Tese_ O nó e o ninho_família escrava ES

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PATRCIA MARIA SILVA MERLO

O N E O NINHO: ESTUDO SOBRE A FAMLIA ESCRAVA EM VITRIA, ESPRITO SANTO, 1800-1871

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Histria Social da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Histria. Orientador: Dr. Manolo Garcia Florentino

RIO DE JANEIRO 2008

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O N E O NINHO: ESTUDO SOBRE A FAMLIA ESCRAVA EM VITRIA, ESPRITO SANTO, 1800-1871

PATRCIA MARIA SILVA MERLOTese submetida ao Corpo docente do Departamento de Histria, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do Grau de Doutor em Histria Social.

APROVADA POR: __________________________________________________________ Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino (Orientador) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Antnio Carlos Juc de Sampaio __________________________________________________________ Prof. Dra. Mnica Grin __________________________________________________________ Prof. Dra. Adriana Pereira Campos __________________________________________________________ Prof. Dr. Jos Roberto Ges

Rio de Janeiro, 27 de agosto de 2008.

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AGRADECIMENTOSQuando me deparei primeira vez com a obra de Georges Duby, A Histria Continua, no poderia imaginar quantas vezes voltaria a seu texto, em especial aos trechos em que se dedica a descrever o processo de doutoramento que, segundo ele, obriga clausura e solido na confeco de um trabalho do qual o pesquisador, se no se perder no caminho, pode sair esgotado. Enfim, hora de apresentar o resultado de anos de pesquisa. E, se no me perdi no caminho, devo certamente reconhecimento fundamental importncia e contribuio de muitas pessoas. Inicialmente, agradeo a meu orientador, Prof. Dr. Manolo Florentino, cujos textos me inspiraram desde a graduao. Dono de uma faculdade rara, seus trabalhos permitem trazer ao presente homens de outros tempos. Sua escrita cheia de vida, por isso a palavra, nele, torna-se inspirao. Agradeo-lhe pela oportunidade de um aprendizado singular. Adriana, primeiro mestre, h tempos amiga, no tenho palavras para retribuir a pacincia, o incentivo e a colaborao. Quanto s tardes infindveis de arquivo, o justo agradecimento a Rosani, Agostinho e Tayrone. Fabola, a voc tambm obrigada. Tambm Lvia, amiga de mestrado, obrigada por atender meus numerosos telefonemas afoitos, em especial, nos domingos noite. justo igualmente agradecer aos alunos e colegas de trabalho com os quais convivi ao longo destes anos de tese e com quem pude discutir de diferentes formas minhas dvidas e descobertas. E por falar em descobertas, meu especial agradecimento ao Babalorix Jorge de Oxsse e sua casa que muito me ensinaram sobre as sobrevivncias africanas no Brasil. Meno imperativa ao Programa de Psgraduao da UFRJ, que me acolheu e estimulou em minha jornada de doutorado, bem como ao CNPq pela concesso da bolsa de pesquisa. Por fim, adianto que as falhas e lacunas so de minha inteira responsabilidade. No tive a pretenso de revelar a verdade ltima, mas, apenas, de sugerir o provvel, a explicao razovel. O presente trabalho fruto de um cruzamento minucioso de fontes, mas afastado da histria seca, fria e impassvel em favor de uma histria vibrante e apaixonada.

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NDICE DE TABELAS

1. 2. 3. 4. 5 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.

Distribuio das fortunas em ris, Vitria, 1800-1830................................... Distribuio das fortunas em libras esterlinas, Vitria, 1809-1830................ Composio das fortunas mdias, Vitria, 1800-1830..................................

42 43 45

Composio dos Inventrios post-mortem inferiores a 2:000$000 Vitria 1800-1830...................................................................................................... 51 Brasil, populao livre e escrava, 1854,1872................................................ Distribuio das fortunas em ris, Comarca de Vitria, 1850-1871.............. 73 87

Distribuio das fortunas em libras esterlinas, Comarca de Vitria, 18501871............................................................................................................... 87 Composio das fortunas, Vitria, 1850-1871............................................... Estimativa da populao total da Capitania do ES, 1790.............................. Populao de cor no Brasil Imprio............................................................... Estrutura de posse de escravos, Vitria, 1800-1830..................................... Procedncia dos escravos, Vitria, 1800-1830............................................. 90 102 119 121 127

Taxa de cativos aparentados, por tamanho de escravaria, Vitria, 18001830 .............................................................................................................. 131 Variao da estrutura de posse de escravos, 1850-1871............................. 155

Variao da taxa de cativos aparentados por tamanho da escravaria, Vitria, 1850-1871......................................................................................... 161

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NDICE DE GRFICOS

1.

Participao de bens econmicos na composio das fortunas mdias, Vitria, 1800-1830....................................................................................... 46 Flutuao da posse de cativos segundo o tamanho da propriedade, Vitria,1800-1829........................................................................................ 58 Tipos de propriedade, Vitria, 1800-1871................................................... 85

2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19.

Distribuio das fortunas em libra esterlina, Vitria, 1800-1830/18501871............................................................................................................. 88 Participao de atividades e bens econmicos na composio das fortunas, Vitria, 1850-1871........................................................................ 90 Distribuio de cativos segundo estrutura de posse, Vitria, 18501871............................................................................................................. 94 Estimativa da distribuio populacional da Capitania do ES, 1790............................................................................................................. 103 Estimativa da distribuio populacional da Vila de Vitria, 1790................ 103

Estimativa sobre o crescimento populacional de Vitria, 17901804............................................................................................................. 104 Estimativa da variao populacional de Vitria, 1790-1804-1817............... 107 Estatstica da distribuio populacional de Vitria, 1818............................ 109

Distribuio da populao livre de Vitria segundo categorias de cor ou origem, 1824................................................................................................ 112 Estimativa do crescimento populacional em Vitria................................... 112

Variao de Posse de escravos, 1850-1871, Vitria................................... 113 Estimativa da distribuio populacional de Vitria segundo a cor, 1824............................................................................................................. 116 Estatstica da distribuio populacional de Vitria segundo a cor, 1827............................................................................................................. 116 Variao da distribuio populacional de Vitria entre livres e escravos.... 118

Percentual de cativos por sexo segundo o tamanho da propriedade, Vitria,1800-1830........................................................................................ 126 Distribuio etria e por sexo dos escravos em Vitria, 1800-1830(Por cem)............................................................................................................. 129

5

20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29.

Distribuio etrio-sexual dos escravos de Torquato Martins de Arajo, 1827............................................................................................................. 134 Distribuio populacional da Provncia do ES............................................. Mapa da populao do ES e Vitria, 1827-1843......................................... Estimativa populacional da Provncia do ES, 1843..................................... Mapa da populao da Provncia do ES, 1843-1856.................................. Mapa estatstico da populao Provncia do ES, 1856............................... Mapa da populao da Provncia do ES, 1843-1856-1861......................... Estimativa do crescimento populacional, 1843-1861.................................. Mapa da populao da Provncia do ES, 1861-1872.................................. Distribuio populacional livres e escravos, 1872.............................................................................................. 142 143 144 146 148 150 151 152

153

30. 31. 32. 33.

Demografia escrava em Vitria, 1850-1871 (por cem)................................ 158 Distribuio etrio-sexual dos escravos de Joo Antnio de Morais, 1852............................................................................................................. 164 Distribuio etrio-sexual dos escravos de Anna Pinto Pereira de Sampaio, 1862............................................................................................ 169 Distribuio etrio-sexual dos escravos de Torquato Martins de Arajo Malta, 1866.................................................................................................. 178

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NDICE DE QUADROS

1. 2.

Mapa da populao da Freguesia de Vitria, 1824..................................... Casamento coletivo, Freguesia de Viana-ES, 1875....................................

111 207

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LISTA DE SIGLASAHU/CU Arquivo Histrico Ultramarino/ Conselho Ultramarino IHGES Instituto Histrico e Geogrfico do Esprito Santo LBCC Livro de Batismo de Cativos da Catedral.

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Quem ateu e viu milagres como eu No cessam de brotar, nem cansam de esperar Sabe que os deuses sem Deus

No cabe na escravido, no cabe no seu no [...] e paira para alm da histria. No cabe em si de tanto sim

E o corao que soberano e que senhor

(Milagres do povo, Caetano Veloso)

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SUMRIORESUMO...........................................................................................................11 ABSTRACT.......................................................................................................12 INTRODUO..................................................................................................13 1. UM PANORAMA DE VITRIA, 1800-1830 .......................................................23 1.1. O cenrio ....................................................................................................... 25 1.2. De volta ao circuito: a nova poltica Portuguesa, 1800-1830......................... 29 1.3. A presena escrava e a produo de alimentos, 1800-1830......................... 39 1.3.1. Sobre as fontes e as fortunas............................................................. 40 1.3.2. Sobre o trfico de escravos.............................................................56

2. VITRIA NA LGICA DO IMPRIO BRASILEIRO 1850-1871........................ 61 2.1. Poltica e escravido ..................................................................................... 63 2.2. De volta Vitria: aspectos polticos e econmicos ...................................... 76 2.3.1. O fim do trfico e a posse cativa em Vitria, 1850-1871 ............................ 84

3. DEMOGRAFIA E ESCRAVIDO, 1800-1830 .................................................. 97 3.1. Sobre a populao de Vitria, 1800-1830 ..................................................... 98 3.2. A demografia escrava nos inventrios post-mortem, 1800-1830 .................121 3.2.1. A razo homem/mulher, a presena africana na composio da escravaria e a distribuio etria..........................................................124 3.2.2. Sobre a relao entre o tamanho da escravaria e o nmero de parentes................................................................................................130

4. AINDA SOBRE DEMOGRAFIA, 1850-1871 ....................................................139

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4.1. Os censos ....................................................................................................141 4.2. A demografia escrava nos inventrios post-mortem, 1850-1871 ................. 154 4.2.1 Algumas histrias: a demografia escrava em grandes plantis......163

5. O N E O NINHO: REFLEXES SOBRE A FAMLIA ESCRAVA .................. 183 5.1. A famlia escrava na historiografia recente................................................... 184 5.2. O n: a famlia escrava nas fontes eclesisticas..................................190 5.2.1. Legislao e escravido no Brasil..............................................192 5.2.2. O regime matrimonial legado Amrica....................................194 5.2.3. O matrimnio nas Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia....................................................................................................201 5.3. O ninho: nas tramas do cotidiano ................................................................ .206 CONCLUSO................................................................................................. 215 REFERNCIAS...............................................................................................219

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RESUMO

A presente tese tem como objeto as relaes familiares entre cativos no Brasil, especificamente na Comarca de Vitria, capital do Esprito Santo, no perodo de 1800 a 1871. Nessa regio, caracterizada por uma economia escravista dedicada produo de gneros para abastecimento do mercado interno, buscou-se caracterizar os tipos de arranjos familiares estabelecidos no seio da comunidade cativa. Os dados obtidos demonstram o distanciamento comercial de Vitria do mercado de escravos. Todos os indcios queda do ndice de masculinidade, forte predomnio de crioulos, alta porcentagem de crianas e laos familiares evidenciam a importncia da reproduo natural na manuteno da escravido capixaba. No pequeno universo da cidade o trfico foi complementar, sendo a famlia a forma fundamental de reposio de escravos, pelo menos desde o final do sculo XVIII. A reproduo natural tornou-se a alternativa mais vivel aos proprietrios do local e tal poltica abriu caminho para a construo de laos familiares estveis no interior dos plantis, permitindo ao cativo construir, inclusive, estruturas sociais para alm daquelas constitudas pelo poder senhorial, ultrapassando os limites das propriedades e envolvendo a sociedade como um todo.

