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Maurício de Carvalho Teixeira TORNEIOS MELÓDICOS poesia cantada em Mário de Andrade São Paulo 2007

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Mauricio Carvalho Teixeira

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  • Maurcio de Carvalho Teixeira

    TORNEIOS MELDICOS poesia cantada em Mrio de Andrade

    So Paulo

    2007

  • Maurcio de Carvalho Teixeira

    TORNEIOS MELDICOS poesia cantada em Mrio de Andrade

    Tese apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo como parte dos pr-requisitos para obteno do titulo de Doutor em Literatura Brasileira sob a orientao do Prof. Dr. Jos Miguel Soares Wisnik

    So Paulo

    2007

  • Teixeira, Maurcio de Carvalho, 1971. Torneios Meldicos: poesia cantada em Mrio de Andrade./Maurcio de Carvalho Teixeira. So Paulo, Departamento de Letras Clssicas e Vernculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo (Tese de Doutorado), 2007.

    1. Andrade Mrio de 1893-1945; 2. Msica; 3.Cano; 4. Poesia.

  • Para o Pedro

  • Agradecimentos

    Ao Jos Miguel Wisnik por toda a ateno nestes tantos anos. Flvia Toni, pois nem imagino este doutorado sem sua ajuda. Ao Luiz Tatit por presentear com timas idias e palavras. Tel Porto Ancona Lopez pelo grande incentivo. Ao Jorge Oscar, amigo e mestre de msica. A Luciene Torino que apoiou e se preocupou. Cristiane Rodrigues pelas leituras e conversas. Brbara Zacher Vitria pela ateno e carinho. Ao Marco Ccero Cavallini, Gisa Fernandes DOliveira, Cristiana Schettini Pereira, Claudia Spera e

    Emlia Avancini, amigos antigos e permanentes. Ao meu pai.

    Esta pesquisa teve apoio da Fapesp.

  • Este no um livro de cincia, evidentemente, um livro de amor. (Mrio de Andrade, Na Pancada do Ganz)

  • Resumo

    O presente texto trata do pensamento de Mrio de Andrade a respeito das relaes potico-meldicas. Para isso, foi usada a hiptese dos torneios meldicos: o conjunto de tendncias e constncias que do carter a uma msica. A partir dos torneios possvel

    analisar objetivamente uma composio, observar sua origem, suas influncias e seu processo criativo. Porm, essa anlise musical indissocivel de uma dimenso potica.

    Mrio de Andrade era um msico que se expressava pela poesia e, em seus estudos tcnicos, sempre privilegiou a unidade meldico-potica como objeto indissolvel. A pesquisa baseou-se num manuscrito indito do autor, que est separado em trs partes intituladas Meldica, Rtmica e Potica. O documento, que se encontra no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, extremamente fragmentado e complexo, pois constitudo por numerosas anotaes que o autor fez ao longo da vida. Palavras-chave: Mrio de Andrade Msica Cano Poesia.

    Abstract: The present research is about the importance of Mrio de Andrades thoughts concerning

    the study of poetical-melodic relations. We worked on the hypothesis of the so called melodic turns: The combination of trends or features that give to a certain music its distinguishing character. The torneios meldicos make it possible to analyse a composition objectively, observing its origin, it influences and its creative process. Nevertheless, this kind of analysis is nevertheless not dissociable from a poetical dimension. Mrio de Andrade was himself a musician, who expressed himself through poetry. In his technical studies and articles he is always stressed the insolubility of a melodical-poetical unity.

    This research was based on an unpublished manuscript from the author divided in three parts named: Melodics, Rhythmics and Poetics. The document can be found

    at the Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros - USP (University of So Paulo) and it is extremely fragmentary and complex, as it is formed by numerous notes made by the author throughout his life.

    Key-words: Mario de Andrade music song poetry.

  • ndice

    Introduo: uma foto e outros instantneos 10

    Pensamento e mtodo de trabalho de Mrio de Andrade sobre a poesia cantada 12 Os torneios meldicos nacionais 14

    Anotaes e grifos de Mrio de Andrade na sua biblioteca 15 O Fichrio Analtico 16 Os manuscritos sobre a Meldica, Rtmica e Potica 17 Sobre o captulo 1. Meldica 17 Sobre o captulo 2 Rtmica 18 Sobre o captulo 3 Potica 19 Sobre o captulo 4 Viola Quebrada 19

    Captulo 1 Meldica: melodia na poesia cantada. 20

    Relaes potico-meldicas 22 Melodia-forma 28 Terminao na sensvel 29 Extrema diferena de verses de uma pea 34 Variaes no refro 36 Simultaneidade sonora 37 Individualismo popular 45 Elementos Meldicos 46 Colheita de melodias 48

    Expresso 51 Msica popular 52 Meldica anti-harmnica 54 Msica e texto 56

  • Captulo 2

    Rtmica: o ritmo potico-meldico. 62

    Transgresses de compasso (viver pra fora da quadratura) 71 Sincopa 80

    Ritmo potico-meldico 88 Binaridade 92 Compasso unrio 93 Tercinas ternaridade 96 Recitativo 99 Dinamogenia/coreografia 100

    Captulo 3 Potica: poesia da lngua cantada. 103

    Embolada 108

    Fuso de palavra e som 112 Improvisao 117

    Fadiga da imaginao 121 Neumas e palavras com funo de neuma 125 Refro 127

    O assunto dos cantos 129 Jogos florais: a raridade dos cantos de amor 132 Formas estrficas 134

    Forma responsorial 136 Sobre o manuscrito da Potica popular 137

  • Captulo 4

    Viola Quebrada: estudo de uma cano 138

    Uma hiptese sem palavras: Viola Quebrada 141 Guriat de Coqueiro: estudo de caso 151 Estrutura e fragmento na anlise da cano 156

    Concluso 158

    Fontes e Bibliografia citada 160

  • 10

    Introduo: uma foto e outros instantneos.

    Uma fotografia, que Claude Lvi-Strauss tirou do escritor, emblemtica da atitude marioandradina de tudo anotar. A legenda diz:

    Mrio de Andrade fazendo uma pesquisa sobre folclore, em dia de festa, numa pequena cidade nos arredores de So Paulo1

    Mrio de Andrade escrevia enquanto estava na rua ou durante viagens anotava em blocos de bolso, em mao de cigarro, em pauta. Na sua casa, batia mquina ou ensaiava novas idias na borda dos livros e na capa dos discos. Entre seus manuscritos esto registradas vrias partituras em papel comum, enquanto h muitos textos descritivos, sem nenhuma figura musical, anotados em papel pentagramado. Essa forma de registrar sugere escrituras momentneas, flagrantes modernos, automticos, instantneos.

    Esses manuscritos so um trabalho de toda a vida do autor e esto relacionados, quase sempre, com as primeiras reflexes de Mrio de Andrade a respeito da poesia cantada. As anotaes constantes evidenciam indcios de fenmenos que se repetem - essas

    1 Lvi-Strauss, Claude. Saudades de So Paulo. So Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 11.

  • 11

    idias o levam a formular a hiptese dos torneios meldicos nacionais o conjunto de tendncias e constncias presentes na criao potico-meldica. Como se v numa carta a Manuel Bandeira:

    Voc me perguntava duvidoso: Quanto a torneios meldicos nacionais, haver mesmo isso? Certo que h. Porm se principio discutindo isso no acabo mais tanto o assunto grande. Porm repare numa coisa: as msicas francesa, italiana e alem no tm nenhuma rtmica particular, nem harmonizao nem orquestrao nem nada. No entanto se distinguem. Por onde? Primeiro pelo carter psicolgico, que a coisa mais importante e justamente o ponto por onde se discute a brasilidade de muita coisa que a gente exclui levianamente do patrimnio nacional. E depois? Se distingue pelo torneio meldico. Voc perguntar: quais os torneios de cada uma? Segundo que no sei. Porque nunca me apliquei a esse estudo e ningum no o fez ainda. Disso a culpa no minha e me dificulta muito o meu trabalho. Porm algumas tendncias mais freqentes ou mais peculiares da nossa meldica j consegui distinguir. O que ainda no experimentei se ajuntando todos eles num pasticho sem rtmica brasileira consigo fazer uma composio sem carter brasileiro. Porque se conseguir prova no a inanidade desses caracteres, pois que eles existem e posso documentar isso com abundncia porm prova que so muito vagos. Tambm vou ver se se pode criar msica brasileira sem nenhum dado caracterstico da gente.2

    Depois dessa carta, o conjunto de tendncias e constncias musicais nunca mais recebeu do escritor a denominao torneio, no entanto, os princpios tericos que conduziram hiptese dos torneios meldicos nacionais permaneceram em suas anlises. Por essa razo possvel perceber como aspectos importantes dos estudos e do processo criativo de Mrio de Andrade esto relacionados a uma busca incessante dos elementos que constituem a melodia e, mais especificamente, a poesia cantada.

    Os estudos do autor evidenciam sempre uma grande dependncia entre a

    composio potica e a criao musical entre o sentido musical e o sentido literrio das obras analisadas. Mrio de Andrade criou um instrumento de anlise que revela, atravs de

    2 Marcos A. de Morais (org.) Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira. So Paulo, Edusp,

    2000, pp. 307 e 308.

  • 12

    seus manuscritos a esse respeito, a descoberta de uma bem embasada esttica da cano embora o prprio autor no a tenha divulgado.

    Apesar de todo o projeto artstico nacional que o escritor anunciava e defendia, seus estudos apontam tanto semelhanas quanto diferenas na comparao entre a poesia cantada no Brasil e a de outros pases. Isto , seu estudo foi universal fez mais que

    determinar a peculiaridade brasileira, examinou a prpria especificidade da poesia cantada, usando, para isso, os recursos tcnicos da poesia e da msica.

    Pensamento e mtodo de trabalho de Mrio de Andrade sobre a poesia cantada

    Mrio de Andrade, a exemplo de tantos outros autores, deixou uma obra da vida

    inteira inacabada. Essa obra de carter tcnico e receberia, quando fosse concluda, o nome de Na Pancada do Ganz. Seria um estudo sobre a msica do Nordeste brasileiro, mas tudo indica que esse objeto foi ampliado com o tempo, e se tornou cada vez mais um estudo desgeograficado, como o prprio Mrio manifestadamente preferia. Adquiriu, assim, tantas perspectivas e inter-relaes que no pde ser concludo a tempo.

    A presente pesquisa se deparou com trs caixas de manuscritos no Arquivo Mrio de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros e chegou concluso de que esses textos esto interligados e fazem parte de uma obra inacabada do autor sobre os elementos da cano. Cada caixa corresponderia a uma grande disciplina de estudo, so elas: Meldica, Rtmica e Potica.

    Pode-se dizer que praticamente todos os manuscritos pesquisados aqui todas essas anotaes em papis avulsos fariam parte do Na Pancada do Ganz de Mrio de Andrade. Dessa forma, os captulos que seguem esto baseados na organizao que o escritor fez para a anlise das msicas que ele mesmo recolheu em campo.

