ocidental se construiu desde seus primrdios, ainda na poca dos antigos gregos, sob a ousada pretenso de encontrar a universalidade de suas afirmaes e de seus valores, de modo que sua validade no se fundasse em uma autoridade sagrada ou na simples contingncia concreta dos acontecimentos e opinies, tambm verdade que o universalismo de suas concluses se pautou sempre neste modelo de razo que se estabeleceu dentro dos limites de sua trajetria cultural. A pedra fundamental sobre a qual se erige o pensamento ocidental reside, conforme vimos, justamente no seu esforo descomunal de transcender qualquer limite de tempo e de espao, qualquer contingncia cultural a fim de encontrar o princpio subjacente da vidaEsta a perspectiva de Hegel que, em sua Fenomenologia do Esprito, descreve a fomao do Esprito ocidental, da sua razo, como o estgio definitivo da razo humana. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Esprito. Trad. Paulo Meneses. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 2003. Um excelente guia para compreender esse desdobrar do Esprito ocidental descrito por Hegel : HYPPOLITE, Jean. Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito de Hegel. Trad. Andrei Jos Vaczi et. al. 2 ed. So Paulo: Discurso Editorial, 1999.18

26

(a razo primordial de todas as coisas), atravs do qual se pudesse estabelecer verdades universais sobre a natureza e a sociedade. Assim procedendo, tais verdades seriam vlidas a despeito das contingncias concretas, a despeito do contexto histrico ou cultural. Afinal, o carter central que marca profundamente o pensamento ocidental, ao menos at o aparecimento da filosofia de Hegel, a busca de uma razo do mundo fora do prprio mundo, isto , a verdade eterna e imutvel sobre a natureza e o homem no poderia ser encontrada na contingncia concreta da realidade, cuja inconstncia e transformao so, desde sempre, evidentes aos sentidos. Nem mesmo Aristteles e toda a filosofia que a ele se filia foram capazes de abandonar definitivamente este esquema. Em fim de contas, apesar de ter reabilitado a importncia dos sentidos e da empiria, o filsofo deposita toda a sua confiana na habilidade da razo humana de classificar e de estabelecer categorias gerais que superem e expliquem a realidade concreta. Alm disso, no que diz respeito ao conhecimento da conduta humana, acaba por retomar o estabelecimento de modelos de ao que tiram sua validade no da histria poltica concreta, mas de uma Inteligncia Transcendente, compreendida como a Inteligncia suprema ou o supremo Bem19. Tal tema ser desenvolvido oportunamente nas reflexes aqui propostas, mas no se pode deixar de apresent-lo provisoriamente a fim de se chamar ateno, de incio, para esse modelo de razo to peculiar que, embora se pretenda universal, no se v estabelecer em nenhuma outra civilizao, e a partir de cujos desdobramentos foi possvel, no Ocidente, o desenvolvimento do Direito.

REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga: Plato e Aristteles. V. II. Trad. Henrique C. de Lima Vaz e Marcelo Perine. 2 ed. So Paulo: Loyola, 2002, p. 324-327. A Inteligncia Transcendente, compreendida como o primeiro motor (Deus), a causa eficiente de todas as coisas, pura forma isenta de qualquer matria e no parte do universo. Cf. LUCE, J.V. Curso de Filosofia Grega. Do Sculo VI a.C. ao Sculo III d.C. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 125.19

27

A dificuldade est em perceber de dentro do prprio Ocidente a peculiaridade de tal modelo. O pensamento ocidental est to comprometido com as categorias a partir das quais ele opera, que mesmo quando as critica, ele o faz dentro das possibilidades racionais que elas prprias produziram. a partir dessas possibilidades, que so produtos de desdobramentos racionais que so prprios sua tradio cultural, que ele vai pensar a si mesmo e ao outro. O problema, todavia, est na sua audaciosa pretenso de universalidade que faz com que ele passe a encarar suas categorias e possibilidades racionais como sendo o modelo que, tendo transcendido as contingncias do mundo, o nico capaz de explicar todo o mundo. Todavia, tal modelo tem se mostrado inbil a explicar-se ao diferente ou, mesmo, incapaz de explicar a diferena alheia a si mesmo, sob a justificativa simplista e arrogante de que os modelos de razo produzidos por outras culturas encontrar-se-iam num estgio menos avanado de desenvolvimento. Tal atitude, alm de inviabilizar a possibilidade de qualquer dilogo cultural, contraria prpria vocao do pensamento ocidental: o questionamento de si mesmo a partir da incorporao da diferena (do outro, do estrangeiro), a busca do ponto comum para o qual todos os discursos convergem (uni-versus, donde o seu universal), enfim, o dia-logoi, isto , a oposio de razes (de posies). A China, no presente trabalho, aparece justamente como a tentativa de estabelecer um verdadeiro dilogo cultural, a partir do qual possamos, mediante a contraposio das suas diferenas e potencialidades peculiares, compreender melhor a singularidade das categorias a partir das quais o Direito se estabeleceu no Ocidente. Pois, partindo de um modelo de razo que se apresenta como um modelo absolutamente original e distinto, como o chins, poderemos efetivamente re-colocar em questo a pretensa universalidade do fenmeno jurdico, no porque queiramos enfraquec-la ou reafirm-la, mas porque queremos compreend-la e, sobretudo, permitir a reflexo de suas verdadeiras possibilidades num mundo cujo encurtamento das distncias

