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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOLOGIA E LNGUA PORTUGUESA

BRUNO OLIVEIRA MARONEZE

Um estudo da mudana de classe gramatical em unidades lexicais neolgicas

So Paulo 2011

UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOLOGIA E LNGUA PORTUGUESA

Um estudo da mudana de classe gramatical em unidades lexicais neolgicas

Bruno Oliveira MaronezeTese apresentada ao Programa de PsGraduao em Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Letras

Orientadora: Prof. Dr. Ieda Maria Alves

So Paulo 2011

Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogao da Publicao

MARONEZE, Bruno Oliveira. Um estudo da mudana de classe gramatical em unidades lexicais neolgicas. Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Letras.

Aprovado em:

Banca examinadora: Prof. Dr.____________________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr.____________________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr.____________________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr.____________________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr.____________________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________________ Assinatura: ______________________

Agradecimentos Milene, pelo apoio incondicional em todos os momentos, em especial na finalizao desta etapa de meu percurso acadmico, e pelas leituras atentas de meus textos e desta Tese; A meus pais, lvaro e Sueli, e irmos, Andr e Roberta, por todo o carinho e apoio; prof. Ieda, pela valiosa orientao e pelas produtivas discusses tericas e metodolgicas ao longo de mais de dez anos de convivncia acadmica; A todos os colegas do Projeto TermNeo, atuais e anteriores, que trabalharam comigo ao longo desses mais de dez anos de pesquisa, em especial Ana Maria, Luciana, Eliane Simes, Mariangela, Thas Lobrigate, Thais Arajo, Sandra, Elenice, ngela, James, Paola, Karine, Ivan, Gilberto, Joo, Leila, Jofre, Eliana dos Anjos, Juliana, Ana Paula e tantos outros com quem tive a feliz oportunidade de trabalhar; Aos professores Mrio e Elis, pelas valiosas contribuies ao longo de meu percurso acadmico e especialmente na Banca de Qualificao deste trabalho; Ao Aderlande, pela amizade, pelas trocas de experincia e em especial pelo auxlio em conseguir material bibliogrfico; Aos alunos e colegas da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Rondonpolis, pelo apoio na finalizao desta Tese; Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela bolsa concedida no perodo de 2007 a 2009; E a todos os amigos e colegas que de alguma forma estiveram presentes na minha vida acadmica e que seria impossvel enumerar aqui.

RESUMO MARONEZE, Bruno Oliveira. Um estudo da mudana de classe gramtical em unidades lexicais neolgicas. 2011. 198 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. A mudana de classe gramatical consiste na criao de uma unidade lexical em uma classe gramatical diferente da classe da base. Para efetuar essa criao, os falantes dispem de diversos mecanismos, como a derivao sufixal (com diversos sufixos), a derivao parassinttica, a derivao regressiva e a converso. Nosso objetivo, no presente trabalho, o de descrever tais mecanismos, procurando compreender por que motivo(s) os falantes criam novas unidades lexicais em classes gramaticais diferentes. Buscando a fundamentao terica da Lingustica Cognitiva, procuramos dividir nossa anlise em duas perspectivas: a perspectiva onomasiolgica, em que analisamos os mecanismos de criao lexical, e a perspectiva semasiolgica, em que analisamos os mecanismos de interpretao de uma nova unidade lexical. Seguindo as ideias da Lingustica Cognitiva, entendemos que as classes gramaticais devem ser consideradas categorias semnticas, e a mudana de classe, um processo de natureza basicamente semntica. Considerando apenas as classes gramaticais de natureza lexical, os seis tipos de mudana de classe possveis em portugus so: adjetivo para substantivo, verbo para substantivo, substantivo para adjetivo, verbo para adjetivo, substantivo para verbo e adjetivo para verbo. Dessa forma, separamos 1.209 neologismos resultantes de mudana de classe gramatical integrantes da Base de neologismos do portugus brasileiro contemporneo (que faz parte do Projeto TermNeo Observatrio de Neologismos do Portugus Brasileiro Contemporneo) e os classificamos em cada um dos seis tipos de mudana de classe. Para cada um dos tipos, analisamos onomasiologicamente os mecanismos de criao e, semasiologicamente, os mecanismos de interpretao desses neologismos. A derivao sufixal o mecanismo mais empregado, com inmeros sufixos produtivos no portugus contemporneo, muitos deles polissmicos; no entanto, a derivao parassinttica na formao de verbos e a derivao regressiva na formao de substantivos abstratos tambm so mecanismos produtivos. H alguns casos importantes de concorrncia entre sufixos, como -ice e -(i)dade na mudana de adjetivo para substantivo e -o e -mento na mudana de verbo para substantivo. Na anlise da interpretao dos neologismos, a metonmia revelou-se um processo importante em quase todos os tipos de mudana de classe. Por fim, as anlises parecem indicar que os falantes operam a mudana de classe gramatical com a finalidade de exprimir novos conceitos, no apenas por razes meramente morfossintticas. Palavras-chave: Neologismo. Neologia. Classe gramatical. Morfologia. Criao lexical.

ABSTRACT MARONEZE, Bruno Oliveira. A study of word class change in neological lexical units. 2011. 198 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. Word class change consists on the creation of a lexical unit in a word class different from the bases class. In order to do this, speakers have at their disposal many mechanisms, like suffixal derivation (with many different suffixes), parasynthetic derivation, regressive derivation and conversion. Our goal, in this study, is to describe such mechanisms, trying to figure out why speakers create new lexical units in different word classes. With the theoretical foundations of Cognitive Linguistics, we divide our analysis in two perspectives: the onomasiological perspective, in which we analyse the mechanisms of lexical creation, and the semasiological perspective, in which we analyse the mechanisms of interpretation of a new lexical unit. According to Cognitive Linguistics, we understand that word classes must be considered semantic categories, and word class change, a basically semantic process. Considering only the lexical word classes, the six possible types of word class change in Portuguese are: adjective to noun, verb to noun, noun to adjective, verb to adjective, noun to verb and adjective to verb. Therefore, we collected 1,209 neologisms resulting from a word class change process from the Base de neologismos do portugus brasileiro contemporneo (Contemporary Brazilian Portuguese neologism database - part of Project TermNeo Contemporary Brazilian Portuguese Neologism Observer) and classified them into the six types of word class change. For each one of these types, we analysed onomasiologically the creation mechanisms and, semasiologically, the interpretation mechanisms of these neologisms. Suffixal derivation is the most employed mechanism, with many suffixes which are productive in contemporary Portuguese, many of them polysemic; however, parasynthetic derivation in verb creation and regressive derivation in the formation of abstract nouns are also productive mechanisms. There are some important cases of suffix competition, like -ice and -(i)dade in the change from adjective to noun and -o and -mento in the change from verb to noun. In analyzing neologism interpretation, metonymy revealed itself an important process in almost all types of word class change. Finally, the analyses seem to show that speakers change word class in order to express new concepts, and not only for merely morphosyntactic reasons. Keywords: Neologism. Neology. Word class. Morphology. Word formation.

Lista de figurasFigura 1 Viso aristotlica de categorizao .........................................................................14 Figura 2 Categorizao segundo a teoria do prottipo ..........................................................15 Figura 3 Representao das relaes associativas fonolgicas de ensinamento ...................32 Figura 4 Representao das relaes associativas semnticas de ensinamento ....................32 Figura 5 Relaes associativas de casebre ............................................................................35 Figura 6 Esquema do sufixo -(i)dade ....................................................................................37 Figura 7 Formao do neologismo fiscalidade .....................................................................38 Figura 8 Esquema do "sufixo" -chim.....................................................................................40 Figura 9 Esquemas de adio dos sufixos -o e -mento ......................................................44 Figura 10 Subesquema de adio de -mento a verbos em -ear .............................................45 Figura 11 Comparao entre verbo e substantivo .................................................................68 Figura 12 Esquema de formao de um verbo parassinttico ...............................................82 Figura 13 Esquema de formao de um derivado regressivo..............................................111 Figura 14 Mudana de adjetivo para substantivo ................................................................114 Figura 15 Mudana de verbo para substantivo....................................................................115 Figura 16 Mudana de substantivo para adjetivo ................................................................142 Figura 17 Mudana de verbo para adjetivo .........................................................................142 Figura 18 Mudana de substantivo para verbo....................................................................162 Figura 19 Mudana de adjetivo para verbo .........................................................................162

Sumrio1. Introduo.............................................................................................................................10 1.1. Objetivos e hipteses desta Tese ...................................................................................10 1.2. Organizao desta Tese .................................................................................................11 2. Conceitos tericos a respeito de formao de palavras ........................................................12 2.1. O conceito de palavra.................................................................................................12 2.2. Os conceitos de neologia, neologismo, formao de palavras............................16 2.3. Neologia como mudana lexical ...................................................................................17 2.3.1. Mecanismos e causas da criao lexical (neologia) ...............................................19 2.3.1.1. Tipologia de causas da criao lexical ............................................................20 2.4. Onomasiologia e Semasiologia: Neologia na perspectiva onomasiolgica ..................22 2.4.1. Relaes entre os mecanismos e as causas da criao lexical................................23 2.4.2. Fatores que influenciam a seleo do mecanismo..................................................26 2.4.3. Mecanismos de criao lexical: neologia sinttica.................................................29 2.4.3.1. Organizao cognitiva do lxico .....................................................................31 2.4.3.2. Analogia ..........................................................................................................35 2.4.3.3. Fora e incrustamento de um esquema............................................................39 2.4.3.4. Produtividade...................................................................................................40 2.4.3.5. Restries produtividade...............................................................................43 2.5. Onomasiologia e Semasiologia: Neologia na perspectiva semasiolgica .....................46 2.5.1. A composicionalidade na interpretao dos neologismos......................................47 2.5.2. A polissemia dos mecanismos de criao lexical...................................................49 2.5.2.1. Reinterpretao................................................................................................51 2.5.2.2. Subjetivizao..................................................................................................52 2.6. Neologia e Lingustica Histrica ...................................................................................53 2.7. Para finalizar o captulo.................................................................................................54 3. Conceitos tericos a respeito de classes gramaticais............................................................56 3.1. O que so classes gramaticais........................................................................................56 3.1.1. Classes postuladas a priori .....................................................................................57 3.1.2. A combinao de critrios de classificao............................................................60 3.1.2.1. Os critrios da gramtica tradicional ...............................................................60 3.1.2.2. Um critrio exclusivamente semntico?..........................................................62