    Como esto organizados segundo categorias de anlise melodia, ritmo, poesia e

    no por estilo, origem ou qualquer outra denominao de carter tipolgico, so, portanto, bem diferentes dos manuscritos de Na Pancada do Ganz j publicados, como os volumes: Danas Dramticas do Brasil, Msica de Feitiaria no Brasil, As Melodias do Boi e outras

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    peas e Os Cocos. Estas obras publicadas so o que o autor chamou de resultado das colheitas. Os manuscritos ora analisados dizem respeito mais diretamente s elaboraes tericas de Mrio de Andrade.

    Gilda de Mello e Souza afirma que o escritor desde cedo, por deformao de ofcio, habituou-se a pensar as vrias manifestaes artsticas de acordo com a ordenada

    sistematizao musical.3. Esse aspecto estrutural do pensamento marioandradino foi tambm explorado aqui: a teoria da msica forneceu ao escritor uma base sistemtica de estudo e anlise. No por acaso o estruturalismo, que se manifestou sobretudo na lingstica e na antropologia de meados do sculo XX, tem sua origem na mesma musicologia estudada por Mrio de Andrade4.

    Haroldo de Campos diz que o autor tem uma imaginao estrutural. Aponta, assim, o parentesco do pensamento do escritor com a lingstica moderna: Quando Mrio diz ter gasto muito pouca inveno no seu poema fcil de escrever, sua observao

    despistadora e deve ser entendida dentro do especial mecanismo gerativo do livro. De fato, como adverte o lingista Noam Chomsky, a condio preliminar para uma verdadeira

    criatividade a existncia de um sistema de regras, de princpios, de restries.5 Nesse mesmo esprito, Chomsky exprime a ineficincia das gramticas em relao ao exerccio de criao potica: Contudo, mesmo valiosas, as gramticas tradicionais so deficientes ao deixarem de expressar muitas das regularidades bsicas da lngua sobre a qual trabalham6. O objeto de estudo e de maior interesse de Mrio de Andrade era justamente esse conjunto de regularidades bsicas poticas ou musicais que causam o encantamento e a persuaso entre artista e pblico.

    As teorias de Mrio de Andrade sobre o cantador de poesia do razo anlise

    Haroldo de Campos, pois podem ser comparadas s teorias sobre o falante nativo de Chomsky: O problema para o gramtico construir uma descrio, e, onde for possvel,

    uma explicao para a enorme massa de dados inquestionveis relativos intuio

    3 Prefcio In Introduo Esttica Musical. So Paulo, Hucitec, 1995, p XVI.

    4 Claude Lvi-Strauss em Ver Escutar Ler (So Paulo, Companhia das Letras, 1997) enxerga a origem do

    pensamento estruturalista na musicologia desenvolvida no Iluminismo. Independente disso, a questo musical esteve no centro das discusses estticas de todo o sculo XIX. 5 Mrio de Andrade: a imaginao estrutural In Arte no Horizonte do Provvel. So Paulo, Perspectiva,

    2004, p.173. 6 Chomsky, N. Aspectos da teoria da sintaxe In Os Pensadores. So Paulo, Abril Cultural, 1978.

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    lingstica do falante nativo (muitas vezes ele mesmo).7. Chomsky questiona as antigas gramticas idealistas, que no viam os processos lingsticos como processos-criativos8. Porm, este terico reconhece que mapear uma intuio exatamente o trabalho que

    Mrio de Andrade tentou completar uma tarefa temvel. Os dados reunidos por Mrio de Andrade so semelhantes a um estudo de retrica

    ou potica. O autor no busca um sistema de regras estticas de mero uso convencionado das normas tcnicas, mas, antes, cria uma coletnea das regularidades bsicas da lngua cantada com vistas criao artstica.

    Mrio e Chomsky atuaram em dcadas muito distintas do sculo XX. Entre o desaparecimento de um e o surgimento do outro, viveram tericos como Heinrich Lausberg. Em seu Manual de Retrica Literria, Lausberg faz uma diferenciao prpria entre gramtica e retrica, a partir dos escritos de Quintiliano e Ccero. A gramtica se define como a cincia de falar corretamente (scientia recte loquendi) e a retrica como a arte de bem dizer (ars bene dicendi). Enquanto a gramtica sugere uma correo unvoca, a retrica busca proporcionar a bela expresso do dizer tanto para quem ouve como para

    quem l9. Nada mais prximo do pensamento criador-criativo de Mrio de Andrade e de sua avaliao a respeito de poetas msicos e cantadores: suas artes so sempre arte de contemplao e prazer coletivos.

    Os torneios meldicos nacionais

    A primeira e principal fonte que explicita e define os torneios meldicos a carta a Manuel Bandeira de 7 de setembro manhzinha de 1926. Nessa mesma carta, Mrio de Andrade comea a contar a respeito de um novo livro, que se chamaria Buclica sobre a msica brasileira - livro que nunca foi concludo. Mas possvel descobrir, pela leitura da carta, que o objetivo central desse novo livro seria investigar os processos de composio

    7 Idem. p. 245.

    8 Idem, p. 233.

    9 Lausberg, Heinrich. Manual de Retrica Literaria. Madrid, Gredos, 1966, p. 83, v. I.

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    no Brasil, exatamente a mesma temtica de todos os importantes marcos de sua obra musicolgica como so o Ensaio Sobre a Msica Brasileira de 1928, o Compndio de Histria da Msica 1929 e O Banquete dos anos 40.

    A busca por essas estruturas meldicas est, portanto, profundamente relacionada ao conjunto dos estudos musicais do autor. O Banquete, Compndio e Ensaio so obras de elaborao terica. As outras obras que expem o resultado de suas pesquisas em campo: Danas Dramticas, Melodias do Boi, Os Cocos e Msica de Feitiaria no analisam teoricamente esses elementos, apenas transcrevem os cantos e fazem a descrio das manifestaes. Por isso so obras incompletas. O trabalho terico-analtico, que relaciona toda a pesquisa feita para o Na Pancada do Ganz, est reunido nos manuscritos aqui apresentados.

    Mrio de Andrade no deu a esses documentos um ttulo nico, porm suas trs caixas correspondem a trs captulos - estes sim intitulados: 1. Meldica, 2. Rtmica, 3. Potica. Apesar de seu carter fragmentar, o manuscrito permite notar que a hiptese dos torneios meldicos permanece durante todo o tempo dedicado pelo autor ao estudo da

    poesia cantada no Brasil.

    Anotaes e grifos de Mrio de Andrade na sua biblioteca

    Num primeiro momento, a presente pesquisa buscou evidncias da continuidade do estudo acerca dos torneios meldicos na biblioteca particular de Mrio de Andrade10. Os

    livros que pertenciam ao escritor constituem uma fonte importante para a pesquisa sobre a sua obra lrica e tcnica. Muitas dessas obras so de autores hoje esquecidos, tais como historiadores da msica e tericos do folclorismo. Outros so clssicos, como Virglio, Catulo, Goethe, Yeats, e apresentaram mltiplas maneiras de relacionar msica e poesia para o leitor-escritor em sua biblioteca.

    10 A Biblioteca do IEB/USP mantm o acervo dos livros pertencentes a Mrio de Andrade.

  • 16

    Um ensaio de Tel Ancona Lopez define a necessidade e a riqueza dessas fontes: As matrizes no caso de Mrio de Andrade so detectadas a partir de declaraes dele em cartas e entrevistas, principalmente de anotaes de leitura na margem de livros, em

    fichas ou da simples presena de obras vindas das estantes da Rua Lopes Chaves, partindo, claro, de interrogaes derivadas do lastro de cultura de quem o analisa.

    Interrogaes movidas, em geral, pelo texto publicado.11 Entre essas anotaes particulares em seus livros destacam-se: esboos de textos e

    pensamentos anotados nas beiradas das pginas e correes de dados que considerava imprecisos nos textos dos livros e peridicos. Mrio de Andrade tambm tinha o costume de fazer sumrios, escritos a lpis nas folhas-de-rosto dos seus livros. Estes sumrios indicavam o assunto e a pgina de interesse no livro.

    O Fichrio Analtico

    A pesquisa na biblioteca particular do autor levou a um conjunto de documentos intitulado Fichrio Analtico, composto de fichas de referncia bibliogrfica escritas pelo prprio Mrio de Andrade. So anotaes rpidas, feitas em pequenos cartes prprios para as gavetas estreitas dos fichrios de biblioteca. Esse fichrio apresenta o registro das suas impresses de leitura, ainda que, em muitos casos, as fichas no emitam nenhum parecer sobre o livro, algumas tm apenas o ttulo do livro catalogado.

    O Fichrio Analtico uma documentao complexa por revelar a multiplicidade de

    leituras que influenciam os escritos de Mrio de Andrade. Nessas fichas descobrem-se traos originrios de suas principais obras, assim como fontes de seu pensamento sobre

    vrios assuntos, entre os quais, esboos de suas anlises musicais e literrias. O fichrio constitui, por isso, um guia bastante eficiente para a pesquisa em sua biblioteca particular. Mas tambm sugere a necessidade de encontrar a continuidade do trabalho de reflexo do

    autor entre seus manuscritos inditos.

    11 Matrizes/ Marginlia/ Manuscritos. Revista da Biblioteca Mrio de Andrade, n 50. So Paulo, 1992.

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    Os Manuscritos sobre a Meldica, Rtmica e Potica na poesia cantada

    Esses manuscritos constituem uma reunio de fragmentos de aspecto labirntico.

    Isto se deve apresentao fsica do documento: uma infinidade de pequenas folhas de blocos de bolso, to caractersticos do figurino do escritor, que se somam a esboos maiores

    de longas pginas manuscritas ou datilografadas. A maioria dos escritos faz referncia pesquisa de campo para o livro Na Pancada do Ganz, outros ensaios e notas, porm, so observaes relacionadas leitura da bibliografia - intitulada Bibliografia de Na Pancada do Ganz e do Dicionrio Musical Brasileiro12.

    Quanto abordagem temtica, o manuscrito assemelha-se ao Ensaio Sobre a Msica Brasileira e ao Compndio de Histria da Msica: trata-se de obras de carter analtico. Quanto escrita, identifica-se o mesmo estilo de outras obras do autor: possvel reconhecer ali a mesma ousadia e inventividade das obras de fico aplicadas a um assunto

    tcnico. Do mesmo modo que se nota, em sua obra lrica e ficcional, a influncia dos seus estudos tericos. A associao entre escritura potica e assunto tcnico do aos manuscritos

    um valor ainda maior e um grande prazer na leitura.

    Sobre o Captulo 1. Meldica: a melodia nas poesias cantadas.

    A relao entre melodia e literatura de um modo geral bastante ampla. Nos escritos de Mrio de Andrade sobre a Meldica, as comparaes com a poesia so centrais, o que revela uma caracterstica essencial do autor: era um msico que se expressava pela literatura.

    Ao formular a hiptese dos torneios meldicos, Mrio de Andrade elege a melodia como centro de suas anlises musicais e como um dnamo da criao potica entre a poesia cantada e a melodia h um esforo de adaptao mtua. Assim, nesse primeiro

    captulo h itens, tais como Relao potico-meldica e Msica e texto, que se

    12 M. de Andrade, Dicionrio Musical Brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, pp. 634 a 688.

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    preocupam fundamentalmente com a poesia influindo na melodia. Cada item tenta mostrar um elemento meldico-potico que deveria ser levado em conta nas anlises futuramente desenvolvidas pelo autor, mas ficaram apenas nesse esboo.

