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O ALIENISTA NDICE CAPTULO PRIMEIRO CAPTULO II CAPTULO III CAPTULO IV CAPTULO V CAPTULO VI CAPTULO VII

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Texto parcial m Assis Alienista O

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O ALIENISTA

�NDICE

CAP�TULO PRIMEIRO

CAP�TULO II

CAP�TULO III

CAP�TULO IV

CAP�TULO V

CAP�TULO VI

CAP�TULO VII

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CAP�TULO VIII

CAP�TULO IX

CAP�TULO X

CAP�TULO XI

CAP�TULO XII

CAP�TULO XIII

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CAP�TULO PRIMEIRO

DE COMO ITAGUA� GANHOU UMA CASA DE ORATES

As cr�nicas da vila de Itagua� dizem que em tempos remotos vivera

ali um certo m�dico, o Dr. Sim�o Bacamarte, filho da nobreza da

terra e o maior dos m�dicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas.

Estudara em Coimbra e P�dua. Aos trinta e quatro anos regressou

ao Brasil, n�o podendo el-rei alcan�ar dele que ficasse em Coimbra,

regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os neg�cios da

monarquia.

� A ci�ncia, disse ele a Sua Majestade, � o meu emprego �nico;

Itagua� � o meu universo.

Dito isso, meteu-se em Itagua�, e entregou-se de corpo e alma ao

estudo da ci�ncia, alternando as curas com as leituras, e

demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos

casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e

cinco anos, vi�va de um juiz-de-fora, e n�o bonita nem simp�tica.

Um dos tios dele, ca�ador de pacas perante o Eterno, e n�o menos

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franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Sim�o

Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condi��es

fisiol�gicas e anat�micas de primeira ordem, digeria com facilidade,

dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava

assim apta para dar-lhe filhos robustos, s�os e inteligentes. Se al�m

dessas prendas, � �nicas dignas da preocupa��o de um s�bio, D.

Evarista era mal composta de fei��es, longe de lastim�-lo,

agradecia-o a Deus, porquanto n�o corria o risco de preterir os

interesses da ci�ncia na contempla��o exclusiva, mi�da e vulgar da

consorte.

D. Evarista mentiu �s esperan�as do Dr. Bacamarte, n�o lhe deu

filhos robustos nem mofinos. A �ndole natural da ci�ncia � a

longanimidade; o nosso m�dico esperou tr�s anos, depois quatro,

depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da

mat�ria, releu todos os escritores �rabes e outros, que trouxera para

Itagua�, enviou consultas �s universidades italianas e alem�s, e

acabou por aconselhar � mulher um reg�men aliment�cio especial. A

ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de

Itagua�, n�o atendeu �s admoesta��es do esposo; e � sua

resist�ncia, � explic�vel, mas inqualific�vel, � devemos a total

extin��o da dinastia dos Bacamartes.

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Mas a ci�ncia tem o inef�vel dom de curar todas as m�goas; o

nosso m�dico mergulhou inteiramente no estudo e na pr�tica da

medicina. Foi ent�o que um dos recantos desta lhe chamou

especialmente a aten��o, � o recanto ps�quico, o exame da

patologia cerebral. N�o havia na col�nia, e ainda no reino, uma s�

autoridade em semelhante mat�ria, mal explorada, ou quase

inexplorada. Sim�o Bacamarte compreendeu que a ci�ncia lusitana,

e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de �louros

imarcesc�veis�, � express�o usada por ele mesmo, mas em um

arroubo de intimidade dom�stica; exteriormente era modesto,

segundo conv�m aos sabedores.

� A sa�de da alma, bradou ele, � a ocupa��o mais digna do m�dico.

� Do verdadeiro m�dico, emendou Crispim Soares, botic�rio da

vila, e um dos seus amigos e comensais.