3.1.3. A natureza semntica das classes gramaticais........................................................63 3.1.4. As classes gramaticais segundo a Gramtica Cognitiva.........................................65 3.2. Mudana de classe gramatical .......................................................................................68 3.2.1. Por que mudar a classe gramatical .........................................................................69 3.2.2. Tipos de mudana de classe gramatical em portugus ...........................................70 3.2.3. Mudana de classe expressa sintaticamente e por morfemas livres .......................72 3.2.4. Mudana de classe expressa derivacionalmente.....................................................74 3.2.4.1. Adjetivo -> substantivo ...................................................................................74 3.2.4.2. Verbo -> substantivo .......................................................................................75 3.2.4.3. Substantivo -> adjetivo....................................................................................76 3.2.4.4. Verbo -> adjetivo.............................................................................................77 3.2.4.5. Substantivo -> verbo........................................................................................77 3.2.4.6. Adjetivo -> verbo ............................................................................................83 3.3. Para finalizar o captulo.................................................................................................83 4. Metodologia..........................................................................................................................84 4.1. Constituio do corpus ..................................................................................................84 4.2. Corpus de excluso........................................................................................................85 4.3. Dados analisados ...........................................................................................................86 4.4. Questes a serem observadas ........................................................................................88 4.4.1. Emprego de corpus.................................................................................................88 4.4.2. Corpus de excluso.................................................................................................90 4.4.3. Mtodos quantitativos ............................................................................................91 4.5. Para finalizar o captulo.................................................................................................92 5. Anlise dos dados .................................................................................................................93 5.1. Formao de substantivos..............................................................................................93 5.1.1. Anlise onomasiolgica da formao de substantivos ...........................................93 5.1.1.1. Substantivos derivados de adjetivos ................................................................93 5.1.1.2. Substantivos derivados de verbos..................................................................103 5.1.2. Anlise semasiolgica da formao de substantivos............................................112 5.1.2.1. Substantivos derivados de adjetivos ..............................................................112 5.1.2.2. Substantivos derivados de verbos..................................................................112 5.1.3. Formao de substantivos: algumas consideraes..............................................113 5.2. Formao de adjetivos .................................................................................................115 5.2.1. Anlise onomasiolgica da formao de adjetivos...............................................116

5.2.1.1. Adjetivos derivados de substantivos .............................................................116 5.2.1.2. Adjetivos derivados de verbos.......................................................................133 5.2.2. Anlise semasiolgica da formao de adjetivos .................................................138 5.2.2.1. Adjetivos derivados de substantivos .............................................................138 5.2.2.2. Adjetivos derivados de verbos.......................................................................139 5.2.3. Formao de adjetivos: algumas consideraes ...................................................140 5.3. Formao de verbos.....................................................................................................143 5.3.1. Anlise onomasiolgica da formao de verbos ..................................................143 5.3.1.1. Sufixo -izar....................................................................................................144 5.3.1.2. Sufixo -ar.......................................................................................................146 5.3.1.3. Sufixo -ear.....................................................................................................149 5.3.1.4. Sufixo -(i)ficar...............................................................................................151 5.3.1.5. Sufixo -e(s)cer ...............................................................................................152 5.3.1.6. Derivao parassinttica ................................................................................153 5.3.2. Anlise semasiolgica da formao de verbos .....................................................155 5.3.2.1. Verbos derivados de substantivos .................................................................155 5.3.2.2. Verbos derivados de adjetivos.......................................................................160 5.3.3. Formao de verbos: algumas consideraes.......................................................161 6. Consideraes finais ...........................................................................................................164 Referncias bibliogrficas ......................................................................................................167 Anexo .....................................................................................................................................176

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1. IntroduoA todo momento nos deparamos com palavras novas, sejam as que encontramos nos textos orais ou escritos, sejam aquelas que ns mesmos criamos. O fenmeno to comum que muitas vezes sequer nos damos conta de que estamos empregando, lendo ou ouvindo uma palavra nova. Se o fenmeno da criao de novas palavras (ou neologismos) muito comum, o estudo dessas palavras pela Lingustica nem sempre foi tido como importante. Para muitas correntes tericas, o estudo dos neologismos pouco ou nada revela que seja de interesse terico. Evidentemente, esta no a postura adotada nesta Tese. Optamos por estudar os neologismos, entre outros motivos, por acreditarmos que eles podem ajudar a esclarecer pontos importantes da teoria lingustica. Esperamos, ao trmino deste trabalho, ter contribudo para mostrar isso.

1.1. Objetivos e hipteses desta TeseO objetivo principal deste trabalho foi descrever e analisar os processos de criao lexical que operam a mudana de classe gramatical em portugus. Para tanto, analisamos os dados da Base de neologismos do portugus brasileiro contemporneo, integrante do projeto TermNeo Observatrio de neologismos do portugus brasileiro contemporneo (coordenado pela Prof. Dr. Ieda Maria Alves). Os seguintes objetivos especficos foram perseguidos: a) problematizar, do ponto de vista terico, a delimitao das classes gramaticais (com foco nas classes gramaticais plenas substantivo, adjetivo e verbo) e a mudana de classe gramatical; b) c) elencar os mecanismos de mudana de classe gramatical atuantes no portugus contemporneo, com base nas unidades lexicais neolgicas; analisar tais mecanismos, com nfase na derivao sufixal, procurando observar as diferenas de uso entre os sufixos, como restries impostas pela base, diferenas de produtividade, eventuais conotaes etc.; d) descrever a polissemia dos mecanismos de criao lexical, bem como alguns dos recursos que o falante emprega para interpretar os neologismos. A principal pergunta que nos fizemos no incio desta pesquisa foi: por que os falantes criam novas unidades lexicais mudando sua classe gramatical? Procuramos a resposta do

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ponto de vista terico (discutida no captulo 2) e a partir da anlise dos dados (retomada no captulo 6). Nossa principal hiptese que a motivao para a mudana de classe gramatical essencialmente semntica, e no morfossinttica, assim como a prpria delimitao das classes gramaticais. Para perseguir essa hiptese e esses objetivos, buscamos a fundamentao terica da Lingustica Cognitiva, que, em suas vrias correntes, enfatiza o aspecto semntico na anlise lingustica.

1.2. Organizao desta TeseEsta Tese est dividida em seis captulos. Aps esta introduo, o captulo 2 aborda os conceitos tericos sobre formao de palavras que adotamos. Um dos principais conceitos a ser abordado a distino entre onomasiologia e semasiologia, que nortear boa parte de nossa anlise. Assim, apresentaremos diversos conceitos tericos ligados tanto perspectiva onomasiolgica quanto semasiolgica. O captulo 3 tem como objetivo apresentar a problemtica da delimitao das classes gramaticais e a mudana de classe. Aps discutir a delimitao das classes do ponto de vista terico, apresentamos os vrios tipos de mudana de classe que podem ocorrer em portugus, bem como algumas questes tericas envolvidas. O captulo 4 apresenta a metodologia empregada na coleta e anlise dos dados. Discutiremos algumas das decises tomadas para a considerao ou desconsiderao de alguns dados, bem como alguns problemas envolvidos na metodologia empregada. Aps a descrio da coleta dos dados, o captulo 5 traz as anlises propriamente ditas. Neste captulo, os neologismos coletados so descritos e analisados luz das concepes tericas abordadas nos captulos anteriores. Este captulo dividido em trs partes: formao de substantivos, formao de adjetivos e formao de verbos. Cada uma das partes apresenta os aspectos onomasiolgicos e semasiolgicos referentes aos dados analisados. Por fim, o captulo 6 apresenta as consideraes finais, em que discutimos a relevncia terica das anlises aqui realizadas.

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2. Conceitos tericos a respeito de formao de palavrasNeste captulo, objetivamos apresentar os principais conceitos tericos que norteiam esta Tese. Inicialmente, descreveremos os conceitos de palavra (2.1) e de neologia/neologismo (2.2) para, em seguida, abordar duas distines tericas que julgamos relevantes: 1) a distino entre mecanismos e causas da criao lexical (2.3); e 2) a distino entre as perspectivas onomasiolgica (2.4) e semasiolgica (2.5) da criao lexical. Em seguida, discorremos brevemente sobre as relaes entre neologia e Lingustica Histrica (2.6) antes de finalizar o captulo (2.7).

2.1. O conceito de palavraO conceito de palavra talvez seja o conceito lingustico mais controverso no mbito da Lingustica terica, mais ainda que noes como significado, frase, discurso e texto. Muitos manuais e obras introdutrias de Lingustica (e de Morfologia e Lexicologia em particular) procuram conceituar a palavra, mas pouco consenso tem havido entre os autores. No entanto, apesar da controvrsia terica, o conceito de palavra bastante claro e simples para os falantes. Argumentando a respeito da existncia psquica da palavra, afirma Sapir: verdade que em casos particulares, especialmente em algumas das lnguas altamente sintticas da Amrica aborgine, no sempre fcil dizer se um dado elemento da frase deve ser tido como vocbulo independente, ou como parte de um vocbulo maior. sses casos de transio, por mais perplexos que nos deixem em determinados momentos, no enfraquecem, contudo, a doutrina da validez psicolgica da palavra. A experincia lingstica /.../ indica esmagadoramente que no h, em regra geral, a menor dificuldade em focalizar-se a palavra na conscincia como realidade psicolgica. No pode haver prova mais convincente do que a seguinte: o ndio, ingnuo e completamente despercebido do conceito da palavra escrita, no tem apesar disso dificuldade sria em ditar um texto a um investigador lingstico, palavra por palavra; propende, naturalmente, a lig-las entre si, maneira da enunciao oral, mas, se chamado pausa e feito compreender o que dle se pretende, isolar imediatamente os vocbulos como tais, repetindo-os sob a forma de unidades. Recusa-se, por outro lado, a isolar o elemento radical ou o gramatical, porque, alega, no faz sentido. (SAPIR, 1971, pp. 43-4)

Se por um lado a palavra um conceito intuitivo e universal, sua delimitao por parte da cincia lingustica que traz problemas. De sada, observa-se que h diversos ngulos

