Tese Mestrado Marcio Barbosa

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MRCIO SRGIO COSTA BARBOSA

MARCELLO e SPNOLA:

A MISSO do FIM

UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE LETRAS 20091

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MRCIO SRGIO COSTA BARBOSA

MARCELLO e SPNOLA:

A MISSO do FIM

DISSERTAOEM

DE

MESTRADO

HISTRIA CONTEMPORNEA, FACULDADE DEDE

APRESENTADA

LETRAS

DA

UNIVERSIDADE

COIMBRA,

SOB ORIENTAO DO

PROF. DOUTOR RUI CUNHA MARTINS.

UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE LETRAS 20095

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NDICE

INTRODUO .. 9

I CAPTULO: NA SOMBRA DO PODER .....13 1.11.21.31.4Ditadura, situao, salazarismo e Estado Novo 15 Laos de colaborao poltica .25 O regime: um feixe de instituies .31 As crises, os arrufos e a clivagem poltica .39

II CAPTULO: DESCONTINUAR SALAZAR 49 2.12.22.32.4O risco sempre eminente da tirania 51 Estado Novo: a soluo mais conveniente 57 Uma hora confusa: o regresso supremacia militar .65 A herana, o tempo e o modo 75

III CAPTULO: O SONHO COMANDA O DISCURSO 87 3.13.23.33.4Princpio do Contraditrio: o(s) projecto(s) e o(s) discurso(s) ...89 A Questo Ultramarina: inquietao ontolgica ..101 A hora de aco: a emergncia do spinolismo 113 Renovao na Continuidade: o logos e a praxis .119

IV CAPTULO: QUANDO OUTRO VALOR MAIS ALTO SE ALEVANTA 129 4.14.24.34.4Pela Ptria negociar . 131 Por mares nunca dantes navegados: as Comunidades .... 139 Os militares, o regime, Portugal e o futuro .... 149 A hora sombria: um imprio de derrotas . 157 7

CONCLUSO .. 163

BIBLIOGRAFIA e DOCUMENTAO IMPRESSA 167

DOCUMENTAO (CENTRO de DOCUMENTAO 25 de ABRIL) . 183

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INTRODUO

O governo de Marcello Caetano (1968-1974) carece, efectivamente, de estudos de fundo 1 . A principal circunstncia, que, apesar de bvia, deve ser referida, a proximidade histrica/cronolgica do perodo em causa. Como por demais sabido, pela carga subjectiva e potencial polemista, este constitui um dos maiores obstculos investigao historiogrfica. No entanto, assume-se aqui que o desfasamento (a diversos nveis, nomeadamente ao nvel temporal) entre o consulado salazarista e o consulado marcelista, no justifica, por si s, o dfice historiogrfico sobre o segundo. Tanto mais que este dfice exponencialmente compensado por referncias superficiais ao seu nome, que o tempo se encarregou de consubstanciar em conceitos adquiridos. Marcello Caetano afigura-se j indissocivel de expresses impregnadas de simbolismo, destacando-se especialmente a Primavera marcelista. Que, pela intencionalidade que encerra, quase reduz a questo central do perodo em causa o que foi o marcelismo? simples confirmao de ter sido ou no uma Primavera poltica. Decorrente desta, duas interpretaes polarizam os estudos realizados sobre o marcelismo ou estudos abrangentes sobre o Estado Novo que o englobam enquanto perodo final deste ltimo. A primeira pode resumir-se no seguinte: o marcelismo foi, essencialmente, um salazarismo sem Salazar, porque, verdadeiramente, nada mudou, exceptuando os nomes (do homem e das instituies). A segunda uma projeco ou extenso historiogrfica da expectativa que caracterizou a vida pblica portuguesa nos meses que entremearam a queda de Salazar e o primeiro semestre a um ano de governo caetanista, que pode sintetizar-se no conhecido ttulo de uma das mais importantes obras sobre o perodo em causa: A Transio Falhada. O marcelismo, segundo esta linha

O marcelismo tem sido, por circunstncias bvias, menos estudado pela historiografia. Em TORGAL, Lus Reis, Estados Novos Estado Novo, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2009, p. 616.

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interpretativa, foi uma tentativa tardia de reforma interna do regime, uma tentativa de democratizao ou transio anti-revolucionria (frustrada) para um regime democrtico. Porm, na perspectiva que se assume nesta dissertao, considera-se como elemento fragilizador e questionvel o facto de ambas as interpretaes ou paradigmas interpretativos do marcelismo serem excessivamente definidos em funo quer do salazarismo, no primeiro caso, quer da democracia instaurada depois do 25 de Abril, no outro. Como, em termos globais, considerado, infundadamente, um perodo de transio. Termo que, de modo algum, deve ser confundido com intermediao. O primeiro objectivo central deste projecto consiste, precisamente, em procurar desvincular o governo marcelista de interpretaes pr-estabelecidas. Isto porque se considera que estas se encontram tambm elas desvinculadas duma perspectiva que norteia este trabalho de investigao historiogrfica e se considera imprescindvel: a perspectiva (obrigatria e necessariamente crtica) interior ou a partir do prprio objecto de estudo. Neste caso, estudar o marcelismo a partir duma anlise profunda do prprio Marcello Caetano (percurso no salazarismo, pensamento, obra e discurso poltico), privilegiando-se a leitura exaustiva (tambm esta obrigatria e necessariamente crtica) das fontes primrias, chamemos-lhes assim. Ou seja, os textos (acadmico-polticos) do objecto de estudo Marcello Caetano , sobretudo os produzidos no perodo central deste trabalho 19681974. Pretende-se assim, reportando-se j ao segundo objectivo, contribuir para o conhecimento do que foi efectivamente o marcelismo e no o que ele no foi ou poderia ter sido e no conseguiu ser. Demarcao tanto mais pertinente porquanto se pretende analisar o que o marcelismo manifestamente assumiu ser e conseguiu ser. Propsito que abarca uma dimenso psicolgica, quase espiritual, imanente em todo o trabalho e transversal aos dois objectos de estudo indicados no ttulo. O terceiro objectivo envolve directamente o segundo objecto de estudo Antnio de Spnola , que, embora secundrio (por estar praticamente ausente nos dois primeiros captulos, dedicados evoluo da relao de Marcello Caetano com Salazar e o salazarismo, fundamental para uma compreenso em profundidade do marcelismo), coprotagoniza o ttulo. Pretende-se explorar a relao de influncia entre o marcelismo, o 10

spinolismo (enquanto expresso de uma linha militar crtica do regime e da sua conduo da Guerra) e o fim do regime inaugurado na Constituio de 1933 e, por inerncia, do secular imprio portugus e das ento designadas Provncias Ultramarinas. No foi meramente simblica a entrega do poder (em todo o caso virtual) por parte de Caetano a Spnola, no Quartel do Carmo, no dia 25 de Abril de 1974. Este acontecimento foi o culminar de dois caminhos divergentes que, a partir de 1968, se cruzaram na partilha das mais graves responsabilidades polticas e marcaram, definitiva e (in)voluntariamente, o processo histrico portugus finis-imperial e, por consequncia, pr-democrtico. Campo de anlise que se afigura incompleto, em funo dos objectivos definidos, principalmente este ltimo, sem a figura mais determinante do(s) movimento(s) independentista(s) na frica portuguesa: Amlcar Cabral. Figura, alis, sistematicamente marginalizada ou insuficientemente estudada nos trabalhos sobre o marcelismo. Tendo em conta que a Guerra foi o fenmeno capital do perodo final de vigncia da Constituio de 1933, pretende-se reposicionar o papel de Amlcar Cabral neste perodo e em relao aos dois objectos de estudo centrais neste trabalho. Do ponto de vista metodolgico, impem-se dois esclarecimentos. O primeiro diz respeito organizao estrutural do trabalho. Optou-se por seguir uma orientao cronologicamente coerente, mas no esttica, imprescindvel para a consistncia argumentativa do trabalho historiogrfico, sendo que esta, por sua vez, procurou-se submeter a uma lgica de consequencialidade. O equilbrio estrutural expresso no ndice no uma imposio apriorstica formal e artificial. Pelo contrrio, foi-se definindo com o primeiro contacto com a bibliografia e a documentao (impressa e no impressa). O segundo esclarecimento prende-se com o ttulo. O marcelismo e o spinolismo (como, talvez, o prprio movimento liderado por Amlcar Cabral) mobilizaram-se sob o signo imaterial de misso (a presena do termo em ambos os discursos recorrente), que por sua vez remete para a existncia de um fim. Por outro lado, num plano concreto, ambos desembocaram no fim do regime e do Conceito Estratgico Nacional (CEN) que serviram e influenciaram. A conjugao destes dois aspectos explica, pelo menos em parte, a dimenso trgica ou dramtica que comummente se associa ao marcelismo e que, de uma forma quase subliminar, acompanha o desenvolvimento do trabalho.

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I CAPTULO:

NA SOMBRA DO PODER

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1.1-

Ditadura, situao, salazarismo e Estado Novo

Em 27 de Abril de 1928 tem lugar, ainda que no formalmente, o fim da Ditadura Militar iniciada com o golpe de 28 de Maio de 1926. O facto de um civil, professor catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), assumir a pasta das finanas com a certeza [...] de que estavam asseguradas as condies dum trabalho eficiente 2 , que se traduziram num controle absoluto das contas e, por inerncia, da poltica do governo, justificaria por si s a afirmao. No mesmo discurso de tomada de posse, Salazar simultaneamente liquida as dvidas quanto ao trminos da interinidade (de liderana) militar e define o novo registo poltico para o pas: Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas no se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o Pas estude, represente, reclame, discuta, mas que obedea quando se chegar altura de mandar 3 . Tinha efectivamente chegado a altura de mandar e no chegou ao fim em poucos meses. O prprio Salazar se encarregou de apelidar a nova fase: situao. Esta caracterizava-se, no essencial, pelo protectorado das Foras Armadas (FA), que constituam o suporte e a frente avanada ou imagem da situao, na figura referencial do MarechalSALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos, 1 volume 1928-1934, Coimbra Editora, Coimbra, quinta edio, revista, 1961 vol.1, pp.3 e 4. As condies impostas por Salazar podem resumir-se nos seguintes quatro pontos: a) Que cada Ministrio de comprometa a limitar e a organizar os seus servios dentro da verba global que lhes seja atribuda pelo Ministrio das Finanas; b) Que as medidas tomadas pelos vrios Ministrios, com repercusso directa nas receitas ou despesas do Estado, sero previamente discutidas e ajustadas com o Ministrio das Finanas; c) Que o Ministrio das Finanas pode opor o seu veto a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinria, e s despesas de fomento para que se no realizem as operaes de crdito indispensveis; d) Que o Ministrio das Finanas se compromete a colaborar com os diferentes ministrios nas medidas relativas a redues d despesas ou arrecadao de receitas, para que se possam organizar, tanto quanto possvel, segundo critrios uniformes. 3 Idem, pp.4, 5 e 6.2