28

nos obriga definitivamente a lidar com a diferena cultural e a pensar sobre o destino comum dessa nova humanidade que se forma20. preciso estar atento para o fato de que, se o sentido de humanidade colocado em questo, tambm o ser o do Direito, caso ele se pretenda verdadeiramente universal. Fecham os olhos para a atualidade fervilhante aqueles que, do alto da arrogncia racional do Ocidente, ignoram os protestos das civilizaes que nos circundam, acreditando que basta se fechar dentro dos muros imaginrios da civilizao ocidental e aguardar que os outros povos sejam, mais cedo ou mais tarde, atrados espontaneamente pela verdade evidente de nossas conquistas ou que, em ltimo caso, essas sejam impostas pela fora. preciso lembrar ao Ocidente que, se antes ele pde se impor gradativamente aos seus vizinhos pela dominao, ampliando os seus limites, agora, ele se depara ao menos com duas grandes foras civilizacionais que a ele se opem e cuja importncia no pra de aumentar e invadir os seus espaos culturais: a China e o Isl. preciso recordar tambm que, mesmo apesar de toda violncia da qual fizeram uso as foras polticas ocidentais ao longo da histria, o pensamento do Ocidente sempre se beneficiou voluntariamente dos conhecimentos produzidos pelas culturas que incorporou e sempre procurou enriquecer sua razo com a razo alheia. verdade que tal fato

Numa perspectiva geopoltica, Samuel P. Huntington procura compreender o atual contexto multicivilizacional, a partir do conflito promovido pelas diferenas culturais que agora se vem obrigadas a conviver no contexto de um mundo globalizado, sem, contudo, procurar entender de forma aprofundada as razes culturais dessas diferenas ou, mesmo, instigar um dilogo que levasse a uma futura compreenso mtua. Vide HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizaes; e a Recomposio da Ordem Mundial. Trad. M. H. C. Crtes. So Paulo: Objetiva, 1997. Alexandre Del Valle, embora tambm se ocupe mais em retratar o conflito que em compreender os fundamentos culturais que os suscitam, apresenta um interessante retrato dos choques civilizacionais atuais. Vide DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa. Trad. Jos Augusto Carvalho. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2003.20

29

se deu dentro do confortvel contexto de segurana que seu papel dominante lhe garantia, de onde pde manter um certo controle da dialtica benfica das diferentes idias e valores oriundos das mais diversas culturas com as quais travou contato ao longo da sua trajetria. Alm disso, a distncia funcionou, at pouco tempo, como um filtro salutar desses encontros, permitindo que eles se produzissem gradativamente, no tempo necessrio para que uma parte e outra pudessem assimilar um pouco do adversrio, abrindo espao para um dilogo futuro. J no podemos estar mais to certos do domnio inquestionvel do Ocidente, nem mesmo dentro de seus prprios espaos polticos. Tampouco, podemos contar com a distncia apaziguadora de outrora. Porm, podemos certamente fazer uso da vocao ocidental para o dilogo de idias e reinventar, talvez, uma razo que seja verdadeiramente universal ou, ao menos, que seja capaz de albergar a diferena e a pluralidade. No se trata, entretanto, de reinventar uma razo abstrata, fruto da pura reflexo, mas de desenvolver, a partir da dialtica das diferentes razes e pela oposio delas, a possibilidade de uma ampliao da compreenso de humanidade. Mesmo que no possamos discordar da afirmao de que a liberdade a condio para o desenvolvimento de uma razo consciente de si mesma e do fato incontestvel de que no Ocidente que tal condio apareceu efetivamente na histria21; mesmo que o memorvel esforo ocidental de compreenso do mundo o tenha levado, no fim da Modernidade, a atingir um saber altamente sofisticado e refletido do homem enquanto ser de razo, de uma razo desenvolvida concretamente na histria da vida cultural; mesmo que o apogeu dessa razo seja o saber de ser livre, pois capaz de determinar-se a si mesmo; no podemos, todavia, supor que esse caminho de razo desenvolvido pelo Ocidente se esgote nele mesmo; no podemos, tampouco, pretender queHEGEL, G.W.F. Filosofia da Histria. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2 ed. Braslia: UnB, 1999, p. 24.21

