Tese Mestrado Argola e Tambor

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

RAIMUNDA NONATA DA SILVA MACHADO

MULHER NEGRA: ressignificando o discurso no espao escolar

So Lus 2008

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RAIMUNDA NONATA DA SILVA MACHADO

MULHER NEGRA: ressignificando o discurso no espao escolar Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal do Maranho para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais. Orientadora: Prof. Dr. Sandra Maria Nascimento Sousa

So Lus 2008

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Machado, Raimunda Nonata da Silva Mulher negra: ressignificando o discurso no espao escolar / Raimunda Nonata da Silva Machado. So Lus, 2008. 123 f.: il. Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Universidade Federal do Maranho, 2008. Orientadora: Prof Dr Sandra Maria Nascimento Sousa 1. Raa e gnero Escola 2. Mulher Negra I. Ttulo CDU 396(=414)

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RAIMUNDA NONATA DA SILVA MACHADO

MULHER NEGRA: Ressignificando o discurso no espao escolarDissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Cincias Sociais da Universidade Federal do Maranho, para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais.

Aprovada em

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Prof Dr Sandra Maria Nascimento Sousa (Orientadora) Doutora em Cincias Sociais Universidade Federal do Maranho

_______________________________________________ Prof. Dr Horcio Antunes de Sant Ana Jnior Doutor em Sociologia Universidade Federal do Maranho

_______________________________________________ Prof Dr Diomar das Graas Motta Doutora em Educao Universidade Federal do Maranho

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A Deus, minha fortaleza. A meus pais, por sonharem comigo. Ao meu marido pelas responsabilidades

compartilhadas. minha filha Daniele e meu filho Thomaz pela compreenso das horas ausentes e ajuda nos momentos difceis. Aos parentes e amigos pela torcida e

companheirismo. s mulheres professoras Sandra e Diomar,

exemplos de feminismo intelectual e poltico na academia. Ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais UEB Joo do Vale, lcus da pesquisa

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AGRADECIMENTOS

A Deus porque muitas coincidncias providenciais me mostraram que Ele ouve a minha voz. A meus pais Martiniano e Enedina, eles sonham comigo e acreditam que sou capaz de conquistar meus propsitos. Ao meu marido Mervaldo, por ainda compreender e vivenciar relaes de gnero compartilhadas no nosso cotidiano, apoiando minhas decises, amando-me e respeitando-me. A meus filhos Danielle e Thomaz, eles do sentido minha luta por uma relao de gnero e raa compartilhada e respeitosa. A minha irm Neide e minha cunhada Mrcia, leitoras deste texto. A minha orientadora Sandra por aceitar e acreditar nesta pesquisa, por suas palavras de incentivo, o exame criterioso do texto, que, confesso, alguns momentos entristeceram-me, mas sem eles no seria possvel avanar, e mais, por compreender os momentos de angstia e rebeldia com sua atitude amiga e confiante. professora Diomar Motta pela orientao inicial, indicaes

bibliogrficas, sem as quais no se poderia nem ter comeado, assim como pela sua generosidade com emprstimo de alguns livros. professora Ftima Gonalves, pela oportunidade do convvio, generosidade e ateno constantes. amiga Arsnia pela fora e apoio necessrios a realizao desse estudo. Secretaria Municipal de Educao por permitir meu afastamento e a professora Edivnia Castelo Ferres que, com seu sim, deu-se incio este processo. Aos (as) colegas mestrandos e ao professor Ben por enriquecer este estudo durante nossas aulas e, sobretudo, no seminrio de discusso coletiva dos pr-projetos de pesquisa realizado na disciplina de Metodologia de Pesquisa em Cincias Sociais. Ao colega Eduardo pela ajuda na mediao com o campo de pesquisa. Aos professores e professoras do Mestrado em Cincias Sociais que, durante nossas sesses de estudo, imprimiram suas marcas nesta pesquisa: Ednalva, Marcelo, lvaro, Carlo e Beta.

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equipe da secretaria do Mestrado em Cincias Sociais, pelo auxlio muitas vezes prestado. CAPES pelos auxlios prestados ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, sem os quais no seria possvel alimentar at agora trs turmas. E, especiais agradecimentos a todos (as) os (as) profissionais e alunos (as) da UEB Joo do Vale, D. Ana e D. Jesus da comunidade Argola e Tambor, sem os (as) quais seria impossvel realizar este estudo.

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[...] destacar um conjunto de regras, prprias da prtica discursiva uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em no mais tratar os discursos como conjuntos de signos, mas como prticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos so feitos de signos; mas o que fazem mais que utilizar esses signos para designar coisas. esse mais que os torna irredutveis lngua e ao ato da fala. esse mais que preciso fazer aparecer e que preciso descrever. Michel Foucault

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RESUMO

Analisa a construo dos significados de gnero e raa nas Atividades Escolares Coletivas da Unidade de Educao Bsica Joo do Vale. Examina algumas especificidades dos significados de gnero e raa que os sujeitos escolares utilizam para engendrar experincias e entender como esto agindo nesse espao e construindo sua realidade social por meio da linguagem. Faz o mapeamento dos ditos sobre as questes de gnero e raa atravs de fontes iconogrficas, entrevistas abertas e observao das atividades escolares coletivas. Discute as categorias raa, gnero e escola, articulando as reflexes acerca do construcionismo social, da lgica do discurso, das relaes de poder e da afirmao de identidades no jogo da diferena. Intenciona demonstrar a construo social da realidade atravs do discurso, examinando a maneira como estes podem ser considerados fenmenos construtivos capazes de moldar as identidades e prticas dos sujeitos, num sentido ainda performativo, cuja prtica discursiva produz efeito com aquilo que enuncia. Questiona sistemas de significao, a partir do processo de atribuio de sentidos com que os sujeitos representam a realidade ao mesmo tempo em que so por ela representados. No teve preocupao em apontar os limites da abordagem em torno do discurso, mas toda a inquietao foi impulsionada pelo desejo de compreender como os sujeitos significam e so significados na realidade social, fazendo uso da linguagem verbal e no-verbal.

Palavras-chave: gnero raa escola discurso construo de significados

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ABSTRACT

It analyses the construction of the meanings of type and race in the School Collective Activities of the Unidade de Educao Bsica Joo do Vale. It examines some especifics of the meanings of type and race that the school subjects use to change experiences and understand as they are acting in this space and building their social reality through the language. It makes a map of the sayings on the questions of type and race through fountains symbolic, open interviews and observation of the school collective activities. It discusses the categories race, type and school, articulating the reflections about the social constructionism, the logic of the speech, of the relations of power and of the affirmation of identities in the play of the difference. It intends to demonstrate the social construction of the reality through the speech, examining the way like these phenomena can be considered constructive able to mould the identities and practices of the subjects, in a sense still performative, whose discursive practice produces effect with that it expresses. It questions systems of signification, from the process of attribution of senses with which the subjects represent the reality at the same time which they are for her represented. It had no preoccupation in pointing to the limits of the approach around the speech, but the whole concern was driven by the wish of understanding how the subjects mean and they are meant in social fact, making use of the verbal and non-verbal language.

keywords: Type-Race. School-Speech. Schooll-construction of meanings. Black woman.

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LISTA DE ILUSTRAES

p. Quadro 1 - Distribuio de alunos (as) por nvel, ciclo, srie e turmas (2007) .................................................................................... Quadro 2 - Distribuio do perfil e formao acadmica dos 34

profissionais de educao da UEB Joo do Vale (2007) .... 35 Fotos 1 e 2 Fotos 3 e 4 - Escombros de uma fornalha (19 mai 2007)........................... - Local onde foi construdo o Ranchinho da Alegria em 1997(19 mai 2007) ................................................................ Quadro 3 - Distribuio dos(as) alunos(as) da UEB Joo do Vale do turno matutino que a famlia se auto-reconhece como sendo de Argola e Tambor e Cidade Nova Ficha de Matrcula (2007)..................................................................... Fotos 5 e 6 - Desfile Beleza Negra por ocasio da Semana da 48 44 39

Conscincia Negra (2004) ..................................................... 66 Fotos 7 e 8 - Desfile Beleza Negra por ocasio da Semana da

Conscincia Negra (2004) ..................................................... 67 Fotos 9 e 10 - Feira de Cincias Pluralidade Cultural: desenvolvendo (cons)cincia (2005) .............................................................. Foto 11 Fotos 12 Fotos 13 Fotos 14 e 15 68

- I Tributo a Joo do Vale (2005) ............................................. 70 - Textos das msicas Pisa na Ful e Carcar.......................... 71

- O Forr forrado....................................................................... 72 - Atividades realizadas a partir do Projeto Conhecendo Joo do Vale (2005) ....................................................................... 80 95

Foto 16

- Identificaes das salas de aula e biblioteca 2007.............

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LISTA DE SIGLAS

ABA AECs CCH CCN CME EJA EMEMCE

- Associao Brasileira de Antropologia - Atividades Escolares Coletivas - Centro de Cincias Humanas - Centro de Cultura Negra - Conselho Municipal de Educao - Educao de Jovens e Adultos Encontro Maranhense sobre Educao, Mulheres e Relaes de - Gnero

GEMGe

Grupo de Pesquisa e Estudos sobre Educao, Mulheres e - Relaes de Gnero

GENI LDBEN MEC

- Grupo de Estudos das Relaes de Gnero, Memria e Identidade - Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional - Ministrio da Educao

NUPECOM - Ncleo de Pesquisa Escolar Compartilhada ONGs SEMED SENAC SEPPIR SMDH UEB UFMA - Organizaes No-Governamentais - Secretaria Municipal de Educao - Servio Nacional de Aprendizagem Comercial - Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial Sociedade Maranhense de Direitos Humanos Unidade de Educao Bsica Universidade Federal do Maranho

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SUMRIO

p. 1 INTRODUO ............................................................................................. 14 14 19 27 32 37 52 61 65

1.1 Recuperando memrias de iniciao pesquisa ................................... 1.2 Resgate de um percurso: a reflexividade na ao ................................. 2 A ESCOLA NA PRODUO DISCURSIVA................................................

2.1 Caracterizando o espao escolar a UEB Joo do Vale ................... 2.2 O lugar da UEB Joo do Vale: construo cultural do espao.......... 2.3 Dialogando com os estudos de raa e gnero........................................ 3 GNERO E RAA NOS DISPOSITIVOS PEDAGGICOS .......................

3.1 As atividades escolares coletivas ............................................................ 3.2 Olhares diversos redescobrindo a negritude: o que pensam alguns sujeitos escolares ...................................................................................... 4 DESAFIANDO PRESENA E AUSNCIA DE SUJEITOS

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GENERIFICADOS ....................................................................................... 4.1 Silenciando o gendramento ...................................................................... 4.2 Pensando possibilidades de pedagogias feministas ............................. 5 ALGUMAS CONSIDERAES: despertando para um ofcio

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intelectual e militante nos dispositivos pedaggicos............................. REFERNCIA ..............................................................................................