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Carmona, permitindo ao lente de Coimbra o apoio necessrio obra que todos desejam ver realizada 4 . A recuperao das finanas pblicas e o reequilbrio oramental no curto espao de um ano seriam o primeiro acto dessa obra. Seno por todos desejada, a todos categoricamente imposta. A partir do sucesso da poltica financeira salazarista, que confirmava o arrojo e intencionalidade do discurso da tomada de posse, a situao evoluiu rpida e progressivamente. Os militares renderam-se s contas apresentadas pelo professor e este, explorando o espao que paulatinamente ganhava, prossegue a libertao do tcnico 5 que aqueles pretendiam que apenas fosse (ou, pelo menos, na qualidade em que o foram convidar a Coimbra) para assumir o papel de lder poltico da situao. As sucessivas homenagens pblicas, em que tanto se comprazeria 6 , vo contribuindo, concomitantemente, para afirmar o poder pessoal de Salazar e para, com uma naturalidade inquietante, esvaziar ou neutralizar as diferentes correntes ou grupos polticos (monrquicos, republicanos e integralistas, s para citar os mais influentes). Nas Minhas Memrias de Salazar, Caetano, num primeiro desabafo de enciumada admirao, confessa: quanto mais penso na maneira como Salazar se imps ao Pas, mais me impressiona a singularidade do caso. 7 Mais frente, rematando o captulo, refere-selhe como esse homem estranho, que sem agradar conquistava o poder. A situao e a sua figura de proa 8 pareciam existir um em funo do outro. A imagem de estabilidade, eficincia e credibilidade que oferecia, aps quase duas dcadas de imagem contrria, chegava para reunir a suficiente unanimidade para continuar e para dissimular, no imediato, a ausncia de sistema poltico. A ambiguidade, que extravasa do prprio termo, constitua o terreno propcio para o germinar do particularismo salazarista. Pese embora a preponderncia das circunstncias histricas e da conjuntura poltica europeia, tendente a singularidades (especialmente de extrema-direita ou conservadoras), a4 5

Idem, p. 10. Citao (cit.) em CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, Verbo, Lisboa, 1977, pp.32-

33. A ttulo ilustrativo, logo aps a tomada de posse, em 9 de Junho, no Quartel-General de Lisboa, agradece aos oficiais presentes, representantes de diversas unidades do pas, o apoio necessrio. Em 21 de Outubro de 1929, Salazar agradece, na sala do conselho de Estado, a homenagem prestada pelas Cmaras Municipais do pas, comisses administrativas dos municpios e de todo o governo, proferindo ento o discurso em que define a poltica a seguir: Poltica de Verdade, Poltica de Sacrifcio e Poltica Nacional. 7 CAETANO, Marcello, idem, pp.40-42. 8 Idem, p.43.6

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chave da situao residia nesse homem estranho, que soube percepcionar o momento histrico e conseguiu, habilmente, control-lo. De origem modesta, factor fundamental num pas socialmente bipolar (a tradicional distino entre ricos e pobres), para o processo de mistificao mais tarde impulsionado por Antnio Ferro 9 , subiu na vida a pulso, segundo a expresso de Marcello para tambm se referir a ele prprio, patrocinado pela Igreja Catlica. Estudou gratuitamente no seminrio de Viseu, retribuindo com a promessa informal de que seria sacerdote. Desistiria, contudo, no ltimo instante. Segundo Salazar, sendo pobre, filho de pobres, devo quela casa grande parte da minha educao [...], que me sustentaram quase gratuitamente durante tantos anos, e a quem devo, alm do mais, a minha formao e disciplina social. 10 Este ltimo aspecto seria absolutamente determinante. Desde ex-ministros de Salazar, como Adriano Moreira 11 , a historiadores da gerao ps-25 de Abril, como Jos Freire Antunes 12 , salientaram a preponderncia da formao catlica sobre as possveis influncias polticas. Salazar autenticou priori a anlise quando se assumiu como um catlico sem compromissos polticos 13 . O seu percurso confirma-o. Depois do seminrio em Viseu, seguiu-se em Coimbra a militncia no Centro Acadmico de Democracia Crist (CADC). Foi um dos fundadores do Centro Catlico Portugus (CCP), com sede em Braga. Em plena pujana do laicismo anticlerical da Repblica Velha, define, em 1914, trs ideias aparentemente estruturantes do seu pensamento mas que, uma nunca abandonaria, outras nunca confirmaria: as formas de governo tinham uma importncia secundria, a democracia era uma realidade perfeitamente concilivel com o catolicismo, a estratgia dos catlicos em Portugal deveria ser a de influir sobre a democracia nos termos sugeridos por Alexis de Tocqueville: instru-la, regular-lhe os movimentos e adaptar o seu governo s pocas e aos lugares. 14

FERRO, Antnio, Salazar. O homem e a sua obra, Lisboa, Emprsa Nacional de Publicidade, 3 Edio, s. d. 10 SALAZAR, Antnio de Oliveira, A Minha Resposta, p.13. 11 MOREIRA, Adriano, Notas do Tempo Perdido, Instituto Superior de Cincias Sociais e Polticas, Lisboa, 2005. 12 ANTUNES, Jos Freire, Salazar Caetano: cartas secretas 1932-1968, Crculo de Leitores, Lisboa, 1993. 13 Cit. em ANTUNES, Jos Freire, idem, p.12. 14 SALAZAR, Antnio de Oliveira, A Minha Resposta, pp.18-19. Cit. em ANTUNES, Jos Freire, idem.

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O Papa Leo XIII foi a referncia doutrinria. As suas encclicas, com destaque para a Rerum Novarum, marcariam toda a gerao de Salazar e inaugurariam a chamada Doutrina Social da Igreja Catlica, com profunda influncia na formao do corporativismo e da democracia crist europeia. Imune s influncias polticas, Salazar tambm se encarregou de remeter o seu grupo, o movimento catlico portugus, para o seu restrito campo de aco, numa estratgia de subalternizao do problema do regime e de autonomizao do movimento catlico portugus tutelada pelo Vaticano 15 . Para alm de estranho, Salazar tornou-se um homem isolado 16 e nos primeiros anos de governo, impunha-se pela superioridade intelectual aos que se aproximavam dele: mas no era simptico. 17 Procurava legitimar-se pelos resultados e, porque de facto estes surgiam, essa era a sua fora. Quando questionado sobre a possibilidade da perda de apoios, manifestava uma das suas principais caractersticas e que mais determinaria o seu exerccio do poder: o horror a dependncias de terceiros. Este ficou bem latente por ocasio da primeira tentativa (consumada) de controlo da imprensa por parte do Estado. A acreditar na fidelidade da reproduo de Marcello Caetano sobre a conversa tida entre os dois em pleno conflito de Salazar com a imprensa, este ter respondido observao de Marcello de que arriscar-se-ia a perder apoios preciosos, uns atrs dos outros..., o seguinte: estou farto desse jogo de uns senhores que andam a fingir de importantes e representativos e que, com ar solene, hoje do apoio, amanh tiram apoio, depois condicionam a restituio do apoio... Monrquicos, repblicanos, catlicos. Interesses econmicos, passam a vida nisso... Que me importa o que eles dizem? Eu vivo bem sem esses apoios. 18 Pelo menos enquanto Carmona fosse vivo. Este homem estranho, isolado, que sabe o que quer e para onde vai e que vive bem sem esses apoios permaneceria, neste aspecto, inaltervel ao longo do seu consulado. Em 1958, no rescaldo do furaco delgadista e consequente purga interna, Salazar, antes de convidar Caetano a abandonar o governo, profere nova frase lapidar: Por15 16

ANTUNES, Jos Freire, idem, p.13. Esse isolamento era das suas maiores foras e tambm o seu procedimento mais irritante. CAETANO, Marcello, idem, p.36. Mais a frente, citando Salazar, escreve: s sou capaz de me ocupar de um assunto de cada vez e esse ter a sua altura; espere por favor. 17 CAETANO, Marcello, idem. 18 CAETANO, Marcello, idem, p.53.

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mim estou vontade: no sou amigo de ningum. [...] No posso ter amigos. No sou amigo de ningum!. Caetano sintetiza nas suas Memrias, num mesmo pensamento, o homem e o poltico, que o prprio diluiu com o passar dos anos: naquele homem a Poltica tinha-se constitudo em misso. Entrara na Poltica como podia ter ingressado numa Ordem Religiosa austera. 19 O exerccio autoritrio, centralizado e administrativo do poder, a sua predestinada misso histrica, anunciada pelo prprio quando ter afirmado que sentia que a sua vocao era a de ser primeiro-ministro de um rei absoluto, foi denunciada pelo padre Mateo Crawley-Boeevey, que convivera estreitamente com Salazar na Repblica dos Grilos e foi uma pessoa muito influente na Igreja Catlica portuguesa durante a Primeira Repblica: a mim no me enganas. Por detrs desta frieza, h uma ambio insacivel. s um vulco de ambies. 20 Em 1930, no dia 28 de Maio, quando se comemorava o quarto aniversrio da Revoluo de 1926, Salazar presta contas da actuao do governo no cumprimento do programa e da chamada Ditadura Administrativa e Revoluo Poltica, perante oficias do Exrcito e da Armada, na mesma Sala do Risco onde tomara posse como ministro das finanas. Acumula interinamente o Ministrio das Colnias com o propsito de publicar a primeira obra legislativa sua imagem e semelhana: o Acto Colonial (AC). Neste institui definitiva e oficialmente o Imprio Colonial Portugus e reestrutura a organizao ultramarina. A situao metamorfoseara-se em salazarismo. As condies que exigira dois anos antes para ingressar no governo no s se cumpriram, como ampliaram-se. De tal forma que, na crise ministerial verificada nesse ano de 1930, j Salazar quem praticamente a resolve, colocando na presidncia do Ministrio pessoa da sua escolha e confiana: o General Domingos de Oliveira. O homem que no precisava de apoios interpretava a evidncia de que o imenso espao livre deixado com o desaparecimento dos partidos polticos constitua uma oportunidade para a criao de uma congregao de homens de boa vontade em torno do interesse nacional. 21 Traduzindo: congregao dos

CAETANO, Marcello, idem, p. 580. Cit. em NOGUEIRA, Franco, Salazar: a mocidade e os princpios (1889-1928), volume I, 2 edio, Civilizao Editora, Porto, 1985, pp. 169 e 330. 21 CAETANO, Marcello, idem, p.43.20

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salazaristas em torno do seu chefe. Nasce a Unio Nacional (UN), cujo programa apresentado pelo ento presidente do Conselho, no dia 30 de Julho de 1930. O Manifesto da Unio Nacional um primeiro esboo e teste pblico futura constituio, em que j comeara a trabalhar. Neste surgem definidos princpios basilares do salazarismo, tais como: Portugal um Estado unitrio e indivisvel; O Estado social e corporativo; norma absoluta que sejam e estejam adstritos aos objectivos gerais, histricos e humanos da Nao Portuguesa os direitos, interesses e actividades das existncias individuais e colectivas que dela so componentes; o Estado o centro de propulso, coordenao e fiscalizao de todas as actividades nacionais; os princpios primaciais do Acto Colonial so uma das garantias da reorganizao de Portugal. 22 Enquanto alimentava a indispensvel doutrinao da ditadura, atravs de discursos repletos de intencionalidade, como o pronunciado aquando da apresentao pblica 23 da UN, onde confirmou e explicitou o Manifesto, comentava a crise poltica geral e reforava o AC, Salazar remetia calmamente os militares para os quartis, ao submet-los, igualmente, sua doutrinao macia da Nao Portuguesa. O assalto Presidncia do Conselho de Ministros (PCM) estava prximo e convinha preparar antecipadamente os militares para o facto de o civil lente de Coimbra assumir tambm, formalmente, a PCM. A fechar o ano de 1930, em 30 de Dezembro, por ocasio duma condecorao ao governador militar, brigadeiro Daniel de Sousa, avanou Salazar: entreter-vos-ei uns minutos em simples palestra, sobre vs prprios, digo, sobre a funo, o ideal e as virtudes militares, Valor, Lealdade, Patriotismo. E, de facto, foi uma sesso de esclarecedor entretenimento. Prosseguindo, disse: Que ideia faremos da funo militar? Ela , simplesmente, a actuao da fora organizada para a defesa do agregado social e para a realizao da justia. (Realce-se a notvel subtileza do advrbio de modo) Para concluir a sua lio sobre a funo militar, afirmou que esta no se trata de ganhar a vida, mas de desempenhar altas misses sociais. 24 Impregnado de intencionalidade poltica, Salazar demandava, em discursos anlogos, a aceitao (ou imposio) pblica do seu poder pessoal (o chefe predestinado),

Manifesto da Unio Nacional, artigo 5. Princpios Fundamentais da Revoluo Poltica, em SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos, vol.1, 1928-1934. 24 SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, pp.100, 102 e 105.23

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enquanto misso histrica (sacrifcio pessoal de um gnio) que todos deviam simplesmente acatar. Para isso, no se inibia de atribuir as (restritas) misses a cada grupo da Nao. Incluindo os militares. O objectivo da delicada marcha de Salazar sobre S. Bento estava prestes a concretizar-se. Os resultados confirmavam a capacidade do professor. O oramento para 1930-1931 afastou a sombra da crnica crise portuguesa. O que significava que os chaves polticos, como Previso, Rigidez, Honestidade, tinham afinal substncia e contribuam para a credibilizao do salazarismo. A UN iniciou funes, na prtica, em 17 de Maio de 1931, com a primeira de uma saga de grandes manifestaes (mais tarde conhecidas por espontneas). Salazar aproveitou a oportunidade e mediu o pulso Nao, na esperana de que esta estivesse preparada para o incontestar: Das profundezas da alma da Ptria surgiu ento o anseio duma disciplina que a todos se impusesse, duma autoridade que a todos conduzisse, duma bandeira que todos pudssemos seguir ditadura nacional, governo nacional, poltica nacional. Essa foi a promessa, e hei-de crer que tal tem sido a realizao. Sacrificarei tudo quanto hoje pudesse dizer-vos a fazer ressaltar em poucas palavras este trao da obra governativa. 25 A Nao deu sinal positivo s suas aspiraes. Nas comemoraes do sexto aniversrio do 28 de Maio, em 1932, promovidas por subscrio entre a oficialidade das FA, foram-lhe atribudas as insgnias da Gr-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, que entre ns tradicionalmente quer dizer Valor, Lealdade e Mrito, e que ser porventura rara fora dos que se consagram vida militar, segundo palavras do condecorado 26 . Ao abrigo dos estatutos da Ordem, aqueles que recebessem a Gr-Cruz gozariam honras de General. Consumava-se a inevitabilidade da ascenso de Salazar PCM e consequente controlo unipessoal do aparelho de Estado. Numa coincidncia providencialmente conseguida, nesse preciso dia foi publicado nos jornais o projecto da nova Constituio Poltica destinada a pr termo Ditadura e a inaugurar uma era de normalidade jurdica. 2725 26

SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, p.118. Idem, p.140. 27 CAETANO, Marcello, idem, p.45.

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O general Domingos de Oliveira apresentou demisso em 5 de Julho de 1932, concluindo assim a misso que Salazar intimamente lhe atribura: dar o tempo suficiente (no muito) para que este alicerasse o seu poder, estruturasse a sua doutrina e preparasse psicologicamente a Nao para a necessidade da sua liderana. No discurso de tomada de posse da PCM, com a mestria que o caracterizava, vincava a irredutibilidade da sua doutrina poltica sem ferir a susceptibilidade dos autores da Ditadura Nacional: os homens que constituem o Ministrio so outros, mas o Governo o mesmo o Governo da Ditadura Nacional, que tem as suas ideias assentes e as principais directrizes traadas [objectivamente, o salazarismo]. Os problemas que h a resolver na poltica e no conjunto da administrao pblica so numerosos, graves e alguns muito urgentes, por isso, preciso ir at ao fim 28 . A poucos meses de ratificar a nova constituio poltica, em 23 de Novembro de 1932, na posse da comisso central e da junta consultiva da UN, o chefe fez novo discurso forte, onde reforou a sua doutrina e advertiu tanto colaboradores como opositores: A todos os que so nossos ou desejem s-lo havemos de dizer, claro e alto, em nome da Nao a reconstruir, que s foras da Ditadura se exige Disciplina, Homogeneidade, Pureza de Ideal. No esto connosco os que preferem obedincia [ao chefe] a sua liberdade de aco nem os que sobrepem s directrizes superiormente traadas as indicaes da sua inteligncia, ainda que esclarecida, ou aos impulsos, ainda que nobres, da sua vontade. No esto connosco os que no sentem profundamente os princpios essenciais [o salazarismo] de reconstruo nacional [...]. No esto connosco os que pensam tirar da sua adeso ttulo de competncia [em competio com o chefe] 29 . A sua confiana atinge ento o auge: Eu tenho confiana, eu tenho a certeza de que o doce Pas, que ns somos, quer realmente salvar-se! 30 A dimenso salvfica atribuda sua doutrina, revestida em projecto poltico com a instituio do Estado Novo, no mais do que a justificao e confirmao da sua misso pessoal. Construo teleolgica perfeita que projectava, sob a forma de desafio, sobre o pas: no esto connosco [...] os28 29

SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, pp.151, 155 e 156. Idem, p.183. 30 Idem, p.184.

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que no sentem em si nem dedicao para servir a Ptria nem disposio para sacrificar-se pelo bem comum [ imagem do chefe]. 31 Aps passar, em Maro, na consulta ao pas (na realidade, as bases do regime), a nova constituio poltica entrou em vigor em Abril de 1933, instituindo o Estado Novo. O informal salazarismo encontrava a roupagem jurdica que lhe servia e repunha a normalidade. A UN justificara a sua criao ao desempenhar um papel importante com o desenvolvimento de intensa campanha poltica em prol da nova constituio e do Estado Novo. Ao desafio missionrio lanado pelo chefe muitos corresponderam. A encabelos figuraria Marcello Caetano, que, desde o primeiro instante, colaborou com Salazar demonstrando ameaadora competncia. Se na construo do Estado Novo ou na ascenso ao poder e afirmao de Salazar e da sua doutrina, adiante aprofundaremos.

31

Idem, p.183.

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1.2-

Laos de colaborao poltica

A forma como Salazar liderou as relaes com os homens de boa vontade da(s) direita(s) que progressivamente o rodearam revela a exmia capacidade do presidente do Conselho em perscrutar e dominar a psych daqueles cuja colaborao necessitava. Marcello afirmou, a propsito do incio da sua primeira colaborao com Salazar, que como depois muitas vezes verificaria, [este] era indiferente s situaes particulares quando queria alguma coisa de algum 32 . Alis, o pragmtico equilbrio, sob a tutela arbitral do salazarismo, dessas vrias direitas da direita, [...] habilmente gerido por Salazar 33 , confirma a anlise. O processo de seleco de colaboradores obedeceu, no incio, a criterioso objectivo, que, no sendo de forma alguma regra, ter sido referencial nos perodos mais crticos. Passaria por afastar os velhos polticos (ou polticos da velha poltica) que, devido experincia divergente da nova realidade, no estivessem na disposio de seguir Salazar incondicionalmente, optando este por marginaliz-los politicamente. Procurava por isso recrutar jovens talentosos, de matiz poltica concordante. Nesta linha se enquadra Marcello Caetano e Pedro Theotnio Pereira, o amigo que o introduziu a Salazar. A remodelao governamental de 1944, ano particularmente difcil para o salazarismo, em virtude da previsvel derrota das potncias do Eixo e consequente queda dos regimes de (extrema) direita, obedeceu a essa regra, alis imagem dos primrdios do salazarismo. Ao lado de veteranos, entenda-se salazaristas convictos, como Caeiro da Mata (M. Educao Nacional) e Amrico Tomaz (M. da Marinha), entravam um jovem professor para a Justia (mais jovem do que eu, diz Caetano), Manuel Cavaleiro de Ferreira, e (enfim, outro jovem) o Lus Supico Pinto 34 , para a Economia.32 33

CAETANO, Marcello, idem, p.24. ROSAS, Fernando, em MATTOSO, Jos, Histria de Portugal, vol. VII Estado Novo, pp.10-11. 34 CAETANO, Marcello, idem, p.7.

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Poder-se- inferir que Salazar, que em 1928 era tambm um homem ainda novo 35 , com 38 anos, foi, como reala Freire Antunes, a jovens da direita idealista e criativa, como Caetano e Theotnio Pereira, que [] recorreu nos primeiros tempos do Ministrio das Finanas e da Presidncia do Conselho. 36 Formados politicamente, com as verduras dos 20 anos, na publicao da revista Ordem Nova 37 e participao em peridicos como a Ideia Nacional e A Voz, ofereciam suficientes garantias de fidelizao ao chefe, que se encarregaria de os amadurecer ao servio do salazarismo. A consagrao dos jovens recm-formados e cativados pela emergente vaga anti-comunista, no seria de todo esquecida. Para esse fim foi criado todo um percurso, que comearia na Mocidade Portuguesa (MP) e desembocaria, para os ilustres, na UN. A colaborao com o homem que em 1928 estava cheio de certezas 38 iniciou-se com uma correco de Caetano a uma emenda de Salazar no processo de reelaborao do regime de seguros, empreendida com o auxlio de Theotnio Pereira. Marcello impressionou Salazar (ou pelo menos este alimentou-lhe a iluso) que, por sua vez, respondeu no mesmo registo impressivo convidando-o para o importante cargo de auditor do Ministrio das Finanas (MF). Tinha ento 23 anos. Quarenta e seis anos depois, permanecia indisfarvel a emoo que Marcello sentira: decididamente estava-se em plena Revoluo! 39 O entusiasmo duraria o tempo suficiente para que Salazar controlasse o aparelho de Estado. A mestria no jogo psicolgico de gesto dos seus colaboradores, mantendo-os prximos e activos com a expectativa de privarem com o chefe mas politicamente inofensivos por, integrando o meio, gozarem de pouca intimidade com o mesmo, manifesta-se com Caetano em todo o seu esplendor. O lamento expresso nas Minhas Memrias de Salazar paradigmtico: A expectativa que me animara de incio, de ser um colaborador intensamente aproveitado, foi-se desvanecendo com o tempo. 40 Na ptica de Salazar foi, sem margem para grandes dvidas, um colaborador intensamente aproveitado,

Idem, p.35. ANTUNES, Jos Freire, idem, p.29. 37 Auto-definida como: antimoderna, antiliberal, antidemocrtica, antibolchevista e antiburguesa; contra-revolucionria; reaccionria; catlica; apostlica e romana; intolerante e intransigente. 38 CAETANO, Marcello, idem, p.35. 39 CAETANO, Marcello, idem, p.25. 40 Idem, p.48.36

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j o espao poltico ambicionado por Caetano, esse sim, foi-se desvanecendo na sombra do poder. O mtodo de trabalho de Salazar tambm no era inocente. Necessidade imposta pelo profundo estudo a que submetia tudo, qual gestor minucioso, o isolamento era das suas maiores foras em relao aos que o rodeavam e tambm o seu procedimento mais irritante. Caetano, a maior vtima do mtodo, insistia: continuo convencido de que poderia ter sido um colaborador mais til e menos burocrtico. 41 Mas o estado de graa do mago das finanas concedia-lhe todos os benefcios, no de dvida, mas de certeza. Marcello no deixou de o absolver: mas at com os ministros, seus colegas, ele era assim. A omnipresena de Salazar na administrao do Estado era indiscutvel. Ao ponto de toda a produo legislativa, de todos os quadrantes, inclusive a mais trivial, ter necessariamente de passar pelo seu crivo. A frieza nas relaes de trabalho contribua, paradoxalmente, para criar o paternalismo do chefe sobre a renascida Ptria. Caetano manifestou-o. Quando foi aprovado nas provas de doutoramento e esperava uma palavra amiga de felicitaes de Salazar, [recebeu] um bilhete bastante seco de agradecimento pela oferta da dissertao 42 . Esta sndrome que vitimizaria o pas marcara-o a tal ponto que, quando chegou ao poder, procurou ainda, sem sucesso e em formato audiovisual, reproduzir nas Conversas em Famlia a frmula bem sucedida das Lies de Salazar. O horror de Salazar a dependncias ou favores polticos de terceiros havia encontrado um poderoso antdoto: precisamente, o seu oposto. Caetano parece ter-se determinado a ser necessrio a Salazar. Ter sido esta a receita que encontrara para ganhar protagonismo poltico. Aquele no prescindia dos seus servios, controlando-o, quando podia, friamente distncia. A colaborao de Caetano no Jornal do Comrcio, dirigido por Diniz Bordalo, foi habilssima na persecuo do propsito, pois este jornal foi o primeiro a procurar explicar o que se estava fazendo e os resultados que se iam colhendo. No primeiro conflito de Salazar com a imprensa, a que j se fez referncia, por esta se recusar a publicar o projecto constitucional de ambos, para suposta discusso pblica, Caetano, atravs desse jornal, foi necessrio. Ao chamado de Salazar, acorreu logo. Encontrei-o disse Caetano

41 42

Idem, pp.36-37. Idem, p.48.

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mais magro que no dia em que, pouco antes, tnhamos acabado o projecto constitucional. O enternecimento empregue na discrio, alm de comprovar o referido paternalismo salazarista, manifesta o resultado da contenda: o projecto foi publicado. No rescaldo, nesse ms de Julho de 1932 j estavam apertados entre [ambos], para alm das simples relaes de funcionrio para Ministro, laos de colaborao poltica. 43 Qual filho prdigo, Caetano no tinha um feitio cmodo e eram [ainda] muitas as verduras da mocidade, mas servia Salazar religiosamente. Este perdoava o jovem impertinente que se permitia atitudes rebeldes 44 , porque no era de desaproveitar a sua competncia e porque, enquanto o servisse, podia control-lo. Colaborou na redaco da Constituio de 1933. Participou activamente no lanamento da monopolizadora organizao cvica ao integrar a Junta Consultiva, tornando-se, aos 26 anos, o benjamim das cpulas da UN 45 . Integraria tambm o trio da Comisso Executiva da UN. O intenso trabalho conjunto servira para evidenciar a estratgia de Salazar para a consolidao do seu poder absoluto: evitar que algum se arrogasse em exclusivo a colaborao nas obras fundamentais, diluindo-se no trabalho de equipe a contribuio de cada qual. 46 Apercebendo-se, possivelmente, do potencial poltico de Caetano, convidou-o para o novo cargo de subsecretrio de Estado das Corporaes e Previdncia Social. Sob a aparncia duma promoo poltica, Salazar pretenderia interromper-lhe a ascenso remetendo-o para um cargo trabalhoso e, na prtica, pouco substantivo. Caetano rejeitou o convite em prol da sua carreira acadmica 47 . O chefe no gostou e demoraria 11 anos a convid-lo novamente para o governo. Porque necessitava dele. Caetano, por seu turno, no esqueceria a manobra. Ensai-la-ia tambm ele, em 1973, com Spnola. Salazar ter ento formado uma convico que no mais abandonaria: Caetano desejava o poder. Quem o confirmou foi a governanta D. Maria: [Caetano] era das poucas pessoas que dizia o que pensava. O Dr. Salazar chegava a ficar furioso com o queCAETANO, Marcello, idem, pp.52 e 54. Idem, p.62. 45 ANTUNES, Jos Freire, idem, p.30. 46 CAETANO, Marcello, idem, p.45. 47 Caetano estava prestes a realizar concurso para professor da Faculdade de Direito de Lisboa, na perspectiva de prosseguir a carreira acadmica que desejava. Podendo especular-se at que ponto seria uma mera coincidncia biogrfica, o facto que Caetano seguia os passos do seu predecessor. A poltica podia esperar.44 43

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lhe ouvia, pois estava habituado a que todos lhe dessem amns. [] A ns nunca iludiu. S queria o poder. O Sr. Dr. tinha-o sempre debaixo de olho. O maquiavelismo de Salazar de seguida sintetizado pela D. Maria: dizia-me que o maior perigo no vem dos inimigos mas dos que se fazem passar por amigos. 48 E a melhor forma de controlar os potenciais inimigos, pode inferir-se, era fazer pass-los por amigos. Politicamente leal, Caetano continuaria a colaborar com Salazar na edificao do novo regime, na ptica do primeiro, e na expanso do salazarismo, claramente a perspectiva do segundo. Continuaria tambm, no entanto, a deixar Salazar furioso pontualmente, como quando se demitiu da UN, em 1934. Iniciaram-se ento os arrufos entre ambos. Mas estes no hipotecariam, no imediato, os laos de colaborao poltica na construo do Estado Novo (formal ou real).

DACOSTA, Fernando, As Primaveras de Marcello Caetano, em Revista Viso, 14 de Maio de 1998, pp.42-47.

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1.3-

O regime: um feixe de instituies

Em Dezembro de 1936 promulgou-se o Cdigo Administrativo, diploma complementar da Constituio de 1933 e a partir do qual se reformou a administrao local e regional. No dia 16 de Janeiro desse ano, em conferncia na Sociedade de Geografia de Lisboa, Marcello ensaia o discurso de defesa do novo cdigo, atacando os resqucios locais de poltica partidria: Os Cdigos Administrativos do sculo passado tinham vcios de princpio, mas tinham sobretudo de ser executados num ambiente saturado de pssimas concepes da vida pblica, transferiram-se para os concelhos torpes preocupaes de poltica partidria, e o Municpio deixou de ser uma unidade, o ponto de convergncia dos interesses vicinais, para passar a constituir um tablado para a luta de influncias rivais, em que os apetites eram mais importantes do que os programas. 49 Permanecia indiscutvel, pode concluir-se, o empenhamento de Caetano na expanso do magma salazarista, neste caso, ao microcosmo local. Como sublinha Freire Antunes, o Cdigo Administrativo foi uma das maiores prestaes de Caetano ao Estado Novo 50 . O benjamim era irreverente, impertinente e crtico 51 , mas colaborava na construo do regime (exacta) medida que Salazar solidificava o seu poder. Em discurso no III Congresso da UN, em 23 de Novembro de 1951, Caetano soprou o vu sobre a essncia do regime, ao esbater a possvel heterogeneidade conceptual, decorrente do desgaste sofrido por Salazar no ps-guerra, afirmando ter a certeza de que

CAETANO, Marcello, Princpios e Definies, textos de 1936 a 1967, compilados por Antnio Maria Zorro, Lisboa, 1969, p.135. 50 ANTUNES, Jos Freire, idem, p.33. 51 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.337.

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nos separa no um problema de fins e sim mera questo de meios. 52 Os fins, esclarece logo de seguida, so os governos de homens representativos do interesse nacional e, enquanto representativos, estveis no Poder. Os meios para a consecusso [sic] do fim seriam esse feixe de instituies 53 que compem a Nao. Salazar, representativo do interesse nacional, expresso em 1930 no AC e, em 1933, na nova constituio, era a principal instituio (real) do pas. O presidencialismo autoritrio, exercido, na realidade, pelo presidente do Conselho, a instituio da polcia poltica (Polcia de Vigilncia e Defesa do Estado PVDE), a ilegalizao da oposio e a confirmao do monoplio poltico do nico partido legal (UN) eram a principal obra jurdica dessa instituio. Os conceitos econmicos expressos na nova constituio visavam a persecuo do objectivo central do regime salazarista, e eram, segundo o prprio, em discurso de 27 de Maio de 1933, os seguintes: impor a ordem nas ruas e nos espritos, nas finanas e na economia, nos costumes e na mentalidade, nos servios pblicos e nas actividades privadas 54 . As definies de Riqueza, Trabalho, Famlia, Associao Profissional e Estado 55 , constitudos pilares da organizao econmico-social pela nova constituio, confirmavam a concordncia com o objectivo. A tradio, influente instituio informal do universo salazarista, contribuiu para a historicidade atribuda ao regime. Em conferncia, Caetano declarou a sua harmonia com

CAETANO, Marcello, Princpios e Definies, p.161. Idem, p.116. A aplicao do termo feixe, em 1936, tambm no ser de todo inocente. O termo deriva do latim fasce, que no italiano originaria o termo fascio, smbolo mximo do fascismo de Mussolini. 54 SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos, vol.1, p.225. 55 Salazar esclarece os conceitos no primeiro discurso radiofundido, em 16 de Maro de 1933: a) O Trabalho: ...todo o trabalho tem a mesma nobreza e a mesma dignidade, quando a contribuio proporcionada s faculdades de cada um para a colectividade a que pertence. b) A Riqueza: ...tem de realizar o interesse individual e o interesse colectivo [...], segundo a ordem racional das necessidades dos individuos e da Nao. [...] realizar o mximo de produo socialmente til e que obrigao do estado zelar pela moral, pela salubridade e pela higiene pblica. c) A Famlia: a mais pura fonte dos factores morais da produo. d) A Associao Profissional: ..., pela homogeneidade de interesses dentro da produo, a melhor base de organizao do trabalho, e o ponto de apoio, o fulcro das instituies que tendem a elev-lo, a cultiv-lo, a defend-lo da injustia e da adversidade. e) O Estado: ...deve manter-se superior ao mundo da produo, igualmente longe da absoro monopolista e da interveno pela concorrncia. [...] O Estado no deve ser o senhor da riqueza nacional nem colocar-se em condies de ser corrompido por ela. Para ser rbitro superior entre todos os interesses preciso no estar manietado por alguns. Idem, pp.198 a 209.53

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a ideia: eu sou o mais respeitoso admirador da tradio: mas no sou s isso, que pouco, sou tambm um homem que vive na tradio e colabora nela. 56 Os paralelismos histricos estabelecidos em torno da figura de Salazar seriam a expresso meditica da obra salazarista de afirmar [para Portugal] o direito da sua existncia no Mundo e da sua independncia na Histria! E como obreiro deste renascimento [...], Salazar surgia aos olhos de todos com o perfil endurecido de governante voluntarioso em que se diria podermos vislumbrar a austeridade e a firmeza que tinham entre os seus contemporneos distinguido o Infante ou o Marqus de Pombal. 57 O contributo de Marcello para o messianismo sebastianista (mito renovado por Fernando Pessoa com a publicao da Mensagem em 1934) com que Salazar foi agraciado, alinhava com o processo de criao de instituies vocacionadas para apoiar politicamente a instituio maior do regime: o lder e o seu poder centrpeto. 58 No dia 26 de Outubro de 1933 inaugurada a sede do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN). O discurso de Salazar dirigido contra o pudor dos mal entendidos: quem penetrar bem o seu significado, entender que no se trata duma repartio de elogio governativo, que no se trata de elevar artificialmente a estatura dos homens que ocupam as posies dominantes do Estado; [...] no um instrumento do governo, mas um instrumento de governo no mais alto significado que a expresso pode ter. 59 Ao servio do mais alto membro do governo, poderamos acrescentar. O Instituto Nacional do Trabalho e Previdncia (INTP) desempenharia tambm uma alta funo no travejamento geral do edifcio a erguer. No discurso para os delegados do INTP que partiam para desempenhar as suas funes, com a trplice misso de Propaganda, Patronato e Organizao, em 20 de Dezembro de 1933, Salazar deixava bem claro o objectivo: propaganda intensa, constante dos factos e das ideias, da doutrina que est feita e da doutrina a criar. Sobre a revoluo nacional em marcha e sobretudo no que toca economia e ao trabalho temos sem dvida os grandes princpios orientadores, as ideias mestras, o travejamento geral do edifcio a erguer. [...] Estamos em pas que preciso56 57

CAETANO, Marcello, Uma Srie de Conferncias, 1937, p.324. CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.66. 58 Helosa de Jesus Paulo, no artigo Salazar: a elaborao de uma imagem, reala que, sobretudo nas primeiras publicaes que evocam o seu nome, a assimilao entre a figura de Salazar e o regime o mais comum. Em Revista de Histria das Ideias, Vol.18, Histria. Memria. Nao, Coimbra, 1996, p.255. 59 SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos, vol.1, p.262.

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organizar de alto a baixo [...]; levar os interessados a assimilar os princpios, a ver o interesse da organizao, a desejar servir-se dela para elevar o nvel econmico, intelectual e moral dos seus pares, isso o que para o futuro da obra principalmente nos convm. 60 O edifcio a erguer era, concretamente, a organizao corporativa, quadro terico-conceptual que melhor se ajustava ao salazarismo. Na primeira duma srie de conferncias promovida pelo subsecretariado das Corporaes, em 13 de Janeiro de 1934, justificava: Levanto ainda o vu de outra dificuldade para chegar a uma concluso. A antiga concepo do Estado, que corresponde ainda em grande parte sua orgnica actual, faz dele mquina de feio estruturalmente, exclusivamente, poltica e administrativa. [...] Numa palavra: ele no est apto a dirigir a economia, pelo que ou se h-de transformar ou h-de desistir. 61 Verificada a inviabilidade da antiga concepo, a opo foi o modelo que ia no sentido da medida e do justo equilbrio dos valores 62 , sobre o qual se fundou o Estado Novo. O problema pode ento ser resolvido pela organizao corporativa. E com ela at, em vez de termos a economia dirigida pelos governantes, podemos ter a economia autodirigida, que frmula incontestavelmente superior. 63 A frmula simplista apresentada, longe de constituir uma deficincia conceptual de Salazar, manifestava a verdadeira (limitada) implantao que o modelo viria a ter. alis, o presidente do Conselho confessou-o subliminarmente: no duvido, porm, de que em certos momentos a autoridade suprema intervir, porque no ser uma e a mesma coisa dar direco economia e satisfazer com ela o interesse geral64 . O corporativismo, de que a experincia fascista mussoliniana servia de inspirao internacional e confirmava o (ideado) sucesso do conceito, estava nos anos 20 e incios dos anos 30 no apogeu de adeso. Mas Salazar nunca resolveu completamente a

Idem, pp.280 a 283. SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos, vol.1, p.292. 62 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.67. 63 SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, p.292 e 293. No seguimento, Salazar afirma: Seja qual for a interferncia dos rgos corporativos na feitura das leis estudo e preparao como na nossa Constituio Poltica, deliberao como pode ser noutros sistemas , a verdade que mesmo sem a existncia de preceitos genricos e s por entendimentos bilaterais sobre quantitativos e condies da produo, preos, regalias do trabalho, a economia nacional pode ter suficiente direco. 64 Idem, p.293.61

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conceptualizao do chamado Corporativismo Portugus 65 , discursivamente enleado por uma certa dose anfibolgica. Reis Torgal escreve que ele [o corporativismo] ser sempre apresentado por Salazar e pelos idelogos salazaristas, de que se pode destacar Joo Ameal, como a Revoluo Necessria, diferente do Fascismo, mas seu equivalente, como a terceira via, de conciliao de classes, de produo de riqueza pelos trabalhadores em colaborao com o capital, de acordo entre os trabalhadores, agrupados em sindicatos nacionais, com os patres, organizados em grmios. 66 A ambiguidade na conceptualizao terica era compensada sobremaneira pelo pragmatismo discursivo do salazarismo. A inegvel coerncia dos discursos de Salazar refora a ideia de que o recurso a frmulas tericas se processava na medida em que se ajustassem e servissem o logos e, sobretudo, a praxis salazarista. Na sesso de encerramento do I Congresso da UN, realizada no Coliseu dos Recreios, em 28 de Maio de 1934, o presidente do Conselho acrescenta mais algumas palavras nas linhas desta pgina do nacionalismo portugus: Unidade, coeso, homogeneidade so a palavra de ordem para o ano IX. Ele vai comear o nono ano da Revoluo Nacional, e, se fosse preciso, no limiar do novo ciclo, responder vossa curiosidade, numa palavra, dizer-vos para onde vamos, dir-vos-ia simplesmente para diante! E relembro a frase da sesso inaugural: tero perdido o seu tempo os que voltaram atrs. Para diante na construo do Estado; para diante na organizao corporativa da Nao , para diante na organizao da defesa nacional, no desenvolvimento do Imprio Colonial 67 .

A definio do conceito levanta srias dificuldades. Manuel de Lucena reala o facto: uma forma assim, susceptvel de tais variaes e metamorfoses, atraia adeptos sinceros ou utentes aplicados oriundos de tantas famlias polticas. Mais a frente, revela a ambiguidade que acompanhou o desenvolvimento do corporativismo ao longo do Estado Novo: durante o longo consulado de Salazar, ouviu-se repetidamente a confisso de que estvamos em corporativismo de Estado, seguida pela promessa de que um dia passaria a ser to subordinado. Ora, enquanto tal no sucedia, como tambm no veio a suceder sob Marcello Caetano cuja renovao na continuidade apontou no timidamente, ao princpio, nessa direco , a organizao corporativa foi prestando relevantes servios a distintos [sectores]. LUCENA, Manuel, O Regime Salazarista e a sua Evoluo, Matosinhos, 1995, p.26. 66 TORGAL, Lus Reis, Estado Novo: Repblica Corporativa, Revista Teoria das Ideias, vol.27, 2006, p.456. O autor prossegue a explicitao do que entende ser o corporativismo portugus: Nesta lgica, a economia (como vimos) passa a fazer parte integrante do prprio Estado, ao contrrio da teoria liberal, no para nacionalizar, como no socialismo, mas nela intervir, criando regras regulamentadoras. 67 SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos, vol.1, pp.363 e 364.

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A clarificao da essncia do regime culminaria, possivelmente, no discurso sobre a constituio das cmaras na evoluo da poltica portuguesa, de 9 de Dezembro desse mesmo ano: o emocionante caso portugus no entanto redutvel, pelo que toca aos princpios fecundos da transformao operada, a bem poucos elementos fundamentais: na base a segurana e a ordem pblica a cargo do Exrcito e da demais fora armada; a vida administrativa dominada pelos princpios de concentrao e continuidade; no cimo uma direco poltica dotada de estabilidade e independncia. Eis tudo. 68 Numa palavra: salazarismo. O Estado autoritrio de segurana nacional em que se materializara o Estado Novo, no totalitrio porque limitado pela moral e pelo Direito 69 , e que j contava com a Censura, foi sendo reforado institucionalmente com a criao da Legio Portuguesa (LP) e da Mocidade Portuguesa (MP), sucessora da Aco Escolar Vanguarda (AEV). Instituies paramilitares de bvia inspirao fascista, mas no violentas 70 , de enquadramento e formao ideolgica da juventude no salazarismo, numa altura em que o extremismo (de ambos os plos ideolgicos) constitua uma ameaa real. A clebre Image de Ltat Nouveau Portugais com que Portugal se representou na Exposio Universal de 1937, em Paris, exibia a slida e harmoniosa organizao corporative num pas liderado pelo seu Chef.SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, p.374. Mais frente, no mesmo discurso, acrescenta: como uma grande famlia ou uma grande empresa, a Nao precisa, para a defesa dos seus interesses comuns e para a realizao dos fins colectivos, duma cabea coordenadora, dum centro de vida e de aco, este no tem de ser absorvente, incompatvel com muitos outros secundrios do organismo poltico, mas a marcha tanto mais segura quanto menores forem as substituies do rgo central. [...] O maior problema poltico da nossa era h-de ser constitudo pela necessidade de organizar a Nao, o mais possvel no seu plano natural, quer dizer, respeitados os agrupamentos espontneos dos homens volta dos seus interesses ou actividade, para a enquadrar no Estado, de modo que este quase no seja seno a representao daquela com os rgos prprios para se realizarem os fins colectivos. este problema que d transcendncia poltica organizao corporativa. Pp.377 e 386. 69 Cit. em CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.46. No discurso de 20 de Dezembro de 1933, Salazar refora o autoritarismo de Estado, mas reitera a rejeio do totalitarismo: caminhamos sem receio neste fortalecimento dos individuos pela vida intensa dos seus grupos naturais porque no pretendemos o Estado omnipotente governado sobre a misria de rebanhos destroados. Mas o Estado forte nacional, resultante do equilbrio que a justia crie entre todos os individuos. Em SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, p.283. Marcello alinha com a ideia: Salazar, efetivamente [sic], resistiu sempre a aceitar o totalitarismo do Estado: toda a Constituio de 1933, onde se proclama a limitao da soberania pela Moral e pelo Direito, est cheia das afirmaes dos direitos, no s individuais como da famlia (...). Em CAETANO, Marcello, idem, p.72. 70 Salazar, numa posio de afastamento do regime italiano, sempre rejeitou a violncia como mtodo de suporte do processo revolucionrio, por considerar contra-indicado entre ns, pelas experincias do passado, [...], pela possibilidade de se obterem os mesmos fins por outros meios mais harmnicos com o nosso temperamento e as condies da vida portuguesa. Em CAETANO, Marcello, idem, p.46.68

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Caetano permaneceria, ao longo dos anos 30, leal servidor do Estado Novo e o mais necessrio colaborador do chefe. Em 1935 fora escolhido, por cooptao, para vogal do ento denominado Conselho do Imprio Colonial 71 , exercendo o cargo por oito anos. Em 1934 faz a primeira de vrias viagens s Colnias, adquirindo um conhecimento profundo da realidade que Salazar defendia sem conhecer. Mais tarde, a partir de 1940, exerceu as funes de comissrio nacional da MP. Cargo pouco substantivo politicamente, mas com grande exposio pblica. Havia sido o mais jovem auditor do MF. Percurso que, a somar participao na elaborao da Constituio de 1933 e do respectivo Cdigo Administrativo, faria de Marcello Caetano a principal figura do Regime a seguir a Salazar. Uma posio privilegiada, sobretudo na perspectiva de ascenso ao poder, mas que se revelaria trgica em virtude da constatao duma realidade: o regime confundia-se com o seu lder; ou, dito de outro modo (e talvez com algum excesso), Salazar encarnava o prprio regime. Na origem da tomada de conscincia de Caetano tero estado as crescentes divergncias conceptuais e de implementao do corporativismo. Tal como Theotnio Pereira, Marcello no concebia o corporativismo como um mero capricho 72 , numa referncia implcita a Salazar, desejando uma aplicao total 73 do sistema. J este, como vimos, privilegiava a imposio da ordem nas ruas e nos espritos, nas finanas e na economia 74 . A devoo marcelista ao modelo corporativo ficaria expressa na obra Problemas da Revoluo Corporativa, publicada em 1941. A afirma que o corporativismo no uma doutrina elaborada por subscrio: com ideia deste, ideia daquele, o liberalismo tem razo aqui, mas os comunistas tm razo acol... o corporativismo tem a sua doutrina perfeitamente definida, formando bloco, e para os seus adeptos ela uma verdade s. Exigia uma dinmica incompatvel com os brandos costumes institucionalizados por

Idem, p.9. CAETANO, Marcello, Princpios e Definies, p.46. 73 Para mim, a Corporao no nunca um organismo destinado mera direco econmica: , sim, um corpo social. Idem, p.43. 74 SALAZAR, Antnio de Oliveira, idem, p.225. Tambm Howard G. Wiarda foca esta divergncia, em Corporatism and Development: The Portuguese Experience, Amherst: The University of Massachusetts Press, 1977, pp.127 a 129.72

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Salazar. Pois, conclui, nem de outro modo poderia ser, como tem sido, doutrina de combate, pensamento revolucionrio, bandeira de barricada. 75 O problema corporativo, como veremos no prximo ponto, acabaria por contribuir determinantemente para uma mudana nas relaes entre os dois polticos. Talvez porque, afinal, o regime ao qual Marcello tanto se dedicara, no passava de um feixe de instituies nas mos de um s homem.

75

CAETANO, Marcello, Problemas da Revoluo Corporativa, Lisboa, Aco Editorial Imprio,

1941, p.18.

38

1.4-

As crises, os arrufos e a clivagem poltica

Em as Minhas Memrias de Salazar, Caetano no conhece excesso para elogiar o exerccio do poder e o admirvel mtodo de trabalho de Salazar, que o conduziria ao apogeu da sua glria no ano de 1940 76 . Ano das comemoraes do Duplo Centenrio da Independncia e da Restaurao, inauguradas no simblico Castelo de Guimares, e da Exposio do Mundo Portugus. Ano que coroava uma dcada de vitrias polticas (e pessoais) de Salazar. Duarte Pacheco, frente do Ministrio das Obras Pblicas (MOP), realizou, em nome do chefe, uma espcie de fontismo 77 . Antnio Ferro, frente do SPN, encarregou-se de projectar publicamente a obra e o homem (Salazar). Carmona fez aquilo que Salazar nunca mostrou vontade de fazer: visitou as colnias de S. Tom (1938), Angola (1938) e Moambique (1939), dando ocasio [s habituais] cenas comovedoras de patriotismo e de fidelidade das populaes 78 . Contudo, paradoxalmente, confessava os indcios de heterogeneidade que caracterizaria a colaborao poltica com Salazar. Na sequncia da demora de Salazar em o receber para aprovar o programa das fases preparatrias e o plano do I Congresso da UN, para o qual lhe tinha dirigido novo apelo, Caetano anunciou a demisso da comisso executiva e recusou a tardia audincia concedida por aquele, alegando que no sabia trabalhar assim. Como facilmente se depreende, Salazar no levou a bem que eu tivesse procedido como procedi, e eu fiquei agastado com a falta de interesse dele. Houve um arrufo entre ns que iria durar anos. 79

76 77

CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.64 e 65. LUCENA, Manuel, O regime salazarista e a sua evoluo, p.40. 78 CAETANO, Marcello, idem, p.65. 79 Idem, p.60.

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O endurecimento de feitio e de trato e o facto de Salazar exercer o poder confiando sobretudo em si prprio 80 , no demonstram uma alterao de comportamento, como sugere Marcello, mas sim, pelo contrrio, a assero da sua inalteridade. O Estatuto do Trabalho Nacional, promulgado pelo decreto-lei n. 23 048 de 23 de Setembro de 1933, exemplificativo. Na sua obra de 1938, O Sistema Corporativo, Marcello reitera que aquele corresponde exactamente, pela sua natureza, estrutura e finalidade, Carta del Lavoro italiana. Contudo, como reala Manuel de Lucena, aquele estatuto afastou-se, na prtica, do modelo italiano, aproximando-se claramente do catolicismo social. 81 A correspondncia entre Caetano e Salazar confirma a anlise. Na missiva de 10 de Fevereiro de 1944 afirmava que temos doutrina, o que nos falta aco. Eu, por exemplo, j tenho vergonha de falar em corporativismo [...], no h espirito corporativo, est incompleta e desacreditada a orgnica corporativa [...]. Falhano. Falhano puro, por mais que lhe digam outra coisa, por falta de aco contnua e oportuna. 82 Como facilmente se constata na correspondncia entre ambos, Marcello gozava de uma abertura com Salazar sem paralelo. Permitia-se uma ntima agressividade crtica e uma frontalidade na linguagem que Salazar paternalmente tolerava. s crticas Salazar invariavelmente responde com o desafio a Caetano para que lhes atribua nomes e apresente solues objectivas 83 . Ser assim, no essencial, a relao entre ambos at 1968. Caetano elogia os discursos de Salazar e a doutrina (certamente porque tambm obra sua), mas aponta insistentemente a no correspondncia da aco. Quando enaltece a aco, como a conduo da poltica externa, especialmente durante a Guerra Civil Espanhola e a II Guerra Mundial (II GM), crtica a pouca ateno [concedida] ao estado da opinio interna. 84

Idem, p.73. LUCENA, Manuel, O Salazarismo: a Evoluo do Sistema Corporativo Portugus, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1976, vol.I, pp. 180-409. 82 ANTUNES, Jos Freire, Salazar Caetano, Cartas Secretas: 1932-1968, p.118. 83 Resposta de Salazar carta de Marcello de 10 de Fevereiro de 1944: S pena que s suas observaes, provavelmente muito verdadeiras e justas, no acrescente alguma coisa de positivo sobre a maneira de agir ou algumas precises em matria de facto que me ajudem a proceder. Subiriam assim muito de valor prtico as suas crticas, se a preciso lhes no tirar a justeza. Por exemplo: o sofrimento dos meus prximos colaboradores que no tm directivas nem possibilidades de aco. No julga til que eu saiba quem so para sem demoras lhas dar?. Idem, p.119. 84 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.153.81

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Precisamente durante a II GM, o tom crtico subiu progressivamente. Em Setembro de 1942 dizia que a falta de coordenao continua a parecer-me o maior defeito da nossa poltica. Um ms depois, fala em sensao de mal-estar, de descontentamento, de desalento. Em Janeiro de 1943 relatava que a situao moral muito m e cada vez pior. Em Maro alertava que por toda parte s se ouve dizer: isto est na ltima, o fim! Ser, Sr. Presidente? Eu por mim custa-me a capitular sem luta: mas no vejo outra coisa minha volta seno a preparao moral da derrota. Na comemorao do 11 aniversrio da posse de Salazar da PCM, em 5 de Julho de 1943, proferia discurso elogioso para o chefe mas que no era o estilo oficial de ento, dizendo que Salazar tem defeitos como toda a gente e que no pretendia criar nos governantes uma tal presuno de no se enganarem que os erros se tornem fatais, frequentes e catastrficos. No incio de 1944, escrevia a Salazar que uma vez mais como estou essencialmente (quero dizer: c dentro, mesmo sem querer) com o seu pensamento. [...] E agora a realidade. [...] Ora, confrange-me (repito) a degradao moral progressiva do Pas, no contrariada, no evitada, pela aco do Governo. 85 No final do Vero de 1944, Salazar procedeu a uma das mais importantes remodelaes governamentais (o ambiente em que se processara fora tenso), na qual no curara de promover nenhum equilbrio de foras, a representao de correntes de opinio, mas to-s rodear-se de pessoas seguras, na maior parte j provadas na sua dedicao ao regime e ao seu chefe. 86 Salazar tentara mais uma vez neutralizar politicamente o benjamim, desta feita no Ministrio da Justia (MJ). Este apercebeu-se e declinou. Mas estava ansioso por regressar ao poder e quando Salazar lhe ofereceu o Ministrio das Colnias (MC) respondeu que isso outra coisa! Exigiu, porm, a promessa de Salazar de ter chegado a altura de comear a mudar de rumo, j que Caetano se assumia um partidrio convicto da autonomia das colnias. 87 Nesta crise de 1944 se estabeleceu o paradigma para as crises polticas das prximas duas dcadas: o prenncio da queda do regime, a soluo de Salazar para o perpetuar, a dbia posio de Marcello (que vacilava entre o crtico fervoroso e o

CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, pp.152-166. Idem, p.7. 87 Idem, p.182. Salazar ter tambm afirmado que demais a mais temos de contar com as idias que depois da guerra ho de vir da Amrica do Norte.86

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colaborador fiel das horas ms) e o progressivo distanciamento entre O Estado Novo de Caetano contra o Estado Novo de Salazar [ou salazarismo]. 88 Em 1945, na crise que desembocaria nas eleies de Novembro, Salazar usara Caetano, que comeava a moldar a imagem de liberal com que chegaria a 1968, para revitalizar o regime. No Conselho de Ministros (por cuja regular realizao Marcello tanto se batera) iniciado no dia 9 de Fevereiro, Salazar fez longa e detalhada exposio que intitulou de exame de conscincia poltica. Abordou o perigo que a chamada aragem de democracia poderia trazer para o regime. Caetano, por sua vez, aproveitou para criticar o falhano do corporativismo a todos os nveis e que os tempos estavam a mudar, sem poupar crticas que Salazar ouvia pacientemente 89 . Este conclua com a soluo para a permanncia do seu regime: o interesse da Inglaterra na preservao da ordem no Ocidente. Da em diante, naquilo em que o Estado Novo estava certo, seria preciso convencer e lutar; e naquilo em que o Estado Novo no tinha razo, seria preciso emendar 90 . O Salvador da Ptria era salvo pela reconfigurao geo-poltica resultante da II GM. A partir de ento, Salazar empenhou-se prioritariamente na continuidade duma intensa poltica externa e abdicou da renovao interna, delegando-a em Caetano, que a seguir ao presidente do Conselho ficou a ser, definitivamente, a principal figura poltica do governo. 91 As consequncias internas resultantes das profundas mutaes ocorridas no psguerra no terminariam aps as eleies de 1945. Acentuava-se gradualmente a clivagem entre os dois partidos informais que polarizavam as sensibilidades em torno de Salazar. A conjuntura internacional favorecia, segundo expresso de Marcello, o seu liberalismo. Por seu lado, o chamado partido militar reagia com temor. 92 O pessimismo de Salazar condu-lo hesitao e dvida: medida que vou avanando experimento dvidas acerca

Segundo expresso de Freire Antunes. ANTUNES, Jos Freire, Salazar Caetano, Cartas Secretas: 1932-1968, p.43. 89 CAETANO, Marcello, idem, p.190. 90 ANTUNES, Jos Freire, Salazar Caetano, Cartas Secretas: 1932-1968, p.43. 91 CAETANO, Marcello, idem, p.277. Destaca ainda que a circunstncia de no ter estado presente na Metrpole durante a infeliz campanha eleitoral de 1945 beneficiava-me: e no menos o comando que, por fora das circunstncias, tinha assumido da reaco dos elementos governamentais contra o ataque da oposio. 92 Idem, p.289.

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da oportunidade de vrias afirmaes, sobretudo sob o aspecto internacional em cujo apoio moral tm confiana os homens da oposio. 93 Sem surpresa, encarregou Caetano de lutar na frente interna, nomeando-o para a Comisso Executiva da UN em Maro de 1947, porque convinha adaptar o movimento ao pensar geral, j que o mundo todo assentou em que a existncia de partidos o sinal exterior ou a prova provada da existncia de instituies livres. 94 Enquanto isso, Salazar ocupava-se da frente externa, explorando o capital poltico resultante da neutralidade colaborante. Adere Organizao Europeia de Cooperao Econmica (OECE) em 1948. No ano seguinte assina o Pacto do Atlntico Norte (NATO). Inegveis vitrias polticas do regime, estas opes eram as que melhor se enquadravam com o CEN vigente, assente na secular vocao atlntica portuguesa e na defesa, explorao e desenvolvimento dos territrios coloniais (pouco tempo depois, ultramarinos). No discurso da tomada de posse da Comisso Executiva, Salazar deixara entender a misso de Caetano: depois de 20 anos de doutrinao e de exemplificao de um Estado nacional de todos e para todos os portugueses, temos visto como persistem antigos hbitos mentais, velhas posies ou atitudes de partido e guerra civil. 95 Marcello aceitara o repto na expectativa de cumprir a dupla misso de que [se] julgava investido: representar a opinio do Pas junto do governo, esclarecer essa opinio sobre os atos [sic] deste. O equvoco tendia a constituir-se em hbito entre os dois polticos. O chefe controlava habilmente o benjamim usando-o. Este militava, mas numa posio cada vez mais incmoda: os dois anos, contados quase dia a dia, durante os quais estive testa da Unio Nacional, constituem um perodo difcil da minha vida pblica, que preferia no recordar... Um aspecto, porm, no tinha retorno: Caetano no mais podia calar honestamente as [suas] divergncias de Salazar. 96 A preponderncia do chamado partido militar cresceu nestes anos, denunciando uma tendncia permanente do salazarismo: em momentos de instabilidade poltica, optou sempre pelo endurecimento, no sentido conservador. Ao aproximar das eleies de 1949, Marcello compreendeu que seria afastado da vida governamental, lamentando-se por

93 94

Idem, p.287. Ibidem. 95 Idem, p.291. 96 Idem, pp.293-294.

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Salazar o receber pouco. 97 Este vinha de uma srie de intentonas ao seu consolado e perante a insistncia de Caetano em demitir-se e abandonar a poltica activa, responde: todos me querem deixar. 98 Segundo expresso de Manuel de Lucena, Salazar entala-o e pressiona-o a materializar as crticas preparando as eleies, apresentadas pelo primeiro como sendo to livres como na livre Inglaterra. Marcello faria exigncias e conseguiria a nomeao de homem da sua confiana para o Ministrio do Interior (MI). Contudo, quando seria previsvel, aps as eleies, o afastamento de Caetano da vida poltica, eis que Salazar o convida para nova misso: presidir Cmara Corporativa (CC). Como o prprio afirmou, comeava assim um novo ciclo de colaborao com o Dr. Salazar. 99 O acorde permanecia o mesmo: Marcello controlado servindo o chefe. Mas no passaria muito tempo sem que aparecesse um incidente que poderia ter posto em risco outra vez as [...] boas relaes. 100 O motivo: o problema corporativo. Algum tempo antes das eleies de Novembro de 1949, Salazar dava um sinal de reconhecimento s crticas efectuadas por Marcello ao falhano do corporativismo. Em discurso de 20 de Outubro de 1949 admitia que a falta maior, embora justificada, est numa espcie de paragem que a organizao [corporativa] sofreu durante anos e nos desvios, tanto de pensamento como de ao [sic], que sofreu sob a imposio de circunstncias conhecidas 101 . A soluo preconizada foi a criao do Ministrio das Corporaes (MC). Nova desiluso para o recm-nomeado presidente da CC. Desde o incio formal do Estado Novo, em 1933, que Caetano comeava a ser consultado como jurisconsulto e a ser solicitado para o apostolado das novas ideias corporativas. 102 No princpio de 1950 foi procurado por um grupo de estudantes para proferir uma palestra sobre os problemas abordados pelo presidente do Conselho. No perdeu a oportunidade e pronunciou-se sobre a Posio atual [sic] do Corporativismo

Idem, p.294. Idem, p.303. At 1951 so constantes os lamentos e ameaas de Salazar no sentido de abandono do governo, numa atitude quase adolescente de perscrutar os apoios com que podia contar para continuar. No discurso de agradecimento ao beija-mo prestado por Professores da Universidade de Coimbra em 1948, na comemorao do 20 aniversrio de salazarismo, confessa-lhes que em todo o caso, em todo o caso espero ansioso o momento de regressar.... Em SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. IV, p.322. 99 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.339. 100 Idem, p.340. 101 SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. IV, p.425. 102 CAETANO, Marcello, idem, p.59.98

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Portugus. Ou seja, respondeu proposta de Salazar. Comeando por fazer uma estruturada reflexo acerca da evoluo das revolues, quando entrou no tema central foi extremamente objectivo: eu penso que num regime corporativo no h lugar para o Ministrio das Corporaes. E esclarece o aparente paradoxo: todos os ministrios tm de ser das corporaes, o sentido de deverem proceder com esprito corporativo e em ntimo contato, em perfeito entendimento, com os organismos corporativos. [...] Por isso me parece to inconveniente o Ministrio das Corporaes no regime corporativo, como seria um regime liberal com um Ministrio da liberdade. Foi o maior escndalo do rebelde incorrigvel para os salazaristas consagrados. Mas Salazar, sem melindre, mantendo a sua superioridade, mostrou simplesmente que quem mandava era ele e criou o MC. 103 No ano seguinte, em 1951, o presidente do Conselho opta por accionar o dispositivo constitucional que previa a possibilidade de a Assembleia Nacional (AN) poder antecipar em cinco anos a reviso da Constituio de 1933. O objectivo era eliminar o AC e integrar as suas disposies na constituio, reformulando a terminologia. Regressava-se s provncias ultramarinas em detrimento das colnias. O Imprio Colonial cedia lugar ao Portugal uno e indivisvel do Minho at Timor 104 . Salazaristas como Armindo Monteiro mostravam-se relutantes em relao a qualquer alterao estrutural do salazarismo, mas as circunstncias internacionais, em que preponderava a onda da descolonizao, aconselharam a adopo do caminho traado. 105 Salazar, mantendo-se fiel gesto que vinha fazendo da poltica externa, explorava at ao limite a posio que a defesa do regime exigia e a conjuntura internacional consentia. E no limite permaneceria at ao fim. Em plena discusso (ou confirmao) na AN da proposta de lei de reviso constitucional, no dia 18 de Abril, o presidente Carmona falece. O desaparecimento do principal sustentculo de Salazar vem ocasionar novo momento crtico para o regime. Desta feita so os (ainda numerosos) monrquicos que se apresentam na primeira linha daIdem, p.345. Desde a sua entrada em vigor que o Acto Colonial fora duramente criticado por representar uma regresso conceptual. Entre os maiores crticos encontrava-se o general Joo de Almeida, que, apesar de alinhar com o regime, afirmava que numa concepo rigorosa de unidade imperial o termo Colnia est deslocado. Portugal no tem colnias no sentido em que se toma o termo na legislao internacional mas sim provncias ultramarinas. Em ALMEIDA, general Joo de, Nacionalismo e Estado Novo, Conferncia realizada no teatro de So Carlos em 26 de Maio de 1932, separata do n 84 do Boletim Geral das Colnias, Lisboa, 1932, pp.46-47. 105 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.355.104 103

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oportunidade poltica. Mas, agora como no discurso de 23 de Novembro de 1932, Salazar mantinha a posio de que a experincia feita pela Ditadura portuguesa deve esclarecer a muitos olhos a importncia decisiva que no assunto tm, no as formas externas, mas os conceitos profundos do Poder e da governao pblica e a organizao dos poderes do Estado 106 . Conquanto que o salazarismo estivesse seguro, a forma externa era irrelevante. Tanto servia um rei absoluto distante como um presidente inerte. Sem confrontar directamente os monrquicos, entretinha-os com o argumento de que no era oportuno restaurar naquele momento a Monarquia 107 . Invariavelmente, Caetano mobilizou-se no sentido de resolver os problemas da vida poltica nacional e defendeu aguerridamente a tese de que tinham um regime e por ele se deviam conduzir. J no se vivia, dizia ele, numa situao provisria. Desta feita, no defende Salazar para defender o regime em cuja construo trabalhara, mas sim o regime que tambm era seu para o libertar do salazarismo. Prope-se o intrprete principal da corrente que pretendia remeter Salazar para a Presidncia da Repblica (PR), afastando, convenientemente, qualquer suspeita de ambio pessoal misturada no caso 108 . Salazar, obviamente no se demitiu. Deixar a PCM para se emoldurar em Belm no o beneficiava com nenhuma vantagem a no ser em acrscimo de trabalho. Avanou Craveiro Lopes, que oferecia suficientes garantias de fidelizao ao chefe. Restabelecido da crise, Salazar tornou-se mais fechado e cerimonioso 109 com Caetano. Este retribuiu exprimindo honestamente as suas posies (divergncias) polticas. O egrgio discurso de Coimbra foi um ponto alto. No III Congresso da UN, em 22 de Novembro de 1951, Caetano, alinhado com a orientao superior, liquidou a questo monrquica. Mas, aps assumir por Salazar a frontalidade que este no assumia porque no lhe convinha (alimentando um equvoco pernicioso 110 , segundo Caetano), confrontou os salazaristas incondicionais com uma heresia inadmissvel para o virtualismo em que militavam: por muito que ela nos desagrade, a hiptese inevitvel: Salazar no

106 107

Idem, p.369. Idem, p.376. 108 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.377. 109 Idem, p.382. 110 Idem, p.475.

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imortal... A continuao do Estado Novo para alm de Salazar no constitui problema justamente porque existe a sua doutrina e a sua obra. 111 Mais importante do que a bvia autopromoo ao delfinato, Caetano preparava a Nao para a dissociao entre o regime e o seu carismtico chefe, porque um homem comum, ainda que experiente, sabedor e devotado ao bem pblico por certo ele prprio haveria seguramente de garantir a (des)continuidade de Salazar e a continuidade do Estado Novo, porque existia a sua doutrina e a sua obra (tambm dele, Caetano).

111

Idem, Pginas Inoportunas, pp. 177-179.

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II CAPTULO:

DESCONTINUAR SALAZAR

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2.1-

O risco sempre eminente da tirania

No mesmo Congresso da UN (III) em que Caetano conquistou definitivamente a inimizade dos monrquicos, Salazar, sado vitorioso de mais uma crise que feriu o regime, considerou, no discurso de 22 de Novembro, como a maior virtude do regime poder dotar o Pas de uma governao estvel pela fora dos seus princpios e pelo jogo equilibrado das suas instituies. 112 Jogo, alis, no qual no admitia rivais. O cuidado aqui empregue na afirmao no se verificaria um ms depois, na inaugurao da Ponte Marechal Carmona, quando confirmou que temos reduzido ao mnimo o imprevisto na poltica portuguesa 113 . Numa palavra: imutabilidade. No dia 3 de Maio de 1952, na reunio da tomada de posse dos novos presidentes das comisses distritais da UN, nomeados em Coimbra, alertava-os para que no discutamos, pois no h nada mais intil que discutir poltica com polticos. Isto porque, justificava, era prefervel ilustrar-nos com os resultados por uns lados e outros conseguidos ou no conseguidos. 114 Ainda no discurso de 3 de Maio, interpreta, enquanto representante do interesse permanente, o vasto campo deixado livre [certamente pela ausncia de discusso] como sendo propcio mais ao estudo e competncia dos tcnicos do que s fantasias dos idelogos ou s improvisaes dos aventureiros. 115 A mutao na conjuntura internacional provocara a radicalizao do que para Salazar, porventura, era intencionalmente apenas a fidelizao ao interesse permanente. Nas Minhas Memrias de Salazar, Caetano faz o pstumo elogio, definindo-o como um catlico sincero, que no hesitou nunca em defender os direitos do Estado. 116 No entanto, em 19 de Abril de 1952, na cidade de Braga, lembra o risco sempre iminente da tirania, que s uma forte disciplina decorrente da conscincia da sua origem e funo [do112 113

SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. V, p.62. Idem, p.76. 114 Idem, p.86. 115 Idem, p.86 e 87. 116 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, pp.410-419.

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poder] 117 pode evitar. A Constituio de 1933 era essa origem. A ausncia de legitimidade popular ou democrtica, caracterstica de qualquer ditadura, mas sempre recusada pelo regime (que justificava essa suposta legitimidade com, por exemplo, as grandes manifestaes espontneas), era compensada pela observncia do Direito. E se Salazar tinha uma viso instrumental daquele, sujeitando-o, sem comprometer o necessrio legalismo, ao exerccio do poder, Caetano, por seu lado, tinha uma noo sacramental, respeitando-o escrupulosamente. Alis, era um homem do Direito, ao qual dedicara toda a sua vida profissional. Esta divergncia, subliminarmente perceptvel, revelar-se-ia extremamente importante. Marcello continuava, no entanto, a alimentar a crescente tendncia nas relaes com Salazar: servia, mas avisava; alinhava, mas no concordava. A habitualidade que caracterizava o Estado Novo favorecia sobremaneira a constncia do equvoco. Como mais tarde reconheceria, o Dr. Salazar no queria instaurar um regime, mas sustentar um equvoco. 118 Em Julho de 1952, talvez como prmio e reconhecimento pblico dos servios prestados no ano transacto, e certamente em novo recurso velha tctica poltica salazarista de promover para neutralizar, Caetano foi nomeado membro vitalcio do Concelho de Estado (CE). A fama de liberal e de liderar uma suposta esquerda do regime podia a qualquer momento ganhar uma proporo assustadora, convinha por isso compromet-lo o mximo possvel com o regime (salazarismo) com o menor poder possvel (de Salazar). A colaborao entre ambos prosseguiu no I Plano de Fomento (PF). Este constituiu muito mais do que um conjunto de investimentos em infra-estruturas indispensveis para o ambicionado crescimento econmico. No discurso de exposio do plano, em 28 de Maio de 1953, no Palcio da Foz, Salazar definiu os pressupostos ou condies essenciais para a sua realizao, recorrendo usual frmula simplista, mas eficaz, dos grandes lemas: Paz externa, estabilidade econmica, disciplina administrativa, so as condies que subordinam a execuo dos princpios gerais que inspiram o Plano de Fomento. 119

CAETANO, Marcello, Princpios e Definies, p. 147. Carta de Caetano a Fernando dos Santos Costa, 12 de Agosto de 1965, cit. em ANTUNES, Jos Freire, Cartas Particulares a Marcello Caetano, vol. I, pp. 20-21. 119 SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. V, p.123.118

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Tal como conveio adaptar o movimento ao pensar geral, porque o mundo todo assentou em que a existncia de partidos o sinal exterior ou a prova provada da existncia de instituies livres, convinha tambm elucidar o pensar geral acerca dos esforos do regime em criar condies para o desenvolvimento econmico do pas atravs da iniciativa privada, que no ps-II GM e em plena Guerra Fria, mais do que confundir-se com capitalismo, confundia-se com democracia. No mesmo discurso do Palcio da Foz, Salazar confirmou o intento. Afirmou que os Estados vo escorregando pelo plano inclinado do socialismo e que assistia ao fenmeno com preocupao mas sem surpresa: surpresa justificava tenho-a s de ver as democracias impelir as coisas no mesmo, porque no se me oferecem dvidas de que, alm de tender corrupo dos governos, o poderio econmico do Estado s se cria e mantm com detrimento da liberdade individual. 120 inevitvel questo sobre qual seria o papel do governo, esclareceu que ser o de fomentar a criao das empresas, apoi-las tcnica e financeiramente, ditar-lhes regimes adequados de explorao... e retirar-se, quando no seja necessria a sua presena ou o seu auxlio. O que, dado o extenso caderno de encargos atribudo ao governo, dificilmente se poderia verificar. Aps 1945, Salazar provou que no tinha relutncia em abdicar de alguns interesses permanentes ante a imposio das reconfiguraes internacionais. A adeso OECE e a assinatura do Pacto do Atlntico, j referidos, foram essas imposies e o necessrio enquadramento para a realizao do I PF. A primeira contribuiu para a conveniente estabilidade econmica e a segunda permitiu que no se sacrifiquem as economias a incomparveis esforos de defesa 121 . Caetano esforou-se por satisfazer a vontade de Salazar em suscitar um amplo debate (dentro das instituies do regime) sobre o PF. Mas pretendia ir mais longe, no sentido de mobilizar o regime para a necessidade de desenvolver o pas economicamente e para a necessidade de vencer uma fatalidade que acompanhava, mais do que o regime, o prprio pas: a resistncia dos interesses era superior ao impulso do Poder. 122 Em 26 de Maio de 1957, exprimindo uma certa desiluso em relao resposta do sector privado ao PF, reconhecia, desapontado, que um facto que o capital portugus excessivamente120 121

SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. V, p.117. Idem, p.118. 122 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, pp.420-423.

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tmido e impaciente, preferindo as aplicaes j conhecidas e reputadas seguras aventura de uma empresa nova. 123 O envolvimento de Caetano na elaborao e execuo do I PF permitir-lhe-ia contactar com jovens economistas, empresrios e tcnicos (no seu conjunto, ficariam mais tarde conhecidos por tcnocratas), que iriam projectar naquele as esperanas de uma liberalizao (econmica) do regime, contribuindo para a consolidao definitiva da fama liberal de Caetano e do seu informal partido. Este aperceber-se-ia do potencial que se congregava em seu torno e, porque era mais fiel legalidade do que aos interesses permanentes salazaristas, prossegue a descolagem do Estado Novo em relao ao salazarismo. Em 2 de Novembro de 1953, durante a campanha eleitoral para a eleio da AN, declarou o seguinte: no se pode exigir que um pas seja sempre governado por um homem de gnio: mas pode-se esperar da unio dos portugueses em torno do seu Chefe de Estado que seja facilitada em todos os tempos aos governantes, sejam eles quais forem [ressalva interessante], as tarefas rduas da direco do Pas na medida em que procedam com recta inteno de realizar o bem comum. 124 Contudo, Salazar, enaltecendo a campanha contra o analfabetismo e o Plano de Fomento, confirmava que s a vida poltica pode suscitar objeces. 125 Podia, mas o prprio as invalidava antes de surgirem, referindo-se relatividade das instituies polticas e portanto da legitimidade com que as nossas oferecem feio especial: autoridade sem arbtrio, representao sem parlamentarismo, liberdades que, para serem efectivas, no tm de chamar-se democrticas. (No tm, provavelmente, porque no podem) No se coibindo de ler o pensamento dos que apelidava de melhores, dizia que contemplavam o seu Portugal com evidente simpatia e, embaraados nos seus preconceitos de escola, do a impresso de pensar: no h dvida de que assim que est bem; e, imediatamente a seguir, conclua com uma frase de facto indesmentvel: mas que pena no ser de outro modo! 126 Ao crescente autismo poltico de Salazar, Caetano contrapunha o seu desencanto. Igualmente, fiel tradio instituda entre ambos, trabalhava mas criticava. Outras vezes, o

123 124

CAETANO, Marcello, Princpios e Definies, p.73. Idem, p.38. 125 SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. V, p.140. 126 Idem, p.141.

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inverso. Numa missiva de Janeiro de 1955, dizia que as coisas pblicas o encantavam cada vez menos, embora mau grado meu me preocupem cada vez mais. 127 Dizia no compreender porque se parou de todo nas coisas corporativas, e que este abandono de tudo, este deixar correr no podem ter seno efeitos perniciosos. Mais, pressentia que se est beira de um momento crtico: sente-se a desorientao do nosso lado e h sorrisos de confiana em quantos esperam sempre as ocasies de ataque. Invariavelmente, oferecese para dar novo impulso vida poltica portuguesa. Salazar responde o seguinte: sabe que s por me sentir afogado em problemas e preocupaes da administrao corrente, cada vez mais pesada, no tenho dado o impulso decisivo que se impe nesse sector. Esperemos que brevemente me possa ocupar dele, para o que desde j agradeo a sua imprescindvel e preciosa colaborao. 128 Caetano limitou-se a retorquir que talvez no dure muito a oportunidade de preparar em relativa calma a orgnica das Corporaes. 129 Naturalmente, Salazar no dava o impulso decisivo no por se sentir afogado na administrao, pois estas eram as suas guas preferidas, mas porque cada vez lhe interessava menos quebrar a ambgua e intencional suspenso do Corporativismo. A incapacidade de Salazar em ceder e alterar o status quo que alimentara e suportava o exerccio pessoal do poder justificava, mais do que um hipottico e visvel endurecimento do regime, o aviso de Caetano para o risco sempre eminente da tirania. Embora tambm deva ser entendido como mais uma manifestao de independncia crtica em relao ao salazarismo e, por consequncia, de demarcao poltica. O problema corporativo acentuava-se e a impacincia de Caetano em relao ao tema crescia. Os encontros preliminares ao convite para o Ministrio da Presidncia (MP) demonstram a real importncia do problema no universo salazarista. Com o objectivo de auscultar Caetano e de novamente o comprometer num cargo poltico incuo, props como pretexto para o conselho privado examinar o problema da criao das corporaes 130 . Apenas como pretexto.

127 128

ANTUNES, Jos Freire, Salazar Caetano, Cartas Secretas: 1932-1968, p.359. Idem, p.360. 129 Idem, p.361. 130 CAETANO, Marcello, Minhas Memrias de Salazar, p.450.

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Nesses anos de 1954 e 1955 iria ter incio a luta diplomtica em torno da questo de Goa, que culminaria na invaso indiana em Dezembro de 1960 131 . Salazar, que vinha dedicando-se prioritariamente poltica externa, via agora novas e conturbadas guas em que se afogar, obtendo novo motivo, que no pretexto, para justificar a marginalizao das questes internas com que Marcello o pressionava. Enquanto isso, este continuava empenhado (entretido, na ptica de Salazar) na luta por aquela que acreditava ser (ainda) a soluo poltica mais conveniente para o pas o Estado Novo.

CAETANO, Marcello, idem, pp.428-446. SALAZAR, Antnio de Oliveira, Discursos e notas polticas, vol. V, pp. 185-299. Caetano sempre defendera uma intensificao das negociaes com a Unio Indiana. Conselho que Salaza