Tese Vanessa Ferreira Oliveira

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  • 7/25/2019 Tese Vanessa Ferreira Oliveira

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LINGSTICAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA E SEMITICA

    A CATEGORIA DE TEMPO NA ENUNCIAODA

    LNGUA FRANCESA

    Vanessa Ferreira de Oliveira

    Dissertao apresentada aoPrograma de Ps-Graduao emLingstica e Semitica doDepartamento de Letras Modernas daFaculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidadede So Paulo, para obteno do

    ttulo de Mestre em Letras.

    Orientador: Prof Dr Antonio Vicente Serafin Pietroforte

    So Paulo

    2006

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    Resumo:

    Jos Luiz Fiorin, em suasAstcias da Enunciao (2001), analisa as categorias

    da enunciao de tempo, pessoa e espao na lngua portuguesa. Esse o fundamento

    terico no qual se baseia o presente trabalho. Nossa pesquisa concentra-se na lngua

    francesa e nela trabalhamos somente a categoria de tempo, verificando a maneira pela qual

    a sua colocao estabelece referncias temporais no discurso por meio das categorias

    concomitncia vs. no-concomitncia (anterioridade e posterioridade). possvel basear-

    se em uma teoria para a lngua portuguesa pelo fato de que h muita correspondncia entre

    o francs e o portugus no que concerne as classes de palavras que expressam tempo em

    francs (verbo, advrbio, preposio e conjuno), embora haja tambm alguns pontos em

    que no existem equivalncias, como veremos.

    O corpus utilizado para a realizao desse trabalho o jornal de maior

    referncia na Frana: Le Monde; ele tem vrias verses, mas utilizamos a mais lida: o

    quotidiano. Foram lidos somente jornais dos primeiros cinco meses de 2006.

    Na pesquisa, primeiramente, conceituamos o tempo, em seguida o

    sistematizamos, considerando os sistemas enuncivo e enunciativo e as categorias

    topolgicas de concomitncia e no- concomitncia em relao aos momentos de referncia

    presente, pretrito e futuro. Reconhecemos alguns tempos verbais franceses sem

    equivalentes no portugus e especiais na lngua francesa: pass simple, pass antrieur epass surcompos.Ainda estudamos a debreagem de segundo grau e o modo subjuntivo.

    Culminamos na ao intencional do enunciador e suas neutralizaes verbais, isto , as

    embreagens temporais.

    Esperamos contribuir para a conceituao da categoria de tempo da lngua

    francesa, auxiliando no ensino/aprendizagem dessa lngua.

    Palavras-chaves:

    Tempo, verbo, francs, enunciao, semitica.

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    Rsum:

    Dans Astcias da Enunciao (2001), Jos Luiz Fiorin fait une analyse descatgories de lnonciation de temps, de personne et despace dans la langue portugaise sur

    laquelle se fonde thoriquement le prsent travail. Notre recherche a pour sujet la langue

    franaise et est uniquement centre sur la catgorie de temps, et plus particulirement sur la

    manire dont les rfrences temporelles sont tablies dans le discours au moyen de

    catgories concomitance/non-concomitance. Il est possible de s'appuyer sur une thorie

    pour la langue portugaise parce quil existe beaucoup de correspondances entre le franais

    et le portugais pour les classes de mots qui expriment le temps en franais (verbe, adverbe,

    prposition et conjonction), bien qu'il y ait des points o il ny a pas dquivalences,

    comme nous le verrons.

    Le corpus utilis pour la ralisation de ce travail est le plus grand journal de

    rfrence en France:Le Monde. Il existe en plusieurs versions, mais nous n'utiliserons que

    la plus lue: le quotidien. Ont t uniquement lus les journaux des premiers cinq mois de

    2006.

    Dans cette recherche, le temps sera d'abord conceptualis puis schmatis en

    prenant en compte les systmes noncs et nonciatifs ainsi que les catgories topologiquesde concomitance et de non-concomitance par rapport aux moments de rfrence prsent,

    pass et futur. Nous reconnatrons quelques temps verbaux franais sans quivalents en

    portugais et spcifiques la langue franaise: pass simple, pass antrieur et pass

    surcompos. Nous tudierons ensuite le dbreyage de deuxime degr et le mode

    subjonctif. Enfin, nous nous attacherons laction intentionnelle de lnonciateur et ses

    neutralisations verbales, cest--dire, les embrayages temporels.

    Cela dans le but de contribuer la conceptualisation du temps dans la languefranaise, en aidant lenseignement et l'apprentissage de cette langue.

    Mots cls:

    Temps, verbe, franais, nonciation, smiothique.

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    Abstract:

    Jose Luiz Fiorin, in his Astucias da Enunciao, analyses the categories of the

    expression of time, space and person. This is the theoretical basis of this study. The

    dissertation analyses the French language and deals only with the tense category, verifying

    how its collocation establishes temporal references in discourse by means of concomitance

    vs non-concomitance categories (anterior/posterior). It is possible to use this as a basis for

    thePortuguese language because there are many parallels between French and Portuguese

    in terms of the word classes which express tense (verb, preposition and conjunction),

    although there are also some points that do not have parallels , as we shall see.

    The corpus used in carrying out this work is the most quoted newspaper in

    France:Le Monde, and the daily newspapers of the first five months of 2006 are the basis

    for the corpus.

    Firstly, time is considered, and then systematized, examining the enuncive and

    enunciative systems and the topographical categories of concomitance vs non-

    concomitance in relation to the present, past and future. Certain tenses with no equivalents

    in Portuguese have been recognised, such as thepass simple, pass antrieur and pass

    surcompos. Second degree "debreagem" and the subjunctive mood are also analysed, and

    the dissertation ends with an analysis of the writer's intentional action and his verbal

    neutralizations.Hopefully, this study will contribute to the conceptualisation of the tense

    category in French, helping the teaching and learning of this language.

    KEY WORDS:

    Tense, verb, French, enunciation, semiotics.

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    Introduo

    (...) o tempo no uma linha, mas uma rede de intencionalidades.

    Merleau-Ponty

    O que o tempo? Como definir o tempo? E qual tempo? Falar do tempo no

    uma tarefa fcil visto que ele tem vrias acepes e que, em todas as reas do

    conhecimento, j houve tentativas para tentar explica-lo.

    Este trabalho no mais uma tentativa de definir o tempo, mas de entende-

    lo enquanto uma das categorias da enunciao. Essas categorias so: pessoa, espao e

    tempo e elas no so exclusividades de uma ou de outra lngua, mas so intrnsecas a

    toda e qualquer linguagem.

    Fiorin, analisando o livro bblico Gnesis, o livro das origens, mostra como

    essas categorias so inerentes ao homem e ao universo. No captulo 3, sobre a culpa

    original e como o pecado entrou no mundo. Deus havia criado o universo, o homem e a

    mulher e havia concedido o dom da liberdade e do livre arbtrio; mas o homem foi

    seduzido pelo poder da mentira, expe-se a desobedecer a Deus na esperana de tornar-

    se igual a ele. Ento o homem toma conscincia de si mesmo no sofrimento e na

    vergonha e foi excludo das delcias do paraso. Segundo Fiorin, a queda marca a

    entrada do homem na Histria, ou seja, no tempo e no espao no-mticos, em que o ser

    humano sofrer a condio humana. O castigo do homem passar a sofrer o tempo

    (morrer), o espao (a natureza lhe ser hostil) e a actorialidade (comer o po

    com o suor do rosto, dar a luz em meio dor). A Histria est, ento, marcada pela

    temporalidade, pela espacialidade e pela actorialidade(2001:12).

    Como tema para a dissertao de mestrado, no trabalhamos todas as

    categorias da enunciao presentes no componente sinttico do nvel discursivo,estudamos apenas a ltima, no porque uma categoria seja mais importante do que a

    outra, mas pelo fato do tempo ser uma das questes mais problemticas para o

    profissional que trabalha com o ensino do francs e tambm para o estudante que o

    aprende. Tanto os verbos quanto as demais classes de palavras que denotam tempo em

    francs (advrbio, preposio e conjuno) tm muita correspondncia com a nossa

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    lngua materna, o portugus, porm, tambm h muitos pontos que no encontram

    equivalncia; h, por exemplo, tempos verbais que apresentam nuances inexistentes em

    portugus, como o caso dopass compose dopass simple.Por isso, acreditamos ser

    til desenvolver um trabalho que mostre a questo do tempo tratada de forma menos

    sistematizada e mais semiotizada, menos mtodo de lngua e mais colocao discursiva.

    A descrio dos tempos verbais realizada com base no modelo proposto

    por Fiorin em suas Astcias da Enunciao (2001), em que as categorias de tempo,

    pessoa e espao so analisadas; essa a base terica que norteia todo o trabalho.

    descrita, nesta pesquisa, baseando-se no que Fiorin desenvolveu para o portugus, a

    maneira pela qual a colocao das categorias de tempo estabelece referncias temporais

    no discurso por meio das categorias formais concomitncia vs. no-concomitncia

    (anterioridade e posterioridade).

    Ressaltamos que, assim como em Astcias da Enunciao, esse trabalhodireciona-se predominantemente ao modo indicativo do verbo j que esse o modo da

    ao considerada na sua realidade. o modo indicativo que determina o tempo e

    graas a ele que os tempos dos outros modos, imperativo (se o consideramos como

    modo) e subjuntivo, podem articular-se.

    Quando aprendemos uma lngua estrangeira, ou mesmo ao estudar nossa

    prpria lngua, existe a tendncia de consider-la como reflexo e nomenclatura dos

    objetos existentes no mundo, ou seja, h uma relao extra-lingstica em que se

    estabelece a distino referencial entre palavras e coisas.

    Essa maneira de explicar os tempos verbais parece bastante simplista e

    ingnua, no condizendo com a experincia real do tempo e a ao do falante sobre ele.

    O livro de Fiorin mostra o tempo atrelado enunciao e s relaes que cada tempo

    tem com o presente, passado e futuro, isto , o tempo inserido em um contexto

    discursivo mais prximo da experincia do enunciador.

    A forma no referencializada do ensino das categorias de tempo, espao e

    pessoa um dos fatores que torna mais difcil e complexa a compreenso dasistematizao dos tempos verbais na lngua francesa.

    O enfoque dado nesta pesquisa ao tratamento da categoria de tempo na

    enunciao da lngua francesa no tem precedentes, o nico modelo que se conhece o

    proposto para a lngua portuguesa, feito por Fiorin. mile Benveniste e Dominique

    Maingueneau, estudiosos da anlise do discurso, j trabalharam alguns aspectos da

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    enunciao da lngua francesa, a sistematizao de suas categorias, porm, algo que

    ainda est por se desenvolver para, assim, auxiliar estudiosos dessa lngua.

    Tendo em vista como a semitica francesa concebida, em que a nfase

    dada se refere ao sentido e ao processo de significao fundamentados no plano de

    contedo e no plano de expresso, esta pesquisa visa descrio do componente

    sinttico do nvel discursivo na lngua francesa.