    Os documentos usados nesse captulo foram encontrados numa pasta que recebeu do autor a rubrica Melodia: notas de pesquisa. Tinham um aspecto intocado: alfinetes de

    costura prendiam os maos das folhas de bloco-de-bolso, formando um lacre natural. Ao contrrio desta, as outras duas caixas do manuscrito - Ritmo e Potica popular - j estavam catalogadas. Por isso, a Meldica parecia ser um trabalho isolado, porm, vrias evidncias contriburam para que fosse descoberta a unidade dos trs captulos tais como ndices e outras referncias internas do texto.

    Sobre o Captulo 2 Rtmica: o ritmo potico-meldico.

    A pesquisa sobre poesia cantada em Mrio de Andrade ganha o estatuto de um estudo da linguagem quando aborda a rtmica uma disciplina comum msica e literatura. O autor entendia a linguagem como um sistema composto, sobretudo, de sons e silncios, dessa forma, o seu campo de investigao se estende lngua falada, literatura, poesia e msica. Orientado por sua formao musical, o autor identificou o seu objeto de investigao no como msica, mas como lngua cantada.

    A rtmica marioandradina uma rtmica dos fragmentos. No est centrada na frmula do compasso, pois no busca apenas a diviso do ritmo, como tradicional na

    msica escrita em partitura. Preocupa-se tambm com a adio rtmica, isto , com a forma como os diferentes fragmentos rtmicos se sucedem, formando uma cadeia sintagmtica.

    Essa adio sintagmtica prpria tanto linguagem como melodia. Diz o Ensaio Sobre a Msica Brasileira de 1928: E pela adio de tempos, talequal fizeram os gregos na maravilhosa criao rtmica deles, e no por subdiviso que nem fizeram os europeus

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    ocidentais com o compasso, o cantador vai seguindo livremente, inventando movimentos essencialmente meldicos.13.

    Sobre o captulo 3 Potica: a poesia na lngua cantada.

    Esse captulo trata do esforo literrio para adaptar um determinado texto a um espao rtmico-meldico. Mrio de Andrade investigou as liberdades de sintaxe e semntica que o cantador de poesia assume, este carter livre interessava muito esttica literria modernista.

    Apesar de ser um estudo sobre o texto que acompanha as melodias, pouco se fala sobre o assunto desses textos, pois todo o manuscrito um estudo esttico-formal. Sendo assim, o autor valoriza os elementos estruturais da linguagem potica usados na cano.

    Nesse captulo, Mrio de Andrade d especial ateno ao carter improvisatrio das composies, pois ele acreditava que a criao instantnea de textos cantados era um trao

    caracterstico da msica brasileira.

    Sobre o captulo 4 Viola Quebrada: estudo de uma cano.

    O estudo presente no ltimo captulo parte da anlise da cano Viola Quebrada, praticamente a nica cano publicada de Mrio de Andrade e a nica cano-hiptese evidenciadora dos torneios meldicos brasileiros. Nesse captulo so feitas anlises de

    alguns versos cantados para exemplificar, esclarecer e comprovar as hipteses apresentadas a respeito das relaes potico-meldicas. Trata-se de um anexo de experincias - to vital

    e necessrio pesquisa em qualquer rea do conhecimento.

    13 M. de Andrade, Ensaio Sobre a Msica Brasileira. So Paulo, Martins, 1962 [1928], p.36.

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    CAPTULO 1

    MELDICA o aspecto meldico da poesia cantada

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    As cartas de Mrio de Andrade a Manuel Bandeira, escritas em 1926, so a maior evidncia da formulao inicial da hiptese dos torneios meldicos nacionais. O autor enuncia nelas antes de ter escrito qualquer obra sobre msica a idia de que h elementos esttico-formais que imprimem um carter peculiar, prprio, s composies

    musicais. Cada um desses elementos configura, para Mrio de Andrade, um torneio meldico.

    Com a hiptese dos torneios meldicos, Mrio de Andrade busca reconhecer nas composies um carter formal extremamente sutil. O torneio se d na maneira como cada composio utiliza e cria relaes tanto no plano temporal como no plano das alturas entre as estruturas constitutivas da msica, isto , entre ritmo, harmonia e melodia. Os torneios meldicos no se confundem, entretanto, com essas estruturas: eles so uma combinao dessas estruturas, e se delineiam precisamente na forma como cada msica foi composta. Justamente por isso, o torneio meldico se torna uma categoria de anlise de difcil apreenso e delimitao.

    A formulao da hiptese dos torneios meldicos prenuncia o carter central que a melodia ir ganhar nos estudos de Mrio de Andrade. Diferentemente das anlises

    musicolgicas, que privilegiam o ritmo e a harmonia, o autor reconhecer na melodia o elemento formal mais importante para a identificao das tendncias e constncias da msica. A partir dessa hiptese, o autor dedicar toda sua pesquisa colheita e anlise de poesias cantadas, buscando estud-las sempre observando o papel primordial que a melodia exerce nas composies. Esse primado do aspecto meldico em suas anlises uma marca distintiva da obra tcnico-musical de Mrio de Andrade. A sua primeira obra a respeito de msica, o Ensaio Sobre a Msica Brasileira, j apresenta estudos preliminares a respeito da melodia. Entretanto, a melodia aparece, nesse

    estudo, diluda entre as disciplinas musicais: ritmo, polifonia e instrumentao. Como ento a melodia se tornou a principal categoria para os estudos de msica em Mrio

    de Andrade? Um dos aspectos dessa forma de pensar marioandradina deve-se ao fato de que a melodia abarca o ritmo e a harmonia: essas duas disciplinas esto contidas na anlise

    meldica. Mas isso ainda no suficiente para explicar a predominncia da melodia como

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    principal categoria musical para a composio de canes. Mrio de Andrade percebe que, entre todos os elementos da msica, a melodia justamente o aspecto que mais se aproxima da linguagem. A proximidade entre literatura e msica uma caracterstica fundamental para compreender os estudos de Mrio de Andrade. Pois, se o autor se dedicava ao estudo da cano, a msica de maior interesse para a sua pesquisa aquela cujo processo criativo indissocivel do texto potico. assim que esse vnculo inseparvel entre msica e linguagem levou Mrio de Andrade a perceber que encontrar os torneios meldicos exigia tambm estudar no apenas a composio musical e seus elementos: ritmo, harmonia e melodia mas tambm o processo da criao potica. O elemento potico tornou-se de tal forma importante na sua pesquisa que o autor, em seu projeto aqui apresentado, desaloja a disciplina harmnica e privilegia o estudo da potica. Mrio de Andrade entende que a anlise tcnica da poesia mais urgente para o estudo da cano por reconhecer que tanto o texto potico quanto a melodia desenvolvem-se num eixo sintagmtico. Nessa sucesso temporal, cada slaba potica corresponde ao

    som meldico que a acompanha, cada frase musical se conforma ao verso cantado, cada estrofe meldica ajusta-se a uma estrofe do texto potico. Dessa forma, a melodia oferece o meio ideal para se cultivar msica e literatura simultaneamente. Tendo em vista a importncia dos aspectos apontados acima para a compreenso dos estudos de Mrio de Andrade, este captulo ir explorar como o autor compreende as interdependncias entre os aspectos meldicos e a linguagem na composio da poesia cantada. Na estreita relao poesia-melodia que vo se configurar os torneios meldicos.

    Relaes potico-meldicas

    Este primeiro item apresenta o cerne de toda questo musicolgica em Mrio de Andrade. Nele so expostos os elementos de ligao entre a poesia e a msica, que evidenciam motivos no-verbais na composio de um texto potico. Entre esses

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    elementos, um dos mais simblicos so os neumas - entendidos aqui num sentido novo: so palavras de significado mais sonoro que semntico. Mrio de Andrade explicita, em sua pesquisa, como certos aspectos do texto potico da cano tm sua origem em caractersticas puramente meldicas. O autor encontra em cantares aparentemente sem assunto evidncias de que aquele trecho de cano est

    baseado na melodia e no no discurso verbal. por essa preocupao com o desenho meldico-rtmico que, em seus estudos, os textos dos cantos esto citados sempre juntos partitura correspondente.

    Uma das notas manuscritas a respeito da melodia revela a anlise do autor sobre o vnculo potico-meldico:

    A embolada, como certos neumas tirados de palavras, um elemento de ligao entre a poesia e a msica. Nesse sentido que nascem emboladas sobrerrealistas tais como a celebrrima Bombo do Bambu, a Pulo do pulo pulano, a da Aracu, e frases de embolada como a Rasteja apega repeliga a pele pega do Chora menina.1

    1 Potica-Meldica. Melodia, nota de pesquisa, caixa 65 (documentos no numerados). MMA-MA,

    IEB/USP. A partir desta nota do manuscrito percebe-se que os neumas existem para cobrir certos torneios meldicos, nos casos citados eles correspondem ao contnuo de colcheias:

    (Coco 95 do Rio Grande do Norte Chora, Menina In M. de Andrade. Os Cocos. So Paulo, Duas Cidades, 1984. p.151.)

  • 24

    Ao pesquisar a potica cantada do nordeste, Mrio de Andrade encontrou na forma-embolada elementos fundamentais para as suas fundamentaes tericas sobre a melodia. O termo embolada, segundo o autor, deriva de bolar, elaborar, conceber uma idia - bola quer dizer cabea. Ou seja, o significado dessa palavra refere-se ao processo criativo usado nessas composies2.

    O principal elemento de expectativa e tenso da embolada o tempo: a espera no deve ser sentida. O ouvinte no pode se aborrecer nessa espera, pois o prazer esttico est

    relacionado ao andamento, ao desejo de desfrutar do tempo rpido e contnuo. A presena do ouvinte , portanto, imprescindvel para o compositor-cantador. Na embolada h uma preocupao em no se perder o tempo convencionado entre compositor e ouvinte necessrio alcanar um andamento e uma mtrica que satisfaam a ambos. Por outro lado, desejvel tambm perder-se dentro desse tempo, arriscando diferentes divises rtmicas e

    (Coco 226 da Paraba Olha o Pulo, Idem, p.281)

    (Coco 187 do Recife, Pernambuco Embolada da Aracu, Idem, p.244) 2 Embolada Processo rtmico-meldico de construir as estrofes pelos repentistas e cantadores nordestinos,

    peas danadas ou no. (Dicionrio Musical Brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, p. 199). Para o autor a embolada no uma forma musical mas um procedimento comum a algumas formas musicais, uma maneira de se compor a parte solista de uma pea, e, apesar de ter enunciado como um processo rtmico-meldico sua principal caracterstica mtrico-potica: trs redondilhas maiores precedidas de um semiverso de quatro slabas. s vezes a embolada potica duplicada. Ento acrescenta mais quatro versos exatamente construdos como essa quadra, ou ento com o semiverso tambm completado nas suas sete slabas. (Idem, p. 200)

  • 25

    diferentes duraes para cada nota. Esses experimentos sonoros acontecem de modo emblemtico nas composies classificadas como embolada. Assim, ao reunir um aspecto mtrico-rtmico com outras caractersticas harmonia e tessitura, por exemplo percebe-se que essa forma potico-musical concentra em si importantes exemplos de torneios meldicos.

