Tese Mestrado Carlos+Filipe+Alves[1]

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  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 1

    ndice

    1. Identificao e Justificao do Tema ................................................................................. 3

    1.1 Contexto Histrico .......................................................................................................... 5

    2. A construo historiogrfica da Catedral ............................................................................. 15

    2.1 Os Dilogos Moraes e Polticos de Manuel Botelho Pereira .......................................... 15

    2.2 A Historiografia dos Finais do Sculo XIX. De Francisco Manuel Correia a Maximiano

    Arago ................................................................................................................................ 21

    2.2.1. O Manuscrito de Francisco Manuel Correia ........................................................... 21

    2.2.2. Maximiano Arago ................................................................................................ 23

    2.3 Amorim Giro e a nova historiografia do Sculo XX ..................................................... 27

    2.4 A Imagem da S Vista por Almeida Moreira.................................................................. 30

    2.5. A Revista Beira Alta e o Novo Ciclo Historiogrfico .................................................... 32

    2.6. ltimos avanos historiogrficos .................................................................................. 38

    3. A DGEMN no Processo de (des)Construo da S de Viseu ................................................ 44

    3.1. As Reparaes do Sculo XIX e os Primeiros Registos da 3 Repartio da Direco-

    Geral das Belas-Artes .......................................................................................................... 44

    ...................................................................................... 47

    3.2. A Origem da DGEMN e a execuo dos primeiros trabalhos na Catedral ...................... 50

    3.3. A Instalao do Arquivo Distrital de Viseu na antiga Cadeia da Vila ............................ 56

    3.4. Adaptao do Arquivo Distrital a Residncia Paroquial ................................................ 59

    3.5. Um templo em transformao ....................................................................................... 60

    3.5.1. A Ausncia da catedral viseense na comemorao do Duplo Centenrio ................ 67

    3.6. A segunda fase das Obras de Conservao da S........................................................... 69

    3.6.1. A recuperao do claustro gtico e a transferncia do rgo da S .......................... 74

    3.6.2. As propostas da Junta de Provncia da Beira Alta para restauro da S ..................... 79

    3.6.3. Os trabalhos de restauro na capela-mor e a constituio da cripta ........................... 84

    3.7. A prossecuo dos trabalhos na Catedral ...................................................................... 85

    3.7.1. Reabilitao do Adro da S .................................................................................... 88

    3.7.2. A continuidade do bairro da S de Viseu ................................................................ 90

    3.7.3 A zona de proteco................................................................................................ 92

    3.8. A dcada de 60 e o abrandamento das Obras na Catedral .............................................. 93

    3.9. O fim do Estado Novo e o retrocesso na conservao da catedral .................................. 97

    4. Consideraes finais.......................................................................................................... 104

  • Carlos Filipe Pereira Alves 2

    Anexos ................................................................................................................................. 109

    Documento 1..................................................................................................................... 109

    Documento 2..................................................................................................................... 110

    Documento 3..................................................................................................................... 111

    Documento 4..................................................................................................................... 112

    Documento 5..................................................................................................................... 113

    Documento 6..................................................................................................................... 114

    Documento 7..................................................................................................................... 115

    Documento 8..................................................................................................................... 115

    Documento 9..................................................................................................................... 116

    Documento 10 ................................................................................................................... 118

    Documento 11 ................................................................................................................... 121

    Documento 12 ................................................................................................................... 122

    Documento 13 ................................................................................................................... 124

    Documento 14 ................................................................................................................... 125

    Documento 15 ................................................................................................................... 126

    Documento 16 ................................................................................................................... 129

    Documento 17 ................................................................................................................... 131

    Documento 18 ................................................................................................................... 132

    Documento 19 ................................................................................................................... 133

    Documento 20 ................................................................................................................... 134

    Documento 21 ................................................................................................................... 135

    Fontes ................................................................................................................................... 145

    Fontes documentais ........................................................................................................... 145

    Fontes iconogrficas ......................................................................................................... 145

    BIBLIOGRAFIA GERAL .................................................................................................... 146

    Agradecimentos .................................................................................................................... 150

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 3

    1. Identificao e Justificao do Tema

    O ingresso no segundo ciclo de estudos do curso de Histria da Arte, ao abrigo do

    programa de Bolonha, permitiu-nos comear a desenvolver um trabalho de investigao

    dedicado ao estudo da catedral de Santa Maria de Viseu.

    A dissertao agora apresentada com o Monumentos Nacionais e a

    cabo durante o ltimo ano de 2009, pois a limitao cronolgica imposta para a

    realizao e entrega do estudo, no permite um trabalho mais ambicioso, susceptvel de

    apurar a verdadeira origem e organizar uma monografia pormenorizada sobre to

    enigmtico edifcio, como seria a nossa inteno inicial. Portanto, na hora de decidir o

    tema a abordar nesta dissertao, e estimulado por um estudo editado pela revista

    Monumentos dedicado s intervenes da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos

    Nacionais, a escolha recaiu, dadas as limitaes anteriormente referidas, em

    compreender qual a aco da DGEMN sobre a S de Viseu que hoje conhecemos1.

    Para a escolha do tema contribuiu tambm a influncia de estudos j desenvolvidos

    na rea do restauro praticado pela DGEMN, nomeadamente a tese de doutoramento de

    Maria Joo Baptista Neto sobre a aco deste organismo de Estado, no que diz respeito

    sua interveno no patrimnio portugus, no perodo compreendido entre a sua

    criao at ao ano de 1960, e a tese de mestrado de Maria Leonor Botelho onde

    analisada a interveno na S do Porto no Sculo XX2. Sendo assim, a novidade do

    trabalho aqui apresentado reside na compreenso da aco da DGEMN na catedral de

    Viseu, semelhana do que se passou com outras catedrais, igrejas e castelos do pas

    durante a vigncia do Estado Novo.

    Neste sentido entendemos integrar a S de Viseu na aco restauradora da DGEMN

    entre 1921, data da primeira carta a alertar para a urgente interveno no edifcio, e

    2001, altura em que terminaram as ltimas reparaes na catedral. Nestes oitenta anos

    de obras registados na documentao guardada no fundo arquivstico da DGEMN,

    podemos tomar contacto com relatrios do arquitecto que nos permitem acompanhar o

    1 Cfr. FERNANDES, Maria; FIGUEIRINHAS, Laura; CARVALHO, Jos Maria Lobo de - Intervenes

    da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais, Monumentos, 13 (2000) 103-117. 2 Cfr. NETO, Maria Joo Baptista - Memria, Propaganda e Poder. O restauro dos Monumentos

    Nacionais (1929-1960). Porto: FAUP, 2001; BOTELHO, Maria Leonor - A S do Porto no sculo XX.

    Lisboa: Livros Horizonte, 2006.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 4

    decorrer das intervenes atravs de memrias descritivas, relatrios de contas e

    correspondncia expedida, onde noticiada e discutida a forma como se deve reger a

    interveno.

    No que concerne sua estrutura, esta dissertao contar com quatro captulos,

    subdivididos em diversas temticas.

    O primeiro ser destinado apresentao e identificao do tema em estudo. E

    dentro deste ponto surgir, ainda, um contexto histrico, de forma a permitir a

    compreenso do estado dos monumentos portugueses at criao da DGEMN, que

    posteriormente se responsabilizar por eles.

    O segundo captulo vai ao encontro da produo historiogrfica referente catedral,

    partindo da anlise das informaes transmitidas na obra seiscentista de Manuel Botelho

    Pereira e concluindo com as que, nos finais do sculo XIX, veiculam os escritos de

    Maximiano de Arago e Francisco Manuel Correia. Estes trs autores, foram os

    responsveis pelas primeiras teorias elaboradas acerca da origem e estabelecimento da

    , pois, criados e as primeiras dcadas

    do sculo XX viriam a conhecer, atravs do aparo de Amorim Giro e Almeida Moreira,

    novas revelaes sobre a cidade e a catedral, baseadas no s na interpretao dos

    escritos anteriores, mas tambm em investigaes recentes coincidentes com o incio da

    interveno da Administrao Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais (AGEMN).

    Em resultado disso, na dcada de quarenta surge a revista Beira Alta onde seriam dados

    estampa, um conjunto de artigos respeitantes histria da cidade. Neles encontramos

    tambm, notas e comentrios a propsito do decorrer das intervenes. Contudo, a

    anlise destes comentrios sero includos no neste captulo, mas naquele destinado s

    intervenes, onde podemos acompanhar mais de perto as reaces dos estudiosos e

    investigadores em relao ao trabalho organizado pelos Monumentos Nacionais que se

    impe confrontar com o estado das obras em curso. Para finalizar, analisaremos tambm

    as ltimas tendncias historiogrficas sobre a catedral e em que ponto se encontra a

    investigao actual.

    O terceiro ponto desta dissertao abrange a questo mais importante deste estudo: a

    interveno fsica da DGEMN na catedral. Procederemos ao estudo de cada passo dado

    no restauro do monumento, coincidindo com os preceitos ideolgicos impostos pelo

    Estado Novo e, tambm, o modo como as cartas e convenes internacionais vo influir

    na interveno do monumento. O objectivo deste captulo desvendar quais os

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 5

    intervenientes e quais as modificaes operadas no edifcio, tudo isto acompanhado por

    uma forte componente grfica (plantas e fotografias), registadas nos principais

    momentos da interveno.

    O ltimo ponto destinado, naturalmente, s consideraes finais, ser apresentada

    uma sinopse da passagem da DGEMN pela S de Viseu, tendo em vista a sua

    contribuio para a recuperao da pureza original do edifcio, tentando esclarecer de

    que modo essa interveno pode hoje em dia ser til para descortinar as origens da

    catedral e comear a traar enfim, um novo rumo historiogrfico.

    1.1 Contexto Histrico

    Para uma correcta compreenso do perodo histrico onde se inscreve este estudo,

    talvez seja necessrio recuar ao sculo XIX para analisarmos quais os organismos

    intervenientes na deciso de restauro monumental, como se desenvolveu em Portugal a

    poltica de proteco patrimonial, como foi gerida esta questo e quais as vicissitudes

    por que passou at criao da DGEMN.

