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Tese de Mestrado em Estudos Cinematográficos de Luís Campos Brás
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LUS CAMPOS BRS
A EXPERINCIA
EM RELAO
OBRA-DE-ARTE
Orientador: Prof. Doutor Jos Bragana de Miranda
Universidade Lusfona de Humanidades e TecnologiasEscola de Comunicao, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informao
Lisboa
2012
a experincia em relao obra-de-arte
Universidade Lusfona de Humanidade e Tecnologias 2
LUS CAMPOS BRS
A EXPERINCIA
EM RELAO
OBRA-DE-ARTE
Tese apresentada para obteno do grau de Mestre
em Estudos Cinematogrficos no curso de mestrado
em Estudos Cinematogrficos conferido pela
Universidade Lusfona de Humanidades e
Tecnologias
Orientador: Prof. Doutor Jos Bragana de Miranda
Universidade Lusfona de Humanidades e TecnologiasEscola de Comunicao, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informao
Lisboa
2012
a experincia em relao obra-de-arte
Universidade Lusfona de Humanidade e Tecnologias 3
Ever Try. Ever Fail. No Matter. Try Again. Fail Again.Fail Better.
Samuel Beckett
Cinema is true. A story is a lie.
Jean Epstein
Ningum se mata seno para existir.
Andr Malraux
a experincia em relao obra-de-arte
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Ao meu Pai,
que me ensinou a vida
a vinte e quatro imagens por segundo
a experincia em relao obra-de-arte
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Agradecimento
Este trabalho, tanto nesta parte escrita, como principalmente na parte prtica, no
apenas resultado de um empenho individual, mas sim de um conjunto de esforos que o
tornaram possvel e sem os quais teria sido impossvel realiz-lo.
Este trabalho e o filme subsequente representam um importante marco na minha vida
pessoal e profissional. Pelo reconhecimento do esforo de todos os envolvidos, quero aqui
deixar um profundo agradecimento s seguintes pessoas.
Ao meu orientador, Prof. Doutor Jos Bragana de Miranda, pela forma como me
orientou, pela sua inteligncia, entusiasmo e motivao. de igual modo, importante referir,
ainda, a disponibilidade manifestada, apesar do seu horrio demasiado preenchido, o seu
apoio e confiana.
Ao Prof. Doutor Manuel Jos Damsio, pelo seu entusiasmo sempre presente econtagiante. Por ter acreditado neste projeto.
A toda a equipe que comigo batalhou e realizou o filme que um dos suportes deste
trabalho, em condies totalmente independentes, com os percalos a que tal obrigou.
A todos os que apoiaram o filme, institucional e pessoalmente.
Beta, Xana, Paulo e Hugo, pelo apoio, pela amizade, pelas palavras de incentivo,
pela preocupao.
Ao Lus, pela amizade total.
A toda a minha famlia pelo apoio incondicional, acreditando sempre no meu
esforo e empenho. Em especial, minha Irm pela pacincia, afeto, carinho e apoio.
Ao Rui e Maria Joo, pela amizade, motivao, pacincia, compreenso, enorme
empenho e disponibilidade. Rita e Gui por estarem l.
E muito especialmente minha Me e ao meu Pai , que me incentivaram e
prepararam para a realizao deste trabalho e, mais importante, me prepararam para a vida.
Por ltimo, Sara. Pela total partilha do tempo e do espao, das alegrias e dos
cansaos, das euforias e das tenses. Pela pacincia e impacincia e por me fazer sempre
ultrapassar os obstculos. Este trabalho e filme so tambm dela.
Obrigado.
a experincia em relao obra-de-arte
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Resumo
Esta tese pretende fazer a ligao entre o momento da idealizao e da concluso de
uma obra de arte.
O que se tenta demonstrar que a experincia transformadora de tudo o que tem a
ver com a criao e, portanto, tudo o que a criao implica sofre transformaes sobre
transformaes at ganhar uma vida autnoma do autor.
No culminar do processo criativo passam a existir duas componentes da obra. A
prpria obra, na sua fisicalidade, e a experincia da sua realizao. Estes dois fatores da
criao so complementares, mas valem por si e so completamente independentes.
Apresenta-se como anexo da tese excertos da obra sobre a qual ela mais incide, o
filme Quadro Branco, cuja elaborao foi feita sempre a par deste documento.
Por esse facto, na introduo e fundamentao terica que se apresenta, os aspetos
tericos so observados em relao ao cinema, mas muito particularmente em relao a este
filme.
O que se conclui que a experincia de uma significao to importante quanto a
obra. E que a todas as questes que poderemos formular, o autor j no pode responder pela
sua criao, apenas por ele mesmo e pela sua experincia passada.
Palavra-chave
Experincia Processo criativo Obra Cinema - Mise en abyme
a experincia em relao obra-de-arte
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Abstract
This thesis aims to make the connection between the moment of idealization and
completion of a work of art.
What we are attempting to demonstrate is that the experience is transformative of all
that has to do with the creation, and therefore, all that implies creation suffers transformations
on transformations until it gains an independent life of the author.
At the culmination of the creative process there are two components of the work, the
work itself in its physicality and the experience of doing. These two factors of creation are
complementary, but they are worth by themselves and are completely independent.
It is presented as an appendix a work on which the thesis focuses more, the film
Quadro Branco, whose preparation was always done in aware of this document.
For this reason, the introduction and theoretical framework that presents the
theoretical aspects, are observed in relation to Cinema, but particularly in relation to this film.
What is concluded is that the experience is of a signification as important as the
work. And that to all the questions that we make, the author can no longer respond for that
work, only for himself and his past experience.
Key words
Experience - Creative Process - Work - Cinema - Mise en abyme
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NDICE
Introduo....................................................................................................................10
Captulo 1 Fundamentao terica...................................................171.1 Do ver ao sentir, do criar ao ver........................................................18
1.1.1 Do ver ao sentir.........................................................................181.1.2 Do criar ao ver...........................................................................22
1.2 Geografia emocional................................................................................24
1.3 A tecnologia como revelao................................................................28
1.4 Contingncia e simblico.......................................................................341.4.1 Correlacionismo e relao.......................................................381.4.2 Heterotopia cinemtica............................................................41
1.5 Linguagem e memria.............................................................................43
1.6 O carcter decisivo do olhar da cmara em Film......................48
Captulo 2 dossier de produo............................................................522.1 contacto.........................................................................................................53
2.2 story-line.......................................................................................................54
2.3 sobre o projeto...........................................................................................56
2.4 sinopse............................................................................................................57
2.5 direitos sobre a estria..........................................................................62
2.6 tratamento....................................................................................................632.6.1 Narrativa...................................................................................632.6.2 Personagens..............................................................................642.6.3 Imagem.....................................................................................652.6.4 Som............................................................................................65
2.7 sumrio..........................................................................................................66
2.8 equipa criativa...........................................................................................67
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2.9 dcor................................................................................................................68
2.10 ator.................................................................................................................69
2.11 progresso at data.............................................................................70
2.12 plano de produo.................................................................................72
2.13 pesquisa de mercado............................................................................74
2.14 resumo financeiro..................................................................................77
2.15 canais de distribuio..........................................................................78
2.16 projeo de receitas..............................................................................79
Captulo 3 argumento....................................................................................803.1 1parte............................................................................................................81
3.2 2parte..........................................................................................................109
Concluso...................................................................................................................128
Bibliografia...............................................................................................................132
Apndices..........................................................................................................................I1 Oramento........................................................................................................II2 Montagem financeira................................................................................IV
Anexos...............................................................................................................................V1 um dirio-s....................................................................................................VI
2 Dvd.......................................................................................................XXXVIII - excertos do filme Quadro branco......................................................Dvd
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Introduo
Este trabalho tem uma razo e um objetivo, definir a relao entre a experincia e aobra-de-arte.
Esta tese de mestrado deveria estar dividida em duas partes, uma sendo a parteescrita, a outra o filme a que a tese deu origem.
Esta segunda parte do trabalho no pode ser dissociada da primeira, visto ser a nicaconcluso tangvel a que se chegou e ir chegar. No entanto, embora o seu visionamento sejaessencial para a boa leitura deste trabalho, optou-se por no incluir diretamente no corpo datese a obra que referenciamos. Ela existe como anexo a este documento.
Nesse anexo digital esto excertos do filme que referimos, Quadro Branco, aindanuma fase no acabada. A iro ver algo, algumas ideias, mas no um filme que podersustentar tudo o que suscitamos aqui.
Cr-se que essa inconcluso no insustenta o trabalho, pelo contrrio. Ainexistncia de uma resposta prtica a todas as questes que neste documento se expem d-nos a liberdade de pens-las, e de pensar o filme, de uma forma livre. Assim, o que aqui estescrito tanto sobre as questes tericas que so levantadas, como tem a finalidade de asresponder em relao ao filme Quadro Branco.
O processo que descrito, quando se foca a experincia de fazer o filme, podetornar-se pessoal. Tenta-se manter a objetividade, no havendo demasiada preocupao comjustificaes tericas sobre a problematicidade do filme. Ao invs, levantam-se questestericas a partir da anlise da construo do filme. No raras vezes justifica-se aproblematicidade do filme atravs de anlises tericas posteriores sua feitura.
Sendo parte deste documento sobre o filme, preciso introduzir uma brevecronologia sobre o trabalho que foi feito.
Em 2009, quando se comeou este mestrado, comeou-se tambm a imaginar comoseria possvel conclu-lo com a realizao de uma longa-metragem. Para tal, para alm deconstrangimentos vrios, nomeadamente a nvel de produo, era essencial partir-se para aescrita. A preparao para a produo e a necessidade de um argumento, criaram uma
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definio, um conceito priori em relao ao filme. Este teria de ser desenvolvido num nicoespao e com um nico ator. Se o espao foi fcil de imaginar e obter, o personagem foi maisdifcil. Chegou-se ao personagem atravs de um processo de respigao e de escrita.
