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Testando o livro
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Capítulo 2
Eu olhava todas aquelas pessoas sorridentes e bem arrumadas e me sentia cada vez
mais entediada. Tinha sido contratada por uma empresa de segurança para falar um
pouco sobre, bem, segurança. Sendo bem honesta, se tinha coisa que me tirava do
sério era dar palestras. Eu não tinha nascido para aquilo e só aceitava porque Ricardo,
meu chefe, dizia que era bom para mim e que eu precisava de uma rede de contatos
que fosse além de Ian e Agatha. Troquei a taça de vidro – aquilo não era cristal nem
aqui e nem em qualquer outro lugar do mundo! – de lado, segurando-a com a mão
direita e respirei fundo. Não sei por que usavam taças, afinal. Ainda mais quando o
conteúdo era água, como no meu caso. Ajeitei meu vestido preto. Quem foi que
inventou o tomara-que-caia, hein? E quem foi o infeliz que disse que era mais chique
do que alças? Revirei os olhos. Eu parecia uma velha resmungando. Mas o fato era que
tudo ali estava acontecendo demais: o tempo demorava demais a passar, as pessoas
sorriam demais, em tudo tinha frescura demais. “Só tem cadeiras de menos”, pensei
ficando irritada e sentindo meus pés latejarem. O salto alto deve ter sido inventado
pelo mesmo cara do tomara-que-caia. Ô gente mal amada.
Um rapaz elegante passou por mim e me cumprimentou. Seus cabelos loiros caíam de
forma bagunçada por sua testa, quase cobrindo seus olhos azuis. Tentei me lembrar de
onde eu o conhecia. Talvez tenha sido algum bandido que eu tinha conseguido
prender. Mas se fosse, ou ele ainda estaria na cadeia, ou estaria tentando me matar. Eu
ainda não achava muito eficiente o sistema de reinserção social do governo e duvidava
que um dos bandidos fosse vir me agradecer por tê-los colocado na linha novamente.
Vai ver ele realmente estivesse tentando me matar. Aquele sorriso foi suspeito. Olhei
rapidamente para os lados. Ele havia sumido. Olhei para cima. Nunca se sabe quando
um ataque virá dos céus.
- Gente, a comida disso aqui é horrorosa – disse Agatha surgindo do meu lado e me
fazendo pular de susto. – O que foi? Viu algum passarinho?
- De onde você surgiu? – perguntei tentando controlar minha respiração.
- Do banheiro, oras. Eu te avisei que estava indo fazer xixi. Provavelmente você não
estava prestando atenção, como sempre.
Encolhi os ombros. Eu prestava atenção em tudo, menos em minha melhor amiga
falando incansavelmente do meu companheiro de trabalho e braço direito. Agatha e eu
nos conhecíamos desde crianças. Ela estava lá quando tudo aconteceu e minha vida
mudou. Ela também estava lá quando entrei para a faculdade de Direito, quando me
formei, quando passei no Concurso Público e me tornei investigadora. Aliás, essa era a
forma mais ridícula de seleção que eu já tinha visto na vida. Até no Mc Donald’s tem
treinamento intensivo para quem quiser abrir uma lanchonete própria. Como
investigador, é uma prova. Um absurdo.
- Você devia voltar à realidade – Agatha me tirou de meu transe mais uma vez. – Tem
um loiro divino te olhando. Ele nem pisca.
Segui seu olhar e o encontrei. O cara que estava tentando me matar. Ele levantou sua
taça como se fizesse um brinde. Não retribuí.
- Ana Maria!
- Não estou com cabeça para descobrir sobre ele em cinco segundos, Agatha –
respondi automaticamente. – Na verdade, tudo o que eu mais quero é dar o fora daqui.
- Descobrir o que sobre ele? – ela perguntou confusa – E em pouco tempo assim, só o
Justin Bieber, amiga. Trinta segundos, lembra?
Agatha era jornalista e trabalhava numa revista de fofocas. Vivia ligada em tudo o que
acontecia no mundo dos famosos e sempre fazia piadas com as notícias que lia, o que,
considerando que eu não lia esse tipo de matéria, eu nunca entendia sobre o que ela
estava falando. Nisso ela era parecida com o Ian. Achava graça onde não tinha.