    O incio do percurso de interiorizao por parte da sociedade portuguesa, da

    necessidade da preservao do patrimnio cultural, ocorreu durante o sculo XIX. Neste

    perodo o monumento adquiriu um valor histrico e documental, entendendo-se que a

    sua dimenso histrica o produto de um conjunto de factores sociais, culturais e

    polticos e no o simples acto de produo artstica3. A consciencializao da

    sociedade para esta problemtica sedimentou-se, porm, num fenmeno isolado. Quer

    isto dizer, que, na base desta sensibilizao no constavam movimentos de salvaguarda

    do patrimnio, nem fenmenos de massas, mas sim uma pequena clula oriunda do

    movimento romntico, gerada no ambiente da interveno pblica da intelectualidade

    ilustrada dos finais do sculo XIX4. O reconhecimento da necessidade de transmisso de

    um conjunto de valores patrimoniais, sobretudo monumentais, histricos e nacionais, s

    geraes futuras foi, no entanto, a razo para o levantamento de vozes a favor da defesa

    do p

    3 Cfr. TOM, Miguel - Patrimnio e Restauro em Portugal (1920-1995). Porto: FAUP, 2002, p.15. 4 Cfr. CUSTDIO, Jorge - Salvaguarda do Patrimnio: antecedentes histricos. De Alexandre

    Herculano Carta de Veneza (1837-1964), Catlogo da ex

    IPPAR, 1993, pp. 33-71.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 6

    estruturas familiares, econmicas e jurdicas de uma sociedade estvel, enraizada no

    espao e no tempo5. Portanto, os acontecimentos histricos de uma nao vo

    encontrar na arte a matriz para a constituio de uma conscincia de nacionalidade e de

    patriotismo, que deve ser endereada e educada para as geraes futuras, no sentido de

    preservar a memria histrica e consolidar o cdigo gentico da nao.

    A Revoluo Liberal e a Guerra Civil (1832-1834) trouxeram ventos de mudana.

    Com o desmantelamento da estrutura do Antigo Regime avizinharam-se novas

    consequncias culturais, proporcionadas pelas profundas alteraes sociais. A nova

    sociedade era o produto de fracturas institucionais e, mais do que isso, da necessidade

    de procurar disposies culturais capazes de corresponder aos novos interesses e desejos

    da comunidade. Dos diversos problemas emergentes na primeira metade de novecentos

    sobressaa a questo dos valores patrimoniais de valor histrico, artstico, literrio e

    cientfico que constituam a presena da sociedade do Antigo Regime, constituindo o

    ano de 1834 um factor determinante na marcao definitiva da ruptura com o passado.

    A lei da extino das ordens religiosas e a aquisio de bens culturais por parte de

    entidades privadas acelerou o processo, por um lado, de deteriorao desses bens,

    porque foram reutilizados para outros fins para a qual no foram concebidos, e, por

    outro lado, permitiu em determinados casos perder por completo o rasto a muitas das

    obras. A situao criada por este decreto originou, assim, um cenrio semelhante ao

    vandalismo ps-revolucionrio em Frana6.

    Deste contexto, emergiu a figura de Alexandre Herculano em defesa dos

    monumentos nacionais, tendo presente na sua conscincia a noo de que as

    convulses do aparelho social estavam a operar alteraes na herana histrica. Por

    conseguinte ele reconheceu importncia da noo de patriotismo para salvar o que de

    mais vlido ainda subsistia do antigo edifcio social acabado de ruir. Alexandre

    Herculano seria o lder do movimento em defesa do patrimnio que faltava at ento em

    Portugal, atravs do peridico , onde inciou uma rede de

    5 Cfr. CHOAY, Franoise - Alegoria do Patrimnio. Lisboa: Ed. 70, 2006, p. 11. 6 , pp.103-124. O que aconteceu em Portugal em certa medida o resultado de uma

    disposio da na

    econmico dos bens adquiridos pelo povo, rapidamente os categorizaram como uma herana, sucesso e

    patrimnio, porque estas antiguidades agora adquiridas, sob a pena de prejuzo financeiro era necessrio

    conservar, e com base neste pensamento nasce a conscincia de conservao. Os efeitos revolucionrios

    resultaram em puro vandalismo com igrejas incendiadas, esttuas derrubadas ou decapitadas e castelos

    saqueados. No entanto, ao contrrio do que se passou em Portugal o mpeto revolucionrio francs

    proporcionou a origem dos elementos necessrios para a constituio de uma poltica de conservao do

    patrimnio monumental francs.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 7

    correspondncias a nvel nacional, e ao mesmo tempo chegaram sua posse relatos e

    protestos sobre o que diariamente acontecia no pas, sobretudo em relao delapidao

    dos bens nacionais decorrente do processo de desamortizao7. Alexandre Herculano

    assumiu-se como defensor da herana cultural materializada no patrimnio,

    vislumbrando-o como uma fonte de criatividade cultural e um meio de reviso ptria,

    necessria para transmitir s geraes futuras. O prprio, em define-se

    para se

    esperar que mova os nimos dos seus concidados8. Este entendimento do significado

    histrico dos monumentos deve-se a uma slida formao histrica de Herculano,

    radicada nas principais correntes historiogrficas suas contemporneas.

    Por outro lado, a criao de uma conscincia de defesa patrimonial susceptvel de

    transmitir a mensagem de Herculano seria intil, caso o sistema de ensino

    particularmente no ramo da educao artstica, atravs da formao de tcnicos

    devidamente habilitados para a preservao e estudo dos monumentos, no atingisse um

    grau de desenvolvimento considervel. Em Portugal, a Aula de Risco e a Academia de

    Belas-Artes no conseguiram responder de forma positiva a esses anseios, sem ver que

    em cursos superiores como o de arquitectura se carecia de determinados conhecimentos

    tericos e prticos, como a matemtica ou a arte das construes. A juntar a isto

    acrescia um deficiente desenvolvimento da historiografia portuguesa, principalmente a

    nvel do conhecimento dos estilos medievos, o qual nos incios do sculo XIX era ainda

    embrionrio, dificultando em grande medida a realizao de anlises pormenorizadas

    aos monumentos e, por conseguinte, a associao das obras a perodos estilsticos ou

    escolas regionais9.

    No plano internacional, o avano da historiografia da arte dever-se-ia a nomes

    como Gerville ou Caumont ao atriburem independncia ao estilo romnico em relao

    ao gtico. Esse movimento teria correspondncia em Portugal em 1823, quando Cyrillo

    Volkmar Machado distingue o romnico do gtico. Todavia, Alexandre Herculano,

    apesar desta categorizao, continua a considerar a Idade Mdia como um todo, sem

    classificaes estilsticas10

    .

    7 Cfr. CUSTDIO, Jorge - Salvaguarda do Patrimnio: , p. 34. 8 Cfr. HERCULANO, Alexandre - Monumentos Ptrios. In Opsculos, organizao, introduo e notas

    de Jorge Custdio e Jos Manuel Garcia. Porto: Presena, 1982, pp. 175-219. 9 Cfr. TOM, Miguel - Patrimn , p. 20. 10 Idem, ibidem , p. 25.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 8

    Porm, a renovao da educao artstica avana de acordo com as necessidades

    suscitadas pela indstria e pelo fenmeno da industrializao disseminado a partir de

    Inglaterra, durante a primeira metade do sculo XIX. As escolas de desenho, as escolas

    de arte e as primeiras escolas de design, impulsionadas por William Morris, e a criao

    de Escolas Superiores e Gerais de Arte Aplicada Indstria marcavam a diferena no

    panorama internacional11

    .

    Em 1875, o Marqus de Sousa Holstein a propsito do atraso do ensino das artes

    aplicadas indstria referiu em por ora

    prestado a devida ateno a este to importante ramo do ensino12

    . No entanto, neste

    mesmo ano Sousa Holstein em conjunto com o arquitecto Joaquim Possidnio da Silva

    e Luciano Cordeiro integram uma comisso para estudar a reforma do ensino e das

    Belas-Artes e da Organizao dos museus, nomeada por Antnio Rodrigues Sampaio,

    ensino das Belas-Artes j no correspondia aos fins da sua

    instituio, sendo necessrio resolver com urgncia as questes da fundao de um

    Museu de Belas-Artes e da proteco de monumentos histricos e objectos

    arqueolgicos13

    .

    Coube a Passos Manuel, influenciado pelos modelos escolares franceses, contrariar

    a tendncia para a estagnao do ensino e introduzir o ensino tcnico profissional em

    Portugal, tendo como base as matrias leccionadas no Conservatoire des Arts et Mtiers

    e da cole Polytechnique. A instruo primria conhece tambm uma remodelao no

    seu programa curricular com a introduo da disciplina de desenho linear. Mas s

    atravs de Antnio Augusto Aguiar, o ensino tcnico profissional com aplicao

    indstria, demarca-se do ensino das Belas-Artes estabelecendo uma nova relao entre

    arte e a indstria14

    .

    11 Em 1837, na Inglaterra foi criada a Normal School of Design, que j contava com dezasseis

    departamentos em meados do sculo. Na sequncia da grande exposio mundial foi fundado o

    Departement of Pratical Art, convertido, mais tarde, no Department of Science and Art. Ao mesmo tempo

    foi criado o Victoria and Albert Museum, em Kensington, que funcionava como uma escola central de

    desenho, donde irradiavam os modelos e os programas das numerosas School of Arts espalhadas pelo pas. Escolas elementares, de iniciao as Art Classes preparavam a admisso para essas escolas

    atravs do ensino do desenho, desde o grau elementar at ao desenho de figuras. As Schools of Art foram,

    tambm, fundamentalmente escolas de desenho, verificando-se nestas uma ntida predominncia do

    elemento decorativo nas suas diferentes seces desenho, pintura ornamental, desenho aplicado e

    modelao. 12 Cfr. COSTA, Luclia Verdelho da - Ernesto Korrodi 1889 1944 arquitectura, ensino e restauro do

    patrimnio. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 26. 13 , p. 18. 14 , p. 32.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 9

    O esforo realizado na tentativa da modernizao do ensino, culminou em 1863,

    sob o impulso de Joaquim Possidnio da Silva, com a fundao da Associao dos

    Architectos Civis e Archelogos Portugueses destinada a ocupar-se

    profisso, tanto na parte terica como prtica e bem assim da jurisprudncia e

    administrao 15

    . A sua interveno pautou-se logo de

    incio pela criao do curso de fsica e qumica com aplicao indstria, partilha de

    ideias com associaes internacionais de arquitectura, e participao em escavaes

    arqueolgicas. O Marqus de Sousa Holstein, um dos scios amadores, prope logo, em

    1866, a nomeao de uma comisso que tivesse a seu cargo a conservao dos

    monumentos, desta feita orientada para o campo dos estudos histrico-arqueolgicos e

    da defesa dos monumentos nacionais. Para a divulgao da investigao e difuso dos

    trabalhos, foi publicado, a partir de 1874, o Boletim de Architectura e Archeologia.