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possveis para a delimitao do conceito: a partir dos pontos de vista grfico, fonolgico, estrutural etc., sem mencionar a questo das locues e palavras compostas1. A esse respeito, Biderman (1978, pp. 72-93) relata que diversas correntes tericas tentaram eliminar ou reformular radicalmente o conceito de palavra, com pouco ou nenhum sucesso. Assim, a autora conclui que no possvel definir a palavra de maneira universal, isto , de uma forma aplicvel a toda e qualquer lngua (p. 85) e que s possvel identificar a unidade lxica, delimit-la e conceitu-la no interior de cada lngua (p. 85). Mesmo no interior de uma mesma lngua a delimitao da palavra no tarefa fcil, como se percebe pela longa argumentao de Biderman (1978, pp. 104-19) descrevendo os trs critrios empregados para a delimitao da palavra: o fonolgico, o morfossinttico e o semntico. Portanto, a delimitao da palavra no tarefa simples nem interlinguisticamente nem intralinguisticamente. As principais dificuldades parecem decorrer da existncia de palavras fonologicamente dependentes (clticos e palavras tonas) e de palavras formadas por unidades menores que tambm podem ter o estatuto de palavras (locues, expresses fixas e palavras compostas de forma geral). Haveria, assim, uma forma de conceituar a palavra que fosse coerente com sua natureza psicolgica, intuitiva, mas que abrangesse tambm os casos marginais e pudesse ser aplicada a todas as lnguas? No temos aqui, evidentemente, a pretenso de encontrar essa resposta, mas acreditamos que a teoria do prottipo (cf., entre outros, Geeraerts, 2006, pp. 151-65) pode trazer alguma contribuio a esse grande dilema. Em linhas gerais, a teoria do prottipo ope-se viso aristotlica de categorizao, segundo a qual as categorias lingustico-cognitivas so organizadas de forma a apresentarem um conjunto de caractersticas necessrias e suficientes que esto presentes em todos os seus membros. Na figura 1, os membros A, B, C e D de uma categoria hipottica tm a interseo de suas caractersticas representada em cinza. Essa a concepo subjacente Semntica Estrutural (cf., por exemplo, Pottier, 1977). J para a teoria do prottipo, nem todos os membros de uma categoria apresentam as mesmas caractersticas necessrias e suficientes; em vez disso, os elementos so organizados por semelhanas de famlia2, ou seja, o elemento A apresenta caractersticas em comum com o B que, por sua vez, apresenta caractersticas em comum com o C, sem que necessariamente os elementos A e C tenham caractersticas comuns (cf. figura 2). Dessa

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Cf., por exemplo, Basilio (2004, pp. 13-9). Conceito geralmente atribudo ao filsofo Ludwig Wittgenstein.

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forma, as categorias apresentam um (ou mais de um) elemento prototpico, central, a partir do qual se organizam os demais elementos. importante salientar que a teoria do prottipo muito mais uma teoria da forma como categorizamos o mundo (uma teoria ontolgica, portanto) do que uma teoria do significado lingustico; suas decorrncias para a Semntica ainda so controversas (cf. especialmente Hummel, no prelo). No entanto, acreditamos que ela pode contribuir para a descrio do conceito palavra. Se entendermos palavra como uma categoria organizada em termos de prottipo, o enfoque de sua descrio muda completamente: em vez de procurarmos identificar caractersticas que delimitem claramente o que uma palavra, passamos a procurar descrever qual o conceito prototpico de palavra e como os conceitos no prototpicos se relacionam com ele.

Figura 1 Viso aristotlica de categorizao

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Figura 2 Categorizao segundo a teoria do prottipo

Descrever o conceito prototpico de palavra tampouco tarefa trivial (at mesmo porque a noo de prottipo tambm discutvel), mas parece ser mais simples do que procurar caractersticas definitrias necessrias e suficientes. Dessa forma, acreditamos que o conceito prototpico de palavra, ou seja, o conceito mais claro, menos controverso, que vem mente do falante naturalmente ao se pensar em uma palavra, seja algo prximo do conceito bloomfieldiano de forma livre mnima (BLOOMFIELD, 1933, p. 178). Os casos que esse conceito no recobre, como as palavras compostas, por exemplo, podem ser vistos como elementos mais afastados do prottipo. A seguinte citao de Basilio (2004, p. 17) elucidativa:O lingista Bloomfield define a palavra como forma livre mnima. /.../ Essa definio interessante, porque distingue palavras de frases, sintagmas e afixos; mas apresenta problemas quando pensamos em palavras compostas: como palavras compostas so definidas como palavras formadas de duas ou mais palavras ou radicais, fica difcil sustentar ao mesmo tempo que palavras no podem ser subdivididas em formas livres. (BASILIO, 2004, p. 17)

De acordo com a teoria do prottipo, portanto, o problema mencionado por Basilio torna-se um desvio em relao ao prottipo de palavra. Exatamente para procurar um conceito mais amplo de palavra que englobe tambm os casos no prototpicos, alguns autores (entre eles Alves 2004b; 2007 e Basilio 1999) tm

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preferido a expresso unidade lexical (ela prpria uma palavra no prototpica), que traz tambm a vantagem de parecer mais neutra do ponto de vista de filiao terica. Dessa forma, diante dessas consideraes, adotaremos no presente trabalho o termo unidade lexical, entendendo-o como uma categoria organizada segundo a teoria do prottipo. Seu conceito nuclear prototpico o de forma livre mnima, o que no elimina assim a possibilidade de se denominar por palavra ou unidade lexical outras unidades no totalmente recobertas por esse conceito.

2.2. Os conceitos de neologia, neologismo, formao de palavrasUma vez entendido o conceito de unidade lexical, passamos a outro grupo de conceitos central nesta Tese: os conceitos de formao de palavras, neologia e neologismo. Todas as lnguas vivas dispem de mecanismos que possibilitam que seus usurios empreguem a qualquer momento unidades lexicais nunca antes empregadas. Tais unidades recebem o nome de neologismos. Segundo Alves (2004a, p. 5), [a]o processo de criao lexical d-se o nome de neologia. O elemento resultante, a nova palavra, denominado neologismo. Portanto, a neologia o processo, o neologismo o seu produto. Nesta Tese, empregaremos indistintamente os termos neologia e criao lexical. Conforme j abordamos em trabalho anterior (MARONEZE, 2005, pp. 14-5), os principais tipos de neologia reconhecidos, especialmente, por Guilbert (1975) e Alves (2004a) so os seguintes3: a) Neologia fonolgica; b) Neologia sinttica; c) Converso; d) Neologia semntica; e) Neologia por emprstimo. A neologia fonolgica supe a criao de um item lxico cujo significante seja totalmente indito, isto , tenha sido criado sem base em nenhuma palavra j existente (ALVES, 2004a, p. 11). Trata-se de fenmeno extremamente raro e os casos de neologismos fonolgicos existentes so pouco claros. J a neologia sinttica compreende os processos de derivao e composio, denominados pelas gramticas tradicionais como processos de formao de palavrasOutros tipos de neologia so ainda reconhecidos pelos autores, como a truncao, o cruzamento vocabular, a acronmia etc., que por vezes so vistos como casos particulares dos tipos aqui tratados.3

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(CUNHA e CINTRA, 1985, p. 81-115; BECHARA, 2004, pp. 355-96). Neste trabalho, ambas as designaes (neologia sinttica e formao de palavras) sero usadas indistintamente. A converso, denominada tradicionalmente por derivao imprpria (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 103-4), consiste na alterao de classe gramatical sem alterao de forma. Guilbert (1975, pp. 73-4) a insere no mbito da neologia semntica, postura que adotaremos neste trabalho (cf. seo 3.2.3 e todo o captulo 3). A neologia semntica, por sua vez, consiste na alterao de significado de uma unidade lexical sem que haja qualquer alterao formal. Dito de outra forma, uma unidade lexical j existente adquire um novo significado, em geral por processos de metfora, metonmia, sindoque etc. Por fim, a neologia por emprstimo consiste na incorporao ao lxico vernculo de unidades lexicais originrias de outras lnguas, os chamados estrangeirismos. Os diferentes tipos de neologia podem ser entendidos como mecanismos de criao lexical, conforme descreveremos em 2.3.1.

2.3. Neologia como mudana lexicalComo a neologia a criao de uma nova unidade lexical, esta s poder ser considerada um neologismo em relao a um estado de lngua imediatamente anterior criao. Em outras palavras, s ser considerada neolgica a unidade lexical que no existia no lxico da lngua at ento. Isso traz implicaes tericas e metodolgicas para o estudo da neologia. Trataremos das implicaes metodolgicas mais adiante (cf. captulo 4), passando a abordar neste momento algumas das implicaes tericas, tanto para a Lexicologia quanto para a Lingustica Histrica. Inicialmente, tem-se que a criao de uma nova unidade lexical representa uma mudana no lxico da lngua; assim, a neologia seria considerada um fenmeno diacrnico. A natureza dessa mudana, no entanto, difere fundamentalmente da natureza da mudana em outros nveis da lngua, como a fonologia ou a sintaxe. Guilbert (1975, pp. 32-34) aponta alguns motivos pelos quais a mudana lexical difere da fonolgica ou gramatical: a) b) As mudanas fonolgicas ou sintticas soprent anonymement sur des dures trs longues4 (p. 32), diferentemente da mudana lexical; O sistema de oposies (em termos saussurianos) entre fonemas ou morfemas fechado, o que possibilita delimitar um estgio estvel da4

... so operadas anonimamente por perodos muito longos (traduo nossa).