- Você sabe se ele é um assassino que eu mandei para a cadeia? Sabe se ele está
tentando me levar para a cama, me violentar e me matar enforcada com o lençol?
Bebi um gole de minha água enquanto minha amiga me olhava assustada.
- Você precisa de férias. Está começando a delirar. Desse jeito vai acabar morrendo
sozinha. Até eu vou acabar casando antes de você!
- Mas isso é óbvio – respondi. – Você é louca para botar um vestido branco e subir ao
altar. Eu não. Estou muito bem, obrigada.
Ela revirou os olhos.
- Até eu estaria se tivesse um amigo colorido como o seu.
Minha resposta seria muito mal educada e já estava na ponta da língua, mas fui
interrompida por meu celular. Peguei-o dentro da pequena bolsa que carregava e vi o
envelope piscando no visor. Mensagem de Ian.
“Tem uma pessoa aqui que eu sei que você adoraria ver. Estamos precisando do seu
super cérebro e sua falta de paciência para lidar com ela. Venha logo”.
- Temos que ir – falei colocando o celular de volta na bolsa e minha taça na bandeja do
primeiro garçom que vi. – Estão me esperando.
- Como assim? Você prometeu que ficaríamos até liberarem a mesa de doces, Ana!
Poxa vida, eu te acompanho sempre e nunca como um bombom sequer!
Encarei-a como uma mãe que tenta passar um recado telepático para uma criança
mimada. Ela emburrou e não deu sinal de que sairia do lugar. Suspirei e fui até a mesa
de doces. Conversei rapidamente com a garçonete, que me cedeu duas trufas de forma
gentil. Voltei pisando firme e entreguei-as a uma Agatha feliz.
- Nunca mais te trago comigo – jurei e saí em direção ao meu Mini Cooper, que estava
parado no estacionamento da casa de eventos.
- Desculpe a demora – falei enquanto entrava apressada na delegacia. Ian me ajudou a
tirar o casaco. As noites estavam sendo bem frias na cidade de São Paulo. – O que
houve?
- Bom, dois dias se passaram desde o último assassinato. O ator veio atrás de respostas
– ele respondeu e eu parei bruscamente na porta da minha sala. Olhei-o espantada.
- Ele veio aqui?
Ouvi vozes alteradas vindo da sala de Ricardo e olhei para Ian. Ele suspirou e jogou
meu casaco em cima de minha mesa, me conduzindo para a porta ao lado.
- Isso é um absurdo – o advogado de Bernardo praticamente gritava. – Vocês não estão
levando essas investigações a sério. É impossível que não tenham nenhuma
informação.
Se tinha algo que eu não suportava era duvidarem da minha capacidade. Menos ainda
colocarem na mesma situação a dedicação dos meus colegas de trabalho.
- Se o senhor acha que é tão simples assim, então procure sozinho pelas respostas –
falei atraindo todas as atenções para mim. Ele me olhou desconfiado.
- Você é quem mesmo?
- Ana Maria Paviani, investigadora responsável pelo caso do seu cliente. Mas me darei
muito por satisfeita em encerrar essas investigações se o senhor continuar ofendendo
as pessoas que trabalham aqui.
- Ana, não se preocupe – disse Ricardo. – Está tudo sob controle.
Encarei meu chefe. Rick era uma das pessoas mais doces e focadas que eu já havia
conhecido. Me pedir para não partir para cima do primeiro desgraçado que falasse mal
dele era como pedir a um bebê para não chorar.
- Não tem nada sob controle – o advogado continuou. – Se tivesse, meu cliente não
estaria aqui, sentado numa delegacia, esperando respostas sobre suas namoradas
assassinadas.
Ah é, o indivíduo estava ali. Eu não gostava dele e nem de sua cara arrogante, de seu
nariz empinado e da forma como ele tratava as pessoas. Tudo bem que era o ator mais
famoso da nossa geração, a paixão platônica de praticamente todas as adolescentes
brasileiras, mas isso não lhe dava o direito de agir como se fosse superior. Grande
merda suas duas indicações ao Oscar. Por outro lado eu sentia pena de Bernardo e
queria ajuda-lo a entender o motivo que levara as garotas à morte. Ele me encarou e
me olhou de cima a baixo com indiferença. Pronto. Toda minha pena havia sumido e a
vontade de manda-lo ao inferno tinha ressurgido em meu peito. Eu nunca tinha
conversado com o ator e nem queria. Pedi a Ricardo e Ian que fizessem o
interrogatório, já que, nas poucas vezes que cogitei em me aproximar, como agora, ele
me lançava aquele olhar de superioridade e eu não pensava em mais nada além de voar
em seu pescoço e socar seu nariz perfeito. Respirei fundo e saí da sala de meu chefe
antes que ele fosse obrigado a me prender por agressão.