    Pouco tempo depois, em 1875, o interventivo Sousa Holstein teceu duras crticas ao

    descrever o estado calamitoso dos monumentos, muitos deles arruinados ou mutilados.

    As verbas destinadas a reparaes prioritrias eram inexistentes e os tcnicos no se

    encontravam aptos a exercer o seu dever, e muito menos ainda, existia um inventrio

    capaz de identificar os monumentos em risco e daqueles que necessitavam de

    conservao. Na perspectica de pas no s rico dos seus caminhos-de-

    ferro, das suas estradas, dos seus bancos; no seu activo devem ainda entrar os

    monumentos que produziu o gnio do homem e, entre estes, ocupam eminente lugar as

    criaes artsticas. Possu-las sem dvida uma glria; mas conserv-las

    16.

    O primeiro passo no sentido de salvaguardar os monumentos foi dado em 1880 pelo

    Ministrio das Obras Pblicas ao solicitar Real Associao dos Architectos Civis e

    Archelogos, assim designada a partir de 1872, a constituio de um inventrio para

    classificar os primeiros edifcios como Monumentos Nacionais e, deste modo, proceder

    sua proteco.

    A Real Associao dos Architectos e Archelogos teve um papel importante no

    desenvolvimento de uma forte corrente de opinio pblica em favor dos monumentos, o

    que proporcionou a sua afectao ao Ministrio das Obras Pblicas, a partir de 1894.

    Contudo, a afectao desta comisso ao Ministrio das Obras Pblicas cessou, para dar

    lugar, em 1898, ao Conselho Superior dos Monumentos Nacionais com aptido para

    15 , p. 74. 16 , p. 73.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 10

    classificar os monumentos, elaborar monografias histrico-artsticas, reunir coleces e

    modelos para as escolas e museus, e proceder aprovao e fiscalizao dos projectos

    de conservao e restauro dos Monumentos Nacionais17

    .

    Em sntese, a conjuntura poltica e social, imposta pelo liberalismo colocou o

    patrimnio portugus numa situao de risco, prontamente alertada por Alexandre

    Herculano e Sousa Holstein, exigindo uma resposta rpida por parte de tcnicos e

    pessoas especializadas para a salvaguarda dos bens culturais, de maneira a resgatarem-

    nos da aco do camartelo. No entanto, a resposta no foi a esperada, uma vez que o

    nvel de ensino ministrado na Academia de Belas-Artes no correspondia s

    necessidades impostas pelos monumentos. A lacuna somente foi atenuada com a

    reforma do ensino e com a fundao da Associao dos Architectos Civis e Archelogos

    Portugueses, que, sem demora, tratou de coordenar uma nova conscincia sobre o

    patrimnio artstico, devendo-se quela instituio as primeiras classificaes de

    monumentos.

    O incio do sculo XX marcou um perodo de viragem no que respeita

    conservao patrimonial. Nas Ss de Coimbra, Guarda e Lisboa foram realizadas as

    primeiras campanhas de restauro, rapidamente interrompidas pelos gastos inerentes com

    a interveno. Logo em 1904, Rosendo Carvalheira na qualidade de presidente da Real

    Associao participou no 6 Congresso Internacional de Arquitectos realizado em

    Madrid, onde pela primeira vez foi regulamentado um conjunto de normas

    internacionais que deviam ser aplicadas no restauro dos monumentos. O congresso

    estabeleceu ainda directrizes especficas em matria de restauro, tais como, o

    monumento retomar ao seu estilo primitivo, a fim de preservar a sua unidade estilstica,

    mas tambm, respeitar todas as partes executadas em outros estilos sempre que

    apresentem mrito artstico18

    .

    Em 1910, j sob o auspcio dos ventos republicanos, foi aprovada a primeira lista

    de imveis classificados como Monumentos Nacionais, que desde logo sofreu crticas

    da Real Associao por a considerar incompleta, pois deviam ser includos paos

    episcopais e outros espaos arquitectnicos. Nesse mesmo ano, o Ministrio do

    Fomento, principal responsvel pela defesa dos monumentos, legislou no sentido do

    proteccionismo dos bens culturais portugueses e o resultado materializou-se com o

    17 , p. 82. 18 , p. 86.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 11

    decreto-lei de 19 de Novembro de 1910, que proibiu a deteriorao dos monumentos,

    assim como a sada de objectos do patrimnio artstico e histrico para o estrangeiro.

    Todavia a instabilidade vivida pelo recm-criado governo republicano foi

    dominada pela contenda entre esta nova ideologia e a Igreja. Desta vez, o governo

    intensificou a aco anticlerical, pela revitalizao das antigas leis do Marqus de

    Pombal e de Joaquim Antnio de Aguiar contra as ordens religiosas e, em especial,

    contra a Companhia de Jesus. Consumada a vitria republicana, os conventos e

    mosteiros foram vtimas de assaltos e pilhagens resultando inclusive na morte de

    clrigos residentes nesses edifcios. Este conflito agravou-se pelo facto da Igreja acolher

    ainda, e sobretudo nos meios rurais, ncleos de resistncia ao republicanismo. O Estado

    declarou-se como o nico proprietrio dos templos e de todos os edifcios religiosos,

    extinguiu as verbas para o culto, mandou entregar s juntas da parquia os recheios

    mobilirios, e aos museus os objectos de valor histrico ou artstico19

    . Os motivos de

    ordem econmica foi outra das razes a apontar para se proceder nacionalizao dos

    bens da igreja. As finanas eram satisfeitas no pela tomada dos templos, mas pelas

    propriedades dos seus rendimentos, como os passais ou as fbricas das Igrejas matrizes

    e os cabidos das catedrais.

    Mais uma vez assistiu-se a um rude golpe na manuteno do equilbrio do

    patrimnio nacional, o saque e a violncia perpetrada contra os clrigos acarretaram

    consequncias danosas, resultado de um novo cmbio poltico. O Estado v-se

    novamente responsvel por um infindvel nmero de bens que decide distribuir pelos

    museus. Com tudo isto, as duas primeiras dcadas do sculo XX sentiram ainda a

    inexistncia de uma sria reflexo sobre o patrimnio, situao que a Real Associao

    tentou inverter atravs da sua seco de Conservao e Restaurao dos monumentos e

    do conselho de arte nacional.

    A reorganizao dos servios Artsticos e Arqueolgicos, inerente estruturao da

    poltica republicana, culminou com a diviso do pas em trs circunscries: Lisboa,

    Porto e Coimbra, frente das quais se encontrava um conselho de Arte e de

    Arqueologia com funes consultivas e deliberativas. As principais competncias deste

    organismo diziam respeito classificao dos monumentos da respectiva circunscrio,

    a vigilncia pela sua conservao e a proposta ou apreciao dos projectos de reparao

    19 Cfr. SERRO, Joaquim Verssimo - - Histria de Portugal,

    vol. XII. Lisboa: Verbo, 1989, pp. 129-348.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 12

    e restauro20

    . Porm, as circunscries foram desmanteladas em 1932 e centralizadas na

    Direco-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, prevendo, no entanto, a hiptese

    da elaborao de comisses consultivas de mbito municipal.

    Ainda na tentativa da construo de um sistema administrativo capaz de suprir as

    deficincias apresentadas pela questo da poltica patrimonial, surge em 1920, atravs

    do Ministrio das Obras Pblicas, a Administrao Geral dos Edifcios e Monumentos

    Nacionais (AGEMN), em substituio das direces regionais do mesmo ministrio21

    .

    Desta feita a AGEMN dotada de engenheiros civis, arquitectos e desenhadores, assume

    a responsabilidade pela interveno no patrimnio arquitectnico e consegue, com uma

    maior dotao oramental, proceder a um maior nmero de intervenes em relao ao

    realizado no incio da centria. Rapidamente alguns edifcios de Lisboa e do norte do

    pas sentiram a aco interventiva desta instituio. A simples reparao de telhados ou

    a correco de determinadas patologias culminou com o aparecimento dos vestgios

    primitivos em determinados conjuntos arquitectnicos. Em face destes resultados

    optava-se por reintegrar e reconstituir determinados elementos baseados na sua feio

    original. Este organismo foi dissolvido e substitudo pela 3 Repartio da Direco-

    Geral de Belas-Artes, sob a tutela do ministro Alfredo Magalhes e chefiada por Ades

    Bermudes.

    O golpe militar de 28 de Maio de 1926 adejou novamente uma nuvem de

    desconfiana sobre a poltica patrimonial, esclarecida trs anos depois com a fundao

    da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais (DGEMN), constituda pelos

    funcionrios que transitaram da 3 Repartio da Direco-Geral das Belas-Artes.

    Estava criado o organismo capaz de garantir a estabilidade e as directrizes para uma

    rgida e direccionada interveno patrimonial, nunca encontradas at ento.

    A instaurao de um novo regime poltico conduziu o pas para uma profunda

    restaurao; restaurao poltica, econmica, social e patrimonial, sendo que esta

    ltima, era o paradigma para a fundamentao e exaltao da ptria e dos seus heris. O

    restauro dos monumentos permitiu, inclusive, servir de crtica ao descuido e negligncia

    praticada por parte dos regimes anteriores, devido ao estado de abandono e profunda

    degradao em que grande parte dos monumentos se encontrava.

    A DGEMN aplicava a imagem da perfeita harmonia entre o binmio passado e

    tradio histrica versus modernidade e progresso, para que o estatuto assumido pelos

    20 Cfr. NETO, Maria Joo Baptista - , p. 95. 21 Cfr. TOM, Miguel - , p. 32.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 13

    monumentos seja indissocivel da inteno nacionalista de reconduzir Portugal na

    tradio do seu glorioso passado22

    .

