texto 2 - dança e linguagem

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  • 8/6/2019 texto 2 - dana e linguagem

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    15.03.04 18.03.04 005853

    Cole f ii o Pol i si casda lmilTlbu:ia:Dirigida par Peter Pdl Pelbart

    Copyr ight 2002:Jose Gil

    Copyr ight 2005 data edifiio:Editora I lum in u ra s L r da .

    TrruJupw:Migu e l S e rr as Pereira

    Capa:F eE r td di o A G i lr a tu ja A m a re fi l

    Revis i iD:A r ia d ne E s co b ar Branco .

    Revis i iD t icnita:MariaCeclIia Galle tti e Jose Fetes Sabino

    CIP-BRASIL CATALOGAc;:AONA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJC392mGil, J o s e , 1935-Movimento total

    I J o s e ! Gil. - 20 imp. - S a o Paulo224p. : il, : 23cm .Iluminuras, 2004

    AncxoISBN 85-7321-209-81.Danca, 2 . Bale (Danca), 3. Movimenro (Nota9io).

    I.Tituh04-0665. CDD 793.3CDU 793.3

    2009. ED ITO RA ILU MIN UR AS LT DA.

    Ru a Inacio Pereira da Rocha, 389 - 05432-011 - S5.0Paulo - SP - BrasilTel.lFax: 55 11 3031-6161

    [email protected]

    mailto:[email protected]://www.iluminuras.com.br/http://www.iluminuras.com.br/mailto:[email protected]
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    A danca e a linguagem

    o que e uma coreografia? E urn conjunto de rnovimentos que possui urnnexo proprio, quer dizer, uma logica de movirnento. Se nos referimosespecificamente a danca, devemo~ acrescentar: "um conjunto concebido ouimaginado de certos movimentos deliberados ...". Se se trata de uma coreografiaimprovisada, a exigencia do nexo mantern-se, ainda que se abandoneparcialmente a ideia da pre-concepcao e ocarater voluntario dos movimentos.Como em toda definicao no. campo da arte, a da coreografia poe imediatarnentemultiples problemas: parece, todavia, que em todos os casas que se apresentam(norneadamente na danca contemporanea), nao ha coreografia sem urn nexo.

    o que e, entao, urn nexo de movimentos dancados? Nao e ditado nempela sua finalidade nem pela sua expressividade, Tornemos ao pe da letra asseguintes palavras de Meree Cunningham: "Se urn bailarino danca - 0quenao e a mesma coisa que ter teorias sobre a danca ou sobre 0 desejo de dancarou sobre os ensaios que se fazem ,para dancar ou sabre as recordacoes deixadasno corpo pela danca de algum outre -,mas se urn bailarino danra ; tudo jaesta presente, 0 sentido presente, se e isso que queremos. E como esteapartamento onde vivo; olho em toda a minha volta, de manha, e pergunto-me, 0 que e que tudo isto significa? Significa: isto e onde eu vivo. Quandodanco, signifiea: isto e 0 que eu estou fazendo, Utita coisa que e [ustamente acoisa que aqui esta",'

    Seria vao descrever 0movimento dancado querendo apreender todo 0 seusentido. Como se 0 seu nexo pudesse ser traduzido inteiramente no plano dalinguagem e do pensamento expresso por palavras. Restam-nosduaspossibilidades: 0[0pretenderrnos dizer tudo desse nexo - nao porque eleencerre algum micleo de sentido inef.ivel, mas porque se dizde modo diferente

    1 ) C U N NI N GH AM, Merce. T h e i mpe rman en t a r t, inVAUGHAN, David e HAruus, Melissa (eds.). Mem: C un ni ng h am :fifiv wan. 00 cit.. D. 97.

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    da linguagem; ou fazer da constatacao cunninghamiana (0 sentido da danca e.o proprio. ato de dancar), 0 pon}o de partida de uma aproximacao da danca 0mais proximo possfvel dos res tos concretes do bailarino. Nao procurando extrair -lhes 0 sentido, mas desposando 0 mais estreitamente possfvel 0 movimento dogesto corporal.o que se passa no corpo quando esre se poe a dancari Como constroi 0bailarino-coreografo 0 nexo dos seus movimentos dancadosi

    N uma entrevista, Cunningham respondia a pergunta, "Qual e a origem(the origins) das formas e dos movimentos que descobre para os seus hailarinos?",explicando que nao os concebia de antemao, mas sempre experimentandoprati camente os movimentos. E, de fato, num docurnentario filmado dos anos70, vemo-Io no seu esnidio sentado numa cadeira, im6vel, parecendo concentrar-se, depois levantar-se de repeme, dar tres passos, deitar-se no chao, com osbraces e as pernas colocados de uma certa rnanei ra, e de subito imobi lizar-se ;voltar a levantar-se, regressar a cadeira; refazer a mesma sequencia de movimentos,desta vez colo cando os membros de urn modo dife rente. A sequencia repete-seate que Cunningham desenvolve urna nova sequencia a part ir da primei ra cuj osmovimentos estao f ixados , Como ele diz: ''A minha coreogra fia faz parte de urn.processo de t rabalho (a working process). Isto nem sempre se faz com acompanhia. Posso ser eu, sozinho. Se nao resultar por uma razao qualquer, ouse njio for , para mim, f is icameme possfvel faze-Io, ensaio outra coisa ( ., .) . Comove:, inreresso-rne pela experirnenracao com movimentos' '_1o que e exper imentar , "ensaiar"? E chegar a urn ponto de "coordenacoesflsicas" tais que "a energia" passa "naturalrnente"." Trata-se de fluxos demovimentos mais que de formas ou de figuras (como no ballet). Ensaiandouma sequencia de movirnentos e verificando que a energia passa, .0 bailarinoencont ra-se diante de, mult iples possibilidades de out ros movimentos. Ensaiade novo, e escolhe, e assim sucessivamente, criando um luxo de energia. Asformas compoem-se pouco a POllCO, e pesam sem duvida na escolha dassequencias; mas nao sao dererrninantes, pelo cont rsrio, dependem do destinoque 0 bai larino quer dar a energia, criando micleos intensivos ou atenuando 0seu impulso, acelerando a velocidade, modulando a forca do movirnento. Em