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estrutura em determinado perodo (p. 32); o lxico, por outro lado, jamais pode ser definido como um sistema fechado, en raison de son ouverture sur le rfrent, lvolution du monde, de la pense, sur la transformation de la socit5 (p. 32); c) Para realizar um corte sincrnico, nos termos saussurianos, pode-se basear num espao de tempo delimitado de forma relativamente arbitrria, desde que as mudanas nesse perodo sejam mnimas; ou seja, o corte ser feito com base nos fenmenos lingusticos a serem estudados (p. 33). J o lxico mais diretamente ligado histria da sociedade, e dessa forma o corte dever ser feito com base em fatos histricos, extralingusticos; d) A mudana fonolgica ou gramatical, por ocorrer sobre um sistema fechado, tem a forma de uma substitution dun complexe de relations de lpoque B en opposition lautre complexe antrieur de lpoque A, sans que le systme lui-mme soit modifi directement6 (p. 33). Em relao ao lxico, a mudana de outra ordem: uma unidade lexical nova no elimina necessariamente outra antiga; unidades lexicais antigas podem ressurgir no discurso de certos indivduos etc. A mudana lexical, portanto, no irreversvel, e o lxico no pode ser entendido como uma estrutura, nos termos saussurianos. Surge a dvida, portanto, em relao a considerar a neologia um fenmeno verdadeiramente diacrnico. A esse respeito, no Cours7 (SAUSSURE, 1969) encontramos um trecho bastante elucidativo:Uma palavra que eu improvise, tal como in-decor-vel, j existe em potncia na lngua; encontramos-lhe todos os elementos em sintagmas como decor-ar, decoraao : perdo-vel, manej-vel : in-consciente, in-sensato etc., e sua realizao na fala um fato insignificante em comparao com a possibilidade de form-la. (SAUSSURE, 1969, pp. 192-3, grifos nossos)

Observa-se, assim, que Saussure considera a criao neolgica como um fenmeno de fala (fr. parole), e no de lngua (fr. langue); ainda mais, que o que de fato importante (para5

... por causa de sua abertura em relao ao referente, evoluo do mundo, do pensamento, transformao da sociedade (traduo nossa). 6 ... substituio de um complexo de relaes da poca B em oposio a outro complexo anterior da poca A, sem que o sistema em si mesmo tenha sido modificado diretamente (traduo nossa). 7 Sempre importante lembrar que, embora conste como o nico autor da obra, Saussure de fato no a escreveu; portanto, as menes feitas a Saussure nesta Tese se referem sempre ao ponto-de-vista expresso na obra, sem discutir se este corresponde de fato ao do prprio autor.

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o sistema lingustico) a possibilidade da criao, e no a criao em si mesma. Isso implica que, para Saussure, s ser considerada diacrnica uma mudana que afete as potencialidades de criao lexical, mas no a criao propriamente dita.8 Essa mesma concepo seguida por diversos autores, em geral de orientao gerativista, que ora desconsideram completamente o conceito de neologismo (cf. Corbin 1975, 19769 apud Alves, 2000, p. 99), ora consideram como neologismos apenas as criaes lexicais de certa forma no previstas (cf. Cano, 2007). Para esses autores, portanto, a criao de uma nova unidade lexical um fenmeno do sistema lingustico (da langue saussuriana) e, portanto, de natureza sincrnica. Sob outro ponto de vista, deve ser citado o pensamento de Mator (1953) de que [l]es mots, sans doute, ne tombent pas du ciel: ils naissent leur heure10 (MATOR, 1953, p. 42). Ou seja, em vez de afirmar, como Saussure, que as unidades lexicais j existem em potncia na lngua, Mator chama a ateno para o fato de que elas surgem em momentos determinados, momentos scio-histricos especficos. O autor exemplifica com a unidade lexical francesa civilisation (civilizao), que criada em meados do sculo XVIII, em consonncia com diversas concepes que surgem na sociedade da poca. A questo pode ser resolvida por meio da distino entre mecanismos e causas da criao lexical (GEERAERTS, 1997), descrita a seguir.

2.3.1. Mecanismos e causas da criao lexical (neologia)Para explicar de forma adequada o fenmeno da criao lexical, importante levar em considerao trs questes distintas (GEERAERTS, 1997, p. 102)11: a) o leque de possibilidades de criao lexical (os mecanismos, no dizer do autor); b) os fatores que fazem um indivduo realizar uma dessas possibilidades (as causas); c) a forma como essa criao se difunde pela comunidade lingustica (abordada brevemente na seo 2.6). Tendo em mente a distino entre mecanismos e causas, a questo se torna mais clara: autores como Saussure e os de tradio gerativista mencionados referem-se aos mecanismos,Para uma discusso maior a respeito das concepes saussurianas de formao de palavras, cf. Maroneze (2008) e a seo 2.4.3 desta Tese. 9 CORBIN, Danielle. La notion de nologisme et ses rapports avec lenseignement du lexique. Bref, vol. 4, p. 4157, 1975. CORBIN, Danielle. Le statut des exceptions dans le lexique. Langue franaise, vol. 30, p. 90-108, 1976. 10 as palavras, sem dvida, no caem do cu: elas nascem em seu momento (traduo nossa). 11 O trabalho de Geeraerts (1997) refere-se principalmente mudana lexical de natureza semntica (que os estudos de neologia denominam neologia semntica), mas suas consideraes podem ser estendidas para todos os tipos de mudana lexical.8

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enquanto lexiclogos como Mator referem-se s causas. Apresentaremos a seguir uma discusso a respeito dos tipos de causas da mudana lexical.

2.3.1.1. Tipologia de causas da criao lexicalGeeraerts (1997, pp. 92-3 e 103-6) afirma serem duas as causas da mudana lexical (e da criao lexical em especfico): a expressividade e a eficincia. A expressividade (entendida como necessidade de exprimir, e no como vivacidade, animao) refere-se quela que provavelmente a funo mais primordial da linguagem: a comunicao. Nesse sentido, a criao lexical ocorre para que os falantes possam exprimir algo que ainda no tem um meio adequado para tal. Pode acontecer quando surge um novo objeto, uma nova descoberta, uma alterao na viso de mundo de uma cultura, ou mesmo pela necessidade de denominaes afetivas, eufemsticas, como a criao de tumor maligno como eufemismo para cncer (GEERAERTS, 1997, p. 105). Essa a causa estudada por Mator (1953) e outros lexiclogos. A eficincia refere-se necessidade de otimizar o sistema lingustico: a criao lexical ocorreria para trazer eficincia comunicativa lngua. Seria, portanto, uma causa interna ao prprio sistema lingustico. O exemplo, bastante claro, trazido por Geeraerts (1997, p. 92-3), a resoluo do conflito homonmico entre as palavras para galo e gato no sudoeste da Frana, estudado por Gilliron12. Naquela regio, as evolues fonticas das palavras para galo e gato resultaram na forma homonmica gat, o que causaria problemas na comunicao em comunidades agrcolas. Dessa forma, os falantes tiveram que criar outras denominaes para o galo. Portanto, a criao lexical, aqui, motivada pela necessidade, interna ao sistema, de otimizar a comunicao, evitando um conflito homonmico. Ainda segundo o autor, esse seria um caso do princpio de isomorfismo, segundo o qual as lnguas tenderiam a uma relao biunvoca entre forma lexical e significado lexical (p. 105). Dessa forma, duas seriam as causas da mudana lexical: a expressividade (externa lngua, de base social, cultural ou pragmtica) e a eficincia (interna lngua, visando otimizao do sistema). No entanto, a distino no rigidamente estreita: deve-se ter em mente que o princpio da eficincia subordinado ao da expressividade: na feliz formulao do autor, if there were no communicative intentions to be fulfilled, there would be no need

Trata-se de um estudo dos mais conhecidos, mencionado em praticamente todos os manuais de Lingustica Romnica, porm nem sempre adequadamente referido. A referncia correta (apud GEERAERTS, 1997) GILLIRON, J. e ROQUES, M. tudes de gographie linguistique. Paris: Champion, 1912.

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for an efficient organization of the language that is used in fulfilling those intentions13 (GEERAERTS, 1997, pp. 108). Portanto, os dois princpios causais devem ser antes vistos como complementares em vez de competitivos. Blank (1999, p. 65) prefere unificar os dois conceitos num nico princpio, o de eficincia comunicativa (ingl. efficiency of communication), que ao mesmo tempo the general purpose of communication and the general motivation behind language change14 (BLANK, 1999, p. 65). Outros autores h que procuraram dar respostas um pouco diferentes pergunta por que se formam novas palavras?. Apresentaremos aqui as ideias de Basilio (1987, 2004), procurando relacion-las aos dois princpios de Geeraerts (1997). Basilio (1987) colocava dois motivos principais para a formao de palavras: a utilizao da idia de uma palavra em outra classe gramatical; e a necessidade de um acrscimo semntico numa significao lexical bsica (p. 9). A autora exemplificava o primeiro motivo15 com a formao de um substantivo abstrato, como agilizao, criado pela necessidade de se empregar o verbo agilizar em funo de substantivo (pp. 5-7). J o segundo motivo era exemplificado pelos diminutivos (sapatinho, sopinha), por formaes com o sufixo -eiro (sapateiro, cesteiro, doleiro) e por formaes prefixadas (pr-fabricado, prvestibular) (pp. 8-9). Ao compararmos os dois motivos descritos por Basilio (1987) com as duas causas apresentadas por Geeraerts (1997), notamos que o motivo semntico descrito por Basilio pode ser comparado ao princpio da expressividade de Geeraerts: dizer que uma nova unidade lexical criada para trazer um acrscimo semntico outra forma de dizer que se cria uma nova unidade lexical para exprimir um novo conceito. J o motivo da adequao classe gramatical, primeira vista, poderia ser aproximado ao princpio da eficincia de Geeraerts, por ser um motivo interno ao sistema lingustico em certo sentido, empregar um verbo em funo substantival, por exemplo, refere-se mais a uma necessidade de adequao ao sistema lingustico do que criao de um novo conceito. Embora Geeraerts (1997) no explicite seu ponto de vista (provavelmente porque suas reflexes, como j apontamos, enfocam mais a mudana de significado do que a criao lexical propriamente dita), acreditamos que suas reflexes sejam condizentes com o paralelo que aqui traamos entre ambos autores. No entanto, pretendemos argumentar nesta Tese que a adequao classe gramatical um casose no houvesse intenes comunicativas para serem satisfeitas, no haveria necessidade para uma organizao eficiente da linguagem empregada para satisfazer essas intenes (traduo nossa). 14 o propsito geral da comunicao e a motivao geral por trs da mudana lingustica (traduo nossa). 15 Segundo a autora, esse primeiro motivo, o de mudana de classe gramatical, o motivo mais privilegiado em toda a literatura sobre formao de palavras (BASILIO, 1987, p. 8).13

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particular de acrscimo semntico, reduzindo assim os dois motivos a um nico (cf. captulo 3). Na sequncia de suas reflexes a respeito dos motivos da criao lexical, Basilio (1987) propunha uma indagao sobre por que razo no haveria na lngua uma palavra para uso em cada classe gramatical e /.../ uma palavra para cada acrscimo semntico necessrio (p. 10), e conclua:Assim, a razo bsica de formarmos palavras a de que seria muito difcil para nossa memria alm de pouco prtico captar e guardar formas diferentes para cada necessidade que ns temos de usar palavras em diferentes contextos e situaes. Em ltima anlise, a razo por que formamos palavras a mesma razo por que formamos frases: o mecanismo da lngua sempre procura atingir o mximo de eficincia, o que se traduz num mximo de flexibilidade em termos de expresso simultaneamente a um mnimo de elementos estocados na memria. essa flexibilidade que nos permite contar com um nmero gigantesco de elementos bsicos de comunicao sem termos que sobrecarregar a memria com esses mesmos elementos. (BASILIO, 1987, p. 10)

Acreditamos que a autora, nesse momento, equivocava-se por no levar em considerao a distino entre mecanismos e causas da criao lexical, apontada no incio desta seo. O que a autora trazia nessa citao uma explicao cognitivo-funcional (cf. seo 2.4.1), muito adequada por sinal, para explicar o fato de os mecanismos de criao lexical serem como so. Dito de outra forma, a autora explicava por que formamos palavras com o emprego de afixos, radicais etc., e no, digamos, apenas com a juno aleatria de fonemas e slabas; ela responde pergunta por que formamos palavras do modo que formamos?, e no pergunta por que formamos palavras?. A resposta a essa ltima pergunta, em nosso entendimento, est de fato nos dois motivos j discutidos pela autora.