    Todavia, para a instrumentalizao patrimonial surtir efeito foi necessrio

    redireccionar o ensino e, como tal, foi criada a Academia Portuguesa da Histria com

    objectivos claros de uma reconstituio crtica do passado. Foi preponderante e urgente

    corrigir a interpretao at agora feita da histria, e recorrer a novos mtodos de ensino

    de modo a fazer sobressair os valores nacionalistas. Para o iderio estado-novista foi

    essencial a recuperao da memria, patente na fundao da Nao, nos

    Descobrimentos e na Restaurao, na qual os monumentos evocativos desses perodos

    foram os principais alvos de interveno, enquanto momentos histricos, como a

    dominao espanhola e os conturbados perodos entre 1820 e 1926, surgem como

    perodos negros, dos quais Portugal apenas tinha de retirar o exemplo de no os

    repetir23

    .

    A historiografia nacional retomou factos e figuras, com especial predileco pelas

    personagens que encarnaram valores histrico-simblicos, criteriosamente

    seleccionados. O ressurgimento nacional sado da revoluo de 1926 ganhou especial

    dimenso dentro dos quadros da histria. Isto implicou que, tambm no campo do

    patrimnio arquitectnico, se atribussem critrios de seleco, de acordo com os

    valores histricos enunciados e muitas vezes contrrios dimenso artstica dos

    imveis.

    Os monumentos restaurados ilustravam a histria determinada pelo regime,

    funcionando como testemunhos vivos que validavam os momentos de triunfo da nao

    secular. O atavismo da nao e a luta desencadeada pela sua independncia eram

    caractersticas do mais alto interesse que importava destacar nas intervenes dos

    exemplares religiosos do nosso romnico rural, assim como os nossos castelos,

    expoente mximo da independncia nacional.

    As catedrais como legitimao do poder espiritual, que os primeiros reis souberam

    utilizar como forma de organizar o espao territorial e estruturar social e

    economicamente as terras at ento conquistadas, sero outro instrumento didctico na

    esfera do ensino da histria a favor da vanglria da nao. Rapidamente o regime tirou

    proveito do valor simblico destes monumentos, no mbito das comemoraes e

    22 Cfr. NETO, Maria Joo Baptista - Memria, P , p. 18. 23 Cfr. BRITES, Joana Rita da Costa - a memria para um Estado Novo: restauro de

    monumentos e ens . Biblos 3 (2005) 285-308.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 14

    exposies evocativas, que se tornaram o veculo ideal e eficaz de aco

    propagandstica da sua ideologia. Os monumentos agora intervencionados adquiriram

    uma gramtica esttico-artstica de acordo com o perodo da sua fundao. O romnico,

    o gtico e o manuelino vo ser os estilos privilegiados na matria de restauro

    monumental, em grande medida devido sua conotao com os momentos ureos da

    nao.

    A escolha dada aos estilos artsticos e aos monumentos, no mbito do ensino, tinha

    como principal objectivo, o reforo de um conjunto de valores nacionais, assim como

    ilustrar o passado da ptria, alicerado na f crist e nos homens que haviam feito dele

    motivo de orgulho. Pertenceu ao Estado Novo o papel de restaurar essa grandeza,

    devendo assegurar essa memria, no s garantindo a leitura da histria nacional, como

    tambm preservar e purificar as pedras que a contavam.

    Em concluso, os noventa e cinco anos que antecederam a fundao da DGEMN

    (1834-1929) foram caracterizados pela instabilidade, com consequncias danosas para o

    patrimnio. No devemos esquecer, contudo, que na origem desta inconstncia

    estiveram as convulses polticas, sociais e econmicas proporcionadas tanto pelo

    perodo liberal como pela Repblica, dois regimes polticos incapazes de atribuir um

    sentido ou rumo ao patrimnio portugus como conseguiu a DGEMN.

    Sabemos de antemo como foi instrumentalizado o processo de interveno

    monumental, de forma a construir uma nova histria, eliminando e despojando os

    edifcios de perodos e marcas de outros tempos, seguindo metodologias e tcnicas de

    restauro adequadas aos princpios do Estado Novo. Por outro lado, devemos tambm

    reconhecer, que, embora a metodologia utilizada no fosse a mais correcta, foi a nica

    capaz de resgatar os edifcios devolutos da irremedivel destruio a que foram votados

    pelos anteriores governos.

    Est claro que em tempos de crise o patrimnio relegado para segundo plano,

    embora em ltimo recurso este seja recordado pela sua dimenso econmica capaz de

    reanimar os cofres do Estado sendo por isso novamente valorizado, no pela sua

    grandeza histrica enquanto representante de um momento marcante da histria da arte

    ou da histria de um pas, mas sim, pelo valor econmico inerente sua afectao a

    outras identidades. Tudo isto revelador da ausncia de um eficaz programa educativo

    destinado formao cvica do povo portugus, no intuito de proteger e, naturalmente,

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 15

    identificar-se com a sua matriz cultural. Este era, em suma, o panorama em que se

    encontrava o patrimnio portugus ao tempo da DGEMN.

    2. A Construo Historiogrfica da Catedral

    2.1 Os Dilogos Moraes e Polticos de Manuel Botelho Pereira

    A viagem pela historiografia viseense no sentido de apurar o enquadramento da

    edificao da catedral comea com a crnica elaborada por Manuel Botelho Pereira, em

    163024

    . Nesta obra, a histria e a lenda confundem-se num discurso inflamado, onde

    Botelho Pereira imprimiu s personagens histricas gloriosos feitos, desde os tempos da

    Lusitnia, em que Viriato num combate fugaz conseguiu expulsar as tropas romanas da

    Cava, passando, inclusive, pelo relato das fatdicas lutas proporcionadas por reis mouros

    e cristos em sacrifcio da conquista da cidade.

    Os Dilogos, assim designados por se construrem com base no dilogo entre um

    estudante e um filsofo, acerca dos feitos histricos ocorridos em Viseu, constituem a

    primeira pedra para a construo historiogrfica da cidade. A crnica estruturada em

    cinco partes, inicia com os antepassados dos portugueses, a governao romana, a vinda

    dos godos, a destruio dos mouros e, por fim, a presena dos cristos.

    A leitura do texto revela informaes importantes da cidade ao tempo e permite a

    constituio de um panorama histrico de Viseu, embora frgil, s complementado

    pelos estudos surgidos no sculo XIX e que a seu tempo analisaremos.

    O autor atribuiu um principal destaque antiguidade como se deduz das suas

    palavras: de Viseu, que tendes por moderna; mas engano; antes eu a tenho por muito

    e

    25. Portanto, para justificar a

    antiguidade de Viseu Botelho Pereira invoca a perda na memria dos tempos a origem

    26.

    24 Cfr. PEREIRA, Manuel Botelho Ribeiro - Dilogos Morais e Polticos. Viseu: Junta Distrital, 1955. 25 , p. 81. 26 , p. 87.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 16

    Ao nosso estudo interessa, sobretudo, apurar e discernir alguns dos acontecimentos

    relatados, nomeadamente no perodo de transio entre a capitulao mourisca e os

    incios da dominao crist e quais as interpretaes elaboradas por Botelho Pereira.

    Depois disso analisaremos tambm um pouco o percurso dos bispos e a sua influncia

    na modelao arquitectnica da catedral.

    Botelho Pereira diverge da sua linha narrativa na tentativa de descortinar a

    toponmia da cidade, sugerindo uma primeira vez o nome de Vacca27

    , devido sua

    proximidade com a regio do Vouga, e logo de seguida, devido ocupao romana,

    caracteriza a cidade com rtes, muros fuertes, barbacana, la han hecho

    Frontonio e Flaco que este en lettras se allan. Pusieran-le nombre Viso que buena vista

    28. Por conseguinte, verifica-se

    no discurso de Manuel Botelho Pereira uma transposio para Viseu da fundao

    mitolgica de Roma por Rmulo e Rmulo, mas desta vez com Frontonio e Flaco a

    erigirem uma cidade que radica o seu nome na sua posio orogrfica, dotada de boas

    capacidades defensivas, que em boa verdade hoje em dia tm sido reveladas.

    A matriz da formao da diocese de Viseu, segundo este autor est prontamente

    relacionada com a submisso do imprio romano ao catolicismo pela aco de

    Constantino. Mas a constituio da diocese com um bispo a dirigir os seus destinos,

    remonta somente ao perodo suevo-visigtico, com o bispo Remissol, sem fazer

    qualquer aluso ao local onde se edificaria o primeiro templo conotado com a S29

    .

    A crnica introduz-nos de seguida um dado fundamental e at agora inexplicado

    pela historiografia, ou seja, o contexto do aparecimento da igreja de S. Miguel do Fetal.

    A esta igreja est associado o rei Rodrigo por nela se fazer sepultar. Conta Botelho

    Pereira que o rei ao no querer desamparar a cidade agora despovoada, em virtude das

    invases muulmanas radicou-se na igreja de S. Miguel do Fetal em hbito de ermito,

    onde acabou por falecer e ser sepultado. Os autores posteriores a Botelho Pereira como

    poderemos verificar mais frente apontam a igreja de S. Miguel do Fetal, como a

    primitiva catedral de Viseu. Os dados at hoje apurados no nos permitem afirmar

    categoricamente que assim seja, mas segundo as palavras proferidas nos Dilogos, esta

    igreja surge descontextualizada no tempo imprimindo a ideia, de ter sido edificada

    27 , p. 98. 28 Idem, , p. 106. 29 , p. 230.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 17

    durante o perodo suevo-visigtico e assistiu inclume queda do seu ltimo rei quando

    a cidade sofreu as primeiras incurses rabes.

    De facto a cidade submeteu-se ao poder sarraceno em 716 e esteve sob seu domnio

    por quatro perodos, a saber: 716-734, 757-803, 811-842 e 999-1038. Durante este

    tempo, correspondente grosso modo a cento e cinquenta anos, existiu uma empresa

    construtiva para albergar os exrcitos rabes e cristos nesta dana de avanos e recuos

    que foi o perodo da Reconquista e que ainda hoje continua por descortinar.