    2) CUNNINGHAM, M. "Choreography and me dance", in SORELL W. [ed.}, T h e d anc b a s ma " y f o c ~ , 1951, op.c ir ., p . 55 .

    3) Cf. CUNNINGHAM, M. "The i mp er ma ne nt a rt ", op. cit.

    A dan c; a e a J in gu ag em 69

    Cunningham, com certeza, a criacao de formas obedece a logica da energia:longe de consritufrem fins em si (construir "belas figuras"), as formas sao umaespecie de "embreagem" do fIuxo de movimento.

    Ndo devemos crer todavia que as coreografias de Cunningham sup5emtodas um continuum do rnovimento que resultaria de experimentacoes sucessivas:"Fiz dancas que uti lizarn diferentes continuidades de composicao, Por exemplo,atualmenre e raro fazer uma danca em que corneco no prindpio e continuo,sempre, ate 0 fim. E mais provavel que fa

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    68 Movimento total

    da linguagem; ou fazer da constatacdo cunninghamiana (0 sentido da danca eo proprio .pto de dancar), 0 ponte-de par tida de urna aproximacao da danca 0mais proximo possfvel dos res tos concretos do bailarino. Nao procurando extrair -lhes 0 sentido, mas desposando 0 mais estreitamente possfvel 0 movimento dogesto corporal.o que se passa no corpo quando este se poe a dancari Como constroi 0bailarino-coreografo 0nexo dos seus movimentos dancadosi

    Numa entrevista, Cunningham respondia a pergunta, "Qual e a origem( t he o r i gi n s ) d a s formas e dos movimentos que descobre para os seus bailarinosi",explicando que nao os concebia de antemao, mas sempre experimentandoprati camente os movimentos. E, de faro, num docurnentario filmado dos anos70, vemo-lo no seu estudio senrado nurna cadeira, imovel, parecendo concentrar-se, depois [evantar-se de repente, dar tr~s passos, deitar-se no chao, com osbraces e as pernas colocados de urna certa maneira , e de subi to Imobil iza r-sevoltar a levantar-se, regressar a cadeira; refazer a mesma sequ~ncia de movimentos.desta vez. colocando os rnembros de urn modo di ferente . A sequencia repete~seate que Cunningham desenvolve uma nova sequenc ia a partir da prirneira cujosmovimentos estao f ixados , Como de diz: "Arninha coreograf ia fa z parte de urnprocesso de t rabalho (a working process). Isto nem sempre se faz com acompanhia. Posso ser eu, soz inho. Se nao resulta r por urna razfio qualquer, ouse nao for , para mirn, f is icamente poss ivel faze~lo, ensaio outra coisa ( .. .) . Comove, interesso-me pela exper imentacao com movimentos"."o que e.experimenrar, "ensaiar"? E chegar a urn ponto de "coordenacoesflsicas" tais que "a energia" passa "naruralmente'l.! Trata-se de fluxos de~ovimentos mais que de formas ou de figuras (como no ballet) . Ensaiandouma sequencia de movirnentos e verificando que a energia passa, 0 bailarinoencontra-se diante de' rmilt iplas possibilidades de outros movimentos. Ensaiade novo, e escolhe, e assim sucessivamente, criando um fluxo de energia. Asformas compoem~se pouco a pouco, e pesam sem duvida na escolha dasseqiienc ias; mas nao sao dete rminantes, pelo contra rio, dependem do destinoque 0 bailarino quer da r a energia, criando micleos inrensivos ou atenuando 0seu impulso, ace lerando a ve1ocidade , modulando a forca do movimento. Em

    2 ) C UNN INGHAM , M. " Ch or eo gr ap hy a nd m e dance", in SORELLW . [ed.], The dan ,e h I lSmany f oce s , 1951,op.cit., p. 55 .

    3 ) C f. C UN N IN GHAM , M. "T he im perm anent arr", op. cit,

    Adanca e a linguagem 69

    Cunningham, com certeza, a criacao de formas obedece a Iogica da energia:longe de constitufrem fins em si (const ruir "belas figuras"), as formas sao umaespecie de "embreagem" do fluxo de movirnento.