30

tal razo ocidental represente o fim da formao de todo o Esprito humano. Hegel, ao descrever em seu sistema filosfico a formao desse Esprito, ensina que o saber absoluto o momento no qual o Esprito sabese e realiza-se como o resultado do processo dialtico de formao de si mesmo22. Para que possamos prosseguir na reflexo, sem nos aprofundar, por ora, no pensamento hegeliano, vale registrar preliminarmente que, para o filsofo, na Modernidade ocidental que o processo de formao do Esprito se completa. Tendo em vista que, segundo ele, a verdade do Esprito a liberdade, entendida como o saber consciente e efetivado na histria de se ser igualmente livre, s a civilizao ocidental poderia de fato ter realizado tal saber atravs do reconhecimento e da afirmao da liberdade enquanto direito de todos. Todavia, preciso notar que o saber absoluto que esse momento resultante do esprito ocidental, no qual ele toma conscincia de sua trajetria de formao e sabe ser a superao da contradio dos seus vrios aspectos, reconhecendo cada um deles como sendo constitutivo de si no alberga a formao racional de toda humanidade, mas sim da humanidade ocidental. E, no que diz respeito compreenso dessa humanidade que se formou no Ocidente at o fim da Modernidade, a filosofia hegeliana nos parece uma conscincia profundamente esclarecedora, embora sua complexidade inicial, em face da novidade que representa como modo de pensar a razo cultural, promova um certo despeito por parte dos intelectuais de hoje em dia, que a evitam e a criticam, sem t-la verdadeiramente enfrentado. Mas se, como Hegel, pensarmos a razo como um processo de desdobramento de si mesma, de negao mtua de seus aspectos e de22

HEGEL, Fenomenologia do Esprito, cit., p. 530-545 (788-808).

31

reconhecimento, ao final desse devir, de ser cada um deles, isto , da tomada de conscincia de ser a totalidade dos seus prprios contrrios, esta totalidade que o saber absoluto enquanto razo consciente de ser toda a sua trajetria de formao apenas a totalidade da trajetria do Ocidente, o que exclui dela mesma a formao de razes no ocidentais. O saber, conforme o filsofo alemo, alimenta-se da

contradio e da diferena, que, aps ter se contraposto, passa a se reconhecer no seu contrrio, assumindo-o como parte integrante de si. No se elimina, portanto, nenhuma diferena, nem nenhuma contradio na dialtica de formao da razo. Mas sem parecer se dar conta, o que Hegel faz justamente descartar qualquer pensamento no ocidental do processo de formao desse saber absoluto que se pretende universal. Mesmo que o filsofo tenha dedicado parte de sua Filosofia da Histria aos pensamentos hindu e chins, ele os toma como sendo um estgio anterior de um processo que s no Ocidente teve o xito de progredir23. No que discordemos do mrito do Ocidente de ter desenvolvido uma razo livre, como nenhuma outra cultura o fez, mas supor que a razo , em sua verdade, universal, a despeito dos caminhos peculiares que ela percorre em sua trajetria cultural a despeito da lngua, das categorias e rupturas a partir das quais ela se desenvolve , parece uma reduo incompatvel com a prpria lgica dialtica inaugurada por Hegel. Naquele momento histrico, o filsofo no poderia ter

percebido, em seu esforo de sistematizar o caminhar do pensamento ocidental e trata-se, vale dizer, do ltimo esforo nesse sentido , de que a trajetria da razo que descreve, em virtude de seus condicionamentos culturais prprios, no a trajetria de toda a razo do

23

HEGEL, Filosofia da Histria, cit., p. 105-148.

32

mundo, mas de uma razo que tipicamente ocidental e que, portanto, no alberga possibilidades racionais que lhe so estranhas. Afinal, essas possibilidades racionais estrangeiras ao Ocidente no haviam sido e ainda no foram verdadeiramente exploradas pelo pensamento ocidental ao ponto de poderem se integrar a essa razo que se pretende universal. interessante notar que somente depois de Hegel o Ocidente se deu conta que pensamos em lngua e que a prpria razo ocidental est condicionada pelas possibilidades lingsticas que o Ocidente estabeleceu24. A prpria filosofia ocidental s tomou efetivamente contornos de universalidade quando, do esforo de traduo de suas categorias gregas para o latim, ela teve que se reinventar, transcendendo as suas contingncias lingsticas iniciais25. Porm, isso no significa que ela, atravs das lnguas pela qual fala, capaz de comunicar todas as possibilidades da razo humana. Mesmo porque, o que vemos uma extrema dificuldade do Ocidente de traduzir, ou mesmo de compreender, uma razo que se desenvolveu completamente fora do seu eixo de reflexo, como o caso da racionalidade chinesa. impressionante, para no dizer assustador, o nvel de dificuldade de se traduzir um pensamento chins sem distorc-lo drasticamente, diante da necessidade de aproxim-lo de uma razo (no caso a ocidental) cujas possibilidades e expectativas de sentido organizam-se diferentemente. Tal tarefa, hoje, um pouco facilitada pela experincia de sinlogos, como o eminente professor francs, Franois Jullien, da Universit Paris 7, cujo profundo conhecimento do grego clssico, do latim e do chins antigo nos possibilita o acesso crtico ao pensamento da China, considerando as nuances de sentido e as estruturas

24 25

Vide HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. 4 ed. Petrpolis: Vozes, 2008.