A escrita em si mesma uma interpretao da nossa memria. Ainda que apenaspelo uso da linguagem, o punho torna-se artifcio de um processo de respigao. Mais ainda,desde o incio da contemporaneidade, tudo o que se escreve tem j anos escrito num papelalgures. Tudo o que se imagina ser original foi-o apenas no momento desse pensamento, vistoter sido revolvido de alguma experincia vivida/imaginada, vista, lida, enfim de umaexperincia passada.
Tal como uma posio rigorosa no problema da experincia tem fatalmente deembater no problema da linguagem1, a experincia teve fatalmente de passar pela memriapara chegar a transformar-se nalgum tipo de linguagem.
Foi com esta certeza que se partiu para a escrita do argumento, em que se fixaram erepensaram memrias passadas, na tentativa de com elas fazer algo original. O que precedeutoda a obra e o que a orientou foi a base de duas experincias/trabalhos que foram feitos anosatrs. Escrever o argumento de Quadro Branco foi uma construo sem recorrer a outrasobras, mas sim experincia da sua realizao.
A primeira, um dirio escrito durante o processo de filmagem de um documentriono ano 2000. A segunda, um dirio escrito e filmado, de um minuto por dia, durante doismeses de vida em Macau.
Sendo assim, esta experincia, a gnese deste trabalho, comeou de facto h dezanos, quando se resolveu fazer o primeiro filme e com ele surgiu o primeiro dirio dessavivncia.
Nesse processo houve um isolamento do mundo numa pequena aldeia e a, durantedois meses, filmou-se. No se filmou o dia-a-dia das pessoas, antes o reflexo do realizadornelas e no seu quotidiano. Enquanto se filmou, foi-se escrevendo um pequeno dirio de umapgina por dia. Oito anos depois, enquanto vivia e trabalhava em Macau, repetiu-se aexperincia com um novo dirio escrito sob as mesmas regras e adicionou-se a essa criaoum dirio filmado.
Quando se comeou a escrever o argumento, os dilogos do personagem principal,personagem quase nico, Manuel, comearam por ser retirados do contexto destes dirios.
1 BRAGANA DE MIRANDA, Jos - Analtica da Actualidade, Lisboa: Vega, 1994. p. 38.
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Este ponto de partida gerou imediatamente um alerta. Qual o personagem que seestaria a criar? Uma reminiscncia do autor?
Teve ento de se pensar como este ponto de partida afetaria a narrativa e a tese quese queria defender com o filme.
Que paralelos se podem estabelecer entre esses movimentos de escrita e revivalismoe o movimento de Manuel neste filme? Esta uma pergunta qual no conseguimos darresposta, mas nosso crer que algumas ideias transparecem dos dirios que se fizeram e dosexcertos do filme que se mostram.
Por isso se incluem, em anexo, o dirio escrito um dirio-s e o Dvd com excertosdo filme Quadro Branco.
O documento em que consiste esta tese est dividido em trs captulos.O primeiro captulo a sua formulao terica. a tese que questiona e problematiza
as partes que lhe iro seguir.Comea-se por questionar a gnese e a forma de ver Cinema. Deriva-se para a
formulao do trabalho tendo por partida algumas definies da geografia emocional deGiuliana Bruno.
Aborda-se o tema da tecnologia como a nica barreira entre o real e a obra. Aforma como essa barreira pode conter em si, ainda que escondida, a resposta para o futuro dotrabalho.
Como consequncia de um processo pelo qual se passou para chegar ao filme,reflete-se sobre o mesmo, pondo em evidncia pontos de contacto entre o autor e opersonagem e como a cmara o veculo bidirecional desse olhar.
Reflete-se sobre Film, o filme de Beckett, e chega-se concluso que, embora hajaminmeras pontes de contacto, no h em Quadro Branco um dispositivo controlado, sendo abidirecionalidade do olhar da cmara muito menos interpelativa e muito mais emocional queem Film.
Tenta-se por fim dar um sentido ao ponto de vista expresso no s em relao aosfilmes que se abordam, muito especialmente em relao a Quadro Branco, mas sobretudo emrelao ao cinema.
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O segundo captulo o dossier de produo do filme. Encontramos aqui algumastentativas de resposta a questes que podero ser levantadas com a leitura total do trabalho.Neste dossier pode-se ter um vislumbre da gnese da obra e de todos os seus componentes,antes da produo.
Escolheu-se no apresentar o oramento neste segundo captulo, mas sim emapndice, tal como o previmos em Maro de 2011. Este facto tem a ver com a forma comoproduzimos o filme.
Essa forma de produo foi a de seguir o oramento sem olhar aos valores referidospor este, isto , ter todos os servios oramentados, mas com o constrangimento de no termoeda de troca por eles, no ter dinheiro para os pagar. Fez-se o filme com uma produosustentada numa espcie de ddiva no contexto da produo cinematogrfica2. Como tal, ooramento fez parte da experincia e foi algo til na medida em que a produo se podeseguir por ele, mas sem o usar como uma ferramenta.
Como se poder constatar neste segundo captulo, o trabalho de sistematizao doprocesso de produo foi parte importante da experincia e muito importante para aconcretizao do projeto e da obra.
Este dossier talvez a maior ligao, maior ainda que o prprio argumento, doprimeiro captulo da tese ao filme final. Nele esto representados todos os objectivos do filme,incluindo certos objetivos que no se propem atingir, mas sobre os quais foi obrigatriopensar. E nele esto categorizados tambm todos os constrangimentos que se tiveram deencarar.
O ltimo captulo, o argumento do filme, esteve sempre em permanente devir3.O filme foi obrigatoriamente diferente deste argumento, pois alterou-se antes da
produo e mais se alterou na edio. Este devir foi sinnimo de algo que est no conceito ena gnese deste projeto. Alguma forma de liberdade.
Essa liberdade foi encaminhadora e constrangedora a vrios nveis, mas transpareceno filme.
2 BRS, Rita - A ddiva no contexto de filme documental. Buala, Cultura Contempornea Africana, 2012.Disponvel em http://www.buala.org/pt/afroscreen/a-dadiva-no-contexto-de-filme-documental3 No h concluso, tudo est em devir epgrafe da concluso in BRAGANA DE MIRANDA, Jos -Analtica da Actualidade, Lisboa: Vega, 1994. p. 38.
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Este filme, no estando includo no corpo da tese, est sempre presente. No primeirocaptulo sempre referido de um ponto de vista apreciativo e terico. No segundo, o seutratamento muito mais analtico em relao forma que ao contedo. Em relao ao terceirocaptulo, poderemos constatar que o argumento apenas mais uma ferramenta de um processoque se quis livre, e como tal, tem um ncleo de proximidade ao filme. O que se fez, noentanto, distanciou-se muito de uma interpretao imagtica das palavras do argumento.
No primeiro captulo da tese vo-se tecer inmeras opinies sobre diversasparticularidades do filme, mas desde j se far referncia a dois aspetos.
Em primeiro lugar, em relao ao dcor e todos os adereos e objetos que soutilizados no filme.
O dcor foi um -priori. Mas o dcor inicial, como se poder constatar no dossier deproduo, foi uma casa em bom estado, em frente casa que de facto foi utilizada e que estdesabitada e em mau estado.
O primeiro grande desvio do filme foi ter prescindido do dcor inicial em favor defilmar s na casa mais velha, o que fez com que se passasse instantaneamente a ter umnovo/outro filme. A comear por todos os adereos e objetos que neste dcor tivemos deincluir e excluir.
Os adereos foram imaginados para refletir o personagem, para o fazerem entrar nanarrativa e para darem relevo ao discurso do filme. No fundo, o que no dito tem eco narelao do personagem com o dcor e com os adereos. H tambm a relao com a cmara,mas a esse tema far-se- referncia mais frente.
Quanto aos objetos, foram pensados pelo seu simbolismo, mas tambm como reflexode uma distopia da contemporaneidade.
Se h no filme uma ateno em relao ao simbolismo, ela est na imposio doespao e das analogias que rodeiam o personagem. No h, durante o filme, nenhumaparelho tecnolgico contemporneo. H aparelhos, nomeadamente o gramofone e o projetorde filmes de 8mm, e h eletricidade. Mas estes servem, para l da narrativa, como ostentaoda falta de tudo o resto que nos comum na sociedade contempornea4.
4 () o que torna os objectos expressivos a expressividade que os humanos projectam neles. Os objectosreflectem apenas o nosso ser. BALZS, Bela in BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: LanguageGames in Film Theory, New York: Routledge, 2006. p. 1.
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Um dos objetos cuja finalidade era criar uma simbiose entre a narrativa e a perceoque se possa ter dela, foi uma cmara de filmar em pelicula de oito milmetros.
Este objeto tinha uma importncia relevada na narrativa e na ideia por detrs dofilme, visto que este foi pensado para a utilizao de uma cmara analgica, o que estaria emsintonia com o proposto terico e formal do filme e do argumento.
Quando se interpelou a Universidade Lusfona para um apoio ao filme, foi sugeridaa utilizao da cmara digital RED One, oportunidade que, por opes de produo e tambmde imagem, se aproveitou.
Aqui reside um dos aspetos mais contraditrios em relao ao pensamento sobre aestrutura e dispositivo e o que se usou para filmar.
O significado do processo flmico e da sua relao com o filme nasceu do facto de,nas primeiras verses do argumento, Manuel fazer um filme dentro do filme, um mise enabyme. Manuel iria utilizar a cmara de oito milmetros para se filmar e esse movimento lev-lo-ia criao de uma narrativa para o que filmava. Desse filme, o que logo saberamos queo processo da filmagem seria paradoxal, visto Manuel filmar sempre com a mesma peliculana cmara. O processo seria impossvel.
Esta era uma forma de questionar o limite do real atravs do mago do processo defilmagem. Utilizando diversas analogias, o espectador poder-se-ia questionar sobre arealidade de Manuel como sntese do processo fotogrfico. Como pensamento final, poderiasugerir que ele se inundava de luz/memria e revelava partes do seu passado.
Sem ter essa cmara visvel, perdeu-se tambm a visibilidade do processo, mas eleexiste. Como analogia pode no ter um sentido to amplo em relao s manifestaespsicolgicas de Manuel, mas podem-se pegar nas rememoraes inconscientes de Manuelpara pensar o mesmo processo.