    No percurso gerativo de sentido, h trs nveis constituintes do plano de

    expresso e cada um deles tem dois componentes: um sinttico e outro semntico. O

    sinttico relaciona-se forma de ordenao dos contedos, e o semntico relaciona-se

    ao modo como as palavras se compem, onde surgem os contedos investidos na

    estrutura sinttica. O componente sinttico do nvel discursivo sistematizado nas

    categorias de pessoa, tempo e espao enquanto o semntico apresenta figuras e temas.

    Prope-se analisar as implicaes dessa categoria na enunciao discursivada lngua francesa para, assim, depreender de forma mais abrangente e menos arbitrria

    a colocao em discurso dos tempos verbais, considerando-os no apenas como

    portadores de morfemas de pessoa, modo e nmero, mas como elementos que,

    discursivizados, so carregados de mais significao.

    Comeamos com a conceitualizao do tempo, fazendo uso das teorias do

    bispo e filsofo Santo Agostinho e do filsofo francs Paul Ricur, assim como de

    dicionrios de lngua portuguesa e francesa, passamos para um passeio sobre a histria

    da Frana e de sua lngua e, ainda, sobre a francofonia. Tambm apresentamos o jornal

    Le Monde, utilizado como crpus do trabalho.

    Investigamos as relaes de concomitncia e no-concomitncia

    (anterioridade e posteridade) nos diferentes momentos de referncia (presente, pretrito,

    futuro) associados ao momento da enunciao e ao momento do acontecimento. O

    momento da enunciao instaurado pelo discurso e corresponde ao agora, a partir do

    qual o tempo determina se anterior ou posterior.

    O tempo lingstico pode ser reconhecido em dois sistemas temporais, umrelacionado diretamente enunciao, ao nunc, que o sistema enunciativo e outro

    relacionado ao momento de referncia do enunciado, que o sistema enuncivo. Na

    primeira, so instalados os marcadores da enunciao eu/aqui/agora, enquanto na

    segunda, eles so apagados.

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    Analisamos a organizao temporal do verbo em francs, de acordo com as

    categorias enunciativas e enuncivas do tempo divididas em sistemas e subsistemas.

    Aqui estudamos os tempos enunciativos e enuncivos.

    No sistema enunciativo dos verbos em lngua francesa, encontramos os

    tempos prsent (concomitante ao momento de referncia), pass compos (anterior ao

    momento de referncia) efutur simple(posterior ao momento de referncia).

    No sistema enuncivo, temos os tempos dos momentos de referncia pretrito

    e futuro, sendo que o primeiro constitudo pelos tempos pass simple, na

    concomitncia. Na no-concomitncia, temos os tempos plus-que-parfait, pass

    antrieur epass surcompos, no que concerne anterioridade, e o futur du pass (ou

    conditionnel prsent) e futur antrieur du pass (ou conditionnel pass) no que

    concerne posterioridade. Sendo que, no MR pretrito ainda existe um caso especial, o

    tempopass surcompos, um tempo verbal raro hoje em dia.Nesse momento da pesquisa, apresentamos os tempos verbais que, por

    alguma razo, podem ser considerados especiais: pass simple, pass antrieur epass

    surcompos. Verificamos se esses tempos ainda so considerados pertencentes ao

    registro atual da lngua francesa, tendo como referncia o jornal quotidiano de mais

    prestgio na Frana,Le Monde.

    Em seguida, o discurso direto, isto , a debreagem de segundo grau, e o

    discurso indireto e o modo subjuntivo, no que diz respeito concordncia entre os

    tempos do modo indicativo e subjuntivo.

    Finalmente, adentramos no captulo mais rido, o das neutralizaes verbais,

    onde levantamos as hipteses possveis de embreagem em lngua francesa e analisamos

    vrias delas. No todas, pois uma grande parte no possvel ou no encontrada. O

    fato de no serem encontradas no significa que essas embreagens no existam; algumas

    delas realmente so usualmente inviveis na lngua francesa, mas outras hipteses,

    embora plausveis, no podem ser ilustradas pelo fato de termos limitado como corpus

    apenas o jornal Le Monde e, de acordo com a cena genrica e com o ethos dessequotidiano, algumas neutralizaes desrepeitariam o seu carter, no iriam de encontro

    ao que prega o seu ethos.

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    1.

    O tempo, a lngua e o discurso

    O conceito de tempo

    O tempo sucessivo porque, tendo sado do eterno,

    quer voltar ao eterno. Quer dizer, a idia de futuro

    corresponde a nosso desejo de voltar ao princpio. Deus

    criou o mundo. E todo o mundo, todo o universo das

    criaturas, quer voltar a este manancial eterno que

    intemporal, no anterior nem posterior ao tempo, mas

    que est fora do tempo.

    (Jorge Lus Borges)

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    Fernando Pessoa diz que o mito o nada que tudo. Talvez, possamos

    estender tal descrio para o tempo.

    O tempo uma questo que sempre suscitou o interesse humano; a busca

    por sua compreenso no recente e sempre existiu, trata-se de uma preocupao

    constante no nosso imaginrio. Tal busca fez despertar, entre diferentes culturas,

    diferentes reas e diferentes maneiras de pensar, o gnio de muitos poetas,

    antroplogos, filsofos, religiosos, artistas e cientistas, deixando-nos um interessante

    legado a respeito desse substantivo, sobre o qual Santo Agostinho declarou: O que

    por conseguinte o tempo? Se ningum mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem

    me fizer a pergunta, j no sei (Agostinho, 2000:322).

    No podemos falar de noes de tempo, no cristianismo especialmente, sem

    remeter, mesmo que brevemente, ao bispo e filsofo Aurlio Agostinho ou Santo

    Agostinho (354-430) que, em Confisses, se inquiriu, sempre atrelando f e razo, sobrequestes psicolgicas intrnsecas ao ser humano, como o mal, a predestinao, a

    liberdade e, tambm, sobre a questo do tempo. Para ele, o tempo representa um

    paradoxo fcil de saber e perceber, porm difcil de explicar, pois as concepes de

    presente, passado e futuro, no momento da enunciao, no podem ser concretizadas e

    explicadas, visto que no tm durao real e mensurvel.

    Paul Ricur, ao introduzir seu captulo sobre as aporias do tempo, baseado

    no livro XI de Confisses, de Santo Agostinho, diz que no se deve disjungir a noo de

    tempo da noo de eternidade e que, todavia, Santo Agostinho s se refere a ela para

    marcar a deficincia ontolgica caracterstica do tempo humano (1983:22). Ricur

    enfatiza que o estilo de Santo Agostinho, recorrendo a indagaes e aporias, remete ao

    estilo platnico e neo-platnico: no h descrio sem discusso (1833:23). O

    argumento ctico agostiniano clssico e constata que o tempo no tem ser: o tempo

    no , pois o futuro no ainda, o passado no mais e o presente no dura.

    Falar do tempo no fcil, pois ele est em tudo, porm, inefvel. Medir o

    tempo tambm no uma tarefa fcil. Existem vrios instrumentos para medir o tempo,mas todos j foram passveis de questionamentos; ainda no se resolveu o enigma da

    medida do tempo (1983:34). Em geral, a maneira de medi-lo est, em diferentes pocas

    e em diferentes regies, ligada a elementos da natureza. A noite, o dia e as fases da lua

    so as medidas para definir os dias do calendrio, assim como o movimento de 365 dias

    da Terra ao redor do Sol e de 24 horas em torno de seu prprio eixo.

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    A contagem do tempo tambm est associada religiosidade e s crenas de

    cada sociedade. Uma concepo linear e progressiva do tempo uma caracterstica das

    religies chamadas histricas: o judasmo, o cristianismo e o islamismo; so chamadas

    histricas porque asseguram a interveno de Deus na histria, num acontecimento

    nico e jamais repetido, assim como a existncia de uma meta final de salvao da

    humanidade na eternidade. Dessa forma, cada uma dessas religies tem uma diferente

    maneira de organizar seu calendrio: para os cristos, o marco o nascimento de Jesus

    Cristo e, entre os muulmanos, a fuga de Maom para a Medina. E, se estamos em

    2006 no mundo cristo e em 1426 no calendrio islmico, os judeus, que tm como

    marco a criao do mundo, segundo suas concepes, esto em 5766 (a partir de

    setembro, aps oRosh Hashan).

    Como vemos, a forma como marcar, contar e organizar o calendrio e o

    tempo varia de acordo com a religio, cultura e ideologia de cada povo ou nao, sendocomplicado chegar a um consenso. Para tentar solucionar essa difcil questo da medida

    do tempo, Santo Agostinho lanou a noo do triplo presente: imprprio dizer que os

    tempos so trs: pretrito, presente e futuro. Mas talvez fosse prprio dizer que os

    tempos so trs: presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das

    futuras. Existem trs tempos na minha mente que no vejo em outra parte: lembrana

    presente das coisas passadas, viso presente das coisas presentes e esperana das coisas

    futuras (Agostinho, 2000:328). Essa tese do triplo presente, que prope uma soluo

    para o enigma do ser que no possui ser, liga-se tese do distentio animi, distenso do

    esprito, que, por sua vez, prope uma soluo para a questo da extenso do tempo, isto

    , para o enigma da extenso de uma coisa que no tem extenso (Ricur, ibid:40).

    Ricur considera a extenso do tempo um enigma pois parece impossvel medir o

    tempo se o tempo no passvel de mesura, j que no tem nem presente, nem passado

    e nem futuro, no tem nem comeo, nem meio e nem fim.

    Para estudarmos o tempo, interessante relevar a etimologia dessa palavra.

    Tempo um significante de muitos significados, podendo ser definido como durao,passado, ciclos, eras, fases, momentos, e utilizado em vrios domnios: da meteorologia,

    da msica, do esporte, da gramtica etc.

    O primeiro sentido que damos, em geral, para a palavra tempo sua

    significao meteorolgica: O tempo est muito bom hoje para irmos piscina. Logo

    em seguida, associamos a outras idias, como a expresses que mostram o tempo como

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    sinnimo de simultaneidade: Ela quer fazer tudo ao mesmo tempo; de sucessividade:

    Nossa, como o tempo tem passado rpido ou, ainda, de durao: No tive tempo de

    ler tudo o que deveria.

    Os dicionrios podem nos ajudar na definio etimolgica do tempo, pois

    eles no s definem os termos, como tambm mostram o que a cultura diz sobre eles. Se

    tomarmos alguns dicionrios de lngua portuguesa, podemos verificar qual o conceito

    vulgar desses termos, isto , relativo ou pertencente plebe, ao vulgo; popular; que

    no foge ordem normal, no se destaca; banal, comum, corriqueiro, ordinrio, usual;

    que se sabe; notrio, sabido, segundo o dicionrio Houaiss. A maneira como um povo

    traduz e define um signo lingstico est atrelada s coeres discursivas da sociedade

    em que vive. Segundo Benveniste,para o falante h, entre a lngua e a realidade,

    adequao completa: o signo encobre e comanda a realidade; ele essa realidade

    (1988). Portanto, para definir um termo, preciso ir alm, pois ele no definido por sis, mas no contexto cultural e social ao qual pertence.