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1 INTRODUO 1.1 Recuperando memrias de iniciao pesquisa

O que faz a estrada? o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecer viva. para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (Mia Couto, poeta moambicano)

As escolhas que fazemos para obter satisfao pessoal so resultados de uma histria de vida que se iniciam junto com a famlia, parentes, amigos e estendese para outras dimenses do mundo social, assim sendo, fao este recorte de minha trajetria educacional para mostrar como surgiu o desejo de realizar uma pesquisa sobre a problemtica da mulher negra na sociedade. O meu ingresso no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Maranho teve influncia de minha irm professora; de algumas professoras que deixaram marcas no meu caminho, por mostrarem, atravs de sua atuao poltica, que possvel ser professores (as) sujeitos de transformao e tambm, da minha prpria experincia profissional no Servio Nacional de Aprendizagem Comercial SENAC. Na ocasio, desempenhando as funes do cargo de profissional administrativo, tive a oportunidade de acompanhar e auxiliar diretamente, as atividades de Superviso Educacional num perodo de trs anos no Centro de Formao Profissional desta instituio. Essa experincia aproximou-me do trabalho pedaggico, permitindo-me realizar minhas atividades profissionais de forma prazerosa e lutar para fazer o curso de Pedagogia, o qual me habilitaria a realizar o desejo de tambm desempenhar as atividades de superviso que acompanhava. Alm disso, durante o curso fui percebendo outras formas de contribuir com a idia de interveno na realidade educacional, tendo em vista a luta por transformao social, ainda muito impregnada do desejo de ajudar sujeitos oprimidos. Quando iniciei minha trajetria acadmica, o curso de Pedagogia encontrava-se na fase final de reformulao curricular (2000). Dentre outros

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aspectos, essa reformulao consistia na extino das habilitaes permitindo uma formao mais ampla para atender aos desafios colocados pelas polticas educacionais, formando profissionais capazes de atuar em sistemas educacionais, exercer funes pedaggicas e administrativas na escola e em outras instncias educativas. relevante enfatizar essa nova organizao curricular porque na fabricao de sujeitos desejados, os saberes pedaggicos nela contidos permitiram construir uma formao profissional investigativa, entendendo-a como uma prtica refletida. Essa reflexo da ao pedaggica s se torna possvel, oportunizando aos professores e professoras o exerccio de etnografia da prtica escolar (ANDR, 1995), a qual constitui um plano de investigao aberto e flexvel; repensando e reavaliando os procedimentos terico-metodolgicos; descobrindo e redescobrindo novas formas de entendimento da realidade; pois, o saber docente nutrido tanto pelas teorias quanto por experincias construdas nas relaes sociais. Nesse sentido, aproximei-me de inmeras atividades de iniciao cientfica, atravs da participao desde 2002 no Grupo de Pesquisa e Estudos sobre Educao, Mulheres e Relaes de Gnero GEMGe, ligado ao Programa de Mestrado em Educao da Universidade Federal do Maranho sob a coordenao da Prof Dr Diomar das Graas Motta e no Ncleo de Pesquisa Escolar Compartilhada NUPECOM da Secretaria Municipal de Educao - SEMED, desde agosto de 2004. No NUPECOM, ainda na condio de licencianda em Pedagogia meu interesse era aproximar-me da escola com o objetivo de experimentar o exerccio de etnografia da prtica escolar na perspectiva de interveno, pois, observando e refletindo sobre o trabalho pedaggico de uma professora da rede municipal, membro deste Ncleo, poderia contribuir com minha formao de professora pesquisadora e com a escola pblica, investigando como os profissionais da educao esto tratando na escola de questes raciais e de gnero. A participao em grupos de pesquisa permite a continuidade dos estudos acadmicos, uma espcie de formao continuada, oportuniza o aprofundamento de referenciais tericos, permite construir experincias com atividades de pesquisa e estimula as comunicaes das produes em eventos cientficos.

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Nessa direo que realizei o estudo sobre: Epistemologia feminista para uma nova ao no cotidiano escolar, apresentado no I Encontro Maranhense sobre Educao, Mulheres e Relaes de Gnero EMEMCE em agosto de 2003. Nesse estudo j me inquietava com a necessidade de levar para as escolas a discusso da categoria gnero e pensar a epistemologia feminista1 como uma ferramenta conceitual para ser operacionalizada no interior das salas de aula. Assim, fiz um estudo bibliogrfico acerca da epistemologia feminista e analisei como a mulher representada em alguns livros didticos e histrias infantis que circulam nas salas de aula. A tentativa era de refletir sobre a possibilidade de uma nova ao pedaggica que pudesse desvendar e transformar a construo scio-cultural da imagem da mulher, voltadas para a perspectiva de Guacira Louro (2000) quando ela aponta que algumas proposies feministas, para alm de influenciar as prticas educativas, acabaram se constituindo como propostas pedaggicas especficas, denominadas pedagogias feministas, pois, como professora, Louro (2000, p. 20) entende que:Grande parte dessas propostas inscrevia-se na vertente das pedagogias emancipatrias, dirigindo os seus esforos no sentido de formular um paradigma educacional que se contrapusesse aos paradigmas vigentes, considerados androcntricos e autoritrios. As pedagogias feministas procuravam, pois, romper com as relaes hierrquicas das salas de aula tradicionais, com o monoplio dos experts, bem como a dicotomia entre o objetivo e o subjetivo, a razo e a emoo.

Aps esta experincia comecei a questionar os estudos que apresentam um raciocnio homogneo e universalizante que concebem homens e mulheres como arranjos sociais que sugerem posies fixas, seguras e estveis. Louro (2005, p. 86) entende que esta idia foi desestabilizada,[...] inicialmente, pelas mulheres de cor e, em seguida, pelas mulheres lsbicas, as quais percebiam, na teorizao feminista, a marca branca, heterossexual e de classe mdia urbana. A partir das problematizaes e das teorizaes desses grupos, acentuava-se a diversidade de histrias, de

Para Young-Eisendrath (1993, p. 180-181) a epistemologia feminista deveria nos prover um modelo sistemtico para a reviso de hipteses a respeito da inferioridade feminina na medida em que se repetem no nosso pensamento sobre homens, mulheres, sociedade, arte, cultura e verdade, na vida diria. [...] A desconstruo feminista da cultura herdada deveria, porm, prover assistncia na formulao de novos mtodos de comunidade, trabalho e relacionamento baseados em imagens e ideais no-patriarcais potencialmente, em formas de existncia compartilhada, tais como limitao, compaixo e reciprocidade. [...] O aspecto de reconstruo da epistemologia feminista a articulao do sistema de conhecimento feminista atravs de novos contextos sociais, novos significados e novos discursos sobre trabalho e identidade femininos.

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experincias e de reivindicaes das muitas (e diferentes) mulheres. O feminismo ampliava, pois, seu debate sobre a diferena.

Alm disso, a pesquisa acadmica2 tem constitudo uma forma de compreender como tem sido historicamente construda minha posio nesta sociedade enquanto mulher negra para tentar intervir nos espaos de minha atuao profissional, contra a existncia de comportamentos preconceituosos que nos desvalorizem por no fazermos parte do padro europeu valorizado em nosso cotidiano. Ento, optei por estudar as categorias gnero e raa para refletir sobre a construo social do ser mulher negra e construir minhas primeiras reflexes no estudo sobre A professora negra e suas representaes (III Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) em setembro de 2004). Com esse trabalho, estudei algumas teorias racistas que se expandiram no imaginrio social brasileiro a partir do final do sculo XIX e incio do sculo XX e realizei entrevista com uma professora negra da rede pblica de ensino municipal, a fim de investigar como essa professora aborda as questes raciais na sua sala de aula e qual a concepo racial predominante em seu discurso. assim que se constri meu desejo de realizar uma pesquisa sobre alguns dos significados raciais e de gnero que circulam nas relaes sociais, sobretudo, devido aos estudos que desenvolvi no GEMGe, o qual objetiva ampliar a viso dos estudos feministas, discutindo-se a posio e a participao da mulher no sistema educacional. So estudos que foram fundamentais para o enriquecimento da minha formao, especialmente os grupos de pesquisa j citados, os quais tambm influenciaram na construo da minha monografia: Mulheres negras na educao superior em So Lus. Nessa pesquisa, busquei refletir sobre as questes raciais na tentativa de dar visibilidade s mulheres negras que atuam nos espaos escolares. Assim sendo, realizei a pesquisa monogrfica de concluso do curso de Pedagogia intitulada: Mulheres negras maranhenses na educao superior em So Luis, a qual analisou aLeite da Silva (1999, p. 116) entende a pesquisa como prtica de cuidado na emancipao da mulher, argumentando que esta se constitui em uma possibilidade, dentre as outras existentes e emergentes, para a construo de um conhecimento transformador, que tenha como base novas formas de conscincia crtica. Nesta perspectiva, a pesquisa pode se constituir em instncia de emancipao poltica e social e, em sendo assim, ela essencialmente tica, na medida em que possa revitalizar os elos entre a prtica terica e a prtica de transformao.2

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trajetria educacional de duas mulheres negras licenciadas pela Universidade Federal do Maranho no final da dcada de 1960. Discuti questes voltadas para a educao de mulheres negras na perspectiva da Histria Nova, pretendendo contribuir para o reconhecimento e a valorizao da histria dos vencidos. Todo esse percurso de iniciao cientfica me instigou a discutir as relaes raciais e de gnero no cotidiano escolar. E mais, o relato de uma das professoras negras entrevistadas sobre a presena de preconceitos raciais na escola me despertou para a necessidade de aprofundar os conhecimentos tericos referentes s categorias raa e gnero, bem como ampliar as reflexes acerca das relaes de poder que perpassam as relaes nesse contexto, e assim, partir para realizar o trabalho de campo em uma escola da rede municipal de So Lus.