Me joguei em minha cadeira e mordi o lábio inferior. Mais uma menina. Ou menos
uma tanto faz. O mais intrigante é que as três tinham se envolvido romanticamente
com Bernardo, apesar de eu jurar que ele não tinha um coração debaixo daquele peito
sarado. Eu devia começar mandando-o para a terapia. Talvez Ian tivesse razão e ele
fosse o assassino. Quando se cansava das garotas, dava um fim nelas, como na história
das Mil e Uma Noites. Apoiei o queixo em minha mão esquerda enquanto desenhava
algo indecifrável em meu bloco de anotações. Ian entrou em minha sala com duas
canecas de chocolate quente em suas mãos. Forcei um sorriso.
- Quando você fica com essa cara, é porque está pensando em alguma coisa absurda.
Arqueei as sobrancelhas.
- Blasfêmia! – respondi e ele riu. – Só estava cogitando a possibilidade de mandar o
Bernardo se consultar com o terapeuta da corporação. Vai ver ele que está matando as
meninas e eu estou aqui, quebrando a cabeça, com o assassino bem debaixo do meu
nariz.
O policial revirou os olhos.
- Bem capaz mesmo. O cara nunca abriu a boca para falar sobre o assunto.
- Como foi o interrogatório dele? – perguntei pegando meu caderno e olhando minhas
anotações. Datas, horários. Dados importantes sobre cada uma das meninas.
- Ele foi interrogado?
Engasguei com o chocolate quente e quase joguei a caneca na mesa. Senti o líquido
queimar minha língua e meus olhos lacrimejaram.
- Ninguém nunca interrogou o Bernardo Monteiro?
- O advogado dele nunca nos permitiu ficar...
- Mas que merda, Ian! – gritei ficando de pé. – Desde quando nós damos atenção a
advogado metido a besta? Eu jurava que você ou o Rick tinham interrogado o cara e
que ele não tivesse dito nada além do que já sabíamos!
- Não. As informações sempre foram passadas pelo advogado dele. Não conseguimos
ficar a sós com o ator.
Fechei meu caderno com força e peguei uma caneta. Saí pisando tão firme que podia
sentir meus saltos afundarem no chão frio da delegacia. Abri a porta da sala de
Ricardo com um estrondo e ele me olhou surpreso. Meus olhos se voltaram para o
rapaz de 23 anos, que permanecia sentado na mesma posição.
- Você – falei apontando para ele – me acompanhe. Precisamos conversar.
- Meu cliente não tem nada a dizer.
- Não te perguntei – respondi grosseira e olhei novamente para Ricardo. – É o
procedimento padrão. Ele tem que ser interrogado.
O advogado riu debochado.
- Ele não sairá daqui.
Trinquei os dentes.
- Sua função é advogar, não investigar. Ele vai vir comigo e vai ser interrogado, como
manda o protocolo. Bernardo pode ter informações que faltam para juntarmos as peças
do quebra cabeças e você está atrapalhando tudo!
- Digo e repito: meu cliente não sairá desta sala.
Eu não tinha nada contra esses profissionais. De verdade. Alguns eram bastante
solícitos e ajudavam muito. Mas topar com sujeitos como este era pedir para que eu
perdesse a compostura. Me aproximei e olhei para cima. Ele era bem mais alto do que
eu, assim como a maioria, já que eu não passava de 1.68m.
- Então me processe por isso.
Antes que ele pudesse pensar, me afastei. Peguei Bernardo pelo braço e o tirei da sala,
batendo a porta em seguida. Ouvi Ricardo gritar meu nome, mas o ignorei. Ele que me
desse uma advertência depois. Eu pouco me importava. Apesar dos protestos do ator,
joguei-o dentro da sala de interrogatórios e tranquei a porta.