    Vejamos as definies dadas ao vocbulo tempo nos dicionrios Houaiss

    eMichaelide lngua portuguesa

    O dicionrioHouaissd 17 definies para tempo:

    1. durao relativa das coisas que cria no ser humano a idia de presente,

    passado e futuro; perodo contnuo e indefinido no qual os eventos se sucedem;

    2. determinado perodo considerado em relao aos acontecimentos nele

    ocorridos; poca;

    3. certo perodo da vida que se distingue de outro;

    4. perodo especfico, segundo quem fala, de quem se fala ou sobre quem

    se fala;

    5. (sXIII) poca na qual se vive;

    6. oportunidade para a realizao de alguma coisa;

    7.perodo indefinido e geralmente prolongado no futuro;

    8. (sXIV) conjunto de condies meteorolgicas;9. (sXIV) poca propcia para certos fenmenos ou atividades; estao,

    sazo, quadra;

    10 Rubrica: astronomia. Hora em local especfico;

    11. Rubrica: esportes. Cada um dos perodos em que se dividem as

    partidas de determinados jogos;

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    12. Rubrica: esportes. Durao cronometrada de uma corrida;

    13. Rubrica: fsica. Dimenso que permite identificar dois eventos que,

    caso contrrio, seriam idnticos e que ocorrem no mesmo ponto do espao [smb.:T];

    14. Rubrica: gramtica. Categoria verbal que indica o momento em que se

    d o fato expresso pelo verbo ou o tempo em que transcorrem [O contedo dessa

    categoria varia segundo as lnguas; em portugus, compreende presente, pretrito (ou

    passado) e futuro, e suas subdivises.]

    15. Rubrica: gramtica. Cada subdiviso da categoria tempo, existente

    numa lngua, e seu paradigma prprio;

    16. Rubrica: msica. Unidade abstrata de medida do tempo musical, a

    partir da qual se estabelecem as relaes rtmicas; pulsao;

    17. Rubrica: msica. m.q.andamento('velocidade das pulsaes').

    O dicionrioMichaelisd 21 definies para tempo:

    1.Medida de durao dos seres sujeitos mudana da sua substncia ou a

    mudanas acidentais e sucessivas da sua natureza, apreciveis pelos sentidos orgnicos.

    2.Uma poca, um lapso de tempo futuro ou passado.

    3.A poca atual.

    4.A idade, a antiguidade, um longo lapso de anos.

    5.A existncia humana considerada no curso dos anos.

    6.poca determinada em que ocorreu um fato ou existiu uma personagem

    (com referncia uma hora, a um dia, a um ms ou a qualquer outro perodo).

    7. Ocasio prpria para um determinado ato; ensejo, conjuntura,

    oportunidade.

    8. Sazo, quadra, perodo prprio de certos atos, de certos fenmenos, da

    existncia de certas qualidades.

    9. Estao, quadra do ano adequada a certas fases da natureza e aos

    trabalhos que delas dependem.10.Estado meteorolgico da atmosfera; vento, ar, temperatura.

    11.Horas de lazer, horas vagas.

    12.Delonga, dilao, prazo.

    13.Gram.Flexo que indica o momento de ao dos verbos.

    14.Mus.Cada uma das divises do compasso.

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    15.Mus.Movimento com que se deve executar um trecho musical e que se

    indica por meio de determinadas expresses.

    16.Metrif.As diferentes divises do verso, conforme as slabas e os acentos

    tnicos.

    17.Mec. Quantidade de movimento de um corpo ou sistema de corpos,

    medida pelo movimento de outro corpo, supondo-se que os dois movimentos so

    proporcionais.

    18. Horrio vendido aos patrocinadores, numa emissora de rdio ou

    televiso.

    19.Esp.Cada um dos dois perodos em que se divide a partida de futebol:

    Primeiro tempo, segundo tempo.

    20.Inform.Em msica MIDI, velocidade na qual as notas so reproduzidas,

    medida em batidas por minuto (geralmente 120 bpm).21.Inform. Num ttulo multimdia, velocidade em que so exibidos os

    quadros.

    Vejamos, tambm, a definio de tempo no dicionrio francs Le Petit

    Larousse Illustr:

    Tempsn.m. (lat. tempus)

    1. Notion fondamentale conue comme un milieu infini dans lequel se

    succdent les vnements et souvent ressentie comme une force agissant sur le monde,

    les tres;

    2. Astron., Phys. Ce milieu, conu comme une dimension de lUnivers

    (espace-temps). Temps atomique international; temps sidral; temps solaire; temps

    solaire moyen; temps civil; temps universel; temps universel coordonn;

    3. Temps lgal: heure lgale;

    4. Phys. a. dure considre comme une quantit mesurable. b. paramtre

    permettant de reprer les vnements dans leur succession;5. Chacune des phases successives dune opration, dune action.

    6.Mus. Division de la mesure.

    7. Inform. Temps daccs: lintervalle de temps qui spare linstant o un

    processeur, dans unordinateur, demande une information et celui o la mmoire la lui

    fournit.

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    8.Temps dantenne: dure dtermine dmissions de radio ou de tlvision

    diffuses dans le cadre de la programmation.

    9. Sociol. Temps choisi: travail horaire variable.

    10.Sports. Dure chronomtre dune course, dune match, etc.

    11. Moment, poque occupant une place dtermine dans la suite des

    vnements ou caractrise par quelque chose.

    12. Fam. Vieilli:faire son temps, son service militaire.

    13.Moment favorable telle ou telle action.

    14.Ling. Catgorie grammaticale de la localisation dans le temps (prsent,

    passe, futur), sexprimant en particulier par la modification des formes verbales;

    chacune des sries verbales personnelles de la conjugaison.

    15.tat de latmosphre, en un lieu et un moment donns.

    Vemos que as definies so semelhantes, sempre havendo consideraessobre o tempo cronolgico, fsico e lingstico. Entretanto, possvel perceber certas

    nuances; por exemplo, o tempo fsico bem mais detalhado no dicionrio francs

    enquanto os dicionrios de lngua portuguesa atentam mais para o aspecto humano do

    tempo, como vemos nos itens 3, 4, 5 de Houaiss, em que menciona perodo da vida,

    perodo especfico, segundo quem fala, de quem se fala ou sobre quem se fala, poca na

    qual se vive ou nos itens 5 e 6 do Michaellis, em que h citaes sobre a existncia

    humana e a existncia da personagem. Tambm importante ressaltar qual o primeiro

    item para o dicionrio de lngua francesa e o de lngua portuguesa; ambos iniciam a

    definio do termo tempo na sua relao intrnseca com o homem e o universo.

    Aquele comea com a noo de infinito no qual se sucedem os acontecimentos e de

    influncia sobre o mundo e este inicia focando a ao do tempo sobre o ser humano na

    concepo de presente, passado e futuro.

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    Tempo e discurso

    "-Socrate: Ce n'est pas des mots qu'il faut partir: pour

    apprendre et pour chercher le rel c'est du rel lui-

    mme qu'il faut partir, bien plutt que des noms -

    Cratyle: videmment Socrate".

    Cratyle, Socrates

    Como j dissemos, ao aprendermos uma lngua estrangeira, tendemos a

    considera-la como reflexo e nomenclatura do que existe no mundo. Para Saussure, a

    relao deve ser entre imagem acstica e conceito, isto , entre significante e

    significado, conceito este diferente daquele de existir simplesmente uma nomenclaturapara as coisas. Por meio da referncia, palavra que vem do latim e quer dizer levar

    consigo, a um significante atribudo um significado do mundo extralingstico, real

    ou imaginrio, que o referente; essa referncia depende das coeres discursivas de

    cada cultura, isto , dos seus valores socioletais e de suas ideologias. Entretanto,

    Saussure vai alm da mera referncia, ele atribui maior importncia ao processo de

    referencializao, em que as relaes entre enunciador e enunciatrio so consideradas;

    pois as intenes persuasivas entre eles, criadoras de tenso no nvel da estrutura da

    enunciao, projetam um fazer interpretativo capaz de dimensionar os limites entre a

    referencializao e o mundo extralingstico.

    Segundo Saussure, como foi dito, o signo lingstico definido pela relao

    significante (conceito) e significado (imagem acstica), sendo que no existe relao

    necessria entre um e outro. Para ele, a lngua no capaz de designar o mundo de

    forma completa e fiel por no existir uma relao proporcional entre palavras e coisas;

    isso porque o signo lingstico arbitrrio, ou seja, o signo basta-se por si s e no

    existe uma ligao motivada com o significado. Para Benveniste, a arbitrariedade do

    signo vem do fato de a realidade ser excluda na definio do signo: O domnio do

    arbitrrio fica relegado para fora da compreenso do signo lingstico (1988:35).

    Arbitrrio sim, porm necessrio para haver comunicao e interao entre os falantes

    de uma mesma lngua, pois ela um sistema. Como diz Kristeva, o arbitrrio do signo

    por assim dizer normativo, absoluto, vlido e obrigatrio para todos os sujeitos que

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    falam a mesma lngua. A palavra arbitrrio significa mais exatamente imotivado, quer

    dizer que no h nenhuma relao natural ou real que ligue o significante e o

    significado (1974:26).

    A respeito dessa relao entre nomes e coisas podemos citar o dilogo

    Crtilo, de Plato (427 - 347 a. C), em que questionado se os nomes ( orthots,

    onomatn) so dados s coisas por lhe serem inatos ou por dependerem de convenes.

    O dilogo Crtilo considerado, por alguns, a primeira obra de filosofia da

    linguagem, visto que trata da complexa tarefa de criao de uma teoria da significao.

    O debate dividido entre as posies de Hermgenes e Crtilo. O primeiro

    acredita em uma concepo convencionalista da linguagem, em que os nomes so

    atribudos livremente pelo falante, a partir de suas sensaes; o segundo exibe uma

    concepo naturalista, em que os nomes designam a natureza das coisas. O ponto em

    comum nas duas concepes a de um fluir inerente relao entre nome e coisa, sejaporque o fluxo est na multiplicidade e variedade das sensaes, seja porque a prpria

    natureza das coisas o constante fluxo.

    Crtilo aborda a questo do elo entre significante e significado enquanto

    ligao entre o nome e a realidade, discutindo o signo e relacionando o significante

    aparente ao significado escondido. Tal relao pode ser natural, se o elo necessrio ou

    cultural, se o elo arbitrrio e criado pelo homem.

    Se o signo depende de fatores culturais e naturais, essa teoria serve para as

    lnguas. Segundo Erik Louis, Plato permite perceber que a origem de cada lngua a

    conveno: a escolha efetiva de cada significante revela uma negociao que visa a

    estabelecer um signo a partir do conhecimento da coisa significada. Plato introduz

    Aristteles e a distino feita por ele de duas origens: a faculdade e a facticidade.