    Contudo, o episdio onde se regista os primeiros indcios de uma construo militar

    nesta poca est directamente relacionado com a morte de Afonso V de Leo, que aps

    uma primeira e fracassada investida sobre a cidade, ao fazer um novo reconhecimento

    das muralhas da cidade para detectar o melhor ponto de ataque, foi morto pelas hostes

    muulmanas. No momento da reconquista da cidade por Fernando Magno, em 1058, e

    como retaliao pelo rude golpe infligido pelos mouros junto das hostes crists a

    pretexto da morte de Afonso V, tendo os rabes conhecimento de que Fernando Magno

    reunira as suas tropas para o assalto final, depressa os defensores determinaram

    fortalecer mui bem esta cidade, e prov-la de todo o necessrio, como quem lamentava

    o cast30

    .

    Viseu capitulava para as foras crists dezoito dias depois do incio do cerco, e

    segundo Botelho Pereira, rapidamente o Rei Leons tornou a fortificar a cidade o

    melhor que pode, e deixou-a povoada de cristos, embora sem muralha capaz de

    garantir a segurana da cidade, conhecendo-a somente no sculo XV por iniciativa de

    D. Joo I e concludas durante o reinado de D. Afonso V31

    .

    Da obra Dilogos Moraes e Polticos de Botelho Pereira podemos retirar duas

    ilaes: em primeiro lugar a referncia s estruturas arquitectnicas dominantes na

    colina da S, embora o seu discurso parea envolto em alguma incongruncia, isto

    porque numa primeira fase refere a existncia de um troo de muralhas onde o rei

    Afonso V de Leo foi morto e posteriormente, aquando da reconquista definitiva por

    Fernando Magno, ignora a presena dessas muralhas para destacar a aco do rei em

    fortificar a cidade visto que

    torres romanas, quais so as de menagem, e parte da do relgio32

    e proceder ao seu

    30 Idem, ibidem p. 291. 31

    Sobre a construo das muralhas viseenses Cfr. SARAIVA, Ansio Miguel de Sousa - da guerra: dos conflitos Fernandino n, A Guerra e a Sociedade na Idade

    Mdia. Actas das VI Jornadas Luso-Espanholas de Estudos Medievais. Coimbra: SPEM, 2009 (no prelo). 32 Cfr. PEREIRA, Manuel Botelho Ribeiro - Dilogos , p. 294.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 18

    povoamento. A segunda ilao descende da questo da diocese. Botelho Pereira refere

    que a fundao da diocese viseense remonta ao perodo suevo-visigtico, pese embora

    no faa qualquer meno ao local onde se edificou o primeiro templo conotado com a

    S. Portanto fica a dvida de como seria possvel ao tempo, e caso essas muralhas

    existissem, algum ignor-las ao ponto de no as reconstruir? Talvez elas no

    existissem e o nico ponto de refgio fosse mesmo o castelo.

    At agora, tudo isto no passa de conjecturas, apenas passveis de ser

    desmanteladas por provas documentais e arqueolgicas capazes de esclarecer melhor

    estes indcios.

    A partir deste momento a cidade encontrava-se sob domnio cristo no sofrendo

    mais nenhum revs, uma vez que as foras muulmanas recuaram para sul instalando-se

    em Coimbra. Nas palavras de Botelho Pereira, por esta altura, Viseu comeava a

    projectar um novo espao em resultado da conquista. E volta a reforar que, em

    consequncia da batalha somente resistiu o castelo com duas torres, correspondendo na

    actualidade ao alado sul do complexo catedralcio.

    O condado Portucalense governado por D. Henrique vai encontrar em Viseu o

    cenrio perfeito para aplicao das reformas religiosas e polticas de influncia francesa,

    agora empreendidas no territrio. Com efeito, a segunda metade do sculo XI assiste

    reestruturao da poltica e da igreja peninsular, com a adopo dos costumes

    monsticos cluniacenses, a imposio do ritual romano em substituio do ritual

    hispnico e, por ltimo, reorganizao litrgica das dioceses33

    . A reforma pretendida

    pelo conde, teve logo as suas repercusses

    por se edificar a S dentro delle por mandado do Conde D. Henrique, como hoje a

    34.

    Portanto, o conde D. Henrique pretende congregar no mesmo espao o poder

    temporal com o poder espiritual, encontrando na estrutura militar j edificada um local

    propcio para a edificao de um templo segundo os novos modelos arquitectnicos,

    espelho da influncia da nobreza francesa, e dos Beneditinos de Cluny, ento

    empenhados na implantao do rito litrgico romano em toda a cristandade35

    .

    33 Cfr. MATTOSO, Jos - . Rio de Mouro: Temas e Debates, 2007, p. 29-31. 34 Cfr. Nota 32. 35 Cfr. RODRIGUES, Jorge O mundo Romnico (sculos XI-XIII) , Histria da Arte Portuguesa, vol. 2, dir. Paulo Pereira, Rio de Mouro: Crculo de Leitores, 1997, p.17.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 19

    Na continuao dos Dilogos Moraes e Polticos de Botelho Pereira surge agora a

    referncia residncia do prior S. Teotnio localizada no primeiro piso da S onde

    posteriormente se instalou a casa do Captulo36

    . Fica desta feita a indicao, de existir a

    par da S, uma outra valncia arquitectnica relacionada com residncia do prior.

    Sculos depois as lutas contra Castela, nos finais do sculo XIV, ficaram

    igualmente registadas nesta crnica semelhana do que escreveu Ferno Lopes, Viseu

    37. Mais uma vez reforado o carcter militar, na qual a S est inscrita, no

    tempo de guerra, ao abrigar a populao da cidade por no existir mais nenhuma

    estrutura defensiva38

    .

    Os Dilogos Moraes e Polticos assinalam ainda as modificaes operadas na

    catedral durante os episcopados de D. Joo Vicente (1444-1463), D. Diogo Ortiz (1505-

    1519), D. Miguel da Silva (1526-1547), D. Gonalo Pinheiro (1562-1567) e D. Jorge de

    Atade (1568-1578).

    A D. Joo Vicente (1444-1463) est relacionada a construo da capela de Jesus,

    mesmo por baixo do local onde supostamente residiu o prior S. Teotnio e onde aquele

    prelado fundador dos Lios se fez sepultar39

    .

    No entanto, a D. Diogo Ortiz (1505-1519) coube a responsabilidade de reformular

    todo o edifcio a comear pela fac 40

    portal e o mais frontespicio, que est entre as torres com a curiosa

    41. E para culminar a coroao de to rico

    episcopado em matria de obras registou-se a substituio do forro de madeira da igreja

    pelas abbadas de ns que hoje em dia se podem contemplar.

    Com D. Miguel da Silva (1526-1547) o gosto da renascena entra em Portugal e

    materializou-se no claustro edificado na catedral viseense tendo o claustro medieval

    sido substitudo por uma nova gramtica arquitectnica, que no mencionada nesta

    crnica42

    .

    36 Cfr. PEREIRA, Manuel Ribeiro Botelho Dilogos Moraes e Polticos p. 305. 37 Idem, ibidem p. 415. 38 Idem, ibidem 39 Idem, ibidem p. 451. 40 Idem, ibidem . 464. 41 Idem, ibidem 42 , p. 475.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 20

    A D. Gonalo Pinheiro (1562-1567) pertenceu a edificao da capela de S.

    Sebastio, situada no canto sudeste do claustro, cuja abbada mostra as suas armas,

    assim como a escadaria de acesso ao coro alto.

    Por ltimo, nesta modelao espacial, durante o episcopado de D. Jorge de Atade

    (1568-1578) construiu-se a sacristia e o corredor que parte dela para o coro na parte

    norte da catedral.

    Portanto, as concluses retiradas dos Dilogos Moraes e Polticos escritos no

    sculo XVII arrogam-se como uma ferramenta importante para a construo

    historiogrfica da cidade, por ser a primeira compilao histrica sobre Viseu, onde

    apresentado um discurso contemplativo da antiguidade da cidade perdida na memria

    dos tempos.

    Ao revelar os primrdios do Cristianismo e a adeso da cidade ao novo culto,

    Botelho Pereira introduziu a referncia igreja de S. Miguel do Fetal como refgio do

    ltimo rei godo, sem, contudo, referir qual o papel deste templo na cidade poca.

    Quando reflectiu sobre o domnio rabe em Viseu, relatou a existncia de uma estrutura

    defensiva repartida entre muralhas e castelo, transparecendo a ideia de uma cidade bem

    fortificada na colina da S na qual Fernando Magno se apodera somente do castelo,

    esquecendo-se desta feita das muralhas como obstculo conquista da cidade.

    O perodo condal foi o principal responsvel pela edificao da S romnica, luz

    de uma nova poltica religiosa de influncia francesa, directamente relacionada com as

    razes do conde D. Henrique, congregando no castelo recm-conquistado, em virtude da

    sua favorvel posio geogrfica e defensiva, o poder espiritual e temporal.

    Por ltimo, as descries fornecidas por Botelho Pereira permitem-nos fazer uma

    pequena reconstituio das obras empreendidas no templo, durante os governos

    episcopais dos sculos XV e XVI, onde foi impresso um novo desenho ao edifcio

    apagando alguns dos seus traos primitivos.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 21

    2.2 A Historiografia dos Finais do Sculo XIX. De Francisco Manuel Correia a

    Maximiano Arago

    2.2.1. O Manuscrito de Francisco Manuel Correia

    O final do sculo XIX presenteou-nos com dois estudos bastante distintos no seu

    contedo e consistncia argumentativa mas igualmente importantes na definio da

    histria da cidade e em particular da catedral viseense. Seguindo a ordem de publicao

    dos trabalhos somos inicialmente conduzidos para o manuscrito de Francisco Manuel

    Correia43

    , elaborado em 1876 e reeditado pela revista Beira Alta, nos incios da dcada

    de setenta, com comentrios de Alexandre de Lucena e Vale44

    .

    O pensamento de Francisco Correia apresenta algumas incongruncias, desde logo,

    em relao toponmia de Viseu, por indicar num primeiro momento o nome de Viso

    como o nome fundacional da cidade, por esta usufruir de condies geogrficas que

    permitiam uma boa visibilidade dos seus arredores adoptando assim este nome. Em

    seguida contra-argumenta a proposta toponmica apresentada anteriormente atravs da

    assinatura do bispo Remissol no ano de 572, no segundo Conclio de Braga, onde se

    intitula como bispo de visensis.