    Pensada assim, a relao entre a forma e o contedo, entre a sonoridade e o assunto da poesia cantada, ganha uma abordagem especfica na elaborao de Mrio de Andrade. Essa

    funo, ao mesmo tempo fsica e cognitiva da cano, relaciona-se s funes mais corriqueiras da linguagem, como o caso da conversa cotidiana3. Mesmo os dilogos cotidianos tm sua musicalidade - uma razo sonora que busca contentar o interlocutor.

    Leo Spitzer foi um terico que investigou os sentidos poticos da linguagem. Em 1949 escreve um texto defendendo que nem todas as palavras so conscientes, ou seja, que elas no tm primordialmente um significado figurativo: A poesia consiste geralmente em palavras de uma dada lngua, dotadas de conotaes tanto racionais como irracionais, palavras que se transfiguram por obra daquilo que Shapiro chama de prosdia4. A

    citao de Spitzer de um texto de Karl Shapiro a seguinte: (...) Uma mesma palavra que figure em um trecho de prosa ou em um verso transforma-se em duas palavras diferentes,

    nem mesmo semelhantes exceto na aparncia. Eu preferiria designar a palavra da poesia como no-palavra [...] um poema uma construo literria composta de no-palavras que, tomando distncia do sentido, alcanam por meio da prosdia um sentido-alm-do-sentido.

    Prosdia, para estes autores, no se compe apenas do ritmo potico que, por sua vez, deve ser mais do que simplesmente ps e metros e nem consiste estritamente do aspecto sonoro, mas tambm de associaes poticas e figuras de linguagem. Entre essas associaes poticas esto necessariamente as evocaes e as palavras com funo de

    neuma (tal como eram entendidas por Mrio de Andrade). Esses elementos constituem uma retrica sonora.

    3 A relao entre a mtrica da fala cotidiana e a fala elevada est elaborada na Potica de Aristteles: o

    jambo o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente: demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos jambos na conversao, e s raramente hexmetros, quando nos elevamos acima do tom comum. (Parte IV Origem da Poesia In Potica. Aristteles. [Trad. Eudoro de Souza]. So Paulo, Ars Potica, 1992, p. 33) 4 L. Spitzer, Trs Poemas Sobre o xtase. So Paulo, Cosac & Naify, 2003, p.37.

  • 26

    O uso sonoro da palavra potica uma forte caracterstica da literatura na antiguidade clssica, e a releitura dos clssicos sob uma nova tica foi fundamental para o embasamento da esttica modernista. Por exemplo, a leitura de Virglio por Valry evidencia um processo de composio potica que lana mo de palavras distribudas de forma a dotar o texto de tempo e ritmo, tanto ou mais que de contedo. Para tanto, aquele

    cantor da Roma Antiga fez uso de toda a flexibilidade que o latim proporcionava para reordenar frases de diversas maneiras. Virglio um autor primordial da poesia letrada e a

    sua obra lrica consiste um exemplo fundamental da funo no-figurativa do poema, permitindo uma leitura partitural do texto5. Em Buclicas, obra lrica de Virglio, o uso da palavra como sinal sonoro relaciona-se no s a exaltaes e evocaes de heris, ninfas e deuses, mas, sobretudo, discrepncia idiomtica entre Grcia e Roma.

    No Brasil de Mrio de Andrade a barreira do idioma e da prosdia dada pelo analfabetismo. Essa excluso proporcionaria, paradoxalmente, o enriquecimento da tradio letrada isto, segundo uma concepo esttica modernista, seria um caminho para uma poesia menos figurativista, retratista ou paisagstica. Assim como as artes plsticas, as

    artes poticas apelariam mais para formas e tonalidades do que para a imitao fiel da natureza dos objetos e dos fatos. Na msica popular Mrio de Andrade valorizou a embolada, que um procedimento meldico-potico no simplesmente descritivo ou figurativo. Desse modo, o valor de formas populares, como a forma-embolada, est na liberdade meldico-potica que ela proporciona em relao s canes j consagradas pelo repertrio. E muitas palavras freqentam estas poesias cantadas to somente para ocupar seu lugar de tradio, e no para narrar ou descrever algo. Mrio de Andrade chamou esses elementos potico-sonoros de neumas.

    O neuma um conceito reinventado e amplamente usado pelo autor, no o mesmo neuma da histria da msica e dos dicionrios musicais. Inicialmente este termo era usado

    para indicar palavras sem significado verbal, usadas na cano popular como olel, papap ou palavras africanas e indgenas que tiveram seu significado perdido. No

    manuscrito aqui analisado, este termo tem grande importncia, pois representa o primado da sonoridade na linguagem cantada.

    5 Buclicas de Virglio: uma constelao de tradues. Raimundo Carvalho In Buclicas. Belo Horizonte,

    Crislida, 2005.

  • 27

    Neumas, segundo o Musiklexikon de Hugo Riemann, so elementos taquigrficos ou mnemnicos que compem uma msica vocal, mas que no representam sempre um

    fonema ou um som. Podem significar apenas uma pausa, um silncio. A origem dos

    neumas est na antiguidade clssica. O pneuma grego (pi) o sopro, a expirao, o spiritus latino. Riemann tambm destaca os novos usos de neumas entre os compositores modernos e contemporneos - escreveu isso em 1889.

    Combarieu, um historiador da msica bastante citado por Mrio de Andrade, discorre longamente sobre os neumas, abordando-os como assunto histrico-musical da Idade

    Mdia, perodo em que o uso deste termo na disciplina musical mais freqente6. Em msica so chamados neumas notaes tpicas do cantocho que incidem sobre as palavras

    cantadas, so procedimentos intermedirios entre a linguagem verbal e a musical, como, por exemplo, o acento grave e o acento agudo, o ponto (punctum) ou a vrgula (virga). Mas o novo sentido que Mrio de Andrade atribuiu para o termo neuma tem um uso diverso.

    A importncia do pneuma analisada nO Ser e o Tempo da Poesia de Alfredo Bosi, com o seguinte destaque: A energia expiratria (o pneuma: flego, esprito) alcana tambm o reino da durao. Por isso, a dinmica do ritmo qualifica-se no s com os adjetivos forte/fraco, mas tambm com os adjetivos lento/rpido.7. Com obsesso musical-potica regida por Mrio de Andrade pode-se acrescentar outras dimenses tambm dos elementos neumticos, como a alternncia longa/breve que se relacionam prpria mtrica e, tambm, alto/baixo ou ascendente/descendente relacionados altura. Assim, evidencia-se que o carter neumtico das palavras cantadas possui uma funo cadencial, mais do que meramente verbal ou comunicativo.

    Mrio de Andrade, para abordar a relao entre poesia e sonoridade, identifica na

    forma-embolada um grande exemplo do processo de compor ajustando palavra e msica. Por outro lado, identificou no neuma um elemento universal desse processo. Ficam

    evidenciadas, assim, duas importantes manifestaes dos torneios meldicos.

    6 J. Combarieu. La notation: musique plane et musique mesure In Histoire de la Musique. Paris, Colin,

    1953. pp. 242-253, vol I. 7 Bosi, A. O Ser e o Tempo da Poesia. So Paulo, Companhia das Letras, 2000. p. 81 e 82.

  • 28

    Melodia-forma

    Em seus estudos sobre poesia cantada, Mrio de Andrade preocupou-se estruturalmente com a forma. Acreditava que uma melodia era determinada pela versificao do poema a ela vinculado. Desse modo, por analogia ou importao,

    formas poticas so freqentemente adotadas na composio de frases puramente musicais. Nesta nota manuscrita pelo autor, a respeito de uma coletnea de melodias de

    vrios pases, explicitada a universalidade evidente deste processo:

    Bantock8encontra a forma A, A, B, A na melodia quadrada das canes mais simples9.

    No entanto, do ponto de vista da potica, a forma pode trazer um significado bem

    mais complexo que um modelo estrfico pautado pela rima. Tal complexidade est na difcil observao do aspecto meldico da poesia. A busca desse aspecto est relacionada aos objetivos da poesia modernista e se entrev na pesquisa de Mrio de Andrade. O advento do verso livre concedeu uma natureza nova ao texto potico. As categorias poesia e prosa aproximam-se por vezes pela no-obrigatoriedade da rima, por exemplo. Por outro lado, a pesquisa da sonoridade das palavras, derivada de uma aproximao esttica com a msica, trouxe nova identidade poesia.

    Sonoridade e forma, so aspectos encontrados nas manifestaes mais corriqueiras da linguagem. Dilogos cotidianos, por exemplo, quase no tem assunto, so vocalizaes para estabelecer algum vnculo social entre as pessoas. Essa vocalizao socializante tambm se encontra nos cantos e faz parte da relao compositor-ouvinte. Exemplos mais contundentes disso so os cantos de saudao ou despedida, presentes em diversas culturas. A conversa cotidiana, as relaes faladas de cordialidade so

    tambm provas da interao vocal-sonora entre os indivduos de um grupo: elas constituem um elemento formal. Portanto, do mesmo modo como as locues da boa

    educao causam uma aceitao social e o prazer desse convvio, as locues formais da cano tornam a audio prazerosa.

    8 One Hundred folksongs of all nations; for medium voice. Boston, O. Ditson, 1911, p. XII.

    9 Melodia, nota de pesquisa, caixa 65 (documentos no numerados). MMA-MA, IEB/USP. Folhas soltas de

    bloco-de-bolso.

  • 29

    Aristteles, na Potica, diz que quanto menor o metro do canto mais sua mtrica se aproxima da fala cotidiana, e mais facilmente podem encantar10. Os versos mais curtos levam a formas mais curtas tambm, como so as quadras, sextilhas e oitavas, justamente as mais populares. Com esses artifcios sonoros a poesia cantada, como arte social que , aglutina seus ouvintes. A poesia cantada, porm, no se d meramente por

    vocalizaes ou imitaes de instrumentos isto praticamente nunca acontece: os elementos sonoros da poesia cantada esto contidos na linguagem verbal. Harmonia e

    ritmo amoldam-se s palavras.

    Terminao na sensvel

    Entre as anlises propriamente meldico-harmnicas, raras nos estudos do autor, um dos elementos mais importantes o da terminao das melodias no grau sensvel da escala. Esse torneio meldico no simplesmente um dado tcnico-musical da composio, pois as

    linhas que terminam a meio-tom da nota fundamental refletem, por exemplo, na potica: no metro e nas rimas associadas a essas melodias. Portanto, esse aspecto formal da melodia

    desvenda uma importante caracterstica da esttica musical brasileira. Ao contrrio da forma convencional dos Lieder alemes (na qual o final-suspensivo apenas um adiamento do final-conclusivo), a tenso harmnica provocada pela terminao na sensvel deixa, no pblico ouvinte, a sensao fsica de uma msica que no acaba definitivamente. Perpetua, assim, um desejo de continuao. Seu efeito imediatamente orgnico: a funo sensvel, na equao das alturas, uma atrao sintagmtica, deslocadora por excelncia11. A terminao na sensvel um recurso de tenso harmnica na monodia, ou seja, uma harmonia que se faz notar no plano das sucessividades, no eixo sintagmtico. Mesmo unilneo, esse processo deixa transparecer seu carter polifnico, constituindo exatamente

    um princpio, ressaltado por Adorno, que diz: toda msica, mesmo solista e composta por um nico msico, traz a herana do seu passado de arte coletiva dos cultos baseados no

    10 Aristteles. Potica. So Paulo, Ars Poetica, 1992, p. 33.

    11 J. M. Wisnik. O Som e o Sentido. So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 65 e 84.

  • 30

    canto e na dana12. Esta origem em manifestaes coletivas trouxe no s caractersticas rtmicas como, tambm, as tenses harmnicas das quais a terminao na sensvel o exemplo mais contundente.