O ponto fulcral que desapareceu um dos fatores essenciais para a criao dodispositivo pretendido, isto , que o prprio filme fosse filmado por um sistema analgico e,portanto, passasse tambm ele por um processo qumico que positivasse o surgimento decertas questes.
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No entanto, o filme foi filmado numa RED. Esta cmara usa um dispositivo digitalque mima o dispositivo analgico que conhecemos. Em vez da abertura de uma janela onde osraios de luz vo embater numa emulso impregnada de cristais de prata, a luz incide num chipfotossensvel que forma uma imagem atravs da variao de luz, vinte e cinco imagens porsegundo.
Cr-se que a positivao imediata da luz incidente num chip, criando uma imageminstantnea, no tem o mesmo poder de interpelao que todo o processo fotogrfico queestaria associado a filmar em pelicula. No entanto, embora com a RED haja claramente umamudana na tcnica, o que se faz com essa mudana aproxim-la o mais estreitamente dasopes que tnhamos antes dela.
A forma de pensar esta mudana tcnica tambm. Filmando com a RED perdeu-seum argumento terico, ganhando-se inmeras vantagens a que mais tarde se dar enfase.
Como abordaremos frente, a verdadeira mudana no campo da distribuio ecomo as pessoas vm e percecionam as obras que so feitas. O que importa no como ou oporque se faz. O que importa como ou porque se v.
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Captulo 1
fundamentao terica
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1.1 Do ver ao sentir, do criar ao ver
1.1.1 Do ver ao sentir
No incio da histria do cinema, em Nantes, Andr Breton e Jacques Vach passaram
tardes a visitar salas de cinema, uma aps outra: entravam ao acaso em qualquer filme que
estivesse a passar e ficavam at acharem que tinham visto o suficiente. Depois saam em
busca do prximo filme aleatrio.5
Mais que aborrecimento, o que estava em causa neste movimento era o desejo-de-
cinema (Burgin, 2004; p.7). Breton e Vach queriam, antes de ser possvel por inmeros
outros meios, ter alguma responsabilidade de edio sobre o que viam. Mas essa edio era
livre e surpreendente, no restritiva.
A experincia de um filme foi outrora localizada no espao e no tempo6, fazer um
movimento de rutura com esta forma foi, no incio da histria do cinema, um passo
inconsciente da ideia do que se podia tornar o ver cinema.
A outrora conduta avant-gard de Bretn e Vach, na sua deriva ambulatria,
completou agora sua viagem da poesia at prosa.
Hoje j no h uma forma de ver cinema, essa forma de ver tornou-se dispersa, um
filme tem hoje mltiplas derivaes. Desde a visualizao de um poster possvel
manipulao do filme num programa de edio, podemos chegar a sentir familiaridade por
um filme que nunca vimos (Burgin, 2004; p.9).
Hoje em dia o cinema j no tem a sua identidade exclusiva nos filmes. O cinema
agora publicidade, jogos de computador, televiso e at revistas. J no tem o seu lugar, pois
est por todo o lado, ou pelo menos em toda a parte onde lidamos com esttica e
comunicao.7
Como afirma Burgin numa referncia j datada, a massificao do vdeo e a
distribuio de filmes em cassete e Dvd pe o substrato material da narrativa nas mos do
espectador.8
5 BURGIN, Victor - The remembered film, London: Reaktion, 2004. p.6.6 BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: Language Games in Film Theory, New York: Routledge, 2006.pg, 87 CASSETI, Francesco - Theories of cinema (1945-1995) in BURGIN, Victor - The remembered film, London:Reaktion, 2004. p.98 BURGIN, Victor - The remembered film, London: Reaktion, 2004. p.8.
a experincia em relao obra-de-arte
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Se olharmos estes comentrios sobre a realidade atual, o poder do espectador sobre a
matria flmica ganha redobrada potncia. Hoje, no s o filme est disponvel em Dvd, como
on-demand, para descarregar no Itunes, para ser usado em mltiplas plataformas, para, se se
quiser, pegar, retalhar, montar, desmontar, sequenciar, ver inteiro, por captulos, em
episdios, sem esquecer, claro, a montagem comercial e o Directors cut.
Algo que era apenas um complemento j distante do filme, tornou-se o prprio
filme e aps a era das trs dimenses h-de chegar o self-made movie, em que a ao
construda pelo espectador medida que vai vendo o filme, ao gnero dos livros de ao e
aventura da nossa infncia.
Aqui reside um problema que tem origem na comercialidade do cinema, a
infantilizao dos seus mecanismos para atrair um pblico vido por uma fcil distrao.
O problema desta nova forma de fazer que destri a raiz do que ou poderia ser o
cinema.
O que poderia ser o cinema?
A tese central de Atlas of emotion, de Giuliana Bruno, no que se refere ao cinema, ade que a ocultao do visual pela predominncia do contexto literrio negou a esteestabelecer-se como um espao das artes visuais9.
Tal como diz a frase de Jean Epstein que se usa em epgrafe, e que Rancire vai
buscar, o cinema, em grande medida, no faz justia estria. Rancire vai mais longe na suaformulao, O cinema , para a arte de contar estrias, o que a mentira para a verdade.(Rancire, 2001; p.1)
Mas em que medida o dispositivo artstico omnipresente no cinema saturado pela
ligao a uma narrativa?
Desde Epstein at hoje, fazer um filme sobre o corpo de outro filme exatamente
o que as trs principais figuras originadas pelo surgimento do cinema sempre
fizeram. Os realizadores, ao pegarem em argumentos que nada tm a ver com eles.
Os espectadores, para quem o cinema uma mistura de memrias. Os crticos e
cinfilos, que extraem um trabalho de pura forma plstica de uma fico comercial.
(Rancire, 2001; p.5)
9 BRUM, Rosemary Fritsch - Uma cartografia do sensvel, Rio Grande do Sul: Publicaes do Ncleo dePesquisa em Histria da UFRGS, 2010. p.1.
a experincia em relao obra-de-arte
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Podemos falar de Jean Epstein como tendo embutido uma dramaturgia na mquina
do cinema que chegou a ns porque tanto uma dramaturgia da arte em geral como do
cinema em particular, pois pertence mais ao momento esttico do cinema que sua
diferenciao tecnolgica,10 assim o cinema como ideia artstica antecede o cinema como
meio tcnico e arte diferenciada. (Rancire, 2001; p.6)
Se a arte de contar est em vias de se perder (Benjamin, 1992; p.54), podemos crer
que o cinema tem de procurar um novo caminho, um novo dispositivo.
No que concerne a Quadro Branco foi-se em busca de uma forma que, como se ps
em evidncia na introduo a este captulo, desse vrias interpretaes narrativas a um rol de
aes que vo sendo feitas por Manuel, pois a vida no sobre estrias, sobre aes
orientadas para um determinado fim, mas sobre aes abertas a todas as direes. (Rancire,2001; p.2)
Rancire vai, como Branigan, buscar as palavras de Epstein para fazer ver que a vida
no tem nada que ver com a progresso dramtica de uma estria, ao invs, um longo e
contnuo movimento feito de uma infinidade de micro-movimentos (Rancire, 2001; p.2).Assim, Rancire descobre no cinema uma arte capaz de fazer justia ao desenrolar da vida.
por isso que a arte da imagem em movimento pode destruir a velha hierarquia
aristotlica que privilegia o Mythos a coerncia do plot e desvaloriza o Opsis o efeito
sensvel do espetculo.11
Embora fale do texto de Epstein sobre o surgimento do cinema, que j levantava
questes pertinentes, Rancire engloba essas questes de uma forma extremamente moderna,
fora da fiel fortaleza do cinema experimental, a realidade do cinema renunciou bela
esperana de ser uma escrita em luz de confronto a fbulas e personagens de outras eras com
a presena ntima das coisas. (Rancire, 2001; p.3)Mas, como sublinha, a outrora jovem arte do cinema fez mais do que restaurar os
laos com a velha arte de contar estrias. Tornou-se na sua maior exponcia.
10 RANCIRE, Jacques - Film fables, Oxford: Berg, 2006. p.2.11 Ibid., p.2.
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Sem se contentar em usar o seu poder visual e todos os meios experimentais ao seu
alcance para ilustrar antigas estrias, reinstalou o plot e a tipologia de personagens, os cdigos
expressivos e antigas motivaes do Pathos, e criou at a estrita diviso entre gneros.
Uma das razes que Rancire d para este estreitamento na relao entre o cinema e
a narrativa clssica a apario do som, que deu um golpe na tentativa de criar uma
linguagem de imagens.12
aqui que a experincia de fazer Quadro Branco se tem de inserir. No se far a
apologia do cinema mudo, mas se pensarmos o uso do dilogo e das falas como substrato
nico de nfase e repetio do que j est incutido na imagem, chegamos a uma ideia que se
aproxima da de Rancire.
Uma das motivaes para fazer o filme foi sem dvida a plasticidade, mas essa
plasticidade era sistematicamente debilitada pelo uso do discurso, ainda que pouco narrativo.
Ao ter essa conscincia, promoveu-se a retirada da palavra no seu mbito justificativo.
Entregou-se a narrativa imagtica e criou-se um novo significado, mais livre. Agora no
mbito da perceo do espectador, enquanto aquele que v, que a narrativa se desenrola.
Outra das causas da simbiose do cinema e narrativa a do papel reservado ao autor,
de mero ilustrador de um argumento, linguagem escrita, executando-o em imagens, baseando
essa ilustrao no que se tornou a norma narrativa e na identificao dos espectadores com o
personagem.
Aqui se inserem outras questes com que se foi deparando ao longo do processo de
criao do filme Quadro Branco. Desde a tentativa de criar um espao sem referncias no
qual o corpo do ator fosse ganhando um personagem, tentativa de que, na perceo de cada
espectador, esse personagem pudesse ser diferente.