Notas dos seminrios dirigidos pelo Professor Franois Jullien na Universit Paris 7 entre os meses de novembro de 2009 e maro de 2010.

33

racionais que so prprias a uma e a outra civilizao. A explorao de uma razo por outra, a tentativa de traduzir linguisticamente um universo de reflexes completamente estrangeiro, , sem dvida, o primeiro passo para o estabelecimento de uma dialtica salutar de idias e compreenses, sem a qual um saber pretensamente absoluto, que integre verdadeiramente todas as possibilidades da razo humana, como quis Hegel, no poderia se produzir. preciso lembrar que, no incio do sculo XIX, quando Hegel produz seu sistema filosfico, o conhecimento que se tinha sobre outras culturas e civilizaes, que estiveram at ento fora do eixo reflexivo ocidental, era extremamente precrio. Os comentrios e as tradues do pensamento chins utilizados por Hegel para proceder suas reflexes sobre a civilizao chinesa eram frutos de uma primeira tentativa de aproximao que no podia ainda se dar conta das peculiaridades desse pensamento e que no estava suficientemente atenta para o fato de que as verses que produzia dos textos chineses adequavam-lhes linguagem e s categorias aproximao. Quando o Ocidente descobre pela primeira vez o pensamento chins no sculo XVII, ele o faz por intermdio dos missionrios jesutas que haviam se instalado na segunda metade do sculo XVI no Oriente e estabelecido os primeiros contatos com a lngua e com a sabedoria da China. A chegada dos portugueses em Macau, no sul da China, se deu em 1557, mas apenas por volta de 1565 ali se instalam os primeiros jesutas. No fim do sculo XVI, o jesuta Matteo Ricci escreve um dicionrio portuguschins, o primeiro em lngua europia, e traduz para o latim os quatro livros fundamentais do confucionismo: os Dilogos de Confcio26, o Grande ocidentais, promovendo muitas vezes uma falsa

Confcio (551 479 a.C.) um dos mais importantes pensadores chineses. Seu pensamento fundou as bases de uma doutrina, o confucionismo, que permeou profundamente a histria da civilizao chinesa. Nossa verso do seu nome uma latinizao de Kng F Z (ou Kung Fu Ts), literalmente "Mestre Kong". Vide GRANET,26

34

Aprendizado, o Livro de Mncio e a Doutrina do Meio27. Mas somente em 1687 que publicada na Europa a primeira compilao em latim, preparada pelos jesutas, do pensamento confucionista, o Confucius Sinarum Philosophus (Confcio filsofo da China) e, no ano seguinte, uma verso abreviada francesa, La Morale de Confucius: philosophe de la Chine (A moral de Confcio: filsofo da China). a partir de ento que o pensamento chins ser, pela primeira vez, levado ao conhecimento da elite intelectual europia e recebido, num primeiro momento, com grande entusiasmo e admirao, produzindose um certo mito de uma moral chinesa fundada em princpios de razo, que se pretendiam semelhantes aos do Ocidente28. Entretanto, preciso chamar ateno para o fato de que o que a Europa recebia como sendo todo o pensamento chins era apenas a doutrina confucionista apreendida pelos padres jesutas junto aos altos funcionrios eruditos do imprio chins, a qual era adaptada e traduzida nos termos das categorias ocidentais. Alm disso, o taosmo e o budismo ficaram excludos das reflexes europias nesse primeiro momento, pois eram considerados pelos mandarins chineses e, conseqentemente, pelos seus interlocutores jesutas, como devoes supersticiosas, marginais ao pensamento oficial chins29. o ideal de uma China laica e tolerante, que cultua apenas o cu e a terra, e que funda sua moral numa sabedoria milenar e intelectualizada, que atrai fortemente importantes pensadores

Marcel. O Pensamento Chins. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 288. CHENG, Anne. Histoire de la Pense Chinoise. Paris: Seuil, 1997, p. 63. BSINEAU, Jacques. Matteo Ricci: Serviteur du Matre du Ciel. Paris: Descle de Brouwer, 2003, p. 25, 43-44 et 47.27

Notas do curso Confucius revisit: textes anciens, nouveaux discours, ministrado pela Professora Anne Cheng, no College de France, entre os meses de dezembro de 2009 e fevereiro de 2010.28 29

BSINEAU, Matteo Ricci, cit., p. 73-74.