    Nao devemos crer todavia que as coreografias de Cunningham supoemtodas um cont inuum do movirnento que resultaria de experimentacdes sucessivas:"Fiz dancas que uti lizam diferentes continuidades de composicao, Por exemplo ,atualmente e raro fazer uma danca em que comeco no prindpio e continuo,sernpre, ate 0 fim. E mais provavel que fa

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    70 Movimen to to ta l

    series hererogeneas, E 0que acontece em numerosas coreografias contemporaneas(no teatrs-danca, por exemplo: s&iede movimentos corporais e serie de palavras;serie de espac;:os ou de objeros sem relacao com as series de gestos), ou nasdanc;:as.rituais ou terapeuticas das sociedades exoticas.

    Deveremos crer que 0corpo tenha urn tal poder integrador, ou ass imilador,que transforrne tudo 0 que dele se aproxima no esparyo e no tempo, num redohomogeneo e unificado, quer dizer organico? Em outras palavras, 0nexo dadanc;:al igar-se- ia ao nexo do corpo como organismo, ou como esrrutura (jabrica,como se dizia no seculo XVI).o que significa aqui "integrar"] Nao que as series, divergentes desde 0inicio, deixem de0ser para convergir para urn mesmo frm; porque, por exemplo,se as palavras do ba ila rino nao te rn qualquer ligac ;:aocom os movimentos queexecuta, conservam 0seu sentido e a sua esrranheza proprias. As series continuama divergir.

    A convergencia nao se produz; pelo contrario, e paradoxalmente, adivergencia da s se ries vai-se acenruando, ou antes, adqui rem uma autonornia euma intensidade acrescidas , 0 memento em que surge aquilo a que Duchampchamava "a habituacao", e que Cunningham designava por "pontes esrruturais"{pontos de encontro de uma serie de sons divergentes com uma serie de gestosdancados), eo instante em que uma serie agarra a outra, '~rar", quer dizer,combinar-se, agenciar-se, Longe de formar uma total idade organica mais vas ta(sendo a coreografia a Toralidade de todas as tota lidades), as series, primeirointeirarnente independenres e indiferentes umas a s outras, entram em contatoe conectam-se em cerros pomos s ingulares, Nem por isso convergindo, se cruzam,E, a partir desse memento e desses pontos de cantata, diferem ainda mais.Como dir ia Deleuze, que estudou longamente a divergencia das se ries, " '"vao-sediferenciando" .

    Os pontos de coritato ou de cruzamento constituern nucleos deintensificacao das ser ies. Inrensificacao interna das disrancias ( tensoes) entredois gestos que se sucedem; inrensificacao das divergencias entre a serie dosgestos e a ourra (das notas musicais, das palavras, dos obje tos, dos gestos nfiodancados).

    Do contato nasce a conexao, 0agenciamenro. Se rernos a impressfio de quedoravante as duas series formam urn rodo, e porque entram numa mesrna6) Cf. DELEUZE, G. DifPTI!na ~t r~pi t i t i sn e Logiq,,~du SImS, ops. cit..

    Ad a nc a e a l in gu ag em 71cont inuidade de fonda composro pelo proprio r itrnoda divergencia que assepara:e que se inrensificou, auronornizando mais cada uma das series.

    Suponhamos urn solo: 0 bai larino executa uma serie de gestos, de sribito,p6e-se a falar de uma hist6ria que nada aparenternenre te rn que ver com os seusmovimenros (poderiamos tomar como exemplo a pes:a de Steve Paxton, Ash,1999).0 olhar do espectador vacila, a sua compreensao dos gestos e das palavrasdesagrega-se. Depois, a partir de urn cerro momenta, tudo volta a ficar no seulugar: a coisa "funciona". 0 que e que funcionai 0 movimento dos gestos e daspalavras que nao resulra do agenciamento de uns nem da s out ras, em duplacadeia que se enrolasse sobre si, nao se conectando as palavras ou as frases umaa uma com os movimenros ou as seqi ienc ias de movimentos. 0 agenciamentooperou-se num cerro POnto de conta to que tern urn efei to de ressonancia sobreas duas series , efeito que doravante per tence aos proprios movimenros das ser ies.Dizemos: as palavras "entra ram na danca", Forma-se assim a continuidade defundo que assegura a conexao paradoxal das series divergences.

    Porque e verdade que cont inuamos aver e aouvi r os gestos e aspalavras emseries separadas, constatando a sua divergenc ia cada vez mais nfrida . Mas estaditerenca diferencia-se cada vez mais, porque 0ritmo do movimento dancadose relaciona com 0 ri tmo do fluxo de palavras como aquilo que faz sobressair asingularidade da outra serie. Daluma continuidade das distancias ou dasdiferencas entre as series. 0 rirmo assegura as distancias na continuidade,permitindo 0 movimento de diferenciacao sem ruptura, modulando 0 tempo,a veIocidade, a distanc ia inrerna aos inre rva los, sem dest rui r a linha de fluxo daenergia.

    Tal e 0 que faz 0 nexo de urn conjunto de movimentos heterogeneos.(Poderfamos descrever de modo idenrico a coreografia de certos rituaisterapeut icos, como os descri tos por Victor Turner ent re os Ndembu, da Africa :series divergentes que se cruzam no ponto de contato do sacriffcio.)o nexo coreogrdf ico implica uma conrinuidade de fundo da circuial:rao daenergia, ainda que, a superffcie, se choquem series, ou se separem, au sequebrem.De faro, urna coreografia comporta multiples est ratos de tempo e de espac;:o.Acontinuidade de fundo, enquanto est raro de agenc iamento de todos os est ratos,garante 0 nexo, a 16gica propria dacornposicao de todos os movimenros .