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1.2 Resgate de um percurso: a reflexividade da ao

O caminho se faz ao caminhar (Damasceno, 2005)

Percebi que meus estudos aproximavam-se de uma abordagem scioantropolgica na tentativa de discutir a construo de significados3 vinculados dinmica das relaes raciais e de gnero nas prticas sociais escolares. Na construo deste objeto de estudo, encontrei, no conjunto do corpo terico das disciplinas do Mestrado em Cincias Sociais da Universidade Federal do Maranho e nas discusses realizadas pelo Grupo de Estudos das Relaes de Gnero, Memria e Identidade GENI vinculado a este mestrado, referenciais necessrios para fazer, inicialmente, a histria social das categorias raa e gnero, olhando para a escola como inveno de um espao social discursivo, capaz de engendrar novos saberes, conceitos, objetos e formas novas de sujeito, mediante o que ela profere para si mesma e circula entre os que a fazem funcionar (FOUCAULT, 1988). Mas, para a compreenso dos significados atribudos s especificidades de gnero e de raa que esto sendo engendradas no contexto de algumas atividades escolares, selecionei a Unidade de Educao Bsica Joo do Vale (UEB Joo do Vale)da rede pblica municipal de So Lus, localizada Avenida Gapara n 1, no povoado Argola e Tambor que faz parte geograficamente da rea ItaquiBacanga considerado zona rural desta cidade. A escolha desta escola se deu aps a discusso dos projetos de pesquisa na disciplina Metodologia de Pesquisa em Cincias Sociais da UFMA. Neste debate, tive a oportunidade de compartilhar saberes e experincias oriundas do processo de construo de nosso trabalho cientfico. Assim, o colega Eduardo4 sugeriu-me a UEB Joo do Vale, considerando-a como um espao rico para investigao sobre

Utilizo o termo significados para me referir a interpretao das prticas discursivas. Carlos Eduardo Ferreira Soares mestrando em Cincias Sociais da turma 3 e professor da rede municipal de So Lus lotado nas sries iniciais do ensino fundamental da Unidade de Educao Bsica Joo do Vale, atualmente, gozando licena especial para cursar o referido Mestrado.4

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as questes raciais, afirmando ter, nesta escola, profissionais da educao5 preocupados em desenvolver prticas escolares anti-racistas. Inicialmente, pretendia localizar tais escolas atravs da Secretaria Municipal de Educao SEMED, precisamente, atravs do setor responsvel pela implementao de projetos sobre educao das relaes tnico-raciais, a exemplo do Projeto A cor da cultura, ora coordenado pela Prof Ms Ilma Ftima de Jesus. Mas, como minha inteno era realizar um estudo em espaos onde havia a presena de projetos educativos acerca da temtica das relaes raciais e tambm, perceber se a questo de gnero perpassa nas discusses que envolvem a mulher negra, optei pela sugesto do colega que se tornou um mediador importante, contribuindo para reduzir os esforos para chegar at a escola-campo e delimitei meu universo de pesquisa na UEB Joo do Vale. Ento, na manh do dia 13 de fevereiro de 2007 fiz meu primeiro contato com a UEB Joo do Vale. Nesse primeiro momento de insero no campo de pesquisa, o acompanhamento do colega foi imprescindvel para conseguir a aceitao dos sujeitos escolares6. Essa fase de iniciao muito difcil e ainda estava aprendendo a mergulhar numa realidade desconhecida, pois na posio de estranha fui chegando paulatinamente perto da compreenso da realidade da escola, partilhando com os sujeitos os significados, j que o interesse do (a) antroplogo (a) consiste na aproximao gradativa dos significados, ou seja, da maneira como os sujeitos vem a si mesmos e aos outros (Geertz, 1989). A mediao de Eduardo, naquele momento, possibilitou-me exercer o papel de estar l, que de acordo com Geertz (1989, p.279), significa iniciar formas de cruzar uma fronteira de sombra moral ou metafsica. Embora no seja considerada uma profissional daquele espao, o fato de ser professora e envolverme tambm nas atividades escolares contribuiu para que eu fosse aceita e autorizada a freqentar aquele espao. Como a diretora no se encontrava na escola, fomos recebidos pela professora Dandara7. Visitamos as 8 (oito) salas de aula e, enquanto eu conversavaDesigno profissionais da educao os sujeitos escolares envolvidos nas prticas sociais educacionais (gestora coordenadoras professoras (es)) 6 Uso a expresso sujeitos escolares para me referir tanto aos profissionais da educao quanto aos (as) alunos (as), funcionrios (as) administrativos (as) e operacionais responsveis pelo funcionamento da escola. 7 Os professores mencionados neste trabalho recebem nomes fictcios. Os pseudnimos escolhidos referem-se a grandes personalidades negras, buscando dar visibilidade s suas histrias de luta e5

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com os (as) professores (as) sobre minha inteno de pesquisa, Eduardo prendia a ateno dos (as) alunos (as), liberando-os para me atender. A partir desse momento, fizemos contato com a Diretora da escola e combinamos uma reunio com os profissionais da educao, na qual tratamos das questes raciais e de gnero na escola. A diretora iniciou a reunio argumentando sobre a importncia desta pesquisa para o trabalho que a escola j desenvolve; solicitou a colaborao de todos e enfatizou que, o fato da comunidade em que a UEB Joo do Vale estar inserida ser considerada remanescente de quilombo, traz para a escola a responsabilidade de intervir no sentido de contribuir para a valorizao da cultura negra. Alm disso, manifestou seu pertencimento racial como motivao para lutar em prol de uma escola anti-racista. J a professora da I etapa8 falou que nos anos iniciais de escolarizao no existe manifestao de discriminao ou preconceito entre as crianas, sugerindo que seria mais vivel para a pesquisa direcionar nosso olhar para o turno vespertino que atende de 5 a 8 srie. No entanto, outras professoras discordaram, relatando a existncia de discriminao e preconceito na escola e apontaram que os professores reproduzem sim a cultura dominante. Percebi, entretanto, que a preocupao das profissionais da educao9 consiste em buscar estratgias para combater formas de preconceito e discriminao racial, mas essas temticas no constam na pauta de estudo das reunies pedaggicas e de formao continuada destes sujeitos. No ser de fundamental importncia o estudo de referenciais tericos sobre relaes raciais para desenvolverem pedagogias anti-racistas? Alm disso, referiram-se a seu pertencimento racial, mas no mencionaram a condio social de ser mulher negra, ou seja, se, inicialmente a cor da pele tida como uma situao problema, a condio de ser mulher negra, aparentemente no o seria, permanecendo, portanto, silenciada, pois, o que mais incomoda no ser mulher, mas ser negra.

resistncia, mas sem o propsito de apontar semelhanas entre estes personagens e os (as) profissionais desta escola. Ao final desta dissertao apresentaremos as biografias dessas mulheres e homens negros. 8 A I etapa corresponde organizao do ensino atravs de ciclos de alfabetizao, de acordo com a Resoluo n 17/05 CME que aprova a Proposta de Ampliao do Ensino Fundamental para nove anos na rede de Escolas Pblicas Municipais de So Lus, com incluso de alunos a partir de 6 anos . 9 A partir de agora usarei esta expresso no feminino plural para me referi s professoras, gestora, coordenao pedaggica e ao nico professor que atua na 3 srie do ensino fundamental.

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Iniciei, ento, o trabalho de campo, buscando manter certo grau de interao com o grupo social da pesquisa (as profissionais da educao, alunos, funcionrios administrativo, operacionais e algumas outras pessoas da comunidade bastantes presentes na escola) para obter as informaes sobre as situaes dirias, o contexto de trabalho, percepes e comportamentos destes sujeitos. Com isso, me senti desafiada diante da complexidade da dinmica das relaes sociais no espao escolar pesquisado com a tentativa de examinar quais significados os sujeitos escolares utilizam para engendrar experincias que reivindicam a valorizao de um grupo social especfico: os negros. Meu interesse inicial em investigar como a escola contribui na construo sociocultural da imagem da mulher negra, foi sendo ampliado a partir de minhas observaes s prticas dos sujeitos na escola e, de modo especial, ao trabalho pedaggico das Atividades Escolares Coletivas AECs10 privilegiadas nesse espao pelas professoras, em geral, pela gesto escolar e coordenao pedaggica, como forma de positivar a histria e cultura negra. Desse modo, busquei focalizar, nesse contexto, as prticas sociais escolares valorizadas ou evidenciadas como sendo relevantes pelos sujeitos. Alm disso, percebi a existncia de alguns conceitos nativos como: comunidade negra e remanescente de quilombo, cujos referenciais simblicos so responsveis pela organizao das Atividades Escolares Coletivas - AECs. Diante disso, o modus operandi (BOURDIEU, 1989) foi mostrando algumas necessidades de estudo para compreenso dos conceitos e situaes que foram aparecendo. Assim, percebi que durante a pesquisa que a teoria vai se revelando. Alm disso, trata-se de um estudo que privilegia as falas e intenes dos sujeitos da pesquisa. Nessa perspectiva, muitos questionamentos foram se construindo como ncleo da investigao. O que significa, na UEB Joo do Vale, ser uma comunidade negra ou remanescente de quilombo? Como as categorias gnero e raa esto sendo significadas no contexto da atuao pedaggica na UEB Joo do Vale? Considerando que na UEB Joo do Vale, as AECs so dispositivos pedaggicos de grande importncia, especialmente no sentido de positividade da

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Estou designando de Atividades Escolares Coletivas AECs o conjunto de manifestaes artstico-culturais realizadas por ocasio de datas comemorativas, projetos educativos, feiras cientficas, etc.

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imagem

dos

sujeitos

negros,

quais

crenas,

valores,

hbitos,

prticas,

comportamento, formas de linguagem so ali manifestados? A positividade realada para a valorizao da negritude exclui a diviso desigual dos sujeitos de gnero, como mostraram as observaes iniciais? A partir do movimento que realizei de familiarizao e estranheza com o grupo social pesquisado decidi que o principal foco de minha anlise seria as Atividades Escolares Coletivas - AECs no perodo que vai de 2004 a 2007, pois, alm delas dialogarem com a comunidade local, eu as tomo como prticas discursivas escolares capazes de engendrar experincias, produzindo e

reproduzindo significados sociais, sobre a dimenso dos dispositivos pedaggicos, os quais, de acordo com a anlise de Larrosa (1994) constituem aqueles lugares onde se constroem e se transformam a experincia de si. Nesse sentido, focalizei as AECs como sendo dispositivos pedaggicos, os quais constituem mecanismos utilizados pela UEB Joo do Vale para dizer quais condutas sociais so aceitveis. Ento, delimitei para esta pesquisa as AECs realizadas a partir de 2004 por ser o perodo de maior evidncia no trato das relaes raciais na escola, j que a partir de 2006, essa temtica perde um pouco a visibilidade devido a sada da escola do coordenador pedaggico, o qual, priorizava aes educativas de valorizao da cultura negra. Uma forma de mapear os ditos sobre as questes de gnero e raa se constituiu atravs de fontes iconogrficas, tomando para anlise as imagens fotogrficas das AECs realizadas entre 2004 e 2006; entrevistas abertas com cinco profissionais da escola, duas moradoras de Argola e Tambor desde a poca de ocupao do lugar e quatro crianas que participaram do Desfile Beleza Negra, atravs da roda de conversa11, utilizando o recurso da fotografia como tcnica projetiva, cujo procedimento capaz de provocar os (as) sujeitos para problematizao da realidade, instigando-os a rememorarem, reinterpretar e traduzirem seus sentimentos acerca da experincia vivida e observao do dispositivo pedaggico realizado por ocasio da Festa do Dia das Mes. Para Luke (2000, p. 96) os estudos ps-estruturalistas fornecem fundamentos relevantes capazes de examinar como os discursos constituem

Roda de conversa uma estratgia didtica muito utilizada com crianas na educao infantil e sries iniciais do ensino fundamental para realizao de sondagem diagnstica, buscando fazer o levantamento de conhecimentos prvios.