35

ocidentais, como Malebranche (1638 - 1715), Leibniz (1646 - 1716) e Voltaire (1694 1778)30. No tardou, todavia, para que, num segundo momento, esta China idealizada comeasse a ser criticada pelos filsofos do iluminismo, que passaram a ver, onde se via uma moral chinesa racional, opresso da individualidade, ausncia de liberdade e misticismo31. De todo modo, sobre bases extremamente precrias e muitas vezes distorcidas que a Europa ir formular suas primeiras reflexes sobre o pensamento chins, seja para enaltec-lo, seja para menosprez-lo. Billeter chama ateno para o fato de que a nica informao histrica de que a Europa dispunha sobre a China no sculo XIX era a Histoire Gnrale de la Chine (Histria Geral da China) do padre jesuta Mailla, publicada entre os anos 1777 e 1783, uma adaptao de uma compilao chinesa do sculo XII e completada ao longo do tempo pelos funcionrios imperiais, o Tng Jin Gng M 32. dessas exguas informaes histricas, bem como de tradues pouco precisas da obra de Kng Z (Confcio) e do Do d Jng (ou Tao-te Ching), que dispunham Hegel e boa parte dos pensadores iluministas para produzir suas prelees sobre a China. O problema est em concluir, peremptoriamente e sem explorar adequadamente uma razo que se estrutura de modo distinto, que ela se encontraria num estgio menos avanado.

MALEBRANCHE, Nicolas. Dilogos de um Filsofo Cristo e de um Filsofo Chins.Trad. Joo Gama. Lisboa: Edies 70, 1990; LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Discourse on the Natural Theology of the Chinese. Trad. H. Hosemont and D. J. Cook. Honolulu: University of Hawai'i Press, 1986; VOLTAIRE. Dictionnaire Philosophique. Paris: Flammarion, 1964; VOLTAIRE. Trait sur la Tolrance. Paris: Flammarion, 1989.30

Notas do curso Confucius revisit: textes anciens, nouveaux discours, ministrado pela Professora Anne Cheng, no College de France, entre os meses de dezembro de 2009 e fevereiro de 2010.31 32

BILLETER, Contre Franois Jullien, cit., p. 15-16.

36

Parece-nos mais interessante e construtivo para um dilogo entre culturas que passam definitivamente a conviver num cenrio global, promover uma compreenso consciente da diferena, o que fundamental mesmo para uma verdadeira compreenso de ns mesmos, enquanto partes desse dilogo inevitvel. Afinal, diante de um modo de pensar, como o chins, que se estabelece sobre escolhas e possibilidades distintas, tornam-se ainda mais evidentes as categorias a partir das quais o Ocidente pensa o mundo e organiza-se politicamente, bem como o fato de que a sua preocupao com o universal no efetivamente universal33, se consideramos a singularidade dos condicionamentos culturais que promoveram sua inveno.

JULLIEN, De lUniversel, de lUniforme, du Commun et du Dialogue entre les Cultures, cit., p. 104-105.33

37

SEGUNDA PARTEDUAS TRADIES INTELECTUAIS: OCIDENTE E CHINA

3. ENTRE O CHINS E O OCIDENTAL: OS CONDICIONAMENTOS LINGSTICOS

O Ocidente esse complexo civilizacional que, embora albergue uma pluralidade de culturas locais extremamente distintas e diferentes organizaes polticas, se funda sobre um sistema lingstico, um modelo racional e uma tradio tica que, alm de uma origem comum, se desenvolveram dentro de um quadro cultural compartilhado. Do outro lado de nossas reflexes, a identificao mais fcil, visto que a China 34, alm dos fundamentos lingstico, racional e tico que lhe conferem identidade, conjuga todas as suas variantes culturais sob uma mesma unidade poltica. Todavia, ao invs de nos ocuparmos de debates

geoestratgicos, a fim de definir os limites arbitrrios dessas duas civilizaes, preferimos a via da compreenso dos elementos centrais que caracterizam os seus modos de pensar e de se organizar socialmente, os quais, embora possam variar enormemente em seus diferentes momentos histricos e sofrer a oposio de perspectivas outras que lhes contestam, representam o fundamento ou a causa cultural que confere sentido s realizaes concretas de uma e de outra civilizao. O primeiro elemento comum a este amlgama de culturas a que chamamos civilizao ocidental a lngua, embora tal fato seja pouco evidente, diante da diversidade de lnguas faladas por ocidentais. Afinal, o que poderia haver de comum entre lnguas cujos falantes, muitas vezes, no podem nem mesmo se compreender? Porm, basta abrir um livro cientfico ou filosfico em qualquer lngua ocidental para que as semelhanas comecem a aparecer. justamente a que a comunicao entre as vrias culturas ocidentais se manteve sempre viva, permitindo aPara um profundo estudo da histria da civilizao chinesa vide GRANET, Marcel. La Civilisation Chinoise. Paris: Albin Michel, 1994; GERNET, Jacques. Le Monde Chinois. De lge de bronze au Moyen ge. Paris: Armand Colin, 2005; GERNET, Jacques. Le Monde Chinois. Lpoque Moderne. Paris: Armand Colin, 2005; GERNET, Jacques. Le Monde Chinois. Lpoque Contemporaine. Paris: Armand Colin, 2005.34