Ao invs de tentar criar um modelo narrativo pr-estabelecido com o qual a
identificao do espectador pudesse facilmente ocorrer, a necessidade de que essa relao no
ocorra de uma maneira pr-determinada fez com que se retirasse de Quadro Branco toda a
repetio e redundncia. Essa repetio ocorria principalmente na relao dos dilogos com a
ao e a imagem.
Partiu-se portanto de um ato consciente sobre a esttica, a narrativa e a plasticidade
pretendidas, para um ato inconsciente sobre a perceo do final atingido.
12 RANCIRE, Jacques - Film fables, Oxford: Berg, 2006. p.3.
a experincia em relao obra-de-arte
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Tudo o que seja o olhar de outrem sobre o objeto flmico finalizado poder conter a
chave desta dicotomia. Se a forma, ainda que narrativa, ou com certeza que narrativa, de ver o
filme, levar o espectador num sentido que tenha alguma forma de contacto com o que se tenta
evidenciar atravs destas linhas, ento o trabalho tem uma certa razo de ser.
O facto de se passar uma parte da construo da narrativa do filme para o espectador
no faz com que o filme no tenha um autor. Que autor este?
1.1.2 Do criar ao ver
A autoria da obra sempre foi motivo de teorizao, tanto na histria do pensamento
contemporneo, como na da crtica cinematogrfica. Foi-o tambm na execuo deste
trabalho. Se h um autor identificado, at nestas linhas, difcil definir a fronteira da sua
autoria.
Os crticos costumavam ter a importante tarefa da descoberta do autor. Para l da
obra, quando o Autor fosse descoberto, o texto era explicado.
Tambm um filme suposto ter um autor, ou a sua hipstase para l da imagem: a
cmara.13
Esta a verdade ainda que se possa dizer que a cmara apenas um instrumento que
objetifica o mundo. Para Barthes, essa objetividade um pretexto que esconde o Autor, a
morte do Autor tambm a morte da objetividade14.
O que substitui o autor? A impersonalidade, que tem uma forma de indefinitude.
Assim, ao invs de um autor, temos vrios autores, nem todos identificveis.
O que se perdeu com a morte do Autor foi a noo de um agente de identificao,
de uma origem, um original.
Neste trabalho e no filme Quadro Branco, o autor definvel, mas a obra passa
invariavelmente por um processo que a afasta de um conceito autoral, que a afasta da sua
autoria.
13 BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: Language Games in Film Theory, New York: Routledge,2006. p.3.14 Ibid., p.3.
a experincia em relao obra-de-arte
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J se definiu a gnese do projeto, o momento em que a ideia se materializou atravs
da linguagem. Depois, a linguagem transformou-se, passou da sua forma escrita para outra
forma plstica, mas a questo autoral manteve-se.
Tal como escreve Branigan, escrever ser o primeiro leitor. Filmar uma
experimentao do olhar. Filmar ser o primeiro espectador . (Branigan, 2006; p.5)
Esta observao remete para a linguagem e para o smbolo. Quando realizamos um
filme, por termos a perceo da linguagem que utilizamos, estamos tambm imediatamente no
lugar do julgador.
Assim, enquanto se fez este trabalho, a escrita foi um experimento na leitura, filmar
foi um experimento no ver.
Escrever e filmar foram semelhantes na medida em que cada um dependeu de um
conjunto comum de operaes mentais nos quais o conhecimento foi representado,
recuperado, manipulado e revisitado.
Na experincia da criao da obra, neste caso um filme, o autor filmou e viu o que
antes escreveu e leu, e que no momento de filmar relia mentalmente. A linguagem
transformou-se atravs da cmara, atravs da interpretao do ator, do olhar da equipe. O
autor tornou-se espectador, comeou a desaparecer enquanto Ente, ficando Agente.
claro que Branigan define a relao do autor com o que faz atravs da linguagem e
da leitura de Barthes sobre a morte do autor15. A leitura que se faz aqui implica no s os
conceitos definidos por Branigan, como a leitura de uma sobreposio da experincia em
relao ao pr-definido.
Assim podemos imaginar que a morte do autor significa que um autor j no
necessita de personificar um narrador, um personagem ou ningum, no precisa de aparecer
como objetividade descarnada, a fim de ser capaz de falar.16
Aps a sua morte, o autor torna-se apenas mais um espectador, ocupando o mesmo
patamar que qualquer espectador, incluindo aqueles que ainda no nasceram. Ser uma voz
impessoal permite agora ao autor trabalhar junto ao espectador. Conseguir julgar como ele?
Emocionar-se- com a sua obra ou com o percurso que fez?
15 BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: Language Games in Film Theory, New York: Routledge,2006. p. 5.16 Ibid., p. 7.
a experincia em relao obra-de-arte
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1.2 Geografia emocional
H em Atlas of emotion um caminho que leva o leitor a questionar a geografia das
emoes. O legado que um certo stio, espao ou objeto tm que nos faz sentir algo em
relao a ele e a referenci-lo em relao ao todo.
Manuel, personagem quase nica no filme Quadro Branco, faz um caminho/busca
por dentro de uma paisagem que ao mesmo tempo fsica e interior. Ele mapeia esse percurso
atravs de manifestaes interiores que se vo expressando cada vez mais no exterior.
Primeiro diretamente na natureza que o rodeia, depois na casa que habita, por fim na
paisagem emocional total.
Tal como a Carte du pays de
Tendre17 uma tentativa de dar uma
imagem a uma paisagem interior, uma
geografia do corao, seguindo o modo da
emoo (Bruno, 2002; p.2), o movimento,
ou mapeamento, de Manuel no filme leva-nos
numa direo. Essa direo torna-se esparsa,
torna-se inteligvel, mas se se seguir o modo
da emoo torna-se nossa, do espectador.
Manuel reflete a sua interioridade no exterior e a densidade do dcor na sua
interioridade, tal como Bruno escreve do desenho, Neste desenho, germina uma amorosa
jornada, o mundo externo convertido numa paisagem interior. Emoes materializadas como
um movimento topogrfico. (Bruno, 2002; p.2)
Poder-se-ia ter feito um filme apenas de introspeo. O personagem a refletir oexterior. Mas tal e qual os nossos, os espaos que Manuel vai habitar so duplamente fsicos eemocionais, e tm uma duplicidade reflexiva.
17 CHAUVEAU, Franois - Carte du pays de Tendre, gravao (1654)
a experincia em relao obra-de-arte
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Manuel ausenta-se da sociedade para aprender o que significa habitar e qual a
realidade do habitar na experincia de vida. claro que h um objetivo, mas poder-se-ia ter
reduzido esse objetivo ao habitar. tomada de conscincia, ou ao tornar consciente, do lugar
emotivo e geogrfico da existncia, sem que houvesse reciprocidade do espao para a
interioridade do sujeito.
Manuel torna-se visvel pelo seu processo de habitar. As memrias que se lhe vo
deparando tornam-se corpos, olham-no. O espao torna-se vivo e interage com ele.
Manuel est delimitado na sua geografia pelos limites do espao onde se isola, mas
no por isso que no viaja dentro do seu mundo.
Reconhece-se aqui a tendncia de elaborao de um novo imaginrio que relaciona a
viagem com a identidade das pessoas. Ainda que esse imaginrio j existisse no passado, em
cada momento, no interior da geografia emocional de Manuel, existe sempre uma geografia
com origem nos percursos que se descobrem alm dos lugares fsicos, uma viagem
sentimental. Uma transcendncia, quando se prope que se viaja para descobrir a prpria
geografia.18 Ou seja, a interioridade revelada durante o percurso.
H aqui uma evocao da definio Benjamiana de aura19.
Manuel, ao refugiar-se e ao confinar-se, deixa-se envolver por evocaes que no
podiam estar mais longe e a sua viagem torna-se cada vez mais longnqua na medida em que
ele se vai delimitando e aproximando, quase at ficar uno, do local.
Essa a perceo que se espera exista na receo ao filme, a conscincia de uma
memria e de uma experincia projetada na tela, a conscincia de que mais do que uma
narrativa, h uma vivncia emotiva do espao, o que se transforma em vida.
H no movimento de Manuel e em Quadro Branco algo que faz a relao com uma
experincia comum. H um fechamento explcito de Manuel, num determinado local, mas
esse fechamento em volta de um espao que nos comum. Que parte da nossa vida e parte
da histria do cinema.
18 BRUM, Rosemary Fritsch, Uma cartografia do sensvel, Publicaes do Ncleo de Pesquisa em Histria daUFRGS, 2010. p.4.19 Rastro e Aura. O rastro a apario de uma proximidade, por mais longnquo que esteja aquilo que a deixou.A aura a apario de algo longnquo, por mais prximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos dacoisa; na aura, ela se apodera de ns - BENJAMIN, Walter (1927-1940) - Passagens. Belo horizonte: UFMG,2006. p.16.
a experincia em relao obra-de-arte
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O cinema tem um modelo de viso, aquele das paisagens que passam frente dos
nossos olhos com muita velocidade e que ns observamos atravs de uma janela retangular
(Bruno, 2002; p.95). Esse retngulo acabou por se estabelecer como uma constante, carregado
de lugares e paisagens virtuais que criou dentro de ns, como na arquitetura, um mapa mental
e emotivo.20
Manuel movimenta-se no espao, que existe por ele e para ele. Ele desenvolve uma
observao geogrfica e, por extenso, essa observao torna-se sobre ele. Esta uma
possibilidade interrelacionada com a possibilidade do dispositivo cinematogrfico. 21
Iremos abordar mais para frente esse dispositivo, nomeadamente em relao a Film
de Beckett. H entre a cmara de Film e o movimento em Quadro Branco algo que os
aproxima. Em Film o personagem olha-se atravs de todos os olhares que o rodeiam,inclusive o olhar da cmara. Em Quadro Branco o personagem olha-se atravs do espaoemotivo que habita.
Os personagens que aparecem no final do filme so o retorno desse olhar,construes magmticas e tentaculares de Manuel, que o olham atravs de si mesmo.