    Sobre as razes da terminao na sensvel manuscreve Mrio de Andrade:

    No vir isso da preciso de continuar a pea infindavelmente como muito do nosso gosto popular? mais que provvel que sim. A curiosa coincidncia entre a encantao produzida pelas dinamogenias sonoras e a psicologia brasileira, mais que coincidncia. O cantador domina pelo efeito dinamognico inerente ao som mais que pela boniteza da prpria msica. Vence por pacincia e os ouvintes se deixam vencer por pacincia. Certos cocos como o Meu Baraio 2 Ouro (Chico Antnio) repetidos 15 minutos em vez de engendrarem na gente o exaspero, a revolta contra a monotonia, inconcebvel o efeito delicioso de quentura amolecida sossego sem previsar, descanso eterno, paz infindvel que do. O cantador exerce uma verdadeira encantao sobre o ouvinte popular e... sobre mim. E constato que a repetio da frase meldica que convence. Da a preciso de evitar na linha o efeito cadencial que termina duma vez. Da a repugnncia do brasileiro pela tnica. E da a verdadeira atrao pela sensvel terminando o perodo e obrigando a iniciar outro que nos d a esperana de acabar. No Brasil fez furor entre a moada de colgios, quartis, toda a parte a melodia do Romario tinha uma flauta e estou que foi principalmente porque no acabava. Outro elemento conhecido talvez em todo o pas o Uma casinha na praia que no acaba mais.13

    Um exemplo de terminao na sensvel na pesquisa emprica de Mrio de Andrade est no coco nmero 25 do Rio Grande do Norte, Linda Rosa14:

    12 T.W. Adorno. Filosofia da Nova Msica. So Paulo, Perspectiva, 1989 [1958] p. 24.

    13 MMA-MA, IEB/USP, Caixa 65: melodia. Ttulo: Meldica/Terminao na sensvel: n. 39 dos Congos/ n.

    45 dos Congos. Este esboo traz uma nota entre parnteses no original: (referir aqui o caso do Odilon do Jacar mudando a melodia do Eu fui no mato criola pra que no acabasse). 14

    M. de Andrade. Os Cocos. So Paulo, Duas Cidades, 1984, p.77. Esta pea concentra vrios torneios e ser referido pelo autor outras vezes.

  • 31

    No Coco do Lagamar do Rio Grande do Norte ocorre a terminao na sensvel que d idia de melodia infinita15:

    Na Dana dos Congos uma longa frase termina em fermata na sensvel16:

    A atrao e o deslocamento, proporcionados pela sensvel no ltimo som da

    melodia, relacionam-se diretamente com a preocupao em cativar o ouvinte. A repulsa pela tnica, no entender do autor, uma caracterstica popular, e leva simpatia por terminar em outros graus da escala, sendo a terminao na sensvel o caso mais extremo. A sensao dissonante - provocada pelos intervalos de segunda menor, nona diminuda e principalmente as stimas so atraentes pois sugerem tenso e desejo, resoluo e prazer. Pode-se classificar o final cadencial terminando na tnica como o apolneo conclusivo e racional, e a terminao suspensiva, exilada na sensvel, como o impondervel do

    dionisismo. O manuscrito citado discorreu a respeito de uma dinamogenia que no do tempo

    ou do ritmo, mas da relao entre as alturas. Os modos grego-gregorianos, as blue-notes norte-americanas e a stima abaixada nordestina so escalas que estabelecem diferentes intervalos entre seus graus, esta variao sobre a escala diatnica tem grande valor tensional - uma tenso harmnica que traduzida para uma tenso corporal e mantm o ouvinte atento ao cantador.

    15 Idem, p.87, (melodia n.39).

    16 M. de Andrade. Danas Dramticas. Belo Horizonte, Itatiaia, 2002, p. 433.

  • 32

    O mtodo de anlise musical de Mrio de Andrade prefere relaes meldicas aos processos de simultaneidade. Quando, no manuscrito citado acima, o autor aponta a preciso de evitar o efeito cadencial que termina de uma vez, trata essencialmente de uma caracterstica da seqencialidade meldica, e, a partir desta, entende a percepo tonal dos cantadores - sua busca ou sua repulsa pela tnica no trajeto meldico.

    Outra anlise harmnica a partir da melodia desenvolvida em outras anotaes que observam o gosto pela sensvel. O autor percebe dados interessantes ao ler os blues

    estadunidenses publicados em partitura, identificando as caractersticas das escalas adotadas:

    Blue Meldica 2 grau Evitao quase sistemtica Por Handy17

    Esse documento est includo nos estudos sobre o uso da sensvel justamente porque as escalas pentatnicas, por terem poucos sons, certamente no possuem sensvel. Mrio de Andrade adotou, portanto, o gosto ou a repulsa pelo grau sensvel segundas e stimas como um importante indcio em suas anlises meldico-harmnicas:

    Evitar sistematicamente a sensvel. Tambm nos blues dos negros afro-ianques, mesmo quando, maneira persa, judia, etc. (ver histria da msica de Adler18) bordam com colares de sonzinhos a melodia que nem em Handy (org.) p. 25, 49, 5819. Enfim, isso comum, como comum a stima abaixada em todo o livro.20

    possvel entrever a comparao com a msica brasileira nessas notas. O autor pesquisava, com o mesmo interesse, a ocorrncia ou ausncia de um processo buscava,

    17 Melodia, nota de pesquisa, caixa 65 (documentos no numerados). MMA-MA, IEB/USP.

    William Christopher Handy (org.) Blues; an antology. New York, Beni, 1926. p. 142. 18

    Guido Adler, 1855-1941, Handbuch der Musikgeschichte. Frankfurt am Main, Frankfurter Verlags-Anstalt, 1924. Outra citao de Adler: O princpio da variao como fonte para achar novas melodias. Adler Hist. da musica 24.. 19

    Melodia, nota de pesquisa, caixa 65 (documentos no numerados). MMA-MA, IEB/USP. Blues; an antology. W.C. Handy, op. cit. 20

    Meldica: evitar sistematicamente a sensvel, MMA-MA, IEB/USP, caixa 65 Melodia. Folhas soltas de um bloco-de-bolso.

  • 33

    assim, o elemento caracterstico brasileiro, o que somente ocorre na comparao com processos de outras nacionalidades. Os elementos meldicos, por serem universais, no funcionam meramente como regra e exceo: so itens a serem observados nas anlises das poesias cantadas. Uma pequena nota prvia, do mesmo manuscrito sobre a meldica, esclarece um

    pouco mais a respeito das preocupaes metodolgicas de Mrio de Andrade em relao harmonia esttica nas composies populares:

    Ver se tem peas inteiras construdas s com os sons da trade tonal (maior ou menor). Ou pelo menos abundncia de frase assim. H exemplos afroamericanos disso em n.154 [N.I.White21] p. 407 e 409.22

    Nesse momento o autor passa para uma anlise formal da melodia como um todo. Ele analisa, ento, a estrutura do desenho meldico na qual a trade um importante

    alicerce. Mais uma vez, est implcita uma comparao com as canes brasileiras, onde as trades ascendentes ou descendentes tem um papel fundamental. Provavelmente esse uso

    das trades tonais configuraria um torneio meldico. Em seguida, o autor anota interessantes exemplos em partitura da meldica afro-

    americana. Entre esses, encontra-se uma melodia descendente com a observao: frase comum nos cocos. Trata-se de uma frase que acaba de uma vez, na tnica. A princpio pode parecer no ter nenhum interesse, mas, essa escala falha que desce at a tnica configura uma constncia nos processos da lngua cantada, justamente por evitar a sensvel23:

    24

    21 White,Newman Ivey. American negro folk-songs. Cambridge Mass., Harvard Univ. Press, 1928.

    22 Meldica, MMA-MA, IEB/USP, caixa 65: Melodia, folha picotada de bloco-de-bolso.

    23 Esse processo meldico comum a manifestaes musicais to diversas quanto o Wiegenlied de Brahms e

    Asa Branca de Lus Gonzaga, expostos no ltimo captulo. 24

    White, op. cit. p.406.

  • 34

    Outros dois exemplos de Afroamericano encontrados entre os manuscritos trazem caractersticas semelhantes entre si: melodia decrescente, pequenssima tessitura e a sensvel no usada:

    Este item exps como Mrio de Andrade estudava o comportamento harmnico das melodias cantadas a partir de uma caracterstica bem especfica: a terminao na sensvel. O exame dos esboos terico-musicais manuscritos pelo autor leva a crer que ele incorporou aos estudos da Meldica suas reflexes sobre a harmonia na cano. Uma evidncia documental disso o fato de o captulo sobre harmonia ter sido substitudo pelo captulo da Potica nos manuscritos em que figuram esboos do ndice.

    Extrema diferena de verses de uma mesma pea

    Mrio de Andrade assinala a variao de verses como evidncia da antigidade de

    uma composio popular. Com isso o autor justifica o valor dessas canes como documento histrico um patrimnio que, alm de imaterial, tambm fluido e mutvel no tempo e no espao.

    Por outro lado, o fenmeno da extrema diferena de verses de uma mesma pea leva reflexo sobre um dos grandes dnamos da criao artstica no entender do autor: a preguia. Pode-se relacionar preguia a origem da palavra escola, do grego skhol

    () que significa no ter pressa, dedicar-se ao cio, tomar seu prprio tempo25. Este tempo livre, que a civilizao concede atravs da escola, fundamental para o aprendizado e para a criao artstica ou cientfica, pois a exausto e o consumo de tempo do trabalho

    25 A. Bailly. Abrg du Dictionnaire Grec-Franais, p. 849.

  • 35

    cotidiano impossibilitam a inveno e a descoberta. Esta uma das razes fundamentais para se entender a preguia como modo-de-ser do personagem Macunama, e Mrio de Andrade, quando discorre teoricamente sobre a importncia da preguia est retomando um assunto que j foi exposto de forma alegrica na sua prosa de fico, particularmente em Macunama, o heri sem nenhum carter de 1928. Nos processos de composio a preguia influi nas resolues tonais e nas divises estrficas das poesias cantadas. Reproduzir um tema cantado de forma diferente da original

    tem sua razo na mesma preguia.