39

elaborao de um fundo civilizacional comum. A lngua grega e, posteriormente, a latina foram durante grande parte da histria do Ocidente as suas nicas lnguas escritas, atravs das quais todo o pensamento ocidental se expressou at praticamente o sculo XVI. E, mesmo aps o estabelecimento formal das diversas lnguas europias, a partir da Modernidade, o latim e o grego continuaram fornecendo grande parte do vocabulrio cientfico e o modelo gramatical a partir do qual as demais lnguas se desenvolveram. Isto vale no s para as lnguas latinas, mas tambm para o ingls, para o alemo etc. Alm disso, visto a partir de um outro sistema lingstico, o elemento comum das lnguas ocidentais torna-se mais patente. Todas elas compartilham um esquema gramatical que dispe, consideradas as peculiaridades de cada uma, de uma rica possibilidade de expresso verbal (futuro, passado, subjuntivo, condicional, entre outros) e uma infinidade de elementos que possibilitam especificar ou generalizar o discurso (artigos, pronomes, preposies, declinaes etc.). Tal esquema um modelo bastante peculiar das lnguas indo-europias35 ou das lnguas que se desenvolveram a margem delas. Do lado chins, o elemento lingstico comum, assim como no Ocidente, no se resume a uma nica lngua. Quando nos referimos lngua chinesa estamos, na verdade, fazendo aluso ao mandarim, lngua oficial da China, falado por quase 900 milhes de pessoas e que se baseia na lngua falada na regio de Beijing, cuja escritura teria sido estandardizada pela primeira vez no sculo III a.C. pela Dinastia Qin. Tratase da lngua utilizada pelos pensadores chineses e pelos funcionrios (mandarins) das sucessivas dinastias da China, razo pela qual ela ficou conhecida no Ocidente com esse nome. Em mandarim se diz: gun

Vide FORTSON, Benjamin W. Indo-European Language and Culture: An Introduction. 2 ed. New York: Wiley-Blackwell, 2009; BENVENISTE, mile. Le Vocabulaire des Institutions Indoeuropennes. Pouvoir, Droit, Religion. T. 2. Paris: Les ditions de Minuit, 1969.35

40

hu36 , que significa literalmente linguagem dos oficiais ou dos mandarins. Mas, tambm se diz, sobretudo, em referncia ao mandarim estandarte, hn y37, lngua dos hn, nome do grupo tnico majoritrio da China, bem como da dinastia que dominou o pas entre os sculos II a.C. e II d.C., ou p tng hu38, linguagem comum39. Ao lado do mandarim, vrias outras lnguas so faladas na China, dentre as quais as mais difundidas so o w y40 da regio de Xangai, e o cantons, yu y41, do sul do pas, faladas, cada qual, por mais de 80 milhes de chineses. As diferenas entre as lnguas faladas na China so to importantes quanto as que encontramos na Europa, o que faz com que um falante de determinada lngua no compreenda necessariamente um falante de outra. Todavia, a escritura chinesa representa um fator de unidade espetacular. Por mais que haja determinadas variaes locais e usos distintos de um mesmo ideograma, a linguagem escrita praticamente a mesma nas diferentes regies. Alm disso, tendo em vista que o mandarim foi durante quase toda a histria da China a lngua oficial do pas, quase todos os textos e registros esto escritos nessa lngua. Portanto, a despeito das variaes que apresenta, podemos afirmar que atravs do mandarim que o pensamento chins se expressou ao longo da histria. Visto que pensamos atravs da lngua, o modo de pensar estabelecido por uma civilizao estar necessariamente ligado as suas possibilidades lingsticas. O tipo de discurso desenvolvido por uma cultura se constroi atravs das palavras das quais se dispe ou da necessidade de36 37 38 39

, em ideogramas simplificados. , em ideogramas simplificados. , em ideogramas simplificados.

Um excelente panorama da Histria da China a obra coletiva organizada por Bai Shouyi, escrita por chineses em lngua inglesa e publicada pele primeira vez em 1982: SHOUYI, Bai (Org.). An Outline History of China. Beijing: Foreign Languages Press, 2002.40 41

, em ideogramas simplificados. , em ideogramas simplificados.