- Você é maluca? – ele disse acariciando o braço.
- Não – respondi jogando o caderno sobre a mesa. – Malucos são eles por não terem
feito isso antes.
Puxei uma cadeira para Bernardo e me sentei diante dele, que continuava de pé, ainda
me olhando torto.
- Podemos ficar aqui a noite inteira se você quiser. Não me incomodo de esperar suas
pernas se cansarem até você se sentar.
- O que te faz pensar que eu vou responder a qualquer uma das suas perguntas?
Respirei mais fundo que meus pulmões me permitiam.
- O fato de você querer respostas tanto quanto eu. Ouça Bernardo, eu não gosto de
você. Não me agrada em nada ficar trancada aqui com um cara que se acha o máximo.
Mas é o meu trabalho e eu preciso que você colabore. Caso contrário, não tenho como
te ajudar. Entende?
Ele passou as mãos pelo rosto e sentou-se. Finalmente, tive vontade de dizer, mas a
situação em si já era complicada demais. Preferi me calar.
- Você não precisa gostar de mim – disse de forma seca. – Só me traga essas respostas
antes que eu enlouqueça.
Concordei com um aceno de cabeça e comecei meu interrogatório. Conversamos por
quase duas horas, sendo diversas vezes interrompidos por batidas na porta. Eu apenas
disse a ele que ignorasse. Fiquei aliviada ao perceber que Bernardo estava realmente
disposto a colaborar. Pediu-me a chave da porta e a abriu.
- Pois não? – perguntou a seu próprio advogado.
- Oh, finalmente ela deixou você sair. Vamos embora daqui.
- Eu estou no meio de um interrogatório. Só saio daqui quando responder a todas as
perguntas que ela tenha a fazer. E por favor, não nos interrompa mais.
O ator bateu a porta na cara de um homem em choque. Confesso que também me
espantei, mas o agradeci pela gentileza de pedir um pouco de sossego.
Não demorou muito mais e eu já estava satisfeita com as respostas de Bernardo
Monteiro. Revisei minhas anotações, confirmei alguns dados e o encarei.
- Eu sinto muito por tudo que tem acontecido – falei de forma sincera. Ele apenas
encolheu os ombros. – Se importa se eu te der dois conselhos?
- Diga.
- Tente não se envolver com nenhuma outra garota até terminarmos essas
investigações. Melhor pouparmos outra vida e não termos mais uma na lista do
cemitério.
Ele riu irônico.
- Não acho que eu esteja com cabeça para arranjar uma namorada a essa altura do
campeonato. E qual era o outro conselho?
- Troque de advogado – respondi de forma simples. – Esse não está muito disposto a
colaborar e não vai te ajudar em nada.
- Tem coisas que não sou eu quem decide. É o meu escritório.
Ah sim. Os assessores e tudo mais.
- Então troque de escritório e escolha um que tenha advogados melhores.
Passei por Bernardo e saí da sala. Queria sentar o mais depressa possível com toda a
papelada que eu tinha em minha sala e incluir as informações que eu tinha acabado de
colher.
- Eu vou processar a senhorita – ouvi a voz do advogado de Bernardo vindo de algum
lugar e me virei.
- Com base no quê? Que eu saiba seu cliente não tem intenção de me denunciar por
agressão. Fui até gentil com ele, apesar dos olhares indiferentes e do ar de
superioridade que ele joga na cara das pessoas.
- A senhorita está passando por cima do meu trabalho – ele começou a subir o tom e
aquilo me incomodou
Entreguei meu caderno a Ian, que tinha aparecido ao meu lado vindo sei lá de onde, e
coloquei as mãos na cintura.
- Digamos que o único trabalho que está sendo prejudicado aqui é o meu. E, por acaso,
o homem que devia ter mais interesse nas respostas é o que está dificultando as
perguntas.
- A senhorita é muito insolente.
Senti Ian congelar e quase pude ouvir o maxilar de Rick trincar. Bernardo estava atrás
do advogado, achando aquilo tudo extremamente entediante.
- E o senhor é muito abusado! Dê o fora da minha delegacia antes que eu perca a
paciência.