    A parte mais importante deste manuscrito encontra-se no terceiro captulo destinado

    , onde pela primeira vez somos confrontados com uma

    tipologia arquitectnica

    quatro torres nos ngulos e duas outras torres de menor capacidade do que aquelas, no

    45. Francisco Manuel Correia associa a

    fortificao ao perodo romano como tambm foi adiantado por Botelho Pereira.

    Contudo, o quadrado equiltero que compunha a fortaleza foi sucessivamente

    desmantelado ao longo do tempo mediante as obras de expanso fsica da catedral. Ou

    seja, logo no sculo XII para a construo da cabeceira do templo foi necessrio demolir

    o muro nascente, enquanto o muro poente, que fechava a outra parte do quadrado no

    43 Sobre Francisco Manuel Correia importante traar a sua biografia para uma correcta interpretao do

    seu trabalho. O autor nasceu em Viseu no ano de 1802 e aqui faleceu em 1882. Foi cnego da S e o

    manuscrito resulta da sua curiosidade em desvendar o segredo da constituio do templo e seus anexos. A

    observao directa e a anlise pormenorizada da arquitectura que constitua o complexo naquele perodo,

    assim como os apontamentos que recolheu e estudou so a base para a elaborao do estudo. 44

    Cfr. VALE, A. de Lucena e Beira Alta, 32-1 (1973) 3-49. 45 , p. 18.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 22

    meio do adro da S foi arrasado muito mais tarde, apenas no sculo XVI. O alado sul

    do complexo com as suas duas torres foi o nico vestgio dessa fortificao a chegar at

    ao nosso tempo. As torres foram prontamente alienadas da sua funo militar, para no

    canto sudeste o bispo D. Joo Homem (1391-1425) colocar os sinos, e na torre sudoeste,

    o bispo D. Joo Gomes de Abreu (1464-1482) instalar o aljube eclesistico46

    .

    Mais uma vez na tentativa de compreender o processo de origem da catedral,

    Francisco Manuel Correia elabora um discurso pouco claro, onde no consegue

    discernir a relao existente entre a igreja de S. Miguel e a primitiva S referindo uma

    cidade, como consta do tombo da catedral que a d muito distante de S. Miguel do

    fetal47

    . Por outro lado, Lucena e Vale no comentrio do manuscrito entrega a

    responsabilidade pela edificao da catedral aos condes, mas agora a dvida residia em

    apurar se a S romnica j existia ou no antes da Reconquista definitiva de Viseu48

    . E

    contnua, ao afirmar que no interior da fortaleza estava edificado um pao real habitado

    pelos condes D. Henrique e D. Teresa e pelos primeiros reis de Portugal nas suas visitas

    a Viseu, demolido quando se procedeu construo do actual claustro por D. Miguel da

    Silva (1526-1547), apenas possvel atravs de uma doao de D. Joo III. E remata ao

    afirmar que o local onde hoje se encontra a capela da Cruz, no extremo sudeste do

    claustro, foi at ao sculo XVI terreno aberto, entre o templo e o pano ou troo da face

    sul do primitivo castelo49

    .

    Todavia o manuscrito produzido por Francisco Manuel Correia introduz um novo

    dado ignorado por Botelho Pereira, e diz respeito eventual existncia de um claustro

    no lado norte do complexo catedralcio. Esse espao foi desmantelado para dar lugar

    sacristia edificada por D. Jorge de Atade (1568-1578), na segunda metade sculo XVI,

    onde relata terem encontrado dezasseis sepulturas sem letreiro50

    .

    Sobre o coro alto da S, Francisco Manuel Correia refere que este era o nico que

    tinha a catedral possua at ao tempo da edificao da capela-mor e mais obras da dita

    vacncia de 1639 a 1670. Refere-se ainda s cadeiras deste coro e ao facto de serem de

    delicada construo em todo sentido, inicialmente decoradas com certos embutidos e a

    madeira descoberta e sem tinta preta que depois lhe aplicaram. Este autor no soube

    46 Idem, ibidem 47 Idem, ibidem 48 Cfr. VALE, A. de Lucena e - A catedral de Viseu. Viseu. [s.n], 1945. 49 Cfr. VALE, A. de Lucena e - 50 Idem, ibidem

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 23

    identificar os acessos ao coro alto, anteriores edificao da escadaria pelo bispo D.

    Gonalo Pinheiro (1562-1567), embora no exclua a possibilidade destes se realizarem

    pela torre norte da fachada do edifcio por via de umas escadas em caracol ali existentes.

    As actuais escadas como j dissemos mandadas edificar por D. Gonalo Pinheiro (1562-

    1567) foram formadas na parte descoberta do templo onde caam as guas do telhado da

    abbada da catedral. A construo das escadas proporcionou a edificao do baptistrio,

    logo por baixo do patamar das mesmas, no lado esquerdo da entrada da S. O

    baptistrio foi transferido da torre sul por ser um espao exguo, onde posteriormente

    foi colocada a capela e altar pertencente casa dos fidalgos da prebenda de Npoles,

    instituda pelo cnego Henrique de Lemos, e pertencente ao morgado de Moure.

    Pese embora Francisco Manuel Correia apresente um discurso com algumas

    fragilidades histricas, talvez fruto do seu tempo e da sua formao, ele teve o rasgo,

    baseado nas suas observaes, de adiantar uma tipologia de planta, que como veremos

    mais adiante pode ser importante na discusso da origem deste complexo

    arquitectnico. A este autor tambm se deve a introduo de uma nova questo, a

    respeito da existncia de um claustro na zona norte do complexo, onde predominavam

    as sepulturas de bispos, desmantelado posteriormente por iniciativa de D. Jorge de

    Atade (1568-1578) para a construo da sacristia.

    2.2.2. Maximiano Arago

    No final do sculo XIX, Maximiano Arago organizou um numeroso e exaustivo

    conjunto de estudos relativos histria de Viseu, suas personalidades e instituies

    polticas e religiosas de que em seguida daremos conta.

    Dentro deste pormenorizado e exaustivo trabalho, abordaremos somente o perodo

    da Reconquista e da governao condal at formao da monarquia, o qual, como j

    vimos nos anteriores autores, foi o perodo mais intrigante e na qual ganha forma a

    catedral de Viseu.

    Maximiano Arago apontou 716 como ano da entrada dos muulmanos no

    territrio luso e adiantou ainda a disputa intercalada da cidade por mouros e cristos.

    Por conseguinte governava o rei Ramiro quando no seu regresso a Oviedo, logo aps a

  • Carlos Filipe Pereira Alves 24

    submisso de Viseu ao jugo cristo, uma aliana entre alcaides mouros fez novamente

    guerra cidade recm-conquistada, no resistindo ao cerco mourisco e acabando por ser

    destruda e os seus moradores passados a fio da espada.

    Este autor conferiu a Afonso III de Leo a responsabilidade de povoar entre outras

    cidades

    51. Mais uma vez somos confrontados, semelhana do que

    escreveu Botelho Pereira, com a possibilidade da existncia de uma cinta de muralhas,

    ou a tentativa de edificao de uma muralha prontamente atacada pelo monarca de

    52.

    Tendo o rei cristo tomado conhecimento do sucedido, depressa fez guerra cruel

    aos mouros e regressou cidade de Viseu para a reconquistar e reforar o seu carcter

    militar com 53

    .

    Com a morte de Afonso III, o seu filho Ordonho II estabelece corte em Viseu at

    914, altura em que partiu para Leo para suceder ao seu irmo. Na cidade permaneceu

    tambm com a corte Ramiro II, irmo de Afonso IV, rei de Leo. A Ramiro II sucedeu o

    seu filho Ordonho III que seguiu a tradio dos anteriores familiares e estabeleceu a sua

    residncia e corte em Viseu.

    Depois de mais um perodo de domnio cristo com a corte a instalar-se na cidade

    s terras da beira atravs de Almansor. Quando

    este tomou a cidade e destruiu-a escapando apenas as torres romanas. Viseu conhecia

    agora o perodo mais longo de ocupao muulmana, onde procedeu-se sua

    reedificao e aqui permaneceram os mouros, at conquista definitiva por parte de

    Fernando Magno, em 105854

    .

    Todavia, surge novamente em Maximiano de Arago uma referncia s torres

    romanas, tambm j mencionadas por Botelho Pereira e Francisco Manuel Correia, mas

    agora atribui aos rabes a responsabilidade de uma construo durante o sculo X, no

    sentido de restabelecer as defesas da cidade. Este autor reala que pese embora a cidade

    possa ter estado durante muito tempo sob domnio muulmano no deixou de possuir

    bispo, sem contudo identificar o lugar de culto. A anlise levada a cabo por Maximiano

    51 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Vizeu: apontamentos histricos. Tomo I, Viseu:

    Tipografia Popular, 1894, p. 132 52 Idem, ibidem 53 Idem, ibidem 54 Idem, ibidem

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 25

    Arago inconclusiva na hora de referenciar o local onde foi edificada a primitiva S.

    Mas menciona que os mouros aps a conquista da cidade, toleraram, em troca de

    avultados tributos, a prtica religiosa por parte dos vencidos num templo modesto,

    porque se porventura o tivessem grandioso, apoderavam-se dele e transformavam-no

    em mesquita55

    . Ao pequeno templo, mais uma vez se associa o nome da igreja de S.

    Miguel do Fetal, a ltima morada do Rei Rodrigo, no rejeitando este autor a hiptese

    dos suevos ou os godos serem os responsveis pela sua construo, numa das elevaes

    da cidade, a mais central e mais acessvel maioria dos seus habitantes para poderem

    praticar os seus actos religiosos.

    Sobre o incidente da morte de Afonso V, Maximiano Arago no acrescenta nada

    de novo em relao aos autores precedentes e refora at esta posio invocando

    estudos de Alexandre Herculano, afirmando que o r

    volta dos muros inimigos, uma besta partia, das ameias, e fere-56

    .

    Como sabemos, a conquista definitiva de Viseu foi obra de Fernando Magno, que,

    uma vez ultrapassada a fronteira fsica constituda pelo rio Douro, procedeu submisso

    de pequenos castelos e fortalezas, como foram os casos de Seia, Lamego e Tarouca57

    .