41

cri-las justamente para poder comunicar os seus raciocnios e idias. Alm disso, as suas possibilidades gramaticais revelam de modo bastante interessante o prprio carter da sua maneira de pensar. O primeiro distanciamento entre esses dois sistemas lingsticos tos distintos reside no registro pictogrfico (no fontico) da lngua chinesa42. O seu carter esttico e concreto contrasta com o perfil gramatical e abstrato das lnguas ocidentais, o que repercute de modo diverso nas formas de pensar e de representar a realidade de uma e de outra civilizao. Segundo Franois Jullien, o ideograma apresenta-se como o smbolo vivo do processo do mundo. Seus traos, que se atraem e se repelem, reproduzem a prpria lgica do dinamismo, do contraste e da correlao43, tpica do pensamento chins, alm da concretude das suas representaes. Ensina Anne Cheng, professora de sinologia do prestigiado College de France:No lugar de se apoiarem em construes conceituais, os pensadores chineses partem de signos escritos eles mesmos. Longe de ser uma concatenao de elementos fonticos em si desprovidos de significao, cada um deles constitui uma entidade portadora de sentido e se percebe como uma coisa entre as coisas. [...] Pela especificidade de sua escritura, o pensamento chins pode se imaginar inscrito no real ao invs de sobrepor-se a ele. Esta proximidade ou fuso com as coisas provm ela mesma, sem dvida, da representao, mas ela no determina uma maneira de pensar que, no lugar de elaborar objetos numa distncia crtica, tende ao contrrio a permanecer imersa no real para melhor sentir e preservar nele a harmonia. [...] A Filosofia da Antigidade grega e latina no se concebe sem a existncia de prefixos de privao, de sufixos que permitem a abstrao, etc. sabido que a escolstica medieval procede em grande parte de uma reflexo sobre as categorias da gramtica latina: distino do substantivo e do adjetivo, do passivo e do ativo A propsito vide ABEL-REMUSAT, Jean Pierre. Sur la Nature des Formes Grammaticales en Gnral et sur le Gnie de la Langue Chinoise en Particulier. Paris: Nabu, 2010; GUIGNES, Joseph de. Lettre de Pekin: Sur le Gnie de la Langue Chinoise et la Nature de leur Ecriture Symbolique (1773). Paris: Kessinger, 2009.42 43

JULLIEN, La Propension des Choses, cit., p. 76-77.

42

(sujeito/objeto), verbo de existncia, etc. De modo diverso, o chins no uma lngua que comporta flexo, na qual o papel de cada parte do discurso determinado pelo gnero, pela marca do singular e do plural, pela declinao, pela conjugao, etc.: as relaes so idnticas somente pela posio das palavras (cada signo escrito, vale lembrar, constitui uma unidade de sentido) na cadncia da frase. [...] Em relao s lnguas indo-europias, um dos fatos mais impressionantes a ausncia, no chins antigo, do verbo ser como predicado, ficando a identidade indicada pela simples justaposio44.

A indistino entre verbos, substantivos e adjetivos e a inexistncia de flexo verbal motivo de inmeras especulaes sobre a possibilidade de se filosofar em chins. Conforme Marcel Granet, um dos mais importantes sinlogos franceses:Pode-se supor, alis, que o hbito da escrita figurativa foi um obstculo para qualquer desenvolvimento da lngua que levasse a utilizar os diversos processos possveis de derivao. Nos idiomas que admitem esses processos, a conscincia das derivaes pode predispor e contribuir para a anlise de idias45.

E, em outro trecho, completa:

CHENG, Histoire de la Pense Chinoise, cit., p. 35. Texto original: Au lieu de sappuyer sur des constructions conceptuelles, les penseurs chinois partent des signes crits eux-mmes. Loin dtre une concatnation dlments phontiques en soi dpourvus de signification, chacun deux constitue une entit porteuse de sens et se peroit comme une chose parmi les choses. [] De par la spcificit de son criture, la pense chinoise peut se figurer quelle sinscrit dans le rel au lieu de sy superposer. Cette proximit ou fusion avec les choses relve sans doute elle-mme de la reprsentation, mais elle nen dtermine pas moins une forme de pense qui, au lieu dlaborer des objets dans la distance critique, tend au contraire rester immerge dans le rel pour mieux en ressentir et en prserver lharmonie. [] La philosophie de lAntiquit grecque et latine ne se conoit pas sans lexistence de prfixes privatifs, de suffixes qui permettent labstraction, etc. Il est bien connu que la scolastique mdivale procde en grande partie dune rflexion sur les catgories de la grammaire latine : distinction du substantif et de ladjectif, du passif et de lactif (sujet/objet), verbe dexistence, etc. Par contraste, le chinois nest pas une langue flexionnelle dans laquelle le rle de chaque partie du discours est dtermin par le genre, la marque du singulier et du pluriel, la dclinaison, la conjugaison, etc. : les relations sont indiques seulement par la position des mots (chaque signe crit, rappelons-le, constituant une unit de sens) dans la chane de la phrase. [] Au regard des langues indoeuropennes, lun des faits les plus frappants est labsence, en chinois ancien, du verbe tre comme prdicat, lidentit tant dailleurs indique par une simple juxtaposition .44 45

GRANET, O Pensamento Chins, cit., p. 40.