    O mesmo fenmeno de desreferencializao da lngua, isto , a negligncia

    na relao dos coenunciadores com o mundo extralingstico, fazendo uma simples

    relao de referncia entre nomes e coisas, pode ser encontrado na forma como os

    tempos verbais, seja em lngua materna, seja em lngua estrangeira, so ensinados nasescolas. Em geral, os tempos verbais so ensinados de forma linear, como sendo o

    tempo que passa, sem que sejam referencializados no discurso e na enunciao e sem

    interao entre lngua e falante. Os tempos verbais, s vezes, so mostrados em uma

    linha do tempo pontilhada em que o passado vem simplesmente antes do presente e o

    futuro depois, com o pretrito podendo ter duas representaes: uma para mostrar o

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    passado que comeou e acabou em algum momento anterior (pretrito perfeito/pass

    compos) e outra para o passado que teve uma durao mais indefinida/

    habitual/repetitiva (pretrito imperfeito/ imparfait):

    .............

    imparfait pass compos prsent futur

    Ex: Quand jtaisenfant jai gagnun ours de peluche que jadoreet je le

    donnerai mon fils.

    Essa maneira de explicar os tempos verbais parece um tanto simples e no

    corresponde ao tempo e sua interao com o enunciador.

    Sistema, norma e fala

    Diacronia e sincronia

    Foi o lingista suo Ferdinand Saussure quem criou o termo diachronie,

    para opor ao termo j existente synchronie. Vejamos como esses vocbulos so

    definidos no dicionrioHouaiss:

    - diacronia: descrio de uma lngua ou de uma parte dela ao longo de suahistria, com as mudanas que sofreu; gramtica histrica; lingstica diacrnica; o

    conjunto dos fenmenos sociais, culturais etc. que ocorrem e se desenvolvem atravs do

    tempo.

    fr. diachronie (1916) 'natureza dos fatos lingsticos observados em

    sucessivas fases, ao longo do tempo'; voc. criado por Ferdinand de Saussure (1857-

    1913, lingista suo) do gr. di 'atravs de' e khrnos 'tempo'; p.ext., tb. us. em outras

    reas do conhecimento.

    - sincronia: estado ou condio de dois ou mais fenmenos ou fatos

    passados ou atuais que ocorrem simultaneamente e so, de certo modo, relacionados

    entre si;

    - estado de lngua considerado num momento dado, independente da

    evoluo histrica dessa lngua Ferdinand de Saussure (1871-1913) frisou a

    independncia entre as abordagens sincrnica e diacrnica das lnguas, mostrando que

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    possvel abstrair os fatos que antecederam um dado estado de lngua e v-la como um

    sistema completo e perfeitamente eficiente em cada etapa da sua histria, que como tal

    deve ser descrito pela lingstica sincrnica.

    - sncrono + -ia, prov. por infl. do fr. synchronie (1827) 'arte de comparar,

    de conciliar as datas da histria, (c1913) na acp. de ling(F. de Saussure)', por oposio a

    diacronia, conceitos mais amplamente divulgados a partir de 1916.

    Aspectos diacrnicos

    Com base em vrios autores de obras de histria da lngua francesa,

    fazemos, aqui, um esboo daquilo que o autor quebequense Jean Forest chamou, nottulo de seu livro, de A incrvel aventura da lngua francesa (2002).

    Apontamos apenas alguns fatos da histria da Frana e como eles afetaram a

    lngua, no um estudo profundo e exaustivo, mas apenas ilustrativo, visto que no se

    trata de uma pesquisa de lingstica histrica.

    Antes da chegada dos romanos, no comeo da era do ferro (sculos 8 e 6 a.

    C), a civilizao celta, originria do que hoje o sul da Alemanha, e o nordeste da

    Frana, se implantou na ustria, no leste da Frana, na Espanha e na Gr-Bretanha.

    Entre os anos 1000 e 500 antes de nossa era, a Itlia era habitada por trs

    povos diferentes: os etruscos, ao norte de Roma, os gregos ao sul e um grande nmero

    de etnias latinas. Os etruscos fundaram Roma em 753 e os celtas da Itlia foram

    submetidos aos que se tornariam os romanos; a Glia (a maior parte do sul da Frana)

    foi submetida a Jlio Csar e a maior parte da Bretanha dominao romana no sculo I

    de nossa era. Depois de 800 anos de Guerra, Roma construiu um imprio imenso que,

    em 286, foi dividido em imprio latino, no oriente, e imprio grego, administrado por

    Constantinopla, no ocidente. Os romanos transformaram profundamente os povosconquistados e simplesmente ignoraram suas lnguas brbaras, impondo o latim. Os

    brbaros que quisessem conquistar postos importantes deveriam sabe-lo.

    Durante todo o imprio romano, houve um grande perodo de bilingismo,

    do latim ao lado de lnguas como o celta, o grego e o germnico. No sculo 5, o

    unilingismo latino foi atingido e as lnguas celtas desapareceram. Roma garantiu

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    autonomia lingstica e administrativa a alguns povos, em troca de ajuda na defesa

    militar, por isso, gauleses, judeus, bascos, bretes, armnios, albaneses e berberes

    puderam conservar suas lnguas como instrumento veicular.

    Esse latim falado por todos se distanciou do clssico do sculo I e foi

    desenvolvida uma variante popular e esta triunfou sobre aquele.

    Desde o fim do sculo III, os imperadores romanos passaram a acolher

    germnicos como soldados para seu exrcito j que os romanos no se interessavam

    pela guerra. Esses romanos ganharam terras, fundaram reinos e o latim falado nessas

    regies transformou-se ainda mais.

    Em 375, ocorre o que os romanos chamaram de invases brbaras, isto ,

    o choque entre Hunos, provenientes da Hungria, e Ostrogodos germnicos, marcando o

    inicio das grandes invases e o comeo do dislocamento do imprio romano. Em 395,

    ele dividido em imprio romano do oriente e imprio romano do ocidente. Aps tervencido os ostrogodos, os hunos atacaram godos, visigodos, vndalos, francos, saxes e

    todos esses povos foram deslocados para o imprio romano do ocidente. Ao fim do

    sculo V, o imprio romano do ocidente j havia desaparecido, sendo substitudo por

    vrios imprios germnicos. O imprio romano do oriente sobrevive at 1453. No

    ocidente, os ostrogodos se instalaram na Itlia, Sardenha e Iugoslvia; os visigodos

    ocuparam a Espanha e o sul da Frana; os francos, o norte da Frana e da Germnia, os

    anglos e os saxes atravessaram at a Gr-Bretanha, depois de expulsar os celtas, e os

    vndalos conquistaram o norte da frica.

    O esfacelamento do imprio romano do ocidente tem conseqncias no

    aspecto lingstico, o latim popular acompanha esse esfacelamento do imprio e passa a

    apresentar muitas variaes, dependendo da regio. A situao lingstica era bem

    complexa no sculo VII e as lnguas germnicas tornaram indispensveis para os povos

    que quisessem ocupar um papel importante na poltica; o latim no era mais utilizado na

    lngua escrita e as pessoas no o falavam mais. Comearam a falar uma lngua que no

    era mais o latim, mas ainda no era francs, italiano, espanhol, portugues, romeno oucatalo, era o roman(romnico).

    Essa lngua tinha muitas variaes, de acordo com cada regio; cada pas

    tinha dezenas de variantes. Na Frana, por exemplo, havia francien, picard, lorrain,

    normand, berrichon, champenois, franc-comtois, bourguignon, bourbonnais,

    tourangeau, angevin, poitevin, saintongeaisetc.

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    Para ilustrar, apresentamos um mapa da Frana onde se pode visualizar

    esses diferentes dialetos:

    Se comparado ao espanhol ou ao italiano, o francs se distanciou mais do

    latim, devido ao contato com as lnguas germnicas, principalmente o francique

    (frncico), que se tornou a lngua da aristocracia franca.

    No sculo X, sem conseguir expulsar os vikings, provenientes da

    Escandinvia, o rei da Frana, Carlos III, o simples, lhes ofertou uma regio inteira, a

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    Normandia. L, eles se casaram com mulheres da regio e, gradualmente, perderam sua

    lngua escandinava, acabando por assimilar a lngua romana falada nessa regio, o

    normando.

    A lngua evolua livremente e cada vila falava um dialeto diferente. O que se

    chama hoje francs antigo corresponde a um grande nmero de variantes lingsticas,

    geralmente orais, no normalizadas e no codificadas. Esses dialetos se dividiam em

    trs grupos: as lnguas doc no norte, as lnguas dol no sul e o franco-provenal na

    Franche-Comt, Savoie, Val-d'Aoste (Itlia) e na atual Sua. Eram falados, nessa

    poca, cerca de 600 dialetos e somente os letrados sabiam latim.

    No sculo X, o francs, associado freqentemente ao francien (a palavra

    francienfoi criada em 1889 pelo fillogo Gaston Paris para se referir ao francs da le-

    de-France do sculo XIII, por oposio aopicard, normand, bourguignon, poitevin etc)

    ocupava somente um pequeno territrio entre as lnguas dol e s era falado em Paris eOrleans, nas camadas superiores da sociedade. Os reis, entretanto, ainda falavam a

    lngua germnica frncico.

    Em 987, Hugo Capeto foi coroado rei da Frana e foi o primeiro rei a

    utilizar, como lngua materna, no o latim, nem o frncico, mas a lngua que viria a ser

    o francs, o franois. Os capecianos fixaram-se em Paris e, em 1119, o rei Lus VI

    escreveu uma carta ao Papa Calixto II, onde a palavra France aparece pela primeira

    vez e nela se proclama rei da Frana, no mais dos francos, e filho da Igreja romana.

    A existncia de uma sede estvel em Paris deu mais prestgio ao dialeto do senhor e a

    aristocracia e a burguesia passaram a tambm utilizar o francien. Com Lus XI, a

    unificao lingstica ganhou fora e, progressivamente, substituiu as outras lnguas

    dol.Ao fim de seu reino, Lus XI era o mais poderoso monarca da Europa, fato que

    assegurou ainda mais prestigio a sua lngua, que passou a ser chamada francs. No

    sculo XII, os escritores passaram a utilizar o francs e a administrao real o utiliza ao

    lado do latim. Ao fim do sculo XIII, escrevia-se em francs na Itlia, na Inglaterra, na

    Alemanha e nos pases baixos. O latim permanecia a lngua dos cultos, do clero, dascincias, da filosofia e das instituies educacionais, isto , era a lngua veicular em

    todo o mundo catlico.

    Nos sculos XIV e XV, a Frana viveu um perodo negro, sendo um dos

    perodos mais crticos tambm na histria do mundo, devido s guerras civis, s pestes,

    Guerra de Cem Anos, queda do imprio romano oriental, ao desprestgio da Igreja e

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    misria generalizada. No que concerne lngua, ela est em plena mudana e essa

    poca marca a transio do francs antigo ao francs moderno.

    Com Felipe, o Belo (1268-1314), o francs passou a ser empregado pelos

    atos oficiais, pelos chanceleres reais e pelos parlamentos e, em 1300, torna-se uma

    lngua administrativa e judiciria, concorrendo com o latim.