Eu esperava que ele fizesse o que eu tinha acabado de ordenar. Eu odiava essa coisa de
usar meu poder e tudo mais, então evitava o máximo qualquer medida drástica, dando
todas as chances possíveis para as pessoas, mesmo sem que elas mereçam. E ele
mereceu.
- Não consigo imaginar o que uma senhorita de meio metro de altura possa fazer –
disse ele antes de rir.
Me virei e o encarei.
- O senhor está preso – respondi tirando o caderno das mãos do policial. – Pode leva-
lo, Ian.
- O quê? Está maluca?
- Não. Está preso por desacato à autoridade. Caso não se recorde, eu, como
investigadora, tenho muito mais poder do que um advogadozinho qualquer.
O policial, com a ajuda de Ricardo, o levou para a cela da delegacia. Eu não pretendia
mantê-lo ali por muito tempo. Só até o dia seguinte. Bernardo respirou fundo.
- Está de carro? – perguntei ao notar que ele ainda estava ali.
- Precisava prender o cara?
- Não me responda com outra pergunta. Está de carro?
- Não – disse ele irritado. – Vou chamar um táxi.
Neguei com a cabeça. Ele era testemunha de um assassinato e queria andar no carro de
um estranho. Só tem gente louca nesse mundo!
- Vou te levar para casa.
E, ignorando seus resmungos em protesto, me virei para buscar meu casaco e a chave
do carro.
- Negativo, mocinha – ouvi meu chefe dizer e parei. – O Ian pode fazer isso. A
senhorita vai ficar e vamos conversar sobre os acontecimentos dessa noite.
Droga. Eu ainda tinha esperanças de conseguir mais algumas informações no trajeto da
delegacia até a casa do ator. Sem encarar Bernardo, passei por Ian e acompanhei Rick
até sua sala, me jogando na cadeira e ouvindo-o fechar a porta.
- Pensei que você não fosse mandar aquele cara para a cela – disse Ricardo sentando-
se à minha frente. – Sujeito chato!
- Ué, não é você o defensor dos pobres e oprimidos? Achei que fosse ficar bravo
comigo.
- Ele não é oprimido e muito menos pobre. Só achei desnecessária a forma como você
tirou o ator da minha sala – ele colocou seus óculos sobre a mesa e me encarou. – O
que conversamos sobre ser gentil com as testemunhas? Principalmente as que estão em
estado de choque?
Revirei os olhos.
- Não vamos entrar no assunto da falta de interrogação, não é? Porque se formos, eu
gostaria de dizer que...
- Não vamos, Ana Maria. Não vamos.
- Ótimo!
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Observei Ricardo enquanto ele estava
perdido em seus próprios pensamentos. Ele era a melhor definição de “um amor de
pessoa”, apesar de sua profissão exigir totalmente o contrário. Um homem doce, com
um coração enorme e uma inteligência invejável. No auge dos seus 40 anos, até que
estava em boa forma. Seu corpo já não era mais tão definido, mas seus cabelos pretos,
abundantes e cacheados faziam com que ele se parecesse um anjo moreno. Ele tinha
um sorriso amável, quase escondido debaixo de sua barba. Ricardo Gomes era casado
e tinha um filho adolescente, que morreu num acidente de carro. Sem conseguir se
recuperar do trauma, jogou-se de vez no trabalho, deixando de lado sua vida
matrimonial. A mulher o largou, mas ele já não se importava mais. Todo seu amor
paterno tinha sido direcionado a Ian e a mim, principalmente por ele ter sido amigo
dos meus pais antes deles serem assassinados. Peguei um chiclete que encontrei no
porta-canetas de meu chefe e o coloquei na boca. Só esperava que estivesse ali há
menos de um ano.
- Muito bem, o que você descobriu? – ele perguntou por fim e eu me ajeitei na cadeira.
- Ele não sabe muito mais do que a gente, Rick – respondi pesarosa. – Me disse apenas
que as meninas ficaram estranhas cerca de dois ou três dias antes de morrerem. Se
afastaram dele, evitavam atender as ligações.
- E ele não fez nada?
- Ele tentou. Na primeira ele não entendeu, na segunda ele ligou os pontos. Quando foi
alertar a terceira garota, chegou tarde demais. E foi assim que ele encontrou o corpo de
Elizabeth.