2.4. Onomasiologia e Semasiologia: Neologia na perspectiva onomasiolgicaUma vez estabelecida a distino entre mecanismos e causas da criao lexical, e antes de analisar as relaes entre ambos, necessrio apresentar outra distino importante e bastante antiga na histria da Lingustica (e da Lexicologia em especfico): a distino entre perspectivas onomasiolgica e semasiolgica. A distino bastante conhecida: na perspectiva onomasiolgica, parte-se do significado (ou conceito) para se chegar ao significante. em tese o percurso mental feito pelo emissor, que precisa encontrar uma expresso lingustica para o conceito que quer

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expressar. Na Lexicologia, anlises onomasiolgicas se preocupam em responder perguntas como Que expresses lingusticas so possveis para determinado conceito? J na perspectiva semasiolgica, parte-se do significante para chegar ao significado. em tese o percurso mental feito pelo receptor, que precisa dar significado expresso lingustica pronunciada/escrita pelo emissor. Na Lexicologia, anlises semasiolgicas se preocupam em responder perguntas como Quais so os significados possveis para determinada expresso? A seguinte citao de Geeraerts (1997, p. 17) esclarecedora:Given that a lexical item couples a word form with a semantic content, the distinction between an onomasiological and a semasiological approach is based on the choice of either of the poles in this correlation as the starting-point of the investigation. Thus, the onomasiological approach starts from the content side, typically asking the question Given concept x, what lexical items can it be expressed with? Conversely, the semasiological approach starts from the formal side, typically asking the question Given lexical item y, what meanings does it express? In other words, the typical subject of semasiology is polysemy and the multiple applicability of a lexical item, whereas onomasiology is concerned with synonymy and near-synonymy, name-giving, and the selection of an expression from among a number of alternative possibilities.16

Nesta Tese, essa distino tradicionalmente evocada para se estudar a semntica de unidades lexicais ser aqui abordada no estudo de afixos. Nesta seo, abordaremos alguns conceitos ligados perspectiva onomasiolgica de estudo dos afixos; em 2.5, trataremos da perspectiva semasiolgica.

2.4.1. Relaes entre os mecanismos e as causas da criao lexicalPassemos agora a analisar a complexa questo de como os mecanismos se relacionam com as causas. Para abordar a questo do ponto de vista onomasiolgico, imaginemos um falante que se v diante da necessidade de criar uma nova unidade lexical. O problema que esse falante tem pode ser formulado na seguinte pergunta:

Posto que uma unidade lexical pareia uma expresso com um contedo semntico, a distino entre uma abordagem semasiolgica e uma onomasiolgica baseada na escolha de um dos plos dessa correlao como ponto de partida da pesquisa. Assim, a abordagem onomasiolgica parte do lado do contedo, indagando tipicamente a questo Dado o conceito x, com que unidades lexicais ele pode ser expresso? Por sua vez, a abordagem semasiolgica parte do lado formal, indagando tipicamente a questo Dada a unidade lexical y, que significados ela expressa? Em outras palavras o objeto tpico da semasiologia a polissemia e a aplicabilidade mltipla de uma unidade lexical, enquanto a onomasiologia preocupa-se com a sinonmia e a quase-sinonmia, a nomeao e a seleo de uma expresso dentre uma quantidade de possibilidades alternativas. (Traduo nossa)

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(1) Dada uma determinada causa (ou motivo) para criar uma unidade lexical, qual mecanismo (dentre os disponveis na lngua) o mais adequado?

A criao lexical , dessa forma, vista onomasiologicamente como uma atividade de resoluo de um problema concreto. A soluo encontrada pelo falante poder ser julgada adequada ou no de acordo com certos critrios. No entanto, a tarefa do linguista que se dedica ao estudo da neologia no encontrar a melhor soluo para esse problema (essa tarefa do falante17); a pergunta que o linguista se prope a responder :(2) Por que o falante julgou essa soluo a mais adequada?

Ou, formulada de outra maneira:(2) Por que para essa determinada causa (ou motivo) o falante preferiu empregar esse determinado mecanismo (e no outro)?

Acreditamos ser essa a principal pergunta norteadora dos estudos onomasiolgicos de neologia18. Ela pode ainda ser desdobrada em duas:(2a) Que fatores influenciam o emprego de determinado mecanismo? (2b) Por que esses fatores influenciam os mecanismos dessa forma?

Responder pergunta (2a) tarefa relativamente fcil, se comparada pergunta (2b). Vrios trabalhos tm se dedicado a mostrar como fatores fonolgicos, sintticos, semnticos, discursivos etc. podem influenciar no emprego de um ou outro processo (composio, derivao prefixal ou sufixal, tais ou tais prefixos ou sufixos etc.). Podemos citar como exemplo nossa prpria Dissertao de Mestrado (MARONEZE, 2005), em que descrevemos fatores fonolgicos, morfolgicos, sintticos etc. envolvidos na escolha de um ou outro sufixo nominalizador. Para responder pergunta (2b), por sua vez, necessrio ter em mente uma concepo terica do funcionamento da linguagem em geral e da criao lexical em17

A adequao ou inadequao de determinada unidade lexical neolgica depender essencialmente, a nosso ver, de seu sucesso comunicativo, ou seja, de ela ser mais ou menos capaz de comunicar a inteno original de seu criador; uma questo de ordem pragmtica. Entretanto, podem-se estabelecer critrios prescritivos para julgar tal adequao, como ocorre nos organismos de planificao neolgica. 18 Evidentemente, essa pergunta deve ser encarada como uma trilha, um roteiro de investigao; os reais fatores envolvidos (tanto lingusticos quanto extralingusticos) podem se multiplicar de tal forma que jamais se ter uma resposta plenamente adequada.

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especfico. Nesta Tese, adotamos a concepo de que as respostas a (2b) devem envolver explicaes funcionais que justifiquem os fatores da resposta a (2a); em particular, explicaes capazes de relacionar os mecanismos s causas, ou seja, que mostram por que razo o mecanismo envolvido o mais adequado para a causa requerida. Para tornar mais clara essa discusso, trazemos dois exemplos de respostas a essas perguntas. O primeiro a unidade lexical neolgica historicizao (ou qualquer outra em izao), extrada de Maroneze (2005). Em relao a ela, a pergunta (2) pode ser formulada como em (3):(3) Por que, para exprimir a ao de historicizar, o falante preferiu empregar o sufixo -o (e no -mento ou -agem)?

Podemos dividir a pergunta (3) em duas:(3a) Que fator(es) influenciou(aram) o falante a empregar o sufixo -o? (3b) Por que esse(s) fator(es) influenciou(aram) dessa forma?

Em Maroneze (2005, p. 39-42), levantamos uma possvel resposta para a pergunta (3a): o sufixo -o o nico sufixo nominalizador que pode unir-se a bases verbais formadas com o sufixo -izar; um fator de natureza morfolgica, portanto. Contudo, constatar a existncia dessa restrio no a explica ou justifica: faz-se necessrio, assim, explicar por que o sufixo -izar exige o emprego de -o. Uma possvel resposta que a juno de ambos os sufixos encontra-se altamente incrustada na mente (cf. Langacker, 1991, p. 48 e a seo 2.4.3 para uma descrio mais detalhada da teoria envolvida); trata-se, portanto, de uma resposta de ordem cognitivo-funcional, que pode ser parafraseada como o sufixo -izar exige o emprego de -o porque dessa forma o processamento cognitivo da linguagem de algum modo facilitado. O segundo exemplo que aqui trazemos a unidade lexical neolgica apitao, analisada, juntamente com outras em -ao, por Alves (2004b, p. 84). A pergunta relevante pode ser formulada como em (4):(4) Por que, para exprimir o protesto feito com apito, o falante preferiu empregar o sufixo -ao (e no, por exemplo, expresses compostas como apito-protesto)?

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O emprego desse sufixo, como mostra a autora, relevante principalmente porque remete a um fato histrico especfico, o chamado panelao de 1973, no Chile. O motivo de o falante ter escolhido esse sufixo , portanto, a necessidade (implcita ou explcita, consciente ou inconsciente) de remeter o leitor a esse fato histrico; trata-se de um motivo de ordem comunicativo-funcional, que pode ser parafraseada como o sufixo -ao foi escolhido porque transmite de forma mais adequada a ideia pretendida pelo falante. Como se pode perceber, os dois19 tipos de explicao conseguem relacionar adequadamente os mecanismos e as causas da criao lexical. No entanto, nem sempre essas explicaes se apresentam de forma clara; muitas vezes s so percebidas a partir de determinadas concepes tericas. No obstante, acreditamos que o linguista deve sempre se guiar pela busca por esse tipo de explicao.