    Porque, como diz Cunningham, urnadanca e "uma coisa que e jusramente .a coi sa que aqui esta", qualquer coi sa do nexo da obra continua a escapar-nos;qualquer coisa que escapa a linguagem porque a danca nao e uma linguagem.

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    72 Mov imen to t ot a l

    Francis Sparshotr da 18 raz6es para recusar a danca 0esratuto de umalinguageIf.7 Basta que evoque l_POs aqui uma, dec isiva : e imposstvel recortar,nos movimentos do corpo, unidades discretas comparaveis aos fonemas da Ifnguanatural . Se ja como fo r que recor temos a massa dos movimentos corporai s (porplanas, par volumes, par traccs-signos - como na noracao Laban"),esbarraremos sempre num fato irredutIvel: 0 desli zar de umas para as out ras oua sobreposicao das unidades recortadas impede que tracemos uma fronteiranftida ent re dois movimentos corpora ls que "se arti culam".

    Esta sobreposicao , que se liga essenc ia lmente ao fa ro de as art iculacoes doesqueleto fazerem interferir rmisculos e tend6es cujo movimento cornpromere,par seu tu rno, outros ossos alern das que presumivdmente se rnoveriam, tornaimpossfvel essa "primeira articulacao" necessaria a formacao da linguagem.Naoha "gestemas" discretos , cornpaclveis aos monemas nem unidades insepardveisnao significadvas, como os fonemas. Daf a inexisrencia de uma "duplaarri culacao" de uma linguagem do carpo. a maneira da da linguagem falada.

    Ha uma outra raz fio que me parece importan te: a func;ao de expressao dosrnovimenros do corpo e muito mais rica que a da linguagem articulada que depende,em grande parte, da func ;ao de comunicacao do sent ido verbal . E ~ue 0sentido,na expressividade corporal, nw deriva, em primeiro lugar, da articulacao dossistemas anatomicos do corpo pr6prio. 0 seu surgimento a superflcie do corponao depende exclusivamenre do movimento mecinico dos membros e do tronco.Todo urn OutIO conjunto de movimentos de rmiltiplos tipos contribui para aexpressao do sentido: par exemplo, as que fazem a qualidade da "presenca" de cerrobailarino, au a "fluencia" cia sua energia, etc. E que a corpo do bailarino nao eapenas a corpo Hsico da medicina ou 0 corpo proprio da fenomenologia.

    Pode preencher-se de sentido ou tornar-se exangue , ausenre , vaz io (comoas corpo dos psicoticos, pelo menos parcialmente) . Mas, ate mesmo neste Ult imocaso, nao de ixa tata lmente de se r expressivo.

    Convem disringuir, aqui, entre os movimen tos do corpo nas suas func ;6eshabituais, individuais e sociais - como 0 fato de andar au de efetuar uma

    7) SPARSHOTI, Francis. A m=umi pac e: lDWd .r t ia ph i bnopb ic a l unLimtal1dilZg of the am of dalZU. Toronto!BuffitlofLondres, University of Toronto Press, 1995, p. 253.

    B)Notemos que urn sistema de no~o n a n constitui uma linguagem. A not:l9io e urnconjunto de signosquevisa restituir a posi~ do corpo e des seus mernbros no espacoe no tempo, bern como a veloeidade comque se deslcca , Por rnais per fe ira que seja estacodif icao des mnvimentas nw fornece unidades cujaarriculacao formasse a primeira oondi~o ci a ccnstrudio de signos que rernetessem para significacees(significados).

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    A d an c ;: ae a l in g uagem 73

    tarefa par meio de ferramentas - e as movimentos dancados, Porque, se serecusa com facilidade aos movimentos funcionais a termo de "linguagem",hesi ta-se em nao a aplicar a danca, caso em que, menos que nas outras artes,assumiria uma signi ficacao metaf6rica . 0 corpo "fala ria verdade iramente" nadanca, .o que se ligaria ao fato de a expressividade corporal ser a{ e levada a urnUltimo grau, de tal modo que a corpo do bailarino seacharia par vezes "saturado"de sentido, Em surna, se a corpo e de qualquer maneira expressive, se-Io-iamui to mais quando danca .

    Cunningham re[eria-se ao movimento natural , "esponcineo", tanto comoao ' rnovirnento dancado, Todavia, a dife renca ent re as dais e de na tureza, maisque de grau na expressividade . Se as bai larinos chegam a ponto de sa tura r 0 seucorpo de sentido, enquanto as movimentos funcionais ou urilitarios ndoexprimem senjio sign ificacoes preci sas, pobres au i soladas, isso result ari a dofa ro de a danca dizer urn "rnundo": ao passo que 0 gesto de l impar urn v idro, senfio for dancado, dizapenas uma func;ao .

    Se a sentido nao chega ao corpo grac;as a uma dupla articulacao dos seusmovimentos, como e que 0bailarino consegue, como em certos casas , saturar 0seu corpo de sentido?