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fenmenos construtivos, moldando as identidades e as prticas dos sujeitos humanos, sendo, portanto, uma ferramenta que nos ajuda a perceber como os sujeitos envolvidos na construo dos significados, sobretudo nas AECs, esto agindo nesse espao e construindo a sua realidade social por meio da linguagem. Nessa direo, este estudo pode contribuir para enriquecer as produes da linha de pesquisa Minorias nacionais, tnicas, raciais e de gnero do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, ampliando a produo de conhecimento sobre as relaes raciais e de gnero, discutindo a partir de prticas discursivas escolares, os significados construdos sobre gnero e raa no espao escolar investigado. Tambm, pode permitir que entre no cotidiano escolar o debate sobre a desconstruo do discurso hegemnico e classificatrio e a reconstruo de outros significados sociais que permitam desnaturalizar algumas representaes negativas socialmente internalizadas em relao s mulheres negras, permitindo a compreenso e a ressignificao de prticas sociais universalistas marcadas por relaes de poder. Nesse propsito, busquei sustentao terica, principalmente nos estudos de Almeida (2002; 2006), Althusser (1996), Bauer e Gaskell (2002), Butler (2001; 2003), Bourdieu (1989; 1996; 2004; 2007), Certeau (1994), dAdesky (2001), Dubois (1993), Foucault (1996; 2005; 2006), Guibernau (1997), Hall (2005; 2006), Lauretis (1994), Louro (2000; 2001; 2004), Munanga (2004), ODwyer (2002), Petitat (1994), Quijano (2005), Scott (1995; 1999) e Silva (1994, 2000) para discutir com estes as categorias raa, gnero e escola, articulando as reflexes acerca do construcionismo social12, da lgica do discurso, das relaes de poder e da afirmao de identidades no jogo da diferena. uma perspectiva de estudo que tenta compreender a construo social da realidade atravs do discurso entendido, na viso foucaultiana, como estratgias que fazem parte das prticas sociais e na de Certeau (1994) como estilos de ao que atravs da ttica arte do fraco - permitem mobilizar meios para enfrentar os

De acordo com Louro (2000, p. 95), a perspectiva que estabelecer uma contraposio mais efectiva vertente essencialista a do construcionismo social. Ao voltar-se precisamente para a cultura, esta perspectiva afirma o carter construdo, histrico, particular e localizado dos conceitos, os quais so nossas maneiras de significar, organizar, falar, enfim de simbolizar nossas percepes sobre o mundo social.

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desafios que se colocam na ruptura com a viso essencialista de constituio do sujeito moderno. Neste sentido, tomo a noo de discurso no apenas como construo da linguagem e prticas lingsticas, mas como metfora para mostrar essa noo no sentido de que ns lidamos com o mundo em termos de construes em que diferentes tipos de textos constituem nossas interpretaes do mundo, j que o uso da linguagem um aspecto da vida social. (BAUER; GASKELL, 2002) Tambm utilizo esta noo em seu sentido performativo que segundo Butler (2001, p. 167) constitui aquela prtica discursiva que efetua ou produz aquilo que ela nomeia. Aps situar o problema e a abordagem a ele dada, mostrando as concepes que nortearam sua realizao e de como olhei para o universo da pesquisa, focalizando, no trabalho pedaggico da UEB Joo do Vale, principalmente as AECs, apresento a seguir, o que foi possvel examinar durante a trajetria deste estudo. Para abordar tais questes, trato no primeiro captulo do estudo sobre A escola na produo discursiva, a partir da constituio da UEB Joo do Vale, enquanto escola pblica municipal de So Lus e sua relao com a comunidade Argola e Tambor, a qual considerada como remanescente de quilombo. Ainda neste captulo, se discute alguns estudos sobre relaes de gnero e raa na escola, dialogando com paradigmas essencialistas e scio-contrucionista. No segundo captulo, examino o modo como as categorias gnero e raa so significadas no contexto das AECs da UEB Joo do Vale, problematizando se a questo de gnero est presente nas discusses da relaes raciais, envolvendo as mulheres negras. So analisadas, como sistemas de significao, alguns dispositivos pedaggicos, como o Desfile da Beleza Negra; a Feira de Cincia Pluralidade Cultural; o I Tributo a Joo do Vale e o Projeto Conhecendo Joo do Vale, utilizando as imagens fotogrficas como trao do real dentro das circunstncias em que foram produzidas para compreender seus sentidos, efeitos e sua caracterstica indeterminada, instvel e ambivalente. No terceiro captulo, problematizo a presena e a ausncia de sujeitos generificados na escola, discutindo alguns significados de gnero que aparecem por ocasio da Festa do Dia das Mes. Ainda aponto as pedagogias feministas como possibilidades de desenvolvimento de prticas educativas fundadas numa

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epistemologia feminista contra o racismo e o sexismo, dialogando tambm com alguns significados de gnero invisveis na escola. Dessa forma, nos captulos que se seguem estudarei prticas discursivas escolares sem a pretenso de apontar soluo para o problema da marcao da diferena na constituio dos sujeitos, mas buscando questionar e rejeitar os esquemas dicotmicos e contribuir para se pensar prticas sociais escolares em termos de pluralidade e respeito s diferenas, tentando mostrar algumas possibilidades de evitar que os sujeitos sejam desvalorizados e inferiorizados em suas especificidades.

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2 A ESCOLA NA PRODUO DISCURSIVA

Diferenas, distines, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. [...] ela se incubiu de separar os sujeitos [...] A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna comeou por separar adultos de

crianas, catlicos de protestantes. Ela tambm se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas. (Guacira Louro, 1997, p. 57)

No Brasil, a relao entre o desenvolvimento educacional e o desenvolvimento poltico-administrativo reflete uma estrutura social caracterizada por um processo de seletividade e, conseqentemente, pela manuteno da discriminao dos grupos sociais desfavorecidos, tais como, os negros, ndios e mulheres. No perodo que demarca o estabelecimento dos jesutas at o decreto pombalino de sua expulso (1549-1759), o projeto da Companhia de Jesus preocupava-se, sobretudo, com a tentativa de ampliar e consolidar a obra catequtica, deslocando a tradio oral para a imposio da escrita, a fim de transmitir valores e prticas sociais para responder ao movimento da Reforma Protestante. J a fase pombalina sinalizou para uma laicizao, mas o projeto de publicizao da escola ganha amplitude com o chamado Movimento da Escola Nova nos anos de 1920-1930 do sculo XX, representando tambm um projeto polticosocial da burguesia que seduz muitos educadores comprometidos com as classes populares. Vale ressaltar que esse empreendimento contribuiu para a expanso e consolidao do sistema de ensino pblico brasileiro tal como conhecemos hoje, apresentando uma cultura organizacional com caractersticas universais,

padronizando modos de pensar e agir, valores, comportamentos e modos de

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funcinamento, contribuindo na construo de desigualdade e excluso social, racial e sexual. Esta escola como um microcosmo social legitima valores, crenas, costumes, vises de mundo e estilo de vida, onde se relacionam diferentes grupos com suas especificidades raciais e de gnero. um espao desafiador e complexo, na medida que consegue produzir e reproduzir os cdigos culturais construdos na sociedade, bem como assegurar a dominao de um grupo social sobre o outro. Trata-se ainda, de uma caracterstica ambivalente engendrada nas prticas discursivas, ou seja, atravs dos discursos pedaggicos. Assim sendo, chamo a escola de reprodutora quando esta desenvolve pedagogias normalizadoras que visem universalizar as diversas formaes culturais. Mas, h tambm as subjetividades dos sujeitos que pensam e agem, que possuem crenas e valores e que vo se formando ao longo de suas vidas. Nesse sentido, percebo a escola como produtora, pois capaz de se constituir um espao com possibilidades de operar transformaes, trabalhando numa perspectiva antidiscriminatria, questionando a diferena e explorando de maneira positiva a multiplicidade de formaes identitrias presentes neste espao. Enquanto instituio participante dessa dinmica de produo e reproduo social, a escola representa ainda, o prolongamento de um binarismo histrico entre essncia e existncia; objetividade e subjetividade; universal e particular; trabalhadores manuais e intelectuais, enfim, operando como instrumento capacitado para legitimar prticas sociais permitidas, ao mesmo tempo em que reprime quelas consideradas proibidas. mile Durkheim (1958-1917) em suas obras: As regras do mtodo sociolgico (1987) e Educao e Sociologia (1978) argumenta que a principal funo da instituio escolar a integrao social por meio da transmisso de regras sociais destinadas homogeneizao social, a qual compreende a formao de uma conscincia coletiva e a especializao que significa formar o indivduo para o mundo social de acordo com suas aptides. As preocupaes deste socilogo e pedagogo esto em defender que a educao constitui uma ao exercida sobre as geraes que precisam ser preparadas para a vida social, desenvolvendo-lhes estados fsicos, intelectuais e

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morais em conformidade com os interesses do conjunto da sociedade e pelo meio especial a que o indivduo, particularmente, se destine. Nessa acepo, a escola constitui um mecanismo que possibilita a integrao dos indivduos sociedade. Ela veculo que realiza em cada ser humano aquilo que a sociedade deseja que ele seja, isto , cria no homem um ser novo adequado s exigncias sociais. Durkheim (1978) assegura que as transformaes na sociedade apresentam tambm igualmente, uma mudana na idia que o homem deve fazer de si mesmo. Mas, possvel para a escola fazer prevalecer um conjunto de significados, produes simblicas e materiais de uma comunidade como um todo, configurando um padro coletivo de pensar e agir? Quais sujeitos, historicamente, tm tido autoridade para selecionar os valores bsicos de uma sociedade? Ou, estes valores tm imposies prprias, de sua natureza? A escola, desde a antiguidade, surge como instituio especializada na tarefa de cuidar da transmisso da herana cultural, privilegiando a tradio escrita em detrimento da oralidade e construindo uma educao diferenciada para a elite, centrada nas atividades intelectuais, enquanto que escravos ou servos permaneciam em suas experincias de vida e trabalho. At meados do sculo XX predominava nas Cincias Sociais esta viso funcionalista que, segundo Petitat (1994), entende a sociedade como um sistema integrado, desde os estudos de mile Durkheim (1958-1917) ao modelo Parsoniano de internalizao da ao social que, garantindo a reproduo da ordem social permite a estabilidade das estruturas sociais. Nesse sentido, as instituies escolares so significativas devido aos papis sociais que seus atores

desempenham. Alexander (2000, p. 43) exemplifica isto, afirmando queprofesor es um rol real em el sistema social, asociado com obligaciones definidas. Tal rol no es el simple producto de la personalidade, ni la emanacin automtica de la cultura. Es un conjunto detallado de obligaciones para la interaccin em el mundo real. Em otras palabras, forma parte del sistema social.