    Mrio de Andrade, ao investigar o processo criativo da composio brasileira, relaciona a variedade de verses de uma poesia cantada a dois fatores determinantes: a improvisao e o princpio da variao como fonte para achar novas melodias. Esses procedimentos despertam o interesse histrico-etnogrfico do autor, pois indicam tambm a antiguidade das canes populares no Brasil. Conduzem tambm elaborao de um conceito estrutural, que determinante para o entendimento da literatura e dos estudos marioandradinos: a idia da preguia como motor de todo processo criativo. O autor

    explica, entre outras coisas, como a preguia leva a inventar novas e diferentes maneiras de compor, para no obrigar o cantador a reproduzir as cantorias antigas exatamente como

    eram. Ao pensar a melodia como um trajeto, Mrio de Andrade evidencia como a preguia estabelece o melhor meio a ser percorrido:

    No se trata a do direito de transformar o que vivo nele, que j Silvio Romero26 j reconhecia no povo. Se trata de puro individualismo, dele ser excessivamente improvisatrio na sua maneira de criar poesia e principalmente msica e que no se preocupa de decorar com exatido. Porque ele sabe que suprir com facilidade as falhas da melodia, que a preguia, a inateno lhe impediu de fixar na memria.27

    O cantador, ao suprir as falhas da melodia, faz com que estas deixem de ser falhas para se tornarem caracterstica. Ocorre, assim, um aproveitamento esttico do erro e da

    26 S. Romero. Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil, p. 67.

    27 Meldica: Extrema diferena de verses de mesma pea.. MMA-MA, IEB/USP, caixa 65:

    Melodia, manuscrito em folha de bloco-de-bolso.

  • 36

    imperfeio na arte (moderna ou popular). Para Merleau-Ponty, o verso, quando recordado aps um tempo, sempre visto como um bloco, semelhante a uma imagem fotogrfica de um homem ao longe: no se sabe se ele tem um centmetro ou uma estatura normal. Assim um grande livro, uma grande pea de teatro, um poema est em minha lembrana como um bloco. Posso perfeitamente, revivendo a leitura ou a representao,

    lembrar-me de tal momento, de tal palavra, de tal circunstncia, de tal mudana da ao. Mas, ao faz-lo, vulgarizo uma lembrana que nica e que no tem necessidade desses

    detalhes para permanecer em sua evidncia, to singular e inesgotvel quanto uma coisa vista.28. A compreenso e a lembrana de um texto acontece um tempo depois de vivida essa experincia de leitura, por isso no reproduzida exatamente da mesma maneira, nem seria interessante que fosse assim. esta lembrana vulgarizada, que no tem necessidade de todos os detalhes, que conduz o compositor na criao de versos e melodias, e, no subproduto de sua memria, naqueles elementos que permanecem, esto os torneios meldicos.

    Variaes no refro

    A variao no refro a repetio retrica de um mesmo trecho de uma poesia cantada. A razo que leva a esse procedimento , fundamentalmente, a persuaso esttica do ouvinte. O item anterior mostrou como diferentes verses de uma mesma pea so criadas sobre uma mesma cano, por motivos dialetais ou contextuais. No presente item essas variaes se do no mesmo tempo e espao da cantoria.

    Num sumrio manuscrito, citado abaixo, Mrio de Andrade lista os elementos prprios ao coco e embolada, e classifica-os como processos de variao. Enumerados

    desta maneira, constituem um pequeno ndice a ser levado em conta na anlise das melodias cantadas:

    Cocos Embolada variando refro

    28 Merleau-Ponty, Maurice. A cincia e a experincia da expresso A Prosa do Mundo. So Paulo, Cosac &

    Naify, 2002.

  • 37

    Expor as diversas formas de variao empregadas. I. A embolada no passa de repetio completa do refro II. A embolada multiplica sucessivamente e em nmero varivel um por

    um dos sons do refro III. A embolada apenas repete um ou mais motivos tirados do tema

    completo do refro, ajuntando a ele motivos novos. No geral o motivo repetido o ltimo do refro

    IV. A embolada contenta-se em repetir os sons principais do refro, botando entre eles sons repetidos no geral, ou pequenos elementos escalares.

    (Ver se no tem outros processos de variao)29

    Recorrer s figuras de repetio, tal como o autor aponta acima, procedimento prprio tanto retrica literria como retrica musical. A retrica como categoria

    explicativa da linguagem tem seu pice nos tratados de msica caractersticos do perodo barroco muito baseados nas retricas da Antigidade30. Os recursos estilstico-retricos empregados no cancioneiro so os mesmos da poesia letrada e da msica escrita. As figuras de repetio, como as enunciadas acima, encaixam-se nos termos clssicos para esses procedimentos, como so as anforas e os quiasmas. A embolada se consagra, assim, como um importante conjunto de elementos do processo de composio meldica brasileira. O manuscrito acima aponta importantes parmetros adotados por Mrio de Andrade em sua pesquisa, revelando que seu entendimento de pesquisador tcnico-estrutural e no noticioso, biogrfico ou conteudista.

    Simultaneidade sonora

    Mrio de Andrade seguia o pressuposto do modernismo musical buscar processos de compor alternativos polifonia tradicional. O autor observou, ento, que a juno das categorias de anlise musical e literria configurava uma concepo diversa de simultaneidade sonora. Esta simultaneidade existe apenas na percepo de quem ouve, pois se d relacionando mentalmente as diferentes alturas da melodia.

    29 Meldica, Melodia, nota de pesquisa, caixa 65 (documentos no numerados), MMA-MA, IEB/USP.

    30 Compilados e traduzidos por Dietrich Bartel, Musica Poetica: musical-rhetorical figures in german

    barroque music. University of Nebraska Press, 1997.

  • 38

    Ao estudar a msica homfona e unssona dos cantos individuais populares, Mrio de Andrade enxergou neles vrios processos de simultaneidade sonora. Assim como, numa razo inversa, o autor elaborava, em suas prprias composies de poesia, o verso harmnico e polifnico. A imaginao estrutural do autor intercambiava as funes do eixo sintagmtico e do eixo paradigmtico tanto na linguagem verbal ou literria quanto na

    melodia. O autor, nesse sentido, elaborou um outro sumrio, desta vez, enumera

    caractersticas formais dos processos de simultaneidade sonora no nordeste brasileiro:

    I. A msica basicamente homfona, baseada na melodia nica acompanhada de percusso31.

    O Ensaio sobre a Msica Brasileira j adotava o preceito homofonia para a msica brasileira tradicional. O acompanhamento no harmnico, s rtmico-percussivo, ajuda nessa caracterizao, pois concentra a percepo harmnica na melodia da voz cantada. O prprio termo na pancada do ganz, escolhido pelo autor como ttulo de seu maior estudo, prova isso. O primado da melodia e a valorizao da instrumentao percussiva tambm significam um posicionamento frente polmica em torno da harmonia classicista

    que envolvia o ambiente musical do incio do sculo XX. A orquestrao brasileira est, assim, grandemente submetida melodia, mais

    especificamente parte vocal das peas. Esta primazia da meldica constante no pensamento do autor e permeia tanto o Ensaio Sobre a Msica Brasileira como o Compndio de Histria da Msica suas obras de maior exposio terica. Pode-se comparar a questo levantada no trecho acima ao pensamento que vigorava sobre o carter percussivo no acompanhamento da msica de origem africana. Mrio de Andrade, como pesquisador, acredita que a monodia homfona caracteriza sim um valor esttico-musical e no uma incapacidade como era o discurso corrente no pensamento dominante na poca. Desse modo, ele assinalava para uma arte modernista que no fosse

    necessariamente evolucionista ou segregacionista.

    31 Processos de simultaneidade sonora no nordeste, Melodia: nota de pesquisa, caixa 65. MMA-MA,

    IEB/USP.

  • 39

    O autor priorizava, portanto, o aspecto meldico como elemento criador fundamental no processo de composio da poesia cantada brasileira, tal como a sua obra evidencia. Nesse esforo, ele se mostrava atrado por estudos primitivistas, como o Ramo de Ouro de Frazer ou Totem e Tabu de Freud32. Mas, apesar dessas leituras terem influenciado, os argumentos de Mrio de Andrade a respeito da msica so sobretudo tcnicos e sua apreenso

    esttica. Seu desejo de desenvolver, a partir de uma s linha seqencial, toda a caracterizao polifnica e polirrtmica da composio popular caracteriza um estudo

    formal e estilstico da linguagem que se soma a uma anlise propriamente musical. O segundo item do sumrio sobre os processos de simultaneidade sonora do nordeste aborda a antifonia:

    II. A simultaneidade sonora inconscientemente aplicada nos coros (cocos, repetio coral das estrofes nos reisados) pelo processo de Antifonia. Os sons so duplicados na oitava superior pelas vozes femininas, quando estas aparecem nos cocos, e pelas vozes infantis nas Danas Dramticas. Parece porm que a antifonia inconscientemente desejada, pois o uso de crianas nas Danas Dramticas sistematizado.33

    Comparando antifonia e homofonia no pensamento de Mrio de Andrade, percebe-se como essas duas categorias so reveladoras. A homofonia leva ao unssono, que o coro sem contradies internas. J a antifonia sugere um coro anti-harmnico, uma diversidade de vozes. O uso vozes infantis nos autos populares estudados pelo autor prova a aceitao de elementos imponderveis que enriquecem a criao esttica das composies. A noo de antifonia inconscientemente desejada est relacionada a uma perspectiva infantil da arte, valorizada por vrios projetos estticos modernistas: a exemplo de Paul Klee, dos surrealistas, de Villa-Lobos nas Cirandas e Manuel Bandeira de Na Rua do Sabo em Ritmo Dissoluto.

    grande o interesse artstico pelas crianas na era modernista a criao dos Parques Infantis pelo prprio Mrio de Andrade, quando foi secretrio de cultura,

    32 J.G. Frazer. O Ramo de Ouro. So Paulo, Crculo do Livro, 1978.

    S. Freud. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Imago, 2005. 33

    Processos de simultaneidade sonora no nordeste, op. cit.

  • 40

    outro exemplo disso. A criana, do ponto de vista artstico, no era vista mais como prodgio, como um no-adulto imitador do adulto, mas como uma contribuio social para o processo criativo e para a heterogeneidade esttica. So vrios os exemplos de interesse esttico nas manifestaes infantis. La Fontaine, ao escrever para crianas as fbulas de Esopo transformadas em versos no

    final do sculo XVIII, torna-se o primeiro poeta a romper com certas estruturas, formas e figuras da poesia do Antigo Regime. Trouxe, assim, mais liberdade formal ao abolir,

    por exemplo, o vers symtrique, e deu incio a um questionamento das razes poticas que levariam Edgar Allan Poe e, depois, os simbolistas franceses a fazer suas inovaes na literatura34. Nesse perodo, entre os sculos XVIII e XIX, aparece tambm o Fausto, obra de toda a vida de Goethe, baseada numa histria de infncia contada por teatros de bonecos convertida, nesse caso, para um pblico adulto. O mesmo sumrio sobre os processos de simultaneidade sonora no Nordeste traz tambm um item a respeitos dos cantos em duas vozes:

    III. O falso-bordo em teras ou sextas, tal como empregado sistematicamente no sul, desusado. Se aparece ser rarssimo. No escutei uma s vez o canto em falso-bordo. O organo em 4s e 5s paralelas no existe embora considerado tambm como primrio e primitivo por Carl Stumpf35 n. 236.36

    O falso-bordo (assim como o organo e a antifonia) analisado no Compndio de Histria da Msica de 1929 como uma influncia de origem crist na msica escrita - procedimento anterior ao moderno coralismo protestante. Diz o autor: A melodia gregoriana essencialmente mondica e de conceito modal37. O primeiro tipo de contracanto reconhecido por Mrio de Andrade no Compndio foi o Organo (Vox organalis) o que o levou a suspeitar de uma possvel pr-histria da polifonia: No seria o organo uma conformao erudita de prtica popular anterior?. Ao final, o