No que concerne cartografia dos sentimentos e geografia emocional, h emQuadro Branco e no comportamento de Manuel pistas que nos levam a uma referncia, a umlugar que no unicamente o lugar que Manuel vai habitar. Um lugar povoado por ningum epor todo o mundo, onde todas as extenses da arquitetura observam a solido, a tornamoprimida e vigiada. Manuel cria todos os seus fantasmas e interage com eles, mas sem nunca,at ao final, interagir de facto.
esta descoberta o que de mais livre tem o filme, pois ela no forada ao
espectador. O que o espectador v , antes de mais, o que quiser ver. A geografia da emoo
percecionada por cada um de maneira diferente.
O que dado conscientemente ao espectador um corpo e um espao. A
multiplicidade de formas em que a interao entre esse corpo e esse espao pode acontecer
tem um determinado molde, inconsciente enquanto ato puramente idealizado, executado
durante as filmagens e trabalhado durante a montagem. 20 Em Atlas of emotion , Bruno estabelece vrias associaes entre a velocidade, a arquitetura e o ver. Estabeleceprimeiro as fronteiras que se impuseram ao olhar atravs dos tempos, particularmente desde a revoluoindustrial. Associa depois s suas concluses toda a problematicidade do ver em relao ao cinema, fazendo umaligao muito forte entre esta arte e a arquitetura.21 () do movimento no espao, desenvolvendo essa observao geogrfica e, por extenso, na articulao dasartes espaciais que incluem o cinema (imagens em movimento) - BRUNO, Giuliana - Atlas of emotion (2002).Journeys in art, architecture, and film. New York: Verso,2007. p.6.
a experincia em relao obra-de-arte
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O que se pretendeu no resultado final foi que o processo entre o espectador e a
narrativa tenha de passar obrigatoriamente pela dualidade personagem/dcor corpo/espao.
Tal como afirma Bruno, essa funo cultural da recordao tem sido absorvida pelo
cinema e, desse modo, o filme a cartografia moderna. (Bruno, 2002; p.8)
Uma das ideias mais fascinantes que vo ao encontro de Quadro Branco a da obra
de Guillermo Kuitca, obra em que o artista imprime sobre colches uma carta geogrfica.
Esse objeto evoca fortemente uma sensao ttil, devida ao contato com o corpo que acolhe.
No nosso imaginrio indissolutamente ligado sensualidade, ao sono, aos sonhos. (Bruno,
2002; p.169). H na obra de Kuitca uma associao entre os colches e a carta geogrfica para
exprimir o conceito de passagem e de passageiro. Bruno acrescenta que os colches absorvem
muitssimo de ns.
Percebemos aqui que possvel encontrar pontes e associaes das mais diversascom Quadro Branco.
A cena final do filme, quando Manuel se descobre sozinho no colcho onde passou anoite com a mulher imaginada, pintado, evoca muito claramente esta associao de Brunoentre a obra de Kuitca, uma geografia emocional e um colcho.
a experincia em relao obra-de-arte
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1.3 - A tecnologia como revelao
A ideia de ser contra a tcnica um absurdo.
O Cinema, tal como a pintura ou a literatura, no somente o nome de uma arte
cujos processos possam ser deduzidos da especificidade da sua materialidade e
instrumentao tcnica. (Rancire, 2001; p.4)
Por exemplo, a fotografia, quando pra num pedao de papel uma paisagem do
sculo XIX, absolutamente contingente, mas ao mesmo tempo, ao parar, cria um outro
mundo. paradoxal querer dizer que a tcnica destri, a tcnica acrescenta, prolonga,
prolonga-se. interiorizada ou no interiorizada.
No caso do cinema, um filme pode retratar um objeto imvel mesmo quando o filme
em si se move a vinte e quatro imagens por segundo. Em relao fotografia, esta pode
retratar um objeto em movimento mesmo que a cmara fotogrfica no se mova.
No o movimento por si que fascina a maioria das pessoas, mas o movimento com
objetivos. Movimento com causa e consequncia. O que os espectadores acham mais
interessante acerca dos personagens no o seu movimento, mas as suas aes. (Burgin,
2004; p.24)
Manuel cria em relao ao espao um confronto direto entre o seu corpo e a ao,
tudo ditado ao ritmo do movimento de Manuel, mas no o ritmo da ao. Essa estabelece-se
a um ritmo prprio, que difere cognitivamente de pessoa para pessoa.
As imagens aparecem no ecr por uma razo, e como tal, tm de ter um ponto de
vista.
Cada espectador tornar-se- dono do filme, e ento cada qual definir a ao. Como
vimos, o ponto de vista passa do autor, para o filme, para o espectador.
Rapidamente surgem questes acerca da natureza do espao em que a cmara
existe e sobre a natureza do ponto que produz um ponto de vista.
Estas questes do ponto de vista remontam teoria da narrativa e sua interseco
com a teoria cinematogrfica.
a experincia em relao obra-de-arte
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Quo literal tem de ser o apontar a cmara, para esta ter um ponto de vista?
O ponto de vista vai muito para alm da localizao da cmara e para onde esta
aponta.
A teoria tenta definir a cmara:
Branigan diz que, atravs de uma teoria cinematogrfica, uma pessoa capaz de falar
confiantemente, e at corajosamente, sobre a cmara como sendo a cmara.22
Facilmente se verifica que a cmara , normalmente, emaranhada num personagem,
espao, atmosfera, ao, reao, evento, embora no necessariamente todos num determinado
filme. Em Quadro Branco claramente bvio que a cmara se deixa emaranhar no
personagem e no espao, e que com isso constri uma atmosfera.
A funo da cmara varivel, e se claro que o instrumento que pode dar maior
nfase a tudo o que se quer mostrar, no deixa de ser um objeto tcnico23.
O que pode fazer a esse nvel tcnico extremamente variado e reporta em si uma
aura que pode elevar a cmara a uma entidade artstica. Mas quem a opera e o responsvel
pela mise-en-scne, esses so os que lhe conferem essa aura.
A cmara tem ento a funo de dar volume e densidade ao set atravs do efeitoda profundidade cintica, que a percetualidade sobre o espao que emana exclusivamente domovimento de cmara. (Branigan, 2006; p.9)
Deparamos em Quadro Branco com uma questo importante. Por variadssimas
razes de produo, optamos por fazer uma opo esttica que se imiscu em vrios aspetos
do filme. Essa opo foi a de no ter movimentos de cmara fora do eixo do trip.
Sem movimentos de travelling ou de grua, criou-se um processo de filmagem
muito mais rpido, mas tambm visveis constrangimentos na construo de cada cena.
Alm das razes de produo, o respeito pelo enquadramento e pela velocidade de
movimento da cmara foram fatores decisivos nesta opo.
22 Ultimately, we will be led to weigh various theories of film, each of which seeks to identify a unique place fora camera to occupy in the medium of film with the result that by virtue of a particular film theory andnarrative theory a person will be able to talk confidently, and even boldly, about a camera as being thecamera. BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: Language Games in Film Theory, New York:Routledge, 2006. p.8.23 Havia l, no cho, uma cmara, era uma coisa que toda a gente venerava, mas era uma cmara. Uma cmara uma cmara. um objeto. () Fico completamente louco de raiva ao ver que uma cmara pode excitar algum.ROSSELINI, Roberto in BZIN, Andr [et al.] - A poltica dos autores, Lisboa: Assrio&Alvim, 1976. p.108.
a experincia em relao obra-de-arte
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Quis-se que houvesse a possibilidade de a cmara criar um sentido de contnua
presena do presente24, uma omnipresena do tempo durante os planos. Deixou-se o tempo da
ao narrativa desenvolver-se sem interrupes, assim sendo,o espectador ser capaz de
testemunhar a total interao causal entre pessoas e objetos.
No filme, disso que se trata. A causalidade do encontro de Manuel com tudo o que
o rodeia feita atravs de tempo. Ao princpio espao e natureza, depois clausura e objetos, e
depois interioridade e fantasmas. Este tempo no , porventura, usado com a mestria
necessria para que a cmara, o movimento, a atuao, o som e a msica, deixem sobressair
tudo o que poderia sobressair. Mas h espao para dar ao espectador a liberdade de olhar o
plano e procurar as razes, ver os encontros.
J abordmos aqui a forma de ver filmes. Sempre foi fascinante a maneira como as
pessoas se deixam imiscuir numa realidade que no facilmente compreensvel. A forma de
deixarem de ver a cmara e de essa invisibilidade ser um guia para a perceo da realidade
captada e transformada pelo processo cinematogrfico.
No caso do autor, cedo se aprendeu a visualizar a cmara, primeiro imaginando o que
estava para trs da tela, depois estudando a realidade do fazer cinema25, e portanto cedo se
compreendeu o que est para l do plano e como se deixa de o ver. inevitavelmente pelo
lado da narrativa. O que nos prende passa a ter um maior efeito que a tcnica e ela apaga-se.
Apaga-se, mas existe.
Ver a cmara uma das formas de se discutir os significados de um filme.
(Branigan, 2006; p.19)
Tentamos, por exemplo, imaginar a nica cmara usada para fazer cada um dos
planos? Ou imaginamos uma cmara e um procedimento generalizados para fazer todos os
planos? Ou, talvez, imaginemos uma cmara feita de uma srie de leis da fsica e princpios
mecnicos. Podemos pensar noutras formas abstratas de olhar e mover a cmara, tanto em
relao ao realizador, narrador, personagem, como em relao ao nosso desejo, e aqui a
cmara torna-se uma espcie de olho ou olho-interior.
24BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: Language Games in Film Theory, New York: Routledge,2006. p.9.25WEYERGANS, Franz (1970) - Tu e o Cinema, Porto: Civilizao, 1976. p. 14-44.
a experincia em relao obra-de-arte
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Branigan atira-nos com perguntas:26
Alguma vez a cmara nos mente? Esconde tanto quanto revela?
Finalmente, porque se move a cmara? ou no move? J tentamos responder acima,
mas h que pens-lo tambm em funo do espectador.