Petitat (1994, p. 23) discute ainda uma outra corrente de pensamento chamada conflitualista, na qual a sociedade analisada como uma unidade composta por elementos contraditrios cuja estabilidade repousa na manuteno das relaes de dominao.

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importante tambm manifestar aqui meu desafio em discutir Sociologia da Educao, descartando autores, selecionando outros e tentando problematizar neste estudo a viso determinista de que a escola contribui para a reproduo de uma sociedade de classes, tal como fez Louis Althusser em seu artigo Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado e o prprio Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron em A Reproduo: elementos para uma teoria do sistema de ensino, ambos publicados no ano de 1970. De um lado, temos em Althusser (1996) uma ferramenta conceitual marxista, afirmando que a funo da escola assegurar a reproduo das relaes sociais de produo, de outro, Bourdieu (1996a) com uma viso que a defende como reprodutora do capital cultural. Nesta difcil tarefa, destaco, dentre outros autores dessa corrente conflitualista, estudos de Bourdieu (1996b) a partir da dcada de 1980. No para fazer um estudo aprofundado de suas contribuies e limites para o campo da Sociologia da Educao, mas, para discutir, com este terico, a escola como instituio que ainda detm fora autorizada para impor determinada viso de mundo fundada nas relaes de poder, atravs de porta-voz ou discurso autorizado. Assim, para compreender esta instituio em seu funcionamento, estudarei a UEB Joo do Vale da rede pblica municipal de So Lus, situada no povoado Argola e Tambor que apresenta graves problemas de infra-estrutura e violncia social, na tentativa de perceber qual o discurso que esta instituio legitima sobre as relaes de gnero e raa. E, para ajudar nesta anlise discursiva, recorro tambm aos estudos de Foucault (2005b, p.52), tomando a UEB Joo do Vale como um espao de formao discursiva13 permeado por relaes, as quais, caracterizam no a lngua que o discurso utiliza, no as circunstncias em que ele se desenvolve, mas o prprio discurso enquanto prtica, em que os sujeitos mobilizam constantemente um conjunto de regras de acordo com as posies em que se encontram Desse modo, enquanto organizao e instituio, essa escola constitui-se objeto de anlise sociolgica, na medida em que constituda por diferentes sujeitosPara a utilizao desse conceito, recorro aos estudos de Michel Foucault em A Arqueologia do Saber, explicando-o como feixe de relaes que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prtica discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciao, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratgia. Definir em sua individualizao singular um sistema de formao , assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prtica13

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ou grupos sociais os quais estabelecem entre si relaes de trabalho e de poder, desempenhando, alm de funes tcnicas (domnio do saber fazer na transmisso de conhecimentos), papel social, poltico e econmico. Portanto, neste captulo contextualizarei a UEB Joo do Vale no seu tempo e espao; discutiremos os paradigmas essencialistas e scio-construcionistas de gnero e raa e estudos de autores (as) preocupados (as) com o tratamento destas questes no cotidiano escolar, destacando a atuao da gesto escolar e coordenao pedaggica na formao discursiva deste espao.

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2.1 Caracterizando o espao escolar a UEB Joo do Vale

Um mesmo passado histrico, que inclui ter sofrido, desfrutado e esperado conjuntamente, e um projeto comum para o futuro, reforam os elos entre os membros de uma dada comunidade. Como formas simblicas, os fenmenos culturais so significativos para aqueles que deles participam, e seu significado algo que apenas os includos conhecem e valorizam. (Guibernau, 1997, p. 86)

A compreenso das formas de pensar e agir dos sujeitos numa dada realidade no acontece de imediato apenas a partir do contato. necessrio transformar o contato em convivncia para que os cdigos lingsticos do lugar sejam compreendidos. Foi construindo essa convivncia como uma via de mo dupla ou, como nos fala Marcel Mauss (1974), um sistema de prestaes totais, traduzindo o princpio de dar, receber e retribuir que consegui mergulhar na realidade da UEB Joo do Vale". Tudo isso foi se constituindo com o meu envolvimento nas atividades pedaggicas da escola, j que era preciso conhecer e sentir de perto o que aqueles sujeitos valorizavam em suas prticas sociais escolares, para ir alm da descrio estrutural do espao da UEB Joo do Vale, tentando contextualizar o processo de criao deste espao. Assim, foi possvel perceber algumas questes que inquietam o corpo docente desta escola. Dentre elas, destaco aquelas que foram tomadas continuamente como objeto de discusso pelas profissionais da educao, durante o ano letivo de 2007. So elas: Primeiramente, os processos de aprender ler e escrever, eixo central que, inclusive, responde s exigncias do Programa So Lus Te Quero Lendo e Escrevendo da Secretaria Municipal de Educao SEMED, cuja proposta pretende re-significar, legitimar e valorizar as equipes de trabalho sob a configurao de equipes multidisciplinares, traduzidas em quatro eixos de atuao: formao, gesto, rede social educativa e avaliao.

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A indisciplina dos (as) alunos (as), a qual constitui outra problemtica bastante discutida nos encontros pedaggicos porque considerada como um dos entraves no processo ensino-aprendizagem. Outra questo que tem merecido ateno da equipe pedaggica o tratamento das relaes raciais, por entender que todo o trabalho pedaggico da UEB Joo do Vale, precisa partir da histria do processo de constituio da comunidade, onde esta escola encontra-se inserida. Trata-se de uma escola que possui sete salas de aula; uma biblioteca, onde funciona desde o ano de 2006, uma turma de I etapa, atendendo 35 crianas de 6 anos de idade; diretoria; secretaria; cozinha pequena, depsito; ptio coberto; banheiros pouco asseados e uma rea livre que aguarda a ampliao da estrutura fsica da escola, mas que utilizada para recreao, sobretudo, atividades esportivas durante as aulas de educao fsica. Durante o recreio os alunos brincam e agridem-se constantemente. Queixam-se sempre na sala da diretoria e para minimizar o problema, coordenadora e apoio pedaggico intervm atravs do dilogo, enfatizando a necessidade do respeito, solidariedade e amor ao prximo. Quando faltam professores (as), so estas profissionais que assumem as salas de aula at s 10:00h (dez horas), momento em que os (as) alunos (as) lancham e so dispensados das atividades escolares, podendo retornar s suas casas. A organizao e o funcionamento dos nveis e modalidades de ensino desta escola compreendem, respectivamente, o ensino fundamental distribudo em ciclos e srie, conforme determina a proposta de ampliao do ensino fundamental para nove anos e a educao de jovens e adultos, conforme distribudo no quadro a seguir:

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Quadro 1 Distribuio de alunos (as) por nvel, ciclo, srie e turmas (2007)

ENSINO FUNDAMENTAL ANO 1 2 CICLO DE ALFABETIZAO I ETAPA (6 anos) II ETAPA (7 anos) TURNO Mat Mat TURMAS nica A B 3 ANO 4 III ETAPA (8 anos) SERIADO 3 srie (9 anos) Mat TURNO Mat Mat Vesp 6 7 8 9 5 srie (11 anos) 6 srie (12 anos) 7 srie (13 anos) 8 srie (14 anos) Vesp Vesp Vesp Vesp A B TURMAS A B A A A B nica A B nica ALUNOS 35 31 31 37 38 ALUNOS 35 36 32 33 32 36 34 22 26 19 Total EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS ETAPAS SRIES 1 fase 1 e 2 srie 2 fase 3 e 4 srie 3 fase 5 e 6 srie 4 fase 7 e 8 srie TURNO Noturno Noturno Noturno Noturno TURMAS nica nica nica nica ALUNOS 19 25 33 28 Total TOTAL 19 25 33 28 105 19 477 34 48 68 TOTAL 71 75 TOTAL 35 62

5

4 srie (10 anos)

65

I SEGMENTO

II SEGMENTO

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O corpo docente identificado por meio de pseudnimo, que compe esta escola no turno matutino apresenta o seguinte perfil de formao acadmica e tempo de servio na instituio:

Quadro 2 Distribuio do perfil de formao acadmica dos profissionais de educao da UEB Joo do Vale (2007)

N

NOME

FORMAO ESCOLAR Pedagogia Licenciatura em Matemtica Licenciatura em Geografia Pedagogia Pedagogia Pedagogia Magistrio Mestrado em Educao Pedagogia Pedagogia Ensino Mdio

TEMPO DE FUNO ATUAO NA ESCOLA Professora Professora Apoio Pedaggico Professora Professora Gestora Professor Professora Professora Especialista15 Especialista Professora Administrativa 2 anos 4 anos

1 Adelina Charuteira 2 Aqualtune

3 Dandara 4 Francisca 5 Medecha Ferreira 6 Lusa Mahin 7 Luiz Gama 8 Maria Firmina dos Reis 9 Mariana 10 Mestre Bimba14 11 Mariana Crioula 12 Teresa de Quarit 13 Zeferina

7 anos 5 anos 1 ano 7 anos 1ano 3 anos 1 ano 3 anos 1 ano 5 anos 7 anos

Este professor j saiu da escola, mas constitui informante necessrio pesquisa pelo trabalho que desenvolveu junto a esta instituio durante o perodo de 2002 a 2005. 15 Como so atualmente chamados os profissionais da educao que exercem a funes da Superviso Educacional na Secretaria Municipal de Educao SEMED.

14

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Esse tipo de sistema escolar sob a responsabilidade do Estado surge nos tempos modernos, sobretudo, a partir do sculo XVIII, fruto de um processo de governamentalidade que conduz, segundo Foucault (2006, p. 292), ao

desenvolvimento de uma srie de aparelhos especficos de governo e de um conjunto de saberes, dentre eles, destaco neste estudo a intituio escolar e o discurso cientfico da pedagogia que teoriza sobre o trabalho na escola e no sistema educacional. Uma organizao social definida em torno do processo de institucionalizao que permite ao estado atuar como regulador da sociedade, tendo em vista o seu papel de produtor e reprodutor da cultura16, tentando assegurar a homogeneizao da populao. Essa indicao pode ser mais bem explicitada

atravs de Guibernau (1997, p. 56):O estado nacional um fenmeno moderno, caracterizado pela formao de um tipo de estado que possui o monoplio do que afirma ser o uso legtimo da fora dentro de um territrio demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo por meio da homogeneizao, criando uma cultura, smbolos e valores comuns, revivendo tradies e mitos de origem ou, s vezes inventando-os.