    34 Alfredo Bosi em O Ser e o Tempo da Poesia trata da polirritmia dctil de La Fontaine e sua influncia no

    fazer potico. So Paulo, Companhia das Letras, 2000, p.88. 35

    Karl Stumpf. Die anfnge der Musik. Leipzig, Barth, 1911. 36

    Processos de simultaneidade sonora no nordeste, op. cit. 37

    Compndio de Histria da Msica. So Paulo, Miranda, 1936, p. 27

  • 41

    Compndio conclui que tanto o Organo quanto o Falso-bordo no alteram o conceito mondico do Gregoriano. O paralelismo absoluto das duas ou trs vozes formava melodias distintas, passveis de serem cantadas simultaneamente com a melodia tenor, porque mantinham com ela relaes eurrtmicas de similitude intervalar, meldica e rtmica. Mrio de Andrade usa como figura alegrica a me que se faz acompanhar de

    seus filhos, aproveitando o princpio gregoriano de Melodia Mater38. No por acaso, Roland Barthes, sobre a mesma alegoria da me que caminha com o

    filho, lida com o conceito de idiorritmia e baseia-se, para isso, na origem etimolgica

    grega do rythms ( - que conota um movimento regular e mensurvel39). Barthes descobre que o uso desse termo no cotidiano presente nas expresses: impor

    um ritmo ou manter um ritmo carrega o seu sentido original prprio e no um sentido metafrico. O conceito musical de ritmo o tropo, abarca o sentido figurado do termo ritmo40. Para o presente caso essa discusso interessante pois amplia o conceito de ritmo de mera disciplina rtmica da msica para um conjunto de aes necessrias para a convivncia em duas ou mais vozes, incluindo aqui um acordo meldico-

    harmnico entre os cantores.

    Na meldica brasileira existem vrias manifestaes de falsos-bordes. Quase todas as toadas do Ensaio Sobre a Msica Brasileira trazem o falso-bordo em intervalos de tera entre as duas vozes, a exemplo do Para te amar de Piracicaba (S. Paulo)41:

    Na diferenciao cultural entre o norte e o sul do pas realizada por Mrio de Andrade, h uma preocupao com a extrema ocidentalizao musical da poro sul,

    38 Idem [Compndio] p.28

    39 Bailly. Diccionaire Grec-Franais. Paris, Hachette, [1950], p. 1724.

    40 R. Barthes, Como Viver Junto: simulaes romanescas de alguns espaos cotidianos. So Paulo, Martins

    fontes, 2003 41

    M. de Andrade. Ensaio Sobre a Msica Brasileira. op.cit., p.132.

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    que contrasta com o arcasmo do nordeste rural. O falso-bordo um indicativo dessa disparidade cultural. No nordeste as preocupaes com os processos de simultaneidade sonora so outras:

    IV. Curioso de observar o processo comunissimamente nos Cocos, da embolada ser apenas uma variante do refro coral. Ora isso, se pode dizer que provm ou conduz, s heterofonias no sentido em que Stumpf emprega essa palavra, (n. 23642 p. 59 e 95 e ss) to em uso em certas civilizaes asiticas China, Japo, Indochina. De fato se juntarmos refro e embolada, construdos nesse processo de variao, temos uma heterofonia legtima. (Ajuntar dois ou 3 exemplos pra mostrar). Nem sempre ser agradvel pra nossos ouvidos harmonizadores, mas processo legitimamente o mesmo da gente asitica. Ser possvel supor alguma coisa? Como ligao entre sia e Brasil evidente que no. Apenas aproximo os fenmenos por uma curiosidade pensativa. Se a nossa gente popular fosse deixada na sua evoluo natural, independente das influncias externas, possvel supor que ela atingisse heterofonias idnticas s asiticas, muito mais que polifonias idnticas s europias. O que impede essa evoluo presumvel o conceito, o princpio harmnico em que por hereditariedade as nossas melodias populares so construdas, e cuja a resultante a polifonia-harmnica europia, ou a Melodia Acompanhada europia, e no a heterofonia mondica (sem harmonizao possvel) dos asiticos. E que a heterofonia se encontra em nosso povo provam os Choros Cariocas, onde na execuo de maxixes e sambas especialmente a flauta que executa o contraponto rpido muitas vezes no faz seno executar uma variao muito enfeitada com notas de passagem, da melodia que simultaneamente est sendo executada por outro instrumento ou melhormente pela voz.43

    A harmonia do domnio europeu, assim como a melodia acompanhada. S a

    heterofonia representa uma alternativa de simultaneidade sonora extra-europia, de organizao social da msica a partir de uma cultura grafa, no ocidental nesse

    sentido. No Compndio de Histria da Msica, melodia acompanhada e polifonia aparecem em captulos distintos, evidenciando que um diz respeito tradio catlica - adotada no Brasil - e outro caracteristicamente protestante. Existe, portanto, nos estudos de Mrio de Andrade, uma associao entre a melodia acompanhada e os cantos

    42 Karl Stumpf. Die anfnge der Musik. op. cit.

    43 Processos de simultaneidade sonora no nordeste, op. cit.

  • 43

    populares brasileiros. O autor v esse processo de acompanhamento como resultado da escassez e leviandade de recursos materiais: so usos de instrumentos como o violo e o acordeo - que induzem a uma harmonizao especfica, de tenso extremamente tonal.

    Polifonia um conceito musical que se aproxima mais de uma tradio tcnica da

    harmonia racionalizada, tal como exps Max Weber nos Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica44. Mrio de Andrade nunca se devotou ao termo harmonia, este apresentava uma conotao civilizatria muito grande - por exemplo, quando o autor fala ouvidos harmonizadores quer dizer ouvidos preconceituosos. Por isso ele usa aqui o termo processos de simultaneidade sonora. O exame de polifonias e heterofonias a partir duma nica linha meldica fundamental no trabalho do autor. Conforma-se, assim, um dos grandes triunfos dos estudos de Mrio de Andrade: encontrar numa nica linha discursiva, meldica e mondica elementos pra teorizar sobre a heterofonia do cantador e, desse modo, entender os processos de simultaneidade sonora onde as linhas sonoras so consecutivas

    e no simultneas. Esta uma idia extrada da experincia literria do escritor. As liberdades conquistadas na literatura, a partir dos poemas e obras crticas dos

    simbolistas franceses, permitiram delinear uma relao mais estreita entre poesia e msica. Esta relao pode ser identificada com uma busca por sensaes corpreas causadas por elementos que na realidade efetiva no existem, e, segundo o manuscrito citado, Mrio de Andrade observou esse fenmeno em suas pesquisas de campo. Quando Merleau-Ponty conclui que exprimir no nada mais do que substituir uma percepo ou uma idia por um sinal convencionado que a anuncia, evoca ou abrevia45, sugere como compreender o sentido criador do cantor-compositor: todo esse universo de sensaes e idias pode ser simplesmente inventado, no h necessidade de

    existir efetivamente. Assim que Mrio de Andrade compreende a polifonia: um processo que pode ser construdo pelo ouvinte. Por isso, seu trabalho musicolgico foi o

    de desvendar os elementos que causam a sensao de simultaneidade sonora na melodia, um elemento essencialmente sintagmtico.

    44 M. Weber. Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica. So Paulo, Edusp, 1995.

    45 Merleau-Ponty. O fantasma da linguagem pura In A Prosa do Mundo. op. cit. p.23

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    O restante desse manuscrito sobre os processos de simultaneidade sonora no Nordeste mostra duas ocorrncias especficas de polifonia no necessariamente harmnicas a sobreposio polirtmica de solo e coro e a nota longa do solista que invade o espao do coro:

    V - Processos individualistas de Simultaneidade.

    a) o de Chico Antnio redobrar, tresdobrar a embolada solista, evitando o hiato do refro (4, 5 sons iniciais, Meu Barai, no refro do Meu Baralho) produzindo assim uma pequena e deliciosa polifonia. Si o processo ser inicialmente um puro acaso, me parece que j no o , pois nem o coro deixa por isso de continuar querendo entrar a cada fim de embolada, provocando pois sempre a mesma polifonia; nem se manifesta nos ouvintes a mnima sensao de comicidade ou repulsa por esses enganos continuados do coro. (o mesmo processo sucedeu com Adilo)

    b) Os processos esses caractersticamente individualistas de Adilo do Jacar. Pequenos points-dorgue (pedais harmnicos). Pequenas polifonias, entrada do refro coral.

    Estes pedais harmnicos muitas vezes definem a orientao modal da melodia - a variao do modo dentro de um mesmo tom configura um torneio meldico importante na pesquisa de Mrio de Andrade. Exemplo de pedal harmnico que altera o modo da cano o Guriat de Coqueiro, gravao de 1930, em que o canto se desloca do modo maior para o modo menor conforme o pedal harmnico que oscila entre a fundamental e sua relativa

    menor46. Algumas melodias recolhidas no volume Os Cocos tambm apresentam essa variao, porm, o mais importante que uma grande parte dessas msicas so passveis de

    se transportar para o modo maior ou menor segundo o pedal harmnico empregado - e esse poder amplamente exercido pelo cantador47. O ltimo item sobre os processos de simultaneidade explicita a crtica do autor aos instrumentos que impe artificialmente a harmonia diatnica a uma manifestao:

    VI Melodia Acompanhada ou Msica Harmnica

    Este processo o mais raro dos socializados, o que mostra no povo a repulsa da tradio europia. Na

    46 No ltimo captulo h uma anlise da composio Guriat de Coqueiro.

    47 Ver o nmero 10 da Paraba O sol e a Lua In M. de Andrade. Os Cocos. op. cit. p. 67.

  • 45

    burguesice semi-culta urbana o uso do violo, o emprego sistemtico de rebeca e viola no Bumba meu Boi, em pequenas harmonizaes cadenciais, diretamente provindas da tonalidade e harmonia europias.48

    Individualismo popular

    Um dos grandes objetivos da pesquisa de Mrio de Andrade era descobrir at que ponto iria a criao individual e at que ponto se conservariam os elementos tradicionais

    de uma cano:

    Em todo caso, apesar de todo esse individualismo, sempre o grande nmero de peas que colhi e sou obrigado a indicar como j referidas em livros e discos, prova uma tradio continuada, funda, real. Principalmente quanto a textos. O individualismo o elemento criador pessoal se apresenta muito mais na msica que na inteligncia.49

    A msica um sistema mais livre, mais aberto improvisao do que a linguagem. Isso se d porque o discurso musical no tem mensagem: independe do contedo mas no prescinde de modo algum da forma. A preferncia pela estrutura do tema com variaes patente na obra do autor, o prprio Macunama foi escrito dessa forma. Sua curiosidade especfica a respeito da variao na melodia conduziu, por exemplo, seus registros de pesquisa no volume Os Cocos estes esto classificados em Cocos da Terra, Cocos dos Vegetais, Cocos do Engenho, Cocos da Mulher entre outros, e, dentro de cada uma dessas classificaes,

    diversas variaes da mesma pea se sucedem.

    48 Processos de simultaneidade sonora no nordeste, op. cit. Segue a esse um manuscrito intitulado Melodia

    Primria; Ambito Pentacordal: so comuns as melodias se utilizando de apenas um pentacorde (...) 49

    Individualismo Popular, minhas peas Melodia: nota de pesquisa, caixa 65, MMA-IEB.