2.4.2. Fatores que influenciam a seleo do mecanismoEst evidente, portanto, que h vrios mecanismos disponveis ao falante que tem a necessidade de criar uma unidade lexical; a escolha de um desses mecanismos condicionada por vrios fatores, abordados pelas perguntas 2a e 2b, formuladas anteriormente. Cabe agora tecermos algumas consideraes sobre a natureza desses fatores. Inicialmente, deve-se reconhecer que esses fatores podem ser de natureza lingustica ou extralingustica, como afirma tekauer (2001, p. 7):It is postulated that the selection of one of the options at hand is always influenced by both linguistic (productivity, constraints, etc.) and sociolinguistic factors (education, profession, social background, influence of ones former linguistic experience, etc.)20.

Nesta Tese, por razes eminentemente metodolgicas, fixar-nos-emos nos fatores de natureza lingustica21. Estes podem apresentar-se de duas formas: a) como caractersticas (em geral semnticas) que devem estar presentes no neologismo formado; ou b) como restries

Acreditamos que a distino que estabelecemos entre explicaes cognitivo-funcionais e comunicativofuncionais menos rgida do que parece primeira vista: muitos fatores que tornam a comunicao mais efetiva tambm podem contribuir para facilitar o processamento cognitivo e vice-versa. 20 Postula-se que a seleo de uma das opes disponveis seja sempre influenciada tanto por fatores lingusticos (produtividade, restries etc.) como sociolingusticos (escolaridade, profisso, histria de vida, influncia da experincia lingustica anterior etc.) (traduo nossa). 21 No pretendemos desenvolver aqui maiores discusses a respeito da diviso entre os dois tipos de fatores, fixando-nos nos lingusticos. No entanto, pode-se argumentar que ambos os tipos referem-se mesma motivao subjacente, a eficincia comunicativa (cf. seo 2.3.1.1). Como exemplos de estudos referentes a fatores extralingusticos, cf. tekauer et al. (2005) e Krtvlyessy (2009).

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que devem estar presentes na(s) unidade(s) lexical(is) que serve(m) de base22 formao do neologismo. Os fatores de tipo (a) dizem respeito principalmente aos efeitos semnticocomunicativos pretendidos pelo emissor, ou seja, este escolher o mecanismo de criao lexical mais adequado para expressar o significado pretendido, incluindo seus aspectos conotativos e estilsticos. Isso pode ser exemplificado com o seguinte dado, extrado do corpus desta Tese: para substantivar o adjetivo dondoca (referente a mulher ftil), o falante opta por criar o neologismo dondoquice (em vez de dondoquidade ou dondoqueza, formados com outros sufixos concorrentes), porque o sufixo -ice refora as conotaes afetivas ou mesmo pejorativas pretendidas pelo criador. Os fatores do tipo (b) constituem-se em condies que devem estar presentes para que determinado mecanismo de criao lexical possa ser aplicado; essas condies tambm podem ser entendidas como restries que impedem a aplicao de determinado mecanismo. Tais restries podem ser fonolgicas, morfolgicas, sintticas, semnticas ou textuais, ou mesmo uma combinao dessas. Para ilustrao, exemplificaremos com dados do corpus analisado nesta Tese. Restries de natureza fonolgica que condicionam o emprego de determinados prefixos ou sufixos parecem ser raras na lngua portuguesa. Um exemplo a tendncia de verbos terminados em -i[C]ar (em que C representa qualquer consoante) receberem o sufixo o em vez de seus concorrentes -mento ou -agem (cf. Rocha, 1999, p. 22), o que explicaria formas neolgicas tais como glicao e paparicao. Outras lnguas apresentam mais fatores fonolgicos condicionantes, como o ingls, em que o sufixo nominalizador -al s se une a verbos oxtonos (cf. Plag, 2003, p. 61). O tipo de fator morfolgico que mais influencia os mecanismos de formao de palavras diz respeito a restries de co-ocorrncia entre dois ou mais afixos. Por exemplo, verbos prefixados tendem a ser nominalizados com o sufixo -mento (cf. Maroneze, 2005, p. 80), e adjetivos formados pelo sufixo -vel so exclusivamente substantivados com o sufixo (i)dade, em vez de -eza ou outro concorrente (como reparabilidade e treinabilidade; cf. seo 5.1.1). Restries de natureza semntica envolvem caractersticas de significado que devem estar presentes na base para que o mecanismo possa ser aplicado. Exemplificamos com os sufixos concorrentes -(i)dade e -ice, os mais frequentes formadores de substantivos a partir de

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Cf. a seo 2.4.3.2 para a noo de base que adotamos nesta Tese.

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adjetivos. O primeiro tende a unir-se a adjetivos de funo semntica especificadora, enquanto o segundo tende a unir-se a adjetivos de funo semntica qualificadora (cf. seo 5.1.1.1). Costuma-se considerar como exemplo de fator condicionante de natureza sinttica a restrio da maioria dos sufixos a determinadas classes gramaticais de base; por exemplo, Plag (2003, p. 63) afirma ser de natureza sinttica a restrio do sufixo ingls -able a verbos. No entanto, uma questo pode ser levantada: haveria fatores condicionantes puramente sintticos, ou estes no seriam reflexo de um fator semntico subjacente? Ou seja, ao afirmarmos que determinado sufixo se une a verbos, estaramos nos referindo categoria sinttica de verbo ou a caractersticas semnticas presentes em verbos e tambm requeridas pelo sufixo? Se adotarmos uma postura contrria separao rgida entre sintaxe e semntica, e talvez mesmo a precedncia da semntica sobre a sintaxe (cf. CROFT; CRUSE, 2004, p. 2, e tambm a seo 3.1.3), os fatores condicionantes de natureza sinttica (e talvez mesmo morfolgica) podero ser entendidos como de natureza semntica. Na seo 3.1.3, argumentaremos em favor da centralidade de fatores semnticos, especialmente em relao a classes gramaticais. Por fim, podem-se considerar tambm restries de natureza textual-discursiva na seleo de um ou outro mecanismo de criao lexical. Provavelmente os fatores textuais que mais influenciam o emprego de determinados mecanismos de criao lexical so os relacionados ao gnero e ao domnio textual-discursivo. Podemos citar trabalhos como Rocha (1999), que mostra que gneros dissertativos favorecem mais o emprego de substantivos abstratos derivados de verbos do que os gneros narrativos; Alves (2000) aponta diversos prefixos, como os intensivos, que so mais frequentemente empregados em textos publicitrios; alm de vrios trabalhos da rea de Terminologia que tm mostrado como certos domnios (Medicina, Informtica etc.) favorecem o emprego de certos mecanismos de criao lexical. importante assinalar que as restries ao emprego dos mecanismos raramente funcionam de forma categrica; so na verdade tendncias, mais ou menos fortes, mas que sempre podem ser rompidas. Nas sees 2.4.3..4 e 2.4.3.5, analisaremos essas tendncias tendo em vista o conceito de produtividade.

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2.4.3. Mecanismos de criao lexical: neologia sintticaRetomemos agora os tipos de neologia mencionados em 2.2, que, nos termos de Geeraerts (1997), so denominados mecanismos de criao lexical. Dentre eles, so diretamente relevantes para o fenmeno da mudana de classe gramatical a neologia sinttica e a converso. Para compreender a neologia sinttica, necessrio abordar as concepes possveis de Morfologia, o que faremos a seguir. A converso ser abordada brevemente no captulo 3, na seo 3.2.3. Alguns autores, no mbito da Morfologia, descrevem trs modelos de anlise gramatical, chamados de palavra-e-paradigma, item-e-arranjo e item-e-processo (cf., por exemplo, Rosa, 2006, pp. 44-49, que remonta o emprego desses termos a Hockett, 195423). Todos os trs tm longa tradio nos estudos da linguagem, remontando por vezes Antiguidade greco-latina e snscrita, e na Lingustica moderna se fazem presentes em diversas teorias. Descreveremos resumidamente os trs modelos, empregando uma ordem de exposio que julgamos mais clara, mas que no corresponde ordem cronolgica nem de importncia: Item-e-arranjo (IA): para esta concepo de Morfologia, o morfema (entendido como o signo mnimo) tem papel fundamental, e as unidades lexicais so descritas como sequncias de morfemas. Teorias que apresentam essa concepo tendem a enfatizar a segmentao dos morfemas. Por exemplo, uma teoria IA analisaria a forma verbal andvamos como a sequncia de morfemas and- (radical) + -a- (vogal temtica) + -va- (desinncia modotemporal) + -mos (desinncia nmero-pessoal); da mesma forma, a unidade lexical livraria seria analisada como livr- (radical) e -aria (sufixo). Embora essa abordagem surja em diversas linhas tericas diferentes, comum associla ao Estruturalismo bloomfieldiano, que no Brasil tem sua figura mxima em Mattoso Cmara Jr. Item-e-processo (IP): aqui, o morfema deixa de ser a unidade bsica e, ao invs da segmentao, so enfatizadas as regras de transformao capazes de transformar uma forma subjacente em uma unidade lexical da lngua. Por exemplo, uma teoria IP poderia analisar a forma andvamos como a aplicao de uma srie de regras a uma forma verbal subjacente (por exemplo, *and-): 1. regra de formao do tema => *anda; 2. regra de formao do pretrito imperfeito do indicativo => *andava; e, finalmente 3. regra de formao da primeira pessoa do plural => andvamos.23

HOCKETT, Charles. Two models of grammatical description. Word 10, 1954, pp. 210-234.