A cmara sabe o que se passa, o que tem de ser mostrado e o que tem de estar
escondido. Este o seu saber, a sua tcnica. Contudo, esse saber muitas vezes tem de ser
aliado de uma perceo imediata do que se pode passar. Assim, ainda que limitada, a cmara
tem tambm uma vida prpria. Essa vida est entre o erro humano, a natureza, e tudo o que
est escondido. Nesse limbo, muitas vezes a cmara surpreende-nos com um movimento
inesperado, para se ajeitar a uma ao do ator, com a descoberta de uma luz desconhecida,
apenas seguindo ou desviando-se do que a ao.
A cmara dramtica sabe precisamente o que mostrar. A extenso do que interessa.
Na histria do cinema, muitos so os exemplos de uma utilizao da cmara que a
faz surgir como um corpo diferente do utilizado noutros filmes.
Temos a cmara-cmplice, a cmara introspetiva, a cmara contemplativa, a cmara
exploradora at , nos dias de hoje a mais usual, cmara irrequieta.
At que ponto de um fluxo de pensamentos conscientes sobre um filme possvel
caracterizar a cmara como pertencente a uma espcie de cmaras?
26 BRANIGAN, Edward - Projecting a Camera: Language Games in Film Theory, New York: Routledge,2006. p.10.
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Em Quadro Branco a cmara guia-nos durante o filme, mas a nossa interao com
ela pode-nos levar mais alm ou ficar aqum do que seria pretendido.
Portanto, na forma como a cmara se prende ao olhar do espectador e de cada um
dos espectadores que se encontra a cmara.
A vida da cmara comea no que fica para l do estruturado durante as filmagens e
acaba nesta relao com o espectador.
A cmara deve ser analisada no como um centro identificvel do filme, mas como
um efeito disperso e impessoal de ver um filme. (Branigan, 2006; p.18)A cmara nasce quando discutimos e analisamos o filme e as nossas reaes para
com o filme. A, a cmara surgir em diversos locais, no somente no local fsico que
ocupou. (Branigan, 2006; p.19)
As questes sobre o que a cmara dentro do filme levam-nos a questionar outras
fisicalidades do mesmo.
O que a imagem? Emulso? Uma projeo etrea?
Para alm do que fsico, o processo kino-dinmico que faz com que vejamos
movimento em imagens paradas leva-nos ainda a mais questes sobre a imagem e a qualidade
fotogrfica inerente ao cinema.
O que est visvel na tela? E na nossa mente? Na memria? De quem?
Como a mente v e perceciona o enquadramento, as linhas que delimitam o espao
como sendo a realidade, o que est para l dessas linhas apaga-se. O que vemos nesse espao
da ao flmica leva-nos a ver de uma determinada maneira, criando uma realidade para o que
est para l do enquadramento. O que se v para l do que mostrado torna-se uma
evidncia e cega o espectador. Toda a realidade inerente produo de um filme desaparece
para dar lugar capacidade imaginativa de cada um. O que o frame faz potenciar essa
capacidade criativa atravs do que esconde e do que revela.
O significado de frame tudo menos evidente e, como toda a teoria
cinematogrfica, apanhado num enredo de questes filosficas e jogos de linguagem.
O frame ou o enquadramento, surge em Quadro Branco naturalmente como o
primeiro corte. O que fica de fora logo que se estabelece o quadro uma artificialidade para o
real de um filme. A edio comea quando se aponta a cmara.
a experincia em relao obra-de-arte
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Esta edio tem duas vertentes. Uma efetivamente um corte, a criao de um plano
ao invs de outro, a prolongao ou diminuio do espao do filme. Outra um aspeto
tcnico.
Para criar uma realidade cinematogrfica atravs do olhar da cmara, temos de nos
sujeitar ao que vai estar depois impresso na pelcula ou positivado na imagem digital. Toda
a magia que a imagem contiver derivada da tcnica, e faz o primeiro corte com a
realidade.
A tcnica d ento a ver a realidade transmutada pelo olhar da cmara. D a ver
aspetos que ficariam ocultos, cria prolongamentos da fisicalidade que parecem impossveis.
Em Reflecting Pool, de Bill Viola, isto posto em prtica de um ponto de vista
formal, mas concretamente exposto em filme.
Temos uma piscina que reflete o mundo exterior, um bosque. Um homem aproxima-
se e mergulha, no chegando a entrar na gua, congelando acima dela. Vrios reflexos e
movimentos acontecem na gua enquanto o homem paira sobre ela, eventualmente acabando
por se evaporar no ar e renascer dentro da piscina, saindo e voltando ao bosque.
Sabemos que impossvel que um homem paire sobre uma piscina, congelado no ar,
mas um filme um filme, e Viola mostra-nos que a nossa compreenso no seno percetual.
O filme desenrola-se em inmeros planos dentro do filme, assim como a vida se desenrola em
inmeros planos dentro das contingncias de cada vida. Sendo assim, vemos como os vrios
planos do plano fixo de Reflecting Pool interagem entre si e refletem vida. Para analisarmos o
filme estamos sempre beira de uma narrativizao.
Queremos que a narrativa se desenrole, que tenha um final, o espantoso de um
movimento impossvel no nos satisfaz.
Esta pretenso do espectador e a anlise de Reflecting Pool quanto s suas
impossibilidades remete-nos para uma anlise da experincia. Da vida. Do cinema.
a experincia em relao obra-de-arte
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1.4 - Contingncia e simblico
Para entrar no simbolismo contido no filme, j vrias vezes referido, temos que
primeiro novamente salientar que h questes que sobressaem e iro sobressair de Quadro
Branco que nunca foram pensadas, mas que posteriori fazem sentido referir.
Em Quadro Branco existe o simblico, emanado de referncias plsticas e de objetos,
que moldam o carcter e a caracterizao de Manuel.
Os primeiros objetos que ele encontra na casa, para l da moblia, so o vinho, se
podemos consider-lo como objeto, a cmara, o projetor e os filmes.
Os filmes, a pelcula e a prpria cmara, objetivam o olhar de Manuel e criam o
outro. Posteriormente, esse outro vai ser recriado por Manuel. Primeiro nas pinturas que
faz pela casa, a natureza, a linguagem e o olho. Depois pela efetivao da existncia do
outro nas suas criaes/extenses vivas.
Manuel um pintor que vai habitar um espao morto para dessa experincia criar
algo. Mas Manuel no pinta.
Primeiro reconhece o espao, depois pra, depois executa algumas aes. Torna
habitvel o stio, limpa a casa, lava-se, planta umas sementes. Aqui perguntamo-nos, estar a
contar ficar meses aqui?
Posteriormente descobre a casa e os objetos que esta contm. V na pelicula de oito
milmetros algo que o perturba.
Nestes movimentos, embora seja ntido, o tempo no explcito. Passam assim trs
dias, mas poderia passar apenas um dia ou mais de uma semana. Logo no incio do filme o
espectador pode tomar as rdeas da narrativa e perceber o filme sua maneira.
Voltamos a pensar em Rancire e na sua definio dos micro-movimentos em
direes no pr-definidas que consiste a vida.27
27 A vida no tem nada que ver com a progresso dramtica de uma estria, ao invs, um longo e contnuomovimento feito de uma infinidade de micro-movimentos. RANCIRE, Jacques - Film fables, Oxford: Berg,2006. p.2.
a experincia em relao obra-de-arte
Universidade Lusfona de Humanidade e Tecnologias 35
Manuel cria uma tela branca que estende numa parede de modo a pintar nela um
quadro, uma memria. O que pinta o que est para l dessa tela. Primeiro uma moldura,
depois outra, depois a paisagem a entrar pelas paredes de casa, frases que lhe assaltam, olhos
que o vm.
Todas estas criaes so entrecortadas com aes de Manuel que tm incio na
visualizao dos filmes de oito milmetros. A ele v o passado. A nossa perceo que ele v
o seu passado, mas tal nunca um dado adquirido. A emotividade de Manuel vai nesse
sentido e o espectador deixa-se ir.
Atravs da confrontao com esse passado e pelo facto no conseguir fazer o quadro
que pretende, Manuel comea a desviar-se, criando aes que o distraiam, encarnado
personagens e pintando, como j foi referido, a casa.
Depois de uma elipse de dois meses, Manuel reaparece, mas j no est s. Os
fantasmas/criaes/extenses habitam com ele. Na forma de uma jovem mulher, Sara, a sua
mulher morta, e na forma de uma mulher que supomos ser a sua me, que se ter suicidado
naquela casa.
Estas extenses nunca existem em simultneo, estando apenas vez na
cabea/presena de Manuel.
O seu significado marcadamente hedonista. Manuel, no consegue pintar e na sua
tentativa de vida, cria aquilo que o poder manter ali. Essa fixao, pretendida no incio pela
fuga ao social, pelo trabalho, agora mantida pela memria e pelo prazer. Manuel j no vive
a sua vida, vive um estado. Esse prazer, refletido na presena das figuras femininas
impossibilitado pela impossibilidade do toque.
Mesmo em relao sexualidade, ela uma semi-ausncia at ao final do filme,
existe na forma puramente emotiva e no explicita da solido. O espao, o meu espao...
primeiro o meu corpo... o espao a mutvel interseco entre o meu corpo, de um lado, e de
outro, outro corpo. (Lefebvre, 1991; p. 183)
Esta ligao com o desejo de contacto faz-se em Quadro Branco, como tudo alis,
atravs de Manuel. Ele afunda-se no sentir-se s para descobrir um certo passado. Para
descobrir o que o levou ali, o que habita naquele lugar. S chega ao outro, ao outro corpo,
pelo meio da distncia impossvel de percorrer, por um mapeamento da emoo, da
interioridade.
a experincia em relao obra-de-arte
Universidade Lusfona de Humanidade e Tecnologias 36
Esta segunda parte do filme de uma durao pequena, o que um pouco paradoxal
em relao a toda a ao que tem compreendida. Mais uma vez a dicotomia emoo/tempo ou
espectador/tempo tem um papel fulcral na forma de percecionar o que nesta parte est
contido.
A experincia de Manuel leva-o a preferir a vivncia concretizao da obra de arte.