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ABSTRACT

The present thesis has as its subject the kinship relations among captives in Brazil, at the district of Vitria, capital of the Esprito Santo Province, during the years of 1800 to 1871. In the region, marked by a slavery economy dedicated to producing staples to attend the local demand, we tried to bring to the fore the familial arrangements established within the slave community. The data compiled show Vitrias isolation from the countrys main slave markets. All indications, such as the fall in the index of masculinity, the preponderance of crioulos, the high percentage of children and the family ties, evidence the importance of natural reproduction to the sustenance of slavery in Vitria at the time. In the towns small universe the slave trafficking was just incidental, the family being the main form of replacement of the slave stock, at least since the end of the eighteenth century. Natural breeding became the most attractive option to local slaveholders and this strategy opened up the way to the building of stable family ties within the slave community, allowing the captives to erect social structures that not only went beyond the ones dictated by the slaveowners but also stretched out the limits of the owners estate, encompassing the local society as well.

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INTRODUOAo longo das ltimas dcadas a pesquisa histrica sobre o perodo colonial brasileiro sofreu significativas alteraes. Os estudos orientados por

abordagens tericas apriorsticas cederam lugar a extensas investigaes documentais caracterizadas pelo embate cotidiano do trabalho nos arquivos. A utilizao de ampla documentao, sobretudo cartorial, possibilitou a insero de novas dinmicas e agentes sociais no mosaico descritivo da histria do Brasil. Verificou-se, sem dvida, crescimento substancial das pesquisas acerca da vida colonial brasileira e do importante papel da escravido nesse universo. Desde os anos 1980 tem sido grande o esforo de melhor entender no apenas a diversidade poltica-econmica, mas tambm sociocultural do cotidiano brasileiro poca imperial. Na verdade, a maior parte dos trabalhos da tradio historiogrfica anterior aos anos de 19801 versava sobre o perodo colonial por considerar a grande lavoura o bero da sociedade brasileira. interessante perceber que os novos estudos concentraram-se no mesmo tema com o claro objetivo de debater as teses ento vigentes sobre a escravido. Nas fontes primrias, como testamentos, censos, registros notariais e paroquiais, correspondncias oficiais, entre outras tantas, a nova escola realizou um mergulho no cotidiano do Brasil de outrora de modo a ultrapassar aquilo que Schwartz2 chamou to apropriadamente de varanda da casa-grande. Procurou-se, com isso, compreender melhor a sociedade colonial por meio da interlocuo no s com

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Nesse sentido, vlido cita: CARDOSO, F.H. Capitalismo e escravido no Brasil Meridional. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1962; FREYRE, G. Casa Grande e senzala. Origem da famlia patriarcal brasileira. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1987; PRADO Jr. C. Histria Econmica do Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1974;______. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1971, e NOVAIS, F.A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). So Paulo: Hucitec, 1979, entre outros.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. So Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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a camada senhorial, mas tambm e, fundamentalmente, com a dos trabalhadores subalternos e escravos.3 O resultado inicial desse esforo foi a descrio de padres e tendncias que contrariavam certas afirmaes amplamente aceitas sobre a escravido, consolidadas tanto na historiografia quanto no senso comum. As noes sobre famlia, nvel tcnico, produtividade, violncia, entre outras tantas admitidas tradicionalmente, foram colocadas em xeque pelas novas pesquisas empricas, demandando um nmero cada vez maior de investigaes para a explicao desses resultados. A dimenso dada escravido por essa ordem de estudos apresentou o escravo como um dos principais personagens na definio de seu destino.4 As estratgias escravas de luta, desde as de carter coletivo, como os quilombos e as revoltas, at as individuais, como a famlia e a alforria, tornaram-se os objetos prioritrios de reflexo por parte dos historiadores. Um novo corpo conceitual emergiu gradualmente, redefinindo o escravo como um sujeito social capaz de posicionar-se diante da dominao senhorial, alterando ou influenciando o devir. A frica, terra natal dos escravos, passou a ser reconsiderada no s do ponto de vista geogrfico e poltico, mas tambm em relao aos mecanismos de (re)produo de cativos em seu territrio e de transplante de sua cultura para a Amrica.5

Cf. REIS J.J. (Org.) Escravido & inveno da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1988. FLORENTINO, M. E GES, J. R. A paz das senzalas. Famlias escravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro, c.1790 c.1850. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997. MATTOS, Hebe M. Das cores do silncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, sc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FARIA, Sheila. de C. A colnia em movimento: fortuna e famlia no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SLENES, Robert W.. Na senzala uma flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia escrava, Sudeste, sc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. KARASCH, M.C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. So Paulo: Cia das Letras, 2000. Entre outros.4

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Essa dimenso diametralmente oposta quela colocada pela escola anterior, que considerava o escravo como um ser absolutamente passivo, espelhando apenas a vontade senhorial, ou rebelde, quando os senhores ultrapassavam os limites convencionais de violncia.

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Nesse sentido Cf. CAMPOS, A. P. e SILVA, GILVAN V (Orgs.). Da frica ao Brasil: itinerrios histricos da cultura negra.Vitria: Flor&cultura, 2007.

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Do ponto de vista historiogrfico, o crescente interesse pela diversidade que caracterizou o perodo colonial brasileiro apresenta-se nas vrias pesquisas que, para alm do eixo do Rio de Janeiro, passaram a incorporar, paulatinamente, regies consideradas perifricas, como o Rio Grande do Sul e o interior de Minas Gerais.6 No que diz respeito ao Esprito Santo, todavia, dispe-se de poucas informaes sobre sua histria colonial e at mesmo do comeo do sculo dezenove. Nossa inteno, portanto, observar a multiplicidade da experincia local, em termos de possibilidades de reconstituir, ao menos em parte, a complexa rede de estratgias pessoais que acabaram atenuadas e mesmo esquecidas nas anlises macro-histricas, destacando, portanto, as formas de sociabilidade que caracterizam o cotidiano capixaba da poca7. Buscamos, dessa forma, acompanhar a nova dimenso dada s relaes existentes entre os cativos, elegendo como objeto a famlia escrava, enfocando-a, todavia, num lugarejo comum. Afastada do furor da Corte e do eixo econmico central, mas nem por isso deslocada da sociedade colonial complexa na qual estava inserida, a Comarca de Vitria no permaneceu alheia s transformaes por que passou a colnia desde a chegada da famlia real at a constituio do imprio brasileiro. Nessa perspectiva, as referncias historiogrficas escolhidas para direcionar o trabalho aqui proposto orientaram-se pelo esforo de demonstrar a existncia de uma dinmica no desenvolvimento das atividades econmicas brasileiras e que no se encontrava ditada somente pelo exclusivo metropolitano. Logo, abandonando a nfase no processo de consolidao do Estado moderno a partir de um modelo centro-periferia que omitia as interaes entre os distintos agentes em contextos circunscritos, optamos por um enfoque mais localizado que em funo de exigncias metodolgicas , procura identificar a

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Cf. FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVA, Maria de Ftima (Orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVII-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001.

Neste sentido, ver LEVI, Giovanni. A herana imaterial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.

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instncias de ordem e abrangncia diversas e reconstituir a natureza de suas relaes.8 Na verdade, possvel afirmar de antemo que, a partir do sculo dezoito, cresceu a importncia de Vitria na geopoltica do Imprio Luso devido a sua ligao com a regio das Minas Gerais. A documentao do Conselho Ultramarino mostra que, no caso do Esprito Santo, sua localizao estratgica e a vulnerabilidade da baa de Vitria, principal entrada por mar em direo s minas, fizeram crescer as preocupaes da Coroa com a possibilidade de desembarque de corsrios em busca do ouro. Isso implicou na necessidade de reforar a defesa do territrio como tentativa de evitar descaminhos do precioso mineral que se explorava no interior da colnia. 9 Durante o Dezoito, perodo de militarizao da Vila de Vitria, assistiu-se construo de um dogma da administrao portuguesa no Brasil, consubstanciada na seguinte afirmativa do Conselho Ultramarino: quanto mais caminho houver, mais descaminho haver. Com esse entendimento, vinham ordens rigorosas da Bahia para a construo de novas fortificaes em Vitria, alm de reformas nas j existentes.10 Ao longo de todo o perodo, a Capitania permaneceu como uma colnia dentro da colnia - subordinada ora ao Rio de Janeiro, ora Bahia e, sempre, Coroa. Possivelmente, tambm por essa razo, Vitria foi afastada do movimento comercial com o exterior, sendo permitido atracar nos cais da ilha apenas embarcaes que faziam as rotas costeiras entre as capitanias prximas. O fato que o exame das fontes apresenta uma dinmica na economia local em torno de alternativas conservao da propriedade cativa, alm da organizao de uma produo de alimentos maior do que as necessidades bsicas do lugar. Sem ser extraordinrio, o desenvolvimento da produo local criava a necessidade do emprego de uma mo-de-obra

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REVEL, J. Microanlise e construo do social In:______. (Org.). Jogos de escala: a experincia da microanlise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 20-22. CONSELHO ULTRAMARINO/BRASIL. Projeto Resgate de documentao histrica Baro de Rio Branco. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do ES (1582-1822). Rio de Janeiro: LPC Data Imagem, 2000, 2 Cd-rom. Relatrios de 06/06/1726; 22/01/1727, entre outros documentos. CONSELHO ULTRAMARINO/BRASIL. 2000. Relatrios de 06/06/1726; 22/01/1727, entre outros documentos.