    A Guerra de Cem Anos fez nascer, tanto nos franceses quanto nos ingleses,

    um nacionalismo muito forte e, em 1383, o francs substitudo pelo ingls no

    Parlamento de Londres. Henrique V o primeiro rei a utilizar o ingls nos documentos

    oficiais, porm o francs ainda falado na corte, pois a maior parte das rainhas da

    Inglaterra francesa.

    Durante o perodo de 1789-1870, marcado por mudanas de regime e pelo

    triunfo da burguesia, iniciados com a Revoluo francesa, o poder da Inglaterra

    expandia-se, a Bulgria, a Grcia, a Blgica conquistavam a independncia e a Itlia e aAlemanha unificavam-se. Junto a todas essas mudanas, ainda houve os progressos no

    transporte e na comunicao (navegao a vapor, telefone etc), que facilitaram a

    unificao lingstica, assim como a influncia de uma lngua sobre outra. Os ideais de

    patriotismo da Revoluo influenciaram o interesse por uma lngua nica, simbolizando

    a nao e, tambm, para que as idias dos revolucionrios pudessem ser transmitidas e

    compreendidas uniformemente. Alm do mais, a existncia de inmerospatoistambm

    no era coerente ao ideal de igualdade da Revoluo, pois os cidados que no falavam

    a lngua do rei eram discriminados. Uma sociedade verdadeiramente livre devia ter uma

    lngua nacional, acessvel a todos.

    Com a lei do II Termidor (20 de julho de 1794), foi decretado o terror

    lingstico e os patois, uma ameaa unidade desejada pelos revolucionrios,

    passaram a ser o principal alvo. De acordo com essa lei, todo ato pblico no territrio da

    Repblica devia ser escrito e pronunciado em lngua francesa.

    Aspectos sincrnicos

    Aps essa viso panormica e diacrnica da histria da lngua francesa,

    passemos a uma viso sincrnica, tendo em vista a francofonia. O que aqui dito tem

    como base estudos francfonos da Universidade Laval, em Qubec.

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    Ainda hoje, so falados, ao lado da lngua francesa, alguns dialetos. As

    lnguas da Frana metropolitana so o basco, breto, alemo, flamengo, corsa, ocitano,

    catalo, franco provenal e outras menos representativas.

    Nos DOM-TOM, departamentos e territrios de alm mar, como Martinica,

    Guadalupe, Guiana, Reunio, Haiti, Santa Lcia, Seichelas, Maurcio, so falados

    crioulos com base na lngua francesa

    Como dizia o jornalista Bertrand Barre j em 1794, o federalismo e a

    superstio falam baixo breto; a emigraao e o dio da Repblica falam alemo; a

    contra-revoluo fala italiano e o fanatismo fala basco. (fonte:

    http://site.voila.fr/HISTOPRESSE1/page8.html)

    O termo francofonia foi empregado pela primeira vez em 1880 pelo

    gegrafo francs Onsime Reclus. Hoje, francofonia, com f minsculo, utilizado

    para nomear os povos ou grupos de locutores que fazem uso parcial ou integral dalngua francesa em suas vidas cotidianas e em suas comunicaes; j o termo

    Francofonia, com f maisculo, designa os governos que usam o francs em seus

    trabalhos e negociaes.

    Os membros da Francofonia so aqueles que fazem parte dos Sommets

    francfonos.

    A noo de francs lngua materna s aplicada aos que o falam na Frana,

    na Blgica, na Sua, no Canad e no principado de Mnaco.

    Com o estatuto de lngua oficial ou co-oficial em 51 estados e 34 pases, o

    francs a segunda lngua do mundo sob o plano de importncia poltica. Na Europa, o

    Francs a nica lngua oficial na Frana, no principado de Mnaco e no gro ducado

    de Luxemburgo. Na frica, a nica lngua oficial no Benin, na Burkina Faso, na

    Repblica Centro-Africana, no Congo-Brazzaville, no Congo-Kinshasa, na Costa do

    Marfim, no Gabo, na Guin, no Mali, na Nigria, na Reunio, no Senegal e no Togo.

    Na Amrica, o francs conserva esse estatuto nos DOM (Departamentos de alm mar):

    Martinica e Guadalupe, Saint-Pierre-e-Miquelon e Guiana francesa. Na Oceania, alngua francesa goza desse estatuto nos TOM (Territrios de alm mar): Nova-

    Calednia, Polinsia francesa, ilhas Wallis e Futuna.

    J com o estatuto de lngua no-oficial, encontramos Blgica, Sua, Canad,

    Haiti, Burundi, Camares, Comores, Djibouti, Guin equatorial, Madagascar,

    Mauritnia, Ruanda, Seichelas e Tchad.

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    O estatuto jurdico do francs se estende ainda a vrios pases no soberanos,

    sendo lngua oficial na provncia de Qubec, nos cantes suos de Genebra, Neuchtel,

    Jura e Vaud e lngua no-oficial nos cantes suos de Friburgo, Valais e Berna, na

    provncia do Novo-Brunswick, nos Territrios do Nordeste do Canad, no Val-d'Aoste

    na Itlia e no territrio autnomo de Pondichry, na ndia.

    Vejamos, a ttulo de ilustrao, um quadro em que figuram os estados onde o

    francs lngua oficial ou co-oficial:

    tats: 51Pays: 29 Continents Population(enmillions)

    Locuteursfranais(en %)

    Langue(s) officielle(s)

    Belgique Europe 10,0 41 % franais/nerlandais/allemandBnin Afrique 5,5 13 % franaisBerne (Suisse) Europe 942 000 8,1 % franais/allemandBurkina Faso Afrique 10,3 4,7 % franaisBurundi Afrique 6,2 4 % franais/kirundiCameroun Afrique 12,8 67 % franais/anglaisCanada Amrique 29,9 23,2 % anglais/franaisCentrafrique Afrique 3,4 3,7 % franais

    Comores Afrique 600 000 0,3 % franais/arabeCongo-Brazzaville

    Afrique 2,3 1,2 % franais

    Congo-Kinshasa

    Afrique 41,8 6 % franais/anglais

    Cte d'Ivoire Afrique 12,9 1 % franaisDjibouti Afrique 473 000 2,8 % arabe/franaisFrance Europe 57,2 82 % franaisFribourg(Suisse)

    Europe 227 866 61 % franais/allemand

    Gabon Afrique 1,3 6 % franais

    Genve(Suisse)

    Europe 398 900 96 % franais

    Guadeloupe(F)

    Amrique 421 632 4 % franais

    Guine Afrique 7,8 2 % franaisGuyanefranaise

    Amrique 150 000 60 % franais

    Hati Amrique 7,1 1,5 % franais/crole

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    Jura (Suisse) Europe 69 000 100 % franaisLuxembourg Europe 384 000 4,1 % franaisMadagascar Afrique 14,6 1 % malgache (franais)Mali Afrique 10,8 0,01 % franaisMauritanie Afrique 2,3 2,6 % arabe/franaisMayotte(France)

    Afrique 135 000 0,01 % franais

    Monaco Europe 27 063 100 % franaisNeuchtel(Suisse)

    Europe 160 000 58 % franais

    Niger Afrique 8,3 8,9 % franaisNouveau-Brunswick (C)

    Amrique 729 625 32,8 % anglais/franais

    Nlle-Caldonie (F)

    Pacifique 196 000 37 % franais

    Nunavut (C) Amrique 25 000 2 %anglais/franais/inuktitut/inuinnaqtun

    Polynsie

    franaise (F) Pacifique 219 521 5 % franaisPondichry(Inde)

    Asie 40 000 10 % hindi/franais

    Qubec (C) Amrique 7,0 80,9 % franaisRunion (F) Afrique 675 000 0,3 % franaisRwanda Afrique 8,5 5% kinyarwanda/franaisSngal Afrique 8,4 7,4 % franaisSeychelles Afrique 79 000 0,10 % anglais/franais/croleSuisse Europe 6,5 18,4 allemand/franais/italienTchad Afrique 6,4 6 % arabe/franaisTerritoires duNord-Ouest(C)

    Amrique 0,04 2 % anglais/franais

    Togo Afrique 4,1 2,4 % franaisVal d'Aoste(Italie)

    Europe 115 000 65 % italien/franais

    Valais (Suisse) Europe 270 000 60 % franais/allemandVanuatu Pacifique 191 000 3,8 % anglais/franais/bichlamarVaud (Suisse) Europe 611 600 95 % franaisWallis-et-Futuna (F)

    Pacifique 14 166 0,75 % franais

    Fonte: http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/francophonie/francophonie_tableau1.htm

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    Le monde

    Escolhemos o jornal Le Monde como crpus, por ser um meio de

    comunicao representativo no registro da norma urbana culta da lngua francesa e ser

    considerado um quotidien de rfrence; alm de ser um jornal que se esfora em

    manter a norma culta da lngua.

    Seguimos, ento, com a apresentao e explicao do corpus desse trabalho,

    o jornal Le Monde. Partimos de uma apresentao formal, passamos pela sua histria,

    do surgimento aos dias de hoje e chegamos a depreenso de seu ethos, isto , suamaneira de se posicionar no mundo. A fonte para a maioria das informaes aqui

    apresentadas o stio http://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Monde.

    Apresentao

    Pays FranceLangue FranaisPriodicit QuotidienGenre Presse nationaleDiffusion 371 000 ex.Date de fondation 1944Ville d'dition ParisDirecteur de la rdactionRdacteur en chef Grard CourtoisPropritaire

    Site Web www.lemonde.fr ISSN 0395-2037

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    Le monde conquistou o ttulo de jornal de referncia na imprensa

    quotidiana francesa. Essa reputao se deve a varios fatores, tais como: o grande

    nmero de leitores, no s na Frana, mas em vrios pases francfonos e mesmo em

    outros pases, seja via jornal impresso, seja via internet (desde 1995), o que fez

    aumentar ainda mais o seu alcance; a coerncia interna entre seus jornalistas na feitura

    dos editoriais; a linguagem refinada, clssica, sem muitos modismos, mas que, ao

    mesmo tempo, tem a adeso de diversos tipos de leitores, pois no chega a ser

    exclusivista; o designer elegante e agradvel; a qualidade de sua equipe: jornalistas

    reprteres, desenhistas etc. Embora receba contribuies de indstrias e mercados

    financeiros, aos quais o jornal deve prestar contas, ainda existe uma grande orientao

    centro esquerdista em sua produo.

    Para ilustrar porque considerado o jornal de referncia, um dos itens aser destacado o imenso alcance de Le monde. Vejamos um quadro ilustrativo com

    tiragem de alguns dos mais importantes quotidianos franceses, nos ltimos anos:

    Fonte: OJD (Office de justification de la diffusion) de 1999 a 2004.