As figuraes que habitam com Manuel vo tornando explcito que ele tem de sair
dali, indo contra ele, desaparecendo, impossibilitando a comunicao direta, comunicando
atravs da criao percetual da realidade. Isto vai-se tornando evidente, e explcito na cena
do acidente de carro que se mostra em anexo.
atravs desta comunicao que Manuel se vai libertando deste passado. Depois
de ver o acidente que teve com a mulher, Manuel pinta de branco a sala, volta do quadro.
Um novo incio. A partir daqui tudo se desenrola para que, atravs da pintura, atravs do
pincel, nasa o toque.
Talvez de um modo demasiado explicito, isto o que est presente na ltima cena do
filme, quando, atravs do contacto com a sua extenso/mulher morta, Manuel se liberta do
fardo da criao e, atravs da memria, do toque e do desejo, cria. Vive. Volta a viver.
Se tivermos alguma pretenso de dar um cunho experincia de Manuel28, ser dado
aqui, onde o passado se desvanece e o que fica um quadro simbolizador de que a
experincia pode ser mais rica do que o que a efetivao obra de arte.
Para l do simblico, existe a contingncia. A contingncia que se teve a fazer o
filme, a contingncia do personagem naquele lugar. A contingncia de se ter feito este filme
neste tempo e com esta linguagem.
A contingncia que se refere em primeiro lugar dupla ou, como outros valores
deste filme, bidirecional.
Tal como Manuel, pelas contingncias que teve na vida, e que ns como
espectadores supomos e desenvolvemos, tambm o cineasta foi enquadrado pelas
contingncias. Essas estiveram presentes desde a criao do personagem produo do filme.
28 O conceito de experincia um dos menos elucidados de que dispomos.- GADAMER, Hans-Georg inBRAGANA DE MIRANDA, Jos - Analtica da Actualidade, Lisboa: Vega, 1994. p. 33.
a experincia em relao obra-de-arte
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Para falarmos de contingncia, temos de falar de experincia, de uma experincia
como define Bataille.29
Numa linha de Um dirio-s, que se encontra em anexo, escreve-se que para ser
livre preciso matar e ir para a priso.
Parte-se desta linha, contextualizada pela garantia de liberdade que se tinha quando
se estava afastado e totalmente livre da sociedade, preso numa aldeia de doze habitantes, para
tratar a bidirecionalidade e o problema paradoxal de Manuel. Para pintar ele precisa de ir
refugiar-se naquela casa. Mas se ali ficar definhar. No pintando liberta-se.
Para se libertar da priso percetual que o prprio cria, s a criao de uma outra
experincia, marcadamente distinta e forte, o poder fazer tomar uma posio. Essa posio
pode ser ficar ou sair daquele espao. Ambas as hipteses acarretam uma experincia
diferenciada30 e um resultado final estranho ideia inicial de Manuel.
Manuel cria nesta dicotomia a sua experincia, que vista pelo espectador enquanto
obra na pintura/lenol que estende sobre o quadro em branco, no final do filme.
29 Jappelle exprience un voyage au bout du possible de lhomme. Chacun peut ne pas faire ce voyage,mais, sil le fait, cela suppose nies les autorits, les valeurs existantes, qui limitent le possible. Du fait quelleest ngation dautres valeurs, dautres autorits, lexprience ayant lexistence positive devient elle-mmepositivement la valeur et lautorit- BATAILLE, Georges (1943) - L'Experience Interieure, Paris, Gallimard;1978. p 19.30 Na palavra experincia ecoam dois sentidos. A securizao do desconhecido e o arriscar-se nodesconhecido. BRAGANA DE MIRANDA, Jos - Analtica da Actualidade, Lisboa, Vega; 1994. p. 38.
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1.4.1 Correlaciosnismo e relao
Manuel tem tambm a contingncia de estar rodeado pelos objetos, simblicos ou
no, e pelo espao. Estes so os que so e no outros.
No possvel conceber uma realidade que se sustente sem diferenciao, sem
olhar, sem um ponto-de-vista. No h objetos, eventos, leis ou seres que no sejam sempre j
correlacionados com um ponto de vista, com um acesso subjetivo. (Meilassoux, 2008; p. 1)
Isto , a realidade necessita de ser constatada.
Podemos relacionar esta afirmao com o velho paradoxo da rvore a cair numa
floresta deserta: sem sujeito, no existe ao.
A compresso do ar ou ondas de propagao do ar so chamadas vibraes sonoras.
No entanto, o ruido simplesmente uma sensao, uma perceo das vibraes sonoras.
Por isso pode afirmar-se que quando uma rvore cai ela no produz ruido, mas sim
vibraes sonoras na atmosfera.
Citando Heidegger e uma questo central que exps numa carta a Elisabeth
Blochmann, vrias vezes me pergunto o que seria a natureza sem o homem. No tem ela de
se repercutir nele para atingir a sua mxima potncia? (Meilassoux, 2008; p. 1)
Cr-se ver nesta frase de Heidegger o predicado para uma certa existencialidade de
Manuel. Ainda que no conscientemente, ele interage com o meio em que est de duas formas
distintas. Por um lado, com a sua coprotagonista, a casa, cria uma relao funcional, usando-a,
cada vez mais intensamente, at ao enclausuramento quase total. Por outro lado com a
natureza, com a qual estabelece uma relao disfuncional.
Inicialmente Manuel tenta retirar da natureza algo palpvel. As trocas entre Manuel e
a natureza que so proveitosas so as que advm da criao de algo atravs dela. Seja o
princpio de uma horta, ou quando Manuel se d conta que, de facto, ela pode conter criao,
a utilizao de uma rvore para se balouar ou o aprisionamento de um momento de luz na
pintura de uma sombra.
A contemplao ou a constatao da forma pura do que o rodeia no existem na
vida de Manuel naquele lugar. Esta talvez uma das chaves para descortinar o personagem ou
para apenas sentir o filme.
Manuel isola-se do mundo para criar. Isola-se posteriormente em si mesmo quando
no o consegue fazer e quando consegue libertar-se do passado, dos fantasmas, da
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sala/quarto, da casa, consegue pintar a tela. O que tinha j deixado de ser a questo
fundamental do filme, sendo apenas um fio condutor para algo no tangvel, resolve-se. Esta
resoluo no feita atravs de uma soluo deus ex machina, pois todas as progresses so
interiores, em Manuel se processam e nele se refletem.
A tela fica, do mesmo modo como a casa fica, abandonada. Mas fica exposta, e nesta
exposio est todo o arco do personagem. Mesmo que o essencial no seja esse arco, o que
ele passou, todo o confronto com um tempo e um espao sensoriais, f-lo criar.
Muito mais importante do que lev-lo novamente a pintar, a sua experincia deu-lhe
a liberdade.
A questo que se quer levantar, e pela qual o final do filme este, a da anlise da
experincia do fazer em relao ao que feito, se quisermos, da experincia em relao
obra-de-arte.
H outro aspeto a considerar, para l da questo narrativa que se impe. O que est
para l dessa questo. O que ver o espectador ao olhar a obra.O espectador poder ter a perceo de uma narrativa explicativa, mas a reside uma
grande fragilidade, pois essa narrativa s existe como caminho individual. Como j foireferido, a liberdade est no lado do espectador.
Para chegar ao final que queremos sustentar, tem de haver uma progresso que o
permita e essa a finalidade do processo extremamente individual de Manuel. Isto , tudo
aquilo por que ele passa, embora remeta para vrias percees de qual ser a sua histria, no
tem como finalidade em si demonstrar uma ideia pr-definida. S no final essa
predeterminao existe e um objetivo
Meilassoux afirma que tanto a perceo como o sujeito so construdos naexperincia, no podendo servir de critrios para a fundar, em ambos os casos h umanegao de conhecimento absoluto. Conhecimento da coisa em si, independentemente donosso acesso subjetivo a ela. Podemos concluir ento que ser ser correlacionado.(Meilassoux, 2008; p. 1)
No caso de Quadro Branco, poderemos falar de correlacionismo31 na relao que
descrevemos com o espectador e tambm dentro do prprio filme. O mais aproximado tese
31 When you speak against correlation, you forget that you speak against correlation- and hence, from theviewpoint of your own mind, or culture, or epoch, etc. The circle means that there is a vicious circle in any naverealism, a performative contradiction through which you refute what you say or think by your very act of sayingit or thinking it. - MEILLASSOUX, Quentin (2008). Time without Becoming, Middlesex University, London. p. 1.
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de Meilassoux ser o que se passa na ltima parte do filme, quando Manuel, criando uma
realidade/perceo que o satisfaz no a questiona, ainda que esta se lhe apresente frgil.
A perceo torna-se para Manuel a realidade.
Porque dizer que algo existe antes de ns s por ns s na condio de ns
existirmos para sermos conscientes desse passado dizer que nada existiu antes
de ns. dizer o contrrio do que a ancestralidade significa: que a realidade em
si existiu independentemente da nossa perceo dela como nosso passado.
O nosso passado o nosso passado se foi efetivamente um presente sem ns, no
apenas um presente pensado agora como passado() (Meilassoux, 2008; p. 4)
sempre muito difcil sustentar uma opo filosfica, mesmo que ela esteja presente
na narrativa, atravs da imagem. difcil faz-lo transparecer.
No se tenta fazer tal processo no filme. Manuel interage com o passado, com a sua
interioridade, com os fantasmas com o que o rodeia, como se fosse um -priori da
existncia, no como um dogma.
Conclui-se que existe uma relao entre a perceo e a multiplicidade de significados
que dessa perceo se podero extrair.
Tem de se questionar a prpria obra para ter respostas, mas podem-se pensar
trabalhos anteriores e vrias questes para ver que em Quadro Branco h uma tentativa, j
aqui expressa, de questionar certos conceitos, filosficos ou sociais, e certos aspetos do
dispositivo cinematogrfico.
a experincia em relao obra-de-arte
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1.4.2 Heterotopia cinemtica
Como afirmmos, h inmeras ideias que so suscitadas aps a concluso do filme.