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significativa e criava um ambiente social, como indicam as fontes, favorvel constituio de famlias em cativeiro. Partimos, portanto, da premissa amplamente aceita e comprovada da existncia de famlias escravas no Brasil.11 Nosso propsito principal caracterizar os tipos de arranjos familiares estabelecidos no seio da comunidade cativa, no perodo que se estende de 1800 a 1871, na regio abrangida pela capital do Esprito Santo. Acreditamos que a escravido estudada nesta regio, que se distingue por situar-se margem das grandes regies agro-exportadoras coloniais brasileiras, apresenta-se como uma oportunidade para verificar a existncia das famlias escravas para alm das plantations, em pequenas propriedades e nos diversos grupos compostos por escravos especializados ou dedicados prestao de servios urbanos. Para enfrentar o desafio de compreender as idiossincrasias da sociedade do Esprito Santo em geral e de suas escravarias, em particular, a pesquisa busca apresentar um perfil das escravarias capixabas, bem como uma caracterizao scio-econmica dos proprietrios locais e da riqueza produzida na regio durante o perodo de 1800 a 1871. A inquirio contou, inicialmente, com documentao primria de natureza privada tal como inventrios, testamentos anexos, livros de registro de batismos, casamentos e bitos. Os inventrios e testamentos anexos fazem parte da documentao do Arquivo do Poder Judicirio do Esprito Santo. importante destacar que, por informarem o universo material existente na regio no perodo em tela, tais fontes formam o principal corpo documental da pesquisa. Por meio do cruzamento dos dados oferecidos pelos inventrios com os apresentados nos testamentos, reconstrumos o emaranhado de relaes pessoais que caracterizavam o cotidiano escravista de Vitria para, nele, encontrarmos as famlias escravas. Vale salientar que os inventrios, tanto quanto os testamentos, apresentam limitaes como fonte de informaes relacionadas

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Duas obras so consideradas basilares na nova discusso em torno da famlia escrava: FLORENTINO, M. E GES, J. R. A paz das senzalas. Famlias escravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro, c.1790 c.1850. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997 e SLENES, Robert W. Na senzala uma flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia escrava, Sudeste, sc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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s famlias cativas. verdade que alguns inventrios chamam ateno pelo rigor na anotao das caractersticas conhecidas dos escravos e relevantes para o mercado. Outros, no entanto, pecam pela economia de palavras, deixando lacunas em elementos-chave avaliao dos cativos, como, por exemplo, a idade. Essas dificuldades das fontes cartoriais colaboraram com a tese de que os laos familiares cativos no se restringiam apenas aos mencionados por elas, uma vez que informaes como primos, tios e avs so raros ou inexistentes. Por isso, revelou-se to valioso o cruzamento com os dados eclesisticos. O segundo corpo documental utilizado foram os livros de batismo, casamento e bito da Cria Metropolitana de Vitria. Por meio dessa documentao buscamos auferir com maior segurana a procedncia dos cativos de Vitria, bem como a rede de relaes familiares e sociais indicadas por tais registros. Assim, abandonando a anlise pautada exclusivamente em inventrios postmortem, procuramos, a partir das fontes eclesisticas, elucidar os mecanismos legais de associao existentes entre cativos para a formao de famlias e redes de parentesco.12

Afinal, o parentesco consangneo estabelece, como

sabido, a primeira e fundamental relao social a ligao entre me e filho e dela derivam-se as relaes advindas de uma eventual figura paterna. Como bem destacou Louis Henry13, as fontes paroquiais so documentos de primeira ordem para o estudo da demografia do passado. Por intermdio de tal corpus, buscamos mapear a configurao social favorecida pelo tempo de convvio, permitindo a constituio de laos de solidariedade presentes na partilha de rituais, de smbolos e de parentesco.14 Somando-se a tais fontes, utilizamos ainda os Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Esprito Santo (Conselho Ultramarino), os

Documentos Coloniais Impressos e relatos de viajantes. O conjunto de

12

Cf. NADALIN, S. O. Histria e demografia: elementos para um dilogo. Campinas: ABEP, 2004.

13

HENRY, L. Une richesse dmographique em friche: les registres paroussiaux. Population. Vol.2, Frana:1953, p.281. Cf. FLORENTINO, M. (Org.). Trfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, sc. XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.

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documentos produzidos pela burocracia possibilitou traar um panorama do cotidiano em Vitria, viabilizando a identificao de uma rede de informaes que forneceram melhor percepo do espao material e social em estudo, permitindo mapear os grupos que compunham o cenrio da Capital ao longo do perodo colonial e do sculo XIX15. Alm de tais relatos, os dados apresentados pelas estatsticas nos Relatrios de Governo e no Censo Geral de 1872 viabilizaram um mapeamento demogrfico razovel sobre o perodo em discusso. Considerando a base documental apresentada, partimos da perspectiva metodolgica proposta por Revel16 no que se refere escala de observao. No se trata, portanto, da escolha entre escalas diferentes, adequadas a esse ou aquele fenmeno ou processo singular. Segundo ele, o emprego de escalas redefine as caractersticas do prprio fenmeno, qualquer que seja posto que todos supem interaes especficas entre agentes capazes de mobilizar estratgias que lhes sejam compatveis. Mais do que isso, tais escolhas estratgicas redefinem o processo, entendido como a inter-relao entre diferentes contextos em permanente mutao.17 Para tanto, torna-se imprescindvel, seguindo o postulado de Revel, enfocar o processo histrico local. No nosso caso, ainda no contexto da colnia, buscamos formular hipteses a partir dos elementos constitutivos e das variaes conjunturais prprias da regio, muitas vezes desprezadas nas

15 16

Cf. OLIVEIRA, J. Teixeira de. Histria do Esprito Santo. Vitria: s/e, 1975.

A proposta de Revel apresenta-se como uma alternativa no interior do debate sobre a micro-historia e deve ser entendida como um avano em relao mesma, no sentido de que estabelece as conexes entre o micro e o macro de forma integrada, abolindo a falsa oposio entre o local e o central.

De fato, embora implcita em qualquer anlise que procure singularizar algum fenmeno social, isso apenas possvel a partir de deslocamentos metafricos que imputam s categorias de anlise a capacidade de agir (v. g. Estado, mercado, classe etc.), j que a categoria de contexto no pode ser dissociada da categoria a fim de escolha (estratgica). E, nesse sentido, apenas pessoas escolhem e agem em funo dessas escolhas. Com isso no se pretende cair na iluso de que a sociedade a soma das aes individuais; mas consideramos que as pessoas recorrem a um leque bastante variado de identidades, ou papis, no decurso de suas vidas. De certa forma, aquelas categorias sociolgicas no passariam da abstrao dessas identidades, elas mesmas, por sua vez, constitudas historicamente (REVEL, 1998, p. 26-27).

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anlises que utilizam como parmetros apenas os elementos hegemnicos do cenrio colonial brasileiro. Esse enfoque no particular est em alinho com as atuais produes historiogrficas, como destacou Jacques Revel18:A escolha do individual no vista como contraditria do social: ela deve tornar possvel uma abordagem diferente deste, ao acompanhar o fio de um destino particular de um homem, de um grupo de homens e, com ele, a multiplicidade dos espaos e dos tempos, a meada das relaes nas quais ele se inscreve.[...] No mais abstrair, mas, num primeiro momento, enriquecer o real, se assim o desejar, levando em considerao os aspectos mais diversificados da experincia social.

Sob esse prisma, procuramos, ao longo do presente estudo, investigar os vrios contextos interdependentes que caracterizaram Vitria no perodo de 1800 a 1871. Mais que apenas a busca pelas categorias gerais, objetivamos compreender como a renovao de mo-de-obra cativa via natalidade influiu no perfil da famlia escrava na regio e quais as redes de relaes que se sobrepunham na constituio de tal mecanismo de agregao por parte tanto de escravos quanto de senhores. Tendo em vista tais objetivos, caracterizamos, inicialmente, a regio abrangida pela Comarca de Vitria19 no perodo que se estende de 1800 a 1830, destacando os aspectos relacionados a estrutura de negcios, constituio de fortunas e trfico de escravos na regio. A seguir, apresentamos Vitria na lgica do Imprio brasileiro, enfocando, portanto, o perodo de 1850-1871. Afinal, entendemos que discutir a escravido no Esprito Santo passa por compreender em que medida as mudanas no

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REVEL, 1998, p. 21-22.

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At o incio do sculo XIX s existia uma Comarca na Capitania do Esprito Santo, Vitria. Em 1835, a Assemblia Legislativa Provincial aumentou para trs o nmero de Comarcas: Vitria, So Mateus e Itapemirim. Desde ento, a Comarca de Vitria passou a reunir sob sua jurisdio os municpios de Vitria, Esprito Santo (atual Vila Velha), Vianna e Serra, bem como suas respectivas freguesias.

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cenrio nacional ao longo do sculo XIX repercutiram localmente. Se por lado estamos analisando uma regio que pouco influenciou o cenrio geral, por outro, temos que considerar o quanto este cenrio atingiu e moldou os contornos dessa pequena sociedade. Na continuao, dedicamo-nos s questes demogrficas da regio no perodo de 1800 a 1830. Para tanto, buscamos descrever a paisagem humana de Vitria, discutindo a importncia escrava na composio das fortunas, mapeando a relao entre trfico e famlia escrava, a razo homem/mulher e a presena africana, alm da relao entre o tamanho das escravarias e o nmero de parentes. Adiante, retomamos a questo da demografia, mas j na segunda metade do Dezenove, procurando analisar as conseqncias do fim do trfico para a famlia escrava em Vitria, bem como os padres de casamentos no perodo ps-trfico e a relao entre o tamanho das escravarias e o parentesco num contexto de alterao de eixo econmico de Vitria para a regio do Itapemirim. Ao final, voltamos nossa ateno aos laos legais que viabilizaram a constituio formal de famlias cativas no Brasil o dito n por meio de um estudo detalhado sobre a Legislao Catlica vigente na colnia e, mais tarde, no Imprio, acerca da aplicao dos sacramentos aos escravos. J o que designamos ninho, nascido do cruzamento das vrias fontes eclesisticas, indica os contornos das famlias escravas capixabas e suas respectivas redes relacionais. De fato, desde o incio de nossas pesquisas, estamos convencidos desse duplo papel da famlia escrava: a de ser tanto n quanto ninho. Essencial tanto aos livres quanto aos escravos, famlia, como bem definiu Sheila Faria20, configurava-se ponto de convergncia de todos os aspectos da vida cotidiana, privada ou pblica. Enredada nos ns da burocracia, se avaliada do ponto de vista legal e catlico-cristo, constitua-se ela, porm, ao mesmo tempo, o

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FARIA, S. de C. A colnia em movimento: fortuna e famlia no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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ninho, o abrigo, a proteo, num mundo duro e hostil. A famlia cativa estava, de fato, sujeita regra, mas tambm ao desejo. Era em seu seio que se viabilizava a construo de sociabilidades dentro e fora do cativeiro, a preservao de memrias, de ritos e identidades, assim como a prtica da fraternidade, da ajuda mtua ou, enfim, de todos os laos que definiam o cotidiano de seus membros.