    Como consequncia da batalha travada em Viseu, esta ficou desprovida de populao,

    sem muros e arrasada tendo escapado apenas as duas torres e o castelo. No entanto,

    Maximiano Arago diverge da opinio dos restantes historiadores, por adiantar que

    neste perodo a S estava dentro do castelo, sendo restaurada quando Fernando Magno a

    conquista e na sua doao declarada como episcopal e entrega cidade tudo o que

    58,

    numa clara aluso ao couto doado S por Fernando Magno.

    Que ilaes podemos retirar? Primeiro a partilha de opinio tanto por Botelho

    Pereira como Maximiano Arago ao reflectirem sobre as movimentaes polticas e

    militares no domnio do territrio viseense ao tempo da Reconquista, e como ficaram

    reduzidas as defesas da cidade ao castelo e s suas torres. Em seguida, e ao contrrio do

    pensamento de Botelho Pereira, que defendeu o facto da estrutura militar presente no

    perodo condal ser fruto de uma construo romana, Maximiano Arago utiliza o

    argumento da estncia das cortes leonesas em Viseu durante alguns perodos, para

    55 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Viseu: instituies religiosas. Porto: tipografia

    Sequeira, 1928, p. 444. 56 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Vizeu: apontamentos histricos, 57 Idem, ibidem 58 Idem, ibidem p. 175.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 26

    justificar a necessidade da edificao de uma estrutura defensiva, materializada no

    castelo que sobreviveu at ao perodo condal. E mesmo aps a conquista da cidade por

    Almansor a construo ou reconstruo do castelo com a sua residncia foi avante

    conhecendo o nico revs com a incurso de Fernando Magno.

    Durante o perodo coincidente com a dominao condal, a S, na opinio deste

    autor era parte integrante do castelo, sofrendo desta feita obras de ampliao e um

    reforo estrutural com o levantamento de grossas paredes e esforadas colunas59

    . Aps a

    morte de D. Henrique, D. Teresa residiu por vrios momentos em Viseu, no palcio

    que conjecturamos ser o mesmo habitado em tempos pelos reis de Leo, situado onde

    hoje se acham os claustros da S, entre a antiga Torre do Relgio e a capela de Santo

    Antnio. Sendo o local da cidade onde havia maior segurana, por se encontrar

    encerrado dentro das fortificaes, muralhas e castelo, natural que os monarcas o

    escolhessem para sua residncia.

    Depois deste conturbado perodo, s durante o reinado de D. Dinis nos chegam

    mais informaes sobre o complexo onde est inserido a catedral. O rei Lavrador

    autoriza o bispo D. Egas (1289-1313) a construir

    desta vila entre a torre e a S, derribando-se para isso as casas precisas, cuja pedra, telha

    e madeira cada um poder levar, com tanto que fique uma em que se recolha o

    60.

    Ao escrever sobre as invases castelhanas que, como sabemos, resultaram em

    grande perda para a cidade, Maximiano Arago estabeleceu ainda um interessante

    raciocnio capaz de exemplificar o porqu da inexistncia de muros naquela poca. Ele

    admite, e como j verificamos, a possibilidade de durante as lutas entre mouros e

    cristos surgirem provenientes

    dos reinados de Ramiro I, Afonso III e Afonso V. Depois no hesita em afirmar

    categoricamente que no bero da monarquia, Viseu ainda estava cercada de muros,

    porm, como se negligenciou a sua conservao, por se entender desnecessria em

    virtude do distanciamento da cidade em relao fronteira, o tempo encarregou-se de

    agravar a sua deteriorao, a ponto de no oferecerem resistncia alguma aquando das

    invases castelhanas61

    . Se realmente estas estruturas existiram, a incria associada

    59 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Viseu: instituies religiosas 60

    Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Vizeu: apontamentos histricos. Tomo II, Viseu: Tipografia Popular, 1894, p. 76. 61 Idem, ibidem p. 130.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 27

    aco do tempo remeteu para o complexo arquitectnico, onde estava implantada a S,

    o papel de defender a cidade e os seus moradores, no momento em que foi chamada ao

    cumprimento do seu dever, constituindo-se como um bastio inexpugnvel dando a

    entender a dimenso e o poder da estrutura ali existente.

    Acerca das obras realizadas na catedral durante os sculos seguintes, s devemos

    acrescentar mais um importante apontamento e que colide directamente com o tema

    abordado por esta dissertao, respeitante primeira interveno de restauro no edifcio

    datada de 1875. Esta interveno vem no seguimento da aco dos cnegos da S,

    durante a vacncia do sculo XVII , quando decidiram revestir com argamassa e cal todo

    o templo. No acto de aplicao da argamassa as paredes e as colunas foram picadas para

    a argamassa ter uma melhor adeso ao material de suporte. Depois da remoo da

    argamassa ficaram unicamente as marcas do flagelo do escopo na pedra. O deputado

    viseense Lus de Barros Coelho e Campos ficou tambm ligado histria da S por

    conseguir desbloquear do governo em 1875 as verbas necessrias e os homens

    incumbidos de estudar e restaurar a S62

    .

    2.3 Amorim Giro e a Nova Historiografia do Sculo XX

    Do aparo de Amorim Giro surge na terceira dcada do sculo XX o estudo do

    aglomerado urbano de Viseu, onde apresenta uma nova viso sobre as origens da cidade

    e acrescenta novos dados ao processo de edificao da catedral63

    . Este autor defende

    que a cidade radica a sua origem numa povoao castreja semelhana dos j existentes

    castros de Santa Luzia e Senhora do Crasto situados a poucos quilmetros do centro da

    cidade. O castro de Viseu ter sido ocupado posteriormente pelos romanos e

    consequentemente alvo da urbanizao caracterstica deste povo, transformando a

    cidade num ponto de convergncia de vias que estabeleciam a ligao aos diversos

    pontos ocupados pelos romanos em territrio luso.

    62 As obras realizadas em especfico na catedral sero abordadas no captulo destinado s intervenes da

    Direco-Geral do Edifcios e Monumentos Nacionais de forma a conseguirmos estabelecer um

    raciocnio lgico do que foram as obras de restauro. 63 Cfr. GIRO, A. de Amorim - Viseu: estudo de uma aglomerao urbana. Coimbra: Coimbra Editora,

    1925.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 28

    Terminado o domnio romano, a presena das vias de comunicao terrestre foram

    um importante meio de desenvolvimento e expanso da cidade medieval convertendo-a

    num ponto de passagem obrigatrio para quem de leste rumasse costa ou de nordeste

    para sul.

    Perante isto a anlise elaborada por Amorim Giro conduziu-nos

    irremediavelmente para a existncia de dois centros de grande importncia na cidade, de

    onde o primitivo burgo irradiou em ondas concntricas acabando por encontrar-se

    dificultando a interpretao da urbanizao da cidade. Eram estes dois ncleos o plo

    romanizado, localizado na parte mais baixa da cidade, correspondendo sensivelmente

    zona compreendida entre a Santa Cristina, Prebenda, Regueira, S. Miguel, Largo das

    Freiras, Rua do Arco e Avenida Emdio Navarro, onde a orografia apresentava um fraco

    declive permitindo uma maior facilidade na fixao populacional, assim como uma

    correcta gesto dos recursos hdricos, no havendo a necessidade de canalizar gua para

    o ponto mais elevado da cidade. O segundo plo constitudo pelo ncleo castrejo no

    morro da S apresentava somente uma simples posio fortificada proveniente dos

    tempos proto-histricos64

    . No entanto o ponto mais seguro devido s suas condies

    estratgicas era, naturalmente o stio mais elevado da cidade, e foi para esse ponto que

    comeavam a convergir as atenes durante o perodo medieval.

    Amorim Giro debateu-se com a questo da localizao da primitiva S de Viseu.

    Sabendo da ocupao da ctedra episcopal desde meados do sculo VI, importa saber

    onde se realizava ento o culto. Remeteu novamente as atenes para a igreja de S.

    Miguel do Fetal, como a primeira catedral de Viseu, mas mais uma vez sem apresentar

    provas para atestar tal situao, a no ser formulao da possibilidade da existncia de

    um primitivo centro povoado cercado de muralha na Regueira e imediaes, onde o

    templo principal se localizava intra-muros. Durante o perodo medieval o morro da S

    tornou-se o centro de gravidade do burgo, com a consequente mudana de local do

    edifcio catedralcio. No decorrer das suas observaes, Amorim Giro corrobora a

    opinio de Maximiano de Arago quando ao referir-se tolerncia por parte dos mouros

    em relao ao culto catlico na cidade, mediante o pagamento de pesados tributos, mas

    desta vez aponta que o lugar de culto estava estabelecido na igreja de S. Miguel do

    Fetal65

    .

    64 Idem, ibidem p. 22. 65 Idem, ibidem

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 29

    Para o perodo relacionado com a Reconquista, Amorim Giro equaciona a hiptese

    de ser ter construdo uma nova cintura de muralhas a defender o morro da S em

    detrimento da muralha romana, em virtude do seu mau estado de conservao fruto das

    invases dos povos germnicos.

    Interessante reflexo, e por ns partilhada, elaborou este autor quando analisou a

    carta de doao de Fernando Magno, posteriormente confirmada pelos condes D.

    Henrique e D. Teresa, em 1110, onde aquele monarca coutou S uns terrenos dentro

    dos muros velhos da cidade. Na interpretao de Amorim Giro este facto era o indcio

    da danificao ou destruio daquela parte da cidade, devido sua localizao

    geogrfica, como referimos atrs, este seria o ncleo romano mais povoado e

    desenvolvido da cidade que, em contrapartida, no beneficiava de um sistema defensivo

    totalmente eficaz e teria sido alvo de fortes ataques por parte das hostes muulmanas a

    ponto de a arrasarem. Isto proporcionou aos reis leoneses a procura de uma fortificao

    noutro ponto onde a defesa fosse mais fcil, e essa procura correspondeu ao local mais

    elevado de Viseu onde existia uma fortificao primitiva66

    .

    Conquistada a cidade por Fernando Magno coube aos condes D. Henrique e D.