    Consideremos, em primei ro lugar, a corpo "trivia l" habi tua l (expressaoprefedvel a de "corpa natural", enr idade f ictfcia) . Nesse corpo, a interferenciados movimentos uns nos outros nao conduz a sua confusao; pdo contrario, aeducacao do corpo das criancas compona fases cada vez mais complexas decontrole motor , visando a adaptacao dos movimentos a vida social (a confusaona sobreposicao cu lminaria na imporenc ia mot riz de uma espec ie de amalgamade sentidos expressos numa sop a geral express iva - caso, por vezes , do autismo,de .certos corpos psicoticos, das criancas-lobo),o corpo comum exprime urn sentido, embora naa por meio de umalinguagem. Porque, se a constituicao anatornica nao permite a formacao deuma linguagem com uma dupla articulacao de unidades discretas, a corponem por isso e menos articulado.

    Ou antes, como nao chega a ser inteirarnente articulado, diremos que asseus movimentos relevam de urna quase-4rticula~iio.

    E esta quase-art iculacao que garante a sua mobilidade, a sua operatividade,a sua integracao no espa~o, impedindo-o de cair na imabilidade amorfa ou nainexpressividade do pura objeto.

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    74 Movimento total

    Como fundona a quase-a rticulacao do corpo?a) Era primeiro lugar, 0 ql!.bse arcicula no corpo nao sao unidades de

    movimento, mas zonas inteiras do espaco. Ora , estas zonas nao te rn fronrei raspredsas, interferindo umas .nasoutras ou encaixando-se umas nas outras. Azona esquerda do corpo interfere na parte da frente e na parte de trds, 0espacode urn movimento da mao encaixa-se no espas:o dos movimentos possfvei s doantebraco, que e recoberro por seu rurno pelo espas :o dos movimenros do braco . .Estas zonas nao se aniculam verdadeiramente, uma vez que a partir de urncerro ponto 0 ~ovimento de arriculacao de uma zona traz consigo uma partede urna outra zona, E uma quase-art iculacio do corpo.

    b) Vemos que os movimentos depend em das limiracoes anat6micas-constitut ivas do corpo. Hi movimentos que 0 homem nfio pode fazer, comovoltar a cabeca 360D Estas l imitacoes imp6em urn quadro "quase-sintdtico",determinando certo tipo de gesios e de seqiiencias, ao mesrno tempo queimpedem outras, mas sempre segundo regras que comportam uma larga margemde indetermina~o. Qualquer conjunto de ges tos formados, qualquer "sintagma"gestual Huruam numa zona imprecisa, sern contornos nitidos, que acolhemultiplas outras sequencias possivei s. "Dar urn passo para frente" obedeceauma regra sinta tica que disp6e 0 corpo e os seus mernbros aparentemente deurna unica maneira; olhando as coisas de mais perto, descobrimos infinitasmaneiras de colocar as partes do corpo a fim de ~ed ar urn passo para frente -mas sempre no inte rior de urn quadro Iimitarivo (do qual urna das imposiese a de adiantar uma perna).

    Trata-se de uma zona de movimentos corporais, ao mesmo tempo precisae com contornos indef inidos, que corresponde a urna signifieac;ao geral do gesto,em que este ultimo se forma segundo uma regra "quase-sintatica" (e nao"sintatica" porque hi sobreposicao de zonas, apagamento de fronteiras demovimentos e de senrido). Falaremos de urna regra "quase-sinricica" de formacaodos gesros. Sendo estes sempre singulares, mas inscrevendo-se numa margemde indeterminacao, uma zona de sentido geral (verbal), cada "sinragma" ges tualcomporta simultaneamente urn sentido iinico e um sencido comum a ourrosgestos: e urn quase-sintagma.o sentido do gesto nao e equfvoco: pelo contrdrio, e ate inteiramenteunfvoco e singular. A sua singularidade vern do faro de ele ocupar no espacouma posicao unica , microlocal, ji que resulta precisamente das sobrepos icoesde zonas "gerais" (assim designadas pela Iinguagern). A unicidade do gesto

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    A danca e a linguagem 75desposaria enrao 0 seu sentido: 0 gesto tornar-se-ia 0 sent ido enta rnado - tale 0 que vai conseguir a danca,

    Constatamos que os rnovimenros do corpo comum se inscrevem no inter iorde uma Iarga faixa compreendida en rre uma tendenc 'i a para 0 signa puro (a"ar ticu1ac. :io"dos gestos) , e uma tendencia para a encarnacao do sentido (no gesrosingular , i rredutfvel a urn codigo) , Nos dois casos, a sobreposicao persiste entres igna e sentido, entre "signif icante" e "signif icado" : por muito codif icado que sejacerro ges to (apontar com 0 indicad.or; a reverencia do bale dassico; 0 mudra dadanca indiana), nunea se des ligaci por complete do res to do corpo. Dini por tantoo que 0 codigo lhe a tribuiu como sentido, mas tambem 0 que a sua l i g a c ; : a o aocorpo implica como "senr ido incorporado" (a m a o continua a ser urna mao comrodas as suas virtua lidades de movimento, para alem do fato de desempenharfunc;ao de s igno; e 0mesmo se passacom 0 t ronco na reverencia) , Por outro lado,o gesto s ingular que encarna 0 sent ido nunea deixa de ser urna unidade quase-separavel, urn quase-signo, desde que perrence a urn corpo quase-articulado.