    Titre 1999 2000 2001 2002 2003 2004Aujourdhui en France* 479 112 486 145 506 610 509 114 505 419 501 492

    La Croix 86 400 86 574 87 891 92 873 94 929 96 312

    Les chos 122 999 128 342 127 445 120 333 116 903 116 856L'quipe 386 189 397 898 370 661 331 638 336 533 365 752

    Le Figaro 366 690 360 909 366 529 359 108 352 706 341 075

    L'Humanit ? 50 097 47 051 46 126 48 175 48 966

    Libration 169 427 169 011 171 551 164 286 158 115 146 055

    Le Monde 390 840 392 772 405 983 407 085 389 249 371 803

    La Tribune 85 885 90 918 87 577 82 042 80 459 80 846

    * : Les diffusions du Parisienet dAujourd'hui en Francesont couples. Attention, il arrive quele premier soit considr comme un quotidien rgional et le second comme un quotidiennational.

    Suplementos existentes emLe monde:

    - Le mondeconomie(s segundas-feiras) ;

    - Le monde des livres(s quintas-feiras) ;

    - Le monde2 era mensal e se tornou suplemento semanal na edio de fim

    de semana ( venda s sextas-feiras) ;

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    - Le monde Radio TV : programao do rdio e da televiso para toda a

    semana ( venda aos sbados) ;

    - New York Times, artigos surgidos no jornal estado-unidense, publicado

    em ingls (aos fins de semana, junto aoLe monde2).

    A partir de 2004, Le monde passou a produzir colees sobre temas

    culturais a serem vendidas com as edies Le monde2 e Le monde Radio TV, tais

    como :

    - Le cinma du Monde (coleo ecltica de DVD)

    - Le muse du Monde (coleo de livros de arte)

    Ao lado de Le monde , h vrias outras publicaes cuja linha editorial

    independente do quotidiano :- Le monde de lducation ;

    - Le monde des ados ;

    - Le mondede la musique et Le monde des philatlistes (1951), que no

    fazem mais parte do grupo ; o ltimo passou a ser Timbres magazine

    (2000) ;

    - Le monde initiative et Le monde des dbats (no existem mais).

    No seio do grupo La vie le monde, no que concerne o plo magazine,

    constitudo por:

    - Courier international;

    - La vie (temtica crist);

    - Tlrama (programa de televises, semanrio cultural de referncia);

    - Cahier du cinema.

    Le monde, ainda, acionrio majoritrio do quotidiano Midi Libre e

    tambm possui 51% do mensal Le monde diplomatique, cuja linha editorial

    totalmente independente. Le monde diplomatique tambm edita o bimestral Manire de voir e anualmente o Atlas du monde diplomatique.

    Desde 1954, Le monde diplomatique analisa as grandes apostas

    econmicas, estratgias, polticas e sociais ; trata-se de um jornal engajado ao servio da

    informao escrupulosa, privilegiando as enquetes e as anlises com numerosos

    especialistas dos pases em questo, alm de dar relevante espao cartografia.

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    Histria

    O quotidiano francs Le monde foi fundado em 1944 pelo jornalista e ex-

    professor de direito em Praga, Hubert Beuve-Mry (1902-1989).Em 1940, Hubert Beuve-Mry era Diretor dos Estudos, nas atividades da

    Ecole dUriage, escola criada com apoio do regime de Vichy; em 1942, ela fechada

    e muitos de seus contribuidores se engajam no movimento da Resistncia e, em 1944, o

    general de Gaulle o chama para criar, com a ajuda do governo francs, um quotidiano

    de referncia que substitua o extintoLe Temps. Le Monde mantm a mesma tipografia,

    o mesmo formato e a mesma apresentao deLe Temps; atualmente esse o nome de

    um quotidiano suo, editado em Genebra e surgido em 1998.

    Hubert Beuve-Mry mantm-se diretor deLe mondeat sua aposentadoria,

    em 1969, publicando seus editoriais sob o pseudnimo Sirius. A primeira edio de

    Le monde foi editada no dia 18 de dezembro de 1944, aparecendo no dia 19.

    Le monde passa por agitados e conflituosos momentos histricos, como a

    guerra da Arglia, as guerras pelo movimento de Libertao, a guerra do Vietnan.

    A partir de 1985, a primeira pgina (la une) passou a ser ilustrada com uma

    caricatura feita, normalmente, pelo desenhista Plantu (1951), cujos desenhos satricos j

    renderam vrias polmicas.Meio sculo depois de sua criao, em 19 de dezembro de 1995, Le monde

    passa a apresentar parte de seu contedo na internet, uma parte importante de seu

    contedo textual dirio passar a ser disponvel gratuitamente aos internautas de todo o

    mundo.

    No dia 07 de novembro de 2005, Le monde passa a apresentar uma nova

    roupagem, propondo mudanas profundas em sua arquitetura; passa a ter mais

    imagens (fotos, desenhos, infografias) e proporcionar uma leitura, digamos, maisarejada. Tais mudanas tiveram como motivao a hierarquizao de informaes mais

    complexas, proporcionando as chaves necessrias para a compreenso da atualidade, e

    do engendramento de fatos que explicam tambm os acontecimentos futuros, e a

    instaurao de um elo de proximidade entre o leitor e o seu jornal. Essas mudanas

    correspodem s trs novas partes que dividem o jornal: "actualit" (informaes do

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    dia), "dcryptages" (atualidade durvel) et "rendez-vous" (com o leitor). A pgina 3 do

    jornal passa a dedicar, todos os dias, uma coluna sobre um determinado tema, isto , um

    dossier sobre todo tipo de informao, buscando alcanar os mais variados tipos de

    leitor.

    Ethos

    Na introduo ao seu livro O estilo nos textos, a lingista Norma Discini

    define estilo:

    O estilo o homem, se pensarmos na imagem de um sujeito, construda

    por uma totalidade de textos que se firma em uma unidade de sentido. O

    estilo o homem, se pensarmos em um indivduo que, com corpo, voz e

    carter, construo do prprio discurso. O estilo o homem, se

    pensarmos na imagem de um sujeito que, depreendida dos textos, supe

    saberes, quereres, poderes e deveres ditados por valores e crenas

    sociais; um eu fundado no dilogo com o outro. O estilo o homem, se,

    para homem, for pensado um modo prprio de presena no mundo: um

    ethos (2003:07).

    Cada jornal faz e apresenta a construo de seu discurso e de sua concepo

    de mundo, que so criadas na prpria percepo constitutiva do outro. Isso quer dizer

    que, para a construo do prprio estilo do jornal, necessria a interao com seu

    enunciatrio, o leitor, cabendo aqui, o termo usado por Maingueneau, o co-enunciador;

    pois baseado na imagem do leitor a ser atingido que o sujeito da enunciao do jornal

    deve construir o seu discurso para, dessa forma, conseguir a adeso de seu enunciatrio.

    A todo ato de comunicao, est intrnseca a manipulao e o sujeito da

    enunciao, para ser efetivo, deve buscar a interao e integrao do co-enunciador para

    persuadi-lo e convence-lo. Para isso o ethos deLe Mondefaz uso de vrias estratgias,

    no plano do contedo e no plano de expresso, para vender uma boa, crvel e

    convincente imagem, capazes de causar uma boa impresso no seu co-enunciador,

    conquistando sua confiana e conivncia. Para que a performance seja realizada e seu

    enunciado seja considerado legtimo, o ethos deve adequar a cena da enunciao aos

    seus propsitos e segundo o seu auditrio. Assim sendo, o sujeito da enunciao deLe

    Monde incorpora um co-enunciador moderado, culto (ou que deseja ser e parecer

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    culto), de bom domnio da norma culta da lngua. dessa forma que o garant, termo

    utilizado por Maingueneau para nomear o sujeito da enunciao nessa relao de adeso

    do leitor, mostra sua identidade e capaz de convencer e fazer crer o seu co-enunciador.

    Assim sendo, a cenografia de Le Mondepermite construir tanto o ethos do

    jornal quanto o perfil do seu leitor, j que os jornais apresentam-se da forma como

    acreditam ser a mais apropriada para corresponder s expectativas do leitor. O ethosde

    Le Monde, preocupado com a relao tensa e no adeso do co-enunciador, deseja criar

    um efeito de pluralidade e polifonia, pois nenhum jornal quer perder leitores, buscando

    a adeso do mais amplo pblico. O garant do jornal, enquanto responsvel pela

    imagem e pela cenografia que passa aos respectivos coenunciadores, busca a conivncia

    do leitor e deve ser fiel a essa cumplicidade, com seu estilo prprio.

    Le Mondeapresenta o mundo por meio da discursivizao de um ethoscujo

    ideal de voz de concentrao, fixidez e densidade, na verdade, no vai de encontro auma indiscriminada pluralidade de leitores, pois existe um invisvel crivo para a

    incorporao do leitor, isto , o jornal visa a um pblico de senso crtico, de poder de

    argumentao e de domnio da norma culta da lngua e do estilo srio e refinado de Le

    Monde.

    Vrias so as estratgias deLe Mondepara convencer o enunciatrio de seu

    ethosde seriedade e credibilidade, assim como, de refinamento e busca da perfeio. A

    perfrmance buscada pelo discurso de Le Monde convencer o co-enunciador da

    objetividade, seriedade, refinamento e comprometimento caracterizadores de seu ethos

    eufemstico, de corpo seletivo, cuja voz amena e sbria no refinamento do seu dizer.

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    2.Os sistemas temporais

    Como o tempo, ainda mais sem corpo,

    pode trabalhar suas verrumas?

    E se o seu corpo nada,

    onde que as dissimula?

    Ora, como mais que o vento oco,

    e sua carne de nada, nula,

    no agride a paisagem:

    de dentro que atua.

    (Joo Cabral de Melo Neto)

    A semitica a teoria que busca mostrar como a significao constituda e

    organizada e o modo pelo qual o objeto de estudo se manifesta em qualquer linguagem:

    pintura, cinema, dana, msica, escultura, arquitetura, moda. Trata-se, ento, de uma

    cincia mais geral que a lingstica, pois transcende a linguagem verbal, estudando

    todas as outras linguagens.Dessa forma, a semitica torna-se um estudo imanente do texto conhecendo

    os seus mecanismos internos e produtores de coerncia, assim como sua organizao de

    sentido. Para Saussure, o sentido construdo na linguagem e produz uma viso de

    mundo, e essa linguagem no mero reflexo de um mundo extra-lingstico.

    Tratamos, aqui, da semitica francesa, que compreende a manifestao

    como uma totalidade de sentido e, para que esse sentido seja construdo, a semitica

    define o percurso gerativo do sentido. Esse percurso caminha do mais simples e

    abstrato ao mais complexo e concreto e constitudo de trs etapas: a mais simples e

    abstrata, o nvel fundamental; em seguida, o nvel narrativo e, em ltimo lugar, o nvel

    discursivo, o mais concreto. Todos os nveis apresentam uma semnticae uma sintaxe

    e, juntos, constituem o plano de contedo que, no nvel da manifestao, ou seja, no

    texto, constituir oplano da expresso.

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    No plano das estruturas fundamentais, a significao concebida como uma

    oposio semntica mnima, por meio da qual o sentido comea a ser formado. Essa

    oposio articula-se no quadrado semitico determinando as relaes fundamentais que

    geram o sentido e os valores inscritos no discurso.