Com essa discusso no pretendo aprofundar anlises sobre estado, mas apontar para a necessidade de uma breve sociologia histrica sobre o sistema educativo, visando demarcar as razes de sua existncia, tendo em vista a instaurao de um projeto social que traduz os desejos do grupo social que detm o controle dos aparelhos especficos da administrao do Estado. At o antigo regime, a mquina burocrtica se organizava em torno da figura do rei para o crescimento de um estado absoluto e centralizado. Com a Revoluo Francesa a burguesia emergente do mundo da indstria e do comrcio assume um papel de grupo social triunfante e dominante, lanando as bases de um sistema nacional de educao e reivindicando para si o controle dos aparelhos do estado que estavam sob a gide da nobreza e do clero. Esta escola moderna funciona como instrumento para colaborar na tarefa de proporcionar a acumulao de capital, a legitimao de determinados grupos sociais, bem como a produo e reproduo de um conjunto de idias que permitem perpetuar o capital simblico do grupo dominante.O conceito de cultura a que estou me referindo aquele defendido por Clifford Geertz em A Interpretao da Cultura num sentido essencialmente semitico, como sendo teias de significados tecidas pelo prprio homem, nas quais encontra-se amarrado [1989, p.15]. padro de significados transmitidos historicamente, incorporados em smbolos, um sistema de concepes, herdadas expressas em formas simblicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relao vida [ibid., p.123]16

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Por outro lado, a massa da populao que, segundo Foucault (2006) define um estado de governo, tambm reivindica usufruir o modelo de formao criado para homogeneizao da cultura, smbolos e valores, buscando afirmar seus prprios valores e crenas. Nesse sentido, vejamos, pois, na seo seguinte como e porque os sujeitos reivindicam a existncia de uma escola pblica na comunidade Argola e Tambor e qual o discurso que essa escola busca legitimar.

2.2 O lugar da UEB Joo do Vale: construo cultural do espao17

A espacialidade e sua relao com os outros, que implicam diferenas e at conflitos, representam outro aspecto expressivo da identidade. Esse ltimo trao relacional significa, em especial, que o espao, quaisquer que sejam as formas por ele tomadas e a ao do outro, ao mesmo tempo fator de disperso e de alterao. (dAdesky, 2001, p.120)

A UEB Joo do Vale surge de um processo de reivindicao, a partir do momento em que um grupo de pessoas inicia a ocupao de uma grande extenso de terra na rea Itaqui-bacanga. Os depoimentos das entrevistadas revelam que os primeiros ocupantes da rea j conhecida Argola e Tambor encontraram em 1996, poca da ocupao, vestgios arqueolgicos como, por exemplo, runas de um poo muito antigo; construo de fornalha; cachimbo; punhais; ferramentas de priso; argolas e correntes de ferro. Segundo elas, os artefatos arqueolgicos encontrados sinalizaram para a existncia de um quilombo nesta rea, fato que os levam a autodenominarem-se como comunidade negra ou comunidade remanescente de quilombo.Michel de Certeau (1994, p.201 e 202) faz a distino entre lugar e espao. Para ele um lugar a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relaes de coexistncia. [...] os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar prprio e distinto que define. Um lugar portanto uma configurao instantnea de posies. Implica uma indicao de estabilidade. [...] o espao um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo transformada em espao pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura o espao produzido pela prtica do lugar constitudo por um sistema de signos um escrito.17

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A obra: Projeto Vida de Negro (2002), sob a organizao de Alfredo Wagner Berno de Almeida, realizado no mbito da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos SMDH e do Centro de Cultura Negra do Maranho CCN-MA, mostra que o conceito Comunidades Negras usado com freqncia pela militncia do movimento negro para se referir quelas situaes sociais que no Maranho so designadas como terras de preto, sendo que o significado comunidade no corresponde necessariamente ao de um lugarejo ou povoado. Aqui, o termo comunidade, uma categorizao externa inserida por meio de organizaes de festejos prprias da Igreja Catlica, traduzindo uma noo de pertencimento a esta instituio religiosa, sendo insuficiente como conceito que possa abranger todo o povoado. Enquanto que o termo Comunidade Negra uma classificao externa, a noo terras de preto uma categoria nativa, sendo que so os prprios agentes sociais que definem suas caractersticas, por isso,possui uma complexidade consideravelmente maior e de utilizao mais ampla, com fundamentos nos fatos da vida cotidiana de centenas de povoados, que, atravs de um elemento tnico, definem uma territorialidade especfica e uma modalidade intrnseca de relao com os recursos hdricos, florestais e do solo. No se restringe a um sentido religioso ou a uma famlia extensa. (PROJETO VIDA DE NEGRO, 2002, p. 44)

bastante instigante que os primeiros moradores de Argola e Tambor tentem resgatar um passado histrico, a partir de artefatos culturais, construindo a idia de um espao remanescente de quilombo e no a possibilidade de existncia de fazendas, engenhos e senzalas. Mas, o que define ou caracteriza um quilombo? Esses materiais simblicos podem ser considerados elementos fundamentais para se classificar uma localidade como quilombo? No caso da comunidade Argola e Tambor, a classificao como comunidade remanescente de quilombo continua viva, ainda que, a ao humana tenha modificado o espao geogrfico dessas construes; outros sujeitos chegaram comunidade e no aceitam essa identificao e, alm disso, atualmente no se tem mais notcia dos materiais encontrados. Sabe-se apenas que em 2003, o

movimento de moradia urbana entrou em contato com o Centro de Cincias Humanas CCH/UFMA para catalogar os achados e providenciar o tombamento do local.

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Para ilustrar de maneira mais precisa os resqucios desses escombros, visitei o local destas runas guiada por uma das informantes do lugar, que luta pela preservao dessa memria e coletei a imagem fotogrfica que segue:

Fotos 1 e 2 escombros de uma fornalha (19 mai 2007).

FOTO 1

FOTO 2

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A presena desses materiais simblicos constituem uma forma de reafirmar uma identidade tnica, reestruturar a comunidade negra, a partir da herana africana, utilizando o quilombo, tendo em vista, que este representa modelo de luta, resistncia e organizao coletiva contra s formas de opresso que ainda esto presentes no cotidiano dos (as) sujeitos negros (as). Na dissertao de Ilma Ftima de Jesus sobre Educao, gnero e etnia temos, no terceiro captulo intitulado: Comunidades Remanescente de Quilombo, uma arqueologia do conceito quilombo como ncleos de resistncia e luta escravatura; forma de reestruturao da comunidade negra; espao geogrfico que apresenta uma forte cultura negra, como lugar de memria e identidade tnico-racial. Nesse trabalho, De Jesus (2000, p. 150), ressalta que por ocasio do Encontro de Comunidades Remanescentes de Quilombos foram definidas como caractersticas gerais dessa comunidade, que esta precisa possuir:uma identidade tnica de preponderncia negra; a ancianidade de suas ocupaes fundadas em apossamento dos seus territrios; a deteno de uma base geogrfica comum ao grupo; organizao em unidade de trabalho familiar e coletivo; e vivncia em relativa harmonia com os recursos naturais existentes.

Nesta pesquisa, no foi possvel investigar a procedncia dessas terras antes da ocupao, pois no se trata de privilegiar uma reconstituio histrica sem fim em busca de precursores originais, traando a partir da as recorrncias e as tendncias constantes at alcanar as referidas comunidades. (ALMEIDA, 2006, p. 45). Ademais, o foco deste estudo est na construo dos significados de gnero e raa no contexto das AECs realizadas na UEB Joo do Vale. Uma discusso antropolgica acerca da identificao do espao como remanescente de quilombo bastante complexa e, neste estudo no pretendo realizar uma percia ou laudo antropolgico do lugar, mas tentar compreender, a construo desse espao e sua influncia na realizao das AECs na UEB Joo do Vale, a partir de uma classificao nativa que remonta ou recria um passado no presente. Por isso, este estudo no se detm numa reconstituio histrica do passado para garimpar vestgios que comprovem a fala dos sujeitos, mas, recorremos a uma abordagem antropolgica sobre a preservao das diferenas culturais, tendo em vista que, a realidade Argola e Tambor pode ser considerada

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como mais uma figura social que reinventa e ressemantiza o conceito de quilombo, ainda que este tenha um contedo histrico. Este posicionamento leva em conta o ponto de vista dos grupos sociais, que segundo ODWYER (2002), constitui uma perspectiva dos antroplogos reunidos em 1994 no Grupo de Trabalho da Associao Brasileira de Antropologia ABA sobre Terra de Quilombo, expressando em documento que o termo quilombo na contemporaneidade,no se refere a resduos ou resquscios arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica. Tambm no se trata de grupos isolados ou de uma populao estritamente homognea. Da mesma forma, nem sempre foram constitudos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram prticas cotidianas de resistncia na manuteno e reproduo de seus modos de vida caractersticos e na consolidao de um territrio prprio. [...] a ocupao da terra no feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum. A utilizao dessas reas obedece sazonalizao das atividades, sejam agrcolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupao dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laos de parentesco e vizinhana, assentados em relaes de solidariedade e reciprocidade.

A noo ressemantizada de quilombo constitui prticas de resistncia que resultam, tanto a partir de um critrio poltico-organizativo, que contesta a subordinao com a afirmao de uma identidade tnica, quanto de uma autonomia no processo produtivo e na esfera de consumo. (ALMEIDA, 2006, p.41) Assim, a noo de quilombo construda, a partir de realidades muito especficas e do que hoje os sujeitos a elas referidos designam como sendo quilombo. So situaes heterogneas com uma diversidade de formas de apropriao de terra, cada uma com suas territorialidades especficas, as quais convergem para a formao de um territrio tnico, expresso maior do processo de territorializao das comunidades remanescentes de quilombos, evidenciando sua extrema complexidade (ALMEIDA, 2006, p. 45). Nessa direo, as narrativas das entrevistadas tambm apontam para a ressignificao da noo de comunidades remanescentes de quilombo, seja em funo dos vestgios arqueolgicos encontrados, sua luta pela garantia da terra e afirmao de uma identidade prpria. A idia de que os sujeitos se apropriam dos elementos simblicos na crena de uma atividade de origem pode permitir a formao de uma comunidade poltica (WEBER, 2000), construir um espao tnico por meio do desenvolvimento do sentimento de pertinncia raa (WEBER, 2000) e, assim, afirmar, uma identidade tnica.