A verean�a de Itagua�, entre outros pecados de que � arg�ida pelos

cronistas, tinha o de n�o fazer caso dos dementes. Assim � que

cada louco furioso era trancado em uma alcova, na pr�pria casa, e,

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n�o curado, mas descurado, at� que a morte o vinha defraudar do

benef�cio da vida; os mansos andavam � solta pela rua. Sim�o

Bacamarte entendeu desde logo reformar t�o ruim costume; pediu

licen�a � C�mara para agasalhar e tratar no edif�cio que ia construir

todos os loucos de Itagua� e das demais vilas e cidades, mediante

um estip�ndio, que a C�mara lhe daria quando a fam�lia do enfermo

o n�o pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a

vila, e encontrou grande resist�ncia, t�o certo � que dificilmente se

desarraigam h�bitos absurdos, ou ainda maus. A id�ia de meter os

loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma

um sintoma de dem�ncia, e n�o faltou quem o insinuasse � pr�pria

mulher do m�dico.

� Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vig�rio do lugar, veja

se seu marido d� um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar

sempre, sempre, n�o � bom, vira o ju�zo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe �que

estava com desejos�, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro

e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas

aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia,

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penetrou a inten��o da esposa e redarg�iu-lhe sorrindo que n�o

tivesse medo. Dali foi � C�mara, onde os vereadores debatiam a

proposta, e defendeu a com tanta eloq��ncia, que a maioria

resolveu autoriz�-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um

imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e

mantimento dos doidos pobres. A mat�ria do imposto n�o foi f�cil

ach�-la; tudo estava tributado em Itagua�. Depois de longos

estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos

cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um

coche mortu�rio pagaria dois tost�es � C�mara, repetindo-se tantas

vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do

falecimento e a da �ltima b�n��o na sepultura. O escriv�o perdeu-se

nos c�lculos aritm�ticos do rendimento poss�vel da nova taxa; e

um dos vereadores, que n�o acreditava na empresa do m�dico,

pediu que se relevasse o escriv�o de um trabalho in�til.

� Os c�lculos n�o s�o precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte

n�o arranja nada. Quem � que viu agora meter todos os doidos

dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o m�dico arranjou tudo. Uma vez

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empossado da licen�a come�ou logo a construir a casa. Era na Rua

Nova, a mais bela rua de Itagua� naquele tempo, tinha cinq�enta

janelas por lado, um p�tio no centro, e numerosos cub�culos para

os h�spedes. Como fosse grande arabista, achou no Cor�o que

Maom� declara vener�veis os doidos, pela considera��o de que Al�

lhes tira o ju�zo para que n�o pequem. A id�ia pareceu-lhe bonita e

profunda, e ele a fez gravar no frontisp�cio da casa; mas, como

tinha medo ao vig�rio, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento

a Benedito VIII, merecendo com essa fraude ali�s pia, que o Padre

Lopes lhe contasse, ao almo�o, a vida daquele pont�fice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alus�o � cor das

janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itagua�.

Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoa��es

pr�ximas, e at� remotas, e da pr�pria cidade do Rio de Janeiro,

correu gente para assistir �s cerim�nias, que duraram sete dias.

Muitos dementes j� estavam recolhidos; e os parentes tiveram

ocasi�o de ver o carinho paternal e a caridade crist� com que eles

iam ser tratados. D. Evarista, content�ssima com a gl�ria do marido,

vestira-se luxuosamente, cobriu-se de j�ias, flores e sedas. Ela foi

uma verdadeira rainha naqueles dias memor�veis; ningu�m deixou

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de ir visit�-la duas e tr�s vezes, apesar dos costumes caseiros e

recatados do s�culo, e n�o s� a cortejavam como a louvavam;

porquanto, � e este fato � um documento altamente honroso para a

sociedade do tempo, � porquanto viam nela a feliz esposa de um

alto esp�rito, de um var�o ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa

e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas p�blicas; Itagua� tinha

finalmente uma casa de Orates.