    O nvel das estruturas narrativas organiza, a partir do ponto de vista de um

    sujeito, as oposies semnticas por ele assumidas. Esse sujeito chamado sujeito

    operadorou sujeito do fazere pode transformar estados, ou seja, estabelecer as relaes

    juntivas (de conjuno ou disjuno) entre sujeito de estado e objeto de valor. Esse

    objeto de valor so os valores do nvel fundamental convertidos, nesse nvel no h

    mais a negao ou a afirmao de contedos, mas sim a transformao daquelas

    oposies semnticas fundamentais em objetos de valor por meio da ao do sujeito.

    A narratividade constituda por uma sucesso de estados em que os

    sujeitos estabelecem relaes juntivas com os objetos e transformaes, por aquisioou privao desses objetos, que levam produo do sentido. Essas relaes juntivas

    podem aparecer como conjuno, em que o sujeito est conjunto com o objeto de valor,

    sendo um sujeito realizado; disjuno, em que o sujeito est disjunto do objeto de valor

    e virtualizado; no-conjuno, em que o sujeito potencializado e no-disjuno, em

    que o sujeito atualizado.

    Ainda para definir a narratividade, podemos citar Denis Bertrand, que diz

    existir narrativa desde que dois enunciados de estado sejam regidos e tranformados por

    um ou mais enunciados de fazer (2003: 284). Assim, o nvel das estruturas narrativas

    organiza a narrativa do ponto de vista de um sujeito, e as oposies semnticas do nvel

    fundamental so assumidas por esse sujeito do fazer, que pode transformar os estados.

    Um programa narrativo representa um enunciado de fazer, que rege um

    enunciado de estado, integrando estados e transformaes, podendo ser de duas

    naturezas: perfrmance e competncia. No programa narrativo de perfrmance, existeuma aquisio ou construo do objeto de valor sendo que o sujeito do fazer (S1) e o

    sujeito de estado (S2) so sincretizados em um mesmo ator da narrativa. No programa

    narrativo de competncia, existe uma doao de valores modais (querer, dever, saber e

    poder fazer ou ser) ao sujeito de estado tornando-o competente para agir e vivenciar sua

    paixes e aes.

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    O sujeito do fazer, imbudo da competncia necessria ou no, pode, ento,

    realizar dois programas narrativos, de acordo com a relao que ele determina entre o

    sujeito de estado e o objeto de valor, lembrando que sujeito de estado e sujeito de fazer

    podem representar o mesmo actante. O esquema de um programa narrativo pode ser

    assim construdo:

    a) em uma narrativa de aquisio:

    PN= S16(S2 Ov) 6PN= S16(S2 1Ov)

    b) em uma narrativa de privao:

    PN= S16(S2 1Ov) 6PN= S16(S2 Ov)

    E, finalmente, chegamos ao nvel discursivo, em cuja dimenso sinttica, a

    categoria de tempo, tema desta dissertao, est inserida, ao lado das categorias de

    pessoa e espao. Aqui estudamos a lngua francesa, mas vlido lembrar que todas aslnguas apresentam as categorias da enunciao (pessoa, espao e tempo), pois se trata

    de uma caracterstica intrnseca a qualquer linguagem, seja verbal, seja no-verbal.

    O ltimo nvel, o das estruturas discursivas, o mais concreto e complexo;

    nesse nvel, os valores axiologizados no nvel fundamental e incorporados no nvel

    narrativo so convertidos no plano de contedo, formando o nvel smio-narrativo, e

    concretizados no enunciado. Nele, examinamos as categorias de tempo, espao e

    pessoa, na dimenso sinttica, e as oposies fundamentais assumidas como valores

    narrativos e que sero desenvolvidas, na dimenso semntica, sob a forma de temas,

    podendo concretizar-se por meio de figuras. Enfim, o nvel discursivo onde os

    esquemas narrativos so retomados por um sujeito da enunciao que, discursivizando

    as estruturas smio-narrativas, faz determinadas escolhas de pessoa, tempo, espao,

    temas e figuras para, atravs de uma iluso de realidade, fazer crer o enunciatrio.

    Os procedimentos de discursivizao - chamados a se constiturem numa

    sintaxe discursiva - tm em comum poderem ser definidos como autilizao das operaes de debreagem e embreagem a ligarem-se assim

    instncia da enunciao. Dividir-se-o em pelo menos trs

    subcomponentes: actorializao, temporalizao e espacializao, que tm

    por efeito produzir um dispositivo de atores e um quadro ao mesmo tempo

    temporal e espacial, onde se inscrevero os programas narrativos

    provenientes das estruturas narrativas (Greimas e Courts, 1979).

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    Na dimenso sinttica do nvel discursivo, analisam-se as projees da

    enunciao no enunciado e os meios pelos quais o enunciador persuade e convence o

    seu enunciatrio; essas projees dizem respeito s categorias de pessoa, espao e

    tempo.

    Vemos, assim, que a abordagem dada ao tempo neste trabalho, assim como

    Fiorin fez em As astcias da enunciao, lingstica. Segundo Benveniste, o tempo

    pode ser abordado de trs maneiras diferentes: lingstico, fsico e cronolgico (1988).

    O tempo fsico o tempo do mundo e medido a partir dos movimentos dos astros, nele

    so instaurados os marcos temporais. O tempo cronolgico, ou crnico, o tempo do

    calendrio, no qual se desenvolvem os acontecimentos na vida do homem; por meio do

    tempo crnico, possvel lembrar do passado e projetar o futuro, enquanto a vida e o

    tempo passam, e seguem sempre em frente. O tempo lingstico aquele que, ligado aomomento da fala, se constitui no ato do dizer e reconstrudo em cada ato de

    enunciao.

    O tempo lingstico, diferentemente dos tempos fsico e cronolgico, leva

    em considerao o enunciador e o enunciatrio, e suas relaes enquanto

    coenunciadores na construo da enunciao. A enunciao o ato de dizer, o ato

    produtor do enunciado, sendo pressuposto pela existncia do prprio enunciado. Como

    diz Benveniste, a enunciao a instncia de mediao entre o sistema social da lngua

    e sua assuno por um indivduo na relao com o outro por meio da fala. O aparelho

    formal da enunciao constitudo pelas categorias de pessoa, espao e tempo cujas

    coordenadas so o EGO/ HIC/NUNC, ou seja, oeu(que pressupe o tu) no espao do

    aqui e no tempo do agora e, assim, por meio de um ato individual de utilizao, a

    enunciao coloca a lngua em funcionamento. A enunciao pressupe a existncia da

    dupla enuciativa eu/tu, ou seja, no existe enunciao sem que haja enunciador e

    enunciatrio.

    Em As astcias da enunciao, Jos Luiz Fiorin baseia-se nesse tempolingstico e o seu modelo utilizado aqui. Seguindo esse modelo, analisamos como

    ocorre a apresentao da categoria de tempo enquanto referncia no discurso. Ao falar

    de tempo lingstico, preciso considerar as suas relaes intrnsecas de anterioridade e

    posterioridade. Como diz Fiorin:

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    O momento dos acontecimentos (estados e transformaes) ordenado

    em relao aos diferentes momentos de referncia. Faz-se essa

    ordenao aplicando-se a categoria topolgica concomitncia vs no-

    concomitncia (anterioridade vs posterioridade) aos diferentes momentos

    de referncia. So trs os momentos estruturalmente relevantes na

    constituio do sistema temporal: momento da enunciao (ME), momentoda referncia (MR) e momento do acontecimento (MA) (2001:146).

    No tempo lingstico, essas categorias topolgicas podem ainda estar

    instauradas no discurso por marcos de dois sistemas temporais: o sistema enunciativo,

    relacionado diretamente enunciao, ao nunc e o sistema enuncivo, relacionado ao

    momento de referncia do enunciado. No primeiro, os marcadores da enunciao

    eu/aqui/agora so instalados, no segundo, eles so suprimidos, existindo, assim, no

    enunciado, uma terceira pessoa, ele, no espao do alhurese no tempo do ento.

    Essas categorias dizem respeito ao fato de que todos os tempos referem-se

    ao agora, opondo-se ao ento: os fatos acontecem antes, depois ou no momento da

    enunciao. Lembrando as palavras de Maingueneau:

    Chaque nonc rinvente son prsent, ds quun locuteur prend la parole:

    le prsent glisse ainsi indfiniment le long du fil du discours.

    Ce prsent constitue la base du systme temporel linguistique, et les deux

    autres dimensions dictiques (pass et futur) ne peuvent tre repres que

    par rapport lui (1994:74)

    Tempos verbais

    Segundo Fiorin, como j foi dito acima, so trs os momentosestruturalmente relevantes na constituio do sistema temporal: momento da

    enunciao (ME), momento da referncia (MR) e momento do acontecimento (MA)

    (2001:146). Vejamos o que significa cada um desses momentos, caros organizao

    temporal.

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    O momento da enunciao (ME) o eixo gerador e ordenador do tempo

    lingstico, pois ele representa o presente implcito inerente a todo ato de comunicao,

    mesmo o sistema enuncivo ordena os tempos que no tm concomitncia ao ME, por

    oposio aos tempos do sistema enunciativo.

    O momento da referncia (MR) apresenta os marcos temporais que

    permitem identificar quando os fatos acontecem/aconteceram/acontecero no

    enunciado, ele est relacionado ao ME e pode ser do sistema enunciativo ou do

    enuncivo, representando, no primeiro, a concomitncia ao ME (o presente) e, no

    segundo, a no-concomitncia (anterioridade: o pretrito e posterioridade: o futuro).

    O momento do acontecimento (MA) est dentro do MR e se ordena em

    relao a ele. O momento do acontecimento tambm organizado de acordo com ascategorias topolgicas de concomitncia e no-concomitncia, ele marca os estados e

    transformaes, que podem ser expressos pelos verbos, no enunciado.

    O excerto seguinte do jornal Le Mondede 15 de maro de 2006. Nele

    possvel exemplificar o que acabamos de teorizar:

    Le prsident Jacques Chirac a salu, mercredi 15 mars en conseil des

    ministres, la volont du premier ministre, Dominique de Villepin, d'engager

    le dialogue social, d'amliorer ce qui peut l'tre dans le contrat premire

    embauche, a rapport, en fin de matine, le ministre des PME (petites et

    moyennes entreprises), Renaud Dutreil.

    O momento da enunciao pode ser a data do jornal, 15 de maro, mas a

    notcia no concomitante a esse momento, ela lhe anterior, como mostra o marco

    temporal mercredi 15 mars. O momento da referncia , ento, mercredi 15 mars e

    o momento do acontecimento a salu concomitante a ele.

    Vejamos o sistema temporal criado por Fiorin para organizar os momentos

    de referncia e de acontecimento, em relao ao momento da enunciao:

    ME (presente implcito)

    Sistema enunciativo Sistema enuncivo concomitncia no-concomitncia MR presente

    anterioridade posterioridade

    concomitncia no-concomitncia MR pretrito MR futuro MA presente

    Ant. post. Concomit. no-conc. Conc. no-conc. MA pretrito MA futuro

    Ant. post. ant. post.