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Tudo isso impulsiona este estudo para a discusso da noo de quilombo na contemporaneidade, partindo do ponto de vista da prpria comunidade que se reconhece em tal conceito. Desse modo, a principal questo que se coloca para ns est na representao desta realidade pelos sujeitos, pois so estes que definem e redefinem o conceito de quilombo. Esse fenmeno, tambm pode ser explicado atravs dos estudos de Bourdieu (1989, p.112) quando afirma que os critrios objetivos da identidade regional ou tnicaso objecto de representaes mentais, quer dizer, de actos de percepo e de apreciao, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representaes objectais, em coisas (emblemas, bandeiras, insgnias, etc.) ou em actos, estratgias interessadas de manipulao simblica que tm em vista determinar a representao mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores.

Bourdieu (2007, p. 446) ainda nos ajuda a compreender este fenmeno ao discutir o funcionamento dos princpios de diviso, mostrando que estes ao produzirem conceitos, tambm produzem grupos, que por sua vez produzem tais conceitos. Trata-se de um movimento praxiolgico entre a realidade da representao e a representao da realidade em que os sujeitos classificantes e classificados normatizam e orientam as prticas sociais deles prprios e dos outros. A anlise da construo desse espao, mediante a problematizao da posio da UEB Joo do Vale na comunidade Argola e Tambor, se fez necessria, no decorrer deste trabalho, para entender como e por que algumas formaes discursivas so privilegiadas, ou seja, por que tais regularidades e enunciaes so acionadas nas prticas sociais escolares, sobretudo nas AECs, em detrimento de outras, como da questo de gnero. Tambm, a prpria perspectiva relacional desta pesquisa exige uma discusso contextualizada em que o processo de construo de significados estejam situados historicamente, culturalmente e institucionalmente. Esta anlise da construo cultural do espao Argola e Tambor no se restringe ao estudo da rea e de seus aspectos geogrficos, mas, principalmente discute como os sujeitos elaboram alguns significados raciais ao se envolverem neste espao, incluindo ainda, outros sujeitos, atravs da criao de uma instituio, no caso a escola, que legitima a construo desses significados. Assim, para construir essa comunidade remanescente de quilombo em Argola e Tambor era preciso ter uma escola no local e para que os (as) primeiros

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(as) ocupantes no desistissem desse lugar, a lder do movimento de ocupao relatou que:A escola Joo do Vale surgiu a partir da necessidade das famlias que j habitavam este local. Aps trs dias de ocupao cheguei neste local e prometi que se as pessoas se dedicassem a morar, ajudar, plantar, cultivar alguma coisa [...] aqui havia muita dificuldade porque as pessoas tinham filhos e onde eles iriam estudar? Assim, garanti que se eles ocupassem mesmo, trouxessem suas famlias para este lugar, eu daria jeito de consegui uma escola, pois esta rea no era habitada, sendo Argola e Tambor a primeira ocupao nesta regio. Ento decidi que a escola funcionaria debaixo das mangueiras, um ranchinho parecido mesmo com uma estrebaria. Os alunos estudavam sentados nos troncos de madeira das rvores, das palmeiras que na poca eram abundantes. [...] Da, convidei os rgos competentes: a prefeitura municipal de So Lus, o Corpo de Bombeiros, a reportagem... chamei as crianas, [...] e disse o seguinte: ns estamos aqui doutor para pedir escola para essas crianas por conta que eu prometi, mas eu prometo e tenho que pedir aos rgos competentes. (Entrevista no dia 8 de junho de 2007b)

Como podemos notar, a ausncia de escola neste espao foi a principal preocupao dessa comunidade para se estabelecer em Argola e Tambor, sendo atribudo alguns esquemas de significaes que a traduzia como necessria para garantir a existncia de um lugar praticado (CERTEAU, 1994), isto , transformado pelos sujeitos de acordo com as suas experincias, concepes e crenas. Com a exigncia da escola, os primeiros moradores de Argola e Tambor comearam a desenvolver aes de sujeitos histricos, produzindo um espao mediante a organizao dos jogos das relaes mutveis que uns mantm com os outros, combinando distintas operaes para construrem o espao remanescente de quilombo (CERTEAU, 1994). Assim sendo, o grupo de ocupantes s se empenhou em habitar o local aps o incentivo da lder do movimento em organizar um espao educativo e chamar as autoridades competentes para exigir uma escola pblica. Essa escola foi denominada Ranchinho da Alegria, a qual crescia a cada dia, chegando a reunir cerca de 35 (trinta e cinco) alunos (as) debaixo de um conjunto de mangueiras, onde as crianas disputavam, como assento, troncos de rvores, fixando-se atentamente ao quadro de giz improvisado com tbuas pregadas no caule de uma das mangueiras. Vejamos nas fotos a seguir, o local onde funcionava esta escola.

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Foto 3 e 4 Local onde foi construdo o Ranchinho da Alegria em 1997 (19 mai 2007)

Foto 3

Foto 4

Assim surgia a escola que se desdobraria na escola pblica municipal UEB Joo do Vale. Ela se impunha inicialmente para estes sujeitos como necessria conquista de posies sociais privilegiadas. Mas, como a escola torna-

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se algo imprescindvel na vida dos sujeitos? possvel compreender a criao desta escola, a partir da afirmao de Petitat (1994, p. 200), ao analisar que uma instituio especializada em educao torna-se necessria no momento em quea sociedade atinge um nvel de diviso do trabalho que implica a utilizao da escrita, a existncia do Estado e o surgimento de grandes grupos sociais, mais extensos do que os cls familiares [...]. a escola se impe s formas bsicas de educao (da famlia, do cl, da comunidade, etc.) que so fragmentadas e esparsas, contribuindo assim para produzir e reproduzir uma homogeneidade cultural relacionada com a diviso do trabalho (homogeneidade das crenas religiosas, das regras jurdico-administrativas, definio cultural escrita das elites, e depois de outras classes sociais, homogeneidade da cultura cientfica, etc.) e parcialmente determinada pelos conflitos sociais e pelas relaes de dominao.

Como vimos a comunidade Argola e Tambor iniciava sua organizao social, priorizando, dentre as diversas instituies sociais, a construo de uma escola, tentando assegurar-lhes xito o que, para Bourdieu (2004a, p. 331) funo do capital cultural e da propenso a investir no mercado escolar. Este esforo em investir num empreendimento educativo, em parte, pode nos levar a pensar que os sujeitos desejam recorrem participao em uma cultura comum, decidindo apropriarem-se de certos estilos de vida, j que, a aprendizagem escolar possibilita a interiorizao de um conjunto de esquemas que organizam o pensamento de determinada poca, capaz de consagr-los e constitu-los pela fora do habitus18. (BOURDIEU, 2004b) Sobre essa tentativa de homogeneizao da populao do estado, Guibernau (1997) tambm aponta a escola como instrumento do estado para reproduo e modificao da cultura. Para ela, o poder do estado impe a legitimao de uma lngua verncula e cultura, encontrando num organizado sistema educacional a chave para aniquilar paulatinamente culturas, lnguas e dialetos minoritrios. paradoxal esta idia na realidade estudada. A meu ver, a comunidade Argola e Tambor subverte a possibilidade de participar de uma cultura comum, sendo que a trajetria de constituio da escola marcada pela afirmao da cultura do lugar. Em Argola e Tambor, a escola tomada como meio para resgatar prticas culturais de grupos minoritrios. Considero que h certa inverso no tocante18

Na concepo de BOURDIEU (1996a, p.42) significa sistema adquirido de preferncias de princpios de viso e diviso, [...] de estruturas cognitivas duradouras [...] e de esquemas de ao que orientam a percepo da situao e a resposta adequada.

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aos contedos culturais que devem ser corporificados, j que, no permanece a idia de incutir uma cultura comum, uma srie de smbolos e valores e, perseguir um programa de homogeneizao entre os cidados (GUIBERNAU, 1997, p. 70), mas, o trabalho pedaggico vem colaborando na construo do sentimento de pertena e na formao de um grupo tnico. Duas das mulheres negras que atuam hoje na direo da escola reconhecem ser este o principal papel da escola, j que seu alunado e seus funcionrios em sua maioria so negros. Sobre este aspecto, a professora Dandara menciona que:A escola abraou esta idia, eu creio que porque a maioria dos nossos alunos, dos pais dos nossos alunos, a nossa comunidade ser praticamente negro. Eu acredito que houve uma aceitao [do trabalho pedaggico realizado com o dispositivo das AECs acerca da questo racial] por parte da comunidade escolar, professores e funcionrios em geral.

A UEB Joo do Vale faz parte deste contexto sociocultural e sua criao no fruto de iniciativas governamentais, mas da exigncia e mobilizao dos primeiros moradores do povoado Argola e Tambor, recebendo essa nova denominao pela equipe da Secretaria Municipal de Educao SEMED em homenagem ao cantor e compositor maranhense, Joo Batista Vale, por ocasio de sua morte em 6 de dezembro de 1996. Mas, o nome de Joo do Vale tambm enuncia alguns significados que o aproxima da comunidade Argola e Tambor. Contudo, a organizao da escola sob a gide da Prefeitura de So Lus, embora, ainda contemple em suas atividades a educao das relaes raciais, a qual vem ampliando tais discusses, tambm, em virtude, da implementao da Poltica Nacional de Promoo da Igualdade Racial elaborada pela Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial SEPPIR, respondendo a uma antiga formulao do movimento negro, retirou deste espao, com a realizao do Concurso Pblico Edital 001/2001, muitos dos primeiros profissionais que iniciaram a luta por uma escola publica em Argola e Tambor. A partir de ento, Joo do Vale passa a ser considerado representante das formaes identitrias tnico-raciais desta comunidade, sendo a escola o espao utilizado para o resgate e a valorizao dessas caractersticas. A figura de Joo do Vale considerada smbolo que pode manifestar positivamente maneiras de ser da cultura negra. Nesse sentido, a escola desenvolveu o projeto Conhecendo

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Joo do Vale e identificou todas as salas de aula, biblioteca e secretaria com o ttulo das composies deste cantor e compositor maranhense. A escola foi inaugurada em 30 de setembro de 1997 pelo ex-prefeito Jackson Kleper Lago, tendo sido formalizada a sua criao pelo Decreto Municipal n 19.520 de 24 de novembro de 1999, sendo reconhecida como estabelecimento de ensino fundamental, podendo funcionar a modalidade de Educao de Jovens e Adultos EJA. Embora a UEB Joo do Vale tenha sido criada em virtude da ausncia de escolas na localidade, da distncia e dificuldades para deslocamento at outras unidades de ensino, bem como para atender a demanda de crianas em idade escolar, essa problemtica ainda persiste na regio, uma vez que, as crianas na faixa etria entre 3 e 5 anos de idade ainda no so atendidas, permanecendo ainda, no Ranchinho da Alegria, que atualmente, funciona na residncia da lder do movimento de ocupao. Segundo ela,Uma parte das crianas dessa comunidade eu que tomo conto, quase 72 crianas, aqui cheio, [...] so crianas humildes e eu venho lutando, brigando com o municpio pra colocar sala de aula pra essas crianas no Joo do Vale [...] elas no tem cadernos, no tem lpis, eu dou um jeito daqui, dou dali, vou pedindo e as mes trazem pra c porque no tem outra escola, isso um problema muito srio que existe aqui [...] Vou fazer um documento no final do ano e entregar essas crianas pro municpio [...] os pais so humildes, alguns do uma gratificao para a escola, o que a professora recebe, depende da gratificao dos pais, os recursos so pela minha conta e de doaes.