    Em suma, e a partir destas duas tendencias ou possibilidades da quase-articulacao do corpo comum, que poderemos ou puxa-lo para 0 lado dafuncionalidade ou para 0 lado da encarnacao do sentido (no movimentoimanente da danca).

    c) Se considerarmos 0 gesto dancado, esta quase-art iculacao das zonas docorpo e a inrerfe rencia entre movimentos que impl ica , conduzern a urna especiede sobre.fragmentafiio dos gestos. 0 que faz com que urn rnovimento qualquerdo brace, por exemplo, se decomponha numa infinidade de movimentosmicrosc6picos: s6 a imobilizacao de uma imagem da urn plano estatico de urngesto uno e indivisfvel, A uma escala minima, cada parte do braco, da pele, dacarne consri tui uma unidade insravel , em movimenro, que se comp6e de outrasunidades ainda mais pequenas. Como 0 movimenro da danca consegue estasobrefragrnentacao a partir da quase-art iculacao do gesro comumi

    Na vida comum, submet ida a multiples si st emas de codifi cacac dos gestos,a tendencia para fazer recair a quase-art icuiacao sobre 0 signo verbal prevalecesobre a segunda tendencia, que vai no sentido oposto. Os gestos tornam-seinteiramente transparenres, traduzfveis em significacoes gerais. 0 corpo exprimeentao a l inguagem articulada , os seus movimentos finali zados fa lam a linguadara das func; :6es sociais, A "l inguagem" do corpo nao di fere grandemente doque dele diz 0 discurso dos imperativos de todos os generos e que moldam osseus movimentos.

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    76 Movimen to to ta l

    A tendencia para a singu laridade dos gestos e absorvida por esta disciplinado corpc , 0 nao-verba l, que corresponde aqui ao microscopico e a singularidadee reduzido, ernpobrecido, ou ainda apagado em beneficio dos gestos funcionaisrnacroscopicos e gerais. Por exernplo, a expressividade corporal de um professore absorvida pelos gestos largos que acompanhamas suas mensagens verbal s -porque toda a sua fum;ao de docente e codif icada por meio da linguagem.

    Melhor: sob 0 apagamento da tendencia para a singularidade da quase-a rticulacao do corpo, desponta por vezes aqui lo que lhe subj az, 0 fanrasma docorpo informe, do monstro, do corpo louco, selvagem e violento; 0 fantasmado visceral. do corpo sujo ou do corpo morrifero epidemico, Estes fanrasm~constituem 0 pano-de-fundo inornindvel que e necessario controlar ou eliminar,se se quiser ter corpos funcionais.

    Como a danca rransforma 0corpo comum? Atraira a sua quase-articulacaopara 0 lado do signa e da linguagem verbal ou para 0 lado do corpo singular,incodificavel, nao-semiotizdveli

    De faro. a danca escapa a esta pseudo-antinomia. Porque, em primeirolugar , poe em movimento. Todavia, esta movimentacao do corpo nao parte dezero. de uma imobilidade ou de urn repouso absolutes. A danca poe 0corpoem movimento, porque 0corpo ja esta em movimento (movimento dos orgaos;movimento i:ens ional que 0 rnantem em vida; movimento do cerebro e dospensamentos; movimento no equil ibrio da posicao de pe, que faz a "small dance"de Steve Paxton). De uma maneira geral, nao ha uma iinica posicao do corpoque seja esrat ica, 0COfpOmexe-se sempre imperceptivelmente porque estasempre em equil ibrio tensional .oque s ignifica, por exemplo, "de pe" nfio des igna uma posicao imobilizadano espaco, mas implica uma infinidade de posicoes milimetricas, invisfveis aolho nu, que giram em torno de urna especie de eixo ou de posicao nuncarealizada.

    E a sobreposicao dos rnovimenros e a quase-articulacdo do corpo queexplicam esta mulriplicacao do gesto, porque 0equillbrio produtor demovimento (equiHbrio mera-esrdvel) se apoia na sobreposicao, criadora de rensioe de instabilidades microscopicas.

    Ora, a auromult ipl icacao do gesto - 0 fato de urn gesto se revelar , a escalamicroscopica, constituldo por uma multiplicidade de gesros - implica a suasobrefragmentariio. como e evidente. 0 movimento incessante de urn gesto emtorno de urn eixo virtual nao s6 cria uma infinidade de outros gestos, mas

    Ad a nc a e a J in gu ag em 77tambern urn continuum de microgesros de tal forma que uma parte minima deurn gesto se comp6e com uma de urn ourro gesro - por sobreposicao dosmovimentos au do seu deslizar de uns para os outros -. assim, rodos osmicrogestos que formam 0 gesto dividem esre ul timo em mil micro -unidades ...

    Em suma, nao s6 a sobreposicao supoe que cada gesto (macroscopico)arrasta consigo fragmentos de ourros gestos que conrern outros fragmenros deourros gestos ainda, mas 0 r ipo de equilfbrio proprio do ges to dancado fragmentao movimento em rmilt iplas seqiiencias microscopicas, Por exemplo, abro a bocaao dancar: nesta sequencia de movimentos encontram-se concentrados multiplesfragmentos de outras seqtiencias ainda nao determinadas (abrir a boca paragrit ar, comer. fatar. cantar, etc.): mas esta sequencia , ela propria . mantern-seem movirnento incessanre, atraves do seu equilfbrio tensional ou mera-esravel ,f ragmentanda-se e dividindo-se, amplianda a sua quase-art iculacao.