- Foi o que ele disse quando perguntei o que ele estava fazendo lá naquela hora.
Olhei pela janela. Era uma noite linda, de céu estrelado, apesar do frio. Eu só queria
que qualquer um daqueles pontinhos luminosos me desse uma ideia, mas nada de útil
passava na minha cabeça. Levantei e comecei a andar pela sala.
- Eu cheguei a pensar em mandar o Bernardo para conversar com o nosso psicólogo –
falei encostando meu rosto no vidro gelado e olhando o fraco movimento na rua. Meu
carro não estava lá, o que indicava que Ian já tinha saído com o ator. – Não só pela
situação que ele está passando, mas para ver se descobrimos alguma coisa a mais.
Nunca se sabe, vai que ele é o assassino.
- Se fosse, minha melhor investigadora já teria descoberto.
Encarei meu chefe e ele encolheu os ombros. Ricardo tinha razão. Eu conseguia pegar
uma mentira no ar como ninguém. E Bernardo me parecia bem honesto quando
respondeu minhas perguntas.
- Ele comentou que todas as meninas tinham perfis em redes sociais. Ele tem, mas não
controla. Fica por conta de seus assessores. Acha que podemos dar uma olhada nos
computadores?
- Poderia ser um começo – o policial se levantou e serviu-se de um copo d’água. –
Mas nossa equipe de informática já olhou as máquinas e não encontrou nada.
Cruzei os braços.
- Quando eu disse “nós”, me referia ao Ian e a mim. Você sabe muito bem que nossa
galera da tecnologia não é muito ligada em redes sociais. Eu poderia cuidar dessa parte
e tentar descobrir algo. Aliás, Rick, já passou da hora de mandar esse povo para um
curso de férias, hein? Temos uma equipe obsoleta e inútil quando o assunto é esse
monte de ferramentas que surgem a cada dia.
- Não temos verba – ele respondeu e encolheu os ombros. O pior é que era verdade. –
Você pode olhar o computador da Elizabeth se quiser, mas acho meio difícil
conseguirmos algo no da Isabella, por exemplo. O assassinato dela foi há dois anos.
Certamente os pais já se desfizeram da máquina, que deve ter sido formatada.
Soltei um muxoxo de reprovação.
- Mas quem precisa do computador da falecida? – ouvi a voz de Ian e me virei para a
porta. Ele tinha acabado de chegar e foi correndo até a sala de Ricardo. – O Facebook
não depende de uma máquina, depende da internet!
Sorri com aquela resposta óbvia.
- Mude para o Orkut – falei de forma animada. – Naquela época não existia Facebook.
E nem Twitter.
- Tempos difíceis!
Eu e Ian rimos com nossos comentários idiotas.
- Ele disse mais alguma coisa? – perguntei ligando o computador em minha sala. Já se
passavam das duas da manhã, mas eu estava elétrica. Ian faria plantão naquela noite,
então o que eu poderia ter de diversão tinha ido pelo ralo.
- Perguntou se você é sempre grosseira desse jeito.
Arqueei as sobrancelhas.
- Que sujeitinho abusado! E o que você respondeu?
Ian sorriu convencido.
- Que eu estava acostumado e que já tinha domado a Ana Maria o suficiente para que
ela demonstrasse um pouco de compaixão por mim.
Joguei minha borracha em sua direção, mas Ian desviou. Ele era ainda mais folgado
que o ator. E eu não era grosseira. Só levava as coisas mais a sério do que o
necessário. Ou não. Só quem sabe a dor da perda e da falta de respostas é que entende
como essas pessoas se sentem. Conectei meu pen drive na máquina e abri o arquivo
intitulado “Bernardo Monteiro – Assassinatos”. Era ridículo você chegar ao ponto de
ter uma página eletrônica para anotar dados não resolvidos, eu sei. O mais frustrante
era não ter muito mais o que incluir. Só que o comportamento das meninas havia
mudado.
- Eu não consigo imaginar o que acontece com essas garotas – comentei atraindo
novamente a atenção de Ian. – Quero dizer, o cara é esnobe, tinha duas namoradas
enterradas e a tal da Elizabeth ainda se envolveu com ele. Não estava na cara que ele é
uma furada ou algo assim?
- Talvez pelo gosto da fama? – perguntou o policial.