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Da mesma forma, livraria seria analisada como a aplicao de uma regra de derivao base livro. Assim como a abordagem IA, a abordagem IP tambm est presente em correntes tericas diversas, mas a teoria IP mais conhecida a abordagem gerativa de Aronoff (1976); no Brasil, so importantes os trabalhos de Basilio (1980, 1987, entre outros). Palavra-e-paradigma (PP): o centro da abordagem PP , como seu prprio nome indica, a palavra (independentemente de este no ser um conceito simples de ser definido), que participa de relaes paradigmticas com outras formas da lngua. Por exemplo, a forma andvamos ser analisada como integrante do paradigma flexional do verbo andar, relacionando-se com as outras formas do mesmo verbo; ao mesmo tempo, tambm estabelece relaes paradigmticas com outras formas que compartilham com ela a mesma terminao (como cantvamos, sabamos etc.). Da mesma forma, a unidade lexical livraria estabelece, por um lado, relaes paradigmticas com livro, livreiro, livreto etc. e, por outro lado, com papelaria, joalheria, marcenaria etc. A abordagem palavra-e-paradigma, assim como as outras duas, tem longa tradio nos estudos lingusticos, sendo inclusive a abordagem predominante no Cours de Saussure. Recentemente, tem sido privilegiada nos estudos da Lingustica Cognitiva, e a abordagem adotada para a presente Tese. Cada uma dessas abordagens implica uma determinada concepo de criao lexical. Para a abordagem IA, a criao lexical se d pela combinatria de morfemas: o falante cria blueseiro, por exemplo, combinando o morfema radical blues ao morfema sufixal -eiro, ambos disponveis na lngua (ou no lxico mental). J numa abordagem IP, a unidade blueseiro seria criada por meio de uma Regra de Formao de Palavras (RFP) que tem como input a unidade blues. Para a abordagem PP, o falante cria blueseiro por analogia com a srie paradigmtica j existente na lngua que relaciona arqueiro, engenheiro, marceneiro, padeiro, roqueiro etc. Nesta Tese, como j mencionado, adotaremos uma abordagem PP, em especial a formulada por Bybee (1988) e Langacker (1987, 1991, 2008), semelhante em muitos aspectos s concepes presentes no Cours de Linguistique Gnrale (SAUSSURE, 1969), como procuramos mostrar em Maroneze (2008). Passamos a descrev-la brevemente, dividindo sua apresentao em quatro tpicos: a organizao cognitiva do lxico, a analogia, a fora de um esquema e a produtividade.

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2.4.3.1. Organizao cognitiva do lxicoNas abordagens PP, a organizao cognitiva (ou mental) do lxico costuma ser um conceito fundamental para a descrio da Morfologia. Nesse sentido, o modelo de organizao do lxico descrito em Bybee (1988, pp. 125-7) prope que o conhecimento lexical armazenado mentalmente de forma a possibilitar associaes entre as vrias unidades lexicais, as relaes associativas na terminologia de Saussure. Essas associaes podem ser fonolgicas, semnticas ou ambas simultaneamente. A seguinte citao de Saussure, que reproduzimos juntamente com o grfico do autor, bastante elucidativa:Os grupos formados por associao mental no se limitam a aproximar os termos que apresentem algo em comum; o esprito capta tambm a natureza das relaes que os unem em cada caso e cria com isso tantas sries associativas quantas relaes diversas existam. Assim, em enseignement, enseigner, enseignons etc. (ensino, ensinar, ensinemos), h um elemento comum a todos os termos, o radical; todavia, a palavra enseignement (ou ensino) se pode achar implicada numa srie baseada em outro elemento comum, o sufixo (cf. enseignement, armament, changement etc.; ensinamento, armamento, desfiguramento etc.); a associao pode se fundar tambm apenas na analogia dos significados (ensino, instruo, aprendizagem, educao etc.) ou, pelo contrrio, na simples comunidade das imagens acsticas (por exemplo enseignement e justement, ou ensinamento e lento). (...)

ensinamento ensinar ensinemos etc. aprendizagem desfiguramento educao etc. armamento etc. etc.

elemento lento

(Saussure, 1969, p. 145)

Percebemos assim que uma unidade lexical, como ensinamento, pode estabelecer relaes associativas com outras unidades por meio de semelhanas fonolgicas (elemento, lento), semnticas (aprendizagem, educao) ou ambas simultaneamente, seja o elemento comum o radical (ensinar, ensinemos), seja o sufixo (desfiguramento, armamento). A representao de Bybee (1988) para o mesmo exemplo ficaria da seguinte forma

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(empregamos a forma ortogrfica de cada unidade lexical, e no sua transcrio fontica, para tornar o grfico mais simples):

Figura 3 Representao das relaes associativas fonolgicas de ensinamento

Nesta figura, as relaes associativas puramente fonolgicas so representadas por linhas finas, e as relaes simultaneamente fonolgicas e semnticas, por linhas grossas. Outra figura seria necessria para representar o plano semntico:

Figura 4 Representao das relaes associativas semnticas de ensinamento

Nesta figura, representamos os significados de cada elemento pelas palavras entre colchetes; as linhas grossas representam identidades tanto semnticas quanto fonolgicas, enquanto as linhas finas representam identidades ou semelhanas parciais apenas semnticas. (Evidentemente, a figura serve apenas para ilustrao do modelo; uma representao

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semntica detalhada envolveria indicar as relaes parciais entre os verbos, bem como as relaes de quase-sinonmia entre educar e ensinar, de antonmia entre ensinar e aprender etc.) Em resumo, as unidades lexicais formam uma rede de conexes (ou relaes associativas), cujos elos so os elementos fonolgicos ou semnticos comuns. Nos casos em que h simultaneamente elementos fonolgicos e semnticos, tem-se uma relao morfolgica. Nesse sentido, pode-se entender, como o faz Saussure (1969, p. 149-50), que um afixo no tem existncia prpria na lngua; ele s existe na medida em que possibilita unidade lexical participar de uma srie de relaes associativas. Nas palavras de Saussure:/.../ se o latim quadruplex um sintagma, porque se apia em duas sries associativas [e no porque possui dois morfemas comentrio nosso] /.../ na medida em que essas outras formas flutuem em derredor de refazer ou de quadruplex que essas duas palavras podem ser decompostas em subunidades ou, dito de outro modo, so sintagmas. Assim, desfazer no seria analisvel se outras formas contendo des ou fazer desaparecessem da lngua; no seria mais que uma unidade simples e suas duas partes no poderiam mais opor-se uma outra. (Saussure, 1969, pp. 149-50, grifo nosso)

Nesse trecho, clara a ideia de que a segmentao em morfemas decorrente das sries associativas das quais a unidade lexical faz parte, e no o contrrio. Assim, esta a concepo de morfema que adotamos: um elemento da unidade lexical que permite que ela estabelea relaes associativas simultaneamente fonolgicas e semnticas com outras (que compartilham o mesmo morfema). Nesse sentido, o morfema no um elemento isolado que pode ser segmentado. Mais ainda, o morfema no uma noo primitiva para a Morfologia, mas sim uma noo derivada do estabelecimento de relaes associativas. Nessa concepo, dizer que desfazer apresenta o prefixo des- uma forma abreviada de dizer que desfazer participa de uma srie de relaes associativas em que ocorre a mesma sequncia fonolgica e os mesmos traos semnticos. Para ilustrar melhor essa concepo de morfema, comparemo-la com as concepes das abordagens IA e IP. Nas abordagens IA, os morfemas so considerados como entidades lingusticas de existncia prpria, ou seja, so elementos armazenados na mente do falante, e que se unem uns aos outros para formar as palavras. Como exemplo, citemos Nida (1949, p. 1), representante do Estruturalismo norte-americano:Morphology is the study of morphemes and their arrangements in forming words. Morphemes are the minimal meaningful units which may constitute words or parts of words, e.g. re-, de-, un-, -ish, -ly, -ceive, -mand, tie, boy, and like in the combinations receive, demand, untie, boyish, likely. The morpheme arrangements

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which are treated under the morphology of a language include all combinations that form words or parts of words.24 (NIDA, 1949, p. 1)

Nesse ponto de vista, a tarefa de criar uma palavra traduzida em concatenar os morfemas corretos na ordem correta. J na abordagem IP, semelhantemente abordagem PP aqui proposta, a noo de morfema fica em segundo plano em detrimento da noo de regra, conforme lemos em Basilio (1980, p. 42): /.../ palavras so formadas por regras e/ou analisadas por regras, de modo que o estabelecimento de entidades como morfemas ou afixos, como elementos separados de regras e bases, constitui uma repetio desnecessria e, provavelmente, indesejvel. Para uma abordagem IP, portanto, formar uma palavra significa aplicar uma regra a uma outra palavra, que a sua base. As diferenas entre os trs modelos no se resumem apenas a concepes abstratas: tambm h consequncias para a descrio e anlise das unidades lexicais. Apresentaremos em seguida um fenmeno morfolgico para o qual acreditamos ser a anlise PP mais adequada: trata-se dos chamados basoides e sufixoides (na terminologia de Rocha, 1998, pp. 122-4). Esses termos referem-se a elementos semelhantes a bases e sufixos, porm no recorrentes na lngua. Rocha (1998, p. 123) traz como exemplos de formaes com basoides casos como meticuloso, rstico, pedante, vantagem, cordial, mosteiro etc., em que depreendemos facilmente os sufixos -oso, -ico, -nte, -agem, -al e -eiro, mas cujas bases no ocorrem em outras unidades lexicais da lngua. O mesmo ocorre com as seguintes formaes com sufixoides: bichano, casebre, sertanejo, marujo, longnquo etc., em que as bases bicho, casa, serto, mar e longe so facilmente detectveis, mas os elementos -ano, -ebre, -ejo, -ujo e -nquo no recorrem na lngua25. Em relao a esse fenmeno, uma anlise IA traria o seguinte problema: podemos segmentar casebre em cas- (radical) e -ebre (sufixo), capturando a intuio de que se trata do mesmo radical de casa, casaro etc., mas teramos que alargar o conceito de sufixo para englobar elementos no recorrentes e, portanto, de significado no facilmente delimitvel; ou

A Morfologia o estudo dos morfemas e de seu arranjo para formar palavras. Os morfemas so as unidades mnimas significativas que podem constituir palavras ou partes de palavras, por exemplo (em ingls) re-, de-, un, -ish, -ly, -ceive, -mand, tie, boy e like nas combinaes receive, demand, untie, boyish, likely. Os arranjos de morfemas que so tratados na morfologia de uma lngua incluem todas as combinaes que formam palavras ou partes de palavras. (Traduo nossa) 25 Deve-se considerar que, para haver recorrncia do elemento, o significado deve ser o mesmo. Por exemplo, existe um sufixo -ano formador de adjetivos ptrios, como americano, indiano etc.; evidentemente, no se considera o mesmo sufixo de bichano por no se tratar do mesmo significado.

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consideramos casebre como uma unidade lexical no segmentvel, deixando de relacion-la a outras unidades lexicais. Uma anlise IP do mesmo fenmeno teria que postular uma regra de adio do elemento -ebre a uma nica base, o que contraria a prpria noo de regra como uma generalizao (cf. Rocha, 1998, p. 36); para descrever meticuloso, por exemplo, teria que postular que a regra de adio de -oso pode se aplicar a bases no recorrentes, comprometendo a noo de base. Uma anlise PP no traz esses problemas na medida em que os morfemas so entendidos como elementos derivados de relaes associativas estabelecidas mentalmente no lxico. Assim, em vez de indagarmos se casebre pode ser segmentado em dois morfemas, devemos indagar, numa anlise PP, se casebre permite o estabelecimento de relaes associativas, e quais seriam elas.