    Em out ras palavras, a sobre fragmentacao equiva le a uma sobrearriculacao,A quase-a rticulacao que, na vida cornum do corpo, e puxada para 0 lado dosigno e da art iculacao da linguagem verbal - mutilando, de fato, truncando,a proprio movimento de quase-art iculacao que faz toda a plast icidade do corpa-, ganha na movimento dancado urna amplitude que a sobrearticula, paraalern daquila que 0 sistema das "articulacoes" do esqueleto e dos musculosdetermina como suas simples poss ibil idades , no plano dos macromovimentos .

    Ora, nes te mavimento de sobrefragmentac;ao ges tual (os tens ive, na recnicaCunningham; ou nos movimentos do butf)), a tendencia orierita-se para aabolicao do gesto como signa: 0gesto tende a encarnar 0sentido. E0movimentodo sentido que agora vemos no corpo do bailarino. 0 seu gesro e iinico esaturado de sentido, Nao resulra da aplicacao de uma regra sintatica quase-arriculando zonas gestuais que indicam zonas de sentido, mas da propriaemergencia do sentido. 0 movimento desras micro-unidades di z imediatamenteo sentido, como se este obedecesse a uma gramatica sernantica propria, nao-verbal.o movimento dancado conduz a quase-a rticulacao das zonas amplas demovimento (e de sentido) a construcao de seqilencias articuladas imediatamentedotadas de sentido, 0 corpo dancado torna-se urn sistema em que a quase-art iculacao s ineitica se resolve numa gramdrica semdntica, Es ta gramatica terncomo lexica micro-unidades gestuais indefinidas, e como sintaxe trajetos deenergia (Deleuze diria: mapas de intensidades que percorrem 0corpo dobailarino) .

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    Em: suma, procurando dancar a gramatica, a bailarina visa esse "ponte defusa~" q!!e solda os gestos e 0sentido nurn unico plano de imanencia. A dancaconstr6i a plano de mavimento onde "0 esplrito eo corpo sao urn S6"9 porqueo movimento do sentido desposa a proprio sentido do movimenta: dancar e,nao "s ignilicar", "simbolizar" ou " indicar" s ignificacoes au coisas, mas trac;ar 0movimento graCiasaa qual todos estes sentidos nascem. No movimento dancadoo sentido torna-se aC;ao.

    Mas como pode 0 sent ido se r dito de dife rentes mane iras, pela pa lavra oupela imagem, pela nar rativa ou pe lo gesto puro, a danca recarre a estes mul riplosmeios, integrando-os e transformando-os em movimento. Trata-se de urn autroaspecto da imanencia,

    Compreende-se agora que Cunningham afirrne que 0 sentido da dancaestd na propria ac;aod e dancar e nao noutro lado, nao nas teorias e nas ideias ounos sentirnenros. . que a irnanencia realiza 0senti do no movimento dos corpos.Eis 0 que da nexo ~ coreogra fia: nao a coerencia .dos movimenros segundo urncodigo, mas a consr rucao de urn plano que perrn ite aos movimen tos dancadosaringirem esse ponto de fusao de que Cunningham fala. Assim, ja nada dosenrido escapa a linguagem, porque a linguagem, 0mavimento ~o seu sentido,entram no movimento do sentido da danca, Enrao, ja nao poderemos afirmarque aquila que faz 0nexo da obra e inefavel, porque esra presente, aqui, realizadona imanenc ia do sentido a danca dos corpos.

    Do mesmo modo, uma vez que partirnos das series divergences de-Cunningham, diremos que enos pontos de contatodas series ("pontosesrruturais", segundo a expressao de Cunningham), par exemplo, de uma seriemusical com uma serie de movimenros dancados, que corneca 0 tr acado doplano de imanencia. Nestes pontos de intensificacao da energia comeca a osmosedo movimenro, de tal.forma que as espa

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    inconsciente do corpo) e vai para a superflcie (os mrisculos, a pele, asarticula~~es visiveis do corpo);~e0"fundo" possui diferentes estratos, maisou menos profundos, mais ou menos suscetfveis de emergir. 0 que implicavaries pianos de irnanencia possfveis, bern como varies regimes de expressaodo sentido.

    Sobrearticulando 0 corpo, 0movimento dancado abre ate ao infinito 0leque dos gesros, quer dizer, a organizacao dos movimentos em seqtienciasque Iignificam por si prdprias, sem recorrerem a linguagem. Ern outraspalavras, tudo se passa como se a sobrearticulacao substitulsse a ausencia,na danca, da segunda articulacao da linguagem falada. Simplesmente, aqui,siruarno-nos desde 0inicio ao nivel do sentido e nao ao nfvel do signo. Asobrearriculacao nao cria uma outra articulacao, mais vasta que a do esqueletoe dos musculos que fundam a quase-articulacao, Pelo contrario, abre nadirecao do "fundo", dos esrratos profundos de sentido, dos movimentoscada vez mais fragmentados. (Como mostra 0bailarino buto Min Tanaka,que sobrearticula as arriculacoes - as dos dedos, par exemplo -imprimindo-lhes urn tremor microsc6pico.)

    Tendo em conta que 0 conjunto dos gestos de uma coreografia nao formaurn sistema de signos; que cada gesto se encontra indissoluvelmente ligado aurn senrido, podemos tentar uma comparacao entre a danca e a linguagemarticulada.