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CAPTULO 1. UM PANORAMA DE VITRIA, 1800-1830

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Os ltimos trinta anos testemunharam um boom na literatura de cunho histrico sobre a escravido brasileira que propiciou conhecimento mais aprofundado das experincias dos grupos sociais abrigados sob esse regime. Tem-se, entretanto, a impresso de que os estudos referentes ao estado do Esprito Santo no acompanharam tal processo no mesmo ritmo. Verifica-se, com efeito, grande carncia de investigaes sobre a escravido capixaba que possam tornar mais seguro o trabalho de anlise do fenmeno. A produo cientfica a respeito do assunto seja ela de carter histrico, demogrfico ou sociolgico ainda se mostra tmida.21 Como se pode ignorar o fato gritante de que na populao da antiga Comarca de Nossa Senhora da Vitria os escravos representassem praticamente dois teros dos habitantes locais s vsperas do Oitocentos? O que justificava tal concentrao? De onde provinha o capital necessrio a tal empresa? De que modo se viabilizava ali a presena de tantos cativos? Apesar do porte dessa lacuna na histria do Esprito Santo, entendemos haver a possibilidade de atenu-la, ao menos em parte. Os parcos, mas competentes, trabalhos realizados sobre o tema nos fornecem uma dimenso peculiar da escravido nesse quadrante da colnia. Se os nmeros referentes posse de escravos so modestos quando comparados ao padro dos senhores de engenho do Recncavo baiano, das plantations cariocas ou das fazendas de caf de So Paulo, as mdias, contudo, esto prximas das encontradas em outras reas do territrio colonial dedicadas majoritariamente agricultura de alimentos, como era prprio do Esprito Santo poca. Nessas condies, busca-se, no que segue, traar-se um perfil geral da Comarca de Vitria no perodo que se estende de 1800 a 1830 a fim de remeter o leitor a nosso local de estudo.

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Veja-se, no entanto, alguns trabalhos com a temtica: ALMADA, Vilma P. F. de. Escravismo e transio: o Esprito Santo (1850-1888). Rio de Janeiro, Graal, 1984, bem como CAMPOS, Adriana P. Nas barras dos tribunais: Direito e escravido no Esprito Santo do sculo XIX. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

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1.1. O CENRIONa parte alta da ilha onde hoje se situa a cidade de Vitria ficava a Vila de Nossa Senhora da Vitria, Capital da Capitania do Esprito Santo e Cabea da Comarca no incio do sculo dezenove. Espremida entre as montanhas e o mar, a localidade era uma tpica vila colonial portuguesa construda seguindo o relevo das encostas, como tantas outras povoaes litorneas do Brasil Colnia. O naturalista Saint-Hilaire assim a descreveu em jornada Provncia do Esprito Santo:A Vila de Vitria, como vimos, foi construda a sudoeste da grande ilha chamada outrora Duarte Lemos, e do lado ocidental da baa; ocupa o dorso de uma colina pouco elevada; apoiada ao monte de forma variada, pitoresca e coberta de florestas, entre as quais se mostram rochedos nus.[...] As ruas de Vitria so caladas, porm o mal; tm pouca largura no apresentando qualquer regularidade.22

Tambm o bispo do Rio de Janeiro, D. Jos Caetano, quando de uma de suas visitas Capitania do Esprito Santo, observou no tocante localizao da Capital:[A] vila [de Vitria] das mais antigas do Brasil, e agradavelmente situada em anfiteatro no declive do monte, e fronteira a uma funda baa, que vai fazer barra segura e excelente na distncia de uma lgua debaixo de Piratininga.23

Como indicam as narrativas dos visitantes, no desenho urbano irregular de Vitria, ao longo das encostas, destacam-se as ruas estreitas, em grande parte sem calamento, sobretudo ladeiras que, em poca de chuva, ficavam quase

SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Esprito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia/ USP, 1974, p.45. COUTINHO, D. Jos Caetano da S. O Esprito Santo em princpios do sculo XIX: apontamentos feitos pelo bispo do Rio de Janeiro quando de sua visita Capitania do Esprito Santo nos anos de 1812 e 1819. Vitria: Estao Capixaba Cultural, 2002, p.124.23

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intransitveis. Ladeiras e ruas onde nasceram histrias. Cenrios onde viviam pessoas, cujas casas, naquele tempo, eram contadas como fogos. No plano central da Comarca situava-se a Igreja Matriz e, ao norte, a alguns metros, a Capela de Santa Luzia, acompanhada pelo Convento dos Franciscanos, tendo frente Igreja de Santiago. Em seguida, o antigo Colgio dos Jesutas, ento Pao do Governo, constitua-se ponto estratgico de onde se avistava toda a baa, o cais e os trapiches, as oscilaes da mar em seu eterno movimento, o lameiral dos mangues freqentados por caranguejos e a Casa de Misericrdia. Ao longe, as ilhas da Fumaa e de Santa Maria e o Forte So Joo, redondo, com seus canhes frreos. A posio privilegiada do Palcio do Governo no escapou ao olhar arguto do naturalista francs, que registrou:O mais belo adorno da Capital do Esprito Santo , sem contestao, o antigo convento dos jesutas, hoje Palcio do Governo, situado no extremo da cidade. Edifcio de um andar quase quadrado, tendo num dos lados vista para o mar, e a fachada voltada para a cidade, dando sobre pequena praa [...]. Diante da parte que d para o mar, h uma espcie de terrao coberto de grama, ao qual se chegava, vindo da baa, por uma escadaria ladeada por duas filas de palmeiras.24

Uma leitura dos inventrios do perodo mostra que, apesar de muitos moradores possurem negcios fora da Vila, sobretudo atividades ligadas produo agrcola que se estendia ao longo da costa, grande parte deles residia prximo ao largo da Matriz, ou na Rua das Flores, na Rua do Fogo ou na Ladeira do Pelourinho. Outros viviam nas proximidades da Capela de Santa Luzia, cujo acesso se dava por meio de rampas e degraus de pedra. Alguns se assentavam nas proximidades da Igreja do Rosrio, na Rua Pernambucana ou, ento, nas ruas do Mercado e da Alfndega, onde aportavam canoas e lanchas que penetravam a baa para embarcar ou descarregar mercadorias e passageiros. Prxima Prainha, como era conhecido o lugar, ficava a ladeira

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SAINT-HILAIRE, 1974, p. 46.

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de acesso ao Forte So Diogo, aos fundos da Matriz, Casa do Pao e do Governo. Nessas passagens sobressaam os edifcios pblicos e as casas de estuque e telha, pintadas de cal, trreas ou assobradadas, com rtulas e varandas de madeira. Sobre os aspectos gerais da Vila e sua ocupao pelos moradores, afirmou ainda Saint-Hilaire:Aqui, entretanto, no se vem casas abandonadas ou semiabandonadas, como a maioria das cidades de Minas Gerais. Dedicados agricultura, ou a um comrcio regularmente estabelecido, os habitantes da Vila de Vitria no esto sujeitos aos mesmos reveses dos cavadores de ouro e no tm motivos para abandonar sua terra natal. Cuidam bem de preparar e embelezar suas casas. Considervel nmero delas tem um ou dois andares. Algumas tm janelas com vidraas e lindas varandas trabalhadas na Europa. A Vila de Vitria no tem cais; ora as casas se estendem at a baa, ora se v, na praia, terrenos sem construo, que tem sido reservado ao embarque de mercadorias.25

Vitria - principal ncleo urbano da Provncia do Esprito Santo e sede administrativa colonial - apresentava uma rede variada de servios e ocupaes burocrticas. Concentrava a maior parte das vendas, em grandes e pequenas casas de comrcio espalhadas por toda a regio, num mundo marcado pela especificidade rural circundante e especializado na produo de alguns artigos bsicos. Os estoques dessas casas de comrcio, no obstante, apresentavam rico sortimento, incluindo tecidos, algumas vezes roupas prontas, bem como enfeites, cadaros, rendas, utenslios de cama e mesa, alm de ferramentas, adornos e artigos de papelaria. Na Vila encontrava-se tambm a maior parte dos trabalhadores especializados, muitos deles escravos, exercendo as funes mais diversas como pedreiros, carpinteiros, sapateiros, mestres de ofcios, alfaiates, marinheiros, quituteiras, passadeiras e lavadeiras.

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SAINT-HILAIRE, 1974, p. 45.

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Assim era Vitria, cercada por fazendas de cana, algodo, milho, arroz, mandioca e outras culturas menores, construda no cotidiano por uma populao pequena e diferenciada, abarcando proprietrios, senhores, missionrios, soldados, brancos, negros, mulatos, pardos, crioulos, livres, escravos ou libertos. Uma Vitria tecida sob expectativas as mais distintas, refletindo, em escala reduzida, a contradio de fundo do cenrio colonial brasileiro, a saber: uma sociedade hierarquizada e excludente que dependia da mo-de-obra escrava para se perpetuar no poder.26 Marcada estava Vitria, portanto, assim como o restante do vasto territrio colonial em que se inseria, pelo convvio e o conflito latente entre desiguais. Como as demais povoaes brasileiras da poca, uma massa de escravos concentrava-se em Vitria, fenmeno inerente a uma sociedade apoiada basicamente na economia escravista.27 Espalhados por todos os locais e a qualquer hora do dia - nos mercados, na alfndega, nos trapiches, pelas ruas e no interior das igrejas e das casas -, os cativos eram parte fundamental na vida cotidiana da comarca. Se, por um lado, assumiam papel indispensvel no diaa-dia da Vila e em toda a sua organizao econmica, por outro, poderiam representar, em certas situaes, uma ameaa silenciosa. Afinal, em virtude do carter peculiar da escravido urbana que floresceu em Vitria, os escravos passavam grande parte do tempo longe do controle de seus senhores, sem um feitor que vigiasse seus passos, trabalhando nas ruas ou a domiclio, ou seja, circulando livremente pelo espao urbano da cidade.28

26

Cf. FRAGOSO, Joo L. Homens de grossa aventura. Acumulao e hierarquia na praa mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1998.

Cf. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. So Paulo: Cia das Letras, 2000, e MATTOSO, Ktia M. Q. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.28

27

ELTON, 1987, p.34.

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1.2. DE VOLTA AO CIRCUITO: PORTUGUESA, 1800-1830

A

NOVA

POLTICA

O sculo XVIII, perodo de isolamento e militarizao da Vila de Vitria, refletiu a materializao de um dogma da administrao portuguesa no Brasil, expresso na seguinte mxima do Conselho Ultramarino: Quanto mais caminho houver, mais descaminho haver. Segundo a perspectiva metropolitana, a Provncia do Esprito Santo deveria exercer o papel estratgico de defesa das Gerais, ficando expressamente proibidas quaisquer entradas por suas terras ou guas em direo quelas regies. Com esse entendimento, vinham ordens rigorosas da Bahia para a construo de novas fortificaes em Vitria, alm de reformas nas j existentes.29 Ao longo de todo o perodo, a Capitania permaneceu como uma colnia dentro da colnia - subordinada ora ao Rio de Janeiro, ora Bahia e, sempre, Coroa. Vitria viu-se, assim, afastada do movimento comercial com o exterior, sendo permitido atracar nos cais da ilha apenas embarcaes que percorressem as rotas costeiras entre as capitanias prximas. O alvorecer do sculo XIX marca um novo momento na relao entre a elite local, j acostumada a certo grau de autonomia, e os mandatrios do Imprio. O governo de Silva Pontes (1800-1804), sobre quem falaremos mais a seguir, foi decisivo para tanto ao iniciar um caminho de independncia em relao Bahia, deixando a Capitania submetida apenas Coroa. Novos acordos,

negociados entre as elites locais e os representantes reais, foram postos em movimento, primeiramente por Silva Pontes e, aps, por seus sucessores, Manoel Tovar (1804-1811) e Francisco Rubim (1812-1819). Esse processo marcou o fim do isolamento capixaba, principalmente por meio da abertura de novos caminhos e vias oficiais rumo ao interior, com seus respectivos fiscos e quartis, como forma de evitar os ditos descaminhos, sobretudo aqueles dominados pela ao de contrabandistas e invasores. Nesse contexto, inscreve-se o projeto de abertura de vias de comunicao com Minas Gerais -

29

Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do ES (1582-1822). AHU/CU. Relatrios de 06/06/1726; 22/01/1727, entre outros documentos.