Figura 5 Relaes associativas de casebre

A figura 5 descreve rudimentarmente a relao associativa entre casa e casebre. Como se pode observar, no relevante o fato de a sequncia final -ebre no estabelecer nenhuma relao associativa com outra unidade lexical; importa dizer, apenas, que as unidades lexicais casa e casebre apresentam elementos fonolgicos e semnticos em comum, no sendo necessrio postular a existncia de basoides ou prefixoides.

2.4.3.2. AnalogiaO conceito de relao associativa suficiente para descrever a maneira como as unidades lexicais j existentes so analisadas; para dar conta da criao de novas unidades lexicais, preciso recuperar o conceito de analogia. Sobre isso, busquemos novamente o que tem a dizer Saussure:/.../ em francs, sobre o modelo de pension : pensionnaire, raction : ractionnaire etc., qualquer pessoa pode criar interventionnaire ou rpressionaire, com o significado de em favor da interveno, em favor da represso. Esse processo evidentemente o mesmo que aquele que acabamos de ver engendrando honor: ambos reclamam a mesma frmula:

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raction : ractionnaire = rpression : x x = rpressionnaire (SAUSSURE, 1969, pp. 190-191)

Como est bem claro, Saussure considera que novas unidades lexicais so formadas por analogia, descrita adequadamente pela frmula matemtica da quarta proporcional. Para o autor, a analogia o princpio das criaes da lngua, como explicitado pelo prprio ttulo da seo 3 do captulo IV da terceira parte. O autor ainda refora que a criao lexical se processa por meio de uma comparao com as unidades j existentes na lngua, e afirma que as unidades criadas j existem potencialmente no sistema:Toda criao deve ser precedida de uma comparao inconsciente dos materiais depositados no tesouro da lngua, onde as formas geradoras se alinham de acordo com suas relaes sintagmticas e associativas. /.../ , pois, um erro acreditar que o processo gerador s se produza no momento em que surge a criao; seus elementos j esto dados. Uma palavra que eu improvise, tal como in-decor-vel, j existe em potncia na lngua; encontramos-lhe todos os elementos em sintagmas como decor-ar, decora-ao : perdo-vel, manej-vel : inconsciente, in-sensato etc., e sua realizao na fala um fato insignificante em comparao com a possibilidade de form-la. (SAUSSURE, 1969, pp. 192-3, grifo nosso)

Poder-se-ia discutir quais seriam as diferenas, na prtica, de se considerar a criao lexical como resultado da aplicao de regras ou da quarta proporcional, j que, num primeiro olhar, as duas solues parecem equivalentes. o que afirma, inicialmente, Basilio (1997, p. 10): qualquer forma analisada como produto de uma Regra de Formao de Palavras (doravante RFP) tambm pode ser analisada como produto do princpio de analogia (doravante PA). No entanto, o contrrio no verdadeiro: h criaes que podem ser analisadas pelo princpio da analogia, mas no pela aplicao de RFPs. Basilio (1997, p. 20) conclui que o princpio da analogia de fato explicativamente superior postulao de RFPs, sugerindo serem estas apenas manifestaes secundrias daquele.26 Essa concluso tem uma formulao terica clara na teoria conhecida como Gramtica Cognitiva (doravante GC cf. Langacker, 1987, 1991, 2008). De acordo com essa teoria, as regras tm a forma de esquemas, que surgem a partir de aspectos recorrentes das expresses lingusticas (LANGACKER, 2008, p. 218-21). Por exemplo, a partir do conhecimento de unidades lexicais como habilidade, igualdade, seriedade etc., o falante depreende o seguinte esquema:

Para uma discusso mais aprofundada da controvrsia entre regras e analogia, cf. Bauer (2001, pp. 75-97), que conclui ser um debate insolvel; a postura por ns adotada est em conformidade com a ideia do autor de que os sistemas de regra pressupem a analogia.

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ADJ-IDADE ...(i)dade ADJ ... IDADE -(i)dade

HABILIDADE habilidade HBIL hbil IDADE -(i)dade

IGUALDADE igualdade IGUAL igual IDADE -(i)dade

SERIEDADE seriedade SRIO srio IDADE -(i)dade

Figura 6 Esquema do sufixo -(i)dade

Nesta figura, seguindo a representao da GC, empregam-se letras minsculas para representar o polo fonolgico e maisculas para o semntico. Assim, seriedade deve ser entendido como a pronncia da unidade lexical seriedade e SERIEDADE como o significado da unidade lexical seriedade. As setas relacionam o esquema, no alto da figura, s suas instncias, na parte inferior. Os pontos ... indicam contedo fonolgico no especificado. A figura indica que o esquema geral de aplicao do sufixo -(i)dade abstrado de suas vrias instncias; uma representao mais detalhada deveria ainda mostrar a relao existente entre cada um dos trs elementos do esquema (radical, sufixo e unidade derivada) com cada um dos trs elementos das instncias, o que no feito aqui unicamente para no poluir visualmente a figura. A novidade apresentada pela GC no apenas mostrar que o esquema decorre de suas instncias (constituindo-se, assim, numa teoria baseada no uso); alm disso, a GC ainda postula que o esquema no tem uma natureza diferente da de suas instncias, diferindo delas apenas no grau de esquematicidade. Toda a gramtica de uma lngua, segundo a GC, pode ser descrita como um conjunto de unidades mais ou menos esquemticas, relacionadas entre si de

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diferentes formas (LANGACKER, 1987, p. 56-96). No se trata, portanto, de separar o lxico, de um lado, e a gramtica, de outro, como em outras teorias; para a GC, lxico e gramtica formam um continuum, diferindo apenas em que elementos gramaticais apresentam maior grau de esquematicidade. Dessa forma, uma vez depreendido um esquema a partir de instncias j existentes, ele pode ser empregado na criao de novas unidades lexicais. Isso pode ser representado da seguinte forma (a moldura arredondada indica tratar-se de uma formao no consagrada na lngua):

ADJ-IDADE ...(i)dade ADJ ... IDADE -(i)dade

FISCALIDADE fiscalidade FISCAL fiscal IDADE -(i)dade

Figura 7 Formao do neologismo fiscalidade

Como se pode observar, a frmula saussuriana da quarta proporcional traduzida, nos termos da GC, em duas etapas: depreenso do esquema (analgico) e sua aplicao na formao de uma nova unidade lexical. assim que, no modelo que aqui seguimos, se processa a neologia sinttica; e assim, portanto, que entendemos o funcionamento dos mecanismos de criao lexical. Dessa forma, nesta Tese, expresses do tipo o acrscimo do sufixo -(i)dade devero ser entendidas como a aplicao do esquema respectivo a -(i)dade. No entanto, ainda fica uma lacuna em relao depreenso do esquema: se ele surge de uma generalizao de instncias de uso, quantas instncias so necessrias para que se

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possa falar num esquema? Seria uma nica instncia suficiente ou preciso uma frequncia relativamente alta? Responderemos a essa questo na seo a seguir.

2.4.3.3. Fora e incrustamento de um esquemaUma das vantagens explicativas de entender que a criao lexical se processa por analogia que assim possvel dar conta de formaes espordicas, no recorrentes na lngua. Basilio (1997, pp. 11-2) exemplifica com enxadachim, criao de Guimares Rosa por analogia com espadachim: prefervel entender que a criao analgica a postular uma RFP de adio de -chim que ocorreria em dois casos apenas. No entanto, de acordo com a GC, seria necessrio postular que a criao de enxadachim pressupe a existncia de um esquema depreendido a partir de um nico caso, o que no traria vantagens em relao anlise por meio de uma RFP. Para resolver a questo, devemos lanar mo de outros dois conceitos da GC: o de fora de um esquema (ingl. schema strength) e de incrustamento27 de um esquema (ingl. schema entrenchment), explicados com clareza em Taylor (2002, p. 275):Schemas vary in strength. A schema gains strength (it becomes established, or entrenched) in proportion to the number of instances which elaborate it. A schema which is elaborated by very many instances will tend to be highly entrenched; a schema which has only a small, fixed number of instances will tend to be weakly entrenched; in the limiting case, a schema with only one instance will not be entrenched at all.28

Deve-se observar que a fora (o nvel de incrustamento) proporcional ao nmero de instncias que atualizam o esquema (a chamada frequncia de tipo ingl. type frequency), e no frequncia individual de cada instncia (a chamada frequncia de ocorrncia ingl. token frequency). Esta ltima, como ser mostrado adiante, tende a ter o efeito de reduo da fora do esquema. Langacker (1987, p. 59-60) afirma que no h um limite preciso para se definir o ponto em que um esquema (ou qualquer outro elemento lingustico) se torna incrustado, podendo variar inclusive de falante para falante. importante ter em mente, no entanto, que

Empregamos o termo incrustamento como traduo de entrenchment seguindo Silva (2006, p. 71). Os esquemas variam em fora. Um esquema adquire fora (torna-se estabelecido ou incrustado) proporcionalmente ao nmero de instncias que o atualizam. Um esquema atualizado por muitas instncias tender a ser altamente incrustado; um esquema que tem apenas um nmero pequeno, limitado, de instncias tender a ser fracamente incrustado; no caso limite, um esquema com apenas uma instncia no ser incrustado de nenhum modo. (Traduo nossa)28

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cada emprego de um elemento lingustico o torna mais incrustado, e longos perodos sem empreg-lo podem reduzir sua fora.29 Assim, o esquema no incrustado engendrado por espadachim ser representado da seguinte forma (bordas arredondadas indicam elementos no incrustados):

INSTR-CHIM ...chim INSTRUMENTO ... CHIM -chim

ESPADACHIM espadachim ESPADA espada CHIM -chim

Figura 8 Esquema do "sufixo" -chim

Mesmo no sendo incrustado, ainda assim o esquema possibilita a formao do neologismo enxadachim. Isso pode ser interpretado da seguinte forma: um esquema no incrustado no facilmente acessado pelos falantes, mas ainda assim corresponde a uma potencialidade da lngua, podendo, no futuro, vir a incrustar-se.

2.4.3.4. ProdutividadeA fora de um esquema est diretamente ligada s