    MA pret. MA fut. MA pret. MA fut.

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    Essas formas verbais, quando projetadas no enunciado, como vemos a

    seguir, resultam em debreagens temporais, que podem ser enunciativas ou enuncivas,

    dependendo do sistema temporal utilizado.

    Debreagens

    A debreagem, enunciva ou enunciativa, na sintaxe discursiva do texto, um

    mecanismo de instaurao de pessoa, tempo e espao no discurso. Debreagem a

    operao em que a instncia da enunciao disjunge de si e projeta fora de si, no

    momento da discursivizao, certos termos ligados a sua estrutura de base, com vistas

    constituio dos elementos fundadores do enunciado, isto , pessoa, espao e tempo

    (Fiorin:2001:43). O eu/aqui/agora inscritos no enunciado no so realmente a pessoa, oespao e o tempo da enunciao, mas suas projees. Como diz Benveniste, a

    enunciao este colocar em funcionamento a lngua por um ato individual de

    utilizao (1988).

    A debreagem, de acordo com a relao existente com a enunciao, como

    foi dito, pode ser enunciativa ou enunciva. Na debreagem enunciativa, os actantes

    (pessoas), espao e tempo da enunciao, isto , o eu, o aqui e o agoraso instaurados

    no enunciado. Para exemplificar, tomemos um exemplo da literatura francesa, visto que

    se trata da lngua em questo nesta pesquisa:

    Parfois jai limpression davoir des secrets. Ce ne sont pas des secrets

    puisque je nai pas envie den parler et aussi bien ces choses-l ne peuvent

    pas se dire personne, trop bizarre.

    (ERNEAUX, Annie. Ce quils disent ou rien)

    Nesse exemplo, os verbos, no tempo presente, e o pronome em primeira

    pessoa, esto instalados na enunciao, isso quer dizer que, no excerto, o tempo e os

    actantes so debreados enunciativamente, no ego e no nunc. A debreagem actancial

    enunciativa rara no discurso jornalstico, pois no condiz com sua cena genrica de

    objetividade; essa debreagem pode ser encontrada no discurso direto, isto , quando,

    numa debreagem de segundo grau, o sujeito da enunciao do jornal passa a fala a um

    outro sujeito, como vemos no excerto deLe Mondede 01 de maro de 2006:

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    Saddam Hussein a galement justifi les condamnations mort

    prononces contre les auteurs de l'attentat qui le visait. J'ai vu passer les

    balles devant mes yeux. J'tais dans la voiture derrire le chauffeur. Il y

    avait un ami mes cts et un garde du corps prs du chauffeur. C'est

    Dieu qui a voulu sauver la voiture mme si des balles l'ont touche, a-t-ilexpliqu. Ces personnes ont commis un crime contre le chef de l'Etat et,

    quel que soit son nom, c'est le chef de l'Etat. Alors jugez le prsident mais

    laissez les autres tranquilles, a-t-il ajout faisant allusion ses sept

    coaccuss. Si vous pensez que le CCR a eu tort de confisquer les terres

    alors jugez-moi, car le chef du CCR est entre vos mains, a-t-il encore dit.

    Saddam n'a peur de personne except Dieu. Mme quand j'tais colier je

    n'avais peur de personne. Nous avons vou notre vie Dieu et il a voulu

    que nous soyons encore vivants. Je m'inquite seulement de la rputationde l'Irak, a-t-il finalement lanc.

    Nesse trecho, toda parte em itlico e entre aspas fala no do sujeito da

    enunciao do jornal, mas sim de Saddam Hussein. Trata-se de um trecho debreado

    enunciativamente, tanto actorial quanto temporalmente, como vemos no uso da

    primeira pessoa je e dos tempos verbais prsent (est, pensez, a, m'inquite) e

    pass compos (J'ai vu, ont commis, il a voulu etc).

    Na debreagem enunciativade segundo grau, um sujeito debreado realiza a

    segunda debreagem, criando efeito de realidade, pois como se as palavras sassem da

    prpria boca desse sujeito, diminuindo tambm a responsabilidade do ator da

    enunciao sobre o enunciado.

    Eh bien, madame la marquise, dit le vieillard, avez-vous un peu song la

    masse des souffrances humaines? Avez-vous lev les yeux vers le ciel?

    Avez-vous vu cette immensit de mondes qui, en diminuant notre

    importance, en crasant nos vanits, amoindrit nos douleurs?...

    - Non, monsieur, dit-elle. Les lois sociales me psent trop sur le cur et

    me dchirent trop vivement pour que je puisse mlever dans les usages

    du monde. Oh! Le monde!

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    - Nous devons, madame, obir aux uns et aux autres: la loi est la parole, et

    les usages sont les actions de la socit.

    (BALZAC, Honor de. La femme de trente ans)

    Com exceo do primeiro pargrafo, em que h uso do pass compos, o

    excerto predominantemente enuncivo, com as confisses de Julie que, aos trinta anos,

    est frustrada por ter de renunciar ao sonho de viver uma grande paixo e confia a um

    padre os seus sentimentos de revolta contra as leis dos homens e dos cus. Balzac, por

    meio da debreagem enunciativa de primeiro grau, coloca as palavras na boca de Julie,

    assim como na do padre; dessa forma, a revolta em relao s normas impostas pela

    sociedade parte do ator do enunciado e no do ator da enunciao.

    A debreagem enunciva refere-se ao eleno tempo do entoe no espao do

    alhures, distanciando-se do momento da enunciao. Para ilustrar essa debreagem,vejamos um excerto do jornal Le Mondede 13 de maro de 2006 e um poema de Ren

    Char, poeta simbolista da Libertao, movimento contra a ocupao alem na Frana:

    Originaire de la province afghane de Khost, Mohammed Gul tait paysan

    et propritaire d'une station-service en Afghanistan. Auparavant, il a vcu

    en Arabie saoudite. Les Amricains le souponnent d'avoir entretenu des

    liens troits avec les talibans. Il explique que, en Arabie saoudite, il tait

    chauffeur livreur et qu'il a t arrt chez lui uniquement parce qu'il

    possdait un kalachnikov, comme beaucoup de fermiers : Je suis pauvre,je n'ai qu'un petit lopin de terre. (...) Je ne veux pas rester ici une minute de

    plus .

    Nesse excerto, como si acontecer, a debreagem mixta, encontramos

    pessoas e tempos tanto do sistema enunciativo quanto do enuncivo. Quando o ator do

    enunciado, Mohamed Gul, apresentado, a debreagem temporal e actancial enunciva:

    usa-se a terceira pessoa e o imparfait: Mohammed Gul tait paysan, il tait

    chauffeur livreur e ilpossdaitun kalachnikov.

    Mourir, ce nest jamais que contraindre sa conscience, au moment mme

    o elle sabolit, prendre cong de quelques quartiers physiques actifs ou

    somnolents dun corps qui nous fut passablement tranger puisque sa

    connaissance ne nous vint quau travers dexpdients mesquins et

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    sporadiques. Gros bourg sans grce au brouhaha duquel semployaient

    des habitants modrs... Et au-dessus de cet atroce hermtisme slanait

    une colonne dombre face vote, endolorie et demi-aveugle, de loin

    en loin bonheur scalpe par la foudre

    (Ren Char, Fureur et mystre)

    O poema fala da morte, um actante fora da enunciao, logo, a debreagem

    actancial enunciva, assim como a debreagem temporal, que se refere ao tempo do

    ento, com o uso dopass simple(abolit, fut, vint), tempo enuncivo por excelncia.

    Nesse poema, vemos o pronome pessoal de primeira pessoa do plural nous,

    marco de debreagem actancial enunciativa, porm, esse pronome no est ligado enunciao, trata-se de um dativo tico, isto , um pronome cujo uso visa a inserir o

    enunciatrio no enunciado; no dativo tico, o alocutrio individualizado se encontra

    integrado no enunciado a titulo de testemunha fictcia, mas sem interpretar qualquer

    papel no processo, sua supresso no alteraria em nada o enunciado no nvel do

    contedo (Maingueneau,1999:25). O dativo tico empregado na primeira pessoa pode

    criar efeito de proximidade entre o enunciador e o enunciatrio.

    Como vimos, a debreagem, quando enunciva, cria simulacro de

    objetividade, por usar tempos e pessoas do sistema enuncivo; fazer uso do

    ele/alhures/ento confere um carter mais objetivo, idneo e menos questionvel ao

    discurso. Por outro lado, a debreagem enunciativa cria simulacro de subjetividade, pois

    a primeira pessoa, assim como tempos e espaos enunciativos, so inseridos no

    discurso, conferindo-lhe um carter subjetivo, intimista e pessoal, o que pode, por

    vezes, at mesmo diminuir a credibilidade do enunciado, como se tratasse apenas da

    opinio ou ponto de vista do enunciado, mas no dos fatos como aconteceram (no

    falamos aqui do discurso direto, esse um outro caso, que trataremos adiante).Analisemos, agora, a organizao temporal do verbo em francs, de acordo

    com as categorias enunciativas e enuncivas do tempo, divididas em sistemas e

    subsistemas.

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    No sistema enunciativo dos verbos em lngua francesa, encontramos os

    tempos prsent (concomitante ao momento de referncia), pass compos (anterior ao

    momento de referncia) efutur simple(posterior ao momento de referncia).

    No sistema enuncivo, temos os tempos dos momentos de referncia pretrito

    e futuro, sendo que o primeiro constitudo, na concomitncia, pelo tempopass simple

    e, na no-concomitncia, pelo plus-que-parfait e pass antrieur, no que concerne

    anterioridade e pelofutur du pass (ou conditionnel prsent) efutur antrieur du pass

    (ou conditionnel pass) no que concerne posterioridade. Sendo que, no MR pretrito,

    ainda existe um caso especial, pass surcompos, um tempo verbal bastante raro hoje

    em dia.

    Seguindo o modelo de Fiorin, podemos organizar o sistema verbal

    enunciativo da lngua francesa da seguinte maneira:

    Concentramo-nos nos tempos verbais do modo indicativo. Eles so

    abordados de acordo com os trs momentos de referncia: presente, passado e futuro. O

    momento de referncia presente aquele em que os tempos verbais esto diretamente

    relacionados com o momento da enunciao, ou seja, aqueles que fazem parte do

    sistema enunciativo: prsent, pass compos e futur simple. Estudemos, ento,

    baseados na proposta de Fiorin (2001), os tempos segundo as categorias de

    concomitncia e no-concomitncia. Em um primeiro momento, fazemos uma

    apresentao e definio dos tempos verbais na lngua francesa sem, adentrar, ainda, nas

    questes mais problemticas que a eles se referem.

    MR presente

    concomitncia no-concomitncia

    anterioridade posterioridade prsent(MA)

    pass compos(MA) futur simple(MA)

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    O sistema enunciativo

    Le prsent est proprement la source du temps