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sobretudo pelo Rio Doce o povoamento da regio interiorana e a construo de quartis estratgicos, alm da criao de um corpo burocrtico encarregado de controlar a poltica local. No dia 29 de maro de 1800, um novo governador da Capitania tomava posse.30 Antnio Pires Silva Pontes Paes Leme e Camargo, ou apenas Silva Pontes, como ficaria conhecido, acabara de chegar da Cidade de Salvador. Natural de Mariana, Capito de Fragata, Doutor em Matemtica pela Universidade de Coimbra, Lente da Academia de Marinha de Lisboa, gegrafo experimentado em misso de relevo no Brasil, condecorado com o Hbito de Aviz, Membro da Comisso de Limites,31 trazia consigo importantes recomendaes da metrpole lusitana em relao ao Esprito Santo. Uma vez estabelecido, Silva Pontes dedicou-se a soluo das fugas generalizadas de cativos que se repetiam j h algum tempo nos arrabaldes da Capital. Contornado o problema escravo e consciente da necessidade de reforar o poderio militar do governo, imprescindvel preservao da ordem por ele resgatada, o Governador passou ento a dedicar-se misso para a qual foi enviado: o estabelecimento de vias de comunicao entre o Esprito Santo e Minas Gerais, tendo sido especialmente recomendada a abertura da navegao do Rio Doce.32 Centrado nesse objetivo, o governador Silva Pontes agiu com presteza inusitada. Pouco mais de seis meses aps sua posse, j escrevia ele ao Conde de Linhares comunicando a grandiosidade da obra de navegao entre Minas Gerais e o Esprito Santo pelas guas do Rio Doce. Em carta de 10 de setembro de 1800, Silva Pontes afirma em relao a tal iniciativa que [...] os nossos descuidos nacionais, [foram] reparados agora pela vasta compreenso do Prncipe Nosso Senhor e pela atividade incansvel do Ministro da Repartio Sr. Dom Rodrigo [...]. 33

30 31

AHU/CU. Carta do Governador Silva Pontes ao Conde de Linhares, 20/05/1800.

OLIVEIRA, J. Teixeira de. Histria do Esprito Santo. Vitria: Fundo Editorial do ES, 1975, p. 244.32 33

AHU/CU, 10/09/1800. AHU/CU. Carta do Governador Silva Pontes ao Conde de Linhares, 10/09/1800.

31

Ao incio de outubro daquele mesmo ano, j estavam demarcados os limites entre a Capitania do Esprito Santo e de Minas Gerais. Os passos seguintes envolveram a definio das jurisdies fiscais das duas Capitanias para a cobrana de impostos e a instalao de destacamentos militares ao longo da via.34 Em novembro, Silva Pontes instituiu o Corpo de Pedestres, composto principalmente de mestios e somando 256 praas exercitados em artilharia de campanha e de costa,35 dobrando assim o nmero de soldados a servio do governo. A eles caberia no s a vigilncia das vias, para evitar o contrabando, como tambm a preservao da segurana e o controle social. Em diversas de suas cartas, Silva Pontes reafirmaria sua inteno de realizar a navegao direta entre o Esprito Santo e o Reino, o que beneficiaria Minas Gerais, dada a comodidade para a entrada de gneros da Europa, destacando ele, certa feita, que dessa forma [...] se evitaria a fadiga de os esperar pelo Rio de Janeiro.36 A preocupao de Silva Pontes com a navegao do Rio Doce, alm da influncia de Dom Rodrigo na execuo de tal projeto, foi descrita por SaintHilaire nos seguintes termos:Em princpios deste sculo, o matemtico Antnio Pires da Silva Pontes Leme fora nomeado Capito-mor da Provncia do Esprito Santo, por proteo de Dom Rodrigo, Conde de Linhares. [...] o Rio Doce foi explorado de maneira mais regular pelo Governador Pontes, que apesar de suas extravagncias, prestou ao Brasil, sua ptria, relevantes servios com seus sbios trabalhos. Pontes afrontou todos os perigos, subiu o Rio Doce e comeou o mapa desse rio. [...] O Ministro de Estado Dom Rodrigo Coutinho, tinha muita instruo e imaginao muito ardente, para deixar de se interessar pela utilidade que podia existir no comrcio com a Provncia de Minas Gerais e o do litoral do Rio Doce, tornado afinal navegvel. Assim, fez

34 35 36

AHU/CU, 08/10/1800. AHU/CU, 05/11/1800. AHU/CU, 10/11/1800.

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esforos para afastar muitos obstculos que se opunham a que se subisse esse rio.37

Entre 1800 e 1804, mais de trinta correspondncias oficiais endereadas Lisboa, Queluz e Bahia demonstram o intercmbio regular entre o governador Silva Pontes e as autoridades metropolitanas, informando-as a respeito das decises tomadas, consultando-as sobre diversas questes ou prestando relatrio de atividades desenvolvidas. Em sua pr-memria, Silva Pontes fez um balano de seu governo, onde destacou a importncia da abertura do Rio Doce e a necessidade de povoamento da regio interiorana da Capitania.38 O governo Silva Pontes, portanto, viria inaugurar um perodo de importantes transformaes na Vila de Nossa Senhora da Vitria que, ao longo do sculo XIX, criariam novas perspectivas de desenvolvimento para o Esprito Santo. O projeto de abertura de vias de comunicao com Minas Gerais, assim como o povoamento das reas desabitadas e a construo de quartis estratgicos, tiveram continuidade nos governos subseqentes - Tovar e Rubim - pois s assim seria possvel garantir-se a eficcia dos caminhos oficiais como forma de neutralizarem-se os temidos descaminhos. Em dezembro de 1804, Silva Pontes deixa o Governo do Esprito Santo, retirando-se para o Rio de Janeiro, aonde viria falecer cinco meses depois. Em seu lugar assume, em 17 de dezembro do mesmo ano, Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, Fidalgo da Casa Real e Major de Cavalaria.39 Dono de temperamento impetuoso, a administrao de Tovar foi marcada por diversos incidentes. Seu governo estendeu-se at 1811, procurando dar continuidade ao projeto iniciado pelo antecessor. Isso o que evidencia sua primeira carta ao ento Secretrio de Estado da Marinha e Ultramar, Joo Rodrigues de S e Melo, o Visconde de Andia, onde comentou o Governador: certo Exmo. Senhor que s com uma penada da Real Determinao de fazer idntica a Comarca com a Capitania,

37 38 39

SAINT-HILAIRE, 1974, p.11-92 passim. ACH/CU, 25/08/1802. AHU/CU, 20/04/1804.

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pode a navegao direta com o Reino ter o maior acrscimo a benefcio destes povos e da Capitania de Minas Gerais.40

Tovar descreveu ainda os vrios portos capixabas capazes de receber as embarcaes vindas da Europa, em particular Benevente, Guarapari, Vila Velha e Vitria, destacando que esse ltimo teria condies de receber de treze a quatorze navios grandes. Na mesma carta solicita ele, inclusive, o envio de vinte ou trinta casais de Ilhus para povoar o Rio Doce, [...] como tambm a franqueza de conceder sesmaria em suas margens.41 Em outras cartas enviadas Metrpole, Tovar, a pedido do Corpo de Comrcio de Vitria, insistiria nos imensos benefcios, para os homens de negcio da Vila de Vitria, derivados do comrcio direto com o Reino, destacando o interesse da Real Fazenda da Capitania na realizao de tal objetivo.42 Alm da preocupao com o Rio Doce e com o estabelecimento do comrcio direto com a Europa, o governador mostrou-se tambm interessado em fortalecer o aparato militar da Capitania, recebendo, por Decreto de quatro de junho de 1807, o posto de Coronel Comandante do Regimento de Infantaria de Milcia.43 A transferncia da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808, vem facilitar ainda mais o acesso ao real gabinete por parte do governo da Capitania, deflagrando um perodo de frtil intercmbio de correspondncias entre ambas as instncias. Um importante episdio diz respeito solicitao de Tovar para o envio de um ajudante e um secretrio administrativos. Em resposta, a carta rgia de 29 de maio de 1809 criou a Junta da Administrao e Arrecadao da Real Fazenda, alm de extinguir a Provedoria, subordinada Junta sediada na Cidade de Salvador.44 O Governo Tovar finalizaria o projeto, iniciado por Silva Pontes, de independncia do Esprito Santo em relao Bahia, desfazendo os ltimos

40 41 42 43 44

AHU/CU, 15/03/1805. AHU/CU, 20/09/1806. AHU/CU, 29/05/1809.

AHU/CU, 15/03/1805. AHU/CU, 04/06/1807.

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laos administrativos e de ordem militar que vinculavam as duas capitanias. O sonhado intercmbio com Minas Gerais, porm, continuaria apenas um projeto. Comentando as tentativas de ocupao da regio interiorana levadas a cabo por Tovar, Saint-Hilaire escreveu:Tovar era ento Governador da Capitania do Esprito Santo. Querendo secundar as intenes do ministrio, cuidou de interessar os cultivadores da provncia a se estabelecerem nas margens do Rio Doce. [...] Todavia, imaginavam-se as margens do Rio Doce como uma regio pavorosa, onde se era devorado pelos insetos, atacados por doenas perigosas e onde, sem cessar, se corria o risco de ser massacrado por botocudos. Desesperado de conseguir povoar Linhares, a administrao mandou para l camponeses espanhis, que tinham vindo das Ilhas das Canrias para chegar a Montevidu e naufragaram perto de Vitria. 45

A despeito das tentativas de colonizao das reas contguas ao Rio Doce, como atesta o estabelecimento da Povoao de Linhares46 (1809) em suas margens, as pequenas embarcaes que singravam a via conduziam apenas soldados, armas e munies para os destacamentos do interior. Os constantes conflitos com os indgenas e as disputas polticas entre Tovar e as principais figuras de Vitria, tais como o Ouvidor Desembargador Alberto Antnio Pereira, o comerciante Pedro Carreira Viseo, o Tesoureiro dos Ausentes Manuel Fernandes Guimares e o Padre Manoel de Jesus Pereira, Coadjutor do Vigrio, entre outros, contriburam para o desinteresse e crescente temor em relao ao Rio Doce. Na perseguio que promoveu contra seus desafetos, Tovar no hesitou em utilizar os soldados, alm da ameaa de desterro para a

SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Esprito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia/ USP, 1974, p.92.46

45

MARQUES, Csar Augusto. Dicionrio Histrico Geogrfico e Estatstico da Provncia do ES. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1878, p.119. Segundo J. T. de Oliveira, o nome Linhares, foi escolhido em homenagem ao ministro de D. Joo, que continuava a ser o grande animador da obra que pretendia transformar o Rio Doce em instrumento vivo de progresso. (OLIVEIRA, 1975, p. 250).