    Lembremos ern primeiro Iugar que a dupla articulacao da linguagemcomporta dois niveis de articulacao, 0das unidades significativas mfnimas,ditas "rnonernas" (que nao sao palavras: "retardar" ccmpoe-se de rresmonemas "re"+"tard" +"ar"); e 0 das unidades ultimas inseparaveis naosignificativas, os "fonemas" {p/o/rl em "por"). 0 numero dos monemas edos fonemas de uma lingua e finito. A dupla articulacao destes elementosfinitos permite exprimir 0infinito do sentido do mundo, combinando osfonemas para formar monemas, e monemas para formar palavras e frases.Se 0numero dos fonemas fosse infinite, haveria umainfinidade de monemase de palavras para exprimir 0infinito do seneido - seria necessaria umamemoria infinlta para conservar todas as palavras e, no limite, ja nao haveriagramatica nem haveria lingua.

    Nao devera a "linguagem do corpo'' e, em particular. a danca, obedecertambem a requisites semelhantes, ainda que relevem diretamente do sentido(da semantica) e nao do signo?

    Ad a nc a e a l in gu ag em 81Notar-se-a que a danca: a) pode exprimir a infinidade do sentido e da

    experiencia humana; b) que, para 0fazer, reeorre a urn numero infinite degestos (como a linguagem arriculada forma uma infinidade deJrases); c) que osgestos infiniros se constroem a partir de urn mimero limitado de movimenros(como as frases a partir da s palavras, dos monemas e dos fonemas).

    Dada a dificuldade em definir urn "gesto" dancado, suponhamos. queos gestos recortam na massa. dos movimentos corporais alguma coisa como"campos semanticos" (dos lingiiisras). quer dizer, regioes de sentido ondee possfvel determinar (por oposicao, por diferenciacao) estrunrras gestuais(como, na lfngua, estruturas lexicais), Assim, parece possfvel localizsr zonasde movimentos significativos do corpo ao nfvel dos gestos, quer dizer, daquase-articulafiio: andar, comer, respirar, olhar, etc. Estas zonascornportariam gestos de senrido claro quando ordenado em torno de umaoposicao, por exemplo:

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    infinidade de variacoes gestuais e possfvel. Porque a rnirnero destas zonas el imirado, a danca pode exprimir.a infmidade do sentido do mundo com urnmimero rdativamente restrito de movimenros, Digamos que, ao contrdrio dalinguagem articulada, e a primeira articulacao (em campos semanticos) quelimita e funda a segunda articulacao (em microgesros): e sempre do interior deurna certa esfera, resultado da combinacao das diversas zonas semanticas, queurn gesro retira a seu sentido,

    Urn gesto dancado comp6e-se portanto de urna "articulacao" de campossemanticos + movimentos singulares (sobrefragmenrados) recortados em cadaurn dessescampos. Aquela nao e uma "articulacao", mas uma .quase-arriculacao,no sentido em que os gestos se combin:ani em conjuntos quase-discreros, Sendona realidade continuos. a sua qualidade discreta decorre da sua quase-articulacso:porque ha zonas semanticas e porque estas se fundam na "articulacao" do corpo(as membros dividem-se, 0 tronco articula-se com as pernas, etc.), fala~sededescontinuidade e ate mesmo de signos. Mas tudo isro sao apenas analogias.Enquanto na linguagem e a descontinuidade qu:: cria a articulacao e acontinuidade, na danca a continuidade e primeira.

    Assim, e num senrido muito diferentedo da linguagem falada, deveconceder-se ao movimento dancado a poder de combinar unidades varidveis(nern flxas nem discretas) em seqiiencias dotadas de sentida, seja qual for amodalidade de sentido considerada. Este poder e a equivalence do de uma ..gramatica ou de uma Cbaracteristica (para empregar 0 termo leibniziano),umavez que estarnos na esfera do senrido e nao dos signos. Por outro lado, e pelamesma razao, s6 podemos a l a r de "gramatica" par analogia.

    No entanto, nao devemos esquecer que a corpo, e a danca em particular,tern a possibilidade de produzir quase-signos (quer dizer signos nao arbitrarios,cujos significancesdesposam 0movimento do sentido), Situamo-nos aqui numazona hfbrida onde a sentido tende incessanrernente a significar-se em signos, e. .onde as quase-signos se apagam para deixar passar a sentido. Empreguemos,ainda que provisoriamente, a expressaode "gramatica semanrica" para caracterizara l6gica pr6pria que rege a movimento dancado (e toda a coreografia).

    Gramatica paradoxa!: nem as signos nem as regras sao dados de antemao,porque so0movimento osconstroi (exceto no caso dasdancas muito codificadas).A s seqtiencias dancadas nao se organizam segundo regras de disposiclic dossignos, mas segundo circuitos de energia que regulam a formacao do sentido.Esta gramatica "age" diretamente sabre 0 (au emana do) sentido, urna vez que

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    dita ao movimento as caminhos a tamar (sintaxe) para que a sentido venha aemergir ao mesmo tempo.

    Se0movimento constroi "unidades gramaticais" de sentido, como descreve-las esras, uma vez que nao formam signos?S6 urn exame mais atento a naturezado gesto dancado perrnitira talvez responder a ta l interrogacao.