Podemos criar todo o tipo de questes, mas no podemos querer do cinema o que a sua
entidade e as regras em que est inscrito, ainda que para serem subvertidas, no nos podem
dar. Portanto existe tambm a contingncia do tempo. Deste tempo.
J Gerhard Richter definiu uma posio semelhante perante a estria da sua arte.32
Hoje, tudo j foi feito, j foi visto. Os novos temas que podemos tratar so os de
que acabmos de falar (), a vida moderna, as fbricas, a problematicidade
psicolgica, etc. ANTONIONI, Michelangelo (Bzin et al., 1976; p. 384)
Tudo est feito, escrito, posto em imagens algures na imensido do espao fsico e
digital que dispomos para o fazer. A nossa criao uma respigao, to bem identificada no
filme de Agns Vard33, que hoje se reflete na forma como estamos sempre a tentar captar o
foco de ateno recorrendo esteticamente ao passado.34
No entanto, todo o filme srio, ao mesmo tempo que questiona o Cinema ou faz uma
reflexo terica, conta uma estria. Ou conta uma coisa qualquer.
Na realidade uma coisa muito provisria, um filme. ()
Atualmente chego mesmo a perguntar-me se toda a obra humana ser provisria.
Por isso me pergunto se a ideia que fica de uma obra no mais importante do que
essa obra. O filme no nos traz mais magia, pelo contrrio. a realidade que o
belo sonho. RENOIR, Jean (Bzin et al., 1976; p.9-10)
Tal como o nosso processo o mais importante do filme, na experincia de Manuel
tambm a vivncia dele pela casa e pelo passado e pelos personagens o mais importante da
criao. Cr-se que a questo central se se deve aceitar o risco do fracasso ou, por outro
32 I do see myself as the heir to a vast, great, rich culture of painting which we have lost, but which placesobligations to us. RICHTER, Gerhard (1993) - The Daily Practice of Painting: Writings 1962-1993,Cambridge, The MIT Press, 1995. p. 148.33 VARDA, Agns (Realizadora). (2000). Les glaneurs et la glaneuse, [82 min]. Frana: Cin Tamaris.34 Vivemos num perodo nostlgico, e a fotografia promove intensamente a nostalgia. A fotografia uma arteelegaca, uma arte crepuscular." SONTAG, Susan - Ensaios Sobre a Forografia: Na caverna de Plato, 1973-77, Lisboa, Quetzal, 2012. p. 9.
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lado, se no haver uma certa beleza no fracasso.35
Passou-se pela criao e deu-se forma a este documento e a um filme.
Manuel passou pela experincia e expe no plano final o que viveu ali, expondo-o
para si. H um falhano na criao, mas esse falhano est em aberto na nossa perceo e
entendimento do filme. De certa maneira nem esta tese nem o filme se fecham, porque o
assunto faz parte da prpria possibilidade de falhar!
Sendo assim, descobrimos nesta heterotopia que o filme reside tambm neste
documento e que reside ainda na nossa experincia. Fredric Jameson descreveu a ps-
modernidade como a condio em que as tradicionais belas-artes so mediatizadas e se
tornam conscientes de si prprias dentro dos mdia. 36 O que se pode chamar heterotopia
cinemtica est constitudo entre os vrios espaos virtuais onde encontramos pedaos de
filmes desconexos. A internet, os mdia, e por a fora. Mas tambm num espao mais
delimitado, como o espao fsico de um sujeito expectante que Baudelaire identificou como
um caleidoscpio equipado com conscincia.37
A derivao do cinema enquanto filme numa sala para o que hoje, comeou h
muito, primeiro com experincias, depois com a osmose de gneros, posteriormente com a
multiplicidade de locais de exibio, depois a multiplicidade de veculos de distribuio.
H um movimento que se descreve aqui, entre o espectador, a obra, a cmara e o
autor, que tem uma linha condutora.
E h ainda a relao entre o autor e a personagem, a que voltamos.
35Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better. - BECKETT, Samuel36 JAMESON, Fredric - Postmodernism: or the cultural logic of late capitalism (1991) in SCHWARZER,Mitchell - Zoomscape: architecture in motion and media, New York: Princeton Architectural Press, 2004. p. 1437 BURGIN, Victor - The remembered film, London: Reaktion, 2004. p.10.
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1.5 Linguagem e memria
J definimos que esta relao entre o autor e o personagem morre quando o filme
nasce para dar lugar a outro tipo de relaes. Uma questo fica pendente, que a questo da
linguagem. Ser que quando o autor morre, morre a linguagem?
A diferena que um realizador pode encontrar entre uma personagem e ele prprio
ser de ordem psicolgica e social. Mas no lingustica. Ele est, por isso,
completamente impossibilitado de proceder mimsis naturalista de qualquer
linguagem, qualquer hipottico olhar de outrem sobre a realidade.
Por conseguinte, quando o realizador mergulhar na sua personagem, e contar uma
histria ou apresentar o mundo atravs dela, no poder valer-se desse formidvel
instrumento diferenciante que a lngua por natureza. A sua operao no pode ser
lingustica, mas estilstica. (Pasolini, 1972: p. 146)
Pasolini apresenta este modelo como a subjetividade indireta livre38. Modelo que
permite libertar as possibilidades expressivas sufocadas pela tradicional conveno narrativa,
numa espcie de regresso s origens, at encontrar nos meios tcnicos do cinema as suas
qualidades onricas, brbaras, irregulares, agressivas e visionrias. , em suma, a subjetiva
indireta livre que instaura uma tradio possvel de linguagem tcnica de poesia no
cinema. (Pasolini, 1972; p.146)
O elo entre cinema e linguagem manifesto na forma como usamos a linguagem
para falar sobre cinema. Quase nunca discutimos filmes apresentando as nossas teorias
baseadas em imagens.
O terreno comum para filmes e linguagem est no facto de que o que est a ser
apresentado conhecimento, manipulado e revisto. O espao onde o cinema e a linguagem se
encontram no um espao exterior onde sistemas semiticos se correlacionam, mas a mente
de um humano, onde interagem a um nvel conceptual.39
38 PASOLINI, Pier Paolo (1972) - Empirismo Herege, Lisboa: Assrio&Alvim, 1982, p. 137-153.39 SIMONS, Jan - Enunciation: From Code to Interpretation (1995) in BRANIGAN, Edward - Projecting aCamera: Language Games in Film Theory, New York: Routledge, 2006. p.21.
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Como se afirmou antes, isto que dizer que se rompeu a barreira direta entre
realizador e espectador, pois j no h espao para a narrativa.
No quer dizer que ela no exista, simplesmente o espectador descodificou-a. Neste
momento, a sua forma deve ser impercetvel e deixar no espectador a liberdade de guiar.
Como diz Rancire (2001; p.11), para contrariar a servido do cinema atual, ocinema tem primeiro de contrariar o seu domnio. () No h uma linha direta que corre da
natureza tcnica do cinema para a sua vocao artstica. A fbula cinematogrfica uma
fbula contrariada.
A literatura, para contrariar a sequncia de acontecimentos e o conflito de vontades,
deixa-se infiltrar pela grande passividade do visvel. Na adio da imagem literatura h uma
subtrao de sentido. O cinema, pela sua parte, pode apenas apropriar-se do que se torna
visvel, tentando no reverter o jogo ao esvaziar o visvel com a palavra.40
Burgin remete para a memria e para um rosto de uma mulher que viu num comboio
e que o fez lembrar um filme. Conta que no propriamente um filme, mas um trailer que teria
visto na noite anterior. A ansiedade do rosto da mulher do comboio lembrou-lhe o rosto
ansioso de uma mulher de meia-idade que olha o mergulho de uma jovem. 41
Para este autor, a memria de Burgin torna-se instantaneamente sobre Swimming
Pool de Franois Ozon. Estas sinapses instantneas, estas formas de colar os pensamentos
linguagem, memria, so a forma de racionalizao do que existe em Quadro Branco. H
uma imediata aceitao de que a memria e a forma que a memria toma so conceptuais. 42
A minha associao ao vislumbre da estrada vista do comboio seguida com a
mulher que por mim passou na carruagem, como se a memria fosse provocada
diretamente pela perceo, sem o atraso da imagem flmica. Embora estas imagens
tenham diferentes fontes, tenho se assumir que tero uma origem comum.
(Burgin, 2004; p.18)
40 RANCIRE, Jacques - Film fables, Oxford: Berg, 2006. p.1441 BURGIN, Victor - The remembered film, London: Reaktion, 2004. p.18.42 "He wrote me: I will have spent my life trying to understand the function of remembering, which is not theopposite of forgetting, but rather its lining. We do not remember, we rewrite memory much as history isrewritten. How can one remember thirst?", MARKER, Chris (realizador). (1983). Sans Soleil, [100 min].Frana: Argos Film.
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Porque sentimos a necessidade, somos seduzidos ou persuadidos, a atuar sob esta
memria ao invs de qualquer outra, quase sempre se mantem um mistrio. Mesmo que a
fantasia inconsciente tenha um papel na sua produo, a sequncia/imagem como tal no
sonho nem iluso. um facto um transitrio estado de perceo de um momento presente
envolto numa associao de afetos e significados passados. (Burgin, 2004; p.21)
Mais que no tempo, sobretudo atravs do espao que a memria se move. Ela fica
registada nos espaos das cidades, como construo e contedo. No campo da cultura visual,
a memria virtual construda atravs dos ecrs, a comear pelos do cinema, e reproduz-se
nos ecrs dos televisores, dos computadores, dos telemveis.43
Cresci com a noo de que ele (um velho homem, sentado numa cadeira de braos
na sua pobre casa), imvel em relao a tudo, vive ainda mais profundamente, mais
humanamente e mais universalmente, que o apaixonado que estrangula a sua
amante, o capito que vence uma batalha ou o marido que vinga a sua honra.44
No querendo fazer a analogia com Quadro Branco, onde muito se passa para l de
um homem s a habitar um espao, cabe ao espectador decifrar o enigma que se constri.
Acreditando nas palavras de Deleuze e Epstein deixem o q