    Teresa comear o projecto de edificao da catedral romnica. Contudo este autor

    introduz novos dados em relao ao que sabemos at agora, sobre o complexo

    arquitectnico onde se inscreve a S. Amorim Giro adianta que se procedeu, a par das

    obras de construo do templo, construo de uma nova fortificao no alto onde ela

    assenta e na perspectiva deste

    67, com o objectivo de defender a catedral o pao condal e episcopal

    que lhe ficava contguo. A carta de doao do rei D. Fernando, de 1370, e citada por

    Amorim Giro pode esclarecer melhor o tipo de fortaleza construdo no local, ou seja, o

    meu castello e alcacer desa

    68. Portanto, a fortificao edificada a par da S pode muito bem ter sido o

    castelo da cidade, visto no haver mais nenhuma estrutura capaz de garantir a defesa da

    mesma, que agora comeava a ganhar novos contornos com a edificao de to

    importante espao.

    Ainda sobre as duas torres constituintes do alado sul do complexo, relacionadas

    pela historiografia ao perodo romano, Amorim Giro corrige a sua designao

    66

    Idem, ibidem 67

    Idem, ibidem 68 Idem, ibidem

  • Carlos Filipe Pereira Alves 30

    estilstica para Romnicas permitindo aos estudiosos posteriores delinear uma nova

    viso sobre o templo.

    Para finalizar, ao contrrio do percurso secundrio adquirido pelo morro da S na

    dinmica da cidade, este converteu-se agora no epicentro da cidade, fruto do

    enobrecimento do local e do seu engrandecimento em todos os quadrantes, embora

    tivesse um especial pendor pelas zonas compreendidas entre ele e a parte velha da

    cidade, correspondendo agora parte mais baixa.

    2.4 A Imagem da S Vista por Almeida Moreira

    Na sequncia dos estudos at ento organizados, surge em 1937 a primeira anlise

    artstica da catedral viseense inserida num captulo autnomo de Imagens de Viseu, obra

    organizada por Francisco de Almeida Moreira69

    .

    Este autor imprimiu um cunho muito pessoal e emotivo anlise artstica sobre a

    catedral, onde incidiu especial destaque ao anacronismo da obra, como resultado das

    constantes transformaes arquitectnicas operadas no edifcio. Invoca, inclusive, o

    conde Raczynski para realar o particularismo da arte portuguesa nesse captulo da

    diversidade artstica apresentada pelos monumentos portugueses.

    Almeida Moreira concedeu especial nfase obra do prelado D. Diogo Ortiz (1505-

    1519), por corresponder realizao da elegante abbada de ns em substituio da

    velha cobertura de madeira proveniente ainda dos tempos primitivos da catedral. A

    delicadeza do gtico expressa naquela abbada veio a repousar nas robustas colunas

    romnicas conferindo ao espao redesenhado uma complementaridade e cumplicidade

    artstica. Almeida Moreira dedicou ainda algumas pginas ao percurso biogrfico do

    bispo D. Diogo Ortiz (1505-1519), destacando o seu papel como conselheiro dos reis D.

    69 Cfr. MOREIRA, Francisco de Almeida - Imagens de Viseu. Viseu: [s.n], 1937, p. 53-79. Esta obra

    uma viagem pelos monumentos mais emblemticos da cidade onde este autor revela alguns aspectos da sua histria. Francisco de Almeida Moreira foi uma insigne personalidade da cultura viseense. Fundador e

    primeiro director do Museu de Gro Vasco, nasceu nesta cidade em 1873 e na sua casa do Soar de Cima

    faleceu em 1939, onde reuniu um extraordinrio esplio de obras de arte, fruto da sua paixo pelo

    coleccionismo e pela arte. Seguiu a carreira militar que rapidamente terminou devido aos seus problemas

    de sade, para seguir o apelo da arte. Foi um dos fundadores do Instituto Etnolgico da Beira e foi scio

    da Academia de Belas Arte de Madrid. Foi tambm o responsvel pela seco artstica dos pavilhes

    portugueses na Exposio do Rio de Janeiro e o delegado ao congresso internacional de Histria da Arte,

    que se realizou em Paris em 1921, assim como no Congresso Americanista de Roma, em 1926. Destaca-

    se ainda, e como veremos adiante, a sua participao activa no processo de restauro da catedral.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 31

    Afonso V, D. Joo II e D. Manuel I, dada a ligao e estima dos monarcas a este bispo.

    Matemtico e interessado pela cincia astronmica, este bispo teve um importante papel

    na tomada de deciso da descoberta do Novo Mundo, negando a Cristvo Colombo a

    hiptese do reino portugus apadrinhar as suas descobertas. Ainda referente ao

    episcopado de D. Diogo Ortiz (1505-1519) este autor invoca a riqueza da decorao

    arquitectnica impressa na edificao da nova fachada, por ns j referenciada

    anteriormente e destruda pelas intempries de 1635.

    Sobre a actual fachada, Francisco de Almeida Moreira descreveu-a como uma obra

    Moreno, de Sala70

    . Talvez esta reaco e o demrito atribudo obra se devam a

    um sentimento de nostalgia pelo facto de no optarem pela reconstruo da fachada que

    tinha rudo. A nova fachada, com a sua sobriedade e geometria decorativa associada

    forte componente iconogrfica, com a representao dos quatro evangelistas e de S.

    Teotnio ao centro e Nossa Senhora da Assuno como padroeira de Portugal a assumir

    o lugar cimeiro da fachada, contribuiu, por um lado, para a incumbncia de uma nova

    forma de viver a religiosidade, e por outro lado acentuou ainda mais o anacronismo

    artstico da catedral referido no incio.

    O mesmo expresso em relao obra da capela-mor edificada durante o

    episcopado de D. Joo de Melo (1673-1684) ao ser qualificada por Almeida Moreira de

    por perder todo o seu carcter primitivo. Sobre a primitiva capela-

    mor escreveu ainda

    lados, alternado os contrafortes com as reentrncias, onde se abriam as esguias frestas,

    com as suas molduras prprias, como ainda se v nos absdiolos, postas j a descoberto,

    exteriormente, foi transformada e substituda por outra (que a actual) de forma

    rec71

    . O objectivo desta transformao seria a de conferir

    maior luminosidade ao templo, defendendo este autor a necessidade de retomar forma

    primitiva as janelas adulteradas durante a vacncia do sculo XVIII, etapa levada a cabo

    entretanto pela DGEMN.

    Em 1722 a catedral foi invadida pelo domnio da cal e do azulejo, todo edifcio fora

    revestido no seu interior com este material e um silhar de azulejos provenientes de

    Coimbra, onde estava retratada a vida de Cristo e de S. Teotnio. Somente aquando da

    70 , p. 61. 71 , p. 62.

  • Carlos Filipe Pereira Alves 32

    visita a Viseu da rainha D. Amlia, em 1895, se procedeu remoo da cal que revestia

    o templo.

    Sobre os claustros da S, Almeida Moreira comunga da opinio dos autores at

    agora referenciados, ao mencionarem a localizao naquele espao da residncia condal

    demolida graas edificao do claustro renascentista.

    Quando, em 1919, se procedeu remoo da cal a revestir a restante parte do

    edifcio, apareceram os primeiros vestgios de um portal de arco apontado que

    estabelecia a comunicao entre o templo e o claustro. O portal formado por doze

    arquivoltas, que nascem aos grupos de duas de um baco simples, apresenta quatro

    colunas de fustes cilndricos lisos sustentando de cada lado as ogivas. Nos capitis esto

    representadas aves entrelaadas. A rematar o portal na parte superior est uma Virgem

    com o Menino em granito de feio muito primitiva. O portal foi entaipado quando se

    procedeu construo do claustro renascentista e j no sculo XVIII, naquele local,

    procedeu-se construo de duas capelas destinadas ao arcanjo S. Miguel e a S. Jos.

    Em sntese, podemos encarar esta imagem da catedral de Santa Maria elaborada por

    Almeida Moreira como um nostlgico manifesto em favor do regresso ao estado

    primitivo da catedral. Todas as obras administradas no edifcio, em certa medida, como

    referiu o autor, contriburam para o acentuar do anacronismo artstico, foram

    condenadas e reprimidas e pouco entendidas como um passo da evoluo artstica,

    produto da necessidade de adaptao do templo s novas formas de culto por parte da

    Igreja.

    2.5. A Revista Beira Alta e o Novo Ciclo Historiogrfico

    A dcada de quarenta do sculo XX marcou decisivamente a historiografia viseense

    e principalmente o estudo da catedral, por dois motivos: em primeiro lugar atravs da

    Revista Beira Alta fundada em 1942, que adquiriu um papel preponderante no

    desenvolvimento da historiografia local e na difuso da cultura da Beira; em segundo

    lugar de realar o primeiro trabalho monogrfico sobre a catedral de Viseu, da autoria

    de Alexandre de Lucena e Vale, que de seguida passamos a analisar72

    .

    72 Cfr. VALE, Alexandre de Lucena e - A catedral de Viseu. Viseu: [s.n], 1945.

  • Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 33

    A reflexo levada a cabo por Lucena e Vale consistiu numa compilao dos

    principais estudos elaborados sobre a histria da cidade onde tentou apurar a origem da

    catedral. Logo no incio, descartou a hiptese da S existir antes da conquista feita pelo

    rei leons Fernando Magno, afirmando no ter uma base documental suficientemente

    slida para poder afirmar tal situao. Esta estratgia por parte deste autor foi tambm

    uma maneira de evitar introduzir na discusso o papel desempenhado pela igreja de S.

    Miguel do Fetal no contexto da formao da diocese viseense.

    Sendo assim refugiou-se na teoria elaborada por Francisco Manuel Correia onde no

    local onde se veio a edificar a catedral estaria uma fortaleza de quatro panos ou faces,

    resultado da dominao romana que, logo aps a conquista visigtica sofreu as

    consequentes modificaes para albergar o templo catlico sendo edificado no alado

    sul do complexo um pao para os futuros governadores de Viseu73

    .

    Todavia imputa a responsabilidade da construo do templo ao conde D. Henrique,

    seguindo as matrizes arquitectnicas dos edifcios religiosos seus contemporneos, e

    que o prprio importou para o condado portucalense, apresentando caractersticas

    externas pesadas e severas, semelhante a um castelo militar do que propriamente, a uma

    74, sendo tambm, um local para o refgio do

    povo quando passou pelas tormentas da guerra.

    Ao partir da anlise do portal sul da S, Lucena e Vale classifica a catedral como

    um edifcio inseri