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dita regio, carregados de ferro, o que cumpriu de fato em relao boa parte dos perseguidos.47 O governador seguinte, Francisco Alberto Rubim, Capito de Mar e Guerra da Armada Real, Comendador e Cavaleiro da Ordem de Cristo, condecorado por seus servios no Mediterrneo (1790-1799) e, posteriormente, na Costa da frica e no Brasil, tomou posse no dia cinco de outubro de 1812, permanecendo no posto at o final de 1819.48 Encontraria ele a Capitania em situao desoladora. Os desmandos de Tovar levaram reduo da produo agrcola e do corte de madeira, bem como a uma retrao no comrcio em Vitria. Por meio de perseguies, ele logrou espalhar o pnico entre os cidados capixabas nos ltimos anos de seu governo. Tendo em vista tais problemas e constatando que a Capitania estava ocupada unicamente no litoral, Rubim retomou o antigo projeto de povoar seu interior. A primeira iniciativa nesse sentido foi a criao, em 15 de fevereiro de 1813, de uma colnia de aorianos. Trinta casais foram instalados no serto da margem norte do rio Santo Agostinho, que demarcava os limites da Vila de Vitria, dando origem Povoao de Viana.49 No mesmo ano, com o intuito de favorecer o comrcio, a navegao e a agricultura, determinou ele a desobstruo do Canal de Camboapina, aberto pelos jesutas para a ligao do rio Jucu com a baa do rio Esprito Santo.50 O passo seguinte foi a determinao de se plantar mandioca para a fabricao de farinha nas propriedades e quartis estabelecidos ao longo do Rio Doce. o que contou Rubim, em correspondncia, ao Conde de Linhares:Persuadido, que onde desprezada a agricultura, e no gera o dinheiro a populao, e fontes de Indstria e Comrcio no podem ter aumentado, e que sem abundncia de mantimentos tudo cai na languidez, e no cio, no vcio, determinei a todos os

47 48 49 50

OLIVEIRA, 1975, p. 266. MARQUES, 1878, p.142. RUBIM, Francisco Alberto. Memrias. Revista IHGES. Vitria, n.7, 1934. MARQUES, 1878, p.119.

36

Comandantes de Destacamentos que no s fizessem com toda a atividade a plantao de mandiocas, e que igualmente esta fosse feita pelos soldados, que estivessem de descanso ou folga; igualmente obriguei a todos os habitantes a fazerem a mesma plantao.51

Alm da mandioca, seu governo incentivou oficialmente as culturas de trigo, linho e caf. Para acelerar o povoamento e expandir a agricultura - at ento restrita ao rio Doce - o governo passou a distribuir sesmarias s margens de todos os rios da Capitania. 52 Rubim daria continuidade ao projeto iniciado por Silva Pontes, e seguido por Tovar, de promover a abertura de novas vias de comunicao com Minas Gerais. Ao contrrio de seus antecessores, porm, ele no concentraria esforos apenas no Rio Doce. Ao governador coube tambm o papel pioneiro de empreender a abertura de estradas na Capitania. A mais importante, ligando Vitria a Vila Rica, comeou a ser executada em agosto de 1814, tendo sido finalizada no incio de 1820.53 Apesar disso, mais uma vez, o antigo sonho de intercmbio com Minas Gerais no chegou a se concretizar. Saint-Hilaire, visitando a Provncia durante a administrao de Rubim, registrou o seguinte a respeito do governador:Passava, em geral, por homem ntegro; tinha talento e atividade. A nova Vila da Vitria foi fundada por sua iniciativa, fez abrir estradas entre o litoral e Minas Gerais, fundou a Igreja da Vila de Linhares; reedificou, na Vila de Vitria, parte do Palcio do Governo e ajudou a embelezar essa Vila.54

51 52 53 54

AHU/CU, 3/11/1813. OLIVEIRA, 1975, p. 268. MARQUES, 1878, p.120. SAINT-HILAIRE, 1974, p.11.

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Seu governo foi responsvel pela restaurao da Santa Casa da Misericrdia de Vitria e pela fundao de um hospital para os enfermos pobres, em 1817.55 No mesmo ano, a Capital receberia iluminao pblica fornecida por quarenta lampies de azeite de mamona, por meio de um contrato com o comerciante local Joo Teixeira Maia. Passaria tambm a contar com professores de latim e das primeiras letras, alm de um boticrio licenciado.56 O governador procurou, ainda, melhorar o aspecto urbano de Vitria, obrigando os moradores a limparem e a reconstrurem as fachadas dos casarios, que j haviam descido as encostas do ncleo inicial da Vila. Deu incio ele tambm aos primeiros aterros dos manguezais que ficavam no caminho do Porto dos Padres, em Pelames e no Largo da Conceio.57 Comentando em sua Memria sobre a Vila de Vitria, lembrou o governador:Ainda que no rica, , contudo assento, e cabea da Comarca; sua perspectiva bastante elegante, suas casas, pela maior parte, so de sobrados, e reformadas todas por um s gosto moderna, e seus habitantes, os homens, se ocupam no comrcio, para o qual possuem embarcaes costeiras, e nos diferentes ofcios, e as mulheres em cozer e fiar.58

O Bispo do Rio de Janeiro, D. Jos Caetano, que esteve na Capitania durante a administrao de Rubim, destacou em carta endereada ao Rei D.Joo VI:A Vila de Vitria, se no tem tido aumento muito sensvel na populao, pareceu-me ter melhorado alguma coisa nas obras das igrejas e outros edifcios pblicos para o exerccio da religio, como so: o conserto que se fez na Igreja da Misericrdia; o novo hospital e cemitrio da mesma nos arrabaldes da vila, os reparos que se fizeram na excelente capela do colgio, que foi dos jesutas, e que serve de Palcio

55 56 57

OLIVEIRA, 1975, p. 259. MARQUES, 1878, p. 221.

VASCONCELLOS, I. A. Memria Statistica da Provncia do Esprito Santo escrita no ano de 1828. Vitria, Arquivo Pblico Estadual, 1978, p.66. RUBIM, 1934, p.117.

58

38

de Governo [...] e tudo isso por diligncia do governador Francisco Alberto Rubim, de cuja devoo e capacidade no posso deixar de dar um bom testemunho.59

Nomeado

governador

do

Cear,

Francisco

Alberto

Rubim deixou

a

administrao da Capitania a 12 de setembro de 1819. Na ocasio, o Corpo Militar da Capital contava com 416 praas, o oramento estava saneado e em melhor situao do que aquela por ele encontrada.60 Seu governo, falando em termos gerais, encerra o projeto administrativo iniciado por Silva Pontes: a burocracia estava organizada; os dirigentes locais integrados mquina administrativa; o interior estava razoavelmente povoado e guarnecido por destacamentos militares e, apesar da navegao do Rio Doce no ter se consolidado, havia estradas que ligavam as principais freguesias Capital. Os caminhos serviriam agora aos novos antigos donos do poder. Entre 1820 e 1823, com as agitaes polticas do perodo, a economia da Capitania sofreria novos abalos, sobretudo em relao s rendas pblicas.61 O governador Baltazar de Souza Botelho de Vasconcelos62 assume o posto a 20 de maro de 1820. Sua gesto coincidiu com o movimento da Independncia, o que, na prtica, significou agitao e cessao quase total das atividades propriamente administrativas. Pequenos motins assolaram a Capital sob o pretexto das questes de nacionalidade. Mas o anncio da Independncia foi recebido com aplauso pelas Cmaras das Vilas, embora no estivessem elas muito seguras sobre o significado do evento. Na Capital, como no interior, a aclamao de D. Pedro foi comemorada com festejos.63 Apesar das conturbaes, foi nesse perodo que a antiga Vila de Vitria viu-se elevada categoria de cidade, pela Lei de 17 de maro de 1823.64 No incio de

59 60 61 62 63 64

COUTINHO, 2002, p.124-5. COUTINHO, 2002, p.116-120, passim. OLIVEIRA, 1975, p. 280. Esteve frente do governo do Piau de 01/01/1814 at 14/07/1819. OLIVEIRA, 1975, p.277-280. ELTON, 1987, p.105.

39

1824, assumia o cargo de Presidente da Provncia o Bacharel Ignacio Accioli de Vasconcellos, que a permaneceria at o incio de 1829. Discorrendo sobre a situao em que encontrou a Provncia ao assumir o governo, afirmou Accioli que [...] para qualquer parte que se lance os olhos nesta Provncia no se v um objeto que no pea providncias.65

A despeito

da crise, entretanto, seu governo refletiu o crescimento urbano da Capital. As ruas receberam reparos no calamento, assim como consertos nas fontes. O nmero de estabelecimentos de ensino chegou a vinte e sete em toda a Comarca, com uma populao escolar de setecentos e cinco alunos.66 Era o incio de um novo tempo para Vitria. Os anos subseqentes assistiriam consolidao da economia cafeeira, a chegada de imigrantes europeus para ocupar a regio central da Provncia e a transio da cidade colonial para a Vitria moderna. Mas essa outra histria.

1.3. A PRESENA ESCRAVA E A PRODUO DE ALIMENTOS, 1800-1830Vitria, como visto, constitua-se no principal ncleo urbano e na sede administrativa colonial do Esprito Santo. Em virtude de ser a capital e cabea da comarca, apresentava uma rede de servios e ocupaes burocrticas variadas, concentrando a maior parte das vendas em grandes e pequenas casas de comrcio espalhadas por toda a regio. A despeito da concentrao urbana, tratava-se de um mundo marcado pela especificidade rural circundante e especializado na produo de alguns produtos bsicos como outras tantas cidades coloniais brasileiras com uma produo agrcola baseada na canade-acar, algodo, milho, arroz, mandioca e at mesmo flores. Quando buscamos determinar os nveis de riqueza em Vitria nas primeiras dcadas do sculo XIX, encontramos, todavia, algumas obras de historiadores

65 66

OLIVEIRA, 1975, p. 283. VASCONCELLOS, 1978, p.D.

40

capixabas que afirmam ser esse um perodo de estagnao econmica.67 Procurando na bibliografia geral as referncias sobre Vitria, freqentemente encontram-se definies que a perfilam como uma vilania pobre, apagada no contexto nacional e distanciada dos padres coloniais de acumulao de riqueza vigentes no Brasil do Dezenove. A partir daqui, tentaremos indicar algumas hipteses alternativas de interpretao da economia capixaba nas primeiras dcadas do sculo dezenove. Feita tal caracterizao, buscaremos discutir em que medida os cativos se apresentavam relevantes na composio das fortunas locais, definindo sua importncia no funcionamento da economia capixaba.