43

O chins no acentua o tempo, nem o nmero, nem o gnero; isso permitia formular com graa alguns paradoxos, mas dificultava qualquer anlise das idias. O chins no distingue o verbo, o substantivo, o adjetivo, o advrbio etc.; nessas condies, maravilhoso que se tenha tido a idia de analisar as relaes entre os termos aproximados do discurso, e no chega a surpreender que no se tenha levado essa anlise muito longe46.

Do lado ocidental, a lngua e o pensamento estabeleceram-se, ao contrrio, a partir de uma sintaxe gramatical que separa e identifica a funo de cada um dos seus elementos e a partir de um discurso igualmente analtico, o que favoreceu uma lgica de derivaes, ocupada em expressar e compreender corretamente as relaes entre os dados da linguagem, do pensamento e da realidade. Na China, essa relao sinttica entre sujeito, verbo e predicado, a partir da qual o Ocidente se expressa, no se opera da mesma maneira. Na lngua clssica, o sujeito da frase normalmente dispensvel, no porque ele se encontra oculto ou implicitamente expresso na conjugao verbal, como nas lnguas ocidentais, mas porque a ao no necessita de um agente (de um sujeito). Do mesmo modo o tambm o verbo. No que a lngua no tenha sujeito e verbo, mas ela pode se expressar perfeitamente sem eles (sem as noes de sujeito da ao e de ao praticada por um sujeito), e, mesmo quando os utiliza, ela no os distingue claramente pela forma ou pela posio na frase, mas apenas em funo do contexto semntico e do ritmo em que os emprega. Conforme Marcel Granet:J que a lngua chinesa recusou-se a pedir qualquer apoio a uma sintaxe variada e precisa, para compor em chins no h outro meio seno recorrer magia dos ritmos. S possvel expressar-se depois de um aprendizado em que se treinado a empregar, em

46

GRANET, O Pensamento Chins, cit., p. 270.

44

sua plena eficcia, no apenas frmulas proverbiais, mas tambm ritmos consagrados47.

No se ensinam as regras de composio de um poema (tampouco se ensinam as regras de composio do pensamento ou do discurso), mas treina-se, pela repetio, at se alcanar a sua essncia rtmica. Essa no passvel de transmisso discursiva ou dialtica48. Na prosa chinesa, o ritmo tem as mesmas funes que a sintaxe exerce noutras lnguas49. Portanto, no se compreende um autor chins enquanto no se penetra nos segredos rtmicos por meio dos quais ele aponta e fornece a chave de seu pensamento50. Alm disso, conforme veremos, o Ocidente pensa a partir do eu, que se coloca como sujeito que age e que produz conhecimento, abusando das mltiplas formas verbais de que dispe para formular hipteses e condies, para encadear causas e conseqncias, para pensar o ser ideal em oposio ao ser concreto. Ao contrrio, na concepo de mundo que se forma na China antiga nada resultado de uma ao, seja de uma ao do indivduo, seja de uma ao da natureza ou dos deuses. Tudo um processo ( do): tudo uma correlao de fatores que se encontram e participam igualmente do devir do mundo. E esses fatores se alternam num movimento de atrao e de repulso. Eles no produzem nada, no tm origem ou causa ( arch), tampouco tm fim ( tlos). O homem apenas um fator como tudo mais no mundo; sua ao apenas o resultado de um encontro de fatores. O mundo movimento, alternncia e oposio desses fatores.

47 48 49 50

GRANET, O Pensamento Chins, cit., p. 58. GRANET, O Pensamento Chins, cit., p. 59. GRANET, O Pensamento Chins, cit., p. 60. GRANET, O Pensamento Chins, cit., p. 61.

45

Vale anotar, desde j, que essa breve e preliminar explicao j contm, a despeito dos nossos esforos, uma distoro inevitvel do pensamento chins, produzida pela estrutura lingstica, pelas expectativas de sentido e pelas categorias a partir das quais pensamos no Ocidente. De incio, a lngua chinesa dispensa o verbo, sobretudo o verbo ser, para dizer esse movimento. Ela se contenta em justapor os ideogramas de modo que do contraste, da alternncia e da polaridade dos seus sentidos, ela reproduza linguisticamente o prprio significado dinmico do devir do mundo. Entre um sujeito e um predicado no se exige a conexo verbal. No se diz em chins o homem ou o mundo . A ttulo de exemplo, quando se l numa traduo ocidental do Do d jng51, o do algo...52, introduz-se na frase essa noo de ser e de predicativo que no prpria da lngua chinesa. Em chins se diz (do zh wi w)53, literalmente: o do (o processo ou o caminho) tornar-se algo. Na traduo de Anne Cheng dos Dilogos de Confcio tem-se: Os homens so, por natureza, semelhantes; na prtica que eles divergem54. O mesmo trecho traduzido por Pierre Ryckmans da seguinte maneira: A natureza aproxima, o costume separa55. No texto original tmEm ideogramas simplificados: . Vale registrar que utilizamos o sistema fontico de romanizao da lngua chinesa estabelecido em 1958,