Encolhi os ombros. Podia ser. Mas uma fama que leva a morte não devia ser atraente.
Salvei o arquivo, retirei o pen drive e o guardei de volta na bolsa. Peguei meu caderno
de anotações e escrevi exatamente a mesma coisa.
- Não acredito que você continua com esses bloquinhos tortos, Ana!
- Quer que eu deixe tudo anotado no computador, para um bandido qualquer invadir,
descobrir as pistas e dar o fora?
Ian riu.
- Você já salvou no pen drive!
Revirei os olhos.
- Posso perder – respondi. – Além do mais, essas coisas tecnológicas sempre dão
problema. E se eu preciso de uma informação rápida e o computador não reconhece o
aparelho? Pelo menos tenho no meu caderno. Ele nunca me deixa na mão.
- Você é maluca!
- E você é xereta. Vai limpar o corredor, vai. Tá sujo.
Ian bufou e eu ri. Ele odiava quando eu bancava a superior e dava-lhe ordens banais,
como limpar algo ou me servir um copo d’água. Claro que eu nunca falava sério. Mas
às vezes ele passava na porta da minha sala com a vassoura em mãos, dizendo que
tinha varrido a frente da delegacia. Pura mentira. Eu podia ver a porta de entrada da
minha janela e Ian jamais varrera uma folha sequer.
Alguns minutos se passaram. A notícia da morte de Elizabeth já estava em todos os
sites. Fotos de Ian e Ricardo estampavam os principais portais de notícias, além de
declarações dos mesmos e do advogado de Bernardo. Para minha imensa sorte, eu não
participava dessa coisa toda de entrevistas. Rick me deixava de fora desse
procedimento por segurança. Uma vez que os bandidos sabem quem você é, seu
trabalho fica prejudicado. Claro que alguns sabiam quem eu era, mas nada que tivesse
me colocado em situações extremas. Coisa que provavelmente aconteceria se eu
ficasse famosa. Porque os piores bandidos não são aqueles que a gente prende todos os
dias.
As pessoas tendem a pensar que mandar um ou outro cara para a cadeia é a parte mais
perigosa. Não mesmo. Os que fazem todos os policiais tremerem na base são aqueles
bandidos que não podem ser vistos. Os “chefões”. E se eles descobrem quem trabalha
para derrubar seus impérios, mandam acabar com essas mesmas pessoas sem pensar
duas vezes. Eu investigava esses caras. E eles nunca nem ouviram falar meu nome.
Ricardo dava as entrevistas, dizendo apenas que “um investigador da corporação
descobriu”. A maioria devia achar que eu era um cara qualquer. Nem sequer
imaginavam que eu era, de fato, uma mulher.
- O que você pretende fazer, Ana? – perguntou Ian. Sua voz estava mansa e calma. Eu
gostava disso.
- Honestamente? Eu adoraria te responder isso. Mas não tenho a menor ideia.
- Vamos encontrar algo nos perfis virtuais das meninas.
Encarei meu grande amigo. Seus olhos azuis me encaravam com um misto de ternura e
confiança.
- Eu espero que sim, Ian. Porque sem isso, não sei mais o que fazer.
Ele se levantou e veio até mim. Senti suas mãos grandes e fortes tocarem meus ombros
numa massagem deliciosa, me fazendo relaxar. Ele sabia como me acalmar e o melhor
momento para fazer isso.
- Vai para casa – disse em voz baixa. – Descansa. Você provavelmente teve uma noite
estressante dando palestras e tudo mais. E teve que ficar nesse vestido por horas, sem
contar o salto alto.
Ri e balancei a cabeça. O policial me conhecia tão bem a ponto de me imaginar
reclamando das roupas e de tudo mais que eu pudesse. Levantei-me e o abracei.
- Você que devia ter ido comigo! – falei manhosa, sentindo seus lábios encostarem em
minha testa. – Pelo menos sei que sairia numa boa sem doces.
Soltei-o e comecei a juntar minhas coisas.
- Agatha?
Revirei os olhos.
- Tive que pedir duas trufas para a mulher do buffet – resmunguei e ele riu.
Despedi-me com uma piscadela e deixei a delegacia, encarando a noite fria de São
Paulo e já sonhando com meu travesseiro mais do que fofo.