1.3.1 Sobre as fontes e as fortunas

Para a viabilizao dessa pesquisa, alm de relatos de viajantes e da documentao produzida pela burocracia, em especial, relatrios e

correspondncias dos Governadores, utilizamos uma base documental composta, sobretudo, por inventrios post-mortem e testamentos anexos. Cabe considerar que tais inventrios, produzidos pela Justia, tm a funo de apresentar descrio detalhada do patrimnio da pessoa falecida para que se possa proceder partilha dos bens. Logo, esses documentos so feitos para aqueles que tiveram algo a deixar. importante destacar o valor dos inventrios, enquanto fontes histricas privilegiadas, na compreenso do universo material, uma vez que seu objetivo primordial a descrio patrimonial. Os inventrios do sculo XIX chamam a ateno pelo nmero de itens listados e pelo grau de detalhe no arrolamento dos bens. A riqueza de informaes

Cf. ALMADA, Vilma Paraso F. de . Escravismo e Transio: o Esprito Santo (1850-1888). Rio de Janeiro: Graal, 1984; BITTENCOURT, Gabriel de Melo. A Formao Econmica do Esprito Santo: o roteiro da industrializao. Vitria: Departamento Estadual de Cultura, 1987; NOVAES, Maria Stella de. Histria do Esprito Santo. Vitria: Fundo editorial, s/d. e SIQUEIRA, Maria da Penha S. O desenvolvimento do Porto de Vitria 1870-1940. Vitria: Ita, 1984.

67

41

varia entre os diversos inventrios, mas, como regra, a descrio comporta bens mveis e imveis, assim como sua respectiva avaliao. Essa listagem minuciosa das riquezas acumuladas inclui desde objetos de uso domstico, como roupas, ferramentas de trabalho, casas, lavouras, terras, animais e escravos, at doenas que poderiam estar atingindo algum dos cativos, afetando a atribuio de seu valor. Para alm da curiosidade, tais narrativas informam a realidade da vida material e cotidiana dos homens de outrora. De outra parte, os inventrios apresentam diversas lacunas que dificultam o trabalho de interpretao de certos dados. Por essa razo o documento anexo ao inventrio e que mais elementos nos oferece sobre a trajetria individual, os desejos e os laos familiares do falecido, constitui-se o testamento. considervel o nmero de inventrios de Vitria que contm a transcrio dos testamentos. Como destacou Sheila Faria:Se os inventrios post-mortem pouco ou nada diziam alm da situao material dos homens e mulheres poca da sua morte, o mesmo no ocorria com os testamentos.

Extremamente ricos, esta fonte permite o conhecimento da origem e dos nomes dos pais do testador, nmero de casamentos e de filhos (muitas vezes enumerando os j falecidos) e uma infinidade de detalhes individuais sobre sentimentos e relaes familiares.68

No que segue, analisamos a totalidade de processos de inventrios abertos e testamentos anexos, referentes a Vitria, ao longo das primeiras trs dcadas do sculo XIX. No total, foram pesquisados 170 inventrios e 127 testamentos anexos, onde encontramos 1.367 cativos. Os testamentos e inventrios, base emprica deste trabalho, apresentam alguns cenrios elucidativos a respeito da estrutura da riqueza material existente na Capital da Provncia do Esprito Santo poca em exame. Antes de passarmos anlise das fontes, faz-se necessrio explicitar o instrumental utilizado no tratamento dos patrimnios inventariados. A hierarquia

68

FARIA, 1998, p. 226.

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das fortunas foi realizada a partir de valores-limites, fixados em ris, conforme as categorias propostas por Ktia Matoso.69 O prximo passo foi a converso dos valores para libras esterlinas, buscando-se, como frisou Joo Fragoso70, uma idia mais precisa das variaes temporais da distribuio de riqueza. TABELA 1. DISTRIBUIO DAS FORTUNAS EM RIS, VITRIA, 1800-1830FAIXAS AT :200 :201 A 1:000 1:000$001 A 2:000 2:000$001 A 10:000 10:000$001 A 50:000 TOTAL INVENTARIADOS 19 82 35 32 02 170 % 11,2 48,2 20,6 18,8 1,2 100,0 TOTAL EM RIS 2:353$904 40:023$808 58:739$190 132:363$191 57:265$380 290:745$473 % 0,8 13,8 20,2 45,5 19,7 100,0

Fonte: Arquivo da Justia do ES, Inventrios post-mortem (1800-1830).

Como possvel observar nas tabelas 1 e 2, se por um lado estamos frente a pequenas fortunas, por outro, alta a desigualdade em sua distribuio. Vitria, assim como o Rio de Janeiro71 e a Bahia72, era marcada pela concentrao da riqueza nas mos de uma minoria. De forma semelhante regio agro-exportadora fluminense onde, segundo Fragoso e Florentino73, metade dos agentes sociais detinha algo em torno de seis por cento da riqueza, enquanto os dez por cento mais ricos concentravam em suas mos

69

MATTOSO, Ktia M. Q. A Opulncia na Provncia da Bahia. In: ALENCASTRO, L.F. (Org.) Histria da vida privada no Brasil: Imprio. So Paulo: Cia das Letras, 1997, p.160. FRAGOSO, J. L. Homens de Grossa Aventura. Acumulao e hierarquia na praa mercantil do Rio de Janeiro, 1790- 1830. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1998, p. 47 Cf. FRAGOSO, J. e FLORENTINO, M. O Arcasmo como Projeto: Mercado Atlntico, Sociedade Agrria e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. Cf. MATTOSO, 1997. FRAGOSO e FLORENTINO, 1998, p.73.

70

71

72 73

43

dois teros da mesma, Vitria tambm era marcada por forte hierarquizao no seio da sociedade como um todo, haja vista a desigualdade na repartio da riqueza evidenciada pelos dados acima. TABELA 2. DISTRIBUIO DAS FORTUNAS EM LIBRAS ESTERLINAS, VITRIA, 18091830 74 FAIXAS 1-200 201 -500 501- 1.000 1.001-2.000 2.001-5.000 5.001-10.000 TOTAL INVENTARIADOS 83 30 19 06 01 01 140 % 59,3 21,4 13,6 4,3 0,7 0,7 100,0 TOTAL EM LIBRAS 7.953,11 9.160,54 13.498.93 7.687,12 4.437,15 8.621,16 51.358,01 % 15,5 17,8 26,3 15,0 8,6 16,8 100,0

Fonte: Arquivo da Justia do ES, Inventrios post-mortem (1800-1830).

Seguindo as categorias de Ktia Mattoso, podemos identificar duas fortunas consolidadas, na Vitria do incio do sculo dezenove, cujos montantes esto entre 10:000$000 e 50:000$000 contos de ris. Tais inventrios concentram 30,2% da soma das fortunas dos 34 mais ricos e 19,7% do montante total da riqueza inventariada. O primeiro desses inventrios, aberto em 1812, referia-se ao legado de Desidrio Jos da Costa, senhor de engenho, cujas posses correspondiam ao total de 27:012$080 ris ou 8.621,36. Uma leitura atenta do documento

permitiu avaliar os ativos sobre os quais assentava-se sua fortuna, de carter exclusivamente rural. Dono de 69 escravos, dedicava-se produo de

74

O corte 1809-1830 explica-se em funo da tabela de converso de ris para libra apresentada por Mattoso Flutuaes Cambiais do Real cujas mdias anuais iniciam-se em 1808, como no temos nenhum inventrio deste ano, iniciamos a converso no ano de 1809. MATTOSO, K. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982, p.254.

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aguardente e acar, cujas somas chegavam a 5:592$850 ris. Possua, ainda, rebanhos, no apenas bovino, como tambm cavalos, cabras e carneiros, avaliados em mais de 1:500$000 ris. Os mveis da casa atingiam a cifra de quase 3:000$000. Tratava-se de oratrios, catres, vrias mesas com cadeiras, bas, imagens, objetos de cobre, utenslios de ferro e de lato, alm de jias, castiais e pratarias (4,7% da fortuna). Vale ainda destacar a posse de terra que, sozinha, responde por 30,7% do patrimnio total do fazendeiro, ou seja, mais de 8:000$000 ris. Outro dado revelador sobre a origem da riqueza listada a inexistncia de posses urbanas entre os bens inventariados. Por fim, Desidrio tinha uma dvida de 10:085$535 para com dois credores, o que no chegava a ameaar a solidez de sua fortuna. Esse perfil proprietrio de terras, produo voltada para a exportao e presena significativa de cativos corresponde noo corrente na historiografia de um tpico senhor de terras e de homens. J o segundo inventrio, aberto em 1827, diz respeito s posses do Reverendo Torquato Martins de Arajo, avaliadas em 30:253$300 ris ou 4.437,15. Ao

contrrio de Desidrio, o Reverendo Torquato possua uma fortuna fundada em bens variados. Dono da maior escravaria encontrada - 129 cativos avaliados em 17:059$400 ris, dedicava-se produo de cana, aguardente, acar, algodo, milho e caf, possuindo, tambm, rebanhos variados que

correspondiam a 1:260$000 ris. Alm disso, o Reverendo era proprietrio de trs trapiches e quatro armazns nos pontos mais importantes de Vitria, bem como de casas alugadas e lojas onde seus escravos especializados prestavam servios diversos. Os bens imveis somavam 9:319$544, abarcando desde propriedades agrcolas nas cercanias de Vitria at a diferentes propriedades na cidade. Sua casa, localizada na Rua da Praia, foi estimada em 850:000 ris. Os bens mveis totalizavam 3:412$044 ris, reunindo desde moblia fina, louas, pratarias, castiais, talheres, jarras e copos de prata, passando jias de ouro, ferramentas diversas, apetrechos dos engenhos, couros e chegando a utenslios de igreja e at mesmo a um rgo. Por fim, o Reverendo tinha uma dvida de 2:621$800 para com seu scio em alguns negcios, Francisco Pinto Homem, valor mdico frente ao total dos bens por ele amealhados ao longo da vida. Diferentemente de Desidrio, cuja fortuna radicava-se exclusivamente na

45

produo agrcola, o reverendo Torquato possua, como visto, negcios bem mais diversificados, envolvendo desde a produo agropecuria at a prestao de servios, incluindo ainda o aluguel de casas, armazns e cativos. Abandonando a categoria de fortunas consolidadas e observando nossa base documental, podemos apontar a existncia, assim como na Bahia75, de um estrato de fortunas intermedirias em Vitria. Trata-se de 32 inventrios cujos montantes variam entre 2:000$000 e 10:000$000 contos e que, juntos, respondem por 45,5% do total da riqueza inventariada. Interessa-nos, agora, conhecer a origem das fortunas que compem essa camada intermediria. Apesar de a maior parte dos inventrios no fornecerem dados sobre a ocupao profissional dos falecidos, possvel, por meio de alguns recortes, identificar-se a origem das riquezas, o que poder elucidar os tipos de ativos preferenciais nos quais se materializavam as fortunas da poca. TABELA 3. COMPOSIO DAS FORTUNAS MDIAS, VITRIA, 1800-1830ATIVOS BENS URBANOS BENS RURAIS ESCRAVOS JIAS E METAIS DVIDAS A RECEBER MONTANTE BRUTO MONTANTE (RIS) 24:514$944 22:423$830 62:015$086 5:165$786 10:520$619 132:363$191 % 19,7 18,0 49,8 4,1 8,4 100,0

Fonte: Arquivo da Justia do ES, Inventrios post-mortem (1800-1830).