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    Elementos meldicos

    Os elementos meldicos funcionam como os elementos de retrica, na medida em que constituem clulas de uma linguagem artstica. Porm, na pesquisa desenvolvida por

    Mrio de Andrade, eles so os traos que distinguem a origem de uma cano e apontam sua tradio potico-musical.. Essas unidades da melodia identificam e configuram os

    torneios nacionais:

    n. 25 da Paraba, notar que a linha se identifica com a da estrofe (no do refro) do Guriat de Coqueiro. Ora como os elementos do refro deste tambm identifiquei noutras peas, o Guriat assim como um mosaico artificial, jia de criao, bem brasileira. Esse o processo a adotar na composio erudita.50

    Abaixo, o coco n.25, intitulado Linda Rosa51 confrontado com a letra do Guriat de Coqueiro que tem a mesma melodia:

    [guriat de coqueiro] ba teu a sa e vo ou

    A imaginao estrutural de Mrio de Andrade acha traos em comum entre peas de diferentes origens isolando o elemento definidor do carter meldico. O autor no se prende identificao folclrica, uma vez que a pesquisa emprica rigorosa mas visa identificar precisamente o elemento meldico em estudo e observar sua reincidncia e suas variaes:

    50 Toada de Desafio Melodia: nota de pesquisa, caixa 65, MMA-IEB (autgrafo a lpis preto,

    1 folha branca picotada de bloco-de-bolso 6,8X10,5cm). 51

    Os Cocos. op.cit. p.77.

  • 47

    5 = Tangoro-mango Comparar a melodia brasileira Tangoro Mangoro que nem Julio-Gomes p.16 com a portuga em Fernando Toms Velhas Canes p. 161 e perguntar quem si a de Julio Gomes que conhecem Antnio Arroyo e de que fala mesmo livro, p. XLVIII. Procurar se no acharei outras verses em brasileiros ou portugas. Perguntar pras minhas alunas e amigos. O Csar das Neves creio que reproduz Tanglo Manglo.52

    O mtodo de pesquisa que o autor esboa aqui semelhante ao j publicado por ele no estudo intitulado O Romance do Veludo e imprime um resultado bem caracterstico

    nas fontes. A pesquisa emprica auxiliada pela consulta s pessoas que escutam manifestaes de poesia cantada e podem registr-las em partitura. No exemplo acima: as alunas de piano e os amigos. Como o autor buscava estruturas extremamente marcantes da

    melodia era interessante confrontar fontes da mais diversas origens, justamente para constatar se essas figuras estruturais se sobressaam nos diferentes registros de canes.

    Ao mesmo tempo, Mrio de Andrade observava com ateno os folcloristas portugueses, buscando traos em comum entre as poticas cantadas do Brasil e de Portugal. Porm, essas leituras no visavam somente enxergar origens em comum entre as duas culturas, os elementos meldicos so dados universais da msica, e podem se repetir em manifestaes das mais diversas origens como o blues, a msica do extremo oriente ou a msica das salas de concerto do sculo XIX. Outra evidncia da imaginao estrutural de Mrio de Andrade est no documento que segue, onde um mesmo procedimento a apoiadura - identificado na voz e no

    instrumento:

    As apoiaduras de violino de Vilemo e do gaiteiro dos Caboclinhos. Notar que as apoiaduras simples, dadas alis s vezes com uma graa admirvel, esto freqentando cantorias dos sambas cariocas de agora (1930-1931). Veja discos Victor de Otilia Amorim ou de Silvio

    52 Elementos Meldicos, Melodia, caixa 65, MMA-IEB.

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    Caldas (33424) e ver ainda Carmem Miranda no disco Victor 33371.53

    Essas correspondncias desgeograficadas entre o samba carioca e a msica tradicional do nordeste contribuem muito para as hipteses de pesquisa de Mrio de Andrade. Um de seus objetivos iniciais era o de encontrar o trao distintivo da msica brasileira: o que ela tem de diferente em relao s outras nacionalidades. Nesse exemplo, a apoiadura (appoggiatura), presente nos discos, talvez significasse influncia urbana. Porm, no o que mostra a anlise de Mrio de Andrade: a apoiadura de influncia nordestina, ou seja, um torneio caracterizante da msica nacional. Em Carmen Miranda notrio o uso recorrente de apoiaduras. Basta lembrar tambm sua gravao de Al... Al... em fevereiro de 1934, tambm composta por Andr Filho54. A ocorrncia de apoiaduras nos exemplos das colheitas , por sua vez, rara, se comparada ao total da pesquisa do autor j publicada at agora. Existe, ainda assim, uma ocorrncia importante num canto de Catimb de Tamandar, Cacimba Nova55. A literatura musical discute os usos e as leituras que podem ser feitos da appoggiatura. Mas o que existe de significativo nela que so unidades rtmicas no contabilizadas na diviso do compasso: a apoiadura freqenta o interior de um compasso, mas no ocupa um lugar nele. Vive uma simbiose com a nota vizinha e esto presas sempre por uma ligadura. Da vem seu interesse para o autor: a apoiadura constitui uma forma de transgresso do compasso com implicaes meldicas.

    Colheita de melodias

    At onde vai a justificativa de que certas peas so populares? No geral aceito as minhas na acepo de que so do povo, e no tradicionais no povo. incontestvel que uma linha

    53 Pancada, caixa 65 Melodia, autgrafo lpis preto, 1 folha branca picotada de bloco-de-bolso - 6,8 X

    10,5 cm estatuto gentico: nota prvia. 54

    Disco Victor 33.746b. As apoiaduras se do nas notas mais longas. Por exemplo, logo no incio quando canta al? al? responde o res- incorre numa apoiadura ( H ;). 55

    Msica de Feitiaria no Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1983, p. 96.

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    sonora no se tradicionaliza com a mesma fora de durabilidade que um texto. Quais as razes? Este inteligvel. Este afeta diretamente as necessidades determinadas do ser. Se um texto se refere ao amor outro ao trabalho, outro religio etc. e por isso so necessrios em si mesmos, uma melodia pode ser substituda por outra, tanto mais que as formas fisiopsquicas que ela organiza so vagas e gerais. Uma valsa pode ser substituda por outra, uma marcha por outra, um acalanto por outro. No geral as linhas sonoras se tradicionalizam por causa dos textos a que esto a pensar. Ora os textos entre ns se apresentam de duas maneiras pelo menos, muito pouco propcias pra tradicionalizao de melodias, so textos que variam muito, e em grandssima parte improvisados no momento e mortos imediatamente. E com eles morre a melodia que pra eles foi inventada. Em todo caso, h numerosos exemplos de melodias mais ou menos fixas, verdadeiros esquemas meldicos que servem pra qualquer improvisao de texto, como o caso das emboladas (e das danas dos fandangos paulistas). Mas ainda h casos de textos tipicamente de vida curta, como por exemplo os das modas do Centro e dos Romances Sertanejos. Textos muitas vezes criados sobre fait-divers colhidos dos jornais, crimes ou casos sucedidos num vilarejo, logo elas perdem a fora de comoo ou interesse que tambm morrem. E com eles morrem as melodias que serviam de processo de comunicao. Alm dessa maneira dos textos se apresentarem entre ns favorecendo a precariedade vital das melodias, outro h de igualmente pernicioso: o processo dos textos soltos, quadras, sextilhas, oitavas, dcimas, que, principalmente das quadras herdamos da pennsula ibrica. Esses textos, essas quadras, passam duma melodia pra outra indiferentemente desque as melodias respeitem os esquemas rtmicos dos textos. De forma que eles indiferentemente aplicveis a uma infinidade de melodias no favorecem a permanncia de nenhuma delas. No esto apensos a elas e por isso tradicionalizados eles, elas no se tradicionalizam, morrem ao correr das necessidades fisiolgicas ou de outras manias mais caprichosas duma poca, s vezes dum ano, duma temporada. Da no s uma dificuldade enorme de colher melodias tradicionais (mesmo sem contar o elemento individualista que entre ns deforma to formidavelmente as linhas a ponto de muitas vezes torn-las quase irreconhecveis) como o pequeno nmero delas. H poucos textos tradicionais completos (no quadras soltas) como a Nau Catarineta por exemplo. E como eles h poucas melodias verdadeiramente tradicionais. E pra culminar essa precariedade a multifria contribuio das raas, a falta de uniformidade nos tipos tnicos (se que os h verdadeiramente), a excessiva internacionalidade da nossa vida, a facilidade com que o gramofone e outros processos de msica mecnica leva a msica, o jazz, a pera italiana ao mais recndito Gois, favorecem ao mximo a instabilidade das tradies musicais. Entre ns no h propriamente o tradicional em msica, e peas que foram orais e

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    realmente populares (ruralmente populares) em nossa infncia, j so completamente ignoradas de nossos filhos. Quem colhera mais da boca do povo rural e tradicionalizado o Sapo Cururu, por exemplo? No entanto o que de mais tradicionalmente brasileiro h em 30 anos atrs? Assim o que se h de fazer entre ns menos preocupar-se com o tradicional do que com o que do povo, nascido do povo, mesmo que seja dum homem do povo, e dirigido pro povo. Se o documento meramente individual (como sucede comumente com os cantadores nordestinos de emboladas e desafios, ou entre ns com os cantadores de modas), se h que cuidar do estado de civilizao do msico. Quanto mais analfabeto, quanto mais rural o indivduo , tanto mais valioso o documento, e menos suspeito de contaminaes espordicas. No caso das danas h que valorizar como pureza a generalidade regional delas, como o caso da infinita maioria dos cocos que colhi, quase todos comuns a R. G. do Norte e Paraba, pelo que pude ajuizar. No caso das danas dramticas, reisados, congos, caboclinhos, a no ser em certas formas de revista Bumba Meu Boi pernambucano (e assim mesmo!) no geral a maioria das peas se conserva com uma relativa tradicionalidade, pelo menos local. Foi por estes critrios que regi minha colheita.56

    No Brasil rural, observado por Mrio de Andrade, as formas potico-meldicas e muitas das quadras-feitas so herdadas da pennsula ibrica. Tanto em Cames como na literatura portuguesa do sculo XVI notvel a presena das quadras e das frases-feitas de apelo popular. Essas quadras se perpetuaram nas canes e eram ainda evocadas nos improvisos escutados pelo autor.

    Outra pergunta que Mrio de Andrade faz no excerto acima se herdar a lngua herdar tambm a forma, apontando como seria difcil criar cantos totalmente diferentes dos

    portugueses usando a mesma rtmica na linguagem, por exemplo. O autor mostra, mais uma vez mas com novas razes, que a forma potica prevalece sobre qualquer dana ou harmonia.

    Mrio tambm deixa aqui uma questo etnolgica-sociolgica: alm das modas internacionais, das manias de temporada, a melodia tradicional enfrenta o individualismo dos cantadores-compositores. Por isso, a melhor categoria de anlise a estrutural, com uma metodologia que busque as tendncias e constncias e no os contedos particulares de

    56 Colheita de Melodias. MMA-MA, IEB/USP, caixa 65: Melodia nota de pesquisa, folhas de bloco-de-

    bolso presas por alfinete.

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    uma poesia cantada, esse mtodo superaria at mesmo a preocupao com