O perfil scio-econmico das famlias, cujos filhos (as) estudam na UEB Joo do Vale, caracteriza-se, sobretudo, pela ocupao em atividades autnomas e informais, tais como: empregadas domsticas, lavadeiras, pedreiros, serventes e agricultores, fazendo parte, tambm, deste perfil, desempregados e beneficiados pelo Programa Nacional de Renda Mnima vinculada educao - "Bolsa Escola"19. Atualmente, esta escola atende principalmente s comunidades:

Residencial Primavera, So Joo da Boa Vista, So Raimundo, Gapara e Argola e Tambor, tambm denominada por alguns como Cidade Nova, em funo da resistncia de um grupo de pessoas que no aceitam Argola e Tambor, como ser explicado posteriormente, com a anlise dos endereos registrados nas fichas de

Programa criado nos termos da Lei n 10.219, de 11 de abril de 2001 constitui o instrumento de participao financeira da Unio em programas municipais de garantia de renda mnima associados a aes socioeducativas, sem prejuzo da diversidade dos programas municipais.

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o

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matrcula, tal como demonstro no quadro 3 e com o depoimento de uma funcionria da escola e moradora de Argola e Tambor desde a sua ocupao. Esse conflito que se estabelece com o nome do lugar foi possvel tambm ser observado logo no incio de minha chegada escola, quando fui ajudar no preenchimento das fichas de cadastro do Programa Bolsa Escola, pois o momento em que os sujeitos deviam falar seus endereos, no era fcil e, esse fato que parecia normal para aquelas pessoas, deixava-me bastante constrangida em perguntar: qual o seu endereo? claro que, nesta ocasio, eu no conseguia compreender tal situao e achava que existiam dois lugares: Argola e Tambor e Cidade Nova, com rivalidade entre eles. Alm dos relatos de algumas das profissionais da educao, isso foi possvel ser evidenciado atravs da definio dos endereos nas fichas de matrculas dos (as) alunos (as), nas quais uma parcela da populao daquela comunidade nega pertencer a Argola e Tambor.

Quadro 3 Distribuio dos (as) alunos (as) da UEB Joo do Vale do turno matutino que a famlia se auto-reconhece como sendo de Argola e Tambor e Cidade Nova Ficha de Matrcula (2007)

ANO 1 2 3 ANO 4 5

CICLO DE ALFABETIZAO I ETAPA (6 anos) II ETAPA (7 anos) III ETAPA (8 anos) SERIADO 3 srie (9 anos) 4 srie (10 anos)

ARGOLA E TAMBOR 6 8 18 ARGOLA E TAMBOR 22 9 63

CIDADE NOVA 20 27 12 CIDADE NOVA 18 13 90

Esse quadro serve para mostrar o nvel de aceitao da comunidade de Argola e Tambor em relao construo de um espao impregnado de marcadores raciais. Em quase todas as sries do turno matutino podemos observar significativa

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adeso ao termo Cidade Nova, exceto a III etapa e a 3 srie, ainda assim, pouca a diferena numrica, e mais, uma funcionria da escola revela que muitos endereos foram registrados como Argola e Tambor, mesmo que o responsvel do aluno se autodenominasse morador de Cidade Nova, tendo em vista ser este o primeiro nome do local. A origem desse lugar, reconhecido entre os moradores como sendo remanescente de quilombo, divide a populao, pois uma parte busca resgatar a histria e cultura do povo africano, sentindo-se, por meio deste lugar, uma certa proximidade aos seus ancestrais, por outro lado, h aqueles que consideram o retorno a afirmao da inferioridade. A no aceitao do nome da localidade Argola e Tambor constitui uma forma de repdio desse espao, considerando-o significar um perodo marcado pela opresso do povo negro, que propicia marcadores negativos, e mais ainda, uma forma de negao das condies tnico-raciais. Mas a escola toma para si a responsabilidade de intervir neste processo para valorizar a cultura negra, colaborando na construo de um espao remanescente de quilombo, como desejam aqueles que ainda se identificam com o lugar, contemplando em seu Projeto Poltico Pedaggico a necessidade de privilegiar atividades em funo de uma realidade social especfica que definida como comunidade negra, apresentando as seguintes caractersticas:Ascendncia quilombola, reafirmando a apresentao como Mocambo; Divergncia quanto identificao da comunidade Aumento populacional (egressos de bairros urbanos) Crescimento de religies evanglicas e seitas religiosas Afirmativa afrodescendente por intermdio dos cultos afros (PROJETO POLTICO PEDAGGICO)

Tambm nessa caracterizao fica evidente que se instaura um conflito racial, em virtude do desejo dos primeiros moradores de Argola e Tambor em construir um espao muito mais caracterizado como sendo terras de preto que um termo nativo com fator tnico, que combina a designao do territrio com a prpria identidade dos grupos (PROJETO VIDA DE NEGRO, 2002, p. 44). Sobre a construo do espao, dAdesky (2001, p. 54) aponta que o sentimento de pertencimento tnico pode no proceder de uma territorialidade fsica bem definida e delimitada, mas que um grupo pode definir-se a partir de[...] um elo material ou por representaes coletivas que tomam forma em um espao que no somente um espao fsico [...], mas tambm por sua construo, sua organizao, sua disposio e suas inscries. Portanto, o

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espao no somente um lugar geogrfico. tambm, e sobretudo, uma rede relacional com representaes coletivas que permitem aos membros de uma coletividade dar s caractersticas de seu espao significados reconhecidos de maneira geral.

Atravs de Hegel e Charles Taylor, Jacques dAdesky analisa a questo tnica no Brasil, destacando a necessidade que o homem tem de ser reconhecido, mediante o valor que os outros seres humanos lhe atribuem. Ora, por caminhos diferentes, o que a comunidade Argola e Tambor tambm deseja esse reconhecimento. Nas palavras de dAdesky (2001, p.23):perceber a importncia desse desejo de reconhecimento permite explicar que o homem procura o reconhecimento de sua prpria dignidade ou daquela de seu grupo cultural ou tnico, no qual ele investiu sua dignidade. Assim, o desejo de reconhecimento pode fornecer uma interpretao fundamental da luta do Movimento Negro no Brasil, o qual procura denunciar que, apesar da instaurao de um governo democrtico, a sociedade ainda no foi capaz de dar uma soluo s desigualdades econmicas e de resolver a questo da desigualdade do reconhecimento de status de que so vitimas negros e ndios.

Nesta busca pelo reconhecimento de status e dignidade, a UEB Joo do Vale posiciona-se no sentido de apoiar o grupo que reivindica afirmao do contedo positivo de sua cultura, mantendo uma relao muito prxima com a comunidade, fazendo parcerias com Associaes; Organizaes No-

governamentais ONGs; Universidades e desenvolvendo projetos educativos, tendo em vista as caractersticas especficas desse povoado. Por exemplo: Projeto Me Andreza Projeto Conhecendo Joo do Vale I Tributo a Joo do Vale Semana da Conscincia Negra Desfile Beleza Negra Dia da Conscincia Negra II Feira de Cincias Pluralidade Cultural: desenvolvendo (cons)cincias Projeto A cor da cultura Festa do Dia das Mes Projeto Conhecendo Argola e Tambor (2007 em andamento) Festas da Comunidade como, por exemplo, a Festa da Macaxeira, do Arroz e do Caju. Em relao Festa da Macaxeira, esta acontece tradicionalmente no ms de junho. Sobre essa festa, uma funcionria da escola e moradora de Argola e Tambor, relatou com saudosismo:

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Durante mais ou menos 6 anos, agente fazia dramatizaes na Festa da Macaxeira, retratando a escravido. Agente mostrava a princesa Isabel, uma mulher branca libertando o negro acorrentado. Hoje est ficando cada vez mais difcil organizar a Festa.

Com toda essa discusso acerca do processo de constiruio da UEB Joo do Vale possvel entender a relao que se estabelece entre esta escola, por meios de suas atividades pedaggicas, e o processo de formao de um grupo tnico, dada a autoridade cientfica que esta exerce na afirmao dos valores e crenas da comunidade Argola e Tambor. Afinal, qual o discurso pedaggico produzido ou reproduzido neste espao? Na UEB Joo do Vale as Atividades Escolares Coletivas AECs so priorizadas, buscando a valorizao da populao negra de Argola e Tambor, na tentativa de resgatar a histria do povo negro e dar visibilidade positiva a sua cultura. Ser possvel que, nessa experincia, significados de gnero e raa j construdos e internalizados podem ser desestabilizados? Ou continuam sendo naturalizados, reificando desigualdades e discriminaes marcadas por gnero e raa? Para problematizarmos o discurso racial e de gnero na realidade da UEB Joo do Vale discutiremos a seguir paradigmas essencialistas e

scioconstrucionistas de anlise das relaes de gnero e raa e alguns estudos de autores (as) preocupados (as) com o tratamento destas questes no cotidiano escolar, focalizando a atuao da gesto escolar e coordenao pedaggica nessas prticas sociais escolares.

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2.3 Dialogando com os estudos de raa e gnero

Seria interessante tentar ver como se d, atravs da histria, a constituio de um sujeito que no dado definitivamente, que no aquilo a partir do que a verdade se d na histria, mas um sujeito que se constitui no interior mesmo da histria, e que a cada instante fundado e refundado pela histria. na direo desta crtica radial do sujeito humano pela histria que devemos nos dirigir. (Foucault, 1996, p. 10)

A partir do final do sculo XIX at meados do sculo XX, a noo de raa tornou-se central no debate nacional brasileiro. Estudos foram produzido luz das cincias naturais, numa interpretao biolgica e eugnica, classificando-se os grupos sociais em raas superiores e inferiores. Esse construto, elaborado por um conjunto de idias pautadas na naturalizao da ordem social definiu o que ser negro numa perspectiva masculinista e deu origem a preconceitos e

discriminaes, legitimando as relaes de poder e as desigualdades vigentes. Algumas formulaes tericas20 sobre a questo mestiagem, seja, dentro desse de