Dos 32 inventrios levantados, verificou-se que 20 apresentavam bens rurais: lavouras de cana, de algodo, de arroz, gado, engenhos de acar, casas na roa, entre outros bens, alm de escravos que podiam ser utilizados tanto em atividades agrcolas quanto urbanas. Em 24 deles existe meno tambm a

75

MATTOSO, 1997, p. 162.

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prdios na cidade. Esses dados indicam que as fortunas eram constitudas tanto por bens rurais quanto urbanos que, por si s, no esclarecem a base da riqueza. Interessa-nos verificar a origem econmica dessas fortunas. Para tanto, escolhemos avaliar o peso dos bens na constituio das fortunas para tentar estabelecer um perfil da principal atividade econmica desenvolvida pelo inventariado. Com esse procedimento, constatamos que o primeiro fator determinante na constituio das fortunas a posse de escravos, pois estes correspondem a 49,8% do montante bruto da riqueza desses 32 inventrios. Dos 1.367 escravos arrolados, 567 esto concentrados nas mos da camada intermediria, ou seja, 41,5%. Enquanto os bens rurais correspondem a 18% do total de riqueza, os prdios urbanos respondem por 19,7%. Essa forma de interpretar os dados sugere que as fortunas intermedirias de Vitria estavam fundadas, principalmente, na posse de escravos, seguida por empreendimentos prprios ao meio urbano, o que, contudo, no indica um distanciamento das atividades agrrias, j que a diferena percentual entre ativos urbanos e rurais de apenas 1,7%, como pode se observar no grfico 1 a seguir.GRFICO 1.

Participao de bens econmicos na composio das fortunas mdias, Vitria, 1800-1830

4%

8%

20%Bens Urbanos Bens Rurais Escravos

18% 50%

Jias e Metais Dvidas a receber

Fonte: Tabela 3.

Concorre ainda, para a confirmao dessa assertiva, o fato de que entre as fortunas mdias, poucos so os inventrios fundados exclusivamente em um nico tipo de atividade. Dentre esses, destaca-se o do comerciante Pedro Jos

47

Carreira Vizeu. O monte mor do seu inventrio de 3:566$876 ris, do qual um tero corresponde a dvidas a receber de terceiros. Possivelmente, Pedro, alm de comerciante, praticava tambm emprstimos. Em seu inventrio, h indicativos da prtica da usura, j que o montante a receber est em mos de quinze indivduos. Os outros dois teros dizem respeito a secos e molhados comercializados por ele num estabelecimento na Vila de Vitria. No consta entre seus bens a posse de um escravo sequer. Na maioria dos inventrios com montantes superiores a 2:000$000 verificamos, contudo, que as fortunas baseavam-se, primordialmente, na posse de escravos, na propriedade urbana e na rural. Alm de negcios diversificados, contavam com emprstimos e juros, aluguel de casas e escravos, alm do comrcio de secos e molhados. Vale lembrar que todos esses proprietrios viviam na Vila ou mantinham l casas sua disposio, o que no os impedia de realizar investimentos significativos na produo agrcola. Tais constataes parecem apontar para um perfil hbrido da riqueza possuda pela camada mdia capixaba, caracterizado pelo no-predomnio de um determinado tipo de bem. A presena de empreendimentos urbanos importantes na constituio das fortunas parece indicar a possibilidade de tais atividades consistirem em fonte de investimento para obteno de recursos a serem direcionados para o meio agrrio, ou uma fonte complementar de renda quela produzida nas lavouras. Antes de prosseguirmos, preciso proceder seguinte reflexo adicional: a vila de Vitria era uma tradicional localidade colonial porturia, includa na categoria de cidade comercial nas primeiras dcadas do sculo dezenove. As atividades no se distinguiam, pelo menos para os contemporneos, entre urbanas e rurais. Mesmo porque, naquele tempo, os limites que separavam a vida urbana das atividades rurais configuravam-se tnues. Essa diferenciao seria, portanto, anacrnica. Para os residentes na vila, a aplicao de seus recursos estava diretamente ligada prpria sobrevivncia e tentativa de fazer crescer seus bens. O investimento em atividades rurais pode ser interpretado, seguindo Fragoso e Florentino, como a manifestao tangvel do ideal aristocratizante arcaico da poca:

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Na verdade, muito mais do que a busca de segurana, a transformao do grande comerciante [...] em rentista urbano e/ou senhor de homens e terra denotava a presena de um forte ideal aristocratizante, identificado ao controle de homens e afirmao de certa distncia frente ao mundo do trabalho. Nada mais natural, em se tratando de uma elite mercantil forjada em meio a um sistema no qual a realizao da produo escravista pressupunha a contnua reiterao da hierarquizao e excluso dos outros agentes sociais. Tratavase enfim, de uma estrutura cujo funcionamento tinha como prcondio a constituio de relaes de poder.76

Cabe lembrar que a escravido brasileira foi herdeira direta do carter estamental da sociedade portuguesa de Antigo Regime. Desde os tempos coloniais, a sociedade que se formou no Brasil obedeceu aos princpios de hierarquia trazidos pelos colonos portugueses. Nesse sentido, o investimento em terras tinha um significado social que extrapolava a busca por riquezas. Os homens de ento pretendiam, com o acmulo de bens de raiz, galgar destaque no cenrio poltico e social, o que no significava que esse tipo de investimento representasse fortunas exclusivamente rurais. Inclusive, a busca por terras vem, a nosso ver, reforar o prprio carter pouco consolidado dessas riquezas. Haveria a hiptese, ento, de que sendo fortunas no consolidadas, a posse de terras fosse um ideal perseguido e sua extenso seria apenas um ndice de sucesso do empreendedor. Aqui, poderamos evocar o exemplo de Desidrio, cuja posse de terras responde sozinha por 30,7% de sua fortuna. Vejamos, ainda, alguns casos que apontam na mesma direo. H inventariados que alm de participarem de atividades agrrias, cultivarem lavouras, possurem rebanho e escravos de eito, tambm praticavam outros negcios, como o aluguel de imveis. Um exemplo o de D. Anna de Azevedo, detentora de um monte mor de 4:153$226 ris constitudo, entre outras coisas, de uma escravaria com 32 cativos e um stio com lavouras de algodo,

76

FRAGOSO e FLORENTINO,1998, p.107.

49

mandioca e cana, onde tambm criava gado vacum. Residia ela numa casa de morada na Vila, onde possua trs outros imveis, possivelmente alugados. Uma caracterstica adicional observada diz respeito aos emprstimos a juros e similares prtica utilizada por quase todos inventariados que tambm denunciariam o estgio de consolidao das fortunas e, mais do que isso, indicariam a busca de prestgio e reconhecimento social. Vale lembrar que o ato de emprstimo no se refere apenas moeda ou circulao monetria propriamente dita. Tais operaes podiam tambm ser levadas a efeito por meio de produtos em geral. Esse o caso do Sr. Francisco Lemos Ramos Rocha. Dono de uma fortuna de 3:253$969 ris, possua apenas cinco escravos, uma roa de mandioca e duas casas na Vila. Tinha a receber de terceiros, porm, a quantia de 1:627$904 ris, quase metade de toda a sua fortuna. foroso concluir que o Sr. Francisco tinha na concesso de crdito sua ocupao principal, uma vez que o montante a receber estava dividido entre oito pessoas, tendo ele, portanto, parte considervel de sua fortuna sustentada pela prtica da usura. Ktia Mattoso, comentando a posio dos emprstimos em sua anlise dos inventrios baianos, assinala:Emprestar e tomar emprestado no so prticas vergonhosas numa sociedade em que solidariedade e ajuda mtua constituem um fundamento das relaes vivenciadas, da vida de famlia e dos vnculos entre os mais ricos e menos ricos. Dificuldades imprevistas podem acontecer a qualquer um. Os que tomam emprestado agem sempre de boa f. Os que emprestam, habituados a taxas que se elevam a 2% ao ms, no consideram que estejam praticando a usura. A mesma impresso de generosidade pode motivar tanto quem empresta um ou dois mil-ris a algum que precisa comprar o que comer, quanto a quem adianta somas bem mais elevadas a um senhor de engenhos que ainda no colheu sua produo. Capacidade de fazer emprstimos, isto , de encontrar facilidades na praa para tal, como a capacidade de poder emprestar, isto , de

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dispor da liquidez necessria, so ambas sinais de opulncia e, sobretudo, de prestgio.77

Destacamos ainda as fortunas fundadas, quase que completamente, na posse de escravos. Elas sugerem um emprego bastante ampliado da mo-de-obra, seja no trabalho da lavoura, seja em atividades tipicamente urbanas como o aluguel ou a venda de produtos sob o controle do senhor, os ditos escravos de ganho.78 D. Anna Maria dos Anjos, deixou uma fortuna de 2:708$900 ris. Possua 16 escravos que respondiam por metade de sua riqueza. Vivia na Vila, onde mantinha uma casa e era proprietria de outra, num stio em Santo Antnio, local onde cultivava roas de mandioca e um canavial. No caso de D. Anna, grande a possibilidade de seus escravos serem de ganho, uma vez que suas poucas posses imobilirias no justificariam o emprego de toda a mo-de-obra. Alm disso, seis de seus escravos eram especializados em carpintaria e provavelmente prestavam servios na vila. Quase metade dos inventariados com fortunas na faixa de 2:000$000 ris apresentavam indcios de que parte de seus escravos poderiam ser alugados ou prestarem servios a outros. Eis a ento o mosaico que compe as fortunas mdias capixabas: negcios diversificados, aplicaes variadas, que marcam as tentativas de fazer crescer a riqueza e, com isso, lograr-se prestgio social. Importa recordar aqui que estamos a analisar uma nfima minoria de cidados proprietrios de bens. Pela amostra em questo, podemos constatar estarmos diante de uma elite hierarquizada, a cujo topo seria difcil ascender. Se num primeiro momento optamos por descrever o estrato superior dessa hierarquia, ou seja, as fortunas acima de 2:500$000 ris, a partir daqui nos ocuparemos em analisar os outros 136 inventrios, buscando identificar suas principais formas de investimento da riqueza.

77 78

MATTOSO, 1987, p.166